Psychology">
Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

A Estrutura Argumentativa Do Debate Entre H. L. A. Hart e Lon L. Fuller. PESSOA, Gabriel Alves.

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 27

A estrutura argumentativa do debate Hart-Fuller sobre a relação entre

o direito e moral

Gabriel Alves Pessoa, PIVIC-UFLA


Orientador: Leonardo Gomes Penteado Rosa

Este trabalho é o resultado do esforço intelectual para compreensão do debate entre


Lon Luvois Fuller e Herbert Lionel Alphonsus Hart. Os autores defenderam, respectivamente,
as escolas de pensamento do direito natural e do positivismo jurídico. Essas escolas de teoria
e de filosofia do direito divergem, notadamente, sobre a relação entre o direito e a moral. E
essa é a razão principal da divergência entre Fuller e Hart.
Fuller entende o direito como algo necessariamente relacionado a moral: uma união
indissociável entre o direito que é com o que deve ser o direito. Hart discorda. Ele entende
que a relação entre o direito e a moral é meramente contingente e defende a separação entre
eles: o direito é aquilo que existe e não se confunde com o seu ideal moral. O estudo de temas
teóricos e filosóficos, como é o objeto desta pesquisa, se beneficia muito de debates
realizados entre o desacordo de mentes poderosas. Nesse sentido, esta pesquisa se aproveita
da disputa entre os dois autores para compreender a relação entre o direito e a moral e as
implicações para o direito das diferentes formas de se conceber essa relação. Este debate foi
dividido e analisado em seis rodadas de textos, onde as teses dos autores e seus principais
argumentos e contra-argumentos foram defendidos. (1) Fuller sai em defesa da racionalidade
do dever ser em Propósito humano e direito natural; (2) Hart rebate as alegações de Fuller em
Positivismo e separação entre o direito e a moral argumentando que é e dever ser não se
confundem e que essa forma de pensar leva à conclusão errada de que direito e moral não se
separam; (3) na réplica, Positivismo e Fidelidade ao direito – Uma resposta ao Professor
Hart, Fuller contra-argumenta que (...); (4) então Hart escreve O conceito de direito onde
apresenta e defende sua teoria do direito: o direito como um fenômeno social baseado em
regras e não em ordens coercitivas em que as regras jurídicas não se confundem com as regras
morais, ou seja, direito e moral separados. Ele retoma o debate com Fuller em seus capítulos
que pretendem refutar a teoria do direito natural; (5) Fuller responde em seu A moralidade do
direito, onde defende a união entre direito e moral através do seu argumento da moralidade
interna do direito; (6) Hart escreve um pequeno artigo sobre o livro de Fuller, intitulado Lon
L. Fuller: a moralidade interna do direito onde crítica ele por atribuir demasiado valor aos
propósitos do direito; (7) Fuller responde, acrescentando a seu livro o capítulo 5, Uma
resposta à crítica, onde se defende das críticas de Hart e de outros.
O movimento argumentativo do debate foi lido através do método de leitura estrutural
(MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto, 2007). O intuito deste método é compreender os
argumentos dos autores a partir de sua lógica interna, isto é, de sua racionalidade filosófica. O
objetivo da pesquisa é, num primeiro momento, reestruturar e analisar os principais
argumentos a partir da recuperação da lógica interna de cada autor, para depois, num segundo
momento, responder à pergunta fundamental: qual tese produz um resultado melhor para
proteger o direito contra ameaças autoritárias? Uma tese que vincula a validade do direito à
moral - como a de Fuller – ou uma tese que trata do direito não relacionado com a moral -
como a de Hart?

Primeira rodada: Positivismo e a separação do direito e da moral


(Hart, 1958)

Neste artigo, Hart defende das críticas a principal tese do positivismo jurídico, a separação
entre o direito e a moral ou a tese da separabilidade.
Na seção I, Hart apresenta e defende o argumento de dois utilitaristas, Bentham e
Austin. Eles compartilham da principal premissa do positivismo jurídico: a tese da separação
entre o direito e a moral, ou a separação entre o direito que é do direito que deveria ser. Eles
concebem a existência do direito independente de seu mérito. Nesse sentido, a insistência
deles em separar o direito da moral consiste em dois princípios: (i) não se segue, na ausência
do direito, um padrão de moralidade que não consiste em regra de direito; (ii) nem resulta que
um padrão moral desejável constitui uma regra de direito.
Na seção II, o argumento de Bentham e Austin, de que o direito não deixa de ser
direito ainda que contrarie a moral, é defendido por Hart das críticas ao positivismo. A
principal crítica diz que um sistema jurídico que falha no mínimo moral para ser direito deixa
de sê-lo. O problema dos críticos do positivismo que negam a tese da separação entre o direito
e a moral é pensar que a refutação da teoria imperativa do direito, do utilitarista Austin, dá
razão para abandonar a tese da separação. Contudo, Hart demonstra que é possível abandonar
a teoria imperativa do direito e manter uma teoria do direito positivista, que separa o direito
da moral, através do seu argumento da união das regras primárias com as regras secundárias.
Nesse sentido, os críticos do positivismo erram ao atribuir a refutação da teoria imperativa à
tese da separabilidade.
Na seção III, Hart defende a “insistência utilitarista” de separar o direito que é do
direito que deveria ser da crítica americana, que diz que a aplicação de casos concretos a
regras gerais exige, por vezes, uma interpretação da regra pela noção do direito que deve ser.
Essa crítica consiste em atribuir o erro de formalismo, isto é, de ignorar os problemas de
penumbra, ao positivismo jurídico. Hart reconhece que as regras tem um núcleo onde o
significado é estável, e uma zona de penumbra, onde o significado está em disputa e exige
interpretação. Mas para ele, essa interpretação não precisa ser, necessariamente, a luz de
princípios morais.
Na seção IV, Hart rebate Radbruch, que após a Segunda Guerra Mundial abandonou o
positivismo por entender que suas ideias permitiram a ascensão do regime nazista. Ele
defendeu que um direito moralmente iníquo deixa de ser direito. Hart argumenta que a
separação entre o direito e a moral em outros países seguiu “atitudes liberais mais
esclarecidas”. Assim, o que ocorreu na Alemanha não encontra apoio em nenhum outro país.
Além disso, para Hart, a declaração de que um direito moralmente ruim não é direito só
encobre o verdadeiro dilema: obedecer ou não um direito iníquo.
Na seção V, Hart apresenta sua crítica à teoria do direito natural. Ele concede que
regras jurídicas e regras morais coincidem em certas noções fundamentais necessárias para
um sistema jurídico. Além disso, o direito não é absolutamente neutro moralmente pois a
justiça na sua aplicação exige que casos semelhantes sejam tratados de forma semelhante. Um
sistema jurídico que não respeita esse mínimo, onde regras de direito e regras morais
coincidem, não oferece razões para ser obedecido – exceto o medo. No entanto, a teoria do
direito natural erra ao ultrapassar este conteúdo mínimo e afirmar que há uma relação
necessária entre o direito e a moral, ou entre o direito que é e o que deveria ser. Assim, não
decorre do fato de que há uma relação contingente entre o direito e a moral, isto é, podem
convergir em determinados pontos – e com frequência o fazem – que a separação entre direito
e moral está errada.
Na última seção, VI, Hart volta-se à Fuller, crítico do positivismo e adepto do direito
natural que compartilha em graus das críticas ao positivismo defendidas por Hart nas seções
anteriores. Fuller defende que é e dever ser, direito e moral, são indissociáveis. Para ele, o
dever ser tem bases racionais tanto quanto o é. Hart argumenta que ele confunde a tese da
separação com uma teoria moral que opõem declarações de fato (é) com declarações de valor
(dever ser). A tese positivista da separação entre o direito e a moral os separam, mas não os
contrapõem. Nesse sentido, Hart afirma que a aceitar a racionalidade do dever ser não
invalida a tese da separação entre o direito e moral: a noção de dever ser pode apontar uma lei
iníqua que, portanto, não deveria ser direito, mas não consegue demonstrar se a lei é ou não
direito.

Segunda rodada: Positivismo e fidelidade ao direito: Uma resposta ao Professor Hart


(Fuller, 1958)

Neste artigo, Fuller crítica a tese positivista da separação entre o direito e a moral. Defende a
conexão entre o direito e a moral através do argumento da moralidade interna.
Fuller começa sua defesa admitindo a importante contribuição de Hart para a filosofia
e a teoria do direito. A partir do argumento dele da separação entre o direito e a moral, a busca
positivista em definir o direito se baseia em uma definição que melhor serve ao ideal de
fidelidade ao direito. Mas o argumento de Hart o fez crer que a obediência ao direito nazista
era um dilema moral, ainda que não apoiasse o nazismo. Sua tese da separação entre o direito
e a moral o levou à conclusão de que o direito ainda que imoral, não deixa de ser direito.
Nesse sentido, o sistema jurídico nazista era direito para Hart e, apesar de suas atrocidades,
merecia fidelidade. Fuller discorda da tese da separabilidade e atribui a ela e,
consequentemente, ao positivismo a ascensão do nazismo.
Na seção I, A definição do direito, Fuller crítica o positivismo jurídico porque o único
consenso sobre a definição de direito consiste em dizer que é algo diferente da moral. Essa
definição positivista não ajuda no debate fundamental sobre a obrigação a fidelidade ao
direito. Assim, a tese de Hart sobre a fidelidade ao direito é incompleta porque ele não se
preocupa com uma definição que dá significado para a obrigação a fidelidade ao direito.
Na seção II, A definição de moralidade, o argumento de Fuller é semelhante. Hart se
empenha em separar o direito da moral, mas não tem uma definição nem de direito, pois dizer
simplesmente que é algo diferente da moral não é suficiente, nem de moral, pois sua definição
abrange qualquer noção extrajurídica de dever ser. Portanto, seu argumento tenta separar duas
coisas que não tem uma definição clara.
Na seção III, Os fundamentos morais de um ordenamento jurídico, Fuller aponta para
a interseção do direito e da moral na teoria do direito de Hart. Este abandonou a teoria do
direito como comandos, de Austin, porque para ele o fundamento de um sistema jurídico está
na união das regras primárias que impõe dever com as regras secundárias que especificam os
procedimentos essenciais para a criação do direito, e não no poder coercitivo, sem abandonar
a tese da separabilidade. Contudo, se Hart tivesse analisado a natureza das regras secundárias,
teria abandonado também a tese da separação entre o direito e a moral. Isso porque elas
derivam de uma aceitação geral, que por sua vez repousam numa percepção de certo e
necessário. Portanto, são regras que se fundam na interseção entre o direito e a moral.
Na seção IV, A moralidade do direito, Fuller apresenta o seu principal argumento. Ele
acredita que o direito tem uma moralidade própria. Ela é dividida em moralidade externa, que
confere legitimidade à sua fonte e, moralidade interna, que torna o direito possível através de
alguns requisitos. Hart ignora completamente a moralidade interna do direito. Sob sua luz, o
direito nazista não é apenas um mau-direito, mas um não-direito, porque fracassa em qualquer
dos requisitos da moralidade interna – pressupostos mínimos e intrínsecos ao direito. A ideia
de fidelidade ao direito, se adequa melhor, portanto, a conceção do direito que deveria ser.
Logo, os juízes deveriam ter declarado as leis nazistas nulas e terem sido fiéis ao direito que
deveria ser e não ao que ele era.
Na seção V, O problema de restaurar o respeito pelo direito e pela justiça depois de
um regime que não respeitava nenhum, Fuller aborda as dificuldades da Alemanha de
restaurar seu sistema jurídico após a queda do nazismo. A questão não é mais se o que foi
direito pode ser declarado não houver sido, mas quem deverá declarar isso: juízes ou
legisladores. Hart discorda dos tribunais que durante o nazismo, declararam as leis inválidas,
embora concorde com a solução de que uma lei retroativa deveria declarar tais leis nulas. Para
ele, o direito é um dado amoral, que tem uma característica peculiar de criar um dever moral
de obedecê-lo. Por outro lado, tem-se o dever moral de fazer o certo.
Quando o positivismo nega qualquer relação do direito com a moral, nega a
possibilidade de uma ligação da obrigação de obedecer ao direito com qualquer outra
obrigação. O dever moral de obedecer ao direito é colocado frente-a-frente com o dever moral
de fazer o certo na situação de se obedecer a lei nazista ou não. Hart e Fuller identificam esse
dilema moral, mas suas perspectivas diferentes sobre o direito fazem adotar posições distintas.
Hart prefere a obediência a lei (ordem) do que fazer o correto (boa ordem), porque entende
que o direito não tem que seguir a moral para ser válido. Fuller defende que os tribunais
alemães que declaram as leis nazistas nulas foram fiéis ao direito, pois o direito tem sua moral
e o nazismo violou, especialmente, os requisitos da moralidade interna. Esse é o problema ou
dificuldade em restaurar o direito ou ordem, para Fuller, deve ser conciliado com a
restauração do respeito pela justiça ou boa ordem.
Na seção VI, As consequências morais do positivismo jurídico, Fuller dá razão para a
afirmação de Radbruch de que o positivismo enquanto filosofia permitiu a ascensão do
nazismo. A moralidade interna do direito é suficiente para negar ao sistema jurídico nazista ou
qualquer outra ditadura o caráter de direito. Mas o positivismo é indiferente a moralidade
interna. Sendo assim, permite que sistemas jurídicos que almejam usar o direito como forma
autorizar suas atrocidades, como o nazismo, reivindiquem ser direito.
Na seção VII, O problema de interpretação: o núcleo e a penumbra, Fuller analisa a
teoria da interpretação de Hart. Há um núcleo onde o significado permanece constante e uma
zona de penumbra onde os significados podem variar de contexto para contexto. Hart
argumenta que quando um caso está na zona de penumbra, isto é, a regra exige interpretação
para ser aplicada, o trabalho do juiz é fixar um significado que torne a zona de penumbra um
núcleo de sentido estabelecido para adequar-se ao ideal de fidelidade ao direito. Contudo,
Fuller crítica a conclusão de Hart. Para ele, a penumbra exige interpretação à luz do propósito
da regra (interseção entre é e deve ser). Portanto, a resposta ao problema da penumbra não é
encontrar um significado apropriado para o fim da regra, mas encontrar o significado que
clarifica seu próprio fim.
Na última seção, VIII, A moral e os fundamentos emocionais do positivismo, Fuller
afirma que o positivismo teme uma interpretação das regras à luz de seus objetivos pois o
positivista pensa que isso levará para a fusão das regras jurídicas com as regras morais. Mas o
direito tem uma integridade estrutural (intenção do legislador) que limita que o juiz vá além
no seu papel criativo. Portanto, não há fundamento no medo positivista.

Terceira rodada: O conceito de direito


(Hart, 1961)

Neste livro, Hart elabora sua teoria do direito fundada na união das regras. Crítica outras
teorias positivistas que adotam as ordens coercitivas como elemento central do direito. E
defende a tese da separação entre o direito e a moral – principal premissa do positivismo.
No capítulo 1, Questões pertinentes, Hart apresenta o seu projeto de teoria do direito.
Ele identifica que a dificuldade em responder “O que é direito?” está em três questões que
causam confusão. A primeira, que o direito consiste apenas em ordens apoiadas por ameaças
(teoria do direito como comandos). A segunda, que o direito não é composto por regras (teoria
do ceticismo sobre as regras). E a terceira, que o direito e a moral têm uma relação necessária
(teorias do direito natural). A resposta para “O que é o direito?” passa por uma teoria que
consiga dar uma resposta para essas três questões.
No capítulo 2, Leis, comandos e ordens, Hart reconstrói o modelo de direito baseado
em ordens coercitivas ou ameaças, proposto por Austin, ajustando-o. Assim, antes de refutar
essa teoria, ele concebe a teoria imperativa do direito como o sistema em que “algumas
pessoas ou um grupo de pessoas que proferem ordens de caráter geral, apoiadas por ameaças,
que são geralmente obedecidas, e deve haver também a convicção geral de que essas ameaças
podem ser efetivadas em caso de desobediência. Essa pessoa, ou órgão, deve ser suprema
internamente e independente externamente” (p. 33).
No capítulo 3, A diversidade das leis, Hart faz sua refutação à teoria imperativa. Seu
argumento consiste em demonstrar que as regras não são apenas do tipo que impõe deveres,
mas também que outorgam poderes. As regras desempenham diferentes papeis sociais.
Algumas delas, como as ordens coercitivas, impõe deveres, e se apoiam em sanções para
inibir a conduta proibida (leis penais), mas há outras que outorgam poderes jurídicos
(testamentos, casamentos, contratos) ou regulam os poderes judiciários e legislativos para a
criação de direitos e deveres. Portanto, o direito não pode se sustentar apenas com ordens
coercitivas. Hart rebate ainda dois argumentos que pretendem sustentar a sanção como
elemento central do direito.
Primeiro, a Nulidade como sanção. Esse argumento pretende demonstrar que toda
regra tem sanção, porque há uma identidade fundamental nas regras primárias que impõe
dever e nas regras secundárias que outorgam poderes. Essa identidade reside no fato de que
quando ambas não preenchem uma condição essencial para o exercício do poder, elas têm
como resultado um tipo de sanção. Para as regras primárias é uma sanção propriamente dita.
Para as regras secundárias é uma nulidade. Assim, todas as regras teriam uma sanção porque a
nulidade seria um tipo de sanção.
Contudo, argumenta Hart, esse argumento apenas confundem a ideia de nulidade. Em
uma regra primária, tem-se uma conduta proibida pela regra (ou exigida) e uma sanção que
tem o objetivo de garantir que essa conduta não seja realizada (ou que seja realizada quando
exigida). Mas em uma regra secundária, tem-se um direito e uma condição para o exercício
desse direito, que se não for observada, impede seu exercício. Nesse sentido, argumentar que
a nulidade é um tipo de sanção é como dizer que a falta de um requisito formal para a
celebração de um contrato é um castigo para inibir a realização do contrato. Hart defende
ainda um argumento mais fundamental: regras que impõe dever não perdem sentido sem a
sanção, mas as regras que estipulam obediência a certas condições não fazem sentido sem a
nulidade. Logo, ela é parte integrante da regra.
Segundo, as regras que conferem poderes como fragmentos de lei. Este argumento
defende que o direito é toda regra primária que estipula sanção. Para justificar a existência das
regras secundárias, diz que todas as disposições que não tem sanção são meros fragmentos de
uma regra que tem. Esse argumento reduz as variedades das regras às ordens coercitivas. Mas
fracassa, já que Hart demonstra que o direito pode ser concebido sem sanção. O preço da
uniformidade pretendida por esse argumento é a distorção das diversas funções sociais que os
diferentes tipos de regras desempenham.
No capítulo 4, Soberano e súdito, Hart refuta a segunda parte do modelo simples de
direito como ordens coercitivas: o hábito de obediência a um soberano juridicamente
ilimitado. Duas questões da teoria do hábito de obediência ao soberano têm importância
especial. Primeiro, o hábito de obediência explica a (i) continuidade da autoridade de legislar
depois da sucessão de diferentes legisladores e a (ii) persistência das leis depois que quem as
criou e quem as seguia habitualmente já não mais existem? Segundo, é necessário o status
juridicamente ilimitado de um legislador supremo para o direito?
Para responder essas perguntas ele dá o exemplo do monarca Rex que reina através de
ordens coercitivas. Primeiro, a obediência que ele recebe não constitui necessariamente um
hábito. Isso porque pode não haver internalização e como a obediência pode não ser sinônimo
de concordância, pois é apoiada pela ameaça, não há hábito de obediência. Há, portanto, mera
obediência compartilha pelos súditos que gera convergência de comportamento. Por não
haver hábito de obediência, na transição de um monarca para outro, questão da continuidade
do direito, só poderá haver a probabilidade do sucessor ser obedecido; para se tornar o
soberano, será preciso observar ao decorrer do tempo se suas ordens foram obedecidas. Só
após isso se poderá dizer que suas ordens são direito antes mesmo de serem obedecidas.
A questão da persistência das leis é o inverso da continuidade do direito. Enquanto a
continuidade trata de como pode já ser lei a ordem de um legislador que ainda não recebeu
obediência, a persistência trata de como pode ainda ser lei a ordem de um legislador que após
sua sucessão, não recebe mais obediência. Logo, a ideia de hábito de obediência fracassa na
tentativa de explicar a continuidade do direito quando um soberano sucede outro e não
garante que a obediência habitual seja dada ao seu sucessor.
O erro da teoria da soberania cujo o direito se traduz em hábito de obediência está,
para Hart, na confusão entre hábitos e regras. Os dois conceitos compartilham o fato de serem
um comportamento geral praticado pela maior parte das pessoas, por isso, é necessário
distingui-los. Hábitos são comportamentos convergentes não obrigatórios, enquanto regras
são condutas obrigatórias que levam ao comportamento convergente. O desvio do hábito não
enseja crítica, ao passo que o desvio da regra não só gera crítica como ela é uma boa razão
para não haver desvios. Os hábitos são fatos externos observáveis sem internalização, por
isso, têm aspecto externo; por sua vez, existe nas regras a internalização delas como um
padrão geral a ser seguido, assim, elas têm aspecto interno. São as regras que em um sistema
jurídico complexo regulam antecipadamente a sucessão dos legisladores e evitam os
problemas da continuidade e da persistência. Assim, falta para a teoria do hábito de
obediência a ideia de regras.
A segunda parte da teoria da soberania complementa ao hábito de obediência dos
súditos para com o soberano, o fato de que há ausência de hábito de obediência do soberano a
qualquer outra pessoa. Isto é, o soberano tem poder jurídico ilimitado, embora possa haver
limitações, como a pressão popular ou a sua própria moral.
O problema dessa parte da teoria consiste na afirmação de que onde há direito, deve
haver um soberano com poder jurídico ilimitado. Contudo, ela sofre a objeção de que o
soberano juridicamente ilimitado não é condição necessária nem pressuposto para a existência
do direito. Mais uma vez, o erro da teoria da soberania está em não dar centralidade para a
ideia de regras. As objeções que mostram a incompatibilidade da teoria da soberania com os
sistemas jurídicos complexos demonstram a importância das regras para o direito. Como o
fato de que as limitações jurídicas para a autoridade legislativa não constituem deveres para o
legislador, mas em inabilitações jurídicas contidas nas regras que o qualificam para legislar.
Que um ato legislativo para ser reconhecido como lei precisa ser emanado tão-somente de um
legislador qualificado por uma regra e não de um legislador supremo. Ou que não é necessário
um legislador que não obedece a ninguém, mas que a regra que o qualifica como legislador
não conferira autoridade superior a outras pessoas. Nesse sentido, a teoria das ordens
coercitivas emanadas por um soberano juridicamente ilimitado que recebe obediência habitual
e habitualmente não obedece a ninguém não consegue se sustentar. Em vez disso, é necessário
a noção de regras; elas regras são essenciais para o direito e necessárias para corrigir os erros
dos modelos simples de direito.
No capítulo 5, O direito como união de regras primárias e secundárias, após criticar e
refutar o modelo simples do direito, Hart parte para a construção de sua teoria. Os modelos
simples fracassam porque seus elementos centrais: ordem e ameaça e hábito e obediência não
reproduzem o elemento central do direito, que é a regra. Elas partem de uma premissa
verdadeira: onde há direito a conduta humana se torna obrigatória. Mas confundem duas
noções de obrigação. Será necessário distingui-las antes de prosseguir.
A teoria das ordens coercitivas e do soberano dá as noções de ser obrigado e de ter
obrigação o mesmo significado. Contudo, isso um erro. A primeira, ser obrigado, é uma
afirmação psicológica que resulta de uma crença ou razão para acreditar que algo ruim
sucederá da desobediência. A segunda, ter obrigação, é uma afirmação psicológica sobre a
obrigação independente da crença ou razão para temer a desobediência. Ser obrigado não é
nem suficiente e nem necessário para explicar ter obrigação.
Alguns teóricos ignoram essa diferença e definem a ideia de obrigação na
possibilidade e probabilidade da pessoa sofrer um castigo diante da desobediência de uma
obrigação imposta (teoria preditiva da obrigação). Mas a desobediência de uma regra não é
uma previsão de que haverá sanção, e sim uma razão para tal. Além disso, a obrigação em
termos de previsibilidade de sanção não explica os casos em que ter uma obrigação não
implica em uma sanção.
A compreensão da ideia de obrigação jurídica exige uma situação que inclui regras
sociais. E a ideia de regra implica na noção de ter obrigação, que diferente de ser obrigado,
que pode ser resultado da ameaça, por exemplo, de um assaltante. Logo, a ideia de obrigação
jurídica, ou seja, a obrigação derivada de uma regra, depende da noção de ter obrigação e não
de ser obrigado. O erro da teoria preditiva é ignorar o aspecto interno das regras. Ele explica
que as regras são seguidas porque são padrões de conduta aceitos como corretos e não porque
pode haver uma sanção para o desvio da regra.
Hart parte da premissa de que pequenas sociedades primitivas podem viver de forma
viável sob um sistema pré-jurídico de regras primárias, desde que essas regras contenham
restrições ao uso da violência, furto e fraude, e que a maioria dos indivíduos vivam de acordo
com as regras encaradas do ponto de vista interno. No entanto, para as sociedades mais
complexas, esse modelo baseado apenas em regras primárias traz alguns problemas. Ele
elenca três. A incerteza ou falta de regras para identificar quais regras são válidas. O caráter
estático das regras ou a falta de um meio para a adaptação delas. E a ineficácia pela falta de
uma instância oficial para decidir quando uma regra é violada e quais as consequências para
sua violação.
A solução para cada um desses três defeitos principais dessa forma mais simples de
estrutura social consiste em suplementar as regras primárias de obrigação com regras
secundárias, que pertencem a uma espécie diferente de regras (p. 121). Essas regras
secundárias especificam como as regras primárias podem ser criadas, eliminadas ou
modificadas. Para cada defeito, há um tipo de regra que o solucione. Nesse sentido, o
problema da incerteza é solucionado por regras de reconhecimento, que conferem poderes
para a identificação das regras primárias. O problema do caráter estático é solucionado por
regras de alteração, que conferem poderes para que as regras primárias sejam modificadas. E
o problema da ineficácia é resolvido por regras de julgamento, que conferem poderes para
tomar decisões sobre a violação de regras primárias.
No capítulo 6, Os fundamentos de um sistema jurídico, Hart estabelece que o
fundamento de um sistema jurídico é baseado em uma regra secundária de reconhecimento
que estabelece critérios de validade para as demais regras do sistema. Pode ser descrito como
a situação social complexa onde há regras que tornam os comportamentos obrigatórios (regras
primárias) e regras de alteração e julgamento, identificadas por regras reconhecimento (regras
secundárias) que determinam os critérios de validade. A validade é o reconhecimento de que a
regra satisfaz os critérios da regra de reconhecimento e é, portanto, uma regra do sistema
válida. Não se confunde com a eficácia, qualidade da regra ser mais obedecida do que
infringida.
As regras de reconhecimento são implícitas, isto é, sua existência é demonstrada pela
forma como se identificam regras específicas. Esta é uma característica do sistema complexo
da união entre as regras primárias e secundárias: o ponto de vista interno. Alguém que aceita a
regra de reconhecimento, sem explicitar o fato de que a aceita, aplica a regra para reconhecer
como válida alguma outra regra do sistema. Ela também é uma regra última porque não há
regras que estabeleçam critérios para sua validade, e dotada de algum critério supremo, que
identifica as regras ainda que conflitem com outro critério.
A diferença dos fundamentos do sistema simples, baseado apenas em regras primárias,
e do complexo, baseado na união das regras primárias com as secundárias está no conceito
importante do aspecto externo e do aspecto interno. A existência das regras no modelo
simples depende do ponto de vista externo, ou seja, de uma constatação de um fato
observável. A existência de uma regra no modelo complexo exige o ponto de vista externo
aliado ao ponto de vista interno: uma regra primária de obrigação é identificada por uma regra
secundária de reconhecimento aceita (interno) através da prática complexa (externa) “que
envolve a identificação do direito pelos tribunais, autoridades e indivíduos privados por meio
da referência a determinados critérios” (p. 142).
O abandono da teoria das ordens coercitivas de um soberano juridicamente ilimitado,
obedecido habitualmente e que habitualmente não obedece a ninguém pela noção de regra
secundária de reconhecimento que confere critérios de validade às outras regras faz surgir
alguns questionamentos. Primeiro, sobre a classificação, pois a regra de reconhecimento não
está e nenhuma categoria descrita pelos sistemas jurídicos. Essa falta ou dificuldade de
classificação, no entanto, apenas aponta para a insuficiência das categorias utilizadas para
descrever as características do direito. Segundo, sobre quando se pode afirmar a existência de
um sistema jurídico. São duas a condições mínimas para a existência de um sistema jurídico.
As regras de comportamento válidas de acordo com os critérios últimos de validade devem
ser geralmente obedecidas e as regras de reconhecimento que especificam os critérios de
validade jurídica e as regras de modificação e julgamento devem ser efetivamente aceitas
como padrões públicos comuns de comportamento oficial por parte das autoridades do
sistema (p. 150).
É importante ressaltar que a validade das regras não está submetida a nenhum teste de
eficácia delas, isto é, a capacidade das regras de garantir a obediência. Contudo, Hart chama
de patologia de um sistema jurídico quando não há mais obediência geral às regras
consideradas válidas segundo os critérios de validade ou os próprios critérios são substituídos
por outros. A obediência às regras nesse caso é inútil.
No capítulo 7, O formalismo e o ceticismo em relação às regras, Hart defende sua
teoria do direito fundado na noção de regras, primeiro, de teorias formalistas, que negam a
textura aberta das regras, e depois, das teorias céticas sobre as regras, que negam a existência
das regras.
O direito só é possível em sociedades numerosas e complexas através de regras gerais
e abstratas. Estas regras (leis, precedentes, etc) descrevem padrões gerais direcionados a
classes de pessoas e de condutas. Entretanto, embora as regras geralmente apresentem um
núcleo de significado estabelecido, às vezes, haverá casos, chamados de zona de penumbra,
em que o limite da natureza da linguagem necessitará de interpretação. Nesses casos, há o que
se denomina de textura aberta, isto é, quando para a aplicação da regra é preciso usar de
discricionariedade: uma escolha dentre alternativas possíveis. O formalismo nega a textura
aberta, congelando o sentido da regra de tal maneira que seus termos gerais devam ter o
mesmo sentido em todos os casos (p. 168). Para o formalista, a regra não tem textura aberta,
portanto, não precisa de interpretação ou discricionariedade. Nesse sentido, as regras seriam
perfeitas. Mas ao negar a textura aberta das regras, adverte Hart, atribuindo a elas o mesmo
sentido para os casos que precisam de interpretação, o direito perde a oportunidade de
solucionar adequadamente os casos concretos que não podem ser previstos pelas regras e que
só poderão ser avaliados se existir a textura aberta.
Enquanto o formalista é um idealista, o cético é um formalista frustrado. As teorias
céticas em relação às regras consistem na afirmação de que o direito são as decisões dos
tribunais e as previsões sobre essas decisões e não em regras. Hart comenta e apresenta suas
objeções às versões das teorias céticas. Primeiro, a tese cética radical, que nega a existência
de todas as regras, primárias e secundárias, alegando que o direito consiste apenas em
decisões e previsões dessas decisões. Contudo, a afirmação de que existem decisões tomadas
pelos tribunais não pode ser associada a negação da existência de todas as regras porque os
tribunais existem e funcionam por meio das regras secundárias. Segundo, a tese cética
moderada, que não nega a existência das regras secundárias que instituem os tribunais. A
teoria apresentada dessa forma ainda pretende basear o direito em decisões e previsões sobre
as decisões, concedendo a existência das regras meramente como forma de atribuir aos
tribunais a possibilidade de decidir. Essa teoria limita o direito ao ponto de vista externo.
Contudo, o direito também é composto de ponto de vista interno, isto é, as pessoas
compreendem as regras como padrões jurídicos de conduta e não apenas se comportam como
acham que os tribunais decidirão.
O ceticismo em relação às regras merece atenção apenas como uma teoria sobre a
função das regras na decisão judicial. Assim, a teoria se reduz a tese de que é falso que os
tribunais estão sujeitos as regras para decidirem, pois no que diz respeito aos tribunais, não há
nada que limite a área de textura aberta das regras (p. 179). O cético pensa dessa forma
porque é um formalista frustrado. O formalista acredita que as regras não tem textura aberta
porque são perfeitas, o cético acredita que a existência de textura aberta é incompatível com a
existência das regras. Mas a existência da textura aberta não é um problema para a existência
das regras. Além disso, a concepção cética de regra é errada. Ele pensa que existe algum tipo
de processo psicológico no momento em que o individuo segue a regra, ou seja, um elemento
psicológico individual, mas a regra não depende desse processo de reflexão e sim de uma
aceitação de que a regra consiste em um padrão social.
Outra forma cética de se negar que os tribunais sejam limitados por regras em suas
decisões é dizer que “o direito é aquilo que os tribunais declaram que é” (declarações oficiais)
e das previsões sobre essas decisões (declarações não oficiais) porque apesar das decisões
serem falíeis – passiveis de erro – ainda serão definitivas. Mais uma vez, o cético se confunde,
dessa vez, sobre o que significam as declarações. A não-oficial é o esforço de seguir as regras
e não de se comportar de acordo como os tribunais decidirão. A oficial é o esforço de aplicar a
regra, que é passível de erro, apesar de ser definitivo.
A diferença entre as declarações não é que um está tentando prever o que o outro fará,
mas que a oficial tem autoridade para emitir decisões vinculantes, que apesar de serem
definitivas, são falíveis, enquanto que a não-oficial não tem. Portanto, o direito não é o que os
tribunais dizem ser ou as previsões do que farão, mas o esforço de aplicar (oficial) e seguir
(não-oficial) regras. Embora o direito tenha textura aberta, que permite escolha, há um núcleo
de sentido do qual não se pode afastar: “os tribunais consideram as regras jurídicas não como
previsões, mas como padrões que devem ser seguidos – e como padrões suficientemente
precisos, apesar de sua textura aberta, para limitar, embora não para excluir, a
discricionariedade do tribunal” (p. 190). Nesse sentido, a tese cética de que “o direito é o que
os tribunais dizem que é” não se sustenta porque a falibilidade e a definitividade não se
contradizem.
No capítulo 8, Justiça e Moral, Hart inicia o tema da relação entre o direito e a moral,
distinguindo a justiça de moral e regras jurídicas de regras morais.
A teoria do direito natural ao contrário da teoria positivista de Hart das regras
primárias e secundárias, construída nos capítulos anteriores, afirma que o ponto central do
direito está na relação necessária entre o direito e a moral ou a justiça. O direito natural pode
até concordar com a teoria das regras de Hart, mas atribuem a ela uma importância
secundária. A tese de que existe conexão entre o direito e a moral é oriunda da tradição
tomista do direito natural e se baseia na dupla assertiva: que (i) existem certos princípios da
razão e da moral ou justiça que podem ser descobertos pela razão humana, e que (ii) as leis
humanas são inválidas se confrontam esses princípios da razão e da moral.
A justiça é um segmento específico da moral: a crítica moral formulada em termos de
justiça (justo/injusto) difere de outros tipos de crítica moral genérica (bom/mau). Podemos
afirmar que uma lei é boa por ser justa ou má por ser injusta, mas não podemos dizer que uma
lei é justa por ser boa ou injusta por ser má (p. 205). Esta é uma evidência de que justo ou
injusto é uma forma mais específica de crítica moral do que bom ou mau, certo ou errado. A
aplicação da justiça como avaliação do direito também pode ser formulada em termos de
equitativo e não-equitativo. Primariamente, essa aplicação consiste em questões de
distribuição e reparação; as demais avaliações dos atos jurídicos são aplicações secundárias da
justiça ao direito. A distribuição de encargos e benefícios é baseada no princípio geral da
igualdade entre indivíduos. Essa aplicação é complexa e demanda dois critérios, um
constante: tratar igualmente todos os casos, e um variável: tratar os casos diferentes de
maneira diferente – de acordo com a capacidade ou necessidade das pessoas. É preciso
estabelecer quais casos devem ser considerados iguais e quais são as diferenças pertinentes. A
reparação é a restauração do status quo entre dois indivíduos que merecem proteção mútua
contra certos tipos de condutas prejudiciais e cujo um deles sofreu dano causado pelo outro.
As regras de reparação podem ser justas ou injustas na medida que tratam as pessoas com
igualdade ou não.
Sendo a justiça um segmento específico da moral, os princípios da justiça não esgotam
a ideia de moral, nem todas as críticas morais ao direito são em termos de justiça. É, portanto,
necessário caracterizar de forma geral esses princípios, regras e padrões referentes ao
comportamento dos indivíduos que dizem respeito à moral e o tornam certas condutas
moralmente obrigatórias (p. 217). A moral aceita, compartilhada por determinado grupo, tem
sua base nas regras primárias de obrigação. Variam de sociedade para sociedade e dentro da
mesma sociedade em diferentes momentos. A importância das regras morais “se reflete tanto
na medida do sacrifício do interesse particular que exigem quanto no peso da pressão social
para que sejam respeitadas” (p. 220). A obediência a esta obrigação moral mais fundamental é
essencial para a existência da sociedade. As regras morais e jurídicas têm, então, certas
características suficientemente destacáveis (p. 222). São vinculantes independentemente do
consentimento dos indivíduos a elas submetidos, há pressão social para a obediência, a
obediência ocorre de forma natural e como uma contribuição mínima para a vida social, e são
regras de comportamento recorrentes e não apenas ocasionais. Contudo, embora haja estas
semelhanças, existem características que o direito e a moral não podem compartilhar.
Existem quatro características que servem para diferenciar a moral não apenas das
regras jurídicas, mas também dos outros tipos de regras sociais. Primeiro, a importância:
embora as regras morais tenham grande importância em assegurar a obediência de interesses
vitais compartilhados por todos, nem sempre as regras morais poderão ser defendidas como
racionais. As regras morais podem muitas vezes refletir irracionalidades humanas, como a
condenação da orientação sexual. Segundo, a imunidade à modificação deliberada: as regras
morais, como as demais regras sociais, não podem ser criadas ou revogadas através de ação
deliberada, como acontece com as regras jurídicas. Uma regra jurídica apesar de não ser mais
observada continua a ser uma regra, até que seja revogada, mas uma regra moral só pode ser
uma regra na medida em que é observada. Terceiro, o caráter voluntário das infrações
morais: a moral não diz respeito ao interno enquanto o direito diz ao externo. Dizer isto é
confundir desculpa com justificativa. Mesmo para a moral, há diferença entre cometer um
homicídio apesar de tomar todas as precauções (desculpa) e um homicídio em legitima defesa
(justificativa). Apesar do aspecto interno da moral, ela assume um papel no controle do
comportamento, ou seja, no externo. Por fim, a forma de pressão social: a pressão exercida
para apoiar as regras morais é diferente da pressão exercida para apoiar as regras jurídicas,
pois consiste em um apelo ao respeito pelas regras como coisas importantes em si mesmas;
um apelo à consciência através da culpa e do remorso de se violar a moral social.
No capítulo 9, O direito e a moral, Hart defende seu argumento contra a teoria do
direito natural. Para ele, a doutrina jusnaturalista confunde aspectos da relação entre o direito
e a moral, que são aspectos de uma relação contingente, como uma relação necessária. Há
diversas relações entre o direito e a moral. Hart discute, primeiro, sobre a controvérsia entre
Direito Natural e Positivismo Jurídico, e depois, sobre a suposta vinculação da validade
jurídica aos valores morais.
O direito e a moral se relacionam e frequentemente se influenciam mutuamente.
Contudo, essa afirmação pode levar ao erro “de que um sistema jurídico deve necessariamente
mostrar alguma conformidade específica com a moral ou a justiça, ou basear-se
obrigatoriamente numa convicção amplamente difundida de que existe a obrigação moral de
obedecer à lei” (p. 239). A doutrina do direito natural comete esse erro, que considera a
relação entre o direito e a moral como necessária, isto é, que os critérios de validade jurídica
se referem à moral ou à justiça. O positivismo jurídico, por sua vez, considera que “não
necessariamente é verdade que as leis reproduzem certas exigências da moral ou as
satisfazem” (p 240).
O direito natural oferece dois argumentos que pretendem sustentar a relação entre
direito e moral como necessária e afastar a tese positivista. Primeiro é a ideia de que existem
“certos princípios do comportamento humano, que aguardam para serem descobertos pela
razão, aos quais a lei humana deve se adaptar para ser válida” (p. 240). Essa afirmação de que
existem certos princípios verdadeiros para a razão humana descobrir e que se deve adequar a
conduta a estes princípios que são critérios para a validade do direito é fruto de uma confusão
da doutrina jusnaturalista. Essa tradição tem uma visão teleológica das coisas, isto é, o direito
contém em si mesmo níveis de excelência que progridem para seu fim. Essa visão teleológica
do direito incapacita o jusnaturalismo de diferenciar leis naturais de leis humanas. As leis
naturais são descritivas, pois podem ser descobertas pela observação ou raciocínio. As leis
humanas, por sua vez, são prescritivas, já que são exigências de comportamento humano. O
erro desse argumento é confundir “fins naturais” com “fins humanos. Mas há uma verdade
nesta teleologia do direito natural, “trata-se da suposição tácita de que o fim apropriado para a
atividade humana é a sobrevivência” (p. 247). Para uma sociedade ser viável precisa de
determinadas regras de comportamento e, essas regras, são comuns para o direito e para a
moral. Esta é uma versão diluída da teoria que Hart chamará de conteúdo mínimo do Direito
Natural.
Ele examina cinco truísmos da natureza humana que repousam no conteúdo mínimo
do Direito Natural e que fornecem uma razão para basear tanto o direito quanto a moral no
objetivo da sobrevivência humana. Primeiro, vulnerabilidade humana: as exigências comuns
do direito e da moral consistem principalmente em abstenções e proibições, especialmente no
que diz respeito ao uso da violência, pois o fato de que seres humanos estão propensos e
vulneráveis a ataques entre si torna necessário um sistema de abstenções mútuas. Segundo,
igualdade aproximada: apesar das diferenças físicas e intelectuais entre os seres humanos,
suas necessidades inerentes à natureza humana os aproximam; isso torna latente a necessidade
de um sistema de abstenções mútuas que é base para obrigações jurídicas e deveres morais.
Terceiro, altruísmo limitado: um sistema de abstenções mútuas para sua sobrevivência é
necessário porque seres humanos não são anjos, e é possível pois não são demônios. Quarto,
recursos limitados: o fato de que os recursos necessários para a sobrevivência humana são
limitados torna necessário o sistema de abstenções mútuas com regras dinâmicas para que os
seres humanos possam criar obrigações entre si que possibilita a cooperação. Quinto,
compreensão e força de vontade limitados: existe a necessidade de sanção, não para garantir a
obediência, mas para proteger os que obedecem voluntariamente.
O segundo argumento do direito natural para rejeitar o positivismo consiste em
oferecer uma “descrição diferente das formas como a validade jurídica está vinculada aos
valores morais” (p. 240). É verdade que uma sociedade precisa oferecer a alguns de seus
membros um sistema de abstenções mútuas, mas infelizmente, não precisa oferece-lo a todos
os seus membros. Negar às pessoas que estão dispostas a cooperar voluntariamente essas
proteções fundamentais, fere princípios da moral e da justiça. Este risco de o poder
centralmente organizado oprimir determinadas classes de pessoas ocorreu no passado e
suscita a análise de “alegações de que o direito deve conformar-se à moral” (p. 261).
Hart analisa cinco aspectos que podem apresentar razões para que o direito não precise
necessariamente seguir a moral. Poder e autoridade: o poder coercitivo do direito pressupõe a
aceitação de sua autoridade. “Isso, entretanto, não demonstra que, para uma regra seja
reconhecida como juridicamente vinculante, ela tenha que ser aceita como moralmente
obrigatória” (p. 263). A influência da moral sobre o direito: o direito, de fato, reflete a moral
social aceita e ideias morais elevados. Contudo, insistir que essa relação contingente entre
direito e moral é uma relação necessária é uma insistência enganosa. Interpretação:
frequentemente é necessário ao direito a interpretação porque ele tem uma área de textura
aberta. Essa escolha é também frequentemente guiada por princípios morais. Entretanto, desse
fato não decorre que a relação entre o direito e a moral seja necessária, porque esses
“princípios têm sido invocados tanto para justificar a observância quanto para defender a
infração das regras” (p. 265). Princípios de legalidade e justiça: a noção de que um sistema
jurídico pode ser avaliado como bom ou ruim de acordo com sua conformidade com a moral
ou a justiça (relação necessária) está errada: a simples aplicação da justiça ao direito através
de regras gerais imparciais, aplicadas às pessoas sem distinções irrelevantes e suficiente para
a legalidade do direito (relação contingente) – aqui está a síntese da principal divergência
entre Hart e Fuller. A validade jurídica e a resistência à lei: “da afirmação de que uma regra é
demasiado injusta para ser obedecida, não se segue necessariamente que não seja uma regra
jurídica válida” (p. 270). Contudo, o direito natural propõe o contrário disso: que uma regra
injusta é necessariamente inválida. Isso implica em uma escolha entre dois conceitos de
direito: um mais restrito, que exclui do direito as regras moralmente ofensivas, e um mais
amplo, cuja a validade das regras é conforme os critérios formais, ainda que estas regras
sejam moralmente ofensivas. Para Hart, o conceito amplo de direito é mais adequado pois ele
permite diferenciar a invalidade da imoralidade e possibilita enfrentar os problemas das regras
imorais dotadas de validade de forma séria.
No capítulo 10, O direito internacional, Hart analisa se o fato de o direito
internacional não ser formado por regras secundárias é um problema para seu argumento da
união das regras e afasta do direito internacional as ordens coercitivas e a moral.
A união de regras primárias e secundárias como ponto central do direito pode ser visto
como meio termo entre a ideia do direito como simples ordem apoiada por ameaça e a noção
complexa de moral. A ideia da união das regras permite visualizar as relações entre direito,
coerção e moral; é uma elucidação do conceito de direito, não uma definição. Desta definição
surge uma questão importante: a falta de regras secundárias para o direito internacional que,
diferente do direito interno que regula o comportamento dos indivíduos por meio de regras
primárias e secundarias, regula o comportamento dos Estados por meio apenas de regras
primárias, decorre algum problema para a tese da união das regras?
A primeira questão se resume a pergunta: as regras do direito internacional podem
gerar obrigação? O fato de que o direito internacional dispõe apenas de regras primárias que
impõem obrigação, mas não de regras secundárias que dispõem sobre o uso oficial da força,
como as sanções correspondentes a violação das regras primárias, é um problema para a
existência do direito internacional? O argumento de que o direito internacional não é
vinculante, ou não é direito, porque lhe falta sanções centralmente organizadas, comete o
mesmo erro da teoria das ordens apoiadas por ameaças, pois define a obrigação como a
probabilidade de as ameaças de sanção ocorrerem. O pano de fundo do direito interno é muito
diferente do direito internacional. No primeiro, as sanções existem para garantir que as
pessoas que obedecem voluntariamente às regras não serão prejudicadas por aqueles que não
obedeceriam sem uma regra que impõe sanção. No segundo, a sanção não tem a mesma
função. A desigualdade de forças entre Estados é tão maior que entre pessoas que isso é razão
para a sanção ser desimportante no direito internacional. Mas o fato de que o direito
internacional não garante suas obrigações por meio de sanções não quer dizer que ele não seja
direito.
A segunda questão diz respeito a como um Estado pode ter obrigações se ele é
soberano. O termo Estado não remete a algo acima da lei, mas o simples fato de que uma
população habita determinado território sob uma forma de governo organizada por um
sistema jurídico formado por regras primárias e secundárias e que o governo tem um grau de
independência. A alegação de que a soberania é necessariamente ilimitada não se sustenta se
existir alguma forma de autoridade entre os Estados que limite sua soberania. Se existirem
regras que a limitem, a soberania terá o alcance que essas regras permitirem. A ignorância
desse fato levou as teorias da autolimitação a tentar “conciliar a soberania (absoluta) dos
Estados com a existência de regras vinculantes do direito internacional, tratando todas as
obrigações internacionais como [...] autoimpostas pelos Estados” (p. 289). Hart apresenta três
objeções à essa alegação. Primeiro, não há nada que fundamente a teoria de que os Estados só
são limitados por obrigações impostas por eles mesmo. Segundo, existe uma incoerência no
argumento que pretende demonstrar que por causa de sua soberania, os Estados só podem ser
submetidos a, ou vinculados por, regras que eles próprios impuserem, pois deve haver
previamente regras que determinam que os Estados são obrigados por aquilo que se
comprometem a cumprir. Terceiro, do fato de não existe (ainda) regra vinculante no direito
internacional não decorre a alegação de que os Estados só podem ser vinculados por
obrigações autoimpostas.
O direito internacional se assemelha do regime simples de regras primária. Isso levou
os juristas a entender suas regras como regras morais, mas Hart oferece razões para recusar
isso. Embora as regras do direito internacional possam ser acompanhadas de um apelo moral,
a avaliação do comportamento dos Estados é diferente para a exigência de direitos e deveres
jurídicos de pretensões morais de certo e errado (p. 294). As regras do direito internacional,
como as do interno, são indiferentes a considerações morais, ou seja, as regras jurídicas
podem ter diferentes formas para alcançar seus fins, mas as regras morais não podem alcançar
seus fins por meio de qualquer tipo de forma. A ausência de poder legislativo também não é
indicio de que as regras sejam morais, pois as regras do direito internacional são criadas por
vontade, diferente das regras morais. Apesar de poder existir um senso de obrigação moral
para com as regras do direito internacional, isso não significa, como não significa para o
direito interno, que seja condição necessária para existência do direito internacional.
A analogia entre direito internacional e interno é válida para sua função e conteúdo,
mas não para sua forma. O direito internacional, diferente do interno, é formado apenas por
regras primárias de obrigação e não dispõe de regras secundárias, como as que criam poderes
legislativos e judiciários. A última questão da analogia de forma é sobre a regra de
reconhecimento. Há uma norma fundamental da qual todas as outras fundamentam sua
validade? Enquanto o direito interno funciona como um sistema de regras que tem sua
validade em uma regra de reconhecimento, o direito internacional funciona como um conjunto
de regras sem uma regra de reconhecimento. Sua validade depende apenas que as regras
sejam “aceitas como padrão de comportamento e apoiadas por formas adequadas de pressão
social características das regras obrigatórias” (. P. 302). Nesse sentido, é um erro supor que
uma regra de reconhecimento é condição necessária para a existência de regras de obrigação
para o direito internacional.

Quarta rodada: A moralidade do direito


(Fuller, 1964)
Neste livro, Fuller defende a relação necessária entre o direito e a moral, através do seu
argumento da moralidade interna do direito, e crítica o positivismo de Hart.
No capítulo 1, As duas morais, Fuller dedica-se a conceituar a moralidade para que
seja possível clarear a questão da relação entre o direito e a moral. Para ele, há tanta incerteza
nessa relação porque o segundo ponto da comparação não tem uma definição clara, pois o
significado de moral é suposto que todos compreendem. Mas a moralidade precisa de uma
análise mais profunda, que possibilitará compreender sua relação com o direito. A moralidade
é dividida em moral de dever e moral de aspiração. A moral de dever são os requisitos básicos
da vida social. Ela diz o que não se deve fazer, e por vezes, o que se deve fazer. A moral de
dever classifica as ações como certo e errado. A moral de aspiração é a realização mais
completa das faculdades humanas. Ela é imprecisa, portanto, apenas indica o que deve ser
feito. A moral de aspiração classifica as ações como apropriadas e inapropriada. Podemos
imaginar as duas morais em dois extremos, o dever na base a aspiração no topo. Entre elas, há
um lugar que indica o fim do dever e o começo da aspiração. Mas traçar essa linha é uma das
tarefas mais difíceis da filosofia. Se o dever é colocado muito acima de sua tarefa, a obrigação
sufocará os esforços mais elevados para a excelência humana. Se colocado muito abaixo,
relativiza-se os requisitos básicos da vida social. Portanto, indicar onde acaba o dever e
começa a aspiração exige manter um certo equilíbrio.
Fuller faz uma comparação das duas morais com a economia. A moral de dever é
equivalente a economia de intercâmbio, pois há um campo compartilhado pelos conceitos de
obrigação (moral de dever) e troca (economia de intercâmbio). Essa interseção ou campo que
eles compartilham é a reciprocidade. A reciprocidade é uma espécie de colaboração anônima
entre as pessoas. A moral de aspiração é equivalente a economia de utilidade marginal. Pois a
moral de aspiração diz respeito ao esforço para a utilizar a vida da melhor forma possível,
enquanto a economia de utilidade marginal tem a ver com os esforços para utilizar
devidamente os recursos econômicos limitados.
No capítulo 2, A moral que faz o direito possível, Fuller apresenta a moralidade interna
do direito como a moral que faz a criação do direito possível, por meio de seus desideratos.
Para exemplificar os desideratos da moralidade interna e como ela faz o direito possível, ele
usa o exemplo do rei Rex que fracassa na tentativa de criar um sistema jurídico. O rei fracassa
de oito formas diferentes que correspondem ao conjunto de desideratos ou requisitos de
legalidade da moralidade interna e que são os remédios para o fracasso na criação do direito.
Os desideratos são: (i) generalidade: as leis devem ser gerais e se dirigir sempre a classes de
condutas ou de pessoas e nunca a indivíduos ou casos concretos; (ii) promulgação: é
necessário possibilitar o conhecimento do conteúdo das leis; (iii) leis retroativas: o direito
deve ser, em geral, prospectivo, ou seja, deve regular os casos futuros e não o que ocorreu no
passado e a legislação retroativa pode ser usada apenas em casos específicos para corrigir
erros passados; (iv) claridade: as leis devem ser compreensíveis; (v) não contradição: as leis
devem ser harmônicas em relação a si mesmas e a umas às outras, ou seja, a existência de
uma não pode impossibilitar a existência de outra; (vi) leis que requerem o possível: as leis
devem estar dentro da capacidade de obediência das pessoas; (vii) estabilidade do direito no
tempo: as leis devem almejar perdurar no tempo e mudar somente quando houver a
necessidade; (viii) congruência entre a ação oficial e a lei declarada: a lei positivada deve
coincidir com sua aplicação realizada pelos agentes oficiais.
É utópico conceber a criação do direito capaz de realizar perfeitamente todos os
requisitos de legalidade da moralidade interna do direito e frequentemente eles podem
conflitar-se entre si e isso requer um “cálculo econômico” ou um esforço de equilíbrio. Mas
um fracasso total de um desiderato não produz simplesmente um mal sistema de direito, senão
algo que não pode ser chamado de direito. Nesse sentido, não pode haver obrigação de
obediência ao direito visto que não pode nem ser considerado um direito. Há situações em que
o fracasso não é total, mas existe um ataque geral contra a legalidade. Isso ocorreu, por
exemplo, no direito da Alemanha durante o nazismo. “Em situações como esta não pode
haver um princípio fácil por meio do qual se prove a obrigação do cidadão de ser fiel à lei, na
mesma forma que não pode existir um princípio semelhante para provar seu direito a
comprometer-se com uma revolução geral. Contudo, uma coisa é evidente. Um mero respeito
pela autoridade constituída não deve confundir-se com a fidelidade ao direito” (p. 51).
No capítulo 3, O conceito de direito, Fuller estabelece seu conceito de direito,
compara-o com as escolas do direito natural e do positivismo jurídico e crítica o conceito de
direito de Hart. Assim, ele conceitua o direito como o esforço de sujeitar a conduta humana ao
governo das regras, cuja as regras, são possíveis através dos requisitos da moralidade interna.
Este conceito de direito, fundado na moralidade interna, é uma versão do direito natural que
se preocupa com a criação e administração do direito, mas não com o conteúdo em si. Nesse
sentido, é um direito natural processual, pois se preocupa com a forma e não um direito
natural de tradição Tomista que se preocupa com o conteúdo.
Ele crítica as teorias do positivismo jurídico, como as teorias que dizem que o direito é
o que os tribunais decidiram, ou que o direito consiste no uso da força ou na coerção. Ao
contrário das teorias do positivismo que negam a relação entre o direito e a moral, Fuller
aceita essa relação e “trata o direito como uma atividade e considera um sistema jurídico
como resultado de um esforço continuo encaminhado a um fim” (p. 120). Ele trata de algumas
objeções contra seu conceito de direito. Primeiro, a existência de graus de êxito faz que o
direito possa existir “pela metade”, mas Fuller acredita que pelo o direito ser fruto de um
empreendimento humano, pode existir em graus de êxito. Segundo, permite a existência de
mais de um sistema jurídico; contudo, os sistemas jurídicos múltiplos existem e são comuns
na história. Terceiro, se o direito é o empenho de sujeitar a conduta humana ao governo das
regras, deve haver milhares de sistemas jurídicos, já que há milhares de sistemas de regras
privadas; mas as regras de direito privado, são uma categoria submetida ao direito, assim,
existem dentro de um único sistema jurídico. Por fim, a objeção de que esse conceito de
direito não se distingue suficientemente da moral; e isso porque, como argumenta Fuller, eles
são inseparáveis, além disso, esse conceito de direito não obscurece a tentativa de definir o
direito estabelecido das regras morais.
Depois, ele volta-se à tese de Hart. Fuller crítica o fundamento do conceito de direito
de Hart que repousa na distinção entre regras primárias e secundárias porque exclui qualquer
consideração sobre a moralidade interna. A distinção de Hart das regras primárias que impõe
dever e das regras secundárias que outorgam poder pode ser útil, mas há casos em que não
será possível definir quando uma lei deixa de impor dever e passa a conferir poder ou vice-
versa. Nesse sentido, Fuller está inclinado a enxergar “com certo ceticismo” a utilidade da
distinção (p. 150). Para Hart, existe uma regra secundária de reconhecimento que determina o
que se deve considerar como direito. Nesse caso, essa regra não pode contemplar uma
disposição que impõe a autoridade um dever de não fazer abuso dela, pois se ela impõe tal
dever, a distinção das regras estará em contradição.
O erro que Hart comete em relação a regra de reconhecimento é de caráter
metodológico, pois através dela tenta responder questões sociológicas. Está claro que Fuller
crê que o fundamento do direito repousa no senso de estar “certo” (p. 154) e de que a regra de
reconhecimento se dirige para um procedimento e não à instituição humana que a regra
confere o poder de legislar (p. 161). O desacordo entre o conceito de direito adotado por
Fuller e Hart e das outras abordagens positivistas analisadas pode se resumir da seguinte
forma. De um lado, o direito como empreendimento humano com um fim, onde se busca
alcançar o que o direito deve ser. Este propósito é de sujeitar a conduta humana ao governo
das regras (p. 162) que são possíveis por meio da moralidade interna. De outro, o direito
tratado como um fato manifesto de poder social ou autoridade, onde o direito é tratado pelo
que é (p. 161). Contudo, “a capacidade de um parlamento de sancionar o direito é [...] um
triunfo do esforço intencional” e a “estrutura formal da autoridade depende [...] do esforço
humano que não é requerido por alguma lei” (p. 164).
No capítulo 4, último capítulo até a revisão que Fuller acrescenta o capítulo quinto
para responder críticas, ele pretende demonstrar que a relação recíproca entre moralidade
interna (requisitos de legalidade) e moralidade externa (objetivos substantivos) é essencial
para a legalidade como eficácia do direito – refutando o argumento de Hart que não atribui
importância para a moralidade interna.
Hart considera a existência da moralidade interna, mas não admite sua importância:
“Com efeito, um crítico do positivismo viu, nesses aspectos do controle através das regras,
algo que configuraria um vínculo necessário entre o direito e a moral, e sugeriu que eles
fossem chamados de a “moral interna do direito” [...] se é isso que significa a ligação
necessária entre o direito e a moral, podemos aceitá-la. Infelizmente, esse vínculo é
compatível com grandes iniquidades” (O Conceito de Direito, p. 217)
Isso equivale a dizer que um rei que persegue fins mais perversos tem respeito genuíno
pelos requisitos de legalidade. Fuller apresenta razões para a importância da relação recíproca
entre moral interna e externa para a legalidade do direito. A moral interna é neutra aos
objetivos substantivos do direito. Mas isso não equivale a dizer que ela suporta qualquer fim
substancial, pois a moral interna não pode confrontar a legalidade. Logo, é “essencial para a
prática do direito alguma mínima adesão à moral jurídica” (p. 173). Ela não é imposta pela
força do direito, mas uma condição desse poder. A concepção de Hart é completamente em
função da sua origem formal e não como um empenho complexo capaz de vários graus de
êxito. Hart admite uma relação entre legalidade e justiça: ambos atuam por meio de leis
conhecidas. Contudo, essa afinidade é maior do que a concessão de Hart. A moralidade
interna requer que haja leis que sejam reconhecidas e observadas na prática. Isso é condição
para qualquer avaliação da justiça do direito. A moralidade interna do direito é, portanto,
condição necessária, ainda que não seja suficiente para cumprir a justiça (p. 185). O requisito
de que as regras sejam inteligíveis parece neutro aos fins substantivos do direito. Mas sem
qualquer princípio da moralidade interna isso seria “compatível com grandes iniquidades”. A
moralidade interna é neutra (e útil) aos fins mais amplos da vida humana, mas não na opinião
do próprio homem: “Todo desvio dos princípios da moralidade interna do direito é uma
afronta à dignidade do homem” (p. 180). Os limites da ação legal eficaz consistem na
confusão entre o direito no sentido de regras de conduta destinadas ao cidadão e o direito
enquanto ação governamental.

Quinta rodada: Lon L. Fuller: A moralidade do direito


(Hart, 1965)
Este artigo é uma revisão do livro de Fuller, A moralidade do direito, realizada por Hart que
dá continuidade ao debate entre eles. Hart critica o argumento da moralidade interna de Fuller
e defende sua tese positivista baseada nas regras.
Hart sustenta que não há um argumento suficiente para a insistência de Fuller na
moralidade interna do direito e a consequente relação entre o direito e a moral, mas admite
que seus “pontos de partida e interesses dentro da teoria do direito [são] tão diferentes que
[estão] condenados a nunca entender a obra um do outro” (p. 386). Sua definição de direito
como a “empreitada (intencional) de submeter a conduta humana ao governo das regras”
carece da definição e delimitação do significado de regra; suas críticas às tentativas
positivistas de distinguir o direito de outras formas de controle social não atribuem o valor
complementar delas a sua tese intencional.
A concepção de Fuller da moralidade como algo que compreende dimensões
diferentes de avaliação da conduta humana, dividida em moral de dever (regras básicas) e
moral de aspiração (vida boa) é uma contribuição não só para a teoria do direito, mas para a
filosofia moral. Mas sua descrição de moral de dever como regras básicas objetivas,
relacionadas à legislação, não esgota a função do dever, que não se limita à lei, nem se adequa
à dificuldade em traçar a divisão entre o dever e a aspiração (p. 390-91).
Para que o direito como atividade intencional de submeter a conduta humana ao
governo das regras se concretize, Fuller elege oito princípios de legalidade (moralidade
interna). Eles “tornam o direito possível”, mas sem fazer referência aos objetivos substantivos
(moralidade externa). Hart classifica como princípios de boa construção do direito. Esses
princípios de legalidade ou de boa construção são erroneamente classificados por Fuller como
forma de moralidade. Fuller Comete esse erro porque não é capaz de distinguir atividade
intencional de moralidade (p. 394). O primeiro é uma noção de eficiência para um proposito,
o segundo é sobre aqueles julgamentos finais sobre as atividades e propósitos. Esta crítica à
designação de Fuller de seus oito princípios como forma de moralidade não é uma crítica
meramente semântica, mas porque leva-o a aplicar errado a distinção entre moral de dever e
moral de aspiração aos princípios e a tomar a decisão equivocada de “condená-los” a serem
uma moral de aspiração. Pois o legislador que viola algum dos oito princípios, viola apenas a
moralidade de aspiração? Parece violar, especialmente, um dever moral. Fuller comete esse
equivoco por causa da sua convicção de que há uma conexão entre moralidade externa, que
trata da justiça, e moralidade interna, que trata dos princípios de legalidade do direito. Para
ele, os oito princípios não são neutros no que diz respeito a fins substantivos bons e maus.
Mas seus argumentos não são capazes de sustentar, por exemplo, a incompatibilidade entre
uma lei ser clara e má. Logo, “leis claras são, portanto, eticamente neutras, embora não sejam
igualmente compatíveis com objetivos vagos e bem definidos” (p. 396).
Fuller faz das teses que ao contrário da sua, não colocam o propósito dos que fazem e
administram o direito como elemento central de suas teorias, espantalhos argumentativos. Ele
reduz as teorias de Kelsen e Austin à prescrição de sanção como traço distintivo do direito,
quando na verdade, a sanção é para eles, um traço distintivo das regras jurídicas em relação as
outras regras sociais. Ele atribui aos positivistas a ideia errada de que a obrigação moral de
obedecer a lei não é afetada quando o governo abandona os princípios de legalidade, e elege
os problemas jurídicos da Alemanha nazista como exemplo. Contudo, pode-se atribuir aos
positivistas apenas que as leis são juridicamente válidas, ainda que perversas ou contrárias aos
princípios de legalidade. Ele acusa todos os que tratam o direito como “fato manifesto de
poder social” e não como uma “empreitada intencional” de falsificar a realidade, mas aquelas
são formas diferentes de entender e explicar o direito. A diferença entre as visões é que são
valorizadas apenas enquanto contribuem para os objetivos substantivos do direito.
Por fim, no capítulo O conceito de direito, Fuller acusa Hart de esquecer os
propósitos, mas o objetivo de Hart não exclui a investigação dos propósitos e sim os
complementa. Enquanto Fuller julga a moralidade importante, Hart julga as regras como mais
importantes para o pensamento e estrutura jurídica, conceito que Fuller “toma por dado”. A
ideia de Hart daqazs regras primárias e secundárias consegue clarear vários pontos obscuros
deixados na tese de Fuller (p. 403). A crítica mais importante Fuller à Hart diz respeito a ideia
dele de regra de reconhecimento. Para Fuller, a regra de reconhecimento é uma resposta
jurídica simplista para um fato sociológico complexo, isto é, uma regra de reconhecimento
que determina os critérios últimos de validade para todas as outras regras não existe sem
distorcer a realidade. A avaliação final do sistema jurídico deriva, segundo Fuller, do
“sentimento de estar certo”. Contudo, uma análise moral apenas traz indeterminações aos
critérios de validade.

Sexta rodada: A moralidade do direito – edição revisada [cap. 5]


(Fuller, 1969)
O capítulo 5 do livro de Fuller, Uma resposta à crítica, foi acrescentado para responder as
críticas de Hart e dos Novos Juristas Analíticos ao argumento da moralidade interna.
A crítica de Hart à Fuller consiste em dizer que este confere muita importância ao
propósito do direito. Mas é a ilusão positivista que cega Hart a enxergar “arranjos intencionais
[como é o direito] como se eles não servissem a nenhum propósito” (p. 190). Ele identifica
que os pontos de partidas dos Novos Juristas Analíticos (Hart, Dworkin e Summers), ou seja,
a intersecção de suas objeções contra Fuller, ainda é que “o direito como é pode ser
claramente diferenciado do direito como deveria ser” (p. 191). Ao lidar com a interação
humana, o positivismo se torna difícil de sustentar. Fuller elenca alguns aspetos da teoria
positivista que fazem com que não reconheçam o funcionamento de um sistema jurídico em
uma dimensão social (p. 193-4). Primeiro, “o positivista analítico vê o direito como projeção
unilateral de autoridade, emanando de uma fonte autorizada e se impondo ao cidadão. Não vê
como elemento essencial na constituição de um sistema jurídico qualquer cooperação tácita
entre legislador e cidadão” (p. 192). Em segundo lugar, a filosofia positivista se preocupa
menos com a pergunta sobre o que é o direito e qual sua função e mais com questões de
legitimidade, como quem pode fazer leis. Isso nega o papel moral do legislador. Terceiro,
“reside na crença de que o pensamento claro é impossível a menos que efetivemos uma
separação nítida entre o esforço intencional que entra na elaboração da lei e a lei que de fato
emerge desse esforço (p. 193).
Os críticos de Fuller aceitam sua assertiva de que um afastamento suficientemente
grosseiro dos princípios de legalidade atinge a existência do direito (p. 197). Existe,
entretanto, uma objeção importante de Dworkin: “a existência da lei não pode ser uma
questão de graus” (p. 198). Fuller se defende dizendo que graus são uma questão de quanto o
direito respeita os princípios de legalidade. “E isso não se aplica apenas à legalidade [...], mas
à existência de um sistema jurídico como um todo” (p. 199). Mas o argumento da moralidade
interna que torna o direito possível não é aceito por nenhum dos críticos. Eles consideram que
a natureza dos princípios de legalidade não é moral, mas relacionado à eficácia. A eficácia do
direito, defendida pelos positivistas, pode ser alcançada através de meios que ferem os
princípios de legalidade, mas ao relacionar a legalidade com a moralidade há “um
comprometimento com a integridade do direito” (p. 203). A rejeição da moralidade interna
pelos críticos repousa em premissas que eles não expressam em seus escritos. Como a
indiferença moral sobre a existência ou não do direito. Isso remete à falta de dimensão social
do positivismo. E sobre o direito ser uma projeção unilateral de autoridade e não um produto
de interação objetiva entre cidadão e governo. Essa visão nega o compromisso implícito na
criação e administração do direito. “Se o respeito pelos princípios da legalidade é essencial
para produzir tal sistema, então certamente não parece absurdo sugerir que esses princípios
constituem uma moralidade especial de função ligada ao cargo de legislador e administrador
da lei” (p. 206). Quando entendemos que as leis são guias para a conduta humana, podemos
entender que qualquer violação aos requisitos da legalidade leva ao abalo da confiança entre
os homens e de seu respeito pelo direito.

Você também pode gostar