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Vagner Barreto - Festas Rave

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

Festas rave:
performances entre o campo e a cidade

Vagner Barreto Rodrigues

Pelotas – Rio Grande do Sul – Brasil


2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ARQUEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
LINHA DE FORMAÇÃO: ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Dissertação de Mestrado

Festas rave:
performances entre o campo e a cidade

Vagner Barreto Rodrigues

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia, Linha de Formação:
Antropologia Social e Cultural, da Universidade
Federal de Pelotas, para obtenção do título de Mestre
em Antropologia.

Orientadora: Doutora Claudia Turra-Magni


Coorientadora: Doutora Marlene Branca Sólio

Pelotas – Rio Grande do Sul – Brasil


2018
Ficha catalográfica
Dedico este trabalho aos interlocutores, por compartilharem a noite escura.
Banca Examinadora:

__________________________________________________
Profa. Dra. Cláudia Turra Magni (orientadora)
Instituto de Ciências Humanas | Universidade Federal de Pelotas (UFPel)

__________________________________________________
Profa. Dra. Marlene Branca Sólio (coorientadora)
Área do Conhecimento de Ciências Sociais | Universidade de Caxias do Sul (UCS)

__________________________________________________
Profa. Dra. Flávia Maria Silva Rieth
Instituto de Ciências Humanas | Universidade Federal de Pelotas (UFPel)

__________________________________________________
Prof. Dr. John Cowart Dawsey
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas | Universidade de São Paulo (USP)

__________________________________________________
Prof. Dr. Mario de Souza Maia
Centro de Artes | Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
Agradecimentos:

Departamento de Antropologia e Arqueologia (DAA), da Universidade Federal de


Pelotas (UFPel), por meio de seus professores e professoras, técnicos e técnicas,
funcionários e funcionárias, pela formação pública, gratuita e de qualidade que oferece,
bem como ao Instituto de Ciências Humanas (ICH-UFPel), por tantos bons momentos.

Claudia e Branca pela orientação dedicada.

Flávia, John e Mário pelas considerações e pelo auxílio na qualificação do texto.

Flávio, por, novamente, iluminar a pesquisa com suas imagens, bem como aos demais
artistas que compõem esta dissertação.

Tem Gente Teatrando, em Caxias do Sul, pelos ensinamentos sobre Teatro.

Minha família e amigos, pela paciência.

Minha mãe, Vera, pelo apoio incondicional à minha formação acadêmica.

Acima de tudo, aos interlocutores e interlocutoras, sem os quais este trabalho não teria
sentido.

Esta pesquisa foi financiada pela CAPES.


RESUMO

RODRIGUES, Vagner Barreto. Festas rave: performances entre o campo e cidade.


Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas,
2018.

Esta dissertação se propõe refletir sobre festas rave e festivais de música eletrônica no
Rio Grande do Sul, especialmente acompanhando os fluxos gerados desde as cidades até
o campo. Apoiada na Antropologia da Performance e na Antropologia da Experiência, a
metodologia pretende radiografar o sonho coletivo da rave, a partir de experimentações
baseadas na montagem de fragmentos compartilhados nesses eventos festivos que
rasgam ritmos temporais e espaciais do ambiente rural. Ensaios etnográficos são o fio
condutor do trabalho, justamente porque em seu inacabamento eles aproximam e
repelem imagens, articulando e refratando sentidos, que almejam, por meio de
performances culturais, o reconhecimento de ruídos e planos em conflito nesses
momentos extracotidianos e antiestruturais. Depara-se, assim, com a experiência
coletiva e individual ritualizada na festa, a vibe, capaz de alterar o modo de ser e estar
no local e potencializar o retorno dos participantes ao extraordinário-cotidiano das
cidades.
Palavras-chave: Festas rave. Campo. Cidade. Antropologia da Performance.
ABSTRACT

This dissertation proposes to reflect about Rave parties and electronic music festivals in
the Rio Grande do Sul, especially following the flows from the cities to the countryside.
Based on Anthropology of Perfomance and Anthropology of Experience, the
methodology intends to radiograph the rave's collective dream. Experiment centered on
the assembly of shared fragments in these festive events, that rip modifies the temporary
and the spatial rhythms of the rural environment supported this work. Ethnographic
essays are the thread guide of the dissertation, precisely because of their incompleteness
approach and repel images, articulating and refracting meanings, which investigate
through cultural performances, the recognition of noises and conflicting plans in these
extra-legal and antistructural moments. Therefore, the collective and ritualized
experience of the party (the vibe) can modify the way of being and being in the place, and
potentiate the return of the partners to the extraordinary-everyday life of cities.
Keywords: Rave parties. Countryside. City. Anthropology of Perfomance.
LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: Instalação rave pelos Campos de Cima da Serra..........................................18


Imagem 2: Câmera escura...............................................................................................20
Imagem 3: Centro da festa...............................................................................................22
Imagem 4: Efervescência coletiva ao som eletrônico.....................................................26
Imagem 5: Brincando com fogo......................................................................................28
Imagem 6: Cenas da cena eletrônica...............................................................................33
Imagem 7: Outras pistas..................................................................................................46
Imagem 8: Abrir e fechar de olhos na festa.....................................................................50
Imagem 9: Amanhecer eletrônico....................................................................................54
Imagem 10: Vale da rave.................................................................................................56
Imagem 11: Estética festiva.............................................................................................59
Imagem 12: Ponto de vista da pista de dança..................................................................62
Imagem 13: Festa como (re)encontro..............................................................................66
Imagem 14: Camadas de festa.........................................................................................74
Imagem 15: Printscreen do post do Kundalini Festival..................................................76
Imagem 16: Pistas da festa..............................................................................................78
Imagem 17: Reprodução do convite da festa True Goa Spirit........................................81
Imagem 18: Casa de cura.................................................................................................84
Imagem 19: Festival iluminando a noite.........................................................................88
Imagem 20: Pedaços da cidade no campo.......................................................................90
Imagem 21: Festa de sítio na colônia..............................................................................93
Imagens 22 e 23: Frente e verso de flyer da festa Junglism (1992)...............................101
Imagem 24: Flyer da festa A Despedida da Fortaleza..................................................103
Imagem 25: Dançando com os dragões.........................................................................111
Imagem 26: Noite escura...............................................................................................113
Imagem 27: Luz e sombra.............................................................................................118
Imagem 28: Flyer do Xxxperience Festival...................................................................120
Imagem 29: Pulsar com a vibe.......................................................................................121
Imagem 30: Luzes, sombras e reflexos.........................................................................124
Imagem 31: Participante montado para a festa..............................................................126
Imagem 32: Fantasias na rave I.....................................................................................128
Imagem 33: Fantasias na rave II....................................................................................129
SUMÁRIO

CANTEIRO DE OBRAS 1 .......................................................................................... 12


1 ORIGENS ................................................................................................................... 13
1.1 Aquece ................................................................................................................... 16
1.2 Um diário de campo desbotado ............................................................................. 23
1.3 Doces/Bárbaros ..................................................................................................... 30
1.4 Canteiro de obras ................................................................................................... 37
CANTEIRO DE OBRAS 2 .......................................................................................... 42
2 TESSITURAS ............................................................................................................ 43
2.1 Formaconteúdo ...................................................................................................... 44
2.2 Escavações ............................................................................................................ 48
2.3 Barracas ................................................................................................................. 55
2.4 Viagens .................................................................................................................. 64
CANTEIRO DE OBRAS 3 .......................................................................................... 69
3 DANÇANDO NO ESCURO ..................................................................................... 70
3.1 Sob um céu de estrelas .......................................................................................... 72
3.2 Brincando com o perigo ........................................................................................ 84
3.3 Uma história noturna ............................................................................................. 94
3.4 No vale da Utopia ................................................................................................ 100
CANTEIRO DE OBRAS 4 ........................................................................................ 106
4 GOOD VIBE ............................................................................................................. 107
4.1 Ecos ..................................................................................................................... 108
4.2 Sussurros ............................................................................................................. 115
4.3 Ruídos.................................................................................................................. 120
4.4 Silêncios .............................................................................................................. 125
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 132
“E pra acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presunto e dançando um samba de

arromba em que todas essas gentes se alegraram com muitas pândegas liberdosas. Então

tudo acabou se fazendo a vida real.”

Mário de Andrade, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter


CANTEIRO DE OBRAS 1

12
1 ORIGENS

“A força utópica rave aloja-se, antes, nos pequenos detalhes, não em discursos

maravilhosos, mas naquilo que passa quase despercebido, fácil de esquecer.”

Carolina de Camargo Abreu, Experiência rave: entre o espetáculo e o ritual

“Ela desatinou, viu chegar quarta-feira

Acabar brincadeira, bandeiras se desmanchando

E ela inda está sambando

Ela desatinou, viu morrer alegrias, rasgar fantasias

Os dias sem sol raiando e ela inda está sambando

Ela não vê que toda gente

Já está sofrendo normalmente

Toda a cidade anda esquecida, da falsa vida, da avenida”

Chico Buarque, Ela desatinou

Existem várias maneiras para chegar até a barragem da cidade de São Baco1, na região
serrana, nordeste do Rio Grande do Sul, distante 120km da capital, Porto Alegre. É por
lá que, nos últimos anos, ocorre o Beginning Festival, com edições realizadas nas cidades
gaúchas de Caxias do Sul, São Marcos e Westfália. O Beginning é considerado um
importante festival de música eletrônica da região Sul do Brasil e reúne alguns milhares
de jovens no município, com pouco mais de 20 mil habitantes.

Para muitos, como eu, é um encontro com o inesperado, pois não conhecem nem a cidade,
nem o local onde será o evento. Para aqueles que são de outros estados, foram
organizadas excursões que partiam de vários locais de Santa Catarina e do Paraná. O
ingresso, que, juntamente com 1kg de alimento, deveria ser trocado pela pulseira para
ter acesso ao festival, podia ser adquirido em diversas cidades, com promoters que
tiveram seus telefones e perfis compartilhados na página do evento.

1
Para preservar os participantes, o nome da cidade e do festival são ficções literárias, com inspiração no
universo da pesquisa.

13
Várias cidades do Rio Grande do Sul, como Porto Alegre, Canoas, Gravataí, São
Leopoldo, Pelotas, Rio Grande, Santa Cruz do Sul, Santa Maria, Passo Fundo,
organizaram excursões para o festival. Os ônibus e as vans partiam em diferentes
horários, já que o Beginning teria quatro dias de duração e os ingressos tinham valores
distintos – o que fez participantes optarem por comprar apenas para o fim de semana.
Existem empresas que realizam esse tipo de transporte há anos e são conhecidas dos
grupos que organizam e que frequentam raves e festivais de música eletrônica. Alguns
carros têm decoração diferenciada, com iluminação, equipamento de som, globo de luz,
“luz negra” – tecnologia que usa lâmpadas roxas e tem o efeito característico de
acentuar a iluminação em cores como o branco, o rosa, o amarelo, o verde e em tintas
fluorescentes, quando em ambientes escuros.

Havia, também, a opção de ir de avião até o aeroporto em Porto Alegre e de lá dirigir-


se para a rodoviária, onde uma linha realiza viagens ao longo de todo o dia entre as duas
cidades, com durações que dependiam do horário de saída e da modalidade do ônibus,
mas, geralmente, de 2h30min a 3h. Podia-se, ainda, pegar um avião até Porto Alegre e
fazer uma conexão até o aeroporto de Caxias do Sul, e de lá fazer o traslado de ônibus
da rodoviária até São Baco, também em pouco mais de 2h de duração.

Grupos de amigos costumam dar carona uns aos outros para irem juntos até esses
eventos. Mídias sociais, como Facebook, articulam participantes com vagas sobrando no
carro e aqueles precisando de carona para algum dos trechos. Organizadores e
participantes disponibilizam mapas com informações e dicas sobre quais caminhos
tomar, quais rotas mais curtas e atalhos existentes. No caminho, são deixadas pistas,
como placas coloridas, mandalas fluorescentes, fitas, montes de pedras, que indicam e
organizam fluxos.

Sempre há os “malucos de estrada”, os “hippies”, os artesãos e as artesãs, que viajam


longas distâncias até os festivais, onde expõem suas produções e têm entrada liberada.
Tem quem faça o percurso “no dedo”, pedindo carona na estrada. Assim, não é incomum
ver participantes chegando a pé, de bicicleta, ou na garupa de motos e caminhonetes de
produtores da região. Pelas ruas da cidadezinha, os “malucos” carregam expositores
retangulares com brincos e outras peças, pendurados em mochilas de acampamento.

14
Contrastam com os moradores, muitos deles ascendentes de migrantes italianos, que
caminham pelas lojinhas no comércio central.

Quem optasse por ir de ônibus de linha até São Baco precisava contatar um transporte
local – cujo celular também foi disponibilizado na página do evento – que cobria o trecho
entre a rodoviária, localizada na rua principal, e o camping, distante uns 15km do centro
do município. O caminho de terra batida forma uma estrada sinuosa, com pedras que
saltam na lataria e obrigam motoristas a andar mais lentamente. Ao longo do percurso,
algumas propriedades rurais com plantações, lavouras, gado, cavalos, roças, parreirais,
mas também placas que apontam a direção, na parte mais baixa de um vale.

Entre as dicas dadas aos novatos – passadas por aqueles que já frequentam essas
celebrações – a de que “menos é mais” é comum. Entre os itens da bagagem, é possível
encontrar barracas, sacos de dormir, roupas de lã para o frio, travesseiros, cobertas e
cobertores, que possibilitem a permanência de todos os participantes, já que, em alguns
casos, é inviável sair do acampamento e acessar esses itens.

Alguns trazem panelas, alimentos, utensílios de cozinha, gazebos, cadeiras de praia,


colchões infláveis, redes, cangas, chapéus, slackline – fita elástica que esticada entre
pontos fixos, como árvores ou postes, permite ao participante andar e fazer manobras
por cima. Prendedores de roupa tornam-se importantes, pois se tiver muito vento as
toalhas colocadas para secar voam. As roupas devem ser confortáveis. Tem chance de
sujar, manchar, voar, perder ou esquecer. É bom levar mais de um par de chinelo ou
tênis, caso perca. Tem quem traz fantasia, máscara, perna de pau, figurino, maquiagem
para as performances. Na bagagem, vêm máquinas fotográficas, câmeras de vídeo, lentes
para câmera, flashs, computadores, drones, carregadores, adaptadores, baterias e
cartões de memória, cadernos de campo. Às vezes, vêm balas, pirulitos, doces, pasteis,
sucos, catuaba, óculos de sol. Cocares.

Malas, mochilas, sacos e ecobags trazem produtos de higiene e limpeza, como escova e
pasta de dente, curativo, protetor solar, xampu, sabonete, repelente, toalha e roupas de
banho, pois uma das atrações do evento é a possibilidade de aproveitar as cachoeiras
próximas. Trazem, também, violões, violinos, flautas, pandeiros, berimbaus, bongôs,
didgeridoo, maracas, e outros instrumentos musicais. Tem gente que leva quase nada.

15
Dorme pelo chill out2 – local, geralmente coberto, onde estão programadas oficinas e
exibição de filmes e documentários – e conta com a ajuda dos outros participantes. No
fim, vira mais uma história pras próximas festas.

Na entrada, os seguranças revistam nossas mochilas, bolsas, malas e porta-malas, para


evitar que entre algum material proibido ou algo que possa ferir os participantes do
festival. Na vistoria, encontram garrafas de bebidas alcoólicas – item proibido pela
organização – que começam a formar um colorido mosaico de vidro no chão, próximo
do local de acesso. Todos devem identificar-se após passar pela revista, junto às
mesinhas onde, protegidos por um toldo, os organizadores trocam o ingresso e o alimento
pelas pulseiras. Aqueles com idade entre 16 e 18 anos devem estar acompanhados dos
pais, ou apresentarem uma autorização específica, cujo modelo foi fornecido pelo
festival, assinada e registrada em cartório, pelo ou pela responsável, permitindo a
entrada.

Alguns participantes assíduos possuem várias dessas pulseiras, guardadas como


lembrança de diversas festas e festivais em que estiveram. São como troféus, mas também
sinalizam a circulação por esses eventos. A pulseira do festival é amarela e marrom. Traz
a palavra “BEGINNING” gravada de forma estilizada. Olho e não deixo de achar
engraçado, pois o Beginning foi um dos primeiros festivais de que participei quando
iniciei o campo. A organizadora ajusta a fita e, usando um alicate, pressiona um pequeno
anel de metal prateado, fixando a pulseira. Decido que também a deixarei no pulso
depois do festival. Entro. [Continua...] (Diário de Campo, primavera de 2016).3

1.1 Aquece

Ao longo de 2011 e 2012, acompanhei festas rave e festivais de música eletrônica no


interior de Caxias do Sul/RS e em algumas cidades no perímetro circunvizinho para a
realização de minha monografia de conclusão de curso em Comunicação Social, com

2
Utilizo aqui a expressão em língua inglesa, tal qual ela é utilizada pelos participantes das festas rave. Em
tradução literal, chill out significa algo como “relaxar” ou “acalmar”.
3
Optei por não utilizar recuo de texto nas citações do Diário de Campo, mas colocá-las em itálico para
diferenciá-las esteticamente, ao mesmo tempo em que dimensionam a importância do trabalho de campo
na construção da pesquisa e na composição do texto.

16
Habilitação em Jornalismo, na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Na pesquisa Festa
de sítio na colônia: uma cartografia da divulgação alternativa de raves na Serra gaúcha,
apresentada no fim de 2012, interessei-me por saber como essas festas eram divulgadas e
de que modo os participantes atuavam na divulgação, em um processo rizomático e,
muitas vezes, às margens dos meios hegemônicos de comunicação (RODRIGUES, 2012).

Ao buscar me envolver na literatura sobre festas rave e festivais de música eletrônica,


descobri que a Antropologia podia oferecer importantes subsídios teóricos para a
pesquisa. O contato com a Antropologia Urbana, a Antropologia da Performance e a
Etnomusicologia permitiu problematizar diversos aspectos apresentados em campo e
gerou novas possibilidades abordadas em conjunto com as teorias da Comunicação.

Ao concluir o Bacharelado em Comunicação Social, optei por ingressar no Bacharelado


em Antropologia, na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e, em 2016, no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia, na mesma instituição, na linha de pesquisa
Comunidade, Rede e Performance, com a intenção de dar andamento à pesquisa. Dessa
forma, a reflexão exposta aqui é permeada pelos debates realizados ao longo da minha
participação junto ao Departamento de Antropologia e Arqueologia (DAA-UFPel),
especialmente no Laboratório de Ensino, Pesquisa e Produção em Antropologia da
Imagem e do Som (Leppais) e no Grupo de Estudos Etnográficos Urbanos (GEEUR).

Destaca-se que as raves configuram momentos extracotidianos e antiestruturais nas vidas


daqueles que participam delas, conforme a perspectiva teórica de Victor Turner (1986,
1992a, 1992b, 2005, 2008, 2012). Tais eventos marcam um afastamento do cotidiano
ordinário, do local de trabalho, da rotina – e dos papeis sociais associados a ela – e
transportam os participantes para outro espaço, normalmente, em jornadas que duram
horas até locais afastados, desconhecidos, de difícil acesso, como praias, fazendas, sítios,
cannyons. Esses lugares devem apresentar natureza exuberante, uma vez que, como
destaca a antropóloga Carolina de Camargo Abreu (2011: 86, grifos da autora),

rave, no Brasil, é “festa de sítio”, tem que ser no meio do mato ou numa praia
deserta. Cria instalação em espaços não ocupados pelas atividades urbanas
regulares. Algumas pessoas fazem longas viagens para ir à raves, aquelas que
moram mais perto do local escolhido, de qualquer forma, viajam para fora da
cidade, transitam por caminhos até então desconhecidos, geralmente durante a
noite e já agrupados com os amigos mais próximos.

17
As raves surgem no fim do século 20, enquanto possibilidade da modernidade no que diz
respeito à música produzida eletronicamente, à fabricação de cores fluorescentes, ao
aumento do fluxo digital de informações em nível mundial, à circulação de estrangeiros
pelo Hemisfério Sul do mundo, entre outros fatores, que produzem e atualizam formas de
relação com a música, com a dança, com o transe e com outras esferas sociais. Nota-se,
também, que os trabalhos acadêmicos que abordam a temática das festas rave são
realizados tendo como recorte geográfico grandes centros urbanos, como Porto Alegre
(FONTANARI, 2003), Cuiabá (GUSHIKEN, 2004), São Paulo (ABREU, 2005, 2011),
Montevideo (SOUZA, 2006), Fortaleza (NUNES, 2010), Caxias do Sul (RODRIGUES,
2012).

Imagem 1: Instalação rave pelos Campos de Cima da Serra

Fonte: Flávio Ribeiro

Conforme o antropólogo Tiago Coutinho Cavalcante (2005: 13),

neste movimento cria-se um tipo de festividade globalizada, com símbolos que


transcendem fronteiras nacionais criando redes e mercados articulados a estes
eventos. [...] Deste modo são organizadas festas de longa duração que podem
variar de três dias a uma semana, reunindo milhares de pessoas de diferentes

18
partes do Brasil e do mundo. As festas são realizadas em lugares considerados
“paraísos naturais” por possuírem praias, cachoeiras, vales e chapadas.

Tendo como pressuposto que engajamentos produzem silenciamentos, os ensaios que


compõem esta dissertação buscam focar na montagem (TAUSSIG, 1993; BOLLE, 2000;
DAWSEY, 2012) operada para a criação de uma versão, que, se não é consenso, ao menos
apresenta vários elementos comuns em falas distintas de participantes muito diversos e
em pesquisas realizadas em diferentes partes do País e do mundo. Nas festas que
presenciei e nas leituras de autores, os participantes fazem questão de ressaltar o
afastamento da vida urbana proporcionado pela rave. Isso acontece às margens, nas
bordas, onde os diálogos são possíveis, já que as conversas nas raves são marginais. De
acordo com Ana Flávia Nascimento (2006: 34),

os festivais têm em comum uma mensagem de transição de um modo de viver


para outro; de um modelo mecânico e artificial para outro mais integrado,
desperto para as sincronicidades da vida. Esses ambientes festivos, ao
estimularem experiências estéticas e extáticas que despertam sensações de
unidade e de ligação intrínseca entre tudo o que existe, colocam em prova a
causalidade que fundamenta a descrição do mundo ocidental, a qual tende a
isolar todos os processos e fragmentar a relação entre os acontecimentos.

Tal afastamento da cidade não se mostra apenas por meio de discursos, mas por meio
de ações, de gestos e de performances desempenhados pelos participantes no ambiente
festivo. Minha experiência junto ao teatro, desde que iniciei meus estudos em
Comunicação Social, em 2009, permitiu olhar para esses eventos com a perspectiva que
carrego das Artes da Cena. A partir disso, o estranhamento deu-se, principalmente, por
essas ações serem apresentadas por atores sociais urbanos, que fazem parte de uma cultura
ligada à música eletrônica, à cibercultura, ao consumo de psicoativos, com um desejo
manifesto de entrar em contato com uma “natureza revigorante”.

19
Imagem 2: Câmera escura

Fonte: Flávio Ribeiro

De acordo com Abreu (2013: 180, grifos da autora), “quando os ravers saem da ‘cidade’
para ‘sentar na grama’ e ‘conversar com os amigos’, vão para o ‘campo’ em direção à um
território idílico”. Mas quais ruídos e tensões estão sendo deixados de lado nessa
montagem do campo e da cidade? O que é privilegiado?

De acordo com John Cowart Dawsey (2005a: 23-24),

para captar a intensidade da vida social é preciso compreendê-la a partir de


suas margens. Trata-se de um olhar atento e de uma abertura calculada, tal
como o cálculo de um risco, do antropólogo em relação aos movimentos
surpreendentes das sociedades que, ao recriarem cosmos a partir de elementos
do caos, brincam com o perigo e sacaneiam a si mesmas. Experiências de
liminaridade podem suscitar efeitos de estranhamento em relação ao cotidiano.
Trata-se mais do que um simples espelhamento do real.

Em conversa com Bianca4, com 22 anos em 2016, ouvi o seguinte relato:

“[O lugar] Eu acho que influencia... bastante. A primeira vez que eu fui lá tava muito
cabreira, porque eu não conhecia o lugar; eu não sabia o que tinha em volta; eu não

4
Em respeito aos interlocutores, os nomes foram alterados.

20
sabia se era perigoso pra voltar pra casa. Tinha que caminhar vinte minutos até o trem.
E... se tu for ver, se tu tirar toda a estrutura daqui, é um prédio abandonado, todo
quebrado, e um pátio sem grama, sabe? E, em volta, é mato. Então, não é um lugar,
assim, confortável de se estar. Eu não iria ali, normalmente, porque não tem nada em
volta, sabe? E... essa proposta de ocupar esse lugar é interessante. Porque revitalizou de
alguma forma o lugar.” (Diário de campo, verão de 2016).

Uma experiência rave, que, por horas, ou dias, ocupa locais afastados, muitas vezes
causando surpresa entre os moradores. Feriados, como Páscoa, Natal, Corpus Christi,
Ano Novo são momentos reservados para a realização de festivais, geralmente, com mais
de dois dias de duração. De acordo com o sociólogo Émile Durkheim (2000), momentos
de efervescência coletiva, como ritos religiosos, constituem uma ação dramática
particular, que aciona energias poderosas do campo social, com capacidade para intervir
sobre o curso da natureza. Conforme o autor (2000: 225),

concebe-se sem dificuldade que, chegado a esse estado de exaltação, o homem


não mais se reconhece. Sentindo-se dominado, arrebatado por uma espécie de
poder exterior que o faz pensar e agir de modo diferente que o normal,
naturalmente tem a impressão de não ser mais ele mesmo. Parece-lhe ter-se
tornado um ser novo: os ornamentos, as máscaras que cobrem seu rosto,
figuram materialmente essa transformação interior, mais ainda do que
contribuem para determiná-la. E como todos os seus companheiros, no mesmo
momento, sentem-se transfigurados da mesma maneira e traduzem seu
sentimento por gritos, gestos, atitudes, tudo se passa como se ele realmente
fosse transportado a um mundo especial, muito diferente daquele onde costuma
viver, a um meio povoado de forças excepcionalmente intensas que o invadem
e o metamorfoseiam.

Turner (1992a, 1992b), após sua transferência da Inglaterra para os Estados Unidos,
inspirou-se nos estudos das estruturas dos rituais Ndembu para refletir sobre as formas
expressivas nas sociedades “pós-industriais”, termo adotado pelo autor. As festas e as
celebrações foram algumas das manifestações estudadas pelo antropólogo, combinando
seu aporte teórico com categorias da Arte, especialmente das Artes da Performance, em
parceria com Richard Schechner (2011).

21
Imagem 3: Centro da festa

Fonte: Flávio Ribeiro

Para Dawsey (2005b: 165),

experiências que irrompem em tempos e espaços liminares podem ser


fundantes. Dramas sociais propiciam experiências primárias. Fenômenos
suprimidos vêm à superfície. Elementos residuais da história articulam-se ao
presente. Abrem-se possibilidades de comunicação com estratos inferiores,
mais fundos e amplos da vida social. Estruturas decompõem-se – às vezes, com
efeitos lúdicos. O riso faz estremecer as duras superfícies da vida social.
Fragmentos distantes uns dos outros entram em relações inesperadas e
reveladoras, como montagens.

Festas rave e festivais de música eletrônica parecem um bom exemplo de iluminação


profana da modernidade, uma imagem tensa, envolta em exotismo e ambivalência, de
certa forma, em perigo. Mas, também, momento de festejar, celebrar a interrupção do
cotidiano, quando a vida torna-se mais intensa. Por meio de brincadeiras, papeis sociais
são deixados de lado, enquanto outros são acionados, aproximando elementos
surpreendentes. Tais momentos não deixam de gerar estranhamento, na reflexividade
sobre aquilo que é cotidiano. Nas margens de estruturas sociais brotam imagens que têm
como característica a multivocalidade, mas, também, a ambiguidade.

22
Partindo de uma Antropologia da Performance que se propõe crítica e reflexiva sobre seu
fazer, esta apresentação da dissertação, assim como os ensaios organizados a seguir,
desconfiam de verdades absolutas sobre festas rave e festivais de música eletrônica, que,
por vezes, rondam noticiários – e textos etnográficos. Para Turner (1992a), no “espelho
mágico” dos rituais e dramas sociais, as sociedades podem ver a si a partir de múltiplos
ângulos, gerando experimentações, novas possibilidades.

O ensaio Tessitura, apresentado no capítulo 2, discute algumas das escolhas


metodológicas e dos arranjos teóricos estabelecidos entre a etnografia de festas e o estudo
de raves e festivais de música eletrônica. Nesse sentido, reflete metodologicamente sobre
a escrita etnográfica, no diálogo com a literatura e a escrita ensaística. A partir das
histórias que os participantes contam a si sobre as raves, surgem “comunidades estéticas”,
cujos engajamentos, opções e distinções compõem a multivocalidade do campo.

No capítulo 3, o ensaio Dançando no escuro busca refletir sobre a montagem das festas
rave, a partir dos marcos teóricos da pesquisa. Entre o campo e a cidade, este capítulo
foca na montagem da rave, no cruzamento entre os estudos de Antropologia, Teatro e da
obra de Walter Benjamin. Nesse sentido, as performances culturais evocadas nessa
pesquisa expressam experiências marcantes possibilitadas pelo encontro festivo, onde a
criatividade dos participantes produz imagens, presenças e registros no tempo e no espaço
criados pela festa.

O ensaio Good Vibe, no capítulo 4, busca focar na criação coletiva e individual da vibe,
enquanto experiência marcante ritualizada nas festas rave. Na relação entre os estudos
de Antropologia da Performance e da Antropologia dos Sentidos, emergem cenas da festa,
articuladas de forma reflexiva, a partir da aproximação e do afastamento de imagens
operada em campo.

1.2 Um diário de campo desbotado

[...] Começa a anoitecer. Formamos um grupo cheio de mochilas próximo à entrada,


pois os carros devem ser deixados ali. A elevação do terreno permite ver o local, lá

23
embaixo, onde será, de fato, o festival, já com barracas montadas. Por alguns reais, uma
caminhotente antiga faz o trajeto de aproximadamente 2km, com aqueles que não
querem, ou não podem, descer a ladeira até o camping. Mesmo assim, alguns colocam
mochilas e sacolas nas costas e vão, com lanternas – e alguma dificuldade – pelo
caminho escuro.

Enquanto espero, um dos participantes oferece um cigarro, puxa assunto. Estamos


conversando quando uma amiga dele aproxima-se com a filha pequena, de uns seis anos,
e entra na conversa. Ela é estadunidense, mas mora no Brasil há alguns anos. É casada
com um brasileiro. O papo gira em torno do local, do festival, da música eletrônica – e
da menininha, filha dela, que brinca por perto.

Aos poucos, o grupo esvazia-se, conforme o transporte faz o trajeto. Enquanto isso, novos
participantes passam pela revista. Um dos organizadores aproxima-se, nos explica que
existem dois lugares destinados ao acampamento. O primeiro, próprio para isso, fica em
uma parte plana, próxima à pista de dança, mas sem luz. O outro, mais afastado, fica em
um declive, com rochas, mas com iluminação distribuída pelas árvores e área para fazer
churrasco.

Quando o motorista chega, eles me convidam para montar a barraca próxima à deles,
no acampamento principal. Descemos no reboque, sacolejando com a sinuosidade da
estrada, que termina em uma construção, utilizada como restaurante, com banheiros ao
lado. No fundo, um deck possibilita ver os morros e as montanhas, cortados por cursos
d’água, que formam a região. Do lado direito da estrada, uma bifurcação leva para o
segundo acampamento e para a pista alternativa, na parte baixa do terreno. No meio do
caminho fica a “Casa de Cura”, com terapias alternativas. Logo após essa divisão, na
trilha principal, um corredor de “hippies” expõe suas obras, em mesinhas ou em tecidos
no chão. Próximo a eles, fica o chill out, coberto por uma lona azul. Do lado esquerdo
da estrada, ficam uma lanchonete, montada em um galpão de madeira, com vários tipos
de comidas e bebidas, o acampamento e a pista de dança principal, que abrirá apenas
no dia seguinte. Ao lado da pista principal, está a feira mix, com bancas de roupas e
produtos à venda, e uma estrutura coberta, montada pela organização para o comércio
de bebidas.

24
Com alguma dificuldade pela falta de luz, mas com ajuda recíproca, montamos as
barracas em um círculo, com as portas voltadas para dentro. Por causa do frio, muitos
vão para o chill out, com três entradas abertas entre a lona azul que cobria a estrutura
de ferro. No chão, almofadas, travesseiros e cobertas disponíveis para os participantes.

Está rolando o documentário Human [Arthus-Bertrand, 2015], quando começa a chover.


[Continua...] (Diário de Campo, primavera de 2016).

Esta pesquisa parte de fragmentos, resíduos e ruídos registrados em diários de campo ao


longo de 2011 e 2012, quando fui a campo em raves na região da Serra gaúcha. Naquele
momento, pensei nesses eventos e na relação com os locais onde ocorriam. Hoje, isso fica
evidente no título que atribuí ao trabalho: Festa de Sítio na Colônia: uma cartografia da
divulgação alternativa de raves na Serra gaúcha (RODRIGUES, 2012).

Porém, alguns registros relativos aos fluxos dos participantes entre o campo e a cidade
inquietavam e chamavam atenção para situações vivenciadas, como que pedindo
organização, uma vez que isolar os eventos e pensá-los apenas na dimensão do campo
seria deixar de lado uma dupla dimensão extremamente importante que, talvez, naquele
momento, tenha me escapado: a cidade. Para isso, realizei trabalho de campo novamente
durante os anos de 2016 e 2017, em festas na região de Pelotas/RS e cidades vizinhas, na
região Sul, e, novamente, na região da Serra, no Nordeste do Rio Grande do Sul.

25
Imagem 4: Efervescência coletiva ao som eletrônico

Fonte: Flávio Ribeiro

O estudo utiliza a etnografia como modo de fazer, valendo-se da observação participante


(FOOTE-WHYTE, 2005) e da observação flutuante (PÉTONNET, 2008). Isso tem sido
realizado por meio de fruição nas festas; conversas durante os eventos; acompanhamento
de grupos ao longo das viagens de ida e retorno à cidade; e, também, em outros locais que
reúnam os participantes. Isso evidencia uma tentativa de não tomar a festa rave e os
festivais eletrônicos como um elemento isolado na vida social dos participantes. Os
registros foram realizados ao longo dos trabalhos de campo, em cadernos que
acompanharam minhas idas aos locais do evento, mas que foram, também, suporte para
anotações, reflexões e pensamentos, que, em um segundo momento, foram passados a
limpo e organizados em diários de campo.

A montagem operada parte de algumas das inquietações presentes em campo e guardadas


nas páginas desses cadernos, em diálogo com as teorias do campo antropológico. Um
movimento de inspiração benjaminiana, que mergulha em alguns dos “sonhos coletivos”
de celebração da Modernidade, no qual Antropologia e festas rave aproximam-se, e
desperta para algumas de suas ambiguidades, no “limiar entre o sonho e a vigília, como
numa macrofotografia, ou filmagem em câmera lenta” (BOLLE, 2000: 68).

26
Almeja, assim, evitar que algumas lembranças desses momentos festivos caiam no
esquecimento, não apenas individual, mas também coletivo, social. Tais imagens não
deixam de atestar o impacto e o encantamento do encontro com a festa, ao mesmo tempo
em que atualizam teorias, na surpresa com arranjos possibilitados por meio da escrita
etnográfica. Nesse sentido, Willi Bolle (2000: 64), ao analisar a imagem dialética
proposta por Walter Benjamin, afirma que:

Nos “sonhos coletivos” do século XIX [19] – que se materializam em


construções como as passagens, nas modas e na produção de imagens –
expressa-se a mitologia da Modernidade. A esse depósito de saber
inconsciente, fundador da identidade do século XX [20], o historiador tem
acesso, na medida em que sabe decifrar não aqueles sonhos em si, mas o seu
próprio presente. As imagens oníricas só se tornam legíveis na medida em que
o presente é percebido como um “despertar” num “agora da conhecibilidade”,
ao qual aqueles sonhos se referem.

Sobre isso, o antropólogo Clifford Geetz (2008: 5, grifos do autor) chama atenção para o
que ficou conhecido como “descrição densa”. O autor define que uma boa etnografia seria
aquela que consegue distinguir entre um piscar de olhos e uma piscadela, quando
“contrair as pálpebras de propósito, quando existe um código público no qual agir assim
significa um sinal conspiratório, é piscar. É tudo que há a respeito: uma partícula de
comportamento, um sinal de cultura – voilà! – um gesto”. Em aproximação a John
Dawsey, entretanto, o que se pretende, aqui, é uma “descrição tensa”. Neste sentido, para
o antropólogo (DAWSEY, 2013a: 292),

se Clifford Geertz se propõe a fazer uma “descrição densa” em que seja


possível diferenciar um piscar de olhos de uma piscadela marota, Benjamin,
que também encontra nas sociedades, em suas histórias e culturas, textos a
serem lidos, procura, nas imagens dialéticas, uma “descrição tensa” (tension-
thick description) – carregada de tensões – capaz de produzir nos leitores um
fechar e reabrir dos olhos, uma espécie de assombro diante de um espantoso
cotidiano – um despertar. Imagens como essas vêm das margens.

Uma descrição que busca pelas histórias que os participantes contam para si sobre as
festas, reconhecendo o choque dessas histórias com os corpos presentes em campo, bem
como os esquecimentos que interrompem os cursos nas narrativas e afundam no
subterrâneo dos símbolos, às margens do mundo. Uma descrição de descrições, que se
esforça para não redundar em “os balineses” (GEERTZ, 2008), ou em “os ravers”

27
(MINNAERT, 2012), mas que acompanha engajamentos de vidas, com pontos de vistas
que mudam de lugar, em movimentos inquietantes.

Conforme Nascimento (2006: 46-47),

os participantes passam por um processo de transição que envolve a saída da


vida cotidiana, a inserção em um espaço desconhecido no meio da natureza,
experiências emocionais profundas (tanto individual quanto coletivamente), o
retorno à vida habitual e a integração dessas experiências à mesma. Tais
considerações envolvem etapas semelhantes aos antigos “rituais de passagem”,
que demarcavam fases da vida. No entanto, essas celebrações contemporâneas
envolvem pessoas de várias culturas, assim como de todas as idades (de
crianças a indivíduos com mais de sessenta anos), e o significado atribuído à
experiência varia de acordo com a consciência de cada um.

Nos sonhos coletivos das raves e dos festivais, com a aproximação dos discursos a respeito
do campo e da cidade, surgem imagens. Se as imagens de campos verdes surpreendem, as
raves produzem, simultaneamente, imagens da cidade. O trabalho de campo nas festas
possibilita refletir sobre as diversas facetas que podem conviver no interior das festas
sem, necessariamente, serem excludentes, mas f(r)iccionadas (DAWSEY, 2009).

Imagem 5: Brincando com fogo

Fonte: Flávio Ribeiro

28
Conforme Beto, participante e organizador de festivais:

“Na realidade, alguém acreditou que pessoas juntas, com a música, com a natureza,
utilizando ela como um veículo pra ti, né, te conectar. Porque, na verdade, só funciona
porque é um tripé, né. Tu tem o lugar, tem a música e tu tem as pessoas. Se tu tirar a
música, o lugar e as pessoas, não faz... Tu cria esse elo e as coisas começam a se
desenvolver. A primeira delas é a tua percepção, né, que tu vai olhar pra natureza e: ‘tá,
não tem separação, então, cadê o vazio entre nós dois?’ Nunca existiu, só eu que criei
esse vazio e não enxergava, no caso, né. E aí essa ideia de desenvolver a música para
que as pessoas percebam que tem mais coisas acontecendo. Não é especial, não é mágico,
não é pra uns, não é privilégio, todo mundo tem o direito de ter acesso.” (Diário de
campo, inverno de 2016).

Seguindo algumas iluminações de Walter Benjamin (1987a), talvez seja possível escovar
algumas dessas imagens a contrapelo. Segundo Dawsey (2013a: 314),

Benjamin também chama atenção para o modo como imagens, emancipadas


dos contextos, às vezes se articulam de formas surpreendentes. A sobreposição
de imagens, como as dos planos na montagem de um filme, pode ser
reveladora. Quando imagens do passado se articulam ao presente numa
montagem carregada de tensões, os efeitos podem ser explosivos. Nesses
casos, surgindo dos fundos de uma história encorporada, o comportamento
restaurado se manifesta na forma de um gesto inquietante, desarrumando, ou
colocando em polvorosa os contextos semânticos.

Na instalação criada pelas raves, jovens subvertem as ordens das coisas e brincam com
papeis sociais. Estranhamentos sobre a vida cotidiana são gerados por meio de
performances que se dão, às vezes, em gestos simples, mas carregados de potência, como
dormir na grama, andar de pés descalços, jogar-se na lama, ou tomar banho nu em uma
cachoeira. Conforme Dawsey (2005b: 166), “nos momentos de suspensão das relações
cotidianas é possível ter uma percepção mais funda dos laços que unem as pessoas”.
Nessa perspectiva, entende-se a Antropologia da Performance como uma parte essencial
da Antropologia da Experiência, onde as performances expressam a experiência vivida.
Buscam “completar” – ou “realizar inteiramente” – as experiências, no sentido
desenvolvido por Turner (1992a, 1992b).

Na análise deste antropólogo (TURNER, 2005: 179, grifo do autor),

29
essas experiências que interrompem o comportamento rotinizado e repetitivo
– do qual elas irrompem –, iniciam-se com choques de dor ou prazer. Tais
choques são evocativos: eles invocam precedentes e semelhanças de um
passado consciente ou inconsciente – porque o incomum tem suas tradições,
assim como o comum. Então, as emoções de experiências passadas dão cor às
imagens e esboços revividos pelo choque no presente. Em seguida ocorre uma
necessidade ansiosa de encontrar significado naquilo que se apresentou de
modo desconcertante, seja através da dor ou do prazer, e que converteu a mera
experiência em uma experiência.

Nessa construção, alguns discursos periféricos nas festas serão trazidos para o primeiro
plano – sem desconsiderar aqueles discursos que ocupam a hegemonia no campo. Trata-
se de uma tentativa, um trabalho manual, artesanal, que reúne pistas, junta cacos, recorta
e cola textos, para apresentar-se com diversos pontos em aberto, elipses, rotas de fuga,
emendas suspeitas, tal qual o fenômeno cultural sobre o qual se debruça. No percurso,
este trabalho também expõe alguns dos bastidores da pesquisa de campo, desvelando
opções metodológicas e escolhas éticas e epistemológicas da pesquisa. De acordo com
Willi Bolle (2000: 381, grifo do autor),

através de uma montagem em forma de choque, nasce uma imagem dialética.


O colecionador burguês, através dos tesouros que acumula, providencia para
si uma visão de conjunto do universo; o colecionador de trapos e farrapos, lixo
e entulho (Lumpensammler) providencia, a partir desses resíduos, uma imagem
do camarote a partir do qual se contempla o mundo.

Nesse sentido, cabe ainda destacar relações de duração, como a tecida com o fotógrafo
Flávio Ribeiro, que, ao longo de anos e de festas, tem criado um registro sensível desses
momentos. As imagens apresentadas neste capítulo, bem como ao longo do trabalho,
foram realizadas pelo artista, que, assim como em 2012, gentilmente, aceitou contribuir
com a pesquisa. Por meio do seu lugar olhado da festa, o transitório e o efêmero são
eternizados.

1.3 Doces/Bárbaros

[...] Acordo no meio da noite com água escorrendo pela porta da barraca e molhando
meus pés. Saio e vejo que há movimento pelo acampamento, em barracas próximas. Mais
pessoas estão do lado de fora, com toalhas sobre a cabeça e lanternas em punho,
tentando arrumar lonas, fixando ganchos, recolhendo cadeiras e toalhas. Puxo a lona

30
um pouco mais para cima da porta da barraca, coloco o equipamento fotográfico na
parte mais protegida e aceito o fato de que, àquela hora, com pouca luz, é o que dá para
fazer.

O dia amanhece com sol. Converso com meus vizinhos de barraca sobre a noite, pois
eles também tiveram problemas com a chuva. Pelo acampamento, as pessoas vão
acordando e fazendo café da manhã, próximas às barracas. Formam grupos de amigos,
em cadeiras e redes. Nos banheiros, formam-se algumas filas para tomar banho ou lavar
o rosto.

Mais participantes chegam a todo instante e a topografia do acampamento nunca é a


mesma, conforme as barracas são montadas. Aqueles que aguardam a pista principal
abrir, aproveitam para conhecer o espaço. A equipe chegou um mês antes do início do
festival e se instalou no camping, momento em que começaram as transformações no
ambiente. Entre elas, a construção de mais banheiros de alvenaria, instalação de fiação,
contratação de equipamentos.

O cuidado dos organizadores está presente em cada canto da festa, seja nas placas,
pintadas manualmente, que indicam locais, delimitam espaços e servem como mensagem
para os participantes; seja na confecção de potes com areia para depositar bitucas de
cigarro; seja na decoração, feita com troncos, panos e tecidos coloridos que cobrem as
pistas de dança; seja no chill out, onde estão programadas oficinas com as crianças, uma
vez que é comum a presença delas nos festivais. São pequenos detalhes, pintados,
gravados, reformados, pregados, montados, pendurados, mas essenciais na construção
de um bom festival.

A pista de dança principal abre no fim da tarde de sol. Logo, torna-se o centro das
atenções, foco dos participantes e coração da festa. A cabine dos DJs fica protegida por
uma tenda, formada com tecidos multicoloridos. No meio da pista, foi construída uma
pirâmide, com estrutura de madeira, coberta por tecidos e grama, e de onde são
projetadas imagens sobre a cabine. A escuridão da noite é quebrada, de vez em quando,
pela lua cheia, que logo volta a se esconder atrás das nuvens pesadas de chuva. Assim,
em alguns momentos, os participantes não são mais do que formas, sombras, reflexos, na
penumbra. Difíceis de serem distinguidos, diferenciados; tornam-se etéreos, oníricos.

31
Ao longo da noite, um grupo realiza performances com fogo. De repente, o interior da
pista é iluminado. Na efervescência da festa, revelam-se expressões curiosas. De alegria.
De espanto. De êxtase. [Continua...] (Diário de Campo, primavera de 2016).

“Por que se escreve em Antropologia?”, questiona o antropólogo Eduardo Restrepo


(LEAL et al, 2014: 363). A questão não deixa de ser provocativa, uma vez que na prática
da Antropologia a escrita ocupa local de destaque, que não se limita aos cadernos e diários
de campo, mas contempla a criação de interlocução com os pares e com a sociedade de
forma mais ampla.

De acordo com Roberto Cardoso de Oliveira (1996), a dimensão do trabalho


antropológico articula a pesquisa empírica e a interpretação de seus resultados. Nesse
sentido, para o autor, a elaboração do conhecimento próprio deste campo parte de olhar,
ouvir e escrever. Na análise do autor (1996: 15), trata-se de um olhar e de um ouvir
“disciplinados”, sensibilizados pela disciplina que os constitui, mas que, também, a
constituem por meio de suas percepções. A potencialidade da escrita, assim, coloca-se
enquanto instância criativa, com significação própria das Ciências Sociais. Mas como
olhar? Como ouvir? E, mais importante, como escrever?

Atentando para a particularidade dialógica da pesquisa de campo, Cardoso de Oliveira


(1996: 20-21) destaca a busca do pesquisador para criar interlocução, que guarde

pelo menos uma grande superioridade sobre os procedimentos tradicionais de


entrevista. Faz com que horizontes semânticos em confronto – o do
pesquisador e o do nativo – se abram um ao outro, de maneira a transformar
um tal “confronto” num verdadeiro “encontro etnográfico”. Cria um espaço
semântico partilhado por ambos os interlocutores, graças ao qual pode ocorrer
aquela “fusão de horizontes” (como os hermeneutas chamariam esse espaço),
desde que o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o nativo e por ele ser
igualmente ouvido, encetando um diálogo teoricamente de “iguais”, sem receio
de estar, assim, contaminando o discurso do nativo com elementos de seu
próprio discurso.

O antropólogo Juan José Martínez D’aubuisson (2015), que realizou trabalho de campo
juntamente com a Mara Salvatrucha 135, entende que, em alguns contextos, o trabalho

5
A palavra castelhana “mara”, sem tradução exata para português, deriva de um tipo de formiga chamada
marabunta, e era usada, originalmente, para referir-se a grupos de amigos ou a aglomerações. Desde os
anos 1970, entretanto, passou a designar grupos de jovens envolvidos nos confrontos armados em El

32
etnográfico implica ver, ouvir e calar. Cabe pontuar que quando sociedades falam sobre
si, desde suas margens, como no caso deste estudo sobre festas rave, esquecimentos e
silenciamentos também são importantes. Definem escolhas, estéticas e éticas. Marcam
opções, criam versões que se sobrepõem e formam camadas. Nesse sentido, alguns
trabalhos parecem pautar-se pelas utopias, pelos desejos e pelas fantasias, não apenas de
interlocutores, mas também de pesquisadores, cientistas sociais e antropólogos.

Imagem 6: Cenas da cena eletrônica

Fonte: Flávio Ribeiro

Utopia é um conceito associado mais comumente a uma civilização imaginária ideal,


perfeita, fantástica. No grego, traduz “um lugar que não existe”, “ou+topos”. Essa
associação se deve à criação de uma ilha imaginária, Utopia, por Thomas Morus (2016).
Em Utopia, o governo proporcionaria excelentes condições de vida a seu povo,
equilibrado e feliz. Deve-se a essa origem a associação do termo a sociedades imaginárias
perfeitas, em sintonia com as premissas éticas, filosóficas e ideológicas de seus
idealizadores.

Salvador, que causaram, em 2015, cerca de sete mil mortes no país. Disponível em:
<https://www.elconfidencial.com/mundo/2016-02-25/un-antropologo-en-las-maras_1158049/>. Acesso
em: 28. jan. 2017.

33
Uma reflexão acerca do conceito remete a noção de desejo, que nasce com as primeiras
vivências de satisfação, com a formação do aparelho psíquico. Pode-se afirmar, pela
teoria freudiana, que o surgimento do desejo inaugura o psiquismo e será seu motor. José
Luis Valls (1995) mostra que a experiência de satisfação funda um complexo
representacional com três nuances: a) A representação do objeto de satisfação, ou seja, a
representação que se ativa quando se reanima o desejo; 2) A representação dos
movimentos evocados com esse objeto e o que esse objeto fez; 3) A representação da
sensação de descarga (prazer). Para Sigmund Freud (1996a: 4-5), “uma moção desta
índole é o que chamamos desejo; a reaparição da percepção é o cumprimento do desejo e
o caminho mais curto para este é o que leva desde à excitação produzida pela necessidade
até o investimento pleno da percepção”.

O desejo pode ser, também, fonte de angústia, de sentimentos contraditórios. Assim, é


possível aproximar o conceito de fantasia, que Juan David Nasio (1980: 72) explica como
aquilo que temos de mais próximo, que se dá a partir da experiência vivida do sujeito.
“Sendo a fantasia uma construção, não se pode construí-la do nada, são necessários
materiais e modelo”. Assim, podemos considerá-la experiência marcada no inconsciente
do sujeito, mas que, na verdade, não ocorreu. A fantasia pode ser traduzida como forma
de busca pelo prazer, combinando verdade e adulteração; algo que se constrói em um furo
do pensamento e cuja atividade se constitui pela cena primária, ou seja, a realidade. Sob
certo aspecto, é possível traçar uma tênue linha entre os conceitos de utopia e fantasia,
uma vez que a utopia impulsiona o sujeito para a condição desejante, e por meio da
fantasia é possível a esse mesmo sujeito manter-se na órbita de seu desejo e do desejo do
Outro.

A partir da perspectiva de cultura como invenção, presente na obra de Roy Wagner


(2010), é possível afirmar que as festas rave vêm sendo “inventadas” pelo texto
etnográfico desde o início dos anos 2000 (FONTANARI, 2003) (CAVALCANTE, 2005)
(ABREU, 2005) (CANEVACCI, 2005) (FERREIRA, 2006) (ALCANTARA, 2009). Às
margens do rio Guaíba, em Porto Alegre, o antropólogo Ivan Paolo Fontanari (2003)
busca, em uma perspectiva da Etnomusicologia, o ethos das festas rave que
movimentavam a cena eletrônica da capital e ocupavam espaços abandonados, como
armazéns vazios no Cais do Porto.

34
Tiago Coutinho Cavalcante (2005), em sua etnografia sobre festivais de música
eletrônica, debruça-se sobre a relação entre o corpo e o festival, por meio das técnicas de
êxtase que se desenvolvem na interação com os ambientes festivos. Para o antropólogo,
por meio de ações simbólicas, criam-se e recriam-se práticas para experimentar as
potencialidades do corpo.

Já Abreu (2005), a partir de um olhar de perto e de dentro, aponta para algumas


segregações que interrompem discursos de igualdade em festas rave de São Paulo, onde
a presença dos cybermanos, participantes vindos da periferia, causou encontros, disputas
e rupturas dentro da cena eletrônica.

Entretanto, entre ruídos, histórias se sobrepõem a histórias, criando versões poderosas,


modelando realidades, legitimando narradores. Conforme Yuji Gushiken (2004: 86, grifo
do autor),

o que se pode observar, sem maiores sobressaltos, é que, no neotribalismo


contemporâneo, e que se torna visível nas pequenas multidões da cultura rave,
a relação do indivíduo com o grupo tende a ser uma relação de harmonia:
relação dos iguais. Em outra dimensão, a relação do agrupamento tribal com o
resto da sociedade já tende a ser uma relação de força: produção da diferença.

A invenção da cultura, na obra de Wagner, é evocada em seu potencial criativo, que tenta
refletir sobre a cultura humana, por meio daquilo que é particular no universal. Assim,
para o autor (2010: 30), o pesquisador

se torna o elo entre culturas por força da sua vivência em ambas; e é esse
“conhecimento” e essa competência que ele mobiliza ao descrever e explicar a
cultura estudada. “Cultura”, nesse sentido, traça um sinal de igualdade
invisível entre o conhecedor (que vem a conhecer a si próprio) e o conhecido
(que constitui uma comunidade de conhecedores).

Nesse sentido, ao inventarem as raves para a Antropologia, os pesquisadores descobrem


também uma cultura e um campo de pesquisa, um nativo, “um ‘exótico’ que os doutores,
então, desconheciam”, nas palavras de Abreu (2011: 55). Conforme Wagner (2010: 30),

de fato, poderíamos dizer que um antropólogo “inventa” a cultura que ele


acredita estar estudando, que a relação – por consistir em seus próprios atos e
experiências – é mais “real” do que as coisas que ela “relaciona”. No entanto,
essa explicação somente se justifica se compreendemos a invenção como um

35
processo que ocorre de forma objetiva, por meio da observação e aprendizado,
e não como uma espécie de livre fantasia. Ao experienciar uma nova cultura,
o pesquisador identifica novas potencialidades e possibilidades de se viver a
vida, e pode efetivamente passar ele próprio por uma mudança de
personalidade.

Logo, ao negar contradições das sociedades que produzem este tipo de festa, algumas
pesquisas inventam “Doces bárbaros”, conforme apresenta a antropóloga Katia Pascoal
Fonseca. Para a autora (2011: 94), a rave marca uma

experiência potencializada pela participação ativa, que permite ao indivíduo a


sensação de envolvimento e de fazer parte do grupo. Suspendendo
temporariamente o passado e o futuro somente o agora importa, faz sentido. O
foco é centrado no instante e na interação com os presentes. O ego de cada
pessoa é extraviado na unidade de solidariedade, de prazer, de realização e de
aceitação criado pela festa.

Na familiarização daquilo que é culturalmente diferente, no interior de onde olham para


a cidade, pesquisadores também inventam no texto etnográfico possibilidades de mundos
perfeitos, universos paralelos, onde todos são iguais, “livres, puros e felizes” (NUNES,
2010). Nascimento (2006), ao refletir, de forma bastante autobiográfica, sobre os
“festivais de trace psicodélicos” – voltados aos estilos trance e psytrance – compara a
dificuldade de acesso aos locais dos eventos com a “jornada do herói”. Alguns desses
festivais pontuam o calendário e mobilizam fluxos nacionais e internacionais para regiões
do País, como o litoral da Bahia, ou a região de Alto Paraíso, em Goiás. Muitos
estrangeiros participam de tais festivais, onde o inglês costuma ser o idioma comum.

A autora deixa de apontar a relação desses eventos com as festas rave, consideradas por
alguns como mais “comerciais”, em relação aos festivais, que seriam, por sua vez, mais
“underground” (ABREU, 2011). Porém, tais eventos compartilham participantes que
circulam por diferentes tipos de festas, sem, necessariamente, verem nisso uma
contradição, mesmo que reconheçam suas particularidades. Alguns festivais dificultam e
tornam proibitiva a presença de uma grande camada devido aos valores dos ingressos e à
distância dos centros urbanos, mas também são alvo de atenção e desejo dentro da cena
eletrônica, com inúmeros relatos sobre a experiência transformadora que podem
significar àqueles que conseguem acessá-los. Para Nascimento (2006: 42),

no contexto dos festivais todos são bem-vindos: negros, brancos, amarelos;


ricos e pobres; heterossexuais, homossexuais ou bissexuais; estrangeiros,
deficientes. O que importa é que, unidos pelo transe que a música proporciona,

36
todas as diferenças são celebradas a ponto de se dissolverem, originando o
místico sentimento de unidade.

Ainda conforme a análise de Wagner (2010: 41),

o efeito dessa invenção é tão profundo quanto inconsciente; cria-se o objeto no


ato de tentar representá-lo mais objetivamente e ao mesmo tempo se criam (por
meio de extensão analógica) as ideias e formas por meio das quais ele é
inventado. O “controle”, seja o modelo do artista ou a cultura estudada, força
o representador a corresponder às impressões que tem sobre ele, e no entanto
essas impressões se alteram à medida que ele se vê mais absorto em sua tarefa.

Baseada nos ensinamentos das festas rave, a escrita desta dissertação busca não aniquilar
a diferença, mas potencializá-la. A partir da polifonia compartilhada em campo, atenta ao
risco que algumas perspectivas trazem de simplificar o que é muito caro à Antropologia,
como a diversidade e a complexidade dos modos de se engajar. No caminho apontado por
Dawsey (2007: 531), “uma premissa se apresenta: campos emergentes freqüentemente
surgem como manuscritos desbotados.”

Olhos e ouvidos disciplinados pela Antropologia inventam interlocuções “iguais”, doces


bárbaros. Uma atualização de “bom selvagem”. A partir de um ponto de vista
disciplinado pela Antropologia da Performance, entre diários de campo, memórias e
esquecimentos, encontram-se as “histórias noturnas” (GINZBURG, 1991) das festas, suas
esperanças, fantasias, utopias, mas, também, contradições, incoerências, rasuras, emendas
suspeitas. Seus sonhos coletivos.

1.4 Canteiro de obras

[...] Os gritos soam como um aviso de incêndio!

“AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAH!”

Abro os olhos. Zonzo de sono. Assustado. O coração dispara. Mas a adrenalina faz
pensar. Rápido, rápido. Estou no chill out com Priscila e Hugo, que havia conhecido na

37
festa. Ficamos conversando por ali, antes de juntarmos nossas cobertas para assistirmos
à animação, Uma história de amor e fúria [Luiz Bolognesi, 2013]. Com preguiça de
encarar o frio da pista, ou das nossas barracas, acabamos dormindo no chilla.

Me ergo na cama improvisada no chão e olho para a cena, iluminada pelo telão onde
segue a projeção de outro vídeo. Um cara, vinte e poucos anos, está de pé. Grita com
uma moça que aparenta a mesma idade e segura um bebê no colo, sentada em um dos
bancos baixos de madeira colocados no chill out. A criança chora sem parar. Ele não
fala. Apenas grita na direção dos dois.

“AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!”

Priscila, que também acordou assustada, grita com ele: “Para com isso!” As pessoas
que assistem o filme, sentadas ou deitadas pelo lugar, olham para a cena. Ninguém
parece estar entendendo. Algumas sorriem. Outras estão assustadas, como nós. A garota,
com o bebê no colo, sai do chill out. Hugo levanta e sai também. Junto-me a ele, na parte
de fora. De costas para o cara, ela segura a criança. Ambas são protegidas por outra
menina, que se coloca entre elas e mantém os braços abertos. Ele começa a gritar de
novo.

“AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!”

Quanto mais ele grita, mais a criança chora. “Ah, eu lembrei. Eu não vou deixar você
machucar meu filho!”, diz, parecendo estar confusa, aquela que, supomos, deve ser a
mãe da criança. Começa a juntar mais gente, com algumas lanternas. Tudo acontece
muito rápido. Ele sai de onde estamos e o perco de vista. Algumas mulheres se juntam à
mãe da criança. Nós três voltamos para dentro do chill out. Hugo está irritado, xingando.
Nos convida para a pista de dança, mas Priscila está inquieta, preocupada com o bebê,
e vai ajudar a mãe.

Saio para dar uma volta e fumar. Tomo o caminho até a pista alternativa, com músicas
“mais calmas” que as da pista principal. Quando estou descendo a estrada de pedra que

38
leva ao local, sou parado por outros dois participantes. Eles alertam para tomar cuidado.
“Tem um participante ‘louco’”, que agrediu outras pessoas na festa, entre elas uma
fotógrafa e um “senhor hippie”. Durante o festival, havia visto esse senhor junto à tenda
de cura, fazendo atividades de atendimento e rodas de conversa sobre saúde e qualidade
de vida.

Volto com eles e encontramos a fotógrafa próxima às barracas de artesanato. Ela chora,
rodeada por amigas. O agressor foi o mesmo que entrou na barraca do “hippie”, quando
ele dormia. Relatam que, ao acordar com o movimento, tentando entender o que
acontecia, ele foi agredido com socos. A fotógrafa conta que o “cara estava louco”.
Havia agredido também a namorada e o bebê dela.

Vou terminar de fumar no deck, na elevação com vista para o vale, mas a visão é
interrompida por gritos e pelo choro da mãe da criança, que, perto dali, é ajudada por
alguns participantes. “EU ESTOU MORTA! EU MORRI! EU MORRI! MEU DEUS, EU
NÃO ACREDITO QUE EU FIZ ISSO COMIGO! EU MORRI!”. Ela grita e chora. Me
afasto e vou para a pista de dança, onde tudo parece fazer sentido.

Ao amanhecer, pessoas comentam no restaurante que os acontecimentos da noite haviam


afetado a vibe do festival. O extraordinário interrompe o cotidiano da festa com aquilo
que é trazido desde as cidades. Naquele dia, desisto de fazer a trilha até uma das
cachoeiras, onde tínhamos combinado tomar banho. Ligo para Branca, ao fim da tarde,
e aviso que voltarei um dia antes do combinado. Arrumo minhas coisas, desmonto minha
barraca, me despeço e vou embora. (Diário de campo, primavera de 2016).

O fim da festa rave costuma ser um momento interessante. Após o cansado de horas, ou
dias, os participantes começam a organizar o retorno às cidades. Roupas e toalhas devem
ser recolhidas. Algo que tenha sido emprestado, como coberta, isqueiro, lanterna, deve
ser pego de volta. Deve-se, também, devolver aos donos aquilo que se pediu emprestado.
Proprietários dos campings, às vezes, disponibilizam espetos, barracas, extensões,
adaptadores, muitos deles deixados por outros participantes.

É momento de dar a última volta, passear pela feira mix, que costuma baixar um pouco o
preço dos produtos ao fim dos eventos. Deve-se, também, olhar o ambiente, andar pelas

39
trilhas, ver a vista do alto das pedras, ir até as cachoeiras, despedir-se de amigos e
conhecidos na festa. Também é o momento de despedir-se da pista de dança, local
importante da festa, articulador de movimentos, de fluxos – e ponto de fuga. Alguns
participantes preferem ficar pelo chill out, deitados nas almofadas, relaxando,
descansando, dormindo.

É hora de arrumar as malas. Dobrar saco de dormir, limpar e desarmar a barraca. Quem
vem de excursão, deve cuidar o horário e local de saída do ônibus ou van. Parentes,
amigos e conhecidos costumam vir buscar participantes, o que gera movimento de carros
chegando e saindo. Grupos de amigos começam a se juntar próximos aos carros,
esperando ou resgatando algum participante perdido. Lentamente, o número de barracas
vai diminuindo, assim como o de participantes dançando.

Na entrada, costuma ter quem busque carona, seja até a rodoviária, seja até a cidade ou
até a autoestrada próxima. O clima em carros, vans e ônibus costuma ser de cansaço,
exaustão, mas, ao mesmo tempo, de alegria, com comentários e histórias engraçadas da
festa. Alguns ainda fumam para relaxar, mas outros simplesmente dormem, com óculos
escuros. Costuma rolar música eletrônica, mas em volume mais baixo. O número de
passageiros costuma mudar, pois tem quem se perdeu, quem encontrou amigos e optou
por ficar na festa, quem foi com outras excursões. E têm aqueles que ficam para sempre
pelos campos da festa.

De acordo com Abreu (2013: 177), uma “comunidade efêmera, de fim de semana, que se
dissolve ao final de cada festa, essa tribo global permanece viva em sites, blogs, redes
sociais da internet e mantém latente num certo circuito de lugares de encontro em grandes
cidades”. Do campo para a cidade, retornam, também, ensinamentos, experiências. Novas
perspectivas – assim como os ensaios etnográficos apresentados nessa dissertação, que,
de forma benjaminiana, buscam radiografar alguns dos sonhos coletivos das raves,
entendendo todo monumento de cultura como um monumento de barbárie. Monumento
inquietante da Modernidade, as festas rave e os festivais de música eletrônica colocam-
se enquanto ponto de inflexão de teorias antropológicas, ao despertar questionamentos e
possibilidades de reflexão, com foco no inacabamento, nos planos em conflito que tais
práticas apresentam.

40
O fim da festa costuma fechar ciclos, marcar interrupção, criar expectativas. Marca, da
mesma forma, um reencontro com as cidades, em longas jornadas de retorno, às vezes,
para outros estados ou países, mas já não é para a mesma cidade que se volta depois das
festas e festivais. Ela parece ganhar novas cores; coisas que incomodavam, de repente,
parecem não ter importância, tornam-se engraçadas. Vive-se a rotina com menos peso,
vista como um intervalo, uma interrupção até a próxima festa, um momento entre.
Aguarda-se com ansiedade por outros eventos, por sentir a vibe e reviver aqueles
momentos coletivos de celebração.

De acordo com o antropólogo Michael Taussig (1993: 412, grifo do autor):

Montagem: focalizar para frente e para trás, partindo do indivíduo para o


grupo; não se trata simplesmente de auto-absorção, interrompida e descartada
por meio da participação no grupo ou com um ou dois membros dele; através
dessa focalização para a frente e para trás, partindo do indivíduo para o grupo
e vice-versa, estabelece-se uma espécie de espaço lúdico e de um espaço para
testes, a fim de que se possa comparar as alucinações com o campo social do
qual elas emanam. Então o próprio espaço de representação é esquadrinhado.

De diversos modos, experiências vividas de forma concreta no campo tingem o cotidiano


dos participantes, e pesquisadores, muitas vezes, pondo em risco sentidos sociais. Talvez
por isso, o tema seja seguidamente revisitado, desde a Antropologia, testando arranjos,
inquietando pesquisadores, explorando margens do texto etnográfico. Um trabalho em
processo de montagem.

41
CANTEIRO DE OBRAS 2
42
2 TESSITURAS

“Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O

choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente

deixaríamos de compreender nossa saudade.”

Walter Benjamin, Infância em Berlim por volta de 1900

“Não sabia ele de um fato: o pampa é único e perpétuo, e a memória é múltipla e frágil.”

Luiz Antonio Assis Brasil, A margem imóvel do rio

Chego no festival por volta das 7h30min, pouco antes do horário marcado para o início.
Apresento-me ao segurança e ele avisa que ainda não posso entrar. Fico no gramado
olhando a pouca movimentação da manhã. Com a aproximação das 8h, o fluxo de
veículos no local aumenta, mas a maior parte dos que chegam integram a equipe de
trabalho, identificados com a camiseta colorida da festa. Muitos dos que passam, sorriem
e cumprimentam. Sorrio de volta, mas estou apreensivo. É a primeira vez que vou a um
festival de música eletrônica em Pelotas. Já não frequento festas rave ou festivais
eletrônicos há uns dois anos. Não sei (novamente) bem o que esperar. Havia esquecido
como sinto um misto de prazer e ansiedade antes de começar o campo.

Um organizador se aproxima para falar com seguranças que circulam pelo gramado na
entrada. Enumera aquilo que é permitido na festa e aquilo que não é: “Água: pode.
Protetor solar: pode. Cadeira: pode. Be-bi-da: NÃO po-de. Bebida, só água”. “E
chimarrão?”, pergunta o segurança. “Sim! Chimarrão, cuia, essas coisas: pode. Mas vai
ter erva[-mate] aqui.” Ele faz uma pausa antes de afirmar de modo enfático, mas lento,
olhando para os seguranças: “Dro-ga: NÃO po-de”. Ele pensa alguns instantes. Um dos
seguranças pergunta, quebrando a expectativa: “E desodorante, pode?”. “Sim! Dá uma
examinada ali para ver, mas pode. Deixa eu ver... É acho que é isso... Qualquer coisa a
gente vai estar por aí se comunicando.”

Gigi, que faz parte da organização, me vê e vem conversar. Comento que o local está
lindo e ela passa algumas informações novas sobre a finalização das montagens.

43
Conversamos um pouco sobre como foram os últimos retoques na decoração e o receio
de chuva no dia anterior, quando as equipes estavam trabalhando a todo vapor. Gigi
convida para entrar e ver o resultado dos trabalhos. Passo com uma das responsáveis
pelos ingressos. Ela entrega a pulseira de plástico verde flúor com o nome da festa, que
serve como acesso. Deseja um bom festival, sempre sorrindo.

O espaço gramado está completamente limpo. Dá para notar que a grama foi cortada
recentemente. Todo o ambiente está organizado e cuidadosamente decorado. Muitos da
equipe que chegam pela primeira vez ao espaço também se juntam em grupos para
admirar os diversos ambientes; o palco, todo decorado com taquaras verdes, vai receber,
bem mais tarde, um dos DJs mais importantes da cena eletrônica do País; a mesa com o
café da manhã oferecido para os que chegam, com melancias, maçãs, bananas, melões;
os pallets com almofadas para o descanso; as árvores enfeitadas por placas com dizeres
pintados em tinta fluorescente. Dentre elas uma chama atenção: “SE FAZ SENTIR, FAZ
SENTIDO”.

Jorge, outro organizador do evento, vem falar comigo. Pergunta como estão as coisas.
Se “o trabalho está dando certo” Sorrio e concordo, sem saber bem o que responder.
Neste momento, Carlos, que também faz parte da equipe, aproxima-se de nós. Ele dá um
oi caloroso. “Ah, tu que é o... antropólogo?!”. Novamente, não sei exatamente o que
responder. Sou um antropólogo em formação, eu acho. Sorrio e confirmo, sem deixar de
ter uma sensação estranha, mas boa, por ser chamado assim. (Diário de campo, verão de
2016).

2.1 Formaconteúdo

Em 19 de janeiro de 2016, uma matéria do portal Stereo Minds6 questionava: “A nação


dos fritos está forte como nunca. E agora?” Fritos é uma das maneira de chamar aquelas
pessoas que estão no pico do efeito de psicoativos nas festas, mas, também, uma forma

6
Disponível em: <http://stereominds.com.br/materias/a-nacao-dos-fritos-esta-forte-como-nunca-e-
agora/>. Acesso em: 29. out. 2016.

44
genérica de referir-se àqueles que gostam de música eletrônica. Segundo a matéria, grifos
do autor, com o crescimento da cena eletrônica

as pessoas começaram a ter novas visões de mundo e de suas prioridades:


o fulano que odiava seu emprego desistiu desse emprego, a fulana que não
conseguia se relacionar bem com pessoas agora conseguia, alguns dos mais
violentos fãs de futebol então faziam rodas de abraços em vez de rodas de
porrada, saíam dos estádios direto pros clubs. Felicidade artificial correndo
dias e noites adentro.

Não deixa de ser curioso iniciar esse ensaio etnográfico com uma matéria jornalística.
Nos caminhos para me tornar antropólogo, algumas vezes busquei esquecer minha
formação nas Ciências da Comunicação. Quando reconheci a importância que a formação
teve, trouxe-a para dentro do texto etnográfico. O resultado se deu na forma de ensaios.

Como crítica ao modelo dramático seguido em alguns trabalhos acadêmicos


antropológicos, muitas vezes reprodutores de uma lógica positivista de construção do
conhecimento, o ensaio surge repleto de possibilidades por focar o inacabamento daquilo
que é ensaiado, tal qual a escrita etnográfica, sempre incompleta. Desse modo, os ensaios
presentes nesta dissertação não apontam exatamente para uma introdução, um
desenvolvimento em capítulos e uma conclusão. A escolha da ordem e os arranjos dos
textos não deixam, porém, de seguir uma montagem consciente e objetiva com a intenção
de gerar efeito. Entretanto, os ensaios possuem certa autonomia, o que possibilita mais de
uma forma de leitura.

Para Theodor Adorno (2003: 17), a universalidade, muitas vezes buscada em algumas
obras, não cabe na especificidade do ensaio. A reflexão “não começa em Adão e Eva,
mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde
sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar
entre os despropósitos”.

Distante da busca por repetições ou permanências, os ensaios aqui presentes tratam do


mesmo tema: as festas rave e os festivais de música eletrônica, por meio das possiblidades
vividas em campo, junto aos interlocutores. As reflexões que compõem a dissertação
mudam conforme os locais olhados e conforme as escutas em campo. Por meio de
diferentes posições, unidades ainda não envolvidas por palavras são transformadas em

45
textos. Como pano de fundo, a intencionalidade de refletir sobre os discursos e as práticas
antropológicas, especialmente o estatuto do texto etnográfico e suas implicações.

Imagem 7: Outras pistas

Fonte: Flavio Ribeiro

Nas palavras de Adorno (2003: 24),

mesmo as doutrinas empiristas, que atribuem à experiência aberta e não


antecipável a primazia sobre a rígida ordem conceitual, permanecem
sistemáticas na medida em que definem condições para o conhecimento,
concebidas de um modo mais ou menos constante, e desenvolvem essas
condições como um contexto o mais homogêneo possível.

O ensaio também parece adequar-se à fragmentação das práticas sociais humanas, em


especial, neste caso, ao estudo de festas rave. Diante de inúmeras possibilidades, as
seleções são feitas segundo critérios que não têm “vergonha de se entusiasmar com o que
os outros já fizeram” (ADORNO, 2003: 16). Clifford Geertz (1994), reflete sobre a
contemporaneidade do ensaio para a Antropologia, especialmente devido a sua
plasticidade de escrita, em um cotidiano fragmentado e disruptivo. Para o autor, o ensaio

46
oferece várias direções, o que facilita a capacidade de ajustes ao longo do percurso e
mudanças de rumo. Na análise do antropólogo (1994: 15, tradução minha)7,

outra vantagem do formato ensaístico é que ele se adapta facilmente a


diferentes necessidades. A capacidade de sustentar uma linha de pensamento
coerente no meio de um frenesi de convites propostos em total desordem, o
talento para falar aqui, para contribuir ali, para honrar a memória ou para
honrar a carreira de outra pessoa, para promover a causa desse jornal ou aquela
organização, ou simplesmente pagar favores semelhantes aos que pediu aos
outros, é, embora raramente seja mencionado, uma das condições definidoras
da vida intelectual contemporânea.

A escolha do ensaio, porém, não deixa de evidenciar a ligação que possuo com a escrita,
fortemente influenciada pela formação em Jornalismo, e a incidência da Literatura sobre
minha produção, mesmo quando jornalística. Neste sentido, esta dissertação não deixa de
fazer compreender melhor a contribuição que uma formação entre áreas oferece para uma
pesquisa antropológica. Porém, a escrita serve também como registro e como ex-pressão,
com hífen, em diálogo com a Antropologia das Formas Expressivas. De acordo com
Tzvetan Todorov (2009: 77),

como a Filosofia e as Ciências Humanas, a Literatura é pensamento e


conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a
Literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é
assim tão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se dizer que
Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os
maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o
primeiro saber e o segundo.

Ao longo do processo de construção da dissertação, passei a reconhecer também a


influência das festas rave para a escolha de uma escrita ensaística. É peculiar o esforço
da Antropologia Social e Cultural de levar em conta as particularidades contidas nas
performances culturais, sem, entretanto, deixar de considerar, conforme Cláudia Fonseca
(1999), que “cada caso não é um caso”. Ao explorar a realidade com suas potencialidades
de ficção, as raves causam efeitos e geram experiências, inclusive na linguagem
antropológica adotada para tentar (d)escrevê-las. O resultado desse exercício demonstra

7
No original: “Otra ventaja de la forma ensayística es que se adapta fácilmente a distintas necesidades.
La habilidad para sostener una línea de pensamiento coherente en medio de un frenesí de invitaciones
propuestas en total desorden, el talento para hablar aquí, para contribuir allí, para honrar la memoria de
uno o para homenajear la carrera de otro, para fomentar la causa de ese diario o aquella organización, o
simplemente para pagar favores similares a los que uno mismo ha solicitado a otros, es, aunque se
mencione raramente, una de las condiciones definitorias de la vida intelectual contemporánea.”

47
alguns dos ensinamentos da pesquisa, não apenas em sala de aula, mas na relação dessas
categorias com o campo, na mediação com os interlocutores.

Segundo Adorno, em sua forma, o ensaio não deixa de denunciar aspectos presentes na
sociedade que o produz. Para o autor (2003: 27),

a objeção corrente contra ele, de que seria fragmentário e contingente, postula


por si mesma a totalidade de algo dado, e com isso a identidade entre sujeito e
objeto, agindo como se o todo estivesse a seu dispor. O ensaio, porém, não
quer procurar o eterno no transitório, nem destilá-lo a partir deste, mas sim
eternizar o transitório. A sua fraqueza testemunha a própria não-identidade,
que ele deve expressar; testemunha o excesso de intenção sobre a coisa e, com
isso, aquela utopia bloqueada pela divisão do mundo entre o eterno e o
transitório. No ensaio enfático, o pensamento se desembaraça da ideia
tradicional de verdade.

Entre as várias possibilidades ensaiadas aqui, há espaço para os esquecimentos – e para a


subtração de informações. Várias opções brotaram naquilo que é o indizível de cada
pesquisa, o que não me isenta da responsabilidade sobre escolhas, recortes e montagens
realizadas neste trabalho. Como defende Walter Benjamin (1987b: 105),

tal como a palavra que ainda há pouco se achava em nossos lábios libertaria a
língua para arroubos demostênicos, assim o esquecido nos parece pesado por
causa de toda a vida vivida que nos reserva. Talvez o que o faça tão carregado
e prenhe não seja outra coisa que o vestígio de hábitos perdidos, nos quais já
não nos podemos encontrar. Talvez seja a mistura com a poeira de nossas
moradas demolidas o segredo que o faz sobreviver.

Nesse sentido, a etnografia busca menos dar ordem ao todo e mais apontar as emendas,
as costuras e as dobras presentes, porém, de forma crítica sobre a exposição que oferece,
uma vez que, conforme Carolina de Camargo Abreu (2012: 11), “é uma encenação que
escolhe uma perspectiva específica de apresentação e que tem consequências políticas
sobre as quais devemos nos responsabilizar”.

2.2 Escavações

Esta pesquisa volta-se para festas rave e festivais de música eletrônica, chamados,
também, de festivais multiculturais, festivais open air ou festivais psicodélicos,
entendidos na pesquisa como festas de longa duração, de doze horas ou mais, que podem

48
chegar a uma semana, com predominância de música eletrônica, em suas mais variadas
vertentes, como trance, techno, ou drum’n’bass8, realizadas em locais afastados dos
centros urbanos, como sítios, praias ou fazendas.

Festas rave surgem na despedida do século 20 como uma possibilidade da Modernidade.


Nesse sentido, interagem com elementos agenciados pelo Padrão Mundo, via
globalização. Muitas vezes, os participantes definem-se enquanto uma “tribo global”, ou
global tribe (ABREU, 2011), ou mesmo como uma família (SANTOS, 2013), como foi
possível ouvir, visualizar e perceber em diversas vozes durante o trabalho de campo. A
circulação de pessoas por celebrações em diversas partes do mundo e o uso do inglês
como idioma de comunicação entre participantes transnacionais são elementos
recorrentes em campo. Ao mesmo tempo, são comuns críticas dirigidas à cidade e ao
modo de vida urbano e, em contraposição, são generosos os elogios ao campo e à forma
“natural” como se pode viver nesses locais. No campo, lampejam possibilidades não
realizadas na cidade. Irrompem frustrações, fracassos, medos. Mas também desejos,
resgates. Na análise de Yuji Gushiken (2004: 18),

Por conta das condições de produção – ao misturar ou justapor elementos


semióticos externos de uma cultura viajante com elementos de cultura local –
é que as raves têm um histórico de promover estranhamento nos locais por
onde passam. Essas festas conformam um território que atrai e arrasta cada
indivíduo para suas ambiências temporárias de uma noite que vira o dia. A
instalação construída para cada festa – modulação de um território flutuante –
torna-se uma espécie de atrator, que desvia rotas lineares, arremessa a
consciência dotada de certezas para um ambiente não imediatamente
reconhecível.

Em sua pesquisa com os boias-frias nos canaviais do interior paulista, o antropólogo John
Cowart Dawsey (2005b: 245) reflete que

colocando os opostos em relação, provocavam-se, com efeitos de interrupção,


os curtos-circuitos nos fios que teciam redes de significado. Assim,
carnavalizavam as próprias relações entre realidade e imagem, revelando um
real fantasmagórico. Máscaras sociais transformam-se em motivos de
brincadeira. Um detalhe revela a essência da brincadeira: a fricção do corpo do
bóia-fria contra essas máscaras. Aqui, o que se produz – num parêntesis que
nos permite brincar com palavras – é um estado de f(r)icção.

8
Algumas diferenças estéticas entre os estilos musicais serão tratadas no ensaio Good Vibe.

49
Para se ter uma ideia, a última edição do festival Universo Paralello foi realizada de 27
de dezembro de 2017 a 3 de janeiro de 2018, na praia de Pratigi, Bahia, onde vários meses
antes foi montada a estrutura para receber os participantes. Quando ocorrem em espaços
urbanos, ou mais próxima da cidade, as raves costumam privilegiar locais abandonados
ou em desuso, como hangares, fábricas ou estacionamentos abandonados. Em Pelotas/RS
– em um movimento de retorno – raves e festivais de música eletrônica costumam ocupar
alguns dos pontos fundadores da cidade, como nas antigas charqueadas, nas margens do
Arroio Pelotas e do Canal São Gonçalo, na colônia ou nas praias do Laranjal.

Imagem 8: Abrir e fechar de olhos na festa

Fonte: Flávio Ribeiro

Cabe ressaltar que a diferença entre raves e festivais não diz respeito apenas ao tempo de
duração. Para alguns participantes, festas rave seriam mais “comerciais” que os festivais,
mais “underground” (FONTANARI, 2003; NASCIMENTO, 2006; ABREU, 2011). Do
mesmo modo, raves estariam mais associadas ao estilo de música techno, e os festivais
ao estilo de música trance, ou psytrance. Conforme Bernardo, que integra um dos núcleos
de organizadores de festivais eletrônicos no Rio Grande do Sul:

50
“Se tu vai numa rave no final tu não consegue caminhar no meio de tanto lixo, fica tudo
sujo, eles não têm o menor respeito. No festival não, despois que termina o lugar fica do
mesmo jeito que tava antes.” (Diário de campo, inverno de 2012).

Kiko, DJ e organizador de festival que ocorre na Serra, destaca essa diferença. Para ele,
pessoas que frequentam raves não teriam total noção da filosofia que envolve o
movimento da cena eletrônica: Estariam mais preocupadas em aproveitar o momento para
divertir-se. “Nós começamos fazendo raves, mas agora a gente faz festivais.” No
entendimento do interlocutor, os festivais são uma transformação das raves, e, por
consequência, atraem um público diferente, mais ligado às origens desse modo de festejar.
(Diário de campo, inverno de 2012). Porém, em um mesmo evento, alguns participantes
podem se referir ao que ocorre como rave ou como festival, uma vez que são reconhecidas
as diversas relações que existem entre os tipos de eventos.

Igor, 26 anos em 2012, reconhece a implicação da mídia na construção de discursos sobre


as festas rave. Para o DJ:

“A mídia força um pouco sobre festas rave. A meu ver é uma festa diferenciada, que
envolve, muitas vezes, arte e cultura. Sempre vemos nos programas de TV
sensacionalistas que a rave é um grande problema para o futuro dos jovens. Como eles
mostram só o lado ‘ruim’ das festas, sempre ouvimos que elas são uma indústria da
droga, que não existe outra coisa em rave sem ser drogas e jovens desvirtuados. O lado
negativo não é a festa que transmite e, sim, as pessoas que a frequentam. Droga existe
em qualquer lugar! Basta entender que enquanto houver grupos que se reúnem para viver
o lado alternativo da vida cotidiana, sempre haverá o poder que controla o povo tentando
derrubar. Porque só entende a hipocrisia sobre o assunto ‘uso de drogas’, quem olha na
rua e na tevê e percebe que, em todo lugar, fazemos coisas muito piores para saúde física
e mental, desde propagandas de cerveja até novelas. E no final das contas, o que importa
é o como o indivíduo vê a própria existência.” (Diário de campo, inverno de 2012).

O Projeto Pulso9, grifos no original, quando do anúncio de um importante festival


nacional, evidencia a pluralidade de sons em campo:

9
Disponível em: <http://projetopulso.com.br/universo-paralello-esta-na-hora-de-se-programar/>. Acesso
em: 23. out. 2016.

51
Uma verdadeira cidade de bambu e palha para 20 mil interessados em conhecer
toda a diversidade que a música eletrônica abraça é construída. Divididos por
vertentes, os cinco palcos abrigam do minimal ao psy-dark-trance, além de
shows e perfomances, todas com o pé na areia da praia; atividades culturais,
galeria de arte, diversos workshops, cinema e um intercâmbio cultural que
perpetua o festival como uma experiência única.

Miguel, que organiza e frequenta esses eventos, onde atua também como DJ, aponta,
entretanto, que é necessária uma combinação, de estilos musicais, de horários de execução
e de sequências, que impacta e gera efeitos na audiência.

“Pra mim, essa é a melhor sequência:

18:00 – techno
19:00 – progdark
20:00 – progdark
21:00 – night
22:00 – night
23:00 – forest
00:00 – forest
01:00 – forest
02:00 – darkpsy
03:00 – darkpsy
04:00 – darkpsy
05:00 – hitech
06:00 – hitech
07:00 – goatrance
08:00 – psytrance
09:00 – psytrance
10:00 – psytrance / full on
11:00 – full on
12:00 – full on
13:00 – full on / progressive
14:00 – progressive
15:00 – progressive

52
16:00 – progressive
17:00 – progressive / progdark
18:00 – progdark

E por aí vai tudo de novo...” (Diário de campo, primavera de 2017).

Porém, no ambiente festivo, os participantes fazem questão de destacar a distinção entre


festas rave e “baladas”. Para Abreu (2011: 10, grifo da autora),

a “balada” que uma rave sugere é mais do que uma opção de lazer
descomprometido entre tantas que a metrópole pode oferecer, pois requer
mobilizações de ordens diversas e é quase sempre descrita como uma
“experiência” marcante para seus participantes.

Em entrevista, Dalila, 21 anos em 2016, ressaltou como havia deixado de ir a “baladas”


depois que passou a frequentar festas rave, a convite do irmão mais novo. Segundo a
participante, o principal motivo seria o respeito por parte dos homens, que não abordam
nem assediam as mulheres ao longo da festa, já que nas raves “todo mundo se respeita”.
(Diário de campo, outono de 2016). Festas rave não costumam ser locais que estimulam
flertes, investidas ou “pegação”. É comum ouvir, especialmente das mulheres, que se
pode dançar do jeito que se quer, pois ninguém vai abordar – ao contrário de uma
“balada”. A centralidade da música, ressaltada em diversos momentos pelos
interlocutores, inibe que abordagens com essa finalidade sejam tecidas nas festas. Algo
assim poderia atrapalhar a vibe, ou interromper a experiência com a música eletrônica e
a festa.

Conforme Bianca, 22 anos em 2016:

“É muito diferente de quando tu vai para uma festa fechada, ou até mesmo nessas festas
de rua que a gente vai. Aqui [Pelotas/RS] nem tanto, mas, lá em Porto Alegre,
principalmente. As pessoas estão ali pra... pra se querer, sabe? Pra... é aquele negócio,
tu vai gostar da pessoa pela primeira impressão, pelo físico, pelo dançar. Porque,
querendo ou não, dançar também seria uma forma de atração que nem como os animais
usam para acasalamento, sabe? E aí... quer dizer, ao meu ver, é mais ou menos assim,
quando a gente está numa festa. Só que aquela coisa da sensualidade acaba te cativando,
né. E é meio que a primeira impressão. Se tu gostou, tu vai continuar observando. E na

53
rave não é isso. Na rave as pessoas... Que nem como um amigo meu falou dessa última
vez que a gente foi: ‘Ai, que droga, tô solteiro e vou pra rave. Na rave ninguém fica.’
Fica, é claro, mas não tem, não é a intenção das pessoas, né, ir lá pra caçar (risos). Ir lá
pra paquerar, né. Então, é muito essa coisa, de tipo: tô bem, tô curtindo. Posso tá
dançando. Posso tá num canto, sei lá. Só curtindo.” (Diário de campo, verão de 2016).

Outro elemento importante da distinção das raves em relação às baladas diz respeito às
paisagens que servem de local para sua instalação. No meio da natureza, após uma série
de comunicações, que se transportam na velocidade da internet, centenas de jovens
dançam ao som poderoso e maquínico da música eletrônica. A iluminação, além das
estrelas e da lua, é feita artificialmente por potentes canhões de luz, alguns de leds.
Imagem insólita, mas recorrente em quase todas as regiões do País, as festas rave surgem
como uma possibilidade de entretenimento na agenda de grandes cidades.

Imagem 9: Amanhecer eletrônico

Fonte: Flávio Ribeiro

Em um festival na Serra gaúcha, Olívia, vinte e nove anos em 2016, que trabalha na
montagem e na organização desses eventos, tecia comentários sobre outro festival de
música eletrônica que ocorre no Rio Grande do Sul, do qual havia participado. No chill

54
out – onde descansa da festa – a participante descrevia o outro festival como “mais roots”
que aquele em que estávamos. No linguajar das raves, roots tem a ver, geralmente, com
um contato maior com a natureza, causado pelo grande afastamento dos centros urbanos,
mas também por dificuldades enfrentadas ao longo da festa. Não ter banheiro químico ou
não ter água encanada são características de festas rave ou festivais mais roots. O fato de
uma festa ser mais roots, ou ser mais rooteira, costuma ser tratado positivamente e gera
histórias engraçadas, compartilhadas pelos participantes em seus encontros pelas raves.

De acordo com Dawsey (2005b: 172), “através do saber recolhido pelo sedentário, o
passado faz estremecer o presente.” Para Olívia, mesmo que configurem momentos de
trabalho, os festivais significam descanso em relação ao seu cotidiano em Porto Alegre.
“Lá é a Babilônia!” (Diário de campo, primavera de 2016).

2.3 Barracas

Da porta da minha (multicolorida) barraca, conseguia ver sem dificuldade a pista de dança
no meio da clareira, mas não distinguia com nitidez todos os movimentos que se passavam
lá. Os sons estavam por todos os lados. Assim como alguns cheiros. O verde do gramado
destinado ao acampamento durante os cinco dias do festival estava quase todo coberto
por barracas de diferentes cores, formatos e tamanhos. Elas eram montadas conforme os
participantes iam chegando – tal qual algumas de nossas cidades. O resultado foi um
rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1995) de trajetos, percursos e caminhos, difíceis de
serem percorridos de dia, labirínticos à noite.

55
Imagem 10: Vale da rave

Fonte: Utopia Cultura Eletrônica

Um desafio, que, creio, todo antropólogo encara, é o de não redundar na “tentação da


aldeia” (MAGNANI, 2014) ao transcrever uma cultura em texto antropológico –
especialmente ao realizar o exercício de estudar a sua sociedade. Neste sentido, este
trabalho segue a tradição antropológica nacional de estudos situados dentro do território
brasileiro, aquilo que Peirano (1999: 225-226, grifos da autora) chama de “antropologia
at home”. Para a antropóloga,

por muito tempo a antropologia foi definida pelo exotismo do seu objeto de
estudo e pela distância, concebida como cultural e geográfica, que separava o
pesquisador do seu grupo de pesquisa. Essa situação mudou. Mesmo nos
centros socialmente legítimos de produção antropológica – para muitos, onde
se faz a “antropologia internacional” – hoje o ideal do encontro radical com a
alteridade não é mais a dimensão considerada essencial da antropologia.
Nesses centros, houve uma mudança gradual em que a alteridade foi se
tornando mais próxima – dos trobriandeses aos Azande, destes aos Kwakiutl
passando pelos Bororo, daí para os países mediterrâneos, até os dias atuais,
bem diferente de há vinte anos atrás, uma antropologia que se faz perto de casa,
at home, é não só aceitável quanto desejável. No caso europeu, esse tipo de
investigação permanece sendo considerada “antropologia”; para outros, os
norte-americanos especialmente, a investigação at home deixa de ser
antropologia e passa a fazer parte dos cultural studies (ou feminist studies,
science studies etc.).

56
Atento aos riscos de “observar o familiar”, de acordo com Gilberto Velho (2008), este
estudo busca não fixar, de forma autoritária, os participantes das raves enquanto um grupo
identitário, uma “aldeia”, ou uma comunidade com noções claras de pertencimento,
partindo do pressuposto de que as identidades não são estáticas, mas, muitas vezes,
situacionais e operadas de forma política. Mesmo o uso do termo raver, enquanto aquele
que participa de festas raves, é delicado e traz limitações quanto a sua aplicação, visto
que muitos não se identificam assim, sendo uma categoria muito mais ética do que êmica.

Outro dado para o qual Velho (2008) chama atenção é a duração do trabalho de campo,
que, para o autor, não tem padrão: pode ser relativo, apesar de existirem aspectos de uma
cultura que não são evidenciados em um primeiro momento e exigem um exercício
prolongado de observação e de empatia. Venho coletando informações sobre festas rave
desde outubro de 2011, quando adquiri o primeiro livro sobre o tema e passei a buscar
literatura acadêmica voltada para festas rave, mas também para temas próximos, como
música eletrônica, consumo de psicoativos, estudos de lazer, artes do corpo, entre outros.
Os dados podem ser classificados em seis fontes distintas e complementares: observação
participante e observação flutuante em festas e festivais; cadernos de campos organizados
inicialmente durante minha graduação em Comunicação Social e somados aos trabalhos
de campo realizados a partir do ingresso no mestrado, em 2016; transcrições de
entrevistas com participantes em momentos fora da festa; material midiático, como
notícias, reportagens e filmes, flyers, sobre o tema, catalogados e arquivados; transcrição
de depoimentos e postagens realizados no Facebook, em grupos de participantes, ou
páginas dos eventos e núcleos; e levantamento bibliográfico a respeito do tema,
especialmente aquele produzido pelas Ciências Humanas.

Cabe ressaltar algumas implicações que pesquisas em festas podem acarretar e as


especificidades de trabalhar em um campo que não reproduz, de forma tradicional, alguns
modelos das pesquisas antropológicas, distante dos estudos clássicos da Antropologia
brasileira, que privilegiam os “estudos de comunidades” onde “a vida social de uma
determinada comunidade, social e espacialmente localizada, é objeto de investigação
minuciosa e detalhada” (OLIVEIRA; MAIO, 2011: 522). Os fluxos entre festas operam
uma circulação por cidades, estados e países. Dinâmica que é recorrente entre aqueles que
frequentam raves e festivais de música eletrônica. O que temos ao longo dos ensaios é o
resultado de um processo de observações em festas rave realizadas em momentos e

57
lugares distintos pelo Rio Grande do Sul – somado às entrevistas e depoimentos dos
interlocutores e leitura de pesquisas sobre o tema realizadas pelo mundo. Assim, acredito
que o incorreto seria situar Pelotas/RS, Rio Grande/RS ou Caxias do Sul/RS, como o local
da pesquisa, circunscrevendo e, ao mesmo tempo, sedentarizando um modo de festejar
que é nômade por origem.

Na análise de Graham St. John (2010: 8, tradução minha)10,

a mobilidade é parte integrante do psytrance, de diferentes maneiras. Como


indicado, o movimento fluido dos entusiastas de psytrance requer uma
conceptualização de músicas e estilo de vida que as práticas estruturalistas não
são capazes de fornecer. Isso é ainda mais evidente, dado que os engajamentos
não são tipicamente expressões de uma identidade minoritária, racial, étnica,
de classe ou sexual, como é comum, por exemplo, no hip-hop. Os
engajamentos são mais articulações prováveis de um privilegiado dissenso de
classe média, repleto de expatriação, embora não necessariamente “branco”
como a popularidade do psytrance entre os entusiastas japonês e brasileiros
atesta.

De acordo com o antropólogo Otávio Velho (2012: 381),

a transformação do mundo inteiro em um campo homogêneo, sujeito ao


escrutínio da etnografia, é outro aspecto de um modernismo exacerbado que
não deveria ser desconsiderado. Aqui as distinções entre a linguagem das
palavras (discursos) e a linguagem do corpo e (outros) atos recebem pouca
importância, com consequência para as descrições supostamente valorizadas
como densas. Uma habilidade é desenvolvida para as construções do texto, que
permite uma dupla leitura por meio de um padrão (e uma estética) que
crescentemente leva menos etnografia e mais interpretação, embora a última
possa ser disfarçada como o ponto de vista do nativo. Apesar de típico de
pesquisas reais, nenhum fio solto parece ser permitido.

Uma pesquisa nômade, multissituada (MARCUS, 1995), apresenta uma série de desafios,
visto que o aporte teórico e metodológico deste campo do conhecimento, originalmente,
visava estudos de comunidade em pequena escala, ou “sociedades simples”. Entretanto,
a opção por um estudo assim também apresenta vantagens, já que as festas e os seus
participantes estão em movimento. Segundo Gushiken (2004: 11),

10
“Thus mobility is integral to psytrance, but in a number of ways. As indicated, the fluid movement of
psytrance enthusiasts requires a conceptualization of music and lifestyle practices structuralist frameworks
are unable to provide. This is all the more evident given that commitments are typically not expressions of
minority or marginal race, ethnic, class or sexual identity, as is common, for example, within hip-hop.
Commitments are more likely articulations of a privileged middle-class dissensus and resourceful
expatriation, though not necessarily “white” as the popularity of psytrance among Japanese and Brazilian
enthusiasts attests.”

58
movimento – dos corpos, das multidões, da informação – faz parte de um
cenário de fluxos contínuos e caóticos, que na contemporaneidade por vezes
não se consegue nomear. Se o movimento de um corpo delineia um espaço, o
que a multidão produz historicamente é uma cartografia subjetiva de um
espaço historicamente praticado.

Creio que uma das possibilidades que se apresenta para os estudos de festas
rave seja pensar nesses grupos de jovens enquanto uma “comunidade estética”, em
diálogo com a antropóloga Laure Clémence Garrabé (2012). Isso implica admitir uma
série de afinidades entre os participantes, uma vez que, por uma gama de caminhos,
encontram-se em um mesmo espaço, compartilhando um momento significativo em suas
vidas. Uma experiência rave (ABREU, 2011). Obviamente, isso não objetiva dar
unicidade ao campo. Existem sentidos diversos, vozes discordantes, versões que se
contradizem, como em qualquer outro campo.

Imagem 11: Estética festiva

Fonte: Flávio Ribeiro

Conforme Garrabé (2012: 63, grifos da autora),

o Lume Teatro, a Sasha Waltz and Guests, um grupo de dança folclórica da


Romênia, uma agremiação carnavalesca brasileira, ou até trabalhadores rurais

59
nos morros da Martinica, constroem todos coletivamente formas de
sociabilidades em torno de códigos e corporeidades (técnicas) que lhes
permitem se identificar ou, ao contrário, se desligar, numa escala infinita de
variações, das representações ou dos enunciados culturais nos quais exercem
ou se expõem. Ao mesmo tempo, constroem o que poderíamos chamar de
comunidade estética, sensível, e sua respectiva historicidade.

Neste jogo de entender aquilo que existe de consenso – uma vez que há elementos comuns
que reúnem e que agrupam esses jovens, ao mesmo tempo em que o campo se mostra
polifônico, traz ambivalências e provoca tensões – reside um dos principais desafios desta
pesquisa. Não se pretende tomar as festas rave como algo dado, mas refletir sobre as falas,
e sobre os ruídos e as rasuras que têm origem na sua prática. Nesse sentido, não ser
“nativo” teve papel que considero importante.

O fato de não frequentar raves anteriormente à pesquisa permitiu estranhar alguns


elementos que não são evidentes. Não (re)conhecer vários dos signos permitiu ir a campo
com a consciência de quem não sabe. Muitas vezes, as repostas para minhas perguntas
eram de que o “sentido é que não há sentido”, enquanto outras surpreendiam pelas
relações e estranhamentos, por caminhos distintos. Constance Classen (1997) defende
que, por meio dos sentidos do corpo, criam-se os sentidos do mundo. Para a antropóloga
(1997: 401, tradução minha11),

há muitas maneiras pelas quais a percepção sensorial pode estar imbuída de


significado cultural. Os próprios sentidos podem estar ligados cada um a
diferentes formas de associações, e certos sentidos têm maior valor do que
outros. Sensações particulares – uma cor vermelha, um mau cheiro, um sabor
doce – podem ter valor simbólico em diferentes contextos.

Em raves, a baixa iluminação e a opção pela “luz negra” modificam e intensificam o uso
dos demais sentidos corporais em detrimento da visão. Além disso, o uso de psicoativos,
sintéticos e/ou naturais, altera a percepção e a forma de ver o mundo – mas também de
ouvir, de perceber cheiros, de sentir gostos e de abraçar o outro. Em relação ao uso dos
sentidos para a construção do texto etnográfico, a antropóloga María Elvira Díaz-Benítez
(2007: 94, grifos da autora) aponta que

11
No original: “There are many ways in which sensory perception may be imbued with cultural significance.
The senses themselves may each be linked with different trains of associations, and certain senses ranked
higher in value than others. Particular sensations a red colour, a foul odour, a sweet flavour – may have
symbolic value in different contexts.”

60
existe também na antropologia mainstream e na prática etnográfica uma
tendência a valorar o referencial falado. Tem-se ponderado o poder e a
importância do que é dito, o significado das palavras dentro de um contexto
cultural e a força que estas têm para transformar sociedades.

Porém, no ambiente musical da rave, a audição está voltada para a música. Em contextos
assim, realizar entrevistas é, também, correr o risco de interromper momentos
significativos. Mais do que dificuldades técnicas, uma sensação de estar incomodando –
ou, em algum caso, o receio de estar interrompendo algo – impediu a captação em áudio
de entrevistas com os participantes. Cabe pontuar o lugar da palavra nestes eventos. Para
Abreu (2011: 8, grifos da autora),

a palavra é marginal na rave, e por vezes acionada de maneira reticente, ela


tem, ao mesmo tempo, uma dimensão especial nesta cena, qual seja, a da
conversa descomprometida nas rodas de amigos. A oportunidade de ‘ficar de
papo furado’ (ou ‘ficar de papo pro ar’) constitui uma possibilidade na rave
que é bastante valorizada por seus integrantes, especialmente pelo contraste
que oferece à idéia de que, na correria da vida diária, as pessoas pouco
conversam.

Os festivais, entretanto, com seus vários dias de duração, são mais propícios para
conversas. Nesses eventos, realizei algumas entrevistas mais longas, aproveitando
espaços como lanchonetes, feiras mix, chill out. Tanto raves como festivais geraram
diversas conversas informais, momentos descontraídos, encontros com amigos.

61
Imagem 12: Ponto de vista da pista de dança

Fonte: Vagner Barreto

Segundo Abreu (2011: 8, grifo da autora), a pista de dança nas raves não configura local
para o diálogo, mas privilegia a dança, a performance, o frenesi coletivo. As conversas,
quando ocorrem, circulam por “lembranças agradáveis, pequenas histórias
engraçadas, ou curiosas, sobre pessoas do grupo de amigos e do próprio grupo”. Porém,
para a antropóloga, ao se afastarem da pista, os temas podem girar em torno da

competição desenfreada, da ansiedade e da falta de sentido da vida cotidiana


na cidade para elogiar a vivência de “comunidade” na rave. Falava-se também
da correria e da solidão no dia a dia do trabalho durante a semana, a fim de
reiterar a satisfação em poder conversar sobre Deus, duendes, mistérios
esquecidos, curiosidades de outros mundos, ou seja, algumas das coisas
consideradas como “realmente importantes”.

Ainda que as entrevistas em profundidade tenham sido realizadas em outros momentos


que não o das festas, o trabalho de campo nas raves foi essencial para observar algumas
das imagens que irrompem de seu interior. Como estratégia, para não influenciar as
respostas durante as entrevistas acabando por ouvir confirmação/reprodução de afirmação
que havia feito, optei pelo mínimo possível de questões. Para facilitar a interlocução

62
solicitei, quando possível, que os participantes mostrassem fotografias de sua participação
em festas rave. A estratégia foi pedir que falassem sobre motivos da escolha daquelas
imagens e o que elas apresentavam sobre a dinâmica da festa. A técnica se mostrou
extremamente valiosa e gerou uma série de descobertas que inicialmente não estavam
evidentes. Algumas das fotografias escolhidas pelos interlocutores compõem esta
pesquisa. Mais do que “figuras”, as imagens são compreendidas na pesquisa como uma
linguagem que tece aproximações com o texto, sem, necessariamente, complementá-lo.
Uma montagem em forma de choque que, às vezes, pode justapor elementos conflitantes,
mas presentes em campo.

Da mesma forma, acompanhei publicações e postagens realizadas em grupos e eventos


no Facebook – por entender a importância que essa mídia ocupa na comunicação entre os
participantes. É no Facebook que se divulgam os eventos; que se organizam as excursões;
que se postam as fotografias dos locais de realização dos eventos; que se compartilham
os mapas e as trilhas para chegar nos locais; que se pedem as fotografias após a realização;
que se avisam sobre coisas perdidas, encontradas ou esquecidas nas raves. Porém,
especialmente para esta pesquisa, é interessante a forma como o Facebook serve de mural
para declarações – carregadas de sentidos – realizadas antes, durante e após festas e
festivais. Seguem alguns depoimentos possíveis de serem encontradas na rede:

“O que dizer sobre essa Planet? Quem não foi perdeu...

Fazia tempo que não via a galera de Pelotas [RS] e Rio Grande [RS] tão inspirada em...
que pista que galera que festa!!!” (Diário de campo, transcrito no outono de 2016).

“Aaah, se eu pudesse, voltaria no tempo. Quanta alegria, quanto amor! Tô sentindo dor
no corpo, até hoje, mas tô com o espírito tão leve, tão tranquilo. No final, é isso que vale
a pena! E a minha família está crescendo, aos pouquinhos...” (Diário de campo, transcrito
na primavera de 2016).

“[...] A Fluctus representa uma grande oportunidade para aqueles que procuram um
ambiente diferente do que nos trazem normalmente. Nos mostra que a essência tá no ser,
e não no parecer. Ambiente que nos eleva a um nível tão inacreditável, que tudo o que
resta é a sensação de humanidade com o outro. Ninguém está acima, ninguém fica pra

63
trás. Todos se contagiam com a beleza da simplicidade, e lado a lado conseguimos
ultrapassar as barreiras que o ego impõe, barreiras que fazem alguns pensar que estão
além do resto por escolherem outros caminhos. Que venham as próximas Fluctus, com
cada vez mais força, porque o amor envolvido nesse núcleo já transborda e nos faz sentir
acolhidos e amados, independente de elo. Obrigada por mais um resgate. Obrigada por
esse dia, pelos encontros e reencontros. Obrigada por cada sorriso que tornou nosso dia
melhor. Só obrigada!” (Diário de campo, transcrito no outono de 2016).

Por meio do Facebook, os fluxos da “tribo global” (ABREU, 2011) se (re)únem. Imagens
lúdicas de sonhos são marcadas por “encontros e reencontros”. Descobre-se uma festa
carregada de experiências, onde “ninguém está acima”. Um mural online onde a
experiência rave se manifesta através dos sentidos do corpo. “Tô sentindo dor no corpo,
até hoje, mas tô com o espírito tão leve, tão tranquilo”. Uma família, onde “ninguém fica
para trás”.

A placa citada no início deste ensaio, talvez, seja uma pista – e uma inspiração à corrente
ausência de sentido. Nos discursos que os participantes produzem sobre si, “se faz sentir,
faz sentido”.

2.4 Viagens

Os ensaios que compõem a dissertação consideram a Antropologia para além de um modo


de pensar, mas também como um modo de fazer que afeta, não apenas nossa escrita, mas
também nossa presença no mundo. Outra implicação trazida pelo trabalho antropológico
são as dimensões éticas decorrentes de fazer pesquisa em ambientes festivos, nos quais
algumas práticas são socioculturalmente contraditórias. Na tentativa de preservar as
informações, bem como dar liberdade às falas dos interlocutores sobre temas delicados,
optei por alterar os nomes de todos os participantes, consciente do debate a respeito da
utilização do anonimato no texto antropológico. Como reflete Fonseca (2008: 40),

sendo a análise antropológica parte integrante do projeto moderno, o


antropólogo deve inevitavelmente incorporar a tensão entre sua formação
intelectual e sua exposição a visões dissonantes do mundo. Nessas
circunstâncias, não é surpreendente constatar que as inquietações éticas e

64
políticas do exercício etnográfico, em vez de serem solucionadas com a
maturidade do pesquisador, tendem a crescer.

Em campo, muitos interlocutores não demonstraram preocupação com a alteração de seus


dados pessoais. Inclusive, solicitavam a utilização dos nomes verdadeiros como forma de
comprovar que não acreditavam estar fazendo “nada de errado” 12. (Diário de campo,
registrado no inverno de 2012 e verão de 2016). Entretanto, preferi alterar todos os nomes,
atento às consequências que algumas informações podem causar. Optei, também, por não
colocar as datas dos registros de diários de campo presentes aqui, como forma de respeito
às informações compartilhadas e por entender que a supressão das datas, substituídas
pelas estações do ano, não altera o conteúdo dos relatos, nem impede a compreensão das
situações descritas, enquanto situa os dados no tempo.

Ao longo da pesquisa reconsidero, sem descartar, algumas das afirmações realizadas


anteriormente em minha graduação (RODRIGUES, 2012). Em 2011 e 2012 enveredei
para o interior de Caxias do Sul e de algumas cidades próximas com um caderno de campo
e o desejo de conhecer aquelas festas. A “colônia” à qual me referi é uma forma de tratar,
na Serra gaúcha, na área rural dos municípios. Para muitos moradores da área urbana, a
colônia é o local de descanso, de reencontro com familiares, com dialetos, com comidas
típicas (MENASCHE, 2010), mas, também, com festas rave.

Como festas, ao menos para a Antropologia, começam muito antes de seu início, testei
algumas formas de ir até os eventos, experimentando diferentes modos de chegar e de
partir. Nesses modos de ir e vir, tive oportunidade de vislumbrar dinâmicas que eram
desconhecidas. Em alguns casos, fui e/ou voltei para os locais das festas de ônibus, em
excursão ou de carona. Com grupos de amigos ou com pessoas que eram, até então,
desconhecidas. As excursões apresentaram-se como intensos momentos de conversa e
preparação.

12
De acordo com Cláudia Fonseca (2008: 41): “Pelo contrário, mascarar nomes de pessoas ou de
determinada comunidade pode trazer a mesma impressão que trazem os rostos borrados ou as tarjas pretas
cobrindo os olhos que vemos em filmes e fotos de jovens infratores. Parece designar justamente as pessoas
que têm algo para esconder.”

65
Imagem 13: Festa como (re)encontro

Fonte: Camila Rauber

Todos esses momentos geraram conhecimento sobre as raves. Conforme registro do


Diário de campo:

Estou esperando, próximo às porteiras que dão acesso ao festival, o ônibus que faz o
transporte entre o camping e a rodoviária de [nome da cidade]. Uma grande caminhonete
preta sobe pela estrada que leva até a pista de dança. É uma das filhas do dono do local,
que conheci ao longo da festa, enquanto ela atendia no restaurante. Ela e o companheiro
perguntam se eu quero carona até a rodoviária. Aceito, já vendo nisso uma oportunidade
de conversar sobre o festival.

No caminho, comentamos algumas amenidades para quebrarmos o gelo. Eles também


parecem curiosos. Perguntam se já conhecia a cidade e a região. Animam-se quando eu
falo que já morei em Caxias do Sul/RS e o assunto permanece neste tema, por um tempo.

66
Pergunto se eles conheciam festas assim e o que estavam achando. Fico com um pouco
de receio, mas sou surpreendido pela resposta. Animadamente, ambos comentam que
ficaram com medo no início, por não saberem do que se tratava uma rave, mas estão
adorando. Já fazem planos para receber o evento no próximo ano.

Ambos comentam como os participantes são muito educados, calmos; que não tiveram
problema algum durante os dias de evento, ao contrário do que ocorre, às vezes, durante
os acampamentos no verão. Afirmaram, também, que os participantes “não reclamam de
nada”, cuidam para não jogar lixo no chão e apenas fazem fogueiras em locais
permitidos, já que parte do camping é formada por mata atlântica nativa.

Para completar o quadro de impressões, o motorista conta o caso de alguns participantes


que chegaram naquele dia já no fim do almoço, quando havia pouca comida e alguns dos
pratos servidos haviam acabado. Mesmo assim, todos aceitaram comer o que tinha.
“Ficaram até agradecidos!”, riu. (Diário de campo, primavera de 2016).

Em vários sentidos, sigo os rastros das pesquisas desenvolvidas por Abreu (2005; 2011;
2013). Em sua tese, a antropóloga parte do estranhamento em relação à presença de
membros de grupos indígenas em festas rave e festivais de música eletrônica, por meio
de “rituais” e performances realizados ao longo dos eventos. Entretanto, a participação
dos coletivos indígenas, para a autora, ganha ares alegóricos, borrando as fronteiras entre
o ritual e o espetáculo, e acionando o imaginário de longa duração sobre os indígenas. A
antropóloga também percebe e problematiza a relação entre o campo e a cidade, o que
reforça o quanto esses discursos estão presentes e se mostram conflituosos no interior das
festas. Em raves há algo de não resolvido nessa relação. Um certo mal-estar.

Assim, segundo Dawsey (2008: 534),

para se conhecer uma estrutura social, é preciso suscitar um deslocamento do


lugar olhado das coisas. Em momentos de interrupção de papéis, ou de
antiestrutura, sociedades produzem efeitos de estranhamento em relação a si
mesmas. Elas brincam com o perigo. Sob o signo da subjuntividade, fricciona-
se a experiência do real explorando suas dimensões de ficção. Abrem-se fendas
em superfícies endurecidas. Manifestam-se elementos não resolvidos.
Ctônicos. Vulcânicos. No espelho mágico dos rituais, sociedades se recriam,
transformando elementos do caos em universos sociais e simbólicos.

67
Longe de ser uma crítica ao trabalho realizado por Abreu, esta dissertação aponta para o
inacabamento da pesquisa antropológica e para as diversas possibilidades geradas pelo
trabalho etnográfico. Como defende Mariza Peirano (1994: 218),

diferente das outras ciências sociais, dados etnográficos antropológicos


frequentemente são alvo de reanálises. Normalmente a reanálise se dá quando
outro antropólogo descobre um “resíduo” inexplicado nos dados iniciais que
permite vislumbrar uma nova configuração interpretativa. Ou quando um
antropólogo aproxima os dados alheios com questões novas. Em qualquer dos
casos, o que está em jogo é a incompletude ou a abundância etnográfica.

Faz-se notar que as festas rave e os festivais de música eletrônica, mesmo já objeto de
estudo antropológico, ainda têm diversas possibilidades de investigação, com abordagens
que possam lançar olhares sobre seu processo e sua organização, não no sentido de
acabamento e/ou esgotamento do tema, mas, ao contrário, no sentido de inacabamento,
de devir que permeia as performances culturais.

68
CANTEIRO DE OBRAS 3 69
3 DANÇANDO NO ESCURO

“A principal dificuldade de se traçar uma história das raves no mundo, principalmente de

seus primórdios, é o fato de se saber de antemão que as primeiras festas eram realizadas de

forma clandestina e que pouco ou quase nada se deixou registrado sobre elas.”

Yuji Gushiken, Noites-Máquinas

“Bailam corujas e pirilampos

entre os sacis e as fadas.

E lá no fundo azul

na noite da floresta.

A lua iluminou

a dança, a roda, a festa”

Secos & Molhados, O vira

É verão. O dia ensolarado deu lugar a uma noite estrelada. Ainda está quente, embora
já passe das 23h. A festa, que ocorre desde o início da manhã, continua. O local escolhido
fica na região do Porto de Pelotas/RS, próximo a um pedaço tradicionalmente
frequentado para ouvir música, tomar chimarrão...

No dia anterior, notei que o palco estava sendo montado na parte de traz, em um grande
gramado com fim no Canal São Gonçalo, que a 10km do local desagua na Laguna dos
Patos. O Canal demarca os limites espaciais da festa e faz com que exista apenas uma
forma de entrada e saída, através da construção onde funciona o bar. Perto da margem,
debaixo das árvores, foram colocadas as barracas de artesanato dos “hippies”, como
descreveu uma interlocutora da organização, e a banca com comidas.

Durante a festa, percebo que a equipe de segurança que circula pelo local utilizou faixas
para evitar a entrada de pessoas na água. Vejo, em alguns momentos, os seguranças
impedindo, com palavras gentis e sorrisos, grupos de participantes de cruzarem a linha

70
para refrescarem-se na água. Todos desistem, sem insistir, em clima de brincadeira.
Alguns optam por brincar nas gangorras, onde disputam espaço com as crianças.

Pouco depois do meio-dia, uns caras de lancha vêm até bem próximo da margem ver o
que está acontecendo. Um dos homens, com um garoto na garupa, fica com a lancha
parada na água; observa por um tempo; grita para um dos participantes: “Que que é
isso aí?”. O participante, que estava tomando cerveja com amigos na festa, olha, mas
não responde. O homem da lancha fica sem entender, intrigado. Anda mais um pouco
pela água em busca de um melhor ângulo para espiar. Fala algo para o outro, antes de
afastarem-se, mas não consigo ouvir por causa da música.

Próximo à pista de dança, a música eletrônica é intensificada por potentes caixas de som.
Dá para sentir no corpo. Os sons graves do bumbo são permeados por notas mais agudas.
Vozes. Ruídos. Sussurros. Elementos importantes para compor a polifonia da música. Os
sons percorrem o corpo como um choque. O peito vibra com o bumbo eletrônico. Os
participantes ficam em frente ao palco. Os grupos não são delimitados, não se dança em
roda, mas virado para o DJ. As feições de alguns estão escondidas por máscaras de
aliens, de animais, de outros seres fantásticos. Muitos estão com os olhos fechados e os
rostos voltados para cima. Vários usam óculos escuros, mas já é noite. Outros chupam
pirulitos ou mascam o palito de plástico.

Pessoas descalças também aparecem por todos os lados. E dançam. Pulam. Batem os
pés no chão, às vezes tudo ao mesmo tempo. Como se estivessem marchando no mesmo
lugar. Os movimentos diminuem junto com as BPM [batidas por minuto] – até reiniciarem
com gritos de “ca-raaaaaaaaaaaaaaaaa-lho” e pulos quando o DJ retorna com as
batidas fortes. Os braços se movem como que levados pelo vento. Às vezes, ao lado do
corpo ou acima da cabeça, outras em frente ao peito. Cruzam de um lado para o outro.
Mais rapidamente. Mais lentamente. Parecem muito leves, em contraste com as pisadas
duras. O clima quente do verão pelotense deixou o chão seco. O número de pessoas faz
a poeira tomar conta da pista. As roupas estão cobertas por um pó fino, amarelado. Os
calçados e pés estão encardidos. Os rostos queimados do sol. Suados. Ninguém parece
se importar.

71
Quando estou indo embora, perto da meia-noite, uma enorme fogueira é acesa ao lado
da pista com galhos secos que alguém juntou pelo chão. Alguns participantes vão sentar
ou deitar ao redor, enquanto outros brincam com o perigo e dançam próximo ao fogo. A
todo instante, mais galhos são arremessados; levantam labaredas na pira que se formou.
A iluminação laranja criada pelas chamas revela rostos cansados, sorridentes, mas
também cria muita sombra pelo festa. (Diário de campo, verão de 2016).

3. 1 Sob um céu de estrelas

No Brasil, as primeiras festas rave aconteceram nos anos 1990, nas praias de Trancoso,
ao Sul da Bahia. Desde então, as raves mantêm, como cenário e tradição, locais de belezas
exuberantes e se apresentam como uma forma de convivência diversa com a natureza. Os
cenários escolhidos para a realização de festas são, prioritariamente, espaços nos
arredores de grandes cidades, geralmente a algumas horas de distância, sendo por vezes
de difícil acesso. Deep Forest é nome de festa rave.

Na análise de Nathalia Araújo Moreira (2014: 96),

esta ambiência excepcional é criada por meio de uma junção de ingredientes:


cores fluorescentes; luzes negras; instalações artísticas interativas; imagens de
deuses, fadas, duendes, alienígenas; árvores e jardins iluminados; incensos;
placas com mensagens sugestivas; figuras fractais, espaciais e geométricas
projetadas pelo VJ; espaços de relaxamento e meditação; performances de
artistas nus; malabares com fogo; bailarinas dançando no ar em seus tecidos
coloridos; tudo isso somado a exuberantes paisagens naturais e à música
eletrônica psicodélica.

As festas, como aponta a historiadora Mary Del Priore (2000: 8), têm a função de marcar
o calendário humano. Ao mesmo tempo, servem como interrupções desse calendário.
Presentes em todas as sociedades, as festas operam no nível da fantasia, da
permissividade, do travestismo, da inversão; desrespeitam as ordens vigentes, ao mesmo
tempo em que podem seguir protocolos rigorosos. “Ora ela é suporte para a criatividade
de uma comunidade, ora afirma a perenidade das instituições de poder”. Magnitude é
nome de festa rave. As festas são políticas, são religiosas, mas são também simbólicas.
Acredito que, acima de tudo, festas são ambivalentes.

72
Alan, em depoimento realizado em um festival, destaca:

“Boa tarde, ser. Nesse corpo, atuo como Alan, aqui, nesse planeta. Vou contar uma curta
história da transformação na minha vida, neste instante, neste momento que estou
vivenciando. Em fevereiro deste ano, eu pedi demissão da minha empresa. Trabalhava
como eletrotécnico na [nome da empresa]. Levava uma vida sossegada, tranquila, uma
vida que eu tinha desejado, antes. Emprego fixo, salário no final do mês, estável, uma
vida, enfim, sem riscos. Mas eu comecei a notar que aquele era meu outro eu. Trabalhava
todo de cinza. Com equipamentos cinza. O chão da empresa era cinza. E o meu outro
lado era esse aqui que você está vendo, o lado colorido da vida. Com uma Kombi
colorida. Pessoas coloridas. Som. Diversidade.” (Diário de campo, primavera de 2016).

Há algumas décadas, a temática das festas não configurava, a priori, um problema de


pesquisa antropológico. Os estudos de comunidade privilegiavam etnografias entre
indígenas, camponeses, ribeirinhos, com foco nos modos de vida, nas tradições religiosas,
nos laços de família, parentesco, compadrio e nas relações com a sociedade envolvente.
Tidas inicialmente como tema inferior na literatura antropológica brasileira, como aponta
José Guilherme Magnani (2003), as festas passaram a conquistar espaço a partir dos anos
1980, quando atores periféricos foram percebidos pela academia como atores políticos
com destaque social, como descreve Eunice Durham (1988). Nesse momento histórico,
alguns pesquisadores brasileiros passaram a dar mais atenção, mesmo que com resistência
de setores na academia, para a sociabilidade presente nesses momentos de lazer. A partir
desse período, de forma bastante diversificada e nem sempre com pontos comuns, as
pesquisas sobre o tema conquistaram espaço no interior da Antropologia, com o aumento
do número de dissertações, de teses, de dossiês e de livros sobre a temática
(RODRIGUES; RIETH, 2018). Welcome to the future é nome de festa rave.

73
Imagem 14: Camadas de festa

Fonte: Flávio Ribeiro

O interesse pelas festas passou, inclusive, a ser tema de reconhecidos trabalhos para o
campo antropológico, como as obras de Roberto DaMatta (1997), de Rita de Cássia do
Amaral (1998), de Maria Laura Cavalcanti (1998) e de José Guilherme Magnani (2003),
apenas para citar alguns exemplos. Entretanto, segundo Del Priore (2000: 10), “a festa,
tanto no passado quanto no presente, tem sido mais descrita que explicada”.

Amaral (1998: 24), em seu extenso estudo sobre a literatura disponível até o momento
sobre as festas, chama a atenção para como algumas pesquisas podem ter pouca
interlocução. De acordo com a antropóloga,

nota-se a escassez de reflexões teóricas sobre as festas, que geralmente


aparecem como um ponto inserido nos estudos dos rituais ou, mais
propriamente, das teorias sobre a religião. Sendo assim, o “conjunto” de
estudos sobre festas é composto por um farto ajuntamento de subcapítulos,
parágrafos, temas afins nem sempre relacionáveis entre si, dispersos não só em
obras antropológicas, mas, também, filosóficas, sociológicas, históricas,
literárias etc.

Nas análises de Amaral (1998; 2000) e Del Priore (2000), o planejamento de uma festa
inicia muito antes da data de sua realização. Para que ocorram conforme o planejado, faz-

74
se necessário acionar uma série de pessoas e de coisas. Por meio de redes de relações, são
ativados preparativos, arranjos, combinações, improvisações, contatos. Para Amaral
(1998: 38), as “festas parecem oscilar mesmo entre dois pólos: a cerimônia (como forma
exterior e regular de um culto) e a festividade (como demonstração de alegria e regozijo).
Elas podem se distinguir dos ritos cotidianos pela amplitude e do mero divertimento pela
densidade”. Mega Vibe é nome de festa rave.

Festas geram uma pausa em relação ao fluxo cotidiano, um intervalo da rotina. São
momentos carnavalizantes, de convivência em comum, de agrupamento, em que algumas
regras podem ser quebradas, alguns tabus podem ser violados. Homens podem brincar de
serem mulheres. (TREVISAN, 1998; 2002)13. Mulheres podem brincar de serem homens.
Proletários podem brincar de serem patrões. As sociedades olham-se e riem de si. Pulsar
é nome de festa rave.

Conforme John Cowart Dawsey (2006: 2),

provoca-se um deslocamento do lugar olhado das coisas. Olhando-se desde as


margens, elas produzem efeitos de estranhamento. Multiplicam-se
perspectivas. Revela-se a profunda estranheza do familiar. Seja simplesmente
uma forma de alienação, ou seja, à moda de Brecht, alienação da alienação,
festas podem produzir conhecimento. Num lampejo, uma lição atordoante: a
exceção é a regra. Promovem a estultícia? Em suas dobras às vezes também
materializam-se formas surpreendentes de sabedoria. Acima de tudo,
provocam um estremecimento.

Os espaços que recebem raves e festivais devem apresentar características atrativas, que
evidenciem uma saída temporal do espaço urbano e uma transposição para outro espaço,
pois, conforme Abreu (2005: 22), a “peculiaridade da festa é que sua prática marca como
um intervalo em nossa vida ordinária”, em contraposição ao cenário urbano e ao nosso
dia a dia. Psychedelic Soul é nome de festa rave.

Foi da seguinte maneira que o festival Kundalini anunciou no Facebook o local para sua
edição de 2017, em um camping no interior de São José dos Ausentes/RS14:

13
O escritor João Silvério Trevisan tem produzido uma literatura focada nos estudos culturais sobre
masculinidade e travestismo na sociedade brasileira, em obras como Seis balas num buraco só (1998) e
Devassos no paraíso (2002).
14
São José dos Ausentes, a aproximadamente 250km da capital, Porto Alegre, localiza-se na Serra gaúcha,
na região Nordeste do Rio Grande do Sul. Possui pouco mais de três mil habitantes. É considerado um dos
municípios mais frios do País.

75
Imagem 15: Printscreen do post do Kundalini Festival

Fonte: Facebook Kundalini Festival

A organização de uma rave ou de um festival de música eletrônica inclui, além da seleção


dos locais, uma série de transformações e de distribuições pelo espaço. Conforme relatos
da organização do festival Origens Gathering, um mês antes da data de realização do
evento a equipe já havia se mudado para o camping no interior de São Francisco de
Paula/RS, a fim de preparar o local para receber os participantes. Um pequeno
microcosmos que continha, também, restaurante, lanchonete, duas pistas de dança, um
chill out e “feira mix”, com venda de peças artesanais e roupas. Planet é nome de festa
rave.

Jorge, 38 anos em 2016, atuou como DJ, nos anos 1990 e, hoje em dia, organiza festas na
região de Pelotas/RS. Os donos das boates onde trabalhou viajavam para outros estados
e países, de onde traziam informações sobre as festas, mas, também, fitas e discos de
música eletrônica. Nesse período, surgiram alguns nightclubs e boates em Pelotas/RS

76
dedicados ao estilo house, tendo como uma das inspirações a discoteca Ministry of Sound,
de Londres. Sobre as festas, o produtor comenta:

“Eu sempre gostei dessa coisa fora do quadrado da boate. Tu pega esse lugar e
transforma em algo cada vez melhor. No nosso caso, tu coloca um adereço a mais, uma
vida a mais. Colocamos arte, depois colocamos música ao vivo, depois trouxe o cinema,
depois fez uma mostra de artesanato. Então, pra mim, vai se tornando uma minicidade.
Em 2017, vamos fazer um baita dum evento, onde vai ter cinema, praça de alimentação,
vai ter live painting, com os grafiteiros. Eu acho mágico! (Diário de campo, primavera
de 2016).

De acordo com cada contexto, os interiores das festas podem conter elementos que
constituem espaços demarcados para funções específicas. Os chill out, por exemplo, são
locais destinados ao descanso. Geralmente, decorados com tendas, almofadas e colchões,
as músicas costumam ser mais “calmas”, como ambient, jazz ou rock progressivo. Esses
locais também podem ser equipados com alimentos, como frutas, e ter sessões de cinema,
de meditação, de massagem, de cromoterapia, de construção de mandalas, entre outras
atividades.

77
Imagem 16: Pistas da festa

Fonte: Kundalini Festival

Mesmo quando ocorrem em locais mais próximos de centros urbanos, festas rave fazem
uma ocupação diversa da usual, privilegiando espaços como hangares abandonados,
estacionamentos vazios, fábricas deterioradas; locais marginais, reconhecidamente “fora
de uso” para atividades cotidianas. Destituídos de suas atribuições produtivistas, os
espaços passam a servir como palco para a experimentação, para a diversão, para a
brincadeira, mas também para “perder tempo” – algo importante em uma sociedade onde
as esferas do lazer e do trabalho encontram-se delimitadas. Resistrance é nome de festa
rave. Na leitura do antropólogo Massimo Canevacci (2005: 90), em contextos assim, há
uma contravenção à norma, uma vez que

a ex-fábrica está descontextualizada e modificada em interzona do prazer. Um


pedaço moderno da metrópole, nascido para funções produtivistas e colapsado,
é lavado e sujado de novo com códigos arranhados dos Mazinga-trash, por
baixo de uma música techno compulsiva que fragmenta qualquer unidade do
eu (ou do coletivo) e o faz viajar num quase espaço destinado a viver uma única
longa noite.

É importante destacar que as festas rave geram, de distintas maneiras, várias alterações
nos locais escolhidos para sua realização. Isso pode ser com o uso de placas penduradas
nas árvores ou nos postes com mensagens escritas, geralmente, com tinta fluorescente,

78
identificando espaços, ou com mensagens de boas-vindas; com o uso de tecidos coloridos,
também tingidos com cores fluorescentes, para a decoração da pista de dança ou esticados
para formar sombra; com a montagem de palcos e estruturas decoradas que servirão para
receber as apresentações; com a instalação de tendas, ou lonas, como as de circos, para a
proteção contra o sol e/ou chuva; com o transporte de equipamentos de refrigeração para
a venda de água e bebidas, como cerveja, energético, catuaba, whisky, entre outras; com
a instalação de banheiros químicos ou a construção de banheiros em número suficiente
para atender um público que pode chegar, em alguns casos, a 35 mil pessoas; com o
acionamento de várias caixas de som, que lançarão batidas intensas pelas próximas horas
ou dias; com o funcionamento de geradores de energia para os equipamentos elétricos de
toda ordem; com a presença de centenas de carros e ônibus de excursão para o transporte
dos participantes; com a chegada de milhares de jovens de várias partes do País e do
mundo com suas barracas; com a produção de vários quilos de detritos, como copos
descartáveis e garrafas plásticas de água mineral, consumidos durante a festa; entre
muitos outros elementos que demarcam a ocupação espacial e estética dos lugares de
realização.

Nas palavras de Canevacci (2005: 90, grifo meu),

as raves constituem a confluência fluida e, por excelência, em movimento,


impossível de fixar e situar. Tentar compreender uma das mais criativas e
também dramáticas condições juvenis intermináveis – que se fluidificam
desordenadamente entre metrópoles e comunicação – auxilia-nos a
compreender a crise irreversível do político. Político como universo fixado no
contexto teórico e social do moderno.

Do mesmo modo, é necessário ter em mente que os elementos mencionados são variáveis.
Podem ser combinados e arranjados de inúmeras formas. Em casos específicos, podem
estar ausentes, seja pela falta de recurso financeiro, seja por opção da organização. Em
outros casos, o número de alguns desses elementos pode variar de acordo com a
proporção, o número de dias e a expectativa de público. Chama atenção que esses
elementos, de alguma forma, fazem parte de nosso cotidiano nas cidades.

Com origens incertas, as festas rave chegam de forma midiática ao grande público no
Brasil sob o signo do “uso de drogas” (RODRIGUES, 2012). Apreensões de

79
psicoativos15, especialmente ecstasy e LSD, fazem com que as raves sejam entendidas
por grande parte da população como festas perigosas – retórica que é seguidamente
atualizada por veículos de comunicação. “Surgem áreas de contágio. Espaços híbridos.
Escândalos lógicos.” (DAWSEY, 2006: 2-3). Talvez por isso, milhares de jovens fazem-
se presentes nas festas que ocorrem aos fins de semanas ou próximas aos feriados.
Psytisfaction é nome de festa rave.

Na análise do antropólogo Graham St. John (2010), os festivais eletrônicos movimentam


comunidades de artistas visuais e sonoros, curadores e produtores, de forma sazonal, entre
festas locais e festivais regionais realizados pelo mundo. Sound Vision é nome de festa
rave. Esse trânsito de pessoas inventa referências musicais, faz circular tecnologias de
produção sonora, cria mitos fundadores e revela cenas locais de uma cultura global. A
pesquisa destaca a influência do DJ Goa Gil, presença recorrente no Brasil, onde esteve
nos últimos anos, conhecido como “inventor” do estilo goa trance, que aproxima
elementos da cultura musical oriental e indiana com psytrance. O DJ estadunidense, que
migrou para a Índia, nos anos 1980, participou da realização de festas de música
eletrônica por estrangeiros nas praias de Goa, experiência compartilhada nos fluxos de
pessoas, narrativas e mixtapes pelo mundo.

15
Conforme Maurício Fiore (2013: 1), psicoativo é “o termo científico contemporâneo mais consensual
para definir os compostos, extratos, plantas, pílulas, bebidas, pós, gases, enfim, qualquer excipiente que
contenha moléculas às quais são atribuídas a propriedade de alterar o funcionamento neural, o sistema
nervoso, a percepção ou a consciência humana”.

80
Imagem 17: Reprodução do convite da festa True Goa Spirit

Fonte: Vagner Barreto

Já para Carolina de Camargo Abreu (2005: 27), “a origem das raves não causa muita
discussão nem multiplica versões contraditórias”. Para a antropóloga, “é amplamente
aceita a história de que tudo começou nas férias de 1987 em Ibiza (Espanha), período até
hoje conhecido como ‘o verão do amor’”. Segundo Abreu, foi o momento em que se
percebeu a potencialidade gerada pela combinação entre a música eletrônica, o uso de
psicoativo e pista de dança ao ar livre.

De acordo com Yuji Gushiken (2004: 29, grifo do autor), entretanto, o perigo talvez seja
tentar traçar uma origem para as festas rave, visto que

certamente, houve testemunhas para um início. Essas testemunhas foram bem


poucas, é verdade. Por isso mesmo, provavelmente, nunca se saberá quem
eram essas pessoas e nem se saberá das “festas primordiais” através de seus
depoimentos. Daí a opção por dizer que as raves não têm propriamente uma
origem. Elas têm origens. Têm versões, que simulam explicações.

81
A busca de uma perspectiva histórica sobre o surgimento das raves não é o objetivo deste
trabalho, pois, como lembra Benjamin (1987b), arrumar significa também aniquilar.
Entretanto, é importante notar que, dependendo do contexto, diferentes origens são
suscitadas pelos participantes para justificar ações e escolhas nas festas.

Os primeiros registros de festas rave no Brasil remontam ao início dos anos 1990,
particularmente ao ano de 1995 (ABREU, 2005), nas praias de Arraial D’Ajuda, na Bahia,
motivadas pelo fluxo de estrangeiros para essa região do País. Mais do que um
empreendimento, essas primeiras festas eram a reunião de grupos de amigos, e de amigos
de amigos, com equipamentos improvisados e compartilhamento de psicoativos
sintéticos, trazidos ainda sem fiscalização do exterior.

Na análise de autoras, como Érika Palomino (1999), Carolina de Camargo Abreu (2005;
2011; 2013), Mariana Baldin Camargo (2007), as raves passam a profissionalizar-se já
no início do século 21, mesmo momento em que se tornam objeto de estudos dos
primeiros trabalhos acadêmicos brasileiros sobre o tema. Para Abreu (2011: 42-43, grifos
da autora),

a virada do século coincidiu com o amadurecimento de um processo de


profissionalização e formalização da organização das festas; já que, no início,
a organização das raves era conduzida informalmente por núcleos de amigos
que cooperativamente geriam os eventos. Mudanças em diversos aspectos da
organização e da ideologia das raves puderam ser anotadas: (1) tornaram-se
mais comuns as mega raves, para aproximadamente 10 mil pessoas; (2) a oferta
simultânea de diversas pistas de dança também se tornou mais comum; (3)
institui-se definitivamente a terceirização dos serviços de segurança, limpeza
e atendimento nos bares; (4) surgiram serviços de transporte coletivo para os
eventos; e (5) várias faixas de preço para a compra de ingresso passaram a ser
estabelecidas, dependendo da antecedência na compra e da área de acesso no
evento, já que alguns eventos passaram a oferecer áreas restritas. Ao mesmo
tempo em que o processo de popularização das raves no Brasil ganhou
velocidade, houve uma fragmentação simbólica e sociocultural desse universo.
Ravers e jornalistas instituíram a expressão “segmentação da cena” para
nomear um ponto de inflexão dessas transformações.

Do mesmo modo, no início dos anos 2000, surgem as primeiras mega raves pelo País,
com cinco, vinte e até trinta mil participantes, como a edição da Ecosystem 1.0, conhecida
como “a rave da Amazônia”, que reuniu 35 mil participantes nos arredores de
Manaus/AM, em agosto de 2001, numa grande estrutura de produção, com mais de uma
pistas de dança, área VIP, DJs de diversos países, apoio de organizações como o
Greenpeace e ingressos a R$160,00 para participar dos quatro dias de evento. O aumento

82
do número de participantes gerou, também, a “segmentação da cena eletrônica”; quando
começam a surgir (ou se evidenciam?) distinções socioculturais entre os participantes,
com a criação de festa e boates nas periferias da cidade dedicadas ao drum’n’bass e ao
techno (FONTANARI, 2008). Native é nome de festa rave.

Conforme Clifford Geertz (2008: 7),

o que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve fazer,
naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados –
é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas
sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas,
irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro
apreender e depois apresentar. [...] Fazer a etnografia é como tentar ler (no
sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado,
cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos,
escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos
transitórios de comportamento modelado.

Na perspectiva de Dawsey (2006: 2), em festas “manifestam-se elementos


estruturalmente arredios. Em meio a ruídos, resíduos e ruínas, a vida torna-se mais
intensa. Eclodem formas elementares de erosão social”. Em festas também manifestam-
se tensões, algumas vezes diluídas no dia a dia. Relax é nome de festa rave.

83
Imagem 18: Casa de Cura

Fonte: Flávio Ribeiro

Mas uma dúvida apresenta-se. Como entender a cultura enquanto um manuscrito


estranho, desbotado, cheio de elipses, no sentido apresentado por Geertz, por meio dos
silêncios, dos não ditos, das incoerências, das dúvidas e das contradições que essas
sociedades apresentam? Uma tentativa benjaminiana de responder poderia ser: “Quando
a ‘normalidade’ e a razão se revelam como estados de delírio, não adianta mobilizar
contra o transtorno estabelecido a própria razão alienada” (DAWSEY, 2009: 364).

3. 2 Brincando com o perigo

As possibilidades ensaiadas nesta dissertação são inspiradas em trabalhos como os dos


antropólogos Michael Taussig (1992; 1993), André-Kees de Moraes Schouten (2005),
John Cowart Dawsey (2009), Carolina de Camargo Abreu (2011) e Cláudia Goularte
(2017) na trilha de uma Antropologia Benjaminiana, com destaque para as reflexões do
autor sobre as formas expressivas (1987c; 1987e; 1987g), a modernidade (1987ª; 1987b;
1987d) e a vida na metrópole (2006).

84
A partir da produção de Victor Turner e de Clifford Geertz, Dawsey (2009) encontra
aquilo que se pode chamar de paradigma do teatro dramático na Antropologia. Dawsey
cita as afinidades e os afastamentos existentes entre os trabalhos dos dois autores e a
produção do filósofo e sociólogo Walter Benjamin e do dramaturgo Bertolt Brecht.
Segundo Dawsey, o elemento comum é a centralidade do teatro e da noção de drama no
pensamento e na obra dos quatro autores.

Ao dedicarem-se a uma Antropologia com foco na experiência, Turner e Geertz tecem


afinidades com a obra de Benjamin, visto que a experiência ocupa local de destaque na
obra do autor. Segundo Dawsey (2009: 350), Benjamin, por sua vez, “encontra em Brecht
as manifestações de um abalo: a constatação nos palcos do teatro da natureza insólita da
experiência contemporânea”. Benjamin (1987c: 81) vê em Brecht um teatro épico que
“não reproduz condições, mas as descobre. A descoberta das situações se processa pela
interrupção dos acontecimentos”.

Na eliminação da quarta parede, que separa o drama encenado no palco do público que o
assiste, Brecht expõe aos expectadores o teatro como um teatro. O que mantém o fascínio,
quando sabemos que o drama não passa de uma encenação? Em um teatro assim não há
espaço para ilusões. O exercício proposto pelo autor, talvez, seja explorar o que nos faz
acreditar no teatro, mesmo após os atores-narradores exporem aquilo que se passa nos
bastidores da cena. Logo no início da peça A exceção e a regra (BRECHT, [1929/1931]
1990: 132), escrita e revisada pelo autor no início da década de 1930, o público ouve a
seguinte narração:

OS ATORES/ Agora vamos contar/ A história de uma viagem/ Feita por dois
explorados e /por um explorador./ Vejam bem o procedimento desta gente:/
Estranhável, conquanto não pareça estranho/ Difícil de explicar, embora tão
comum/ Difícil de entender, embora seja a regra./ Até o mínimo gesto, simples
na aparência,/ Olhem desconfiados! Perguntem/ Se é necessário, a começar do
mais comum!/ E, por favor, não achem natural/ O que acontece e torna a
acontecer/ Não se deve dizer que nada é natural! / Numa época de confusão e
sangue,/ Desordem ordenada, arbítrio de propósito,/ Humanidade
desumanizada/ Para que imutável se considere/ Nada.

Segundo o teatrólogo Anatol Rosenfeld (1985), ao assumirem o papel de narrador, os


atores não deixam, necessariamente, seus papeis, mas distanciam-se desses. Nesse
movimento, para o teórico, ocorre aquilo que pode ser descrito como “efeito de
estranhamento/alienação” [Verfremdungseffekt] em relação ao que se passa no palco. Ao

85
narrarem a ação, os atores buscam manter o público lúcido frente à obra que lhe é
apresentada. Desta maneira, a obra de Brecht diferencia-se daquilo que o autor chama de
“teatro burguês”. (ROSENFELD, 1985). Para Brecht, o que ocorre no teatro burguês é
uma catarse, por meio das emoções suscitadas junto ao público na relação com o drama
encenado. Porém, o que Brecht busca é o efeito contrário: levar a emoção para o nível
racional. Logo, a tensão visa ao desenvolvimento da obra, não apenas seu desfecho, e
percorre todos os momentos do teatro épico do autor.

Na perspectiva de Rosenfeld (1985: 151),

o que há muito tempo não muda, parece imutável. A peça deve, portanto,
caracterizar determinada situação na sua relatividade histórica para demonstrar
a sua condição passageira. A nossa própria situação, época e sociedade devem
ser apresentadas como se estivessem distanciadas de nós pelo tempo histórico
ou pelo espaço geográfico. Desta forma, o público reconhecerá que as próprias
condições sociais são apenas relativas e, como tais, fugazes e não “enviadas
por Deus”.

Benjamin, que foi leitor e amigo de Brecht, vê a aproximação de uma “tempestade


chamada progresso” (1987a) com assombro, por perceber nas novas formas produtivas a
possibilidade do fim da narrativa e do empobrecimento da experiência: “Quem encontra
ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas?”. De acordo
com o autor (1987d: 114-115),

está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que
entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez
isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os
combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em
experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que
inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham
experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho.
Porque nunca houve experiência mais radicalmente desmoralizadas que a
experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica
pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos
governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por
cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente de tudo, exceto
nas nuvens, em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões
destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano.

Geertz (2008), assim como Benjamin, lança sua atenção para eventos cotidianos, restritos,
temporais e efêmeros. Porém, para o primeiro, o que está em questão são os significados
das práticas culturais, partículas de comportamento onde brotam possibilidades para
contemplar o todo, por meio de sua parte. Entretanto, para o segundo, a ausência de

86
significados irrompe como uma consequência da modernidade. De acordo com Benjamin
(1987f: 203),

cada manhã recebemos notícias de todo o mundo, e, no entanto, somos pobres


em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam
acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que
acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação.
Metade da arte da narrativa está em evitar explicações.

Com foco na suspensão dos papeis sociais e na interrupção do cotidiano, Turner (2005:
179-180), por sua vez, entende que

na maioria das sociedades pré-industriais, essa busca árdua pelo significado foi
poderosamente reforçada pelos valores culturais coletivos que ofereciam às
nossas faculdades cognitivas algum suporte ancestral, o peso de um passado,
senão ético, pelo menos legitimado consensualmente. Nos dias de hoje,
infelizmente, a cultura insiste que devemos assumir o fardo pós-renascentista
de elaborar cada significado por nós mesmos, um de cada vez, sem ajuda dos
outros, a menos que escolhamos um sistema tecido por outro indivíduo cuja
legitimidade coletiva não é maior que a nossa.

Porém, em uma leitura benjaminiana da experiência, aquilo que é extraordinário passa a


ser visto como cotidiano e aquilo que é cotidiano passa a ser estranhado como
extraordinário. Estados de exceção passam a ser a regra. “Ilumina-se nesses palcos o lado
cotidiano do extraordinário” (DAWSEY, 2005c: 30). No teatro épico de Brecht, ator e
público se olham nos olhos. Nos bastidores da cena, ambos se reconhecem como iguais,
em estado de abalo diante do estranhamento de um extraordinário cotidiano.

Dawsey (2009), ao analisar o círculo hermenêutico proposto por Geertz, entende que esta
perspectiva propõe um percurso que vai do familiar para o desconhecido e do
desconhecido para o familiar. Nesta articulação, o manuscrito “estranho, desbotado” é
revelado por meio do texto antropológico – arranjado de tal forma que os fenômenos
passam a ser entendidos e significados pelos leitores. O resultado disso não deixa de
apresentar certa coerência, de fazer sentido. De acordo com o antropólogo (DAWSEY,
2009: 354),

enfim, os dramas que ganham vida nos escritos de Geertz também parecem
reproduzir o movimento característico dos rituais de passagem, envolvendo
momentos de “separação”, “transição” ou “liminaridade” e “reagregação” ou,
conforme a versão desdobrada do “drama social”: “ruptura”, “crise e
intensificação da crise”, “ação reparadora” e “desfecho”.

87
Ou seja, trata-se de um ritual de passagem, conforme modelo clássico descrito por Arnold
Van Gennep (2008). Parte-se do cotidiano para o extraordinário e do extraordinário para
o cotidiano. Mas como, nesta pesquisa, falar do extraordinário da festas rave como
cotidiano? “Em elipses, onde as narrativas parecem desmanchar, há indícios de histórias
que ainda não vieram a ser.” (DAWSEY, 2013b: 204).

Imagem 19: Festival iluminando a noite

Fonte: Flávio Ribeiro

Na trilha das reflexões de Dawsey (2013a: 304) sobre o trabalho de Geertz,

no ensaio sobre as brigas de galos, porém, o choque se produz no movimento


em direção aos contextos. Contextos se desarrumam. Na sobreposição de
textos, revela-se um contexto carregado de tensões. Nessa história, balineses
produzem um efeito de estranhamento em relação a eles mesmos. Impedindo
que a briga de galos seja lida simplesmente como um texto familiar, evitam a
naturalização da experiência balinesa. Brincam com o fogo. Nem familiar, nem
exótico. Inquietante. Um paradoxo de tradução: quanto maior o conhecimento,
maior o estranhamento. Quanto maior a familiaridade, maior a inquietação.
Num registro balinês: “eu é um outro”. O balinês revela-se a si mesmo como
outro.

Para Benjamin (1987d), esfregando os olhos, a humanidade se reconhece em um sonho


como um sonho. De certa forma, o extraordinário, para onde os participantes retornam

88
após o cotidiano das raves, quando olhado de longe, é estranhado pela “falta de sentido”,
alegação recorrente em campo. Dreams é nome de festa rave.

Carlos, que participa na decoração de festas e festivais, afirma o seguinte:

“Se é para fazer de uma forma distorcida, não faz. A gente percebe que quem está fazendo
o evento acontecer são pessoas que acreditam na ideia. Isso aqui é muito energia para,
simplesmente... sabe, uma pessoa. Não, é uma ideia. Eventos desse formato aqui são uma
ideia. Só que essa ideia só é construída por várias pessoas. E só acontece porque é uma
ideia, da mesma forma que que aquela ali é uma ideia, da mesma forma que a árvore é
uma ideia. Só que essas ideias só acontecem porque elas conseguem se transmitir para
várias pessoas. E as pessoas vão lá e desenvolvem a ideia. A cena que eu estou
visualizando nesse momento é isso. Então, as ideia estão vindo de vários lados e as
pessoas estão acreditando nela ao ponto de convencer outras pessoas. E elas estão indo
lá, também. ‘Então vamô fazer junto, então’. Acho que é a única forma de conseguir:
agregar. Porque têm muitas pessoas que ficam presas ao estilo musical, e, tá, beleza. É
uma definição, mas tu não pode querer afirmar que só essa definição funciona. Isso aqui
é uma coisa multi. Multicultural, é multissensorial. Tu tem que aceitar que a gente vive
um processo que não é tridimensional, ele é multidimensional. [...] É multidimensional,
só que a gente não tá apto a se permitir e enxergar, né. E onde que entra a
multidimensionalidade? Na frequência. E a frequência? Vem da música. Como que tu
transmite para as pessoas? Através da natureza, da decoração, é tudo. É uma peça de
teatro. A definição simples é essa: é uma peça de teatro.” (Diário de campo, primavera
de 2016).

89
Imagem 20: Pedaços da cidade no campo

Fonte: Vagner Barreto

Apoiado em Dawsey (2009: 355), reconheço que

trata-se de uma aposta metodológica: quanto maior a obscuridade daquilo que


se toma como objeto de investigação, maior a intensidade de uma iluminação
final. O procedimento hermenêutico surge como um ato de risco, levando o
intérprete a defrontar-se com abismos, nos lugares mais ermos, onde o outro
se apresenta em toda a sua estranheza. Porém, justamente desse lugar olhado
das coisas, onde as possibilidades de compreensão parecem ser mais remotas
e o sentido das coisas mais tênue, procura-se reconstituir o cosmos. De novo,
algo aqui nos faz lembrar dos ritos de passagem: a saída para um lugar distante;
a experiência de um estranhamento profundo e, finalmente, a volta para o lugar
familiar que se ilumina com intensidade maior.

Olhar para a vida nas cidades, desde as festas rave, não deixa de gerar alguns impactos.
“Às margens das margens, ouve-se um abalo sísmico. Fendas se abrem.” (DAWSEY,
2008: 555). Segundo Turner (2005: 177, grifo do autor),

de todos os estudos e ciências humanas, a Antropologia é a que está mais


profundamente enraizada na experiência social e subjetiva do investigador.
Nela, toda avaliação tem como referência o sujeito, toda observação é
finalmente apreendida “na batida do pulso”. Evidentemente, muitas coisas
podem ser mensuradas, consideradas, contadas e submetidas à análise

90
estatística. Porém, todos os atos humanos estão impregnados de significado, e
significado é difícil de ser mensurado, embora possa ser compreendido, mesmo
que apenas de modo fugaz e ambíguo.

Este espaço para as dimensões estruturalmente conflitantes das sociedades segue uma
tradição da qual Turner faz parte, via Escola de Manchester, liderada por Max Glukman.
Nessa perspectiva pode-se pensar também a obra de Edmund Leach (1996), com atenção
para os conflitos entre os grupos africanos katchin e chan, no território da Alta Birmânia.
Tal paradigma questiona o modelo Estrutural-Funcionalista, representado principalmente
por Radcliffe-Brown (1989), especialmente na concepção de equilíbrio que algumas
interpretações estruturais-funcionalistas podem carregar. Para Leach (1996: 68, grifo do
autor),

minha conclusão é que, conquanto modelos conceituais de sociedade sejam


necessariamente modelos de sistemas de equilíbrio, as sociedades reais não
podem jamais estar em equilíbrio. A discrepância está ligada ao fato de que,
quando estruturas sociais se expressam sob forma cultural, a representação é
imprecisa em comparação com a fornecida pelas categorias exatas que o
sociólogo, qua cientista, gostaria de empregar.

Equilibrium é nome de festa rave. É interessante estar atento aos discursos, mas também
às performances (TURNER, 1992a) que as festas raves produzem e a como a relação
entre ambos não precisa ser, necessariamente, coerente, visto a ambiguidade das
experiências. Turner, ao ressaltar a predominância da “etnografia da fala” [ethnografy of
speaking], evidencia não apenas a importância da linguagem na reflexão sobre a vida
social, mas como o uso da linguagem é feito. Para o autor, aquilo de não verbal que existe
na comunicação humana também é revelador das estruturas sociais. Para o antropólogo
(1992b), cinco movimentos compõem a experiência: (1) algo acontece ao nível da
percepção, sendo que a dor ou o prazer podem ser sentidos de forma mais intensa do que
comportamentos cotidianos; (2) imagens de experiências do passado são evocadas “com
clareza incomum”; (3) emoções associadas aos eventos do passado são revividas no
presente; (4) o passado articula-se ao presente numa “relação musical”, tornando possível
a descoberta e a construção de significado; e (5) a experiência se completa através de uma
forma de “expressão”. Neste sentido, a performance é a expressão que também completa
a experiência. Uma forma de comunicar. Ex-pressão.

De acordo com Turner (2005: 178),

91
entretanto, é possível que não haja nenhum confronto absoluto entre o passado
e o presente, o passado coletivo e o presente pessoal e existencial. Todo
antropólogo sabe que qualquer campo sociocultural coerente contém muitos
princípios contraditórios, todos consagrados pela tradição.

Nos conflitos e nas tensões sociais, por vezes inconscientes, são originadas algumas das
ações divergentes que podem resultar alianças, mas também rupturas, cisões. Em sua
crítica contra a tentativa de transformar a Antropologia em uma das variantes das ciências
naturais, a obra de Turner volta-se para os ruídos, aqueles elementos estruturalmente
arredios que compõem as relações humanas. Em sintonia, Dawsey (2013b: 72) aponta
algumas questões abertas pela obra de Benjamin, para quem a história é objeto de uma
construção.

Suas perguntas são simples: Como se fixou a narrativa? Como se montou o


contexto? Diante de tantas incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos, como deram-lhe sentido? O que ficou de fora? O que foi
esquecido? Para leitores que não se encontram ou se reconhecem no texto,
onde estariam suas esperanças se não nas elipses e no próprio desbotamento
do manuscrito – se não em tudo que faz com que ele seja visto justamente com
estranheza?

Maria Laura Cavalcanti (2013: 414-415), ecoa a mesma posição, aproximando Mary
Douglas, Edmund Leach e Victor Turner, autores que

renovaram os estudos dos rituais ao tomar como foco a ambiguidade, os


estados intermediários, as contradições, o paradoxo em uma antropologia até
então preocupada com a padronização. Entre eles, contudo, Victor Turner seria
aquele que manteve o foco de interesse permanente e intenso nos símbolos em
movimento e nos sistemas de ação. Turner navegou decididamente na torrente
durkheimiana oriunda da visão do ritual como a própria sociedade em ato [...].

Em 2013, no período em que ocorre o feriado de Corpus Christi, jovens de todo o País,
mas também alguns estrangeiros, deslocaram-se para o interior de Caxias do Sul/RS, no
distrito de Criúva, distante mais de 40km do centro da cidade. Nessa localidade, foi
realizado, durante alguns anos, o Origens Festival. Não bastasse o frio costumeiro do
inverno gaúcho, acentuado na Serra, houve também chuva durante todos os dias do
evento. Isso não pareceu intimidar os participantes, que dançaram ao som da música
eletrônica no meio do barro formado pela junção da celebração coletiva com a água.
Cenas com jovens, literalmente, cobertos de barro dos pés à cabeça foram comuns.
(Diário de campo, inverno de 2013).

92
Imagem 21: Festa de sítio na colônia

Fonte: Flávio Ribeiro

Nesse sentido, as roupas sujas de barro levadas dentro dos carros e dos ônibus após o fim
de uma festa rave ou de um festival – seja nos corpos dos participantes ou em suas
mochilas de acampamento –, carregariam consigo camadas de satisfação frente à
experiência que acabou de ser vivida de forma coletiva e individual? Avonts é nome de
festa rave. Ou as roupas sujas são uma vontade de levar o campo para a cidade, numa
busca pelo inacabamento da festa? Mas o que fica no campo para efetivar a troca? Garden
é nome de festa rave.

Como já foi dito, as festas interrompem o fluxo do cotidiano, produzem utopias (DEL
PRIORE, 2000), criam experiências, geram imagens. Mundo de Oz é nome de festa rave.
No meio do campo, jovens dançam cobertos pelo barro. Conforme Dawsey (2009: 351),
“no espelho mágico dos rituais, caos transforma-se em cosmos, tornando possível a
recriação de universos sociais e simbólicos plenos de sentido.” Nas brincadeiras que as
sociedades fazem a respeito de si, elementos suprimidos e, muitas vezes, não resolvidos,
se revelam. Considero que esses elementos não resolvidos da cultura tenham uma
possibilidade investigativa extremamente importante para os estudos de Antropologia.

93
3.3 Uma história noturna

As possibilidades ensaiadas aqui têm como base a etnografia, forma clássica de pesquisa
antropológica, por acreditar na multiplicidade de modos de fazer que são possíveis com
essa abordagem. De acordo com a antropóloga Mariza Peirano (1994: 209), “consciente
ou não, cada monografia/etnografia é um experimento”. Conforme os apontamentos de
Bronislaw Malinowski (1978: 18-19), no início do século 20,

na etnografia, o autor é, ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador;


suas fontes de informação são indubitavelmente, bastante acessíveis, mas
também extremamente enganosas e complexas; não estão incorporadas a
documentos materiais fixos, mas sim ao comportamento e memória de seres
humanos.

Segundo José Guilherme Magnani (2009: 130), desde os anos 1970, a etnografia ganhou
destaque no Brasil dentro das Ciências Humanas devido à visualização da Antropologia
como um modo de acesso privilegiado para o “entendimento das mudanças sociais,
políticas e culturais que estavam a ocorrer na dinâmica da sociedade brasileira e, mais
particularmente, nas grandes cidades, cenário dos chamados movimentos sociais
urbanos”. Assim, para o autor (MAGNANI, 2009: 131),

essa conjuntura – política, acadêmica, institucional – abriu espaço para estudos


de caráter antropológico sobre a realidade da periferia dos grandes centros,
pois era preciso conhecer de perto esses atores, seu modo de vida, aspirações
– já que conceitos até então em voga tais como “consciência de classe”,
“interesses de classe” e outros não davam conta de uma dinâmica que se
processava no cotidiano. Quem são? Onde moram? Quais são seus vínculos de
parentesco? Em que acreditam? Como passam seu tempo livre? Nesse ponto a
antropologia podia afirmar que estava em seu campo pois, seja no trato com
seu tema tradicional, as populações indígenas, seja no estudo das
“comunidades” ou de grupos étnicos, perguntas desse tipo sempre estiveram
presentes, norteando as pesquisas.

De acordo com Geertz (2008), a etnografia deve ser uma descrição densa baseada na
interação direta com os interlocutores. O antropólogo entende que descrever de forma
densa é também criar contextos, tecer narrativas. O foco reside nos sentidos que são
construídos pelos sujeitos a respeito de suas práticas. Esses sentidos seriam inteligíveis
para o pesquisador por meio de sua inserção em campo – e, na construção narrativa do
autor, por meio de uma capacidade intelectual aguçada própria ao antropólogo em suas
observações. Segundo o antropólogo (GEERTZ, 2008: 7),

94
nos escritos etnográficos acabados, inclusive os aqui selecionados, esse fato –
de que o que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria
construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas
se propõem – está obscurecido, pois a maior parte do que precisamos para
compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma ideia,
ou o que quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da coisa
em si mesma ser examinada diretamente.

Nesse sentido, o indivíduo que pesquisa é, ao mesmo tempo, pesquisado; da mesma forma
que busca dar sentido aos sujeitos, os sujeitos também buscam dar sentido a ele em
campo, próximo àquilo que Benjamin (2006: 465) chama de dialética do flâneur,

de um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por todos, como um
verdadeiro suspeito; de outro, o homem que dificilmente pode ser encontrado,
o escondido. É provavelmente essa dialética que se desenvolve em “O homem
da multidão”.

A descrição de Geertz não deixa de levar em conta as posições sociais que pesquisados e
pesquisadores ocupam em campo. Quando o antropólogo narra sua chegada juntamente
com sua esposa, Hildred, à comunidade balinesa onde realizou pesquisas de campo, fica
evidente a dificuldade de inserção de ambos na rotina da população. Os dois são tratados
como invisíveis. Ignorados como se não existissem. De acordo com o autor (GEERTZ,
1989: 185, grifo do autor),

enquanto caminhávamos sem destino, incertos, ansiosos, dispostos a agradar,


as pessoas pareciam olhar através de nós, focalizando o olhar a alguma
distância, sobre uma pedra ou uma árvore, mais reais do que nós. Praticamente
ninguém nos cumprimentava, mas também ninguém nos ameaçava ou dizia
algo desagradável, o que seria até mais agradável do que ser ignorado. Quando
nos arriscávamos a abordar alguém (e numa atmosfera como essa a pessoa
sente-se terrivelmente inibida para isso), essa pessoa se afastava, negligente,
mas definitivamente. Se ela estivesse sentada ou apoiando-se a uma parede e
não se pudesse afastar, simplesmente não falava nada ou murmurava aquilo
que representa para o balinês uma não-palavra – “yes”. A indiferença, sem
dúvida, era estudada; os aldeões vigiavam cada movimento que fazíamos e
dispunham de uma quantidade enorme de informações bastante corretas sobre
quem éramos e o que pretendíamos fazer. Mas eles agiam como se nós
simplesmente não existíssemos e esse comportamento era para nos informar
que de fato nós não existíamos, ou ainda não existíamos.

Tudo muda após o episódio fantástico em que o casal foge da polícia juntamente com a
população local – durante a realização de uma briga de galos. Mesmo com a proibição
colonial, as rinhas continuavam acontecendo. Ser pego participando trazia duras sanções,
como “confiscar galos e esporões, multar pessoas e até mesmo expor algumas delas ao

95
sol tropical durante um dia, como uma lição objetiva que jamais é aprendida, embora
ocasionalmente, muito ocasionalmente, o objeto da lição morra.” (GEERTZ, 2008: 186).

A partir do momento em que se juntam na fuga com os balineses, Clifford e Hildred


Geertz suspendem seus papeis sociais e são (re)significados pelos balineses. Ambos
chamam a atenção dos espectadores ao não cumprirem com aquilo que era esperado de
um casal que possuía respaldo oficial e não “apresentarem seus papeis”. Ao
acompanharem os balineses em fuga da polícia javanesa e dividirem, ainda que por alguns
instantes, os mesmos medos que os colonizados, ambos passam a serem vistos com
atenção em seus papeis de antropólogos estrangeiros. Vai-se de encontro ao (corpo em
fuga do) outro para ser quem se é.

Desde os anos 1980, a Antropologia tem construído sobre si uma literatura que
problematiza e critica os processos e os efeitos da construção etnográfica sobre o outro.
Para o historiador James Clifford (2008), ao longo do século 20, foi operado um
movimento com a intenção de construir a “autoridade etnográfica” dentro do campo
antropológico. Entre vários fatores, o pesquisador destaca a crença no poder de
observação do etnógrafo e a ênfase que esse sentido teria para compreender o nativo. Ele
(CLIFFORD, 2008: 33, grifo do autor) entende que

a autoridade experiencial está baseada numa “sensibilidade” para o contexto


estrangeiro, uma espécie de conhecimento tácito acumulado, e um sentido
agudo em relação ao estilo de um povo ou de um lugar. Esse requisito é
frequentemente explícito nos textos dos primeiros observadores participantes
profissionais. A suposição de Margaret Mead de poder captar o princípio ou
ethos subjacente a uma cultura por meio de uma sensibilidade aguçada à forma,
tom, gesto e estilos de comportamento, e a ênfase de Malinowski em sua vida
na aldeia e a compreensão derivadas dos “imponderáveis da vida real” são
exemplos destacados.

Wilson Trajano Filho (1989) e Mariza Peirano (1990) apontam que, atualmente, algumas
das críticas, entendidas como “pós-modernas”, integraram-se, bem ou mal, na prática
antropológica. Como defende Clifford (2008: 41),

torna-se necessário conceber a etnografia não como a experiência e a


interpretação de uma “outra” realidade circunscrita, mas sim como uma
negociação construtiva envolvendo pelo menos dois – e muitas vezes mais –
sujeitos conscientes e politicamente significativos.

96
Na análise de Peirano (1994: 209), “o processo de descoberta antropológico resulta de
um diálogo comparativo, não entre o pesquisador e o nativo como indivíduo”, mas “entre
a teoria acumulativa da disciplina e a observação etnográfica que traz novos desafios para
ser entendida”. Conforme Dawsey (2013a: 314, grifos do autor),

a performance se realiza através da montagem de tiras de comportamento ou


comportamento restaurado. Tal como um cineasta faz uso de tiras de filme,
rearranjando ou reconstruindo as tiras num trabalho de montagem, um
performer cria o seu trabalho com o comportamento restaurado.
Comportamento do comportamento (behaved behavior), comportamento
reiterado. Enquanto trabalho de montagem, a performance pode surpreender.
Pode-se fazer uso de um comportamento restaurado tal como se veste ou brinca
com uma máscara ou fantasia.

Assim, o movimento que se busca aqui vai do estranhamento à familiaridade – e


novamente ao estranhamento, partindo de contextos etnográficos em festas rave e das
performances que se desenvolvem nesses espaços. É relevante fazer uma reflexão
antropológica sobre as festas rave que não interprete estas práticas como acabadas,
considerando apenas o momento em que os interlocutores estão nas festas, mas que
tampouco tenha a pretensão funcionalista de contemplar a totalidade das ações
socioculturais dos participantes. A pesquisa lança mão dos dados coletados ao longo do
trabalho de campo, conforme a fragmentação da própria prática social caracterizada pela
rave, para pensar nesses agrupamentos de jovens que se reúnem em torno das festas. De
Boas nas Dunas é nome de festa rave. Nessa perspectiva, segundo Malinowski (1978:
19),

na etnografia, é freqüentemente imensa a distância entre a apresentação final


dos resultados da pesquisa e o material bruto das informações coletadas pelo
pesquisador através de suas próprias observações, das asserções dos nativos,
do caleidoscópio da vida tribal. O etnógrafo tem que percorrer esta distância
ao longo de anos laboriosos que transcorrem desde o momento em que pela
primeira vez pisa numa praia nativa e faz as primeiras tentativas no sentido de
comunicar-se com os habitantes da região, até à fase final dos seus estudos,
quando redige a versão definitiva dos resultados obtidos.

Algumas “praias nativas” também são palco de festas rave e serviram de campo para a
observação e a construção desses ensaios etnográficos que não se pretendem definitivos.
Dentre essas imagens potentes, parecem interessantes especialmente aquelas que dizem
respeito ao campo e à cidade, e à característica dialética que pode ser percebidas entre os
dois.

97
Dentro do ônibus que nos levava para uma festa rave no interior de Rio Grande/RS, entre
várias conversas descompromissadas, alguém comentou a possibilidade de chuva, já que
o dia havia sido nublado. Ninguém, entre as pessoas dos bancos próximos, havia se dado
conta de conferir a previsão do tempo antes de sairmos. Os celulares estavam sem internet
devido ao isolamento da estrada. Taís, amiga com quem estava sentado, teceu um
comentário sobre um festival de que havia participado, no qual choveu quase todos os
dias. No ambiente divertido do ônibus, Diogo, sentado no banco de trás, comentou que
esteve no mesmo festival. Os dois lembraram como era bom dançar no meio da lama, mas
que havia lados difíceis, devido à chuva e ao frio. Chuvas prolongadas podem ser um
grande incômodo em festas e festivais de música eletrônica, além de representarem
dificuldades técnicas e de logística para os organizadores. Nos meses mais frios, esse
risco pode diminuir a chance de alguns participarem das celebrações. Ao mesmo tempo,
dificuldades de toda ordem vividas nas raves e nos festivais viram histórias nos
(re)encontros de amigos na festa e fora dela. Gaia Connection é nome de festa rave.
Comecei a prestar mais atenção na conversa e perguntei se haviam gostado do festival,
mesmo com a chuva. Diogo confirmou sorridente que havia gostado muito, mas, um
pouco mais sério e pensativo, finalizou dizendo que “sempre chega uma hora que o cara
quer ir para casa!” (Diário de campo, primavera de 2016).

Segundo Turner (2012: 220),

os ritos de passagem iniciatórios tendem a “colocar as pessoas para baixo”


enquanto que alguns ritos sazonais tendem a “colocar as pessoas para cima”,
ou seja, os iniciatórios humilham as pessoas antes de elevá-las
permanentemente, enquanto que alguns ritos sazonais (cujos resíduos são os
carnavais e os festivais) elevam aqueles com menos status transitoriamente,
antes de retorná-los às suas condições permanentemente humildes.

São comuns, entre os participantes, falas que afirmam que essas festas operam em uma
lógica distinta da nossa sociedade, na busca de relações que se julgam mais igualitárias,
onde não importariam as diferenças, uma vez que todos e todas fazem parte de uma
mesma “tribo global”. Para Moreira (2014: 30),

os ‘tranceiros’ identificam-se como uma ‘tribo global’, para além das


diferenças sociais, étnicas e culturais. Sua alteridade básica é, muitas vezes
construída por meio das imagens de aliens, enfatizando a condição humana
genérica, sem distinção de cor, idade ou sexo. Utilizam-se da língua inglesa
para articular categorias e vocabulário supranacionais. Elabora-se, a partir

98
disso, uma festividade globalizada, com características que transcendem as
fronteiras, criando mercados e redes articuladas num âmbito mundial.

Dialeticamente, nessas festas também se produz um discurso a respeito da cidade,


geralmente ressaltando aspectos negativos associados a ela, como a poluição, o ritmo
acelerado de vida, o excesso de trabalho, a solidão. Paradise Lost é nome de festa rave.
Logo, é interessante refletir: que campo e que cidade esses discursos e essas performances
constroem? O que isso diz sobre nossa sociedade?

Em conversa na margem da pista de dança de um festival de música eletrônica na Serra,


Fabinho, que participa de festivais há alguns anos, ressaltou que tais momentos
representavam a libertação da sua rotina, sempre associada a cálculos e números. Fazendo
um gesto para os lados, abrangendo a clareira entre as árvores onde a pista principal estava
colocada, o engenheiro afirmou: “Isso é o mundo real!” A seguir, listou as características
positivas que havia na convivência coletiva ao longo daqueles dias no festival. Para
Fabinho, o respeito entre as pessoas e o amor pela música eram os elementos que
mantinham todos unidos. O “real” na fala de Fabinho é categórico. (Diário de campo,
inverno de 2012). Magic Island é nome de festa rave.

Lembro que, naquele momento, a afirmação de Fabinho soou estranha, me deixou


incomodado. Como aquele grupo dançando no meio do campo poderia ser o “mundo
real”? Terra do Nunca é nome de festa rave. Para mim, a frase soava como uma
brincadeira, ou, acima de tudo, a afirmação engajada de um participante. Eram as minhas
primeiras imersões em campo, um mundo inesperado. A pista de dança principal do
festival foi aberta após um ritual, realizado à noite. Os participantes foram se juntando ao
redor de uma fogueira, que, pela ausência de lâmpadas, ganhava destaque na escuridão
entre as árvores, iluminava nossos rostos e nos aquecia do frio – que em uma das noites
chegou a -2ºC e deixou nossas barracas cobertas de geada. A música da segunda pista,
onde estava colocado o chill out, parou. O céu estava limpo e estrelado. O único som que
ouvíamos, além dos insetos, era dos tambores tocados pelos participantes que estavam à
frente da abertura, acompanhado por um canto em idioma que não consegui identificar.
Era a primeira noite, e muitos participantes ainda não estavam acampados, optando por
comprar ingresso apenas para o fim de semana, pois o festival tinha quatro dias de duração.
Todos estavam muito próximos e no ar tinha um cheiro de pau santo queimado. Nos três
dias seguintes, a pista foi palco para dezenas de DJs, de várias partes do Brasil e do mundo.

99
Ao fim do festival, quando retornei para meu apartamento em Caxias do Sul, a primeira
notícia que li foi a de uma idosa de 87 anos que havia matado a tiros de calibre .38 o
homem que tentou entrar à noite em sua residência – um prédio pelo qual eu passava,
diariamente, a caminho da Universidade, em uma das principais avenidas da cidade. “O
mundo oficial se empenha em criar uma realidade mágica”. (TAUSSIG, 1993: 26).

Na ocasião, anotei no meu caderno de campo: “Deveria ter ficado na rave!” Nature
também é nome de festa rave.

3.4 No vale da Utopia

Ao longo da sua história, as raves privilegiam os flyers como a forma de divulgação,


como já foi destacado em outras pesquisas (ABREU, 2005) (NUNES, 2010)
(RODRIGUES, 2012). Nesse sentido, esse meio de divulgação costuma ser planejado por
artistas que façam parte da cena eletrônica, por estarem inseridos nos signos que são
importantes para essa cultura. Um exercício de imaginação, de criação, de inscrição, que
pode incluir deuses, aliens, praias desertas, fogos de artifício, animais selvagens.

O portal britânico Phatmedia16 cumpre, nesse sentido, um papel importante de repositório


e memória coletiva desses eventos, ao catalogar e organizar uma infinidade de flyers de
festas rave. No portal, é possível encontrar artes gráficas produzidas desde o início dos
anos 1980, bem como data, local, localização, gênero musical, organizador do evento,
entre outras informações.

16
Disponível em: <http://www.phatmedia.co.uk/>. Acesso em 27. dez. 2017.

100
Imagens 22 e 23: Frente e verso de flyer da festa Junglism (1992)

Fonte: Phatmedia

101
Tropical Flower é nome de festa rave. Conforme Dawsey (2005a, 2005b, 2005c, 2009),
montagens baseadas na aproximação de imagens aparentemente distantes, têm o potencial
de f(r)iccionar estruturas sociais. De acordo com o autor (2005b: 173), a partir da
Antropologia da Experiência de Turner,

nos substratos mais fundos do entretenimento e dos novos gêneros de ação


simbólica, Turner descobre as fontes do poder liminar. As formas expressivas
que germinaram após a Revolução Industrial também propiciam manifestações
do caos criativo, capazes de surpreender, com efeitos de estranhamento, as
configurações do real, energizando e dando movência aos elementos do
universo social e simbólico. Embora estejam às margens de processos centrais
de reprodução da vida social, estas expressões liminoides apresentam um
potencial ainda maior do que as formas arcaicas para promover a
transformação das relações humanas.

No ano de 2015, foi realizada em Rio Grande/RS a festa A Despedida da Fortaleza,


organizada pelo núcleo VII:XV. A expressão núcleo, utilizada aqui em seu sentido êmico,
diz respeito a grupos de jovens que apostam em uma construção coletiva de festas e
festivais. São constituídos por diversos sujeitos que não desempenham, necessariamente,
funções específicas, mas cumprem tarefas e trabalham nas mais variadas etapas do
evento, valendo-se de seus conhecimentos técnicos, mas também de suas redes.
(ORTELADO, 2004). Opõem-se, assim, aos modelos estruturados e organizacionais –
que, tradicionalmente, têm uma estrutura organizacional definida – ao serem flexíveis e
fluidos, plurais e descentralizados. Uma mesma pessoa pode movimentar-se por diversos
núcleos, sem que isso configure uma contradição, pelo contrário, os próprios núcleos
costumam apoiar-se. Por exemplo, DJs associados a um núcleo tocam em festas
organizadas por outros e se ajudam na divulgação, com banners expostos nas festas e
presença de integrantes de núcleos entregando flyers de eventos futuros aos participantes.

A festa em questão era uma private, ou PVT, como são comumente chamadas na
linguagem “nativa”. Essa modalidade de festa é realizada para um público menor,
geralmente amigos ou conhecidos, com ingressos limitados e, às vezes, mais baratos do
que que os de raves e festivais17.

17
Algumas pesquisas, como a de Abreu (2005), apontam as privates como festas mais caras e para poucos
amigos, ao contrário do que caracterizou a pesquisa de campo, que mostra as PVTs como festas com
estrutura menos sofisticada, quando comparadas aos festivais, por exemplo, e com ingresso mais acessível.

102
Imagem 24: Flyer da festa A Despedida da Fortaleza

Fonte: VII: XV

É evocativa a escolha do nome do evento. A despedida da fortaleza dramatiza um


momento de inflexão na vida daquele que se despede. Traz o risco de deixar o perímetro
protegido, onde se está salvaguardado, e se expor aos perigos. Dawsey (2005b: 163, grifo
do autor), evoca Turner ao traçar a etimologia da palavra experiência, que

deriva do indo-europeu per, com o significado literal, justamente, de “tentar,


aventurar-se, correr riscos”. Experiência e perigo vêm da mesma raiz. A
derivação grega, perao, “passar por”, também chama a atenção de Turner pelo
modo como evoca a idéia de ritos de passagem.

O material gráfico de divulgação da festa é digno de descrição e de análise mais detalhada,


pela riqueza de símbolos que carrega, reflexo de possibilidades e de escolhas estéticas.
Como já foi destacado por Nilton Alcântara Silveira e Francisco Norton Falcão Chaves
(2006: 11), flyers, filipetas gráficas, e e-flyers, versões digitais dos mesmos, são
importantes meios de divulgação das festas rave. De acordo com os autores, o dever do

artista gráfico é captar tudo o que seja capaz de fazer a juventude sonhar, todos
os universos delirantes e utópicos e escolher elementos oportunos para utilizar
em seu trabalho, lembrando de que a concepção geral deve relacionar-se
sempre de uma forma harmônica com seu público. Cabe ainda ao profissional,
usando de bom senso e sem esquecer que a cena rave foi construída sobre um
mito de criação, aprofundar sua pesquisa em fontes apropriadas, por exemplo,
a mitologia e a arte de antigas civilizações místicas como a celta e as pré-
colombianas, sempre remetendo ao desejo de viver outra sociedade. Universos
utópicos habitados por entes mágicos, fadas, duendes, xamãs e sabedoria

103
primitiva são capazes de produzir um imagético rico, completamente
condizente com a cena em questão.

A imagem em questão mostra uma praia com uma colina, onde diversos animais estão
repousando. É possível notar uma leoa deitada na grama brincando com seu filhote, bem
ao centro do flyer, e um animal, que parece uma raposa, caminhando próximo. A leoa
observa a água, onde um bisão está colocado próximo às margens. Ao lado esquerdo, dois
golfinhos saltam, fazendo um malabarismo. Completando a cena, mais animais. No céu,
pássaros voam sobre uma ilha, também no centro da imagem. Na ilha, há uma montanha
circundada por um bosque, com algumas árvores maiores em destaque. Separado dos
outros pássaros, um beija-flor chama atenção pelo tamanho. Do lado direito, nas margens
da imagem, uma família de ursos marrons assiste à cena.

O gramado é verde, com flores. As árvores presentes na imagem parecem filtrar a luz do
sol, ao mesmo tempo em que fazem irradiar raios luminosos, difusos e coloridos. Ao
fundo do flyer, mais montanhas são delineadas por um céu azul claro, coberto de nuvens
brancas. Tudo está em paz. Um elemento no centro da composição desperta interesse: um
monumento, que se assemelha a uma pirâmide, é circundado por diversos pássaros. A luz
que nele reflete não deixa ver com perfeição do que se trata. Terralem é nome de festa
rave.

Esta montagem do Éden não deixa de lado a presença humana – mesmo que sua presença
seja ausente, ou sua ausência seja presente. É representada por uma canoa que flutua sobre
a água, mas também por uma cabana simples de madeira cinza no alto da colina e por um
enorme e multicolorido balão de ar quente. Seria a ausência da figura humana a
comprovação da despedida?

Para Turner (2005: 180),

a experiência incita a expressão, ou a comunicação, com os outros. Somos


seres sociais e queremos dizer o que aprendemos com a experiência. As artes
dependem desse ímpeto para confessar e declamar. Os significados obtidos às
duras penas devem ser ditos, pintados, dançados, dramatizados, enfim,
colocados em circulação. Aqui o ímpeto do pavão para exibir-se não se
distingue da necessidade ritualizada de se comunicar. O eu e o não-eu, o ego e
o não-ego, a auto-afirmação e o altruísmo, encontram-se e se fundem em
comunicações significativas.

104
Por meio de uma paisagem exuberante, friccionam-se imagens da natureza, quase todas
associadas ao imaginário exótico e selvagem. Animais de diversas partes do mundo são
justapostos na montagem e arranjados de tal forma que fazem sentido. Universo Paralello
é nome de festa rave. Na “praia nativa” criada pela rave, para brincar com o termo
utilizado por Malinowski (1978), a natureza parece conviver em harmonia, sem os
humanos. Tal criação do paraíso não deixa de ser reveladora de práticas que se apresentam
nesse tipo de festas.

O texto que compõe a imagem traz indícios de uma história já escrita. A fortaleza
representada pela natureza deve ser deixada para trás, uma vez que a despedida se torna
necessária. Seria a rave uma tentativa de recriar o paraíso? No paraíso dança-se ao som
de música eletrônica? Ao mesmo tempo, a realidade se faz presente no reino utópico da
rave: as pulseiras são limitadas. Para se despedir da fortaleza primeiro é preciso acessá-
la.

105
CANTEIRO DE OBRAS 4
106
4 GOOD VIBE

“Os novos movimentos techno da música constroem um corpo que se altera e que é

atravessado por sons, por BPM (batidas por minuto), por ruídos pós-industriais e

orquestras pós-fordistas. A rave é a morte da pólis. A rave ganha da metrópole. A rave faz

pulsar os corpos-metrópoles.”

Massimo Canevacci, Culturas eXtremas

“Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade. Gosto, sem isso, de

estar na cidade porém com isso o meu gosto seria dois.”

Fernando Pessoa, Livro do desassossego

Claudinha e eu estamos conversando na margem da pista de dança, junto ao pessoal que


vende pulseiras, brincos, porta incensos e outros artesanatos, nas sombras das árvores
de um dia mormacento. O festival, que havia começado com a manhã, ainda não tinha
“bombado” até aquele momento, próximo ao meio-dia. Os grupos de amigos estão
espalhados, flutuando pela pista de dança. De onde estamos, não é possível ver o palco
com a cabine montada para as apresentações, mas, pelas palmas, percebo que houve
mais uma troca de DJ.

Então alguma coisa acontece.

É difícil explicar. As batidas aceleram, a música fica cheia de ruídos, sussurros, risos,
entre o bumbo eletrônico e sons de outros instrumentos. Mas não é só isso. É como um
movimento de ar que passa pelo corpo e chama atenção para o momento presente, para
as pessoas ao redor; que faz parar o que se está fazendo e rever o local da festa. Fico em
silêncio, ainda tentando entender poucos segundos. A música, que, até então, era um
pano de fundo, ganha mais espaço. Claudinha para de falar. Sua expressão parece
inquieta. Ela me olha.

– Nossa... que coisa boa isso!

107
– Tu também notou?!

– Sim! Nossa, que bom.

Ao nosso lado, muitos participantes erguem-se. Correm, em direção à pista de dança.


Pelo jeito, mais pessoas também notaram que algo havia mudado. Falo alguma coisa e
levanto. Vou com aquele coletivo, sem conseguir definir quem está próximo, pois mais
participantes deixam cadeiras e cangas para ir dançar. Dalila, amiga e interlocutora,
passa por mim, indo para a pista. Diz, sem parar de correr:

– Todo mundo veio, né?! É uma coisa boa, né?!

– Sim! (Diário de campo, verão de 2016).

4.1 Ecos

“It’s a perfect world all the same”

Broken Bells, Perfect world

Ao traçar alguns fundamentos sobre a Antropologia dos Sentidos, Constance Classen


(1990; 1997) destaca a percepção sensorial como algo que é tão cultural quanto físico.
Para a antropóloga, a visão, a audição, o tato, o paladar, o olfato, não são apenas meios
pelos quais os fenômenos físicos nos atravessam, mas, também, caminhos sensoriais para
a percepção da cultura, nos quais uma gama de valores pode ser transmitida, por meio de
reflexões olfativas, gustativas e tácteis.

De acordo com a autora, a própria noção de sentidos corporais pode variar, conforme a
particularidade de certos grupos sociais. Alguns sentidos, como o paladar e o tato, por
exemplo, podem ser agrupados, ou, culturalmente, mais valorizados do que outros, como

108
é o caso da visão, no mundo Ocidental. No entanto, conforme Classen (1997: 402, grifos
da autora, tradução minha)18,

a percepção sensorial, de fato, não é simplesmente um aspecto da experiência


corporal, mas a base para a experiência corporal. Experimentamos nossos
corpos – e o mundo – através dos nossos sentidos. A construção cultural da
percepção sensorial condiciona nossa experiência e compreensão de nossos
corpos e do mundo em um nível fundamental. O modelo sensorial mantido por
uma sociedade revela as aspirações e preocupações sociais, suas divisões,
hierarquias e inter-relações. Assim, as percepções sendo janelas, esta analogia
deveria ser compreendida não apenas pela suposta capacidade dos sentidos de
reconhecer dados concretos de maneira transparente, mas na sua função de
compor a realidade de acordo com normas socialmente aceitas.

Chama atenção o fato de as raves buscarem criar um ambiente extremamente sensual,


uma cena eletrônica – termo recorrente entre os interlocutores – que agrupa elementos
específicos, no interior profundo (SCHOUTEN, 2005) das cidades. Cena eletrônica,
nesse sentido, diz respeito tanto ao palco criado para a realização das festas, como ao
amplo universo de práticas associadas à música eletrônica, do qual raves e festivais fazem
parte, assim como outros tipos de festas, sites especializados, revistas de música, canais
no YouTube, lojas e marcas de roupas, produtoras, gravadoras, donos de campings. Essa
inserção se dá por meio da criação de espaços de sociabilidade jovem nos arredores das
cidades, com suas particularidades, naquilo que diferencia as raves de outras festas,
enquanto uma experiência, um ritual de passagem, singular em relação às opções de lazer
ofertadas na cidade.

Em seus estudos, Victor Turner (2005: 184, grifos do autor) aponta que

o teatro é uma dessas muitas herdeiras do grande sistema multifacetado que


chamamos de “ritual tribal”, que abrange idéias e imagens do cosmos e do
caos, interligando palhaços e suas folias com deuses e suas solenidades, e
fazendo uso de todos os códigos sensoriais para produzir sinfonias para além
da música: o entrelaçamento da dança, de diferentes tipos de linguagens
corporais, canções, cânticos, formas arquitetônicas (templos e anfiteatros),
incensos, oferendas, banquetes ritualizados, pinturas, tatuagens, circuncisões,
escarificações, e marcações corporais de muitos tipos, a aplicação de loções e

18
No original: “Sensory perception, in fact, is not simply one aspect of bodily experience, but the basis for
bodily experience. We experience our bodies- and the world - through our senses. Thus the cultural
construction of sensory perception conditions our experience and understanding o four bodies and the
world at a fundamental level. The sensory model supported by a society reveals that society’s aspirations
and preoccupations, its divisions, hierarchies, and interrelationships. Hence, insofar as the senses maybe
likened to windows, this analogy should be understood to rest not so much on their imagined capacity to
admit physical data in a transparent fashion, as on their role in framing perceptual experience in
accordance with socially prescribed norms.”

109
a ingestão de poções, a encenação de tramas míticos e heróicos retirados de
tradições orais – e muito mais.

Como foi registrado em Diário de campo:

Estamos perdidos, de novo. Saímos da estrada de terra e voltamos para o asfalto.


Andamos alguns quilômetros pela noite, achando graça de nenhum dos três ter lembrado
de trazer um mapa. Estamos rindo da situação quando aparece uma pequena vila no
caminho. A praça, com a igreja ao fundo, está iluminada. No salão paroquial – um bloco
retangular ao lado – é possível ouvir uma bandinha tocando e sentir o cheiro de comida.

Fazemos a volta na praça, paramos o carro e ficamos em silêncio, respeitando aquela


imagem, em dúvida sobre o que fazer. Saímos para caminhar pela praça, mas está muito
frio. Então, encontrarmos uns meninos andando de bicicleta. Perguntamos se eles sabem
de “uma rave, festa de música eletrônica, em um camping perto da barragem”. Eles
parecem entender o que procuramos. Dão indicações e nos olham como se achassem
graça.

Seguimos o caminho indicado por eles, percorrendo mais alguns quilômetros. Ao


fazermos uma curva na estrada, em uma parte coberta por árvores, percebemos a rave
como uma explosão. Lá está ela, na escuridão, em contraste com o céu, no meio da mata,
com suas cores fluorescentes, seus sons, seus cheiros, suas luzes. Os motoristas pelo
caminho diminuem a velocidade, baixam os vidros, curiosos. Passa um pouco das 2h da
madrugada. (Diário de campo, inverno de 2012).

110
Imagem 25: Dançando com os dragões

Fonte: Flávio Ribeiro

Segundo Turner (1974), os rituais e os dramas sociais são instituições importantes para a
manutenção das estruturas sociais, mas, também, para as transformações e as mudanças
culturais, ao produzirem reflexões a respeito daquilo que é cotidiano. De acordo com o
antropólogo, tais processos são marcados por quatro fases: ruptura, crise, ação corretiva
e reintegração, ou cisma irreparável, com especial interesse para os momentos liminares,
de instalação do caos social, quando regras são deixadas de lado, ou, temporariamente
suspensas. Maria Laura Cavalcanti (2013: 415, grifo da autora), invoca o autor ao definir
ritual

a uma espécie de redenção pela imersão na experiência vital compartilhada,


onde o tempo vira fluxo, finitude, aflições, sofrimento, cura, contradições, e
sempre empatia e afeições. Turner nos interpela desde esse lugar, nos
convidando a compartilhar de sua própria experiência da communitas, a forma
primordial, nos diria ele mais tarde, do relacionamento humano.

Longe de um modelo fechado de análise, a obra de Turner abre espaço para os momentos
de passagem, os estados intermediários, as contradições, como propulsores da ação social.
Às margens de estruturas, quando o familiar é estranhado, papeis sociais são vistos de
diversos ângulos, refletidos, tensionados; gestos, palavras, objetos e espaços são

111
acionados para a produção de sentido, em engajamentos decorrentes de opções. Em rituais
e dramas sociais, elementos surpreendentes são selecionados, como em uma montagem,
numa relação entre a Tradição e a invenção. De acordo com Turner (2008: 38),

cada fase possui suas propriedades específicas, e cada qual deixa sua marca
especial nas metáforas e modelos nas cabeças dos homens envolvidos uns com
os outros no interminável fluxo da existência social. Atendo-me à comparação
explícita da estrutura temporal de certos tipos de processos sociais com aquela
dos dramas de palco, com seus atos e cenas, vi as fases do drama social
acumulando-se num clímax. Também assinalaria que, no nível lingüístico da
“parole”, cada fase tem sua própria forma e estilo de discurso, sua própria
retórica, seus próprios tipos de linguagens e simbolismos não-verbais.

Momentos de antiestrutura, ou de communitas, ao mesmo tempo, geram perigo pela


espontaneidade causada pelo sentir-se parte do todo, na ambiguidade da criação de laços
indiferenciados, igualitários, não-racionais (mesmo que não irracionais). (TURNER,
2008).

Entre os fluxo que as festas rave mobilizam para fora das cidades, muitos partem em
busca de algo quase indizível, difícil de ser explicado em palavras: que deve ser sentido.
A vibe da festa pontua a experiência rave. Essa sensação diz respeito a um sentimento de
pertencimento, de bem estar, de fazer parte do grupo, de pulsar no mesmo ritmo, de olhar
para os lados, sorrir e ser retribuído. Por meio dessa energia poderosa, transforma-se a
percepção do local, gera-se conhecimento sobre a música eletrônica, iluminam-se
detalhes da festa, produzem-se performances. Uma good vibe diz respeito a não precisar
dizer. De acordo com Ivan Paolo Fontanari (2003: 93, grifo do autor), essa “totalidade é
chamada de vibe, e como experiência musical e sensorial estaria mais próxima da
dimensão sensível que intelectual, pois ocorre pela participação, e não pela observação
na condição de platéia como no caso da música de concerto”.

André, 18 anos em 2016, pontua que as raves apresentam-se como outra forma de festejar:

“Eu vi que eu ia largar as outras festas, porque eu ia em outras festas, tipo [nome da
boate], essas coisas, e eu pensava: ‘na real, isso é tri idiota’. Porque, tempo inteiro
forçando pra pegar as minas, só isso, e na maioria das vezes tinha música que eu não
gostava, sabe? E as pessoas muito se fingindo que estavam curtindo, umas coisas, e
exagerando de bebida e tal. [...] Sei lá, não tem nada de briga, porque toda festa que eu

112
ia tinha briga, meus amigos tudo brigando e tal. Sem briga, todo mundo dançando e tu
sente toda aquela energia de todo mundo feliz, sabe? Parece que não tem como, se tu
ficar mal, vai aparecer alguém, vai te falar alguma coisa que vai te deixar bem. Como se
fosse uma coisa de cabo, que tu vai sentir que é bom, que tu vai tá fazendo o bem, só
dançando, sem pensar mal de nada. E que as pessoas vão tá pra te ajudar, qualquer coisa
que aconteça, também. Isso aconteceu várias vezes, teve vezes que eu me senti mal, assim,
apareceu alguém, sempre, falar alguma coisa, que na real não tinha porque eu me sentir
assim, porque o bagulho é muito bom!” (Diário de campo, inverno de 2016).

Imagem 26: Noite escura

Fonte: Flávio Ribeiro

É interessante, também, para o trabalho de campo, o fato de a vibe revelar, de forma


dialética, alguns dos estranhamentos sobre o cotidiano que acompanham esses
participantes. Na suspensão dos papeis sociais, no intervalo da vida cotidiana, raves
abrem possibilidades de membros de uma festa verem-se como parte de um mesmo tecido
social, uma communitas. Uma tribo planetária que ocupa no tempo e no espaço campos
descritos de forma bucólica, em paisagens exuberantes, fonte de paz, de resgate. Mas o
que é resgatado no campo pela vibe das raves?

113
Como reflete Raymond Williams (1990), falar do campo expõe tensões e ruídos da
cidade. Nesse processo, estruturas de sentimento de longa duração evocam emoções
poderosas. Entretanto, de acordo com Willliams (1990: 291), “ainda permanece a
sensação de paradoxo: na própria cidade grande, o lugar e o instrumento da consciência
coletiva – ou, pelo menos, assim seria de se esperar –, é a ausência de sentimento comum,
o excesso de subjetividade, que parece característico.” No campo, ecoam também sonhos
e frustrações.

Algo semelhante está presente no depoimento de Igor, 20 anos em 2016:

“Cara... É uma festa diferenciada, tá ligado? Aonde une uma energia diferente, tá
ligado? Ela foge daquilo que é o comum das festas. Que é o pessoal bebendo. O pessoal
numa vibe diferente. É meio que o pessoal se... é rival, vamos dizer assim. Na rave, a
gente encontra uma união de energia, aonde todo mundo... é igual, tá ligado? Onde todo
mundo é amigo. E... isso que me traz para a festa rave. É por isso que eu venho.” (Diário
de campo, verão de 2016).

Como aponta Turner, os espaços “entre” – em que aqueles que passam por iniciações são
alçados para condições liminares – iluminam a passagem para essa nova condição. Uma
“condição de passagem”. Para o antropólogo (1974: 131, grifo do autor),

o que parece ter acontecido é que, com o incremento da especialização da


sociedade e da cultura, com a progressiva complexidade na divisão social do
trabalho, aquilo que era na sociedade tribal principalmente um conjunto de
qualidades transitórias “entre” estados definidos da cultura e da sociedade,
transformou-se num estado institucionalizado. Mas traços da qualidade de
passage da vida religiosa permanecem em várias formulações, tais como: “O
cristão é um estranho no mundo, um peregrino, um viajante, sem nenhum lugar
para descansar a cabeça”. A transição tornou-se, neste caso, numa condição
permanente. Em parte alguma esta institucionalização da liminaridade foi mais
claramente marcada e definida do que nos estados monástico e mendicante,
nas grandes religiões mundiais

Partindo de estudos da Antropologia dos Sentidos e da Antropologia da Performance,


esse ensaio debruça-se sobre a criação da vibe na festa, por compreender a sua
importância naquilo que transborda na experiência rave, com uma dobra do tempo, uma
interpelação, com capacidade de fazer estremecer a busca sentido pelos participantes, mas
também pelo pesquisador.

114
4.2 Sussurros

“Trance music makes the fairies dance”

CocoRosie, Fairy Paradise

A instalação criada pela rave deve privilegiar locais que possibilitem o contato com a
natureza, ao redor de matas, de praias, de cachoeiras, de cannyons, que incentivem a
contemplação e a interação com a natureza, por meio da criatividade dos participantes no
arranjo de performances culturais, na relação com a festa. Ao mesmo tempo, o
planejamento e a produção musical deve selecionar DJs, tendo em vista a construção de
uma narrativa musical, que deve ter uma sequência, não apenas a sucessão de músicos e
estilos. Tal tarefa movimenta artistas brasileiros e de países como Austrália, Inglaterra,
Israel, Estados Unidos, entre outros. Deve levar em consideração a ampla segmentação
da música eletrônica, com DJs e VJs referências em determinados estilos ou reconhecidos
como precursores de alguma vertente.

A música eletrônica, enquanto possibilidade tecnológica, é uma experimentação que


remete ainda aos anos 1950, na busca de produção musical sem instrumentos. Conforme
Julián Arango (2005), o termo música eletrônica [elektronische musik] foi utilizado
inicialmente pelos compositores alemães Werner Meyer-Eppler e Herbert Eimert, para
definir as criações realizadas por eles e seus colegas no estúdio da Nordwestdeutscher
Rundfunk (NWDR). Porém, os estilos recorrentes nas festas dizem mais respeito a
expressões musicais do fim da década de 1970, dentre os quais, destacam-se o house, o
drum’n’bass, o techno e o trance, que são descritos, em pesquisas e pelos interlocutores,
por vezes, tanto em suas especificidades técnicas, como na capacidade de gerar efeitos na
plateia. Nesse sentido, conforme a antropóloga Laure Garrabé (2012: 68-69),

trata-se antes de perguntar como uma estética torna-se um alvo coletivo.


Centrar a questão nas suas aplicações e efeitos na vida social pode evitar
exageros em construir descrições e interpretações ou, ainda, em proceder ao
estabelecimento de um simples catálogo de gêneros e práticas não refletindo a
necessidade para os homens de cultivar uma relação sensível, esteticamente
investida, no mundo, opondo-se aos supostos determinismos sociais aos quais
seriam submetidos.

115
O house é reconhecido por romper a hegemonia da cultura disco music nas boates de
Chicago, no momento em que a produção de discos começou a ser substituída pelo
consumo de música em CDs. (ARANGO, 2005). Inicialmente, o estilo foi associado à
cultura gay, pois recebeu esse nome devido à boate The Warehouse, famoso club onde
DJs do estilo tocavam. As pessoas não sabiam como referir-se àquele estilo nas lojas e
procuravam pela música da Warehouse, ou, simplesmente, house. (CHIAVERINI, 2009).
Atualmente, o house – e suas vertentes, como o deep house – é corriqueiro em boates e
clubes urbanos. Em 2017, o portal DJ Mag, que realiza anualmente uma premiação dos
“100 melhores DJs mundiais”, selecionou três artistas brasileiros ligados à cena house:
Alok (#19, subindo seis posições), Vintage Culture (#31, subindo 23 posições) e Cat
Dealers (#74, pela primeira vez na lista).

Uma da principais inovações do estilo house é a ausência de vocais e refrãos, comuns na


era dance music – característica que permanece nos estilos de música eletrônica presentes
nas raves e festivais. Quando aparecem nos setlist (sequência de faixas com cerca e uma
hora de duração, executados pelos DJs nas festas), os vocais não configuram
protagonismo, nem contam, necessariamente, uma história. Algumas vezes, são apenas
sussurros, ou vozes distorcidas, pós-humanas, robóticas, fato que torna a música
eletrônica conhecida como “uma música que não tem letras”, como ouvi ao longo da
pesquisa. Segundo Fontanari (2003: 115, grifos do autor),

musicalmente o house é um estilo que preserva características da disco music,


do rap e do soul, apresentando-se como um estilo mais pop e comercial de
música eletrônica. Às batidas eletrônicas “retas”, como as do techno e do
trance, porém bem mais suaves – que no house têm a finalidade de manter o
caráter dançante da música, o groove – são acrescentados elementos acústicos,
como cantos, contrabaixo, guitarra, teclados.

Já o trance, para Carolina de Camargo Abreu (2005), é uma vertente surgida em festas de
música eletrônica realizadas nos anos 1980, em Goa, na Índia, com a utilização de
elementos da cultura oriental, como cantos étnicos e mantras religiosos. No Brasil, os
artistas do estilo incorporam também cantos étnicos indígenas e sons de animais nativos.
Na análise de Sandro de Almeida Santos (2013: 61, grifos do autor),

além do aprendizado com mestres de meditação, yoga, música, dança,


massagem, gastronomia, etc., os jovens “ocidentais” estabeleceram, no estado
de Goa, uma nova cultura dançante. Das celebrações e do convívio nas vilas e
praias indianas, surge uma nova “família” transnacional. Essa tribo migrante

116
se espalha pelo globo e povoa localidades como a ilha espanhola de Ibiza.
Defendem uma nova forma de engajamento com o trabalho, que este deve visar
o prazer. Não só em Ibiza, mas também em grandes celebrações chamadas de
“Festivais”, os buscadores da Nova Era se reúnem e cocriam o ambiente que
lhes propicie viver, ainda que por curto tempo, a experiência de uma
“sociedade alternativa”. As experiências de convívio na Índia, em Ibiza ou nos
Festivais provocam transições pessoais, uma súbita decisão de nunca mais
retornar à vida urbana/industrial.

Érika Palomino (1999: 136) aponta que, ao longo dos anos 1990, o trance passou de
gênero secundário a protagonista nas festas em São Paulo. O estilo apresenta como
característica a batida acelerada. Segundo a autora, ele foi feito “exatamente para isso:
entrar em transe”. Para Palomino, os diversos efeitos do trance estão relacionados ao seu
andamento, com as batidas por minuto (BPM) entre 150 a 170.

De acordo com depoimento encontrado na rede:

“O trance é um vértice da música eletrônica, sendo uma forma de música progressiva no


qual a energia é constante, uma libertação espiritual que procede de raízes religiosas.
Uma delas é o Xamanismo, práticas etnomédicas, mágicas e religiosas, que envolve a
cura, o transe e a transmutação em contatos com outros corpos e espíritos. Shaman vem
do russo ‘saman’ e pode ser chamado também de magos ou pajés. Escrevi esse trecho
para que muitos de vocês consigam entender que a [nome do evento] foi um festival muito
esperado para todos e que as energias que foram compartilhadas lá envolvem muito mais
que o uso de sintético para o alcance da liberdade de ser quem realmente somos. Foram
ligações espirituais, depois de algum tempo eu consegui ver em algumas das pessoas que
estavam lá o que seria o trance novamente, o calor humano, o pé descalço, o contato com
a natureza, o poder da invocação de curandeiros. Eu não vi ainda ninguém dizer que foi
um festival pesado, com uma vibe errada, foi imensidão de sentimentos bons, foi o
alcance de uma paz de espirito e isso que é o trance: é Espiritualismo. Aos que
conseguiram sentir: obrigado. E aos que não sentiram o trance ainda: permita-se sentir.”
(Registro no Diário de campo, verão de 2016).

117
Imagem 27: Desenhos de luz

Fonte: Flávio Ribeiro

O drum’n’bass teria origem nos guetos étnicos de Londres, na década de 1990, e estaria
ligado à cultura negra, em uma fusão entre hip-hop, jazz, blues e música eletrônica. A
batida da música é marcada pelo break beat (batida quebrada), com mudanças de
andamento, com destaque para o baixo e a bateria. Abreu (2005) aponta que, ao longo
dos anos 1990 e início dos 2000, o drum’n’bass foi associado aos jovens de “periferia”
nas grandes festas realizadas em São Paulo. Chamados pejorativamente de cybermanos,
teriam gerado desconforto nos jovens de classes socioeconômicas mais abastada, para
quem a festa havia “perdido a vibe”.

Conforme Palomino (1997)19, o techno diferencia-se do house e do drum’n’bass – que


teriam origens em guetos gays e étnicos – e remete o ouvinte ao “futuro acelerado”. Para
a jornalista, a música techno criou, ao seu redor, um modo de agir que “exige a correta
utilização de códigos de vestir, de falar, de dançar”, onde a “sensação de pertencer a um
grupo ou núcleo, a ideia de fazer parte de um movimento, de uma coletividade, de
estabelecer um ‘nós’ contra o mainstream percorrem fronteiras territoriais, sociais e
sexuais”.

19
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs060405.htm>. Acesso em: 07. jan. 2018.

118
A música techno é conhecida, também, por ser “mais pesada”, tanto pela batida pesada e
rítmica que marca o andamento das músicas, quanto pelos efeitos que teria sobre a
audiência. Musicalmente, a percussão eletrônica é mais linear, marcada com força; assim,
pode-se notar (e sentir) as BPM em torno de 135 a 140. Fontanari (2003) aponta que, ao
longo da pesquisa sobre festas rave, em Porto Alegre, as descrições da música techno
remetiam, seguidamente, aos efeitos pessoais que ela operava, em alguns casos, com mais
destaque do que pela particularidade enquanto estilo sonoro.

De acordo com Abreu (2005: 102, grifos da autora),

no início, todas as raves eram chamadas de festa techno, e, também, todos os


gêneros de música eletrônica eram chamados de techno. Logo depois, essas
festas ganharam a denominação usual de raves e, atualmente, embora se
conheça esse termo – rave –, e se reconheça as peculiaridades desse modo de
festejar, fala-se de festa trance ou festa techno. Techno, neste outro momento
histórico refere-se exclusivamente a eventos onde predomina a discotecagem
do gênero de música eletrônica e afins como o break beats ou hard trance,
todos esses estilos são considerados “pesados” e estão associados à idéia de
“bombação”.

Com a profissionalização e segmentação das festas no início dos anos 2000, os núcleos e
organizadores passaram a aproximar vertentes e novos estilos, seja com a criação de pistas
específicas para gêneros musicais, ou com a participação de DJs de estilos diversos em
setlist de festivais. Ainda assim, alguns festivais do Brasil, como o Xxxperience – que,
em 2018, completa 22 anos – são associados ao contexto trance. O festival costuma
destacar-se em suas apresentações noturnas, quando são organizados shows de fogos de
artifício, com canhões de iluminação, projetores e efeitos de cenografia.

119
Imagem 28: Flyer do Xxxperience Festival

Fonte: Xxxperience Festival

Ao mesmo tempo, existem festas que buscam privilegiar vertentes específicas, ou


divisões dentro dos próprios estilos, como raves de dark psytrance, estilo que, quando
integrado às festas e aos festivais, deve ser tocado preferencialmente durante a noite, pois,
segundo os interlocutores, perde parte de seu potencial quando executado de dia.

4.3 Ruídos

“I get a thought and hear comes my Tribe

Ritual shakes and in good vibes”

A Tribe Called Quest, After Hours

Assim como música eletrônica, das cidades vêm tecidos, lonas, placas, telões,
sintetizadores, caixas de som, amplificadores, canhões de led, “luz negra”, estrobo20, pick
ups21, computadores, refrigeradores, fogões, geradores de energia, bungee jumping. A
decoração tem como objetivo informar, com placas de recados e dicas para aqueles que

20
Aparelho que projeta luzes em potentes flashs, normalmente, em velocidade acelerada, que pode gerar a
impressão de que os movimentos estão em “câmera lenta”.
21
É o equipamento básico de um DJ, composto de dois toca-discos e um mixer. Permite que duas músicas
toquem sincronizadas.

120
não estão familiarizados com a dinâmica da festa. Educa, nesse sentido, a atenção
daqueles que regularmente, ou às vezes, transformam um sítio ou uma praia em morada.
Ao mesmo tempo, demarca espaços, cria ambientes, organiza os participantes. Para Ana
Flávia Nascimento (2006: 17), se você estiver

experimentando alguma substância psicodélica, perceberá que as decorações


se tornaram imensamente mais atrativas e lhe proporcionam uma viagem
colorida de dimensões antes inalcançáveis, de fusão total com os elementos.
As luzes também darão novas formas às decorações que parecem mesmo estar
vivas. Você perceberá que a música também proporciona uma experiência
fascinante, por meio de sons de culturas exóticas que podem lhe causar um
imenso prazer.

Os investimentos de toda ordem para a criação de festas e festivais estão, muitas vezes,
embasados no reconhecimento desses momentos como significativos, evocados como um
ritual na vida daqueles presentes. A dimensão do cuidado envolve meses de planejamento,
organização e empenho, que têm como objetivo principal a construção da vibe da festa.

Imagem 29: Pulsar com a vibe

Fonte: Kevin Juarez

Como apontei anteriormente (RODRIGUES, 2012: 89), mais do que público, aqueles que
frequentam festas rave e festivais de música eletrônica são participantes. “Nesse sentido,

121
representam mais do que meros espectadores passivos do que ocorre, são agentes para
que a festa corra bem.” Isso diz respeito ao engajamento dos participantes na criação
desse sentimento, possível apenas coletivamente, mas com implicações individuais,
almejado por aqueles que estão nos eventos.

DJs, VJs, músicos, artesãos, artistas visuais, grafiteiros, performers, fotógrafos, chefes de
cozinha, designers, decoradores, massagistas, enfermeiros, médicos, são alguns dos
personagens que podem compor uma festa. As manifestações individuais são
incentivadas, como malabares, fitas, bolas, performances espontâneas, gestos,
brincadeiras, fantasias, figurinos, que criam e inventam um modo de festejar. Como
reflexo da sociedade que a produz, em raves fazem-se presentes, também, aqueles que
recolhem tudo aquilo que a festa rejeitou, cacos desdenhados, pedaços esquecidos em
cadernos de campo.

Sentei em uma grande roda, com amigos e amigos de amigos, em um ponto de onde via
a pista de dança. Estamos conversando, quando noto a presença. Conto: são três.
Passam entre os participantes, esquivam-se para conseguir juntar garrafas d´água e
latinhas de cerveja e de energético jogadas pelo chão. Usam camisas de campanhas
políticas antigas. A pele negra contrasta com os grandes sacos plásticos brancos que
carregam nas costas. Os tonéis, usados como lixeiras, há muito tempo não comportam
as sobras da festa, que vão se acumulando pelo gramado. Não consigo interromper a
conversa, mas acompanho enquanto eles somem, lentamente, na multidão formada pelos
corpo que dançam, pulsando ao mesmo tempo. Quando saio da roda – e tento encontrá-
los – não os vejo mais. Ainda pergunto para alguns participantes se um grupo de homens
juntando latinhas havia passado por ali, mas nenhum deles tinha visto. (Diário de campo,
verão de 2016).

A cena eletrônica costuma reunir os participantes em festas e festivais regulares, onde os


(re)encontros são comuns, como foi possível perceber ao longo desses anos de pesquisa
de campo. Festas e festivais costumam agrupar pessoas que, talvez, não estejam juntas
em outros momentos, ou não convivam em outros locais, seja pela distância geográfica,
seja pela rotina do dia a dia. Da mesma forma, excursões para as festas introduzem os
novos participantes em grupos de amigos que já frequentam as festas, criam vínculos,

122
expandem os limites das cidades, ao mesmo tempo em que produzem ensinamentos.
Conforme o relato de Rafael, 27 anos em 2016:

“Parar ali, sentir o vento, respirar, sentir o vento. Tomar um banho de lagoa. Ouvir a
música, sentir, ficar ouvindo o DJ tocar e imaginando como é que esse som foi criado,
ver a concentração que a menina do violino tava ali pra conseguir tirar aqueles notas,
aquela sonoridade. Então, para mim, isso são os pequenos milagres, pra mim isso é o
milagre da vida, o milagre da existência. A gente conseguir parar, não estar no frenesi,
sabe? Não estar amortizado e correndo para conseguir alguma coisa que no fim, que que
é? A gente corre pelo quê?” (Diário de campo, outono de 2016).

Em festas rave e festivais eletrônicos, é possível acompanhar o crescimento de filhos e


filhas de participantes, bem como casamentos, separações, uniões, transformações físicas,
espirituais, religiosas, acadêmicas. Geram relações de duração, que, em alguns casos,
podem ocorrer na especificidade de um festival, frequentado ano após ano, um ponto de
encontro que pauta a agenda de participantes. Assim, abraços sinceros e carregados de
afeto são comuns, bem como perguntas sobre como vai a vida e quais as novidades desde
o último encontro ou a última festa.

São comuns relatos em que as raves são o ponto de inflexão na busca por
autoconhecimento, por evolução, por transcendência, algo que não pode ser alcançado
em festas cotidianas, mas que se faz possível da capacidade da festa de criar territórios
existenciais. Algo que é potencializado pela vibe, que contagia os presentes, dá forças
para encarar a cidade, muda pontos de vista. Esse sentimento, que amplia a capacidade
de comunicação na festa, cria possibilidades de contato também com outras esferas,
algumas vezes extraterrenas, sobre-humanas, no encontro com aquilo que a antropóloga
Cláudia Cardoso Goularte (2017: 11, grifos da autora) chama de mundos paralelos, “lugar
privilegiado para um encontro marcado, um porto de naufrágios de coisas jazidas que
insistem em voltar à vida”. Ainda segundo a autora (2017: 20), “com isso, atento ainda
para a especificidade dos encontros produzidos, na busca por uma Antropologia atenta e
sensível às narrativas construídas a partir das reflexões compartilhadas em torno deste
lugar”.

123
Imagem 30: Luzes, sombras e reflexos

Fonte: Kundalini Festival

Um portal para outros planos. De acordo com Goularte (2017: 20), que realizou pesquisa
na Feira de Tristán Narvarra, Uruguai,

a partir de diferentes atores que se comunicam, se chocam, se reforçam ou se


encontram em suas experimentações e narrativas, o que busco é descrever os
aspectos similares, complementares, mas também contraditórios e incoerentes
que convergem para este universo. Estas possibilidades são acionadas por meio
da literatura, do material de campo, dos percursos realizados sozinha, mas
também dos encontros com interlocutores, com coisas, com situações, que
salientam a Feira como experiência, marcada por diferentes temporalidades,
significados e possibilidades de experimentação.

Em conversa com Ana, que se define como hippie e vende artesanato em raves e festivais
pelo País, ouvi o relato a seguir:

“Eu acredito que, aqui, a gente tem um portal para outros planos, com certeza. Eu boto
muita fé nisso. É um portal que a gente abre. Eu já vi várias naves, já tive o prazer.
Depois desse festival [Trancendence], eu vi minha primeira Nave Mãe. No final, ao
termino do festival, nós fomos para Alto Paraíso [Goiás]. Chegamos em Alto e a galera
foi buscar uma grana. Não tinha banco em Alto, naquela época. Tinha uma lotérica na
cidade, então era uma fila de hippie na lotérica! Enfim, e eu falei, eu tava com uns

124
trampos, uns móbile de CD que eu faço, reciclado, eu falei: ‘vou vender esses móbile
para alguma loja’. Eu saí com vários móbiles, assim na mão, e aí um cara me para na
rua. ‘Oi, e esses móbiles? E esses CDs?’ E eu: ‘Então, é para reciclar, é um trabalho
para ajudar o planeta, eu vim buscar isso, quero me aperfeiçoar.’ E ele: ‘Eu faço esses
móbiles.’ Daí ele: ‘Tu quer ver os ETs?’ E eu: ‘Hãn, como assim? Quero!’ E ele: ‘Então,
eu sou médico da cidade, tô acabando meu plantão agora às 4h. da tarde, tu tá com quem
aí?’ Eu falei: ‘Com os meus amigos’. Daí levei ele até os meus amigos na lotérica e ele
começou a nos levar nos portais. Aí no fim de tarde ele nos levou para ver a Nave Mãe.
Nem ele sabia que seria uma Nave Mãe. [...] Aí a gente encontrou a galera e todo mundo
ficou... tem uma galera que não acredita nisso. Tenho amigos que choravam, dizendo
‘não, isso não está acontecendo’! [...] Não era noite, era fim de tarde. O crepúsculo
subindo, sabe? As cores, muito rosa, muito lilás. E ela apareceu, assim, ó, em forma do
infinito. Ela se manifestou, por muito tempo, pra todos nós.” (Diário de campo, primavera
de 2016).

Esse sentimento de grupo, de coletividade, é recorrente na criação de sentido da vibe. Por


meio desse sentimento, cria-se uma possibilidade de acesso à global tribe, uma tribo
global, uma família transnacional. Conforme Abreu (2005: 43, grifos da autora),

não é tanto a euforia, mas a experiência de uma coletividade, que melhor traduz
a noção de “vibe” nas raves. Nesse contexto, a expressão se refere à alegria e
ao conforto produzidos pela confraternização grupal, ou ainda, como
comumente dito pelos ravers: “a energia coletiva que é compartilhada”.

Entretanto, visto sua construção coletiva, a vibe exige cuidado pela sua constante
manutenção, pois apresenta inúmeras rotas de fuga, fragilidades, ruídos. Dessa forma, o
empenho de todos faz-se necessário para não correr o risco de acionar sua antítese,
trazendo uma bad vibe para a festa.

4.4 Silêncios

Como já destacado por Abreu (2011: 29), por meio de figurinos, de fantasias e de
adereços, os participantes das festas rave podem justapor e performar imagens futuristas
e de contos de fadas, sem aparente contradição. Um “futurismo que apresenta

125
personagens intergalácticos, caracterizados pela androgenia. Materiais como o látex, os
metais, as cores cintilantes, garantem as composições futuristas de heróis do espaço
sideral”. Em diversas festas, foi possível perceber pessoas que carnavalizam figurinos de
“bruxas”, com cocares de penas associados à imagem genérica de indígenas, ou com
chapéus de elfos, fadas e duendes.

Imagem 31: Participante montado para a festa

Fonte: Flávio Ribeiro

Conforme Ivan Paolo Fontanari (2003: 61),

se muitos se “apresentam” com as suas fantasias, não importando se seu palco


é “underground” ou “mainstream”, outros preferem se “apresentar” com seus
personagens cotidianos. Para os que “montam” suas personagens para as
festas, a montagem se dá pela escolha da “bricolagem” indumentária, em sua
quase totalidade comprada em lojas especializadas neste estilo de roupa.

De noite, em um festival de música eletrônica na Serra gaúcha, uma jovem movimentava-


se pela pista de dança com um sobretudo sintético branco. A “luz negra”, muito comum
em festas rave, tem a capacidade de alterar as cores de algumas roupas e ressaltar as cores
de outras. Nesse caso, fazia com que a roupa da participante brilhasse no meio da festa,
como um fantasma. Consciente ou não do efeito que causava, ela ainda colocou um capuz,
do mesmo material, o que intensificava o brilho da sua presença.

126
Para José Luis Valls (1995), alucinações podem ser visuais, auditivas, táteis, olfativas e
gustativas, associadas ou não. São perturbações, caracterizadas pelo aparecimento de
sensações atribuídas a causas objetivas que, na realidade, não existem. Algo como
sensação sem objeto, experiências sensoriais reais baseadas em coisas, fatos, situações
irreais. Sigmund Freud (1996b: 258) ensina que na confusão alucinatória o afeto e o
conteúdo da ideia incompatível são mantidos afastados do eu, o que somente será possível
com um desligamento parcial do mundo externo: “[...] resta o recurso às alucinações, que
comprazem ao ego e apoiam a defesa”. Dessa forma, as vivências alucinatórias são
bastante reais para a pessoa que está alucinando, mas o objeto ou acontecimento
vivenciado na realidade inexiste. Como a origem da alucinação é interna, a mente pode
fazer do objeto/fenômeno/fato alucinado algo ainda mais nítido do que objetos reais, bem
como adicionar-lhe características fantásticas.

Já os delírios não dependem dos sentidos para acontecer. Estão relacionados a um


estímulo externo, real. Tratam-se de interpretações erradas da realidade. O sujeito
delirante distorce os estímulos do seu entorno e os vivencia de forma diferente. No delírio,
o sujeito tem convicção do fenômeno “vivenciado”, apesar de, no entorno, outros sujeitos
serem incapazes de percebê-lo e seu conteúdo nunca ser possível ou plausível. Nessa
direção, Yuji Gushiken (2004: 61, grifos do autor) chama atenção para a proliferação de
imagens fantásticas em festas rave.

Do interior invariavelmente escuro dos ambientes noturnos procedem imagens


tão desconexas e sem sentido como as imagens oníricas. Para essas imagens
não se busca interpretação ou esforço em que se empenha energia do cogito
para uma verbalização forçada. Não numa festa rave. Há imagens, no âmbito
dessas festas, que não precisam de interpretação ou de explicação, porque pelo
menos nesse tipo de espaço subjetivo o pensamento dito pré-lógico talvez seja
uma virtude e princípio de uma feliz ingenuidade, um alegre não-saber).

Em outro festival, um participante usava uma máscara de hóquei branca igual à utilizada
pelo personagem Jason, da franquia de filmes de terror Sexta-feira 13 (Friday the 13th,
Sean Cunningham, 1980). A máscara de plástico destacava-se no meio do mar de gente
na pista de dança e gerava a sensação de que uma cabeça sem corpo, ou um corpo sem
órgãos, dançava entre nós. (Diário de campo, inverno de 2012).

127
Imagem 32: Fantasias na rave I

Fonte: Flávio Ribeiro

Alguns anos depois, ao retomar o trabalho de campo, notei que muitas pessoas portavam
máscaras em uma das festas. Ao olhar para traz, em certo momento da noite, levei um
susto ao me deparar deparei com dois participantes, um ao lado do outro, ambos usando
máscaras de gás. Rita de Almeida Castro, interessada na construção de um Oriente à
brasileira, por meio da apropriação de técnicas como a yoga no processo de montagem
teatral, chama a atenção para o uso de máscaras, como aquelas utilizadas na commedia
dell’arte, mas, também, no teatro balinês e no javanês. A autora ressalta uma observação
realizada pela diretora Ariane Mnouchkine, do Théâtre du Soleil. De acordo com Ariane
(CASTRO, 2012: 27), “a máscara força o ator a admitir que não é ele ou ela que a gente
olha, mas o outro”. Corpos transformados por marcaras. E máscaras transformadas por
aqueles que as usam.

128
Imagem 33: Fantasias na rave II

Fonte: Valhala Photography

Na festa, a dupla de participantes com máscara de gás não era a única. Foi possível notar
o uso de máscaras de extraterrestes, de cavalos, de lobos, de pit bulls, de palhaços, do
personagem Guy Fawkes, popularizado na história em quadrinhos e no filme V de
Vingança (V for vendeta, James McTeigue, 2005), além de diversos modelos de máscaras
de gás. Na ocasião, questionei Bruna, 19 anos em 2016, com quem estava na rave, sobre
qual o motivo para o uso de tantas máscaras. Tive essa resposta:

“É por causa da droga. Tá vendo a cara do DJ?” (Diário de campo, outono de 2016).

Imagens de corpos e máscaras. Corpos-máscara. Imagens oníricas. Sonhos, desejos e


pesadelos. Foi em campo que escutei pela primeira vez a Oração do trance:

“Trance nosso
Que estais no set
Santificada seja vossa batida
Venha a nós a vossa vibe
Seja feita vossa mixagem

129
Assim no prog [progressivo] como no full-on
O line-up nosso de cada rave nos dai hoje
E perdoai os chacoteiros
Assim como nós perdoamos os fritos
E não os deixeis cair em bad trip
Mas livrai-nos do house
Amem, amem, amem, amem, amem, amem, amem, amem, amem, amem, amem...” (Diário
de campo, verão de 2016).

Tal mensagem, produzida no interior das festas, não deixa de ser reveladora de alguns
desejos e anseios daqueles que frequentam festas rave. “Chacoteiro” e “fritos” diz
respeito àqueles participantes que, por uma série de motivos, entre eles, o uso de
psicoativos, podem gerar incômodo no andamento da festa. Isso se manifesta de diversas
maneiras, como passar mal, esbarrar nos outros, criar confusão, machucar alguém,
machucar a si. Ações que impactam na vibe da festa, geram notícias, expõem sujeitos,
causam impactos.

Vídeos com participantes “fritos nas raves” povoam a internet. Pese que a montagem das
cenas, tiradas de seus contextos originais, não deixa claro o fato de serem festas raves ou
outro tipo de evento, mas evocam no imaginário o termo genérico rave em relação com
estados alterados de consciência, bem como, com o grotesco, o assustador, o engraçado.
Dentre esses vídeos, o de “Felipe Smith”22 rompeu o círculo dos participantes e ganhou
notoriedade, dentro e fora da cena. As imagens, gravadas pela equipe médica, sem a
autorização do paciente, mostram aquele que, na verdade, chama-se Lucca, à época com
16 anos, amarrado a uma maca, após participar de uma festa de música eletrônica.
Rapidamente surgiram memes e montagens com imagens e frases do vídeo. Uma imagem
rapidamente reproduzida, refletida, repetida, distorcida, compartilhada.

Assim, cabe, ainda, tecer algumas reflexões sobre o conceito de transe, que traduz, grosso
modo, resposta a um estado de aflição ou angústia. A partir da abordagem antropológica,
o transe pode ser percebido como fenômeno religioso e social de representação coletiva,
no qual um médium experimenta um sentimento de identificação com comportamentos

22
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NyUMBD5QkJk>. Acesso em 10. fev. 2018.

130
correspondentes a determinada entidade ou divindade. De acordo com Livo Túlio
Picherle (1990), o transe hipnótico pode ser definido como um estado alterado de
consciência, em que podem ocorrer fenômenos neurofisiológicos e mentais modificados,
como anestesia (ausência de dor), alta sugestionabilidade (fenômeno mental), paralisia
(incapacidade de mover o corpo), hiperestesia (aumento dos sentidos e das sensações),
amnésia (perda temporária da memória), visões de imagens e audição de sons ou vozes
(por vezes, encaradas como alucinações visuais e auditivas), entre outros.

Na festa, o rosto do DJ, que até então não havia chamado atenção, é iluminado pela
resposta da interlocutora. Apresenta tensão. Suas feições denunciam alguns dos efeitos
indesejados causados pelo uso de ecstasy. Olhos arregalados, como em um susto; maxilar
tenso, enrijecido. A boca com um sorriso petrificado, fixo, incomodo. “Talvez seja essa
a melhor forma de se fazer antropologia – adquirindo um corpo e pensando em estado de
risco.” (DAWSEY, 2013a: 316).

No meio do campo brotam assombrações, bruxas, indígenas. Um fantástico possibilitado


pela rave. Realidade e ficção misturam-se. As fronteiras são experimentadas em estado
de f(r)icção. Fadas. Duendes. Elfos. Nas raves, participantes brincam com a realidade.
Ora palhaços, ora pit bulls. Enervam o corpo social, por meio da vida que nelas se
manifestam. Nesse processo, perdem-se algumas ilusões, enquanto criam-se utopias.

131
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