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NAKAÓKA, Alex. Por Uma Etnografia Multissensorial

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Alexsânder Nakaóka Elias

POR UMA ETNOGRAFIA MULTISSENSORIAL1

FOR A MULTI-SENSORY ETHNOGRAPHY

1
Este trabalho é resultado do paper por mim apresentado no GT Antropoéticas: outras (etno)grafias,
na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de dezembro de 2018
(Brasília/DF). Uma versão preliminar do presente artigo consta nos anais do evento.
TESSITURAS | Revista de Antropologia e Arqueologia | ISSN 2318-9576 V7 | N2 | JUL-DEZ 2019
Programa de Pós-Graduação em Antropologia | UFPEL Pelotas | RS
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RESUMO

O presente artigo é fruto das minhas interlocuções com a comunidade Honmon


Butsuryu-shu, escola do Budismo japonês presente no Brasil desde 1908. A par-
tir da minha posição de “fotógrafo-antropólogo”, procurei obliterar um possível
dualismo entre sujeito e objeto no momento de trazer para o texto etnográfico
as experiências por mim vivenciadas. Neste sentido, o trabalho busca tensionar
uma questão instigante, que diz respeito ao domínio do verbal na escrita antro-
pológica, a partir de algumas experimentações multissensoriais desenvolvidas no
âmbito do meu doutoramento em Antropologia Social na Unicamp (2018), a sa-
ber: dois cadernos visuais; um glossário verbo-visual; a capa da tese; um QR code;
além de capítulos verbo-visuais, nos quais textos, narrativas verbais dos interlo-
cutores e imagens fotográficas atuam conjuntamente para explicitar e dar a ver as
experiências de campo. Dessa forma, ao partir de conceitos potentes como “expe-
rimentação” e “montagem” (EISENSTEIN, 1926, 1942; WARBURG, 1929), a intenção
aqui é a de ponderar sobre as possíveis relações entre o formalismo/estrutura e o
conteúdo do “texto” e do saber etnográfico.

PALAVRAS-CHAVE: Montagem; Experimentação; (etno)grafia.

ABSTRACT

This paper is the result of my dialogues with the Honmon Butsuryu-shu commu-
nity, a school of Japanese Buddhism present in Brazil since 1908. From my posi-
tion as a “photographer-anthropologist”, I tried to obliterate a possible dualism
between subject and object at the moment of bring to the ethnographic text my
fieldwork experiences. In this way, the work also seeks to emphasize an instigating
question, related to the verbal domain in anthropological writing, based on some
of the multisensory experiences made in the scope of my PhD in Social Anthro-
pology at Unicamp (2018): two visual notebooks; a verbal-visual glossary; a cover
of the thesis; a QR code; in addition, the verbal-visual texts, in which the texts, the
narratives of the interlocutors and the photographic images act together to make
explicit and give to see the field experiences. Thus, by using concepts such as
“experimentation” and “assembly” (EISENSTEIN, 1926, 1942; WARBURG, 1929), the
intention is to consider the relationships between the formalism/structure and
the ethnographic knowledge..

KEYWORDS: Assembly; Experimentation; (ethno)graphy.

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PREÂMBULO:

Este trabalho é fruto das minhas interlocuções com a escola Honmon Bu-
tsuryu-shu (entre 2011 e 2018), pertencente ao Budismo Mahayana1 japonês e
presente no Brasil desde 1908, sendo considerado o primeiro segmento a chegar
ao país, com o sacerdote Ibaragui Nissui Shounin. A partir da minha posição de
“fotógrafo-antropólogo” (ELIAS, 2018), busquei me inserir em campo como um
componente vinculado aos demais, procurando obliterar, tanto nas experiências
vivenciadas quanto no próprio texto etnográfico, uma possível dicotomia entre
sujeito e objeto.
A princípio, é necessário discorrer minimamente sobre o termo “fotógra-
fo-antropólogo” acima utilizado. Embora pareça estabelecido ao acaso, a compo-
sição do vocábulo coloca em relevo pelo menos duas questões fundamentais,
que estão intimamente ligadas entre si e com a qualidade e as características das
interlocuções em campo. Em primeiro lugar, estabelecer que sou um “fotógrafo
hífen antropólogo” (fotógrafo-antropólogo) e não um “fotógrafo barra antropólo-
go” (fotógrafo/antropólogo) mostra que aí já reside um importante elo. Ao utilizar
o “hífen”, quero evidenciar que as coisas são colocadas e estabelecidas em relação,
uma e outra. Se utilizasse a “barra”, existiria uma separação ou divisão2 evidente
entre os componentes, fotógrafo ou antropólogo.
Além disso, o posicionamento (ou a ordem) dos termos também é rele-
vante, nesse caso. Existe uma tênue diferença em dizer que sou um “antropólo-
go-fotógrafo” ou um “fotógrafo-antropólogo”. Jean Rouch, por exemplo, era um
reconhecido antropólogo-cineasta, sendo que a sua prática na etnologia foi es-
tabelecida juntamente com as suas experimentações cinematográficas. Rouch foi
mais reconhecido no campo do cinema direto/cinema verdade (no que se con-
venciona chamar de “etnoficção”) do que pelos etnólogos, embora os seus es-
tudos e produções etnográficas e fílmicas sejam essenciais para a Antropologia,
ao questionar a questão da reflexividade na pesquisa de campo ainda nos anos
1950, muito antes dos contemporâneos norte-americanos. No meu caso, ressalto
que não seria possível a composição da etnografia sem a fotografia e o ato de
fotografar. Por constituir-me primeiro como um fotógrafo, até por causa da minha
formação na graduação (fotojornalista), me tornei um antropólogo ao longo do
doutorado, no qual aprendi, simultaneamente, a compor a fotografia etnografi-
camente.
Após essas considerações iniciais, mas importantes, saliento que o presen-
te trabalho parte de pelo menos duas questões instigantes: 1) por que privilegiar
unicamente o verbal na confecção da escrita antropológica? 2) como incorporar
no texto etnográfico as narrativas, grafias e outros elementos culturais importan-
tes relativos ao grupo e/ou comunidade com quem o antropólogo (con)vive? A
partir da elaboração de algumas “experimentações multissensoriais” desenvolvi-
1
As escolas do Budismo Mahayana consistem, juntamente com as das vertentes Theravada e Va-
jrayana, nas principais ramificações budistas.
2
Na aritmética, por exemplo, o símbolo “barra” representa a divisão dos termos.
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das no âmbito do meu doutoramento em Antropologia Social na Unicamp, no


qual a tese impressa (que possui uma materialidade distinta da versão digital) é
de extrema importância, busquei alternativas para refletir sobre tais indagações, a
saber: a composição de dois cadernos visuais; um glossário verbo-visual, no qual
fotos, textos e termos em japonês se inter-relacionam; a capa da tese, que foi con-
feccionada em goma bicromatada, com cheiro de incenso e textura; um QR code,
que permite que o leitor escute uma cerimônia budista completa; além de capí-
tulos verbo-visuais, nos quais textos, narrativas verbais dos meus interlocutores e
imagens fotográficas atuam conjuntamente para explicitar e dar a ver as vivências
de campo.
Assim, ao partir dos possíveis elos entre verbal e visual, é importante sa-
lientar que a questão das “relações” consistiu no eixo transversal de toda a minha
tese. Dessa maneira, é necessário assumir que o trabalho acabou se desdobrando
em diversas questões e caminhos inimagináveis no início da jornada. Para muitas
dessas indagações, aliás, eu sequer encontrei respostas definitivas, certezas in-
contestáveis. Se no início eu tinha um “objeto” de estudo, especificamente a HBS
e os seus rituais, isto é, o meu campo etnográfico, durante o percurso surgiu um
duplo “objeto”, que consiste em abordar a fotografia também como um ato ritual,
no qual eu me inseria como um dos componentes, juntamente com a comunida-
de Honmon Butsuryu-shu. E, mais do que isso, esses dois temas se apresentaram
de forma estritamente justaposta e amalgamada.
Como lidar com essas duas frentes, visto que a junção de elementos he-
terogêneos (textos, narrativas orais coletadas, fotografias, etc.) serviu para criar
novos universos reflexivos e não para realizar uma síntese? Para tentar solucionar
tais indagações, percebi nos conceitos de montagem e de experimentação (e da
montagem como experimentação) um profícuo caminho para articulá-los, o que
originou, ainda, novas, múltiplas e instigantes questões.
Tendo como alicerce, portanto, as noções potentes de “experimentação”
e de “montagem” (EISENSTEIN, 1926, 1942; WARBURG, 1929), aliadas as de “expe-
riência” (INGOLD, 2007; TURNER, 1967; KOFES; MANICA, 2015, KOFES, 2001; SCO-
TT, 1998; BENJAMIN, 1933) e de “invenção” (WAGNER, 1975), a intenção também
foi a de ponderar sobre as possíveis ligações entre o formalismo/estrutura e o
conteúdo que produziu o próprio “texto” e saber etnográfico.
Passei, então, a refletir sobre formas de conhecimento distintas que, em-
bora respeitem as suas particularidades ontológicas, podem coexistir na “antro-
pografia”, sendo que o presente artigo tratará exatamente disso. Ingold (2015, p.
261-262) definirá “antropografia” ou “antropologia gráfica” como algo capaz de
acoplar os movimentos de “fazer, observar e descrever” com uma boa medida de
“improvisação criativa”. Ao substituir a clássica oposição entre Antropologia Visual
e etnografia escrita por uma “antropologia gráfica que abrange todas as formas
de delineamento, da escrita manual ao esboço de desenho”, o autor propõe que
possamos “escapar da polaridade da imagem e do texto, e mais uma vez restaurar
a disciplina da antropologia para a vida”.

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Dessa forma, ao pensar em articular elementos variados, a montagem


emerge como método, mas um método experimental e inventivo, que não dis-
pensa a imaginação. Para Ingold (2015, p. 43-44), a experimentação é “tão fun-
damental para a investigação antropológica quanto o é para as formas de vida
que ela busca entender”. Ele nos diz, inclusive, que a natureza experimental da
antropologia deve ser algo a ser comemorado, ao invés de encoberto. Já o con-
ceito de invenção é bem definido no dicionário como “coisa imaginada que se dá
como verdadeira, invencionice, fantasia”; ou “o que não pertence ao mundo real,
imaginação, fábula, ficção, engano”. Contudo, Roy Wagner (1975, p. 19-20), por
exemplo, irá propor que lidemos “satisfatoriamente com a invenção”, tomando tal
conceito de maneira positiva, isto é, como uma capacidade criativa e característi-
ca inerente a todos os humanos, e não como mera fantasia falaciosa.
Assim, considero a associação entre a própria etnografia (tratada como
experiência) e a tecitura antropográfica (pensada como experimentação) como
uma malha, elencando uma ligação estrutural-formal (pesquisa de campo/antro-
pografia) entre ambas. Consequentemente, ao levar em conta os possíveis elos
entre os conceitos de “experiência” e “experimentação” (que, de fato, requerem do
pesquisador uma capacidade inventiva), a montagem me parece fértil para gerar
e compor experimentos a partir das minhas vivências de campo.
Em relação ao conceito de montagem, dois autores (e as suas respecti-
vas obras) em especial são aqui levados em conta. O primeiro é o historiador da
arte alemão Aby Warburg e a sua obra Atlas Mnemosyne (1929). Segundo Samain
(2012), o Atlas consiste em um arranjo de pranchas imagéticas no qual Warburg
presenteia o observador com sucessivos quebra-cabeças (montagens e remon-
tagens, portanto) referentes à história da arte. Samain nos diz, assim, que “toda
imagem é uma memória de memórias, um grande jardim de arquivos declarada-
mente vivos”. Mais do que isso, ressalta que a imagem é uma “forma que pensa”.
De fato, propor que as imagens sejam “arquivos declaradamente vivos” e “formas
pensantes”, tensiona novamente o dualismo clássico entre sujeito-objeto e coloca
essa miríade de elementos heterogêneos (grupo estudado, “fotógrafo-antropólo-
go”, narrativas, texto, fotografias, etc.) em uma malha (meshwork).
Para o cineasta soviético Serguei Eisenstein (2002a, 2002b), a outra re-
ferência principal mencionada, a montagem é a metodologia para a construção
não apenas do Cinema, ofício no qual obteve expressivo destaque, mas também
a de todas as outras formas artísticas e de pensamento. Não obstante, para ele
“tudo é montagem”, e isso inclui a pintura, o desenho, a fotografia, o teatro kabuki,
a escrita ideogramática (como o kanji japonês ou os hieróglifos egípcios), a poesia
haikai e, até mesmo, a memória e a imaginação.
Portanto, me indago se pensar a partir desta definição permitiria tomar
o próprio campo como uma montagem experiencial, visto que o etnógrafo obser-
va, anota, ouve, fotografa, filma, desenha, conversa, gesticula, pensa, reflete, rea-
liza performances, imagina, assim como os seus interlocutores o fazem? Colocam
em jogo e compartilham, dessa forma, uma miríade de relações e sentidos, que

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é remontada no momento da composição da “antropografia”. Se a resposta for


positiva, a imagem parece ter um papel central na articulação dessa “antropologia
gráfica” e criativa. Isso porque, como dirá Didi-Huberman (2000, p. 177-178), ela
é “a montadora por excelência”, pois “desmonta a continuidade das coisas com o
objetivo de fazer surgir as suas afinidades eletivas estruturais”.

EXPERIMENTAÇÕES MULTISSENSORIAIS:

Como primeiro experimento apresento a capa da tese, que teve o intuito


de ressaltar a importância multissensorial nas minhas interlocuções com a comu-
nidade budista HBS. De fato, ao me colocar em campo como um componente
em relação com os demais, busquei imergir na pesquisa “de corpo inteiro”, isto é,
com todos os meus sentidos. Dessa forma, embora seja lugar comum dizer que o
fotógrafo só coloca em cena o seu olhar, já que o próprio aparato tecnológico que
porta é uma extensão física desse sentido, as minhas experiências nos Templos
e nos locais mitológicos budistas durante uma peregrinação por Japão, Índia e
Nepal (em 2014), mostraram o contrário. Eu não estava lá apenas observando,
mas com todo o meu sistema sensorial (visão, audição, tato, olfato, paladar), além
das minhas próprias memórias e imaginação que, juntas, compõem o meu back-
ground cultural e me influenciaram no momento de elaboração de cada uma das
10.000 fotografias realizadas ao longo da pesquisa.

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Portanto, essa capa, embora pareça uma mera referência a um processo


histórico (e belo) da fotografia, denominado de “goma bicromatada”, possui uma
potencialidade reflexiva fundamental além da estética, que por si já parece im-
portante. Para realizá-la, inicialmente imprimi uma fotografia panorâmica de uma
cerimônia no Hondo3 do Templo Seifuji (Osaka-Japão), em um papel apropriado
para transparências utilizadas em retroprojetores. Depois, foi necessário sensibi-
lizar um papel com maior gramatura, especificamente um Canson 300 gramas,
que, devido à sua densidade, permite fixar melhor (e por mais tempo) a imagem
e os componentes químicos da experimentação.
Aqui, também é fundamental saber que a “goma bicromatada” permite
produzir imagens a partir de pigmentos das mais diversas cores e dos mais va-
riados tipos, como a aquarela, por exemplo. Sobre as características químicas, é
importante destacar que o composto em si, diferentemente de outros processos
seminais da fotografia, não possui nenhuma coloração, adquirindo o tom do pig-
mento (tinta) utilizado, quando exposta à luz (raios UV). Dessa forma, a capa da
tese possui uma cor marrom, que foi obtida a partir de um componente (tinta)
que possui esta tonalidade.
Para começar a criar a imagem com a goma foi necessário, então, emul-
sionar o papel Canson 300gr com o composto químico formado pela mistura de:
20ml de goma-arábica (uma resina natural utilizada para fazer as colas), 20ml de
dicromato de amônia e 60 gotas de pigmento marrom (poderia ser qualquer cor
desejada). Após a sensibilização do papel, que é feita cuidadosamente em um
local com pouca luminosidade (visto que os raios ultravioletas reagem o tempo
inteiro com o composto químico), foi preciso sobrepor a imagem anteriormente
impressa em papel de transparência (uma sobreposição-montagem fotográfica) à
folha com a goma bicromatada, levando-as ao sol forte (preferencialmente, o do
meio-dia) por 15 minutos, para a fixação do composto.
Depois de a imagem ser revelada lentamente, por contato direto, voltei a
um local com baixa luminosidade e realizei um “banho” no papel (literalmente, o
lavei). Com uma pequena bacia com água, emergi o papel e, com a ajuda de um
pincel, retirei o excesso de goma cuidadosamente, em uma espécie de escavação
arqueológica que revelou a imagem, gradativamente. Sobre a fotografia tecnica-
mente rudimentar originada deste experimento, é importante ressaltar que, além
da visão, ela nos oferece o conhecimento por um segundo sentido: o tato, que é
acionado tanto no processo de confecção da imagem, quanto na hora de inte-
ragir com a mesma, pois consiste em uma foto em relevo, originada a partir de
elementos químicos que emulsionam o papel por meio da ação luminosa.
Além desse experimento, adicionei à capa, antes e depois do processo
de confecção da imagem, essência de incenso, também a partir de um compos-
to químico. Para tanto, utilizei uma fórmula de 150ml, constituída por: 4,5ml do

3
Nave de um Templo budista.
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fixador marrom tintura de benjoim4, 3ml do fixador marrom bálsamo do peru5 e


1,5ml de óleo essencial de sândalo, substância com aroma amadeirado e intenso,
comumente utilizada para a fabricação dos incensos, sendo este elemento que,
especificamente, deu o odor à capa da tese. Também utilizei 141ml de álcool ab-
soluto 97%, para completar a quantidade necessária de solução para dar um ba-
nho químico no papel com a fotografia em goma bicromatada.
Pelo fato dos compostos usados para elaborar a essência de incenso se-
rem marrons, utilizei o pigmento de tinta da mesma cor para a confecção da ima-
gem em goma, para que não houvesse uma grande interferência na coloração
final do experimento. Após realizar o segundo banho químico (o primeiro foi para
a revelação e fixação da imagem), agora para inserir o cheiro do incenso, foi preci-
so deixar o papel secar à sombra, já que a luminosidade continuaria a sensibilizar
a imagem fotográfica e faria o odor esvair.
Assim, somado ao tato e à visão, a tese física/impressa conta ainda com
o cheiro, e aciona uma memória olfativa, involuntária. Isso porque o incenso é
um objeto, ou melhor, uma coisa (como nos diz Ingold, 2015) composta por ele-
mentos aromáticos extraídos de vegetais, que, ao ser queimado, libera novamen-
te essas substâncias no ambiente, sendo utilizado em todos os rituais da HBS,
seja como forma de oferenda aos altares sagrados, como reverência para algum
familiar falecido ou, ainda, em orações para a cura de doenças graves, como no
Reapokegan (“Cerimônia dos 100 incensos”).
No limite, a experimentação originada pela capa da tese traz à tona uma
experiência sinestésica composta por diversas sensações, como é o caso do cheiro
da fragrância do incenso que eu sentia em todas as minhas inserções em campo,
o que desloca a minha imaginação e memória para os Templos da HBS. Esse chei-
ro, aliado à imagem fotográfica quase pictórica da goma bicromatada, me remete
para outras memórias, como a cor verde dos incensos, a tonalidade acinzentada
de quando eles são incinerados, os sons dos instrumentos musicais e das vozes
que entoam de forma incessante o Mantra Sagrado Namumyouhourenguekyou6,
as cores e as dimensões grandiosas dos Oterás (“templos”), além dos adeptos (fiéis
e sacerdotes) com os quais construí as minhas relações intersubjetivas.
Além da capa, busquei oferecer ao “leitor-explorador”7 outro experimen-
to sinestésico, no intuito de levar a sério a intenção multissensorial do trabalho.
Assim, também o convidei a escutar uma cerimônia matinal, transcrita entre as
páginas 361 e 367 da tese, que foi realizada no Templo Seifuji (Osaka-Japão). Para

4
Um bálsamo, comumente utilizado na dermatologia para a cicatrização de rachaduras na pele.
Aqui, é utilizado como um fixador do aroma, ao produzir uma espécie de capa protetora no papel,
de coloração levemente marrom.
5
Uma planta da família das fabáceas, usada como medicamento anti-inflamatório e expectorante
peitoral. No composto, é utilizado como um fixador e estabilizador aromático, também com colo-
ração marrom.
6
Falarei mais sobre tal Mantra Sagrado, capitular para a HBS, a seguir.
7
Opto pela utilização do termo composto “leitor-explorador” por causa da associação direta e qua-
se exclusiva entre o vocábulo “leitor” com a linguagem escrita. Como lido, aqui, com fotografias,
acredito que a palavra “explorador” e o conceito que ela engendra acompanham de forma insti-
gante e satisfatória o primeiro termo.
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tanto, é necessário que ele (agora também um ouvinte), instale o aplicativo grá-
tis “QR Code Reader” 8 em seu smartphone, para que possa ler a imagem abaixo,
seguindo estes passos: 1) conecte-se à internet; 2) baixe o aplicativo “QR Code
Reader” através do “Play Store” (sistema Android) ou do “App Store” (iOS) no seu
smartphone; 3) clique no ícone do aplicativo; 4) posicione o celular com a câmera
direcionada ao código a seguir, para que seja lido pelo aplicativo; 5) selecione
a opção “browse website”; 6) clique no ícone “play”( ).

Ao apresentar o áudio de uma cerimônia tenho o intuito de compartilhar


com o leitor-explorador outro elemento sensorial que, juntamente com o cheiro
dos incensos, me remete diretamente às experiências de campo junto com a HBS.
Isso porque a recitação do Mantra, Imagem9 e Oração Sagrada Namumyouhouren-
guekyou10 consiste no cerne da comunidade Honmon Butsuryu-shu, sendo o título
do “Sutra Lótus Primordial” – um dos milhares de ensinamentos deixados pelo
Buda Histórico que, segundo o mito budista, habitou a Terra, mais especificamen-
te o subcontinente indiano, a cerca de 500 anos antes de Cristo –, considerado
como primordial pela religião estudada.
Esse título, originalmente escrito em sânscrito, corresponde ao mantra
“Saddharnapuṇḍaríka” e foi traduzido para o japonês pelo mestre Nichiren Dai-
bossatsu, constituindo, para os seus seguidores, na causa, essência e semente da
Iluminação (ou Nirvana), objetivo maior do Budismo. Dessa forma, ao ouvir o áu-
dio por meio do “QR Code”, me recordo da minha primeira incursão a campo (no
Templo Nikkyoji, em São Paulo, ainda em 2011) e de todas as demais, nas quais ou-
via, quase incessantemente e em todas as cerimônias, a recitação do “Namumyou-
hourenguekyou”.

8
“QR Code” ou “Código QR” é um código de barras bidimensional que pode ser escaneado utilizan-
do a maioria dos smartphones equipados com câmera fotográfica. Esse código pode ser conver-
tido em textos, endereços na web, ou, neste caso, em um arquivo de áudio no formato MP3.
9
A partir de agora, utilizarei o termo “Imagem”, com “I” maiúsculo, para designar a escritura sagra-
da da Honmon Butsuryu-shu. O intuito será menos o de criar uma hierarquia de valores do que o
de facilitar o entendimento e evitar possíveis ambiguidades, já que o vocábulo “imagem” é polis-
sêmico. Quando me referir à fotografia, aos desenhos e à escrita, por exemplo, utilizarei o termo
“imagem”, com “i” minúsculo.
10
O Mantra e Oração Namumyouhourenguekyou também consiste em uma “Imagem Sagrada”, visto
que é representado por uma escritura/pintura em kanji (um dos ideogramas japoneses), presente
em todos os altares da HBS.
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A MONTAGEM COMO EXPERIMENTAÇÃO: CADERNOS


VISUAIS

Além dos dois experimentos multissensoriais, as reflexões pertinentes às


potencialidades de elaborar um pensamento por e com imagens ou, em outros
termos, a intenção de levar as imagens a sério e tomá-las como “elementos” pen-
santes (SAMAIN, 2012), culminaram na elaboração de dois cadernos visuais. Ao
considerar, assim, que uma das minhas questões basilares era refletir sobre quais
são os lugares que as imagens ocupam na Antropologia e na tentativa de buscar
um equilíbrio entre diversas formas de grafias, esses experimentos foram, de ma-
neira proposital, apresentados como “capítulos oficiais”, embora não contenham
nenhum tipo de legenda que acompanhe diretamente as imagens, o que suma-
riamente caracterizaria um capítulo mais convencional. Isso significa dizer que
trazer as fotografias como meros anexos ou ilustrações as reduziria a um papel
secundário, comumente assumido desde os primórdios da Antropologia e da Fo-
tografia, como já nos mostraram importantes autores (SAMAIN, 1994; NOVAES,
2015; JEHEL, 1998).
O primeiro caderno (capítulo 01 da tese) é composto por cinco fotografias
selecionadas em um amplo conjunto de cerca de 6.000 imagens coproduzidas
com a HBS durante a peregrinação por Japão, Índia e Nepal, anteriormente men-
cionada. Cada uma dessas fotos foram desdobradas em quatro camadas sobre-
postas (totalizando 20 páginas), que apareceram na versão impressa da tese em
papel vegetal, para que o efeito de fusão visual se materializasse. Isto significa di-
zer que as lâminas de papéis vegetais, possuidoras de uma textura característica,
possibilitam, simultaneamente, um efeito visual de mistura e de separação entre
as camadas, que se estabelece por meio da montagem e do movimento tátil do
folhear das páginas.
Esse primeiro caderno consiste, assim, em uma experimentação fruto das
experiências de vida que tive com a caravana de peregrinos, sendo composto por
cinco fotografias de planos abertos, cujos desdobramentos em camadas, que en-
fatizam certos aspectos e detalhes, são uma tentativa de convidar o leitor-explo-
rador a acompanhar os movimentos, percursos, mergulhos e escavações por mim
realizadas com e nas imagens.
Para auxiliar nessa jornada, ofereci pequenos “intervalos” escritos entre
cada um dos conjuntos visuais, com o intuito de ressaltar o meu próprio percur-
so visual para compor essas “invenções” imagéticas. Isso porque, como os grupos
de imagens não possuem descrições, legendas ou quaisquer explicações verbais
diretas, a intenção com os pequenos ensaios foi a de ampliar as “decupagens fo-
tográficas” para criar um refinamento do ato de ver. O propósito era realizar uma
análise desse experimento, sem que a imagem cumprisse uma função tautológi-
ca e meramente ilustrativa em relação ao texto que simplesmente a descreveria,
dando a ver aquilo que chamou a minha atenção, o que me “punge” (BARTHES,
1984) visualmente, a saber: os gestos, as posturas, as relações rituais e cotidianas,

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os rostos, os espaços, as memórias e os esquecimentos, etc.


Além disso, ao pensar um caderno visual composto por conjuntos de ima-
gens intercalados com pequenos textos-ensaios, aciono novamente o conceito
de “montagem”, com o qual lido ao longo de todo o percurso. Dessa forma, reflito
sobre as relações e concatenações e sobre os intervalos e silêncios possíveis entre
as imagens e, ainda, entre as partes visuais e escritas. A proposta se constituiu,
portanto, em pensar esse caderno e sua materialidade não apenas como um su-
porte estático para a inserção das fotos (e, também, das outras formas de gra-
fias, como a própria escrita), mas como componentes do trabalho que chamam a
atenção para a relação entre forma e conteúdo.
A sequência a seguir corresponde ao “conjunto 03” do referido caderno
visual, acompanhado da sua respectiva exegese textual, isto é, a descrição do per-
curso imagético por mim elencado (dos muitos trajetos possíveis) para orientar o
explorador das imagens:

Ao auscultar a primeira camada dessa composição visual, rememoro que,


para chegar aos arredores do pagode (típico monumento budista) mostrado, a
caravana da HBS teve que percorrer uma longa estrada. Primeiro a pé, passamos
pela estátua do Buda Menino, localizada em cima de uma fonte cuja base tem o
formato da flor de lótus, importante símbolo budista. Depois, com o auxílio de

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uma mistura de bicicleta (ou triciclo, já que tinha três rodas) com biga, na qual um
guia local transportava dois passageiros, chegamos finalmente ao lugar onde se
realizou a cerimônia religiosa.
No caminho, um clima agradável, com uma leve brisa, pequenos lagos e
inúmeras árvores. Também chamava a atenção, nas águas, a presença de belas
flores de lótus que começavam a florescer. Sobre as lagoas, muitas bandeiras bu-
distas (coloridas em azul, amarelo, vermelho, branco e laranja) e do Nepal. Recor-
do-me, agora, dos vários comentários sobre esta última ser a única bandeira no
mundo que não possui a forma quadrada ou retangular, sendo composta por dois
triângulos justapostos, que retratam uma imagem da cosmologia local, ao mos-
trar como a Terra seria vista por uma pessoa se esta estivesse no espaço.
Na segunda imagem do conjunto, estou novamente em busca dos deta-
lhes da fotografia. Novo mergulho, nova escavação. Primeiro, noto a presença, na
parte superior central, de uma torre protegida por uma pequena cerca. Correia
Odoshi11 realiza uma narrativa sobre a construção, e agora sei que se trata do pi-
lar do rei Ashoka, erigida no ano de 249 a.C. e que contém os seguintes dizeres:
“Rei Piyadasi (Ashoka), amado de devas, no ano 20 da coroação, ele próprio fez
uma visita real ao local onde Buda Shakyamuni nasceu e erigiu um pilar de pedra
em honra ao nascimento de Bhagavan (abençoado)”. Esse foi o mesmo imperador
que financiou a estupa (monumento budista) em frente à qual se realizou a ceri-
mônia religiosa.
Desço um pouco o meu olhar e percebo uma máquina fotográfica. Na
verdade, como um fotógrafo compulsivo e quase um adorador de equipamentos
desse tipo, parece que persigo tais elementos.
Depois, procuro notar os objetos religiosos e gestos recorrentes nos ri-
tuais. Os dedos que manejam o Odyuzuu, as mãos justapostas em sinal de ora-
ção, novamente com o terço budista entre elas. A baqueta do mokkin, um dos
instrumentos musicais utilizados para ritmar a oração do Mantra Sagrado, Na-
mumyouhourenguekyou. Relembro do seu som. Vejo o livro litúrgico da HBS, o
Myookooichiza, entreaberto, atrás do sacerdote que segura a Imagem Sagrada
portátil, carregada pelo Correia Odoshi durante toda a peregrinação pela Índia e
pelo Nepal.
Observo com mais cuidado essa imagem portátil que, mesmo tendo um
apoio (pequenos “pés”) para a sua base, teve que ser segurada durante toda a
cerimônia pelo sacerdote srilankês, Dileepa Ryojun. Tento lembrar o “por que” da
necessidade de segurar o Gohonzon e agora quase consigo sentir o intenso vento
do entardecer. Recordo, ainda, que quando a caravana seguia, sempre de ônibus,
pelas estradas acidentadas do norte da Índia rumo à Lumbini, no sul do Nepal
(cidade que fica localizada quase na divisa entre esses dois países), o sacerdote
Dileepa Ryojun teve que se passar por um dos guias do ônibus dos brasileiros (no
qual eu estava), porque não havia emitido o seu visto de entrada no país.
Penso no aglomerado de pessoas, talvez em alguns milhares, na estrada

Mestre budista.
11

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fronteiriça, na qual era necessário entregar os passaportes com os vistos em um


pequeno posto policial. O que se fazia era uma contagem rápida do número de
passageiros, que deveria coincidir com a quantidade de passaportes (com os vis-
tos carimbados) entregue para conferência dos militares. Por algum motivo, os
guias não precisaram mostrar a autorização de entrada. Lembro-me agora dos
sons das risadas e dos sorrisos do grupo brasileiro quando, pouco antes de ultra-
passar os limites da Índia, Dileepa Ryojun pegou emprestado um chapéu e uma
camisa de um dos condutores da caravana e passou a fronteira “disfarçado” ao
lado do motorista, que também não precisou mostrar o passaporte.
Voltando para a fotografia (física, material), percebo os pés calçados com
meias do mesmo sacerdote e os pés descalços do Correia Odoshi, em uma posição
tensionada, com os dedos pressionados, que não parece muito confortável.
Neste momento, a minha visão segue para o rosto do Arcebispo, cujo
olhar “caminha” na direção do também sacerdote superior, Nagamatsu Odoshi,
que coordenava e liderava o grupo japonês. Lembro-me que, nesse momento,
os dois sacerdotes, há muito tempo bons amigos, contavam para a caravana o
mito de nascimento de Siddharta Gautama e outras narrativas sobre o rei Ashoka,
soberano da região na época da vida do Buda.

**********

O cenário dessa fotografia fica em Lumbini, no Nepal, local onde, segundo


narrativas míticas por mim acessadas durante a peregrinação, o Buda Histórico,
precursor do Budismo, teria nascido.
À frente da parte externa da grande estupa, onde, segundo os mesmos
relatos pronunciados pelo Correia Odoshi, existem “restos legítimos do Iluminado”
que foram exumados após o padecimento do seu corpo físico, o grupo da HBS do
Brasil, agora encorpado pela adesão de sacerdotes e fiéis japoneses (que se jun-
taram à caravana pela Índia e pelo Nepal), se aglomera para a celebração de um
ritual em devoção ao local sagrado. Ao fundo, é possível avistar um grande jardim,
que demarca o local de nascimento de Siddharta Gautama.

**********

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O segundo caderno imagético (capítulo 05 da tese) foi também deno-


minado de “mapa visual”, oferecendo 28 fotos que foram dobradas e encaixadas
umas nas outras, como origamis12, para depois serem prendidas a um papel de
fundo, por meio de fita dupla face. A ideia é pensar tal experimento como uma
composição circular, que coloca em evidência uma imagem nuclear, que consis-
te na fotografia da Imagem Sagrada localizada na Catedral Nikkyoji (SP), o maior
dos 11 templos da HBS do Brasil. Esse acervo visual, selecionado dentro de um
conjunto de quase 10.000 fotografias, refere-se às diversas cerimônias da HBS e
relaciona os contextos rituais observados, tendo sido elaborado exclusivamente
com fotos, sem legendas ou explicações textuais.
De fato, essa composição tem uma dupla função, a saber, dar a ver (e
também acessar pelo tato) dois rituais distintos, mas que se mostram de manei-
ra sobreposta, imbricada e de forma simultânea: o ritual religioso, propriamente,
que demonstra as diversas relações no âmbito sagrado e leigo da HBS; e o ritual
que chamei de “fotográfico”. Este último revela as relações estabelecidas no ato
de fotografar – em todos os seus âmbitos, desde a produção das imagens até as
diversas formas como estas serão apropriadas ou esquecidas –, incluindo a minha
posição dentro da comunidade, primeiramente visto como um outsider e, grada-
tivamente, recebendo a legitimação da HBS e me tornando o “fotógrafo oficial”
desse grupo religioso.
Esse caderno de imagens consistiu, portanto, em uma montagem na tese
física (impressa), com a proporção aproximada de 15 páginas A4, que oferece ao

12
Origâmi (em japonês, “ori” significa “dobrar” e “kami” significa “papel”) é a tradicional arte nipôni-
ca de dobrar o papel para a criação de representações de determinados seres vivos ou objetos.
Normalmente, as obras compostas por vários origamis são realizadas sem cortar ou colar os
papéis, por meio de encaixes.
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leitor um objeto que poderá ser manuseado, dobrado e desdobrado. Nos termos
de Ingold (2015 [2011]), ao pensar na questão da materialidade, esse objeto seria
entendido como uma “coisa”. Novamente, o conceito de “montagem” reaparece
nesse novo experimento, tendo, agora, como inspiração mais direta a obra “Atlas
Mnemosyne”, elaborada por Warburg (2000 [1929]), na qual o autor relacionava
imagens heterogêneas, de tempos e locais distintos, em grandes pranchas vi-
suais, nas quais os intervalos e as lacunas, assim como os fundos/suportes pretos,
são partes fundamentais da composição, para estabelecer as relações com e entre
as imagens.
Assim, no mapa visual, de uma forma semelhante, as associações são reali-
zadas exclusivamente por meio de elementos imagéticos, sejam eles propriamen-
te associados à ontologia da imagem fotográfica (aspectos de iluminação, cor,
saturação, contraste, elementos formais, etc.), seja por meio de elementos gráfi-
cos (na tese digital, traços coloridos que ligam uma fotografia à outra), linhas de
costura (na tese física, os traços coloridos dão lugar aos fios tecidos com linhas de
costura entrelaçadas, que unem tais imagens), dobraduras de origami, colagens
e encaixes (tese física). A seguir, exponho a exegese do primeiro dos cinco pe-
quenos conjuntos por mim criados a partir de uma desmontagem do mapa, para
facilitar a visualização dos leitores-exploradores:

O que chama a minha atenção inicialmente na fotografia tomada como


central é a iluminação em cores quentes (ou, em termos técnicos, com menores
temperaturas de cor), na tonalidade amarela e vermelha, cuja qualidade de luz

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acentua a própria coloração da Imagem Sagrada, em dourado. Para obter essa


fotografia utilizei uma lente considerada “mais clara”, isto é, que possui uma am-
plitude de abertura de diafragma maior, o que possibilitou a captação de lumi-
nosidade ambiente sem a necessidade de utilização de um flash acoplado, cuja
tonalidade é mais próxima da cor branca e azulada (cores frias, com maiores tem-
peraturas de cor).
Na composição dessa fotografia, as opções técnicas/estéticas estão inti-
mamente ligadas com as questões éticas, já que a imagem foi realizada na primei-
ra visita de campo, que realizei em maio de 2011, na qual ainda me sentia (bastan-
te) constrangido por incomodar os fiéis ao utilizar o flash ou lentes teleobjetivas
(com maior zoom óptico). Além dessa escolha, fiz uso de uma objetiva fixa de 50
mm (chamada de “normal” por simular o campo de visão “normal” do ser huma-
no), o que me obrigou a fotografar muito próximo ao Altar Sagrado, em um mo-
mento anterior à realização de um culto matinal, com poucas pessoas no Hondo.
Três das quatro imagens conectadas a essa fotografia pelas extremidades
também possuem as mesmas cores e variações tonais, embora existam diferenças
formais importantes, como o enquadramento, por exemplo. Se na Imagem Sagra-
da a fotografia é confeccionada de forma frontal, centralizada, na posição vertical
e levemente em contra-plongée (de baixo para cima ou, em uma tradução literal,
“contra-mergulho”), a do canto superior esquerdo é tirada um pouco na diagonal,
em plongée (de cima para baixo ou, em uma tradução literal, “mergulho”).
Na verdade, como a Imagem Sagrada encontra-se sob um patamar um
pouco mais elevado (sobre o Altar Sagrado), optei por retratá-la dessa maneira
por uma opção estética, já que uma fotografia na vertical e em contra-plongée
oferece ao elemento fotografado um aspecto grandioso (algo sagrado, no caso);
e por uma posição ética, visto que existe uma restrição aos fiéis e observadores,
que não devem subir no Altar, principalmente durante a realização do Culto Ma-
tinal. Além disso, o sentido da visualização dessa fotografia pelo leitor se dá ver-
ticalmente, ressaltando a Terra Pura de Buda (ornamento dourado e em forma
de quadro/moldura) que contém o ensinamento sagrado, uma escritura em kanji
que também deve ser lida/visualizada na vertical.
A imagem conectada pela parte superior esquerda também foi tirada em
um Hondo, mas dessa vez no Templo Seifuji, na cidade de Osaka (Japão). Elenco,
dessa forma, uma relação formal13 entre o círculo da Imagem Sagrada da fotogra-
fia central com a haste da pequena cesta de frutas da segunda foto, também em
formato oval e cujos arranjos contendo as velas e os incensos remetem aos or-
namentos da primeira imagem. Ao fundo, é possível ver alguns escritos em kanji
e notar a presença dos símbolos butsumarus nas velas. Os kanjis também estão
presentes na Imagem Sagrada da primeira imagem, sendo que o símbolo do Bu-
tsumaru aparece acima dela, na parte nuclear, junto ao ornamento dourado que

13
Nas análises das fotografias, utilizo o termo “formal” para designar as formas presentes em cada
imagem ou “dentro de” cada fotografia e o termo “composição” para designar as escolhas técni-
cas/estéticas do fotógrafo (ângulo, objetiva, diafragma, iluminação, etc.), embora esteja conscien-
te de que tal diferenciação seja um tanto artificial.
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indica a Terra Pura de Buda.


Já a imagem conectada no canto superior direito é um Altar dos Gran-
des Mestres da HBS, “tirada” em Osaka e tomada em contra-plongée. Devido às
restrições referentes à subir no local sagrado, realizei a fotografia em um plano
inferior e lateralmente, pois no momento da confecção da imagem estava sendo
celebrado um Culto Matinal e só pude fotografar a partir dessa perspectiva, já que
os sacerdotes ocupavam o Gohouzen (altar).
A fotografia do Hondo da Catedral Nikkyoji, ligada pelo canto inferior es-
querdo, foi realizada em contra-plongée frontal, com o intuito de acentuar, no-
vamente, o aspecto grandioso desse local de realização das cerimônias da HBS.
Essa foi uma das primeiras imagens realizadas em campo confeccionada antes da
realização de uma cerimônia e da chegada dos fiéis ao local. Para conseguir ela-
borar a fotografia do Hondo inteiro e ressaltar as suas cores, magnitude e riqueza
de elementos rituais, tive que me afastar o máximo possível. Esse ato reafirma a
opção de fotografar o local vazio, já que quando a nave do Templo está repleta de
fiéis em grandes cerimônias, torna-se inviável retratar o Hondo completo14.
Além dessas questões, é importante atentar para outro aspecto técnico
importante. Utilizei uma objetiva 18mm, que permite um campo de visão expan-
dido em relação ao olhar humano. Com essa escolha, portanto, pude incluir mais
elementos na imagem, o que influencia esteticamente na fotografia, que fica mais
arredondada nas extremidades ao gerar uma espécie de achatamento provocado
pela menor distância focal e profundidade de campo. Para confeccionar essa fo-
tografia, tive ainda que colocar a câmera no chão e me deitar para olhar pelo visor
da máquina e enquadrar o Hondo, outro motivo para compor a imagem em um
momento anterior ao culto matinal e com o local vazio.
Já na fotografia unida à imagem central do mapa pela parte inferior di-
reita, o fator que as conecta não é mais a semelhança, mas a distinção de tonali-
dades em relação às outras imagens mencionadas. Essa foto foi “tirada” com uma
teleobjetiva 135mm (que é própria para realizar closes) e com um flash dedicado,
pois desejava ressaltar a colocação do incenso sob o Altar Sagrado pelo sacerdote
Fabio Barbosa. Ao rever a imagem desse monge, que foi um importante interlocu-
tor durante as pesquisas de campo no Brasil (tendo realizado até uma entrevista
“oficial” com ele), recordo que em maio de 2011, quando fazia a minha primeira
imersão na Catedral Nikkyoji, o acompanhava em uma ronda noturna para che-
car se todos os portões estavam fechados. Na ocasião, ele me contava sobre as
dificuldades do exercício do sacerdócio, já que havia se licenciado de um cargo
público para se tornar um monge da HBS. Também me dizia que, diferentemente
da grande maioria dos clérigos da religião, ele residia em um apartamento com a
sua esposa (na imagem, é possível notar a aliança de casamento no dedo anelar
da mão esquerda, próximo do seu relógio) e um filho recém-nascido, na época.
Segundo os seus relatos, esses fatores dificultavam a sua manutenção na carreira

14
Contudo, ao analisar essa questão com certo afastamento temporal, acredito que uma imagem
com o Oterá ocupado por fiéis e sacerdotes também seja interessante para pensar no ponto de
vista do fotógrafo-antropólogo e nas suas escolhas éticas e estéticas.
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sacerdotal. Pouco tempo depois, tive a notícia de que ele havia voltado para o
antigo emprego e deixado o monastério.

OUTRAS RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE GRAFIAS:


CAPÍTULOS E GLOSSÁRIO VERBO-VISUAIS:

Os sete anos de convívio com a HBS resultou em um acervo composto


por relatos orais gravados, diários de campo escritos e cerca de 10.000 fotografias,
tendo sido escolhidas “apenas” 211 para a versão final do trabalho. Em relação à
estrutura, propus na primeira parte da tese15 o desenvolvimento de dois capítu-
los “verbo-visuais” juntamente com o primeiro caderno de imagens, elaborados a
partir das experiências de vida ou da “etnobiografia” (KOFES, 2001; GONÇALVES,
2012; MARQUES, 2012; CARDOSO, 2012) do monge Nityuu Correia. Ele ocupa uma
importante posição na hierarquia dos sacerdotes no Brasil e foi uma figura ímpar
durante a pesquisa, sendo o responsável por estabelecer e mediar a minha in-
serção dentro da comunidade, tanto no Brasil quanto no Japão, Índia e Nepal, na
ocasião da peregrinação pelo extremo oriente, em 2014.
Além disso, enfatizo que realizei todas as etapas de imersão na comunida-
de portando uma máquina fotográfica, assumindo, novamente com o auxílio e a
legitimação do Correia Odoshi, o papel de fotógrafo diante dos fiéis16 da religião.
Isso significa dizer que a constante presença do sacerdote foi percebida também
por meio das fotografias. A importância da imagem fotográfica, neste caso, vai
muito além das meras utilidades práticas (ou usos) que eventualmente pode ter
na Antropologia, servindo como uma simples ferramenta de pesquisa, ilustração
e/ou prova de que o pesquisador esteve realmente em campo.
Dessa maneira, introduzo o cenário religioso e ritual da HBS no seu país
de origem (Japão), além de contar as histórias de vida e os mitos que cercam
os principais mestres dessa escola budista, a saber, Nichiren Daibossatsu, Nitiryu
Daishounin, Nissen Shounin e o precursor da HBS no Brasil, o monge Ibaragui Nis-
sui Shounin. Também mostro, nesta parte do trabalho, as minhas vivências pela
Índia e Nepal, região na qual o Buda Histórico ou Buda Shakyamuni propagou por
cerca de 50 anos os ensinamentos (denominados Sutras) para a sua comunidade
(sangha).
Nessa etapa da viagem, que ocorreu após a peregrinação pelo Japão,
quando continuei a acompanhar a caravana brasileira que se juntou com um gru-
po de sacerdotes e fiéis japoneses, passei pelos principais sítios mitológicos de
uma tradição budista mais geral, como: os locais de nascimento (Lumbini), Ilumi-
nação (Boddhygaya), morte e cremação do Buda Histórico (Kusinagara), os pri-
meiros templos (Mulagandha Kuti, Varanasi), e, ainda, o lugar mais sagrado para a
HBS, o monte Gridhrakuta ou Pico da Águia (Rajgir), onde o Buda Shakyamuni teria

15
Intitulada de “Narrativas verbo-visuais”.
16
Termo êmico, utilizado no Brasil.
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pronunciado o Sutra Lótus Primordial, ensinamento basilar para a comunidade.


O intuito, assim, foi o de mostrar que a história de vida do Correia Odoshi
está estritamente ligada à da HBS do Brasil, pelo fato de ter se tornado sacerdote
ainda muito jovem, aos 13 anos de idade. A meu ver, ele incorpora a figura do
narrador de Benjamin (1994), isto é, um personagem apto e legitimado para fa-
lar – sendo que o faz não apenas pela linguagem verbal, mas, também, por uma
linguagem corporal/gestual – para a sua comunidade e em nome dela, (re)atuali-
zando e (re)inventando narrativas a cada novo contar.
A primeira parte do trabalho foi fundamental, ainda, para mostrar as ce-
rimônias, os mitos, os rituais, os sistemas hierárquicos entre sacerdotes e fiéis, a
arquitetura, os diversos objetos sagrados que compõem os cenários dos templos,
além de figuras importantes para a religião. Isto pode ser visto, por exemplo, na
narrativa realizada pelo Correia Odoshi sobre o primeiro mestre da HBSHBj que,
juntamente com a fotografia por mim realizada nesse momento, relacionam tex-
to/narrativa e imagem:
Então, o Nichiren, nosso primeiro mestre, viveu nessa caverna escu-
ra, fria, úmida e sombria, chamada de “Tatsu No Kuti” ou “Boca do
Dragão”, esperando o seu carrasco chamado Tomosaburo Naoshigue,
que ia cortar a sua cabeça, decapitá-lo né, com uma famosa espada,
a Jadô-maru. E ali, ele orou sem parar o Namumyouhourenguekyou.
Porque ele sabia que ainda precisava expandir o Odaimoku, ainda
tinha que cumprir o seu papel, não era a hora ainda dele morrer.
Quando o carrasco chegou e levantou a espada pra fazer o seu tra-
balho, um vendaval repentino, ninguém imaginava isso né, desceu e
surgiram estranhas luzes, do tamanho da lua cheia. Aí, um raio lumi-
noso, junto com um barulhão mesmo, cortou o céu e entrou na gruta,
nessa caverna aí ao fundo, por uma entrada na parte de cima. E o que
aconteceu, então? O raio partiu a espada do carrasco no meio. Ele
ficou assustado e espantado também com a fé do Nichiren, e desistiu
de matá-lo e o soltou. Essa foi conhecida como a “Perseguição de Tat-
sunokuti” (Correia Odoshi, maio de 2014).

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Dessa maneira, a escolha de privilegiar a presença do Correia Odoshi e de


suas narrativas orais também salienta questionamentos fundamentais que dizem
respeito à minha própria escrita e imagética etnográfica, pois opto por mostrar
sequências completas dos relatos realizados pelo sacerdote em cada local visita-
do pela caravana, momentos nos quais sempre produzia muitas fotografias. Em
relação às descrições, que podem parecer pormenorizadas e longas demais, sigo
a instigante lição proposta por Boas (2015 [1927]), que talvez seja uma importan-
te reflexão e caminho para aqueles que preferem não cortar uma narrativa em
prol de descrever sucintamente, de “enxugar” ou “higienizar” o texto. Se assim o
fizesse, acredito que não estaria investindo em demonstrar as “malhas” (INGOLD,
2015), mas apenas as redes de relações entre as coisas, ligações ponto a ponto
que dão a ver somente a causa e o efeito de algo:
Na narrativa em prosa livre, uma ênfase particular é colocada sobre a
completude da sucessão de eventos. Informantes pueblo e kwakiutl
criticam histórias a partir deste ponto de vista. Um pueblo dirá: “Você
não pode dizer ‘ele entrou na casa’, pois ele precisa primeiro subir a es-
cada, e depois descer na casa. Ele precisa cumprimentar os presentes
apropriadamente e receber a resposta educada apropriada. Nenhum
destes passos pode ser omitido. Isto é ilustrado pelo exemplo da his-
tória laguna contado anteriormente (cf. p.293-295). Os kwakiutls não
podem dizer “Então ele falou”, mas eles diriam: “Então ele se levantou,
falou e disse”. Eles não permitem que uma pessoa chegue a algum
lugar sem que antes ele comece a viagem (BOAS, 2015 [1927], p. 296).

Ao enfatizar, portanto, as experiências de vida desse “interlocutor privi-


legiado” (BATESON, 2006 [1936]; SCHUMAKER, 2001; WAGNER, 1981 [1975]; TUR-
NER, 1967), que foram expressas por meio dos ricos relatos por ele realizados e às
quais tive acesso por meio da etnografia (realizada com uma intenção biográfica),
optei por pensar no conceito de “etnobiografia” ou de “etnografia de uma expe-
riência” (KOFES, 2001; KOFES, MANICA, 2015), que, neste caso, levanta importan-
tes questionamentos. Especificamente, indagações referentes mais à ordem do
como do que dos porquês: Como transmitir as experiências de pesquisa para que
outras pessoas as possam conhecer? Como compartilhar a minha escrita etnográ-
fica, composta também pelas minhas vivências e percepções em campo, incor-
porando, efetivamente, a presença e experiência narrada pelos meus interlocuto-
res (como se fosse uma ópera interpretada por vários cantores, conjuntamente)?
Como, dessa forma, tratar as narrativas e estórias de vida?
Assim, a primeira parte do trabalho auxilia na introdução da minha te-
mática, ao expor ao leitor-explorador os mitos e as práticas rituais por meio da
própria peregrinação. Além disso, serve para fomentar a reflexão sobre duas for-
mas de narrativas, uma visual e outra verbal, que a meu ver dialogam ao trazer à
tona duas formas distintas de narrar. Para tanto, inseri 52 imagens inicialmente
selecionadas para compor o primeiro caderno visual17 nos capítulos 02 e 03, de
forma intercalada com os textos e optando por deixá-las em preto e branco, com
o intuito de mostrar um contraste com o caderno imagético, nas quais essas fo-

17
Estas fotografias foram, posteriormente, reduzidas para um conjunto de dez e, depois, para as
cinco imagens finais.
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tografias aparecem coloridas, na busca por um contraponto da ordem do visual.


Essas fotos em preto e branco almejam, ainda, que o leitor rememore e
retome os conjuntos visuais do primeiro caderno de imagens, ao lançarem um
segundo olhar, agora mais aguçado, sobre os corpos, gestos, posturas, traços, re-
cortes e volumes. Cada uma dessas fotografias também (re)aparece em páginas
inteiras, sempre colocada com algum relato oral de um interlocutor, contado na
ocasião em que eu realizei a foto em questão. Embora inicialmente tenha pen-
sado em não realizar qualquer menção escrita sobre as imagens, optei por fazer
comentários próximos às estórias que a elas se relacionam, tanto para indicar ao
leitor-explorador o caminho do meu olhar em cada imagem, quanto para não
criar uma ruptura e dualismo entre o texto e a foto.
Nessas ocasiões, as passagens textuais apareceram em negrito, um ar-
tifício gráfico escolhido para destacar que tal parte escrita está intrinsecamente
relacionada à fotografia que a precede ou sucede. Abaixo, segue outro exemplo
de uma foto estritamente relacionada à narrativa do Correia Odoshi, agora sobre
o Pico da Águia, na Índia:
O Pico da Águia era o centro da capital mesmo. Ele saia de lá para vir
aqui, porque era mais tranquilo. O Pico da Águia é igualzinho a cinco
mil anos atrás. Era o lugar preferido de pregação do Buda. Tem ótima
acústica e é o cenário de toda a liturgia da HBS, incluindo o Myookooi-
chiza, que é o nosso livro com as orações para os cultos. Neste local
vieram todos os Bossatsus originais, incluindo o Jyougyou Bossatsu.
Na pregação dos oito primeiros capítulos foi o Buda Primordial quem
pregou física e espiritualmente. As cinco montanhas justapostas des-
sa cordilheira trazem a acústica perfeita ao local. Segundo a histó-
ria oficial, o Buda nasceu exatamente no dia 08 de abril. Segundo a
história da Índia, ele nasceu mesmo é no primeiro dia da lua cheia
de maio. Então, pra todo mundo ver como somos predestinados,
hoje, dia 14 de maio, é a primeira lua cheia do mês. Então, estamos
subindo a montanha exatamente na época, no dia do nascimento,
do aniversário do “Buda Menino”. É nessa época agora que ocorre o
festival da lua cheia, em homenagem ao Buda. Hoje tá todo mundo
permitido a tomar uns goles! (Correia Odoshi, maio de 2014).

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Por fim, é interessante notar que algumas das imagens ocupam um es-
paço físico muito maior do que o texto que as “acompanha”, o que revela, neste
sentido, o fato de que as lacunas em branco que aparecem na diagramação da
tese são propositais. Esse cuidado mostra uma tentativa de evitar privilegiar o
texto ou as fotografias, sendo que a tenção (e a tensão) de tal escolha é colocar
em diálogo e lidar com as duas formas de expressão (fotográfica e escrita) simul-
taneamente, uma e outra. Enquanto no texto o intuito é da ordem de descrever e
analisar o contexto e o momento etnográfico, ao acessar as fotos o desejo é que
o leitor-explorador (re)conheça os interlocutores, os cenários, os rituais, os gestos,
as posturas e as relações.
****************
O segundo caderno de imagens (capítulo 05) também é acompanhado
por dois capítulos “verbo-visuais”, compondo a terceira parte da tese18. Esse con-
junto trata especificamente de elucidar o complexo campo dos rituais religiosos
por mim presenciados e analisados, além de trazer novas questões relativas ao
“encontro etnográfico privilegiado” que mantive com esta escola budista, sempre
mediado pelo Correia Odoshi. Assim, busco à luz da teoria antropológica, dar a
ver as relações encontradas no contexto religioso e sagrado da HBS, a partir dos
diversos rituais19 realizados pela comunidade, que tem como cerne, como já foi
mencionado, o Mantra, Oração e Imagem Sagrada, Namumyouhourenguekyou.
Além disso, procuro conceituar o que defini como “Ritual Fotográfico”, ao
estabelecer as diversas relações encontradas no campo fotográfico, seja entre os
fotografados, entre o fotógrafo e a comunidade retratada, entre o fotógrafo e os
espectadores das imagens e em relação ao acervo imagético produzido, que ser-
virá como fonte de memória compartilhada, tanto para a comunidade HBS do
Brasil, quanto para o fotógrafo-antropólogo. No limite, assumo o risco de tratar o
“ritual”, um tema clássico na Antropologia, a partir das relações estabelecidas no
próprio encontro etnográfico, o que significa dizer que busquei mostrar a posição
dos elementos encontrados na etnografia em relação uns com os outros, me co-
locando, também, como um desses componentes.
Ressalto, ainda, que nesta parte da tese retomo as 80 fotos que foram ini-
cialmente escolhidas (dentro do meu acervo completo) para compor o segundo
caderno visual20. Agora, elas são mostradas ao leitor em preto e branco, com os
textos referentes às narrativas orais dos interlocutores ou aos comentários por
mim realizados em negrito, da mesma maneira e com os mesmos intuitos reflexi-
vos e analíticos das imagens que compuseram a primeira parte do trabalho, po-
rém, em proporções menores, como é possível notar na imagem abaixo:

18
Intitulada “Dupla imagem, duplo ritual”. Existe ainda a segunda parte da tese, denominada “Por
uma metodologia da (des)montagem”, composta exclusivamente pelo Capítulo 04: “Metáforas e
experimentações visuais”.
19
Como o batismo budista, passeatas, cultos matinais, cultos noturnos, catequese budista, orações
fervorosas, casamentos, conversões, cultos póstumos, etc.
20
Após processos de seleção, o número de imagens foi reduzido de 80 para 28.
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O último experimento aqui apresentado (e que também encerra a tese) é


o “glossário verbo-visual”, sendo que as reflexões nele propostas surgiram a partir
do Mantra, Imagem e Oração Sagrada, Namumyouhourenguekyou. Ao considerar
que a Imagem Sagrada também constituir uma escritura, já que o que é venerado
pelos fiéis da HBS é o Namumyouhourenguekyou escrito em kanji, muitas vezes
utilizado como arte pictórica (um desenho, uma outra forma gráfica), tal cons-
tatação serve como base para tensionar as noções de escrita e de imagem, ao
perceber, neste caso, que as letras e os ideogramas (no caso, o japonês) também
nos são dados a partir da visão, sendo percebidos como imagem antes de serem
decodificados como signos/símbolos linguísticos.
No caso dos ideogramas japoneses, especificamente, é fundamental res-
saltar uma ligação direta entre os caracteres, propriamente, com o elemento vi-
sual da vida cotidiana que representam. Ou seja, se um determinado conjunto de
ideogramas significa “Oterá” (em português, “Templo”), tal kanji terá os formatos
e traços que remetem aos aspectos visuais de um Templo japonês. Anne-Marie
Christin (2000, 2006) observa, ao falar do hieróglifo egípcio, que essa capacidade
figurativa não é simplesmente imitativa ou representativa, levando em conside-
ração o suporte no qual é inscrito (seja pedra, papiro, ou incluindo, a meu ver, os
inúmeros ecrãs dos atuais computadores), o dimensionamento e a relação espa-
cial e semântica ligada à distância que separa os signos uns dos outros, tal como
ocorre nos ideogramas japoneses e chineses.
Além disso, Ingold (2015) mostra que as letras do alfabeto romano tam-
bém possuem essa ligação visual/espacial com determinado objeto (ou “coisa”),
ao nos contar a história da letra “A” maiúscula, cujo “pequeno gesto e a marca grá-
fica deixam atrás de si um peso de precedente histórico que se estende por mui-
tos milênios” (2015 [2011], p. 269). O autor mostra a “evolução” (ou o retrocesso)
da letra, inicialmente uma figura que representava uma cabeça de boi, por meio
do qual os escribas egípcios registravam a riqueza em bovinos, que sofreu uma
série de cooptações até chegar ao “A” contemporâneo.
Portanto, essas reflexões acerca dos ideogramas acabaram por gerar o
“glossário verbo-visual”, posicionado na parte final da tese após as referências bi-
bliográficas e no local comumente destinado aos “anexos”. Este é constituído por
termos e expressões, na sua maioria em língua japonesa (além de alguns vocábu-
los em sânscrito-pali, idioma original dos primeiros textos escritos do Budismo),
utilizadas pela religião HBS e cuja compreensão dos significados é fundamental
para a boa leitura do trabalho. Optei, neste sentido, por expandir a própria noção
de “glossário”, ao disponibilizar, além do termo e da sua definição, fotografias e a
escrita-desenho em kanji:

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DESFECHO:

O presente artigo apresentou, pelo menos, dois grandes desafios a se-


rem enfrentados, que estão intimamente interligados: 1) compreender como se
dá o conjunto de experiências compartilhadas entre o “fotógrafo-antropólogo”
e o grupo estudado e, 2) a partir do estabelecimento das imbricações possíveis
entre diversas formas de expressão (grafias), refletir sobre o conhecimento que é
por elas gerado e sobre como experimentar tal conhecimento a partir das vivên-
cias de campo. Na pesquisa de doutorado, as experimentações foram elaboradas
a partir das minhas experiências com a comunidade HBS, sendo que não pude
prevê-las antes da pesquisa, e, após este percurso, o intuito foi o de explorar as
potencialidades da montagem como uma “metodologia da experimentação”.
Dessa forma, a maneira linear como apresento, aqui, as diversas experi-
mentações multissensoriais por mim realizadas talvez faça parecer que tais ideias
foram elaboradas de maneira cronológica, seguindo a sequência dos capítulos.
Contudo, é importante dizer que a ordem dos insights ocorreu de maneira ana-
crônica, sendo que, por exemplo, a capa da tese foi o último experimento a ser

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realizado e, o glossário, o primeiro. O que fiz neste artigo foi, minimamente, orga-
nizar diacronicamente as experimentações, com o intuito de não aparentar uma
falta de cuidado com o presente trabalho e evitar confundir o leitor-explorador.
Com isso, quero destacar que o processo de criação com as imagens, no
caso, também associadas com outras “grafias” (como os ideogramas, as narrativas
etnobiográficas, a escrita, etc.), não segue uma temporalidade linear, sendo carac-
terizada por um paradigmático anacronismo, ou, em outros termos, constituindo
uma “dialética” na qual estão presentes “tempos heterogêneos” (DIDI-HUBERMAN,
2010). Assim, chamo a atenção para o fato de que o próprio resultado da etno-
grafia, isto é, a tese antropológica, foi pensada como uma grande composição de
elementos distintos, cujo ritmo de elaboração também não foi sincrônico, tam-
pouco linear. Essa consideração demonstra que investir na montagem como uma
metodologia experimental na pesquisa em Antropologia pode render frutos ins-
tigantes para o trabalho etnográfico e o conhecimento por ele gerado.
Reitero, dessa maneira, que a tese foi constituída como uma montagem
composta por narrativas, textos e fotografias, o verbal (falado e escrito) e o ima-
gético, acentuando uma relação de complementaridade entre os dois modos de
expressão, embora respeitando as particularidades dos mesmos. Por consequên-
cia, sugiro que a imagem consistiu em um ponto de ligação fundamental, sem o
qual o meu trabalho não seria viável. Isso porque, em todas as etapas da pesquisa,
seja na inserção no campo etnográfico como “fotógrafo-antropólogo” ou no mo-
mento da confecção do “texto-imagem” (a tese, em si), a fotografia teceu os fios e
as malhas do percurso, ora como facilitadora de acesso ao campo etnográfico, ora
como caminho visual para que o leitor adentrasse no tema e como intervalo entre
os capítulos escritos ou, ainda, levantando importantes questões relativas à or-
dem do visual e de um pensamento e conhecimento antropológico por imagens.

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AUTOR

Alexsânder Nakaóka Elias


Universidade Estadual de Campinas
E-mail: alexdefabri@yahoo.com.br

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