Pol Cult Rev Itau Cultural
Pol Cult Rev Itau Cultural
Pol Cult Rev Itau Cultural
Reflexes e aes
CDD 353
Sumrio
Apresentao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Maurcio Siqueira
09
Dora Alcntara
Polticas culturais:
Reflexes e aes
18
34
Mariella Pitombo
59
Luzia A. Ferreira
69
80
Lia Calabre
So Paulo 2009
91
Alexandre Barbalho
105
130
146
161
181
2006
223
Paulo Miguez
250
Fred Ges
256
Maria Acselrad
277
Rejane Calazans
288
Henilton Menezes
Ficha tcnica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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apresentao
Maurcio Siqueira
apresentao
O segundo marco de referncia para a conjuntura em que se realizou o 3 Seminrio a divulgao, em 2007, das Diretrizes Gerais para o Plano Nacional de
Cultura, por parte do Ministrio da Cultura. Depois de passar pelo crivo crtico
dos setores sociais interessados, esse documento, juntamente com as respectivas sugestes, dever ser enviado para ser votado como Projeto de Lei no
Congresso Nacional, ainda neste ano. Isso significa que, muito provavelmente,
ser referncia obrigatria para os prximos encontros que venham a tratar de
poltica cultural. Se juntarmos a isso a I Conferncia Nacional de Cultura, realizada
em 2005, podemos afirmar com segurana que a rea de polticas pblicas em
cultura, no plano federal, superou em grande parte o vo que persistia entre ela
e reas como a de desenvolvimento urbano, educao e meio ambiente.
Para o presente ano, a pauta de discusses em nosso campo certamente contar
com temas tais como o Plano Nacional de Cultura, a Nova Lei de Fomento Cultura (a chamada Nova Lei Rouanet), a prxima Conferncia Nacional de Cultura
e a I Conferncia Nacional de Comunicao. Tudo isso num quadro ainda no
definido no que se refere ao desenrolar da atual crise do capitalismo cognitivo
globalizado e suas consequncias especficas para a chamada indstria criativa e
para as fontes de fomento das atividades culturais em nosso pas.
Maurcio Siqueira
vises e
experincias
na rea de
patrimnio
cultural
Dora Alcntara
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Quando eu ainda era estudante da faculdade de arquitetura, tive alguns contatos para questes de exposio com o pessoal do Patrimnio e, como meu
marido, que tambm era arquiteto, tambm tinha esse contato, ns ficamos
muito ligados e tivemos ento o privilgio de conhecer muitos dos membros
fundadores do Iphan, ou ento participantes da primeira equipe, os primeiros
agregados talvez, pessoas como o doutor Lcio Costa, Renato Soeiro, Carlos
Drummond de Andrade, Paulo Tedim Barreto, Edgar Jacinto. Fora do Rio, uma
pessoa que talvez tenha sido um dos patrimnios humanos mais ricos que o
Patrimnio teve foi Airton Carvalho, que se encarregava das regies Nordeste
e Norte, porque eram muito poucos os membros da equipe do Patrimnio e
as tarefas eram imensas. O professor Simas, da Bahia, no cheguei a conhe cer. Sou muito amiga de Eduardo Simas, filho dele que ainda est atuante no
Patrimnio, e Luiz S, em So Paulo.
Deixei por ltimo, talvez porque para mim seja a primeira figura de todas essas,
Rodrigo Melo Franco de Andrade. curioso porque s vezes, quando conhecemos uma pessoa, ficamos muito entusiasmados pela personalidade brilhante
ou cativante dela, pela inteligncia. Mas, medida que a vamos conhecendo
mais de perto, s vezes esse entusiasmo diminui um pouquinho, e o doutor
Rodrigo foi uma pessoa que sempre fez crescer. Inclusive depois da morte dele
foram publicados alguns trabalhos que no conhecamos, e ele continuou a
crescer na nossa admirao. Foi realmente uma pessoa admirvel. E essa convico com que ele viveu o ideal de patrimnio talvez tenha tornado o doutor
Rodrigo uma pessoa extremamente cativante. Ele era um homem sedutor. Ns
trabalhamos com o Patrimnio de graa muitssimas vezes e no ramos exceo, muita gente o fazia tambm.
Numa ocasio, o Edson Mota, que foi o grande restaurador das pinturas do
Patrimnio, fez uma exposio de seu prprio trabalho de pintura, e algum
comentou: Puxa, Edson, voc, com esse talento, por que no trabalhou mais
em sua prpria pintura?. Se vocs querem saber a verdade, eu fui seduzido
por um homem que se chama Rodrigo Melo Franco de Andrade e passei a
restaurar as obras do Patrimnio. Mas no me arrependo porque aprendi e ganhei muito com isso tudo. Ns sempre nos sentamos altamente remunerados
pelo doutor Rodrigo, pela ateno constante dele, e eu acho que isso provinha
muito da convico com que ele trabalhava, do amor que ele dedicava ao
Patrimnio como uma causa. Essa ideia to cativante que empolgou o doutor
Rodrigo eu ainda sinto em muitos dos novos tcnicos do Patrimnio. Senti
muito nos meus alunos quando eu ensinava arquitetura do Brasil e falava da
nossa histria, relacionava com a necessidade de preserv-la, por ser uma herana deixada por nossos antepassados. Era muita convico de que isso constitui a prpria personalidade, o prprio carto de identidade de um pas, a sua
cultura, as suas especificidades. E o Patrimnio se propunha justamente a isso.
Eu situo o ponto inicial, embora haja antecedentes, nas preparaes para a
comemorao do centenrio da Independncia, quando havia uma conscincia muito clara da necessidade de ter uma cultura prpria, de se apoderar, de
identificar e desenvolver aquilo que era especificamente nosso, como prerrogativa de real independncia do pas, de real libertao de amarras. No o
nacionalismo fechado, porque isso nunca conduziu a nada de bom, mas um
sentido nacional aberto, com personalidade prpria.
Hoje em dia fala-se tanto em globalizao, mas no fundo se amesquinha a
ideia de globalizao a aspectos econmico-financeiros. Essa globalizao
riqussima, mas exatamente nela que cada personalidade tem de estar muito
clara para poder dar a sua parte. Se olhamos uma floresta, h uma ideia de unidade, mas, quando nos aproximamos, cada folhinha da rvore tem um detalhe
particular e essa diferena no conjunto extremamente importante, uma
riqueza de diversidade. Essa diversidade que forma uma unidade atraente e
a cultura pode e deve participar desse processo de identificao e desenvolvimento. Ento, acho que por a foi um ponto de partida que empolgou tanto.
Numa cerimnia em que o doutor Rodrigo recebeu um ttulo de doutor honoris
causa se no me engano foi em Belo Horizonte ou em algum lugar em Minas
Gerais , ele falou uma coisa que me calou muito. Falou que era necessrio que
cada brasileiro se considerasse de certa forma condmino desse patrimnio.
Ns temos muita dificuldade, temos uma cultura muito individualista, ainda
mais hoje em dia, em que isso se acentua tanto. A riqueza maior exatamente
porque a nossa personalidade se projeta na coletividade que nos envolve e,
quando se cria uma legislao de patrimnio, o grande passo que ela d
propriedade o seu sentido social e isso extremamente importante. Ento, h
um sentido individual de propriedade particular, sem dvida, mas h um sentido social que no se pode esquecer. So importantes figuras como Fernando
Azevedo, por exemplo, que nessa poca de preparao para o centenrio tentou reunir em todas as reas do conhecimento o que j era do Brasil, e em que
medida o Brasil estava em cada um desses nveis. Ele apontou a questo dos
monumentos, que at ento no estavam protegidos. E Mrio de Andrade foi
a grande figura que chama ateno sobre tudo isso e em seguida, ento, vm
a legislao, a criao do Patrimnio etc.
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frear um pouco porque a demanda era muito grande, mesmo quando havia
entusiasmo. No havia recursos para dar uma resposta mais completa. Ento,
podia soar falso aquele tipo de aproximao. Era meio difcil. Um papel muito
interessante nessa poca foi o do Instituto Brasileiro de Administrao Municipal (Ibam), que tinha cursos preparatrios para pessoas que trabalhavam em
prefeituras do interior para melhorar o nvel de conhecimento, de urbanismo
etc. e que tambm fornecia noes sobre as questes de patrimnio e planejamento. Como exerccio final de curso era preciso indicar o que, para aquela
comunidade, era um patrimnio, para no parecer que patrimnio tinha de
ser sempre uma Torre Eiffel, um Coliseu, porque no faz parte da nossa cultura.
Nem mesmo um Cristo Redentor ou algo assim. Cada lugar tem seu interesse,
seu monumento afetivamente importante, e isso era necessrio ressaltar.
Um problema que houve com o Patrimnio e que lhe rendeu muitas crticas
ele ter se atido muito aos sculos mais antigos, sobretudo o sculo XVIII at
o incio do XIX. Mas, realmente, era o que estava mais ameaado. Nosso clima
mido e quente e as talhas so prato feito para cupim. Esto a toda hora exigindo um trabalho enorme, mas isso uma caracterstica tipicamente nossa.
Ento, isso foi uma das primeiras coisas a que se atendeu. Mas dizer que isso foi
a nica preocupao, e que a pedra e cal elitista do Patrimnio, conversa
fiada. Ouro Preto tem algumas igrejas realmente de pedra e cal, alguns sobrados, e muito mais de pau a pique e coisas simples e que entraram no contexto
tambm. E no s em Ouro Preto; em outros stios tombados isso aconteceu
da mesma maneira. No foi possvel fazer com uma abrangncia maior, devido
s verbas absolutamente exguas e ao recurso humano mnimo. Na poca em
que comecei a estar em contato com o Patrimnio, acho que, a rigor, eram
sete ou oito arquitetos no quadro de profissionais para o Brasil todo, e diziam:
o Patrimnio s tem arquitetos. Imagine, e era toda essa quantidade... Tentvamos ajudar como era possvel, mas no tinha outro jeito.
Houve falhas, sem dvida. Por exemplo, figuras como o doutor Lcio foram
criadas no ecletismo e fizeram um esforo muito grande para sair dessa mentalidade ecltica e adotar uma postura diferente diante da escola moderna de
arquitetura. muito curioso que ele diga que se converteu s ideias corbusianas a partir de Diamantina. Porque, quando ele viu aquela arquitetura muito
simples, tirando partido s dos elementos corbusianos estruturais expostos
arquitetura definida como pura , sentiu que havia algo de anlogo na arquitetura moderna, no apelo da arquitetura moderna de limpar a maquiagem
excessiva e deixar aflorar a essncia. Assim, ele adotou a arquitetura e, a meu
ver, teve, embora ele renegue muito, sua passagem pelo perodo neocolonial.
Eu acho que o doutor Lcio, com sua sensibilidade e sua capacidade de ver
a essncia das coisas, trouxe para a nossa arquitetura alguma coisa dessa
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tradio. Por exemplo, ns temos toda uma ideia da transparncia tpica dos
pases quentes e da luminosidade intensa, e isso algo que os muulmanos
levaram para a Pennsula Ibrica e de l veio para c. Ento, eram os muxarabis antes, suas trelias, depois os cobogs, que ns usamos, e isso comea a
aparecer. Pensemos no Parque Guinle, por exemplo, onde o doutor Lcio usou
bastante. Mas antes disso, no Pavilho da Feira de Nova York, tambm o nosso
pavilho era dos poucos que adotavam um aspecto moderno e j tinha uma
personalidade prpria. No era aquela coisa to rgida, to seca, s vezes muito
bonita at, na sua rigidez e na sua secura. Ns no moramos no deserto, moramos no meio da natureza, e essa natureza de certa forma estava ali, nos ajardinamentos, no espelho dgua, no cobog, enfim, era uma coisa mais amvel
que se apresentava no nosso pavilho. Sem falar do fato to expressivo que
provavelmente do conhecimento de vocs de que, no concurso para esse
pavilho, quem ganhou foi o doutor Lcio, mas ele achou o projeto de Oscar
Niemeyer melhor do que o dele e disse que no iria fazer. Ento, os dirigentes do concurso disseram: O jeito vocs dois fazerem um projeto comum e
trazerem para ns. E deu nesse que ficou to interessante. Ento, a crtica seria
esta: ter deixado passar muita coisa pelo ecletismo, mas que, no entanto, uma
pgina da curiosa histria que tambm tem seu valor, que tambm precisaria
ter sido mais bem preservada, sem dvida alguma. Mas alguns ainda assim
saram e depois, na medida do possvel, tentou-se reconstituir ou consertar um
pouco essa falha que tinha ficado para trs.
Outra coisa que interessante falar sobre a etapa mais ou menos final da
dcada de 1960 e, sobretudo, da dcada de 1970. Comea com uma reunio
da OEA em Quito, em que os chefes de Estado americanos se comprometem
a colocar no oramento das respectivas Unies uma verba prpria para a defesa de patrimnio. Isso j mostrava o reconhecimento oficial de um conjunto
bastante grande e, como consequncia, aqui foram feitas duas reunies, uma
em abril de 1970, em Braslia, e pouco depois outra em Salvador. Da surgiram
os compromissos de Braslia e de Salvador com uma srie de normas e, sobretudo, uma deciso extremamente importante no sentido da descentralizao do Patrimnio. Era evidente que um Patrimnio federal no podia dar
conta de um pas com a extenso do nosso. Os Patrimnios estaduais e municipais tm muito mais possibilidade de fazer isso de forma ampla, embora
o nosso decreto-lei seja extenso, e o fato de falar em histrico e artstico d a
impresso de uma coisa muito reduzida. Essa viso do histrico e do artstico
no era assim to reduzida; eu at anotei mais ou menos os livros do tombo
e os bens que eram considerados aqui. Eles consideravam como patrimnio
histrico e artstico o conjunto de bens mveis e imveis existentes no pas,
cuja conservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos
memorveis da histria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueolgico,
etnogrfico, bibliogrfico ou artstico, e equiparam-se a eles os monumentos
naturais, bem como stios e paisagens que importe conservar e proteger pela
feio notvel com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados
pela indstria humana. Quer dizer, era uma coisa bastante abrangente. O
grande problema eram os meios para atender a essa abrangncia toda. Na medida do possvel, tentou-se fazer isso. Por exemplo, uma das primeiras coisas
tombadas no livro etnogrfico foi um conjunto, porque as macumbas aqui no
Rio foram consideradas proibidas. A polcia havia apreendido muito material
desses grupos e tinha isso guardado, e o Patrimnio tombou esse conjunto
como sendo de valor etnogrfico, merecedor de ser considerado de valor para
nossa cultura. Quer dizer, no havia s uma viso, havia talvez uma experincia
maior e uma urgncia muito grande, uma premncia de necessidade quanto
aos monumentos e essa dificuldade de pessoal tambm.
Dizem que necessrio abolir o decreto-lei, fazer outra legislao. Isso perigosssimo porque os representantes de interesses contra isso, no Congresso,
infelizmente so muitos. Ns nos arriscaramos a perder um pouco do que temos, na vontade de termos mais. melhor fazer o que foi feito na Frana, onde
foram sendo acrescentadas outras legislaes complementares que tornaram
mais abrangente e mais atualizado o conceito de patrimnio. Os prprios
bens arqueolgicos precisaram de uma legislao prpria. Por exemplo, no
se pode destruir um bem tombado nem um stio arqueolgico. Entretanto,
ele tem de ser aberto para exame, e isso no significa destruir. E como que
se compatibiliza isso? Com a Constituio de 1988, abriu-se um terreno para
incluir outras figuras de preservao, e o registro delas tem sido muito usado,
sobretudo, para o que tem sido chamado de patrimnio imaterial. Como que
se vai preservar coisas que so mveis? O Carnaval, o futebol, as congadas, os
reisados, o bumba meu boi etc. tm uma importncia profunda para o povo
brasileiro. Tombar no faz sentido. Eu at fui muito criticada porque achava que
tombamento no era coisa apropriada para algumas manifestaes, como os
terreiros de candombl na Bahia. Deveria haver uma legislao que contemplasse apropriadamente essas manifestaes, porque l, por exemplo, quando
h disputa entre grupos de orixs, derrubam o pegi. E como que fica? No
podemos demolir um bem tombado. Mas vamos discutir isso com quem?
Com o orix? outra linguagem cultural. Acho que temos de ver isso com
muito cuidado. Se conquistamos uma abertura maior, isso uma coisa para ser
aproveitada. Confesso que implico um pouco quando se fala em bens materiais e imateriais, porque qualquer bem que tombado no tombado por sua
materialidade, mas pela imaterialidade, pelo sentido, pelo significado que ele
tem, pelo valor artstico, pelo valor histrico. So valores imateriais, e isso pode
confundir. Se fosse pelo valor material, seria uma desapropriao, no um tombamento. Acho que o tombamento sempre se refere imaterialidade de um
bem. Realmente teramos de convencionar um termo. S acho ruim termos
material e imaterial porque leva a essa interpretao dbia, pois mesmo os
bens imateriais tm seu apoio material. Ns no somos puro esprito; tudo tem
sua materialidade, seja no som, seja no gesto. Apenas h uma dinmica diferente, outra linguagem, e difcil encontrar uma expresso. Mas melhor eu
no bancar a velhinha implicante e ficar aqui falando que no gosto do termo.
(Eu no gosto mesmo. E agora que sou velhinha...)
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Outra coisa que eu no posso deixar de comentar que peguei mais na fase
final em que estive no Patrimnio foi toda a fuso que houve com o Centro
Nacional de Referncia Cultural (CNRC) e com o Programa de Reconstruo de
Cidades Histricas (PCH), um grupo que geria verbas muito maiores para conservao. Foi como uma resposta direta ao compromisso de Quito. S que isso,
fora do Patrimnio, gerava um contrassenso enorme, porque s vezes o PCH
tinha verba para um monumento maior do que aquela que o Patrimnio tinha para todos os monumentos do pas. Um desequilbrio muito grande. Ento
era preciso fazer alguma coisa. Alosio Magalhes conseguiu trazer o PCH para
o Iphan, mas, quando conseguiu isso, a verba do PCH encolheu. Realmente,
parece que o Iphan no era muito dotado de vocao para recursos. Ele sempre
precisava de outro tipo de recurso para suprir suas dificuldades. Mas, quando
houve a fuso com o CNRC e a vinda de Alosio, para ns foi uma expectativa
muito grande porque, como as verbas eram pequenas, eram quase na ntegra
destinadas a obras de restaurao, conservao etc., e toda a rea de estudo
sempre foi feita na base da boa vontade e sem recurso prprio nenhum, o que
dificultava enormemente a nossa tarefa. Eu trabalhava mais nessa rea. Ento,
por exemplo, para alguns tipos de bens que nunca tinham sido tombados e
para os quais se tinha de fazer um estudo mais amplo para saber se estavam
na categoria nacional ou se deveriam ser deixados para o mbito municipal ou
estadual, precisava haver um consenso, tinha-se de estudar, recolher material,
e para isso conseguamos no mximo um grupo de estagirios para ajudar. Foi
timo porque esses estagirios depois cresceram e vestiram a camisa conosco,
mas foi muito duro. E, como havia uma valorizao dos estudos e um grupo
intelectual muito bom no CNRC, ns ficamos com a expectativa de uma fuso.
Infelizmente ela no aconteceu, no sei o porqu, se por disputa de poder ou
devido nossa cultura autoritria. No fundo, somos uns autoritrios, e a muito
difcil um trabalho conjunto de fato. Conseguir fazer um intercmbio de ideias
normal e cordial muito complicado. Ns no conseguimos um bom resultado,
ainda mais com a transio do Rio de Janeiro para Braslia. Havia uma preocupao enorme de levar tudo rapidamente para Braslia, pois o Rio no era mais a
capital. O pior que com isso se perdeu muito da memria, do contato.
Houve um hiato de geraes prejudicial ideia do Patrimnio. Eu via, por exemplo, dirigentes novos, que tinham sado de Braslia, dizer: Ah! Eu no vou coibir a mudana das esquadrias nas casas que as pessoas pleiteiam, numa cidadezinha pequena do interior. Isso um absurdo. S que mudar as esquadrias,
Dora Alcntara
Arquiteta, trabalhou no Iphan de 1958 a 1995, na rea de proteo a monumentos e tombamento, bem como na coordenadoria-geral do Iphan Pr-Memria.
Foi professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e da Escola de BelasArtes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 1961 a 1991.
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o estado e a
participao
conquistada no
campo das polticas
pblicas para
a cultura no brasil
Cristina Amlia Pereira de Carvalho
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Resumo
Neste artigo pretende-se apresentar o processo de construo do campo das
polticas pblicas para a cultura do Brasil do Estado Novo (1937-1945) at a instituio do Sistema Nacional de Cultura (2005). Esses 70 anos constituram um processo de luta social pela transformao do carter dessas polticas, com a incluso
plena de novos atores sociais e a alterao dos modos de formao das polticas.
O propsito dessa interpretao a possibilidade de desvendar, na atualidade, as
formas de articulao da sociedade civil com o Estado, mais apropriadas a uma
participao de novo tipo (conquistada e no concedida).
A redemocratizao de cunho neoliberal, iniciada nos anos 1980, deu origem participao concedida, que abriu espao para uma nova experincia na gesto
pblica da cultura. No obstante, sob forte tutela estatal, espaos e formas
de participao no abrangiam os efetivos palcos de deciso. Foi fortalecida,
nesse perodo, uma concepo liberal da gesto de cultura, deixando-a a cargo
do mercado por intermdio dos mecanismos de fomento privado facilitados
pelas leis de incentivo fiscal.
O discurso da participao conquistada que fomente um processo de emancipao e de auto-organizao expressa-se na formao do Sistema Nacional de
Cultura e, em particular, no Programa Cultura Viva, do Ministrio da Cultura do
Quando em 1808 a famlia real chega ao Brasil, uma mudana significativa se anuncia na dinmica cultural, especialmente do Rio de Janeiro, ento a capital da provncia. As polticas para a cultura, que at ento se orientavam para o mais absoluto
imobilismo, funcional preservao de diferenas visveis entre o fausto cultural da
sede do imprio e a penria da colnia, perdem seu sentido.
Introduo
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Trs perodos da histria republicana brasileira auxiliam a compreender as mudanas sofridas pelas polticas culturais por terem representado momentos de
particularidades marcantes. Assim como props Cury (2002), o recorte adotado
envolve o perodo ditatorial do Estado Novo que vai do golpe de Estado de
1937 at a deposio de Getlio em 1945 , a ditadura militar nas dcadas 1960
e 1970 e o perodo que coincide com o restabelecimento da democracia, cujos
pontos altos foram a criao do Ministrio da Cultura (MinC) em 1985 e a promulgao da Constituio em 1988.
O Estado Novo, cuja denominao inspirada no regime que Salazar implantara
em Portugal em 1933, instalado quatro anos depois no Brasil, quando o governo,
aproveitando o temor fabricado pelo Plano Cohen produzido pelos integralistas, impede a realizao das eleies j marcadas e instala um poder ditatorial.
Getlio Vargas assume a Presidncia sob a marca do autoritarismo e do populismo estranha mas eficaz combinao para conduzir um projeto poltico
assente no repdio ao comunismo, em suas origens, mas imediatamente na
sequncia tambm ao liberalismo representado pela Constituio de 1934.
No texto constitucional, o voto direto e secreto, a alternncia no poder, a
garantia dos direitos civis e da liberdade de expresso asseguravam uma
nova ordem jurdico-poltica.
O quadro mostrava polticas excludentes, uma burocracia insensvel e descolada da realidade social, que mostrava um pas com altos ndices de analfabetismo, entre outros desnveis gritantes, e represso poltica, que desencorajava reaes dos setores populares.
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Celso Furtado, destacado intelectual e personalidade da esquerda brasileira, torna-se ministro da Cultura. As polticas pblicas mostram arejamento democrtico
e reorientao conceitual. promulgada a primeira lei federal de incentivo fiscal
cultura, marco na relao do Estado com a comunidade artstica, conhecida
como Lei Sarney, em homenagem ao presidente da Repblica. A nova lei, que
buscava atrair investimentos privados para o financiamento da cultura mediante
iseno fiscal, abre as decises sobre a cultura ao mercado. Foi a forma escolhida
para atender crescente presso da sociedade para um maior financiamento
cultura: estimular a relao entre produtores e artistas com empresrios, que,
claro, fortaleceu a concepo liberal da gesto de cultura ao deixar a conduo
das aes a cargo do mercado.
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A Constituio Federal de 1988 foi igualmente um marco nas estruturas de representao ao diversificar e pluralizar a representao dos interesses e garantir a participao direta dos cidados (TAPIA, 2004; ALMEIDA, 2004). Um novo arcabouo
legal obrigou repartio das receitas entre governo federal, estados e municpios, gerando um aumento dos investimentos culturais, e criou mecanismos para
concretizar as transferncias constitucionais de recursos e garantir a autonomia
poltica e fiscal das administraes estaduais e municipais.
O governo do presidente Fernando Collor, eleito em 1990, realizou uma imploso
do sistema de cultura, lenta e penosamente criado no pas. Foram extintos mecanismos, experincias e instituies culturais, como o recm-criado Ministrio da
Cultura, e dispensados milhares de funcionrios. O objetivo declarado era a conteno dos gastos pblicos, num quadro econmico instvel, o que de fato aconteceu ao ser reduzido o oramento federal para a cultura em mais de 50% em
relao ao perodo anterior, fato que foi agravado pela desativao da Lei Sarney.
A sociedade civil no foi consultada em toda essa convulso, mas resistiu ao
desmonte institucional ao exigir, de mltiplas formas, a recomposio dos instrumentos polticos obtidos anos antes, o que levou formulao, em 1991,
de um projeto substitutivo da Lei Sarney, em vigor at hoje. A destituio do
presidente Collor de suas funes em um complexo processo de impeachment
impetrado pelo Congresso Nacional permitiu o incio da reconstruo da estrutura institucional que existia at ento.
De fato trata-se de um resgate, pois a luta visava retomar o que havia sido desmontado. Iniciativas polticas dos governos liberais, como as leis de incentivo fiscal,
transformaram-se rapidamente em bandeiras de luta da sociedade civil.
A redemocratizao neoliberal e a cultura
Durante os anos 1980 e 1990, instala-se o que vem a ser chamado de crise de
governabilidade e credibilidade dos Estados na Amrica Latina. Ela tem origem no
contexto internacional de reforma do aparelho do Estado na Europa e nos Estados
Unidos (PAULA, 2005), que constitua uma resposta crise do Welfare State e os
primeiros avanos da soluo neoliberal.
No Brasil, a reforma gerencial ganha fora nos anos 1990 e favorece a emergncia
de uma articulao poltica de carter neoliberal, encabeada pelo Partido da
Social-Democracia Brasileira, que conquista a Presidncia da Repblica. Segundo
Paula (2005), essa construo assenta suas bases em estratgias de desenvolvimento dependente e associado; em estratgias neoliberais de estabilizao
econmica; e nas estratgias administrativas dominantes no cenrio das reformas do Estado orientadas para o mercado.
abertura poltica somou-se o discurso da reduo dos gastos pblicos como
forma de resolver a crise fiscal e inflacionria, justificando econmica e financeiramente a no priorizao das reivindicaes sociais. Os governos desses anos
instauram a nova administrao pblica, que transfere responsabilidades para a
sociedade sem fortalecer a cidadania, pois os espaos de participao so usados
apenas para respaldar decises polticas j tomadas. A cidadania adquire um significado neoliberal, em que as pessoas so consumidores e enfraquecida a essncia instituinte e poltica em construo nos anos de luta pela democracia.
A marca dos discursos dos governos social-democratas desse perodo era a
democratizao da administrao da cultura e o acesso aos bens culturais. Esse
se afirma, porm, principalmente como meio para a maximizao da efetividade dos mecanismos de fomento privado permitido pelas leis de incentivo
cultura que foram ampliadas.
O sistema tem uma bvia predominncia de critrios mercantis em sua aplicao e
por isso v-se, a partir de 1995, a proliferao de institutos e fundaes culturais de
bancos e outras grandes empresas que ali desguam parte de seus lucros e deci-
Novos atores sociais haviam emergido no palco das polticas culturais, mas,
recorrendo s categorias de Bourdieu (1996), s aos detentores do capital
econmico estava franqueada a possibilidade de conquistar posies de poder no campo da cultura.
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Esse formato legal acaba por no mudar a dependncia em relao aos recursos
pblicos, pois o mecanismo do mecenato tornou-se um mero repasse de verbas
pblicas. O poder de fato exercido pelas empresas, que deliberam sobre o uso
dos recursos como se fossem seus. aos detentores do capital econmico que
vai caber definir as regras do jogo e apontar a conduo da poltica para a cultura
no Brasil. Os agentes disputam para impor a sua viso de mundo, e sua fora
advm da posio adquirida no campo pela acumulao de capital simblico na
medida em que a estrutura do campo dada pela relao entre as posies.
Os sistemas de incentivo so permeados pela lgica do mundo dos negcios, da
eficincia, dos relatrios e prestaes de conta, da concorrncia por recursos escassos, e passam a constituir a realidade das organizaes culturais. Pressionadas,
elas despendem grande parte de seus esforos a tentar padronizar seus produtos e resultados e homogeneizar seus formatos organizacionais para se adequar
s exigncias dos financiadores.
A invaso de critrios de eficincia e eficcia e a cristalizao dessa lgica, estranha ao campo das organizaes culturais, tiveram como principal instrumento o
Estado, por meio das polticas que ele implementou. O Estado pressionou, mesmo
que indiretamente, a ocorrncia de uma homogeneidade de estruturas e aes
das organizaes e das manifestaes culturais.
No que diz respeito a organizaes como museus e teatros, elas obtiveram apoio
dos governos estaduais e municipais, que fomentaram a articulao entre elas de
modo que promovessem, investissem e valorizassem a cultura (PACHECO, 2002).
O poder pblico proveu apoio gerencial s organizaes culturais oferecendo-
lhes, por exemplo, modelos de regulamento capazes de nortear suas aes nos
aspectos formais/legais.
Em alguns casos, o Estado fez-se presente por intermdio de agncias reguladoras,
cuja funo era orientar as prticas de gesto, e incentivou a formao de redes de
organizaes representativas, tais como federaes, sindicatos, associaes e institutos cujas aes foram determinantes na estruturao e profissionalizao das organizaes e na sua capacidade de captao de recursos. Por meio dessas aes, o
poder pblico tentava diminuir seu papel de financiador direto e oferecer subsdios
para que as organizaes culturais adquirissem competncias para buscar recursos
diretamente nas empresas privadas.
No caso de manifestaes culturais emblemticas como o maracatu, tradio trazida para o Brasil pelos escravos e que se transformou numa manifestao cultural
identitria no estado de Pernambuco, e o Carnaval, festa que traduz traos da cultura nacional como a malandragem, a sensualidade e o bom humor, da cidade de
Macei, a influncia do poder pblico tambm tem sido forte.
Gameiro, Menezes e Carvalho (2003), ao investigar a luta pela preservao das
tradies do maracatu de Pernambuco, verificaram que esses grupos, muitos deles
centenrios, so, em razo das transformaes ocorridas no contexto, submetidos
a processos de reestruturao ajustados s mais modernas prticas e tecnologias
de gesto de modo que os capacite para atender s demandas por produtos de
novas feies. Sofrem a influncia dos processos de mundializao e massificao
de sua simbologia e, assim como a cultura, incorporam as diversidades e as contradies inerentes a esse processo.
Essas expresses da cultura tm sido crescentemente utilizadas como instrumentos
de fomento do desenvolvimento, por exemplo, por meio de sua incorporao nas
estratgias de fortalecimento do turismo. No caso do maracatu em Pernambuco, o
poder pblico transferiu as apresentaes dos grupos de maracatu das comunidades
de origem para o centro histrico e turstico da cidade do Recife ao criar um concurso
de agremiaes que distribua ajuda financeira aos participantes na medida de sua
performance. Elementos novos, como a concorrncia e a performance, so ento
introduzidos na lgica desses grupos e parecem afetar o carter tradicional e religioso
do maracatu. Os grupos sentem fortes presses sobre a esttica de suas apresentaes e a organizao de suas aes e, para serem bem vistos, admirados e aceitos,
padronizam seus procedimentos e sua simbologia. Com isso, conquistam o grande
pblico, o turista, e atraem a ateno do poder pblico, que financia aqueles com
maior impacto visual. Esses novos formatos das apresentaes e padres estticos
tornaram-se condies para a contratao e a sobrevivncia dos grupos de maracatu, que aceitam as inovaes adequando o espetculo para a satisfao do pblico
leigo. Os grupos que resistem s mudanas tm dificuldade para obter recursos.
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29
Segundo Bourdieu (1990; 1996), o mundo social constitudo por campos, configuraes simblicas nas quais se disputa o monoplio classificatrio da realidade social. Os campos sociais, como espaos objetivados por meio de relaes
em que a representao do mundo social disputada, caracterizam-se pelas
disposies, ou seja, os princpios organizadores de representao e das prticas que os agentes tm incorporadas em si e que lhes do o sentido do jogo
de cada campo, tambm denominado de habitus; pelas posies referentes
posse de recursos (capitais) econmico, social, cultural que, quando percebidos e reconhecidos como legtimos, tornam-se capital simblico, situando os
agentes num campo determinado; pelos posicionamentos, as escolhas relativas
ao domnio das prticas, isto , as disposies expressas nesse mesmo espao,
tambm compreendidas como tomadas de posio.
Madeiro e Carvalho (2003) afirmaram que o habitus originrio do campo, minimamente estruturado e com regras prprias a partir do incio do sculo XX, caracterizava-se pelos aspectos ldico e agregador da festa. Eles identificaram uma
mudana significativa do habitus do campo do Carnaval a partir da insero de
organizaes governadas pela lgica de mercado.
O campo, uma configurao de relaes objetivas entre posies definidas
pela distribuio de diferentes tipos de capital, um campo de foras; em outras palavras, um conjunto de relaes de foras imposto a todos que nele entram e como um campo de lutas, no interior do qual os agentes se enfrentam,
com meios e fins diferenciados conforme sua posio na estrutura do campo
de foras, contribuindo assim para a conservao ou a transformao de sua
estrutura (BOURDIEU, 1996, p. 50).
um locus de luta onde foras se contrapem num jogo de posies. O interesse
est em admitir que o jogo deve ser jogado em razo dos traos distintivos da
representao de mundo definidos pelo habitus. O conhecimento das regras do
jogo permite queles que as conhecem, ou tm poder de defini-las, posicionarse de forma dominante. Utilizando estratgias de conservao, dominam tanto
o discurso ideolgico como a representao do mundo social e assim mantm
Apesar de seu antagonismo, dominantes e dominados so coniventes para delimitar as nominaes legtimas do campo, de maneira que faam valer seus esquemas
classificatrios a partir do domnio prtico da estrutura social, como, por exemplo,
nas artes, na cincia, na religio. A estrutura de um campo coincide com posies
que so definidas sempre de forma relacional pela distino e as mudanas em
um dado campo devem ser entendidas como mudanas na posio relativas dos
atores (MADEIRO; CARVALHO, 2003, p. 185).
O capital, afirma Wood (2005), principalmente no mercado globalizado, precisa do
Estado para manter as condies de acumulao, a capacidade de competitividade
e a obteno de subsdios. Precisa igualmente de polticas que lhe abram espao
para realizar suas mercadorias, entre as quais a cultura hoje um filo a explorar.
A mudana da estrutura do campo do Carnaval comeou com a ascenso das
empresas, que alteraram o valor dos capitais especficos do campo por meio
da concorrncia e do apoio do Estado e da mdia. Esse apoio trouxe a valorizao do capital econmico, em detrimento do capital cultural (entendido como
um capital de tradio, de conservao de ritos e smbolos, de histria e fama
construdas com o tempo, a partir da defesa dos valores originais da festa).
Com isso, as empresas alcanaram posies no campo de poder do Carnaval
e alteraram a estruturao e as regras de funcionamento do campo em detrimento dos antigos blocos e associaes carnavalescas tradicionais.
Um caso em plena transio
Consideramos que as transformaes sociais dessa sociedade e da cultura que
definem nossa identidade esto relacionadas com a atuao do Estado. Tensionador dos contextos em permanente mudana, o Estado parece estar tambm no
campo da cultura adequando-se, paulatinamente, s convenincias do mercado.
Em todos esses modelos de ao, o Estado movimentou-se em direo ao fomento da autossustentao das organizaes culturais. Agiu no sentido da preservao em alguns momentos, mas sem perder o eixo estratgico de sua ao, que
forar a construo da sustentao econmica das organizaes no campo da
cultura. As polticas pblicas estiveram sempre no bojo de uma macroestratgia
de transformao da cultura em oportunidades economicamente viveis.
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Foi nessa poca que dois dos grupos locais, o Maj Mol e o Movimento Cultural
Boca do Lixo, tomaram a iniciativa de utilizar o espao das runas do Matadouro
para realizar suas atividades. Seus objetivos estavam centrados na construo
da incluso social por meio da cultura e do esporte. A organizao dos grupos em torno do uso do espao era inicialmente autogestionada, sem nenhum
apoio institucional.
Transformado em Centro Social Urbano de Peixinhos da Prefeitura Municipal do
Recife, o Matadouro teve parte de sua infraestrutura restaurada e as runas voltaram a recuperar a antiga beleza das edificaes. Atualmente, vrios programas
sociais hospedaram-se no Nascedouro.
O Nascedouro tornou-se, para a comunidade e para a mdia, um espao de
referncia, onde a efervescncia das atividades culturais fazia contraste com o
marasmo habitual, na oferta de opes de cultura e lazer, nos bairros populares
da periferia. Essa dinmica miditica, acrescida ao restauro dos edifcios feito
pelo poder pblico e presena desses programas assistenciais do governo no
espao do Nascedouro, foi paulatinamente desviando o poder de deciso para
as administraes pblicas e deixando margem os grupos da comunidade
que haviam, anos antes, feito renascer das cinzas o antigo Matadouro. Atualmente, um Conselho Gestor, no qual tm assento as prefeituras de Olinda e Recife, a Secretaria de Cincia, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco, alm
de sete organizaes comunitrias locais, tem formalmente a responsabilidade
de gerir o Centro Cultural Desportivo Nascedouro de Peixinhos, mas, de fato,
est paralisado por disputas e manipulaes diversas.
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espaos e
atores da
diversidade
cultural
Mariella Pitombo
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Resumo
Nas ltimas dcadas, o tema da diversidade cultural foi iado a um lugar de
destaque na agenda poltica internacional. Episdios como a adoo de instrumentos internacionais como a Declarao Universal da Diversidade Cultural e
a Conveno sobre a Promoo e Proteo da Diversidade das Expresses Culturais, ambos de iniciativa da Unesco, ilustram o modo como o relativismo, paradoxalmente, vem se tornando um valor de carter universal. O objetivo deste
artigo apresentar brevemente uma possvel cartografia de espaos e atores
que hoje compem a gora transacional que d sentido e normatiza o tema da
diversidade, com base na reconstruo do percurso que originou a elaborao
da Conveno da Diversidade Cultural da Unesco.
Palavras-chave: diversidade cultural, Unesco, Conveno da Diversidade Cultural
Novas cartografias no ambiente da globalidade
Numa poca marcada pelo incremento nos fluxos de capital, de comunicao,
de migrao e de informao, as fronteiras, sejam elas territoriais, sejam simblicas, tm-se tornado mais tnues provocando, assim, a debilidade do sistema amparado na cartografia geopoltica dos Estados nacionais. Ao asseverar tal afirma-
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Tardif e Farchy (2006, p. 63) nos esclarecem que a luta pelo poder hoje est estreitamente ligada capacidade de manipulao dos smbolos. Desse modo, a esfera
A exploso da recente crise financeira global e a forte tendncia de regulao estatal na economia se apresentam como indcio do vigor institucional desse tradicional ator social.
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No se pode negar que a repercusso de um evento como as rodadas para liberalizao do comrcio de bens e servios ocorridas na OMC tenha deflagrado
importantes debates em torno da espinhosa questo acerca das especificidades
das trocas comerciais de bens portadores de sentido. Contudo, no se pode aqui
correr o risco e tomar tal evento como fator primordial para a compreenso do
nascimento da Conveno da Diversidade Cultural. Seria por demais redutor.
A anlise de um fenmeno social como a Conveno requer uma leitura mais
acurada e menos superficial, de modo que contemple as variadas nuances e
facetas que tal fenmeno aporta.
J que a filiao terico-metodolgica deste trabalho ampara-se no arcabouo
conceitual do socilogo Norbert Elias, torna-se inevitvel pavimentar o caminho
analtico tomando de emprstimo conceitos que so complementares e interdependentes na arquitetura conceitual do autor, quais sejam: o de configurao e
processualidade. Operar com tais conceitos significa considerar as redes de interdependncia que concorrem para a o delineamento de um determinado fenmeno
social no seu processo de longa durao. Significa tomar este ou aquele fenmeno
como sntese de um processo social de alta complexidade, no qual est implicada
uma enorme variedade de fatores que, juntos, concorrem para a conformao de
uma configurao social especfica. Desse modo, interessa aqui compreender o
fenmeno do surgimento da Conveno como sntese de um processo mais amplo que revela sobremaneira o lugar de destaque que os bens simblicos vm
ganhando nas ltimas dcadas no contexto da globalidade. Interessa, ento, identificar atores sociais, instituies, recursos e produo de sentidos especficos cons-
Uma srie de eventos pode ser aqui destacada como marcos para a compreenso do processo que disparou a criao da Conveno da Unesco. Alguns desses
eventos sero brevemente abordados neste artigo. So eles: a) o tema da exceo
cultural e o papel da Frana e do Canad capitaneando os debates em torno da
liberalizao do comrcio de bens culturais (audiovisual, sobretudo) travados no
mbito do GATT/OMC; b) a constituio de novos espaos transnacionais (fruns,
conferncias, reunies) e a emergncia de novos atores (organizaes internacionais e no governamentais), ressaltando a posio fundamental que ocuparam
na formao de um quadro institucional internacional focado no debate sobre a
temtica da diversidade cultural.
A controvrsia da exceo cultural
Sem sombra de dvidas, o debate travado em torno da ideia de exceo cultural,
ocorrido no quadro das negociaes de liberalizao do comrcio internacional no seio do Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio (GATT), constitui-se num
dos principais fenmenos que deram estofo emergncia em torno da temtica
da diversidade cultural no plano internacional, culminando na normatizao da
Conveno sobre a Promoo e Proteo da Diversidade das Expresses Culturais
promulgada pela Unesco em 2005.
Ainda que as razes dos preceitos que sustentam o conceito de exceo cultural
datem de perodos anteriores deflagrao do debate no mbito do GATT/OMC,
grosso modo, pode-se dizer que a ideia de exceo cultural ganha evidncia no
debate pblico internacional a partir do momento em que a Frana se recusa a
aceitar os termos das negociaes acerca da liberalizao do comrcio de servios
uma das polmicas pautas que marcaram a clebre Rodada do Uruguai (19861994). A posio assumida pela Frana e seguida por boa parte dos pases da Comunidade Europeia e pelo Canad amparava-se na ideia de que as obras audiovisuais so portadoras de sentido e identidade, logo, no podem ser reduzidas ao
status de simples mercadorias. Ou seja, as obras do esprito no poderiam estar
subordinadas aos mesmos princpios de liberalizao das trocas que regiam a
complexa cartela de bens e servios ordinrios regidos pelas regras comerciais do
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das megacorporaes mundiais (inclusive as europeias) das indstrias do simblico. Desse modo, novas ofensivas foram encabeadas pelo grupo dos liberais no mbito da negociao de acordos comerciais de outras organizaes
internacionais, a exemplo do Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI),
negociado no interior da Organizao de Cooperao e Desenvolvimento
Econmico (OCDE), em maio de 19952.
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Como aponta Regourd (2002, p. 90), o fundamento do AMI repousou basicamente sobre a clusula do tratamento nacional, ou seja, as mesmas vantagens cedidas aos investidores nacionais devem ser estendidas aos
investidores internacionais. Dito de outra forma, o objetivo do acordo era estabelecer normas para a crescente
desregulamentao na negociao de bens e servios de vrios setores da economia, sem discriminao. Rol de
atividades esse que inclua a produo e a distribuio de bens culturais. Em 1998, a Frana props um projeto
de emenda ao acordo sugerindo que o tema da cultura fosse excludo das negociaes, mas no obteve apoio
significativo dos demais membros da Unio. Nesse mesmo ano, a Frana retirou-se do acordo, contribuindo
fortemente para que o projeto da AMI fosse abortado antes mesmo de seu incio.
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Outro fato marcante nesse percurso a realizao da Conferncia Intergovernamental sobre Poltica Cultural para o Desenvolvimento, realizada em abril de
1998, em Estocolmo, por iniciativa da Unesco. O evento reuniu especialistas em
polticas culturais, bem como representantes da sociedade civil, para realizar
uma espcie de balano dos resultados proporcionados pelo projeto da Dcada
Mundial para o Desenvolvimento Cultural e pelo Relatrio Nossa Diversidade
Criadora. Tendo como pano de fundo o tema da indissociabilidade entre cultura
e desenvolvimento, ao fim do encontro foi gerado um documento (o Plano de
Ao sobre Polticas Culturais para o Desenvolvimento) contendo recomendaes e diretrizes mestras para alcanar a implementao dos seguintes objetivos:
integrar una dimensin cultural del desarrollo en las estratgias nacionales de
planeamiento, promover la capacitacin cultural y sostener la diversidade cultural en los decenios prximos (UNESCO, 1998).
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Os resultados desse evento no se esgotam a. Ao fim do encontro, os participantes decidiram constituir uma rede internacional de ministros da Cultura, no
oficial, dedicada a inscrever o tema da cultura na agenda poltica internacional.
Nascia assim a Rede Internacional de Polticas Culturais (RIPC), composta de ministros da Cultura de mais de 60 pases (inclusive do Brasil), com sede em Ottawa,
reivindicando para si o objetivo de fazer avanar a reflexo sobre o papel das
polticas culturais na promoo da diversidade cultural no contexto da globalizao. A atuao da rede no foi tmida no conjunto de debates promovidos em
torno da questo da diversidade. Ela desempenhou um papel fundamental no
processo mesmo de elaborao do texto da Conveno, ao propor uma primeira
verso do texto na qual se encontram contempladas as principais diretrizes que
nortearo o texto final do tratado.
Paralelamente criao da RIPC, originava-se tambm outra rede social, a Rede
Internacional para a Diversidade Cultural (RIDC), composta de artistas, intelectuais, militantes culturais, organizaes profissionais e uma mdia de 400 ONGs
de mais de 50 pases, dedicada s questes relativas aos impactos da globalizao na cultura (OBULJEN, 2006, p. 25). Ao definir-se, a organizao se declara uma
rede mundial de artistas e grupos culturais dedicados a neutralizar os efeitos
homogeneizadores da mundializao sobre a cultura (RIDC, 2008). Desenvolvendo aes conjuntas por meio de uma estreita parceria com a RIPC (as reunies
anuais das duas organizaes so realizadas paralelamente), a RIDC tambm
desempenhou um papel fundamental na complexa trama de atores sociais que
passaram a constituir a arena poltica transnacional onde se travam os principais
debates acerca da diversidade cultural.
Na esteira dessa dinmica, outra ONG militante da causa da diversidade cultural
criada em 1998: a Coalizo para a Diversidade Cultural. De origem canadense,
a rede incorpora desde o incio uma postura de resistncia, uma vez que sua
criao insuflada pela contenda contra o projeto do Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI), em negociao na poca. Inicialmente abrigou apenas organizaes artsticas e associaes profissionais de produtores, fato que
sinaliza a significativa mobilizao que o Canad promoveu no processo de
criao da Conveno. Contudo, em 1999, a organizao estendeu suas fronteiras e passou a abrigar tambm associaes profissionais do setor da cultura
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Ser a partir de 1999 que a Unesco ento marcar de forma mais incisiva sua
entrada no debate internacional acerca das trocas comerciais de bens simblicos no contexto da mundializao. Em 1999, a instituio organiza um simpsio curiosamente intitulado Cultura: uma Mercadoria como Outra Qualquer?
O objetivo do evento era abordar questes relativas relao entre cultura,
mercado e globalizao. As concluses veiculadas pelo documento gerado ao
final do evento atestam a tese de que a cultura no apenas uma questo
econmica ou um conceito econmico. Ela no pode ser tratada como
qualquer outra mercadoria; ela deve ter um tratamento especial (UNESCO,
1999). Dentre os temas debatidos na ocasio, cabe aqui registrar os principais.
So eles: dimenso cultural do desenvolvimento, preservao de identidades
culturais, cooperao cultural internacional e dilogo entre as culturas e os
desafios impostos pela sociedade da informao s polticas culturais. Como se
pode constatar, so questes que pontuam a agenda institucional da Unesco
na rea da cultura desde longas dcadas e, como no poderia deixar de ser,
figuraro no texto da Conveno. Registre-se, ainda, a marcante presena do
Canad e da Frana na composio das diferentes mesas-redondas que formataram o evento significativo dessa dobradinha a presena das ministras da
Cultura dos dois pases no encerramento do evento, afinal, os governos dos
dois pases foram os apoiadores do referido simpsio.
O dado mais significativo em torno desse evento que a defesa da especificidade dos bens culturais comea a se multiplicar e passa a ser citada e reivindicada nas discusses que nutrem os debates dos vrios fruns realizados na
Ser a partir de 2000 que se iniciar a deflagrao do processo mais concreto que
resultou na adoo da Declarao da Diversidade Cultural em 2001. Na esteira de
tais desdobramentos, a Frana, ao lado do Canad, toma a iniciativa de deflagrar a
empreitada a favor da regulamentao normativa acerca do tema da diversidade
cultural, no mbito da Unesco. Embasados pelo princpio de necessidade de neutralizao das foras liberalizantes que regulavam as regras das trocas comerciais,
os dois pases lideraram a campanha a favor da constituio de arcabouo normativo em prol do fortalecimento das polticas pblicas de cultura entendidas
como mecanismo capaz de garantir a diversidade da oferta de bens simblicos
e, consequentemente, frear a tendncia de homogeneizao cultural provocada
pelas indstrias de entretenimento e lazer. No dia 2 de novembro de 2001, a Conferncia Geral adota por unanimidade e por aclamao a Declarao Universal da
Unesco sobre a Diversidade Cultural e seu plano de ao.
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A promulgao da Declarao representou uma etapa de fundamental importncia para a criao do futuro instrumento jurdico que regularia questes relativas
promoo da diversidade cultural em escala global. No se pode deixar de
reconhecer tambm que a adoo do instrumento representa o coroamento,
ainda que parcial, de toda a dinmica que havia se desdobrado em torno da
questo da diversidade por iniciativa da Unesco, desde meados da dcada de
1990, quando lanou o antolgico relatrio Nossa Diversidade Criadora. Como
vimos, desde ento se iniciou uma escalada que elevou o tema da diversidade
cultural a uma das principais pautas da agenda pblica internacional que informava a dinmica da esfera cultural.
Pode-se dizer que a Declarao porta um carter sobretudo moral e poltico, uma
vez que em seu texto figuram as principais linhas ideolgicas sobre o tema da
diversidade cultural (identidade, diversidade e pluralismo, diversidade cultural e
direitos humanos, diversidade e solidariedade internacional, diversidade cultural
e criatividade), questes que foram nutridas e ganharam corpo aps a promoo
de longos e sucessivos encontros e debates promovidos pela Unesco e por outros fruns internacionais, como acabamos de analisar. Nesse sentido, o documento reflete os principais dilemas, contradies e ambiguidades evocados pelas variadas facetas que constituem o caleidoscpico conceito de cultura. Muito
embora tenha sido publicado tambm o plano de ao junto com a Declarao
fato que lhe confere carter mais prtico , arriscaria dizer que o documento
se reveste em maior medida num plano de afirmao de princpios normativos,
de pretenses universais, do que propriamente num instrumento produtor de
aes concretas imediatas (mesmo considerando que o nascimento da futura
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Ao analisar a transio da abrangncia normativa do tema da diversidade cultural (passando de objeto de uma declarao para figurar como escopo principal de uma conveno internacional), Frau-Meigs (2007, p. 896) observa que tal
trajetria significou a passagem de uma etapa poltica para uma etapa jurdica
mediante a criao de um instrumento destinado a inscrever a temtica da diversidade cultural no direito positivo, sob a forma de um tratado. nesse processo, ento, que a to propalada questo da diversidade cultural e mais especificamente o tema da promoo e da proteo das atividades, bens e servios
culturais, pela primeira vez, passam a figurar nas normas e preceitos do direito
internacional, ganhando, assim, fora de lei.
Como observa Kolliopoulos (2005, p. 487), a adoo da Conveno marca uma
nova etapa do tratamento jurdico para as atividades, bens e servios culturais.
Nesse sentido, a eleio mesma da proteo da diversidade das expresses culturais como objeto primordial da Conveno sinaliza a estratgia poltica adotada pelos negociadores em circunscrever mais precisamente o objetivo a ser
alcanado, qual seja: criar uma legislao que de alguma forma regulamentasse
os termos das trocas comerciais no campo da cultura, uma vez que o comrcio de bens e servios simblicos vinha sendo normatizado pela mesma lgica
que regulava as mais prosaicas mercadorias do comrcio internacional. No rescaldo do debate sobre a exceo cultural travado na dcada de 1990 no seio da
OMC, os arautos da Conveno reivindicavam um tratamento diferenciado para
os bens e servios do esprito, apoiando-se na tese de que tais bens e servios
guardam especificidades, pois so portadores de identidades, sentidos e valores,
logo, no poderiam ser reduzidos ao status de simples mercadorias.
Nesse sentido, o grande pano de fundo que abrigou o nascimento da Conveno da Diversidade o tema da relao entre cultura e economia, uma vez que o
principal objetivo de tal empreitada era, em ltima instncia, viabilizar a construo de um quadro internacional que favorecesse a regulao equilibrada
das trocas comerciais de bens culturais. Pode-se afirmar, ento, que todo o la-
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nal em prol da diversidade cultural, mesmo considerando as concesses intrinsecamente necessrias a qualquer processo negociador. Ao menos no plano
da normatividade discursiva, aps intenso processo de disputa, sobretudo
simblica, obtm-se um documento, com fora de lei, destinado a garantir a
legitimidade da diferena como valor universal, tomando como caminho privilegiado para tal fim a valorizao de contedos e expresses resultantes do
processo criativo humano.
Notas finais
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polticas
pblicas
de cultura
Luzia A. Ferreira (Lia)
Resumo
A velocidade e o poder dos meios de comunicao tm alterado de maneira
significativa as vrias atividades no mundo contemporneo. Na rea cultural,
onde se vive o dilema de vermos a cultura tratada como mercadoria, torna-se
necessrio refletir sobre a poltica pblica de cultura, at mesmo para que a designao gestor cultural ou de cultura seja entendida de maneira distinta daquela atribuda na rea da administrao.
Para isso, este artigo busca diferenciar a poltica pblica para a cultura da poltica
pblica de cultura, sendo essa ltima construda com base na cidadania, em que
fundamental entender o papel do gestor.
Palavras-chave: polticas pblicas de cultura, gestor cultural, cidadania,
meios de comunicao
Resumn
La velocidad y el poder de los medios de comunicacin han cambiado de manera significativa las diversas actividades culturales en el mundo contempor-
Palabras claves: polticas pblicas de la cultura, gestor cultural, ciudadana, medios de comunicacin
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A influncia dos sistemas comunicacionais e as constantes ingerncias da economia em nosso cotidiano tm alertado para a necessidade de serem revistos os
discursos sobre as polticas pblicas praticadas na rea cultural na Amrica Latina, ou seja, pens-las a partir do ncleo onde as mesmas ocorrem. Nesse sentido,
primordial entendermos que essas polticas no podem mais ser vistas como
algo que algum ou algum iluminado, normalmente ligado aos rgos governamentais responsveis pela rea cultural, tenha elaborado para a promoo de
bem-estar, lazer ou divertimento de outro algum que nem sequer foi ouvido ou
consultado sobre a atividade que est sendo oferecida.
O surgimento da figura do gestor cultural, bem como as tentativas de configurar
a gesto cultural como nova profisso capaz de dar organicidade rea cultural,
tm sido apontados como um caminho possvel, no sentido de viabilizar a poltica pblica de cultura. Isso ocorre porque h o entendimento de que sua atuao
deve necessariamente propiciar a proximidade com a comunidade na qual se
desenvolver a ao, portanto, ele passa a ser o elo capaz de realizar essa ligao
no social. No entanto, h que se ter cautela em relao tarefa do gestor, pois
sabido que esse tipo de mudana, capaz de promover a cidadania, acaba gerando alterao comportamental dos indivduos envolvidos. Vale lembrar, como
sugere Roberto Alves1, que no Brasil ainda necessrio educar para a cultura,
pois o despertar da conscincia passa por um sistema educativo, ou seja, deve
fazer parte da formao permanente do indivduo o pensar a poltica pblica
de cultura como condio vivel para serem criados caminhos que possam ser
trilhados na tentativa da construo de um caminhar prprio.
1
ALVES, Luiz Roberto. Polticas de cultura e comunicao na urbanidade. Revista do Instituto de Estudos Avanados, n. 30.
So Paulo, 1977, p. 303. E em Por uma poltica cultural sem desculpas: [...] falta ainda ampliar os significados da educao e da cultura, ou do educativo cultural [...] (p. 1). Roberto Alves, intelectual da Universidade de So Paulo que administrou a rea cultural em So Bernardo do Campo tendo como base o projeto de Jorge Andrade, com suas experincias vem realizando reflexes aprofundadas sobre os modelos utilizados pelas gestes petistas na rea de cultura.
Esse novo caminhar requer grandes investimentos em longo prazo, seja dos organismos governamentais, seja dos privados investimentos estes no s no
fator humano como tambm em toda a infraestrutura educacional existente
no pas. sabido, por exemplo, que, nas condies em que se encontra a rede
educacional, no ocorrero as mudanas necessrias que possam despertar nos
indivduos a vontade de fazerem uso de seu direito cidadania.
Muito se tem discutido localmente e internacionalmente a esse respeito, mas
poucas aes ocorrem de fato. Em So Paulo, por exemplo, desde outubro de
2007 o governo estadual vem colocando em prtica a premiao em dinheiro
(bnus) aos professores, de acordo com o bom desempenho de seus alunos.
Com isso, espera-se obter tambm um melhor desempenho dos professores,
o que, de acordo com o plano, dever estar refletido nas constantes avaliaes do alunato2. Porm, importante ressaltar que aumento salarial nem
sempre garante a satisfao pessoal ou a melhoria no desenvolvimento das
atividades. Salvo engano, e sem ser saudosista, o que fica evidente que, para
praticar a docncia, deve-se, acima de tudo, ter dom e condies infraestruturais para o magistrio. Alm disso, urgente que ocorra a incorporao dos
sistemas comunicacional e educacional, pois se torna cada vez mais impossvel a escola isolada oferecer algo atrativo ao aluno que est permanentemente conectado, que possa competir com o mundo de imagens e sons disponibilizados via sistemas comunicacionais.
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Atualmente, o que temos uma concorrncia desleal, uma vez que a escola
no consegue acompanhar o avano das novas tecnologias que configuram
o sistema comunicacional. A cada dia fica mais evidente a perda de interesse
dos educandos pela escola. Mal equipada e com a impossibilidade de os professores se interessarem e frequentarem cursos, para de fato se atualizar e no
apenas para obter mais pontos a fim de conseguir um aumento do salrio
anual, a escola acaba ficando para trs na desenfreada corrida comunicacional
na qual estamos totalmente imersos.
O pensamento aqui aventado no parte de especulao e sim dos referenciais
que forneceram e subsidiaram essa reflexo: as ltimas estatsticas sobre a educao realizadas pelo prprio Ministrio da Educao. Os dados apontaram haver
no Brasil, em 2008, 188,3 milhes de habitantes, dos quais 33% eram constitudos
de analfabetos e analfabetos funcionais. Desse porcentual, 14 milhes so em sua
maioria jovens de at 15 anos. Essa situao permite realizar uma comparao, pois,
no tocante s comunicaes no pas, considerando apenas uma parte da qual
composto o sistema comunicacional, existem 141 milhes de celulares nas mos
O plano de benefcios para os servidores da educao estadual est disponvel no site da Secretaria da Educao do Estado de So Paulo.
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nessa intrincada trama que entra a figura do gestor cultural, cuja tarefa a de
promover a mediao entre os vrios campos das artes, artistas e pblico, sendo
este ltimo visto no mais como um simples consumidor, mas aquele que, tendo
sido educado para a cultura, adquiriu a capacidade de retirar de determinada
atividade cultural algum benefcio que, ao ser incorporado, possibilite uma transformao em sua vida. Isso, evidentemente, sem deixar de pensar que o gestor
cultural ser um dos elos que interligaro os vrios sistemas. Maria Helena Cunha
adverte que ele (o gestor cultural) deve ter a sensibilidade necessria para entender as vrias manifestaes artsticas e tambm ter conhecimento sobre o
pblico a que se destina a atividade3.
Visto por esse prisma, esse conhecimento transversal o grande diferencial a
ser considerado na gesto cultural, que oferece uma gama de possibilidades
no campo de atuao, como a de permear outras reas nas quais se inclui
tambm a educao.
Essa ideia tambm caminha na direo do que props o 3 Seminrio Polticas
Culturais: Reflexes e Aes, realizado entre os dias 24 e 26 de setembro de 2008
na Fundao Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, pois entendemos que as
proposies aqui aventadas so passveis de ser includas em um possvel documento resultante das reflexes sobre os debates das polticas culturais a ser encaminhado s vrias instncias governamentais que tenham poder de incorporlas aos projetos a ser elaborados e posteriormente, aps terem sido avalizados
pelos cidados, colocados em prtica. Contudo, necessrio entender que avanar sobre paradigmas como esse, na rea das humanidades, requer constantes
debates e que, embora muitas vezes eles possam parecer, e at mesmo ser, repetitivos, constituem os estgios do processo que devem ser vivenciados para
que ocorram as mudanas desejadas. Esse processo deve ser entendido como
um grande aprendizado, em que alguns apreendem rapidamente e outros levam um tempo maior para obter a mesma compreenso.
CUNHA, Maria Helena da. Gesto cultural: profisso em formao. Belo Horizonte: DUO, 2007.
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Essas aes ainda nos deixem perplexos, apesar de no serem algo novo, pois
remontam ao ano de 1975, quando o Plano de Ao Cultural (PAC) priorizou
eventos e passou a ocorrer apenas o happening cultural. So atividades culturais
pontuais promovidas pelos que popularmente chamamos de agitadores culturais, cuja proposta no carrega em si nenhum elemento transformador para a
sociedade. Esses indivduos possuem facilidades de acesso s mdias e s empresas patrocinadoras e inventam produtos culturais para o mercado de consumo
rpido, os quais so expostos at a exausto de quem os consome nas mdias
e em grandes shows. Normalmente, envolvem um volume grande de investimento, que repassado por empresas como, por exemplo, Grupo Po de Acar,
TIM Celulares Unidade da Telecom Itlia, Banco do Brasil, Petrobras, Hollywood
(cigarro da Cia. Souza Cruz) e Rede Globo de Televiso, com iseno de impostos,
via leis de incentivo cultura, possuindo, portanto, aval das instituies governamentais nas trs instncias do poder.
Dessa forma, se considerarmos o tratamento dado s polticas pblicas para
cultura e as aes advindas das prticas culturais na cidade global, deveremos
considerar tambm que nessa mesma cidade global onde se criam condies
para a existncia de muitos espaos, foras, poderes, aes, mitos, ritos etc.,
sendo ainda o local onde se pode criar inventivas, sonhos e fbulas utpicas,
ou seja, (...) um grande laboratrio em constante ebulio (...). Independentemente da existncia de um projeto governamental, essa cidade global transforma o cidado (2002)5.
De acordo com essas proposies, possvel dizer que os cidados acabam intervindo em quaisquer planos ou projetos preestabelecidos pelas instncias governamentais ou mesmo privadas. Se perguntarmos de que maneira isso ocorre,
j que uma das grandes dificuldades no conseguir uma participao efetiva
na forma de envolvimento do cidado nos projetos culturais, responderamos
que isso se deve transformao natural pela qual passam cotidianamente tanto
IANNI, Octvio. Disciplina Teorias da Globalizao. Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So
Paulo, 2 semestre de 2002.
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nesse sentido, e para o momento que estamos vivenciando, que Canclini, apoiado
em diversas disciplinas, elaborou uma definio desse consumo cultural: [...] es un
acto donde las clases y grupos compiten por la apropiacin del producto social,
que distingue simblicamente, integra y comunica, objetiva los deseos y ritualiza su
satisfaccin8. Esses grupos, na era do globalismo, como preferia Ianni, so vorazes e
possuem como objetivo nico o lucro. Normalmente so compostos de conglomerados transnacionais, no possibilitando a identificao completa. Na direo desse
pensamento, podemos afirmar serem monstros de vrias cabeas, contra os quais temos como nica sada construir barreiras capazes de minimizar os impactos enquanto, no caso da cultura, acontecem as barganhas (o toma l d c) que possibilitam as
acomodaes necessrias nos processos culturais em tempos de globalizao.
Assim, baseados nessas consideraes, que, ao analisarmos a poltica cultural
existente e praticada, temos o entendimento de que a mesma uma forma de
manipulao que acaba por permitir o controle social ao seduzir os que fazem a
cultura, e na qual os muitos interesses esto em jogo. A omisso do poder pblico propicia o surgimento de empresas culturais privadas que passam a ocupar o
vcuo existente. claro que elas tambm passam a repetir os modelos das classes
dominantes: cultura para o povo como mercadoria, mercadoria esta criada pelos
interesses da indstria cultural.
nesse momento, ainda que conturbado, que entra em cena a figura do gestor
cultural, cujo principal papel o de promover as mudanas na medida em que
esteja capacitado para definir aes que configurem o processo cultural como
resultado de estudos e da investigao do meio no qual se encontra, definindo,
assim, sua origem e local de gestao.
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Para isso ele deve tambm se apropriar das novas tecnologias, principalmente as
dos meios de comunicao, que lhe permitam decodificar as vrias interfaces e
tenham como objetivo facilitar o acesso dos cidados comuns. Assim, sem dvida, o prprio gestor cultural passa tambm a ser uma ferramenta imprescindvel
para que ocorram as to almejadas mudanas.
Referncias bibliogrficas
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69
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Histria, cultura
e gesto:
do MEC ao MinC
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71
Cultura, com todo o seu arsenal simblico e imaginrio, passou a ser relacionada a uma totalidade histrica antes desprezada: como se formaram os mecanismos de dominao e de explorao entre os homens? Como esses mecanismos
(ao nvel do cultural) se confrontam, se difundem e se perpetuam? Assim, os
smbolos, as imagens, as mentalidades, as prticas culturais foram consideradas como lugares de exerccios de poder, de dominao e de conflitos sociais.
Ainda que esse retorno ao histrico cultural traga um sintoma de cansao por
uma histria saturada de estruturas, hierarquias, modos de produo, sistemas,
subsistemas, modelos enfim, da histria como um processo sem sujeito (Eric
Hobsbawm), como o operrio da fbrica, a mulher pobre, os vadios, as prostitutas, as feiticeiras, o escravo urbano, os marginais sociais, os perseguidos religiosos
e sexuais, a venda da alma, camponeses encalacrados em processos, escritores e
artistas obscuros, os massacres tnicos, personagens e fatos de uma histria em
que a cultura das sociedades, das pessoas, era excluda, por isso mesmo no se
deve perder tal memria, refletindo sobre o sentido da histria e, ainda, associla razo. Eis, ento, o casamento fundamental da histria com a cultura se alimentando, se constituindo: a memria como substancial instrumento de sentido, que assume a forma fascinante das construes culturais, da prpria histria,
das identidades; a histria cultural.
Estar a memria histrica com seu potencial de sentido em contradio
com uma expectativa de futuro carregada de sentido que fosse alm
do factual presente. A histria como totalidade do mundo das pessoas,
Se memria matria-elemento crucial do que se chama comumente de identidade, cuja busca uma das atividades fundamentais das pessoas, e da vivese a histria cultural, se a cultura, segundo Marta Fonseca (ex-secretria municipal de Cultura de Vassouras/RJ, fundadora e diretora da Comcultura RJ),
est presente desde quando o homem lascou a primeira pedra para
caar, ou rolou o primeiro graveto para fazer fogo, onde no haviam
[sic] nem gestores, nem observadores, h um processo natural de
evoluo e sobrevivncia que independe da conscincia e/ou das
intervenes de resgate de passado. Precisamos muito que os
grupos sociais (aparentemente virgens culturalmente) comecem a
ter sentido de autoestima, de identidade, que sejam protagonistas
e inventem a cultura.
Como se pode ensaiar saltos qualificados para o futuro mesmo com o presente
sendo construdo no passo a passo do indito, pensando a cultura e sua funcionalidade, organicidade, sem muitos acmulos de passado sequencial, na
linha prevista de presente e futuro?
Salvo algumas experincias no sculo XX, como na cidade de So Paulo na dcada de 1930, quando da organizao do Departamento de Cultura com Mrio
de Andrade frente, que trouxe os primeiros conceitos de gesto cultural para
contribuir no panorama nacional para alm das fronteiras paulistanas com
prticas e iderios inovadores, na citao de Albino Rubin:
Mrio de Andrade apresentou metas para estabelecer uma interveno estatal sistemtica abrangendo diferentes reas da cultura,
pensando a cultura como algo to vital como o po, props uma
definio ampla de cultura, extrapolando as belas artes, considerando por exemplo as culturas populares, assumiu o patrimnio no s
como material, possudo pelas elites, mas tambm como algo imaterial e pertinente aos diferentes estratos da sociedade, dentre outras
metas frente da pasta de cultura na prefeitura de So Paulo.
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Logo aps a era Vargas, o perodo democrtico que data de 1945 a 1964,
anterior ditadura militar, traz poucos ou mesmo negativos resultados das
intervenes do Estado brasileiro (exceto o Sphan e mesmo a criao do
Ministrio da Educao e da Cultura, em 1953) no tocante s polticas culturais, mantendo ainda pontual distanciamento das cidades e estados da
federao. Na ditadura, a cultura e suas variadas linguagens artsticas sofrem
ao direta da censura e ainda, de modo pragmtico, do dirigismo para que
a cultura fosse instrumento aliado do regime imposto. Nesse aspecto, figura
o papel do Conselho Federal de Cultura, criado em 1966, pelo qual o regime
militar estimula ainda a criao de conselhos e secretarias estaduais de Cultura, numa correspondncia direta com o regime e seus programas, formato
e composio (a existncia de tais conselhos com modelo desse perodo
ainda realidade em vrios estados). No fim da dcada seguinte, de 1976
a 1979, com o incio da diminuio da violncia do regime e suas derrotas
nas eleies legislativas, algumas iniciativas e mesmo aes comeam a ser
identificadas na pauta cultural, ainda que embasadas na linha dos interesses
da ditadura: pela primeira vez o pas tem um Plano Nacional de Cultura, e
importantes instituies so criadas: Funarte, Conselho Nacional de Cinema,
Radiobrs e Fundao Pr-Memria.
Destaque-se a criativa e operosa presena de Alosio Magalhes e sua rpida
passagem pelo setor cultural do MEC: a curta gesto, abreviada pela morte
prematura do gestor, foi facilitada por seu dinamismo e relaes com alguns
militares, dando conta de renovar e criar organismos na estrutura administrativa e preparando a casa para a instalao do futuro Ministrio da Cultura, com
a criao do Centro de Referncia Cultural, do Iphan e da Secretaria Nacional
de Cultura do MEC, em 1981.
de Alosio a seguinte fala sobre poltica cultural comparada com a figura-smbolo do estilingue/bodoque:
Devemos pensar no cotidiano de nosso desenvolvimento humano
e cultural, histrico e social, visualizando o movimento do bodoque,
fazendo deste movimento uma atitude constante: preciso recuar
no passado, pressionando as tiras de borracha para trs, dando-lhe
presso e fora suficiente para o arremesso em direo ao futuro,
mirando um alvo no futuro. Quanto mais nos afastamos do presente
em nossa valorizao cultural, mais longe chegaremos no futuro, ou
seja, o conhecimento crtico do passado como elemento fundamental para qualquer projeto ou programa durvel no futuro.
Essa atitude envolve os trs tempos da histria, de nossa prpria vida: o passado, o presente e o futuro. tratar passado e presente com peso similar e de
fundamental importncia para a construo da histria e da memria, proporcionando alimento e energia para a efetivao de identidades e razes. O que
foi acumulado de passado na histria das polticas culturais do pas deve ser
alvo de estudo, aprendizado, absoro do que positivo e importante, no
dispensando memria e identidade.
Permanecendo nesse breve tempo da histria cultural brasileira, volto os olhos
para dcadas mais recentes que datam do fim do sculo XX, em pleno processo de redemocratizao do pas (1985 a 1994), quando criado o Ministrio
da Cultura, com o fim do regime militar. O ps-ditadura no garante tempos
dos mais auspiciosos para as polticas culturais: so dez ministros no espao de
dez anos, ausncia de poltica estatal em benefcio dos interesses do mercado,
quando se instala no Brasil a chamada Lei de Incentivo Cultura (Lei Sarney),
deixando nas mos da iniciativa privada (e mesmo de algumas estatais) a deciso final do que deve ser incentivado e financiado, afunilando de modo drstico as agendas da verba pblica sob renncia fiscal nas produes de cultura
no eixo Rio-So Paulo, quase sempre nas mos dos mesmos beneficiados. As
poucas boas notcias passam despercebidas durante esse processo, como a
criao de alguns organismos, como, por exemplo, a Fundao Palmares. Ampliando o poder de fogo da lei de incentivo, os dois governos seguintes acentuam a prtica: duas reformas e mudana de nome para Lei Rouanet (segundo secretrio da gesto Collor, responsvel pelo desmonte das estruturas do
rgo e do prprio ministrio, rebaixado condio de secretaria), mantendo
os interesses do mercado acima de qualquer poltica possvel, em que o Estado
se mantinha propositadamente ausente.
nesse perodo que surge a presena do produtor cultural, atuando nas frentes
de captao de recursos, do realizador e promotor de eventos, do festeiro de
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tem valor como moeda de troca nos encaminhamentos das ordens do dia;
falta a prpria sociedade e categorias especficas de arte e cultura se apoderarem desse tempo de inauguraes, participando dos organismos de classe e
das representaes coletivas. Eis algumas urgncias que se apresentam para a
capacitao em gesto na rea.
As consideraes de Lygia Segalla registram o tom que aflige, ainda, o
quadro presente:
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Completando os questionamentos, cabe acrescentar: onde devem ser aplicados os recursos ou, ainda, o que deve ser financiado? Qual o papel dos Conselhos de Cultura? Como garantir independncia e autonomia para as estruturas
administrativas da cultura, atreladas em grande parte educao, nas cidades?
Comentamos frequentemente como aprendemos a no conhecer o cenrio
cultural brasileiro, que o Brasil muito grande etc. H referncias fragmentadas, linhas de tempo embaralhadas, um ouvir dizer com poucos encaixes que
se ligam, por vezes, a personagens e a enredos de telenovela, a presena marcante desta ou daquela manifestao artstica regional (atrelada construo
histrica de determinado lugar, ou mesmo resistindo na linha das tradies
populares que forjam vrios retratos culturais do pas, com os calendrios de
festas e feriados). Os movimentos, respostas para conhecer mais de cultura e
de cultura brasileira, atenuando parte das indagaes, aflies e lacunas neste
tempo de inauguraes das polticas culturais no Brasil, esto sendo apresentados em grande parte pela recente atuao do Ministrio da Cultura e de
algumas secretarias estaduais de Cultura que se estruturam de modo positivo
nesse contexto. O tempo presente coloca-se como ideal para o exerccio do
pensar e do fazer cultural, ainda que seja preciso aprender a trocar o pneu
com o carro em movimento: os atores protagonistas desse processo esto na
ordem do dia.
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Gesto cultural
municipal na
contemporaneidade
Lia Calabre
As polticas culturais so definidas pelos estudiosos e analistas como intervenes realizadas pelo Estado e pelas instituies civis, cujo objetivo o de satisfazer s necessidades culturais locais. Isso no significa ignorar que os processos
culturais contemporneos dialogam e interagem de maneira que tenham cada
vez mais carter transnacional. A criao de uma nova institucionalidade para a
ao pblica municipal e para as parcerias pblico-privadas de uma cidade um
passo prioritrio no processo de criao de polticas pblicas de cultura.
Os debates internacionais contemporneos consideram a cidade, ou o municpio, como um locus especial dentro da gesto pblica. Segundo Silvia Vetrale,
a cidade sempre foi um lugar privilegiado para a construo de democracias
de proximidade, aproveitando a confluncia de diversidade em um espao
geogrfico relativamente limitado (VETRALE, s.d., p. 9). As cidades propiciam
A primeira Munic levantou informaes, entre outras, sobre: estrutura administrativa e recursos para gesto; legislao e instrumentos de planejamento; descentralizao e desconcentrao administrativa; polticas setoriais; segurana
pblica; e j continha um bloco sobre comunicao, comrcio e equipamentos
culturais e de lazer TV, rdios, jornais, viedolocadoras, shopping centers, lojas
de discos, biblioteca, ginsio poliesportivo, museu, teatro e cinema. Em 2001 e
2005, o IBGE voltou a inserir no corpo bsico da pesquisa um bloco que aferiu
a existncia de equipamentos culturais. Em 2001 e 2005, a pesquisa passou a
investigar tambm a existncia dos Conselhos Municipais de Cultura, alguns de
seus aspectos de funcionamento e a legislao cultural. Em 2005, a partir de um
convnio com o Ministrio da Cultura assinado no ano anterior, a Munic incorporou ao bloco de cultura um levantamento sobre as atividades artsticas e artesanais presentes nos municpios.
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outras polticas. Tal fato no pode ser, a priori, classificado como algo negativo ou positivo para o processo de implementao de polticas e aes,
pois tudo vai depender do equilbrio de foras e da distribuio dos recursos oramentrios entre tais setores. Frequentemente costuma ocorrer que,
quando a cultura est diretamente ligada pasta de Educao, por exemplo,
o desequilbrio entre as duas grande, a educao termina por absorver
a maior parte dos recursos disponveis, deixando a cultura, em geral, em
uma posio bastante desprivilegiada, o que no impede que ocorram programas integrados. Por outro lado, nada garante que secretarias exclusivas
detenham efetivamente maior quantidade de recursos.
Dentro da perspectiva do municpio como um local privilegiado, que propicia maior conhecimento do processo de gesto pblica da cultura, sero
analisados aqui alguns dos resultados apresentados pelo Suplemento de
Cultura da Pesquisa Bsica de Informaes Municipais (Munic). O objetivo
conhecer as gestes municipais, mapear como classificam e percebem as
polticas e algumas das aes que implementam. Tais informaes podem
oferecer pistas para os que desejam estudar e compreender os conceitos e
prticas de poltica e gesto cultural com os quais as administraes municipais de cultura operam contemporaneamente.
Em 2006, o IBGE, j na vigncia do convnio com o Ministrio da Cultura, levou a campo um Suplemento de Cultura na Pesquisa Bsica de Informaes
Municipais. Naquele momento, o pas contava com 5.564 municpios. A publicao do Suplemento de Cultura contm informaes que tornam possvel
a construo de um primeiro quadro analtico da gesto pblica municipal
de cultura no Brasil, sempre levando em conta a enorme diversidade do pas.
O Suplemento de Cultura da Munic foi respondido diretamente pelo rgo
responsvel pela rea no municpio com informaes sobre: o rgo gestor
da cultura e sua infraestrutura; recursos humanos da cultura; instrumentos de
gesto; legislao; conselhos municipais; fundo municipal de cultura; recursos
financeiros; fundao municipal de cultura; aes, projetos e atividades; meios
de comunicao e equipamentos. O IBGE disponibiliza, de maneira impressa e
on-line, as informaes da pesquisa organizadas por meio de tabelas com a
distribuio segundo as grandes regies, unidades da Federao e por classe
de tamanho da populao e de grficos, alm da base de dados completa,
que pode ser consultada no site da instituio.
Em 2006, no campo administrativo da gesto municipal, a cultura estava
organizada da seguinte forma: 72% dos municpios possuam Secretaria
Municipal de Cultura em conjunto com outras polticas; 12,6% era setor subordinado a outra secretaria; 6,1% estava subordinado diretamente chefia
do Executivo; 2,4% no possua nenhuma estrutura especfica; 4,2% era formado por secretaria municipal exclusiva para a cultura e 2,6% por fundao
pblica (como rgo gestor). O resultado demonstra que a grande maioria
dos rgos gestores da cultura formada por secretarias em conjunto com
Voltando pesquisa, com o objetivo de obter um equilbrio entre as respostas coletadas no conjunto dos municpios, as perguntas presentes no formulrio da Munic esto sempre acompanhadas por definies h um caderno de instrues e pequenas definies junto a cada uma das questes no
prprio formulrio. No campo dos instrumentos de gesto, h uma questo
sobre a existncia, ou no, de poltica cultural no municpio, acompanhada
pela seguinte definio:
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Responderam positivamente existncia de poltica cultural 57,9% dos municpios brasileiros, o que corresponde a 3.224. Na tabela abaixo esto apresentados os totais dos municpios existentes em termos de estrutura do rgo gestor
da cultura e o total relativo a cada um dos itens no tocante ao tpico: possuir
poltica de cultura, a partir do qual calculamos o porcentual.
Estrutura municipal na rea de cultura
Tipo de estrutura
Fundao
Secretaria exclusiva
Secretaria em conjunto
Setor subordinado
Subordinado ao Executivo
Sem estrutura especfica
Fonte: IBGE. Suplemento de Cultura.
Total
145
236
4.007
699
339
136
% com poltica
89,7
80,1
57,4
54,7
56,7
17,6
Secretaria exclusiva
Secretaria exclusiva
mais de 500.000
100.001 a 500.000
50.001 a 100.000
20.001 a 50.000
10.001 a 20.000
5.001 a 10.000
at 5.000
0
1
2
Fonte: IBGE. Suplemento de Cultura.
Secretaria em conjunto
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87
Secretaria em conjunto
mais de 500.000
100.001 a 500.000
50.001 a 100.000
20.001 a 50.000
10.001 a 20.000
5.001 a 10.000
at 5.000
65
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67
Fonte: IBGE. Suplemento de Cultura.
68
69
70
71
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gunta deveria ser aberta. Podemos afirmar que a prpria formulao do conceito
de poltica e as opes de objetivo presentes no formulrio induzem a determinadas formas de resposta. Entretanto, com 5.564 municpios para responder,
questes abertas se tornam inviveis. Dentre os objetivos da poltica, h a opo
outros, que foi preenchida por somente 0,7% dos municpios, o que no deve
ser interpretado como a inexistncia de polticas.
A distribuio das respostas foi razoavelmente equilibrada. Os cinco principais objetivos das polticas implementadas declarados pelos municpios foram: a dinamizao das atividades culturais do municpio (37,4%), a garantia da sobrevivncia das
tradies culturais locais (37,1%), a transformao da cultura em um componente
bsico para a qualidade de vida da populao (37%), a preservao do patrimnio
histrico (36,7%), artstico e cultural, e a integrao da cultura no processo de
desenvolvimento local (28,8%). Os itens que expressam uma gesto pblica em
moldes mais modernos e participativos obtiveram baixos ndices de resposta: democratizar a gesto cultural (6,5%) e descentralizar a produo cultural (3,9%).
Aps responder sobre os objetivos, os municpios deveriam ainda indicar aes
implementadas nos ltimos 24 meses pela gesto municipal, num total de 28
itens. interessante observar que, apesar do baixo ndice de respostas no item
referente democratizao da gesto cultural somente presente em 6,5% do
total de municpios , 18,6% declararam ter realizado aes de estmulo apropriao e/ou utilizao dos equipamentos culturais pelos grupos locais, 11,9%
utilizaram o mecanismo de oramento participativo na cultura e 17,2% promoveram a manuteno de conselhos e fruns para a discusso das aes na rea
da cultura. No caso das aes ligadas convocao da sociedade civil para a
tomada de decises, como o caso do oramento participativo e dos conselhos
e fruns, o carter democrtico inegvel, entretanto tais aes no se refletem
nos objetivos das polticas, ou no so assim interpretadas pelos gestores municipais.
O que os resultados parecem demonstrar a existncia de certa dificuldade da
rea pblica no trato das questes da democratizao da gesto, mesmo quando
praticam aes claramente voltadas para a ampliao da participao da sociedade civil no campo decisrio. As estruturas governamentais e uma parte significativa da prpria sociedade ainda mantm uma tradio ideolgica, a ideia de
um Estado interventor e paternalista que deve gerenciar e ser o responsvel pelo
conjunto dos processos enquanto a sociedade se apropria passivamente do que
lhe oferecido pelo mesmo. Tal viso do papel do Estado responsvel inclusive pelo receio demonstrado por algumas das reas artstico-culturais quando
se discute a necessidade da construo de polticas culturais. interessante, pois
uma viso contraditria: ao mesmo tempo em que h a ameaa do Estado intervencionista, cerceador da liberdade artstica, esse mesmo Estado chamado a
89
Lia Calabre
Doutora em histria pela Universidade Federal Fluminense; pesquisadora-chefe do setor
de Estudos de Poltica Cultural da Fundao Casa de Rui Barbosa; organizadora de Polticas
Culturais: Dilogos Indispensveis (volumes I e II), Diversidade Cultural Brasileira e Polticas
Culturais: um Campo de Estudos; autora de O Rdio na Sintonia do Tempo: Radionovelas e
Cotidiano (1940-1946), publicado pelas Edies Casa de Rui Barbosa, 2006.
Referncias bibliogrficas
90
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O oramento
participativo e os
dados da Munic
Cultura 2006:
o caso de
Fortaleza
Alexandre Barbalho
Este artigo faz parte de um esforo para pensar a democracia cultural no exerccio das polticas culturais municipais. A necessidade do debate terico sobre
os instrumentos de governana disponveis ao gestor municipal, em especial
quele responsvel pela cultura, imprescindvel, uma vez que as relaes entre
o Poder Executivo (em qualquer de suas instncias federal, estadual ou mu-
92
93
Acreditamos que a anlise das propostas do OP nos faz relativizar determinadas afirmaes sobre pblico e consumo da cultura, afirmaes muitas vezes
baseadas no senso comum, pois so raras as pesquisas sobre esse tema, principalmente no Brasil. Mas nos leva mais adiante, ao funcionar como um contraponto s pesquisas de opinio e s que sondam os cidados como consumidores, receptores ou pblicos.
Neste terceiro artigo, retomaremos parte das discusses feitas nos trabalhos
mencionados acima com o intuito de fazer uma anlise comparativa entre as
demandas do OP em Fortaleza com os dados sobre o municpio produzidos pelo
Suplemento de Cultura da Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais Munic
2006, que possibilita ao pesquisador uma srie de informaes acerca da gesto
municipal de cultura em todo o pas3.
A esse respeito, ver BARBALHO, 2008a.
A esse respeito, ver BARBALHO 2008b.
3
Para fortalecer o trabalho de criao de um sistema de informaes culturais no Brasil, o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatstica (IBGE), em parceria com o Ministrio da Cultura, realizou o Suplemento de Cultura da
Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais Munic 2006. Levada a campo no segundo semestre de 2006, por
meio de questionrios respondidos pelas prefeituras, a sexta edio da Munic investigou a realidade cultural
dos 5.564 municipios brasileiros com informaes sobre rgo gestor de cultura e sua infraestrutura; recursos
humanos da cultura; instrumentos de gesto; legislao; existncia e funcionamento de conselhos e existncia
e caractersticas de fundo municipal; recursos financeiros; existncia de fundao municipal de cultura; aes,
projetos e atividades desenvolvidos; levantamento dos meios de comunicao; existncia e quantidade de
equipamentos; atividades culturais e artsticas.
1
2
No se trata de fazer uma anlise dos dados da Munic 2006, mas, indo alm, de
utilizar essas informaes como parmetro de avaliao da pertinncia do que
demandado pelo oramento participativo em Fortaleza. Assim, do material
disponibilizado, privilegiaremos os dados relativos a aes, projetos e atividades
desenvolvidos pelo rgo municipal de cultura.
Todos esses instrumentos, como apontam Hamilton Faria e Altair Moreira, respondem a um dos mais importantes papis da governana, qual seja: reconhecer a
diversidade de interesses e torn-la dialgica e intercultural, fazendo circularem
discursos e aes dos diferentes segmentos e atores, visando ao enriquecimento
cultural por meio da afirmao das diferenas (FARIA; MOREIRA, 2005, p. 12).
94
No entanto, inegvel que, desde os anos 1990, a partir dos instrumentos possibilitados pela Constituio Cidad (1988), muito se vem conquistando em termos de
Acreditamos, como Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar (2000), que os movimentos sociais atuam
na interface entre os campos poltico e cultural, de modo que suas reivindicaes por direitos e igualdades
esto indissoluvelmente ligadas aos vetores de sentido e vises de mundo que colocam em funcionamento
em suas lutas. Todos os movimentos de transformao social (sejam urbanos, sejam rurais) propem, direta
ou indiretamente, polticas de cultura. O que os autores desejam evidenciar com essa afirmao so os vnculos entre cultura e poder nas experincias, prticas e aes dos movimentos sociais. Portanto, a anlise das
polticas de cultura dos movimentos sociais permite avaliar o alcance de suas lutas pela democratizao e,
principalmente, perceber sua implicaes menos visveis, porque subjetivas, ao atingirem os aspectos microfsicos do poder (gnero, etnia, gerao, sexualidade) implicaes que, em grande parte, questionam a
cultura poltica dominante.
95
Porm, o que se observa, nos dias correntes, que os conselhos de cultura se configuram como estruturas corporativistas e com funes meramente consultivas.
Mesmo quando atuam com fora de deliberao e representam setores mais amplos do campo artstico, a presena dos conselheiros, por no possurem ligaes
de fato com as categorias representadas, termina por atender meramente aos seus
interesses pessoais e aos de seus crculos de relao mais prximos. Soma-se a esse
contexto a presena dos representantes do poder pblico executivo, muitas vezes
em maioria, que inviabiliza o conselho como espao efetivo de partilha de poder.
Para Faria e Moreira (2005), os conselhos de cultura devem enfrentar dois desafios prementes, mas que podemos resumir em uma s questo: a ampliao de
sua representao. No sentido de incorporar, alm das reas artsticas tradicionais
(teatro, dana, audiovisual, literatura etc.), outras linguagens (grafite e arte sequencial, por exemplo) e disciplinas (sociologia, histria, antropologia, filosofia),
bem como os movimentos sociais em suas mais variadas configuraes.
Acrescentaramos, ainda, aos desafios dos conselhos de cultura a conquista de
sua efetividade, ou seja, que no sejam apenas um espao de consulta, mas tambm de deliberao no que diz respeito elaborao das polticas, de suas aes
e de seu oramento. fundamental tambm sua independncia financeira, garantida por lei, de modo que, mesmo financiado pelo Poder Executivo, no fique
merc da boa vontade do gestor em exerccio.
A questo oramentria decisiva na implantao da cidadania e da democracia
culturais. No apenas porque, se o setor cultural no obtiver recursos suficientes, suas
polticas no podero ser realizadas, mas tambm porque o parco oramento acaba
por ser negociado com base em aes pontuais, mantendo a poltica de balco.
Como podemos observar, o OP traz alternativas a problemas histricos enfrentados pelos conselhos culturais: a sua crise representativa inserida em uma crise
mais geral expressa no descrdito da populao em relao ao Poder Legislativo
; a sua impotncia deliberativa, em especial no que diz respeito aos investimentos; e a sua falta de poder na fiscalizao das aes pblicas.
Evelina Dagnino (2004) observa que o momento contemporneo da sociedade
brasileira configura-se como de confluncia perversa entre a poltica democratizante e o projeto neoliberal, o que implica a disputa poltico-cultural em torno
dos sentidos de noes-chave para a democracia: sociedade civil, participao
e cidadania. Em relao reconfigurao da noo de sociedade civil proposta pelo modelo neoliberal, o que est posto restringi-la ao terceiro setor (o
primeiro o Estado e o terceiro, a iniciativa privada), onde, em grande parte,
as instituies, como as ONGs, no possuem ligaes orgnicas com setores da
populao e se impem pelo discurso da competncia e da produtividade.
A experincia do OP, ao lado dos movimentos sociais e suas prticas polticas
de mobilizao e protesto, portanto, se configura como possibilidade de permanncia do sentido de sociedade civil construdo pelo projeto democratizante
brasileiro, desde a segunda metade da dcada de 1970, ou seja, em seu sentido
de participao popular e construo de espaos pblicos.
Podemos levar mais adiante a discusso sobre o OP, com base nas reflexes de Evelina Dagnino, colocando-o tambm como instrumento de contraposio s reconfiguraes dos sentidos de participao e cidadania. No que se refere ao primeiro,
que dentro da lgica neoliberal pensado como voluntariado e solidariedade, motivado por razes morais e de foro ntimo do indivduo, o oramento participativo
reafirma o papel poltico, coletivo, social e conflitivo da participao democrtica.
96
97
Mas, no que se refere cultura, a nossa triste tradio ainda no possibilitou tal fortalecimento e o setor sempre esteve mais vulnervel ao desmanche de seu parco
aparato pblico e institucional, como ocorreu paradigmaticamente durante o governo Collor5. Portanto, o recurso aos diversos instrumentos de governana j utilizados por outros setores e que ainda no se tornaram lugar-comum nas polticas
culturais faz-se urgente para a efetivao da cidadania e da democracia culturais.
A poltica cultural em Fortaleza a partir do OP e da Munic
A primeira experincia de oramento participativo em Fortaleza iniciou-se em
2005 como concretizao do programa de governo da candidata vitoriosa do
PT, Luizianne Lins, prefeitura da cidade. Tendo como referncia as experincias
nacionais e estrangeiras desse tipo de instrumento de participao popular, os
organizadores locais procuraram dar uma feio peculiar ao processo na cidade.
O OP apresentado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza6 como elemento
imprescindvel para o processo de radicalizao das prticas democrticas, na
medida em que possibilita superar os limites da representao por meio da deliberao popular e da afirmao do direito participao poltica.
As indicaes sobre a atual gesto do governo Lula, tendo como ministro da Cultura Gilberto Gil, apontam
para um novo tipo de poltica cultural apoiada no fortalecimento de suas relaes com a sociedade civil. Para o
desenvolvimento desse debate, ver os artigos reunidos em BARBALHO; RUBIM (2007).
6
Ver o endereo eletrnico http://www.sepla.fortaleza.ce.gov.br/op. Todas as informaes e citaes sobre o OP
de Fortaleza foram retiradas desse site. Acesso em: 15 abr. 2008.
5
sociedade civil e o poder pblico formam o Plano de Aes do OP, que elaborado a cada ano, resultado das votaes e negociaes, e so includas na Lei
Oramentria Anual, para garantir o oramento. Alm de sua funo deliberativa,
o COP tambm desempenha funes reguladoras e normativas, uma vez que
sua obrigao revisar e definir o regimento do OP a cada ano.
Aps as assembleias preparatrias, ocorrem as deliberativas territoriais e de segmento, quando so apresentadas e discutidas entre os presentes as propostas
para o oramento, que devem estar de acordo com as reas de atuao da prefeitura de Fortaleza definidas no Plano Plurianual Participativo os Eixos do OP9.
Cada participante pode votar em trs das propostas apresentadas, sendo que
cada uma deve pertencer a um eixo diferente.
A partir dessa negociao, so decididas as prioridades que sero apresentadas s secretarias temticas. Tambm nesse momento cada participante pode
se candidatar e/ou votar para delegado que participar do Frum Regional de
Delegados(as) e do Frum Municipal de Segmentos Sociais, cujo objetivo
acompanhar o processo do OP ao longo do ano.
98
Dos delegados dos fruns saem os conselheiros, eleitos entre seus pares, que
vo compor o Conselho do Oramento Participativo (COP)10. A funo dos membros do COP estratgica. So eles que negociam com os gestores das vrias
pastas municipais as prioridades definidas pelas assembleias deliberativas e que
podem, de fato, ser executadas pela prefeitura. As propostas negociadas entre a
Recentemente foi criada uma stima regional, a do centro. Podem participar das assembleias quem tiver mais
de 16 anos. Para pessoas entre 6 e 17 anos, possvel participar do OP Criana e Adolescente (OPCA).
8
Os segmentos sociais so: Criana e Adolescente; Populao Negra; Juventude; GLBT (gays, lsbicas, bissexuais,
transexuais, transgneros e travestis); Idosos(as); Pessoas com Deficincia; Mulheres.
9
So 13 eixos: 1) Cultura; 2) Educao; 3) Sade; 4) Assistncia; 5) Esporte e Lazer; 6) Meio Ambiente; 7) Turismo;
8) Transporte; 9) Direitos Humanos; 10) Trabalho e Renda; 11) Segurana; 12) Habitao; 13) Infraestrutura.
10
H tambm o Frum Municipal do OP Criana e Adolescente, que rene os representantes do respectivo OP
por meio de uma metodologia especfica, mas que tambm elege conselheiros(as) para o COP. Ele realizado
em parceria com a Fundao da Criana e da Famlia Cidad (Funci) e a Secretaria Municipal de Educao (SME).
Os objetivos das assembleias do OPCA so os mesmos das territoriais e dos outros segmentos: apresentar e
escolher propostas consideradas as mais importantes por crianas e adolescentes.
7
99
Na prtica, quem assumiu a funo de rgo de cultura na cidade foi a Secretaria de Cultura do Cear (Secult), que, apesar de sua abrangncia estadual, atua
quase exclusivamente na capital, tendncia parcialmente revertida na gesto da
secretria Claudia Leito (2003-2006), que impulsionou a realizao de eventos
no interior do estado e o fortalecimento, ou mesmo a criao, de rgos de cultura em todos os municpios cearenses.
Ao analisarmos as demandas do OP para a cultura, portanto, estaremos
lidando com uma demanda reprimida de anos, uma vez que a prefeitura,
nesse campo, nunca foi o locus de interlocuo privilegiado dos movimentos poltico-culturais, muito menos da populao.
Assim, no ano de 2005, foram acordadas as seguintes demandas, distribudas
entre as seis regionais: bibliotecas nas regionais; construo e manuteno
do Centro Urbano de Cultura, Arte, Cincia e Esporte (Cuca)11 na Regional I;
apoio s festas juninas; seminrio sobre cultura no bairro Bela Vista; Festival
de Msica e Cultura de Fortaleza; tombamento do prdio do Portugus12; difuso e desenvolvimento da cultura por meio dos vrios programas descen11
O Cuca uma promessa de campanha da ento candidata Luizianne Lins e trata-se de um centro cultural
e esportivo voltado preferencialmente para a populao jovem onde seriam desenvolvidas atividades de formao, criao e fruio artstica. Em seu plano de governo estava prevista a construo de seis Cucas, um em
cada regional de Fortaleza. At meados de setembro de 2008, ltimo ano de seu mandato, nenhum desses
equipamentos tinha sido finalizado.
12
Prdio residencial construdo por um migrante portugus na primeira metade do sculo XX em estilo ecltico
e que hoje se encontra abandonado.
nalto Airton Senna; apoio banda marcial Bravha; apoio quadrilha e aos
projetos culturais no Parque Santana (OP Criana); projeto cultural para o
Planalto Ayrton Senna (OP Criana); apresentaes de circo no Parque Santana (OP Criana); implantao do projeto Noites Culturais no bairro Ancuri;
aula de arte na escola Odilon Braveza (OP Criana); caravana artstica que
circule na periferia de Fortaleza com montagens que abordem a homofobia
(OP GLBT ); editais da Funcet para projetos culturais voltados comunidade
GLBT (OP GLBT ); desenvolvimento da cultura artstica para os idosos (OP
Idosos[as]); festival anual de culturas da periferia (OP Juventude); criao de
um programa de apoio aos terreiros de matriz africana (OP Populao Negra); Festival de Artes Negras (OP Populao Negra); efetivao dos Cucas e
da Vila das Artes (OP Criana).
Podemos agrupar as demandas acima em cinco eixos temticos: formao,
apoio criao, apoio a eventos, criao de espaos culturais e patrimnio
histrico, para explicitar, em nmeros, o que mais demandado, como
demonstra o quadro abaixo:
100
101
Aes/ano
1. Formao
2. Apoio criao
3. Apoio a eventos
4. Criao de espaos culturais
(biblioteca, centro cultural, teatro etc.)
5. Patrimnio histrico
Total anual
2005
1
2
2
2006
8
2
2007
7
10
9
15
23
2
12
25
29
2
Total geral: 66
J os dados da Munic nos permitem uma radiografia atual (ainda que j defasada, mas no vamos fazer uma atualizao aqui) da poltica cultural do
municpio13. Quando analisamos o item 4 (instrumentos de gesto), observamos que os principais objetivos da poltica municipal de cultura se relacionam com a democracia da cultura: 1) tornar a cultura um dos componentes
bsicos para a qualidade de vida da populao; 2) ampliar o grau de participao social nos projetos culturais; 3) preservar o patrimnio histrico,
artstico e cultural; 4) democratizar a gesto cultural.
No que se refere s aes implementadas pela poltica municipal de cultura
nos ltimos 24 meses, ou seja, desde o incio da atual gesto municipal,
foram assinaladas as seguintes: promoo de atividades culturais voltadas
13
Os dados foram retirados do site do IBGE: http://www.ibge.gov.br/munic2006cultura/sel_tema.php?munic=2
30440&uf=&nome=Fortaleza. Acesso em: 10 set. 2008.
102
Os dados da Munic sobre o que poderamos chamar, de forma ampla, de formao apontam que o poder pblico municipal est presente com cursos em
quase metade das reas pesquisadas. No que se refere realizao de eventos,
festividades e festivais, bem como ao apoio criao artstico-cultural, apenas
festivais de gastronomia e de vdeo, bem como feiras de artesanato e moda,
alm de exposies de acervo histrico, no so apoiadas, patrocinadas ou
promovidas pelo rgo de cultura municipal. O mesmo se pode dizer em relao aos grupos artsticos apoiados pela prefeitura, com ausncia apenas para
orquestra, banda, desenho e pintura. Dos equipamentos pblicos listados15, a
prefeitura s possui uma biblioteca e um teatro; o restante faz parte do complexo institucional do governo estadual.
Algumas conexes/concluses entre o OP e a Munic
14
No que se refere a oramento, o da prefeitura, em 2005, foi de R$ 1.740.422.822,34, e a parte da cultura foi R$
4.716.262,29. importante lembrar que o oramento do primeiro ano de gesto municipal herdado da gesto
anterior, de modo que essa baixa porcentagem no corresponde necessariamente aos investimentos que a
atual gesto tem feito no setor.
15
No levamos em considerao os ginsios e estdios poliesportivos, pois estes no tm a cultura como sua
finalidade primeira.
103
Alexandre Barbalho
Doutor em comunicao e cultura contemporneas pela UFBA; professor dos mestrados
em polticas pblicas e sociedade da Uece e em comunicao da UFC; lder do Grupo de
Pesquisa em Polticas de Comunicao e Cultura (Uece/CNPq) e coordenador do Grupo
de Pesquisa em Comunicao para a Cidadania da Intercom. Autor, entre outros, de Relaes entre Estado e Cultura no Brasil (Uniju, 1998), A Modernizao da Cultura (UFC, 2005) e
Textos Nmades: Poltica, Cultura e Mdia (BNB, 2008).
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Equipamentos, meios
e atividades culturais
nos municpios
brasileiros: indicadores
de diferenas,
desigualdades e
diversidade cultural1
106
Resumo
Em sua introduo, a Munic Cultura 2006 afirma que seus resultados mostram
as grandes diversidades artstica e cultural existentes nos municpios, assim
como suas diferenas regionais (IBGE, 2007, p. 14). O que se pretende com este
trabalho explorar as informaes sobre equipamentos culturais, meios de comunicao e atividades artsticas e culturais, de forma que contribua para a construo de indicadores de diversidade cultural em confronto com as diferenas
e desigualdades expressas pelos dados da Munic 2006. A ideia debater se as
diferenas e semelhanas entre os municpios e regies do pas expressam diversidade ou desigualdades culturais.
Palavras-chave: indicador cultural, diferena, desigualdade, diversidade cultural
3 Seminrio de Polticas Culturais: Reflexes e Aes, mesa-redonda Base de Dados Munic: Campos e Possibilidades, Fundao Casa de Rui Barbosa, 24, 25 e 26 de setembro de 2008.
107
Assim como a SIIC, a Munic Cultura 2006 tambm apresenta problemas em sua
abordagem metodolgica, j que o preenchimento dos questionrios fica a cargo
das prefeituras e, em certos casos, possvel perceber ainda um profundo desconhecimento, por parte dos gestores municipais, da realidade em que se pretende
atuar. Ou seja, em algumas informaes prestadas parece haver divergncias sobre a situao real do municpio em questo. Em sua maioria, a gesto da cultura
encontra-se acoplada a outro setor, como o turismo, a educao e at mesmo a
sade, como j ocorreu em tempos passados na instncia federal.
108
109
O termo diferena uma expresso sempre atual, posto que parece ser um dos fundamentos da sociedade e do pensamento moderno, caro a todas as reas das cincias humanas, especialmente a lingustica, a semitica e a antropologia, ou seja, as
reas que buscam compreender os fenmenos de produo de sentidos. Correndo
o risco de sermos trados pelas generalizaes, dado que no cabe aqui aprofundar
as particularidades de cada uma, possvel afirmar que a questo das diferenas
constitui-se como ponto central das anlises do comportamento humano.
110
111
seja como dimenso ontolgica, seja como projeto poltico moderno, no nos
encaminham, inexoravelmente, nem ao campo da diversidade, nem desigualdade. O que define a diversidade e a desigualdade, no sentido aqui proposto,
exatamente o que fazemos com nossas diferenas. Que arranjos decorrem da
articulao entre nossas diferenas?
Slogan ou conceito? Nos ltimos tempos, diversidade cultural tornou-se uma expresso que a tudo se aplica. Em 1998, a Unesco escolheu a diversidade cultural
como tema de sua conferncia em Estocolmo, onde surgiram inmeras iniciativas a respeito. Contudo, a literatura aponta que a temtica j vinha sendo desenvolvida adotando outros termos, ou seja, existem mltiplas definies que descrevem os diferentes aspectos do que possa vir a ser diversidade cultural, sendo
eles multiculturalismo, pluralismo cultural, interculturalismo, fuso cultural etc.
112
113
Entretanto, se faz necessrio abordar o tema da diversidade cultural na perspectiva de uma avaliao crtica, ou seja, levando-se em conta a amplitude de
questes colocada pelo termo, sua dimenso de complexidade e, principalmente, conflitualidade. Percebe-se que seu discurso tomado como um objeto
neutro. Porm, longe de se constituir num tema neutro, traz embutida a noo
de conflito, divergncia, oposio.
Nesse sentido, em sua maioria, o conceito est associado noo dos direitos
culturais como parte dos direitos humanos, sendo a dimenso cultural indispensvel e, acima de tudo, estratgica para qualquer projeto de desenvolvimento.
Por conseguinte, o reconhecimento e a valorizao da diversidade cultural esto
ligados a democracia cultural, democratizao da gesto cultural, participao
da sociedade civil nas decises polticas e no processo de gesto pblica, descentralizao da produo, entre outros aspectos.
Brasil
5.564 3.224
45,9
24,6
De 5.001
a 10.000
50,2
23
De 10.001
1.292 737
a 20.000
57
De 20.001
a 50.000 1.033 714
De 50.001
a 100.000
1.290 648
311
250
Total da
Populao populao Populao
residente residente residente
(%)
(%)
186.770.562
Com poltica
municipal Municpios
de cultura
(%)
(57,7%)
71%
2,5
4.576.446
9.312.322
23
10
18.593.576
69
18,6
16,7
31.249.938
80,4
5,6
11,6
21.795.317
25,2
47.228.470
29
54.004.491
dos
municpios
29%
dos
De 100.001
a 500.000 231
211
91,3
4,2
Mais de
500.000
35
97,2
0,6
36
municpios
No que tange aos principais objetivos da poltica5, destacam-se algumas caractersticas. Se entre 60% e 65% dos municpios de todas as regies do pas com
poltica municipal de cultura afirmam ter o objetivo de fazer com que a cultura
seja um componente da qualidade de vida da populao, a participao da cultura na pauta do desenvolvimento local apontada em ndices inferiores, entre
50% e 58% dos municpios. Apenas na Regio Norte esse ndice se aproxima de
65% dos municpios.
17,5%
Por outro lado, chama ateno o baixo ndice para os objetivos da poltica em
descentralizar a produo cultural e democratizar a gesto cultural: Brasil (6,7%
e 11,3%, respectivamente), Norte (3% e 13,9%), Nordeste (6,4% e 12,1%), Sudeste
(7,5% e 17,2,%), Sul (7,5% e 9,2%) e Centro-Oeste (8,6% e 13,5%).
82,5%
114
115
Se fizermos uma comparao entre as aes mais implementadas e as que ocorrem com menor incidncia, percebe-se uma tendncia dos municpios em priorizar uma poltica de eventos, com um grande ndice de aes dirigidas a promoo de atividades culturais voltadas para pblicos variados, a manuteno
de calendrio de festas tradicionais populares, a promoo de feiras e mostras
da produo artstica e artesanato local e a promoo de festivais, concursos,
encontros de grupos culturais, conforme possvel visualizar no quadro abaixo.
Analisando o quadro abaixo, entendemos que a existncia de conselhos de cultura, legislao especfica e fundos municipais no mnimo duas e s vezes quatro vezes maior onde o rgo gestor especfico existe.
Aes implementadas
Total
Secretaria municipal em
conjunto com outras
polticas
Total
100
Despesa
realizada
na funo
da cultura
83,8
Possui
conselho
municipal
de cultura
17
Possui
legislao
especfica
para a
cultura
5,6
Possui
fundo
municipal
de cultura
5,1
116
72
84
16
4,3
4,3
Setor subordinado a
outra secretaria
12,6
81,8
14
4,6
Setor subordinado
diretamente chefia
do Executivo
6,1
83,8
13,3
2,4
3,2
Secretaria municipal
exclusiva
4,2
91,1
36,4
21,6
20,3
Fundao pblica
2,6
95,2
49,7
32,4
21,4
No possui estrutura
especfica
2,4
62,5
3,7
0,7
0,7
117
Mais implementadas
(%)
Menos implementadas
(%)
89%
24%
Manuteno de calendrio de
festas tradicionais populares
85%
20%
75%
12%
72%
Promoo de consultas
e referendos populares
7%
69%
5%
Fonte: Desenvolvido pelo prprio autor com base em informaes do IBGE, Munic Cultura 2006.
(30%) est diretamente relacionada com o baixo ndice dos objetivos democratizar a gesto cultural (11,3%) e descentralizar a produo cultural
(6,7%). Nesse aspecto, possvel perceber uma coerncia nas informaes
prestadas pelos municpios.
118
119
Do total de 5.564 municpios, apenas 5,6%, ou seja, 310 afirmaram possuir legislao municipal de fomento cultura, e possvel perceber que, quanto
maior o municpio, maiores os ndices de existncia de legislao municipal,
sendo que 75% dos municpios com mais de 500 mil habitantes possuem legislao. Segundo o IBGE (2007), nesse caso, as diferenas ocorridas devido
ao porte do municpio eram previsveis, j que esse tipo de legislao est
diretamente vinculado capacidade de arrecadao de impostos.
e) Legislao municipal de proteo ao patrimnio cultural
J a legislao de proteo ao patrimnio, 17,7% do total dos municpios
afirma possuir. Predominam os bens tombados de natureza material, o que
era de esperar, em funo da permanncia da perspectiva patrimonialista. As
aes em torno do patrimnio imaterial somam apenas 2,5% de municpios
com legislao voltada para a proteo de saberes e fazeres, o que, de certa
forma, confirma o carter de evento das aes de promoo das tradies.
H um destaque grande da Regio Sudeste em relao s outras, muito em
detrimento dos dados do estado de Minas Gerais, em que 62% dos municpios possuem legislao de proteo ao patrimnio cultural.
f) Existncia de Conselhos Municipais de Cultura
e de Preservao do Patrimnio
A existncia de conselhos e, principalmente, a sua caracterstica, isto , se o
conselho apenas consultivo, deliberativo, normativo ou fiscalizador, e tam-
bm a sua proporo de representao, se paritrio ou se possui maior representao do governo ou da sociedade civil, so indcios da importncia
que se d participao da sociedade na formulao de polticas, na tomada
de decises e na fiscalizao das aes do poder pblico. Trata-se de um elemento relevante quando se pretende tratar a questo da diversidade cultural
e, sobretudo, das polticas pblicas de cultura que promovam a diversidade
cultural. Assim, entende-se que, quanto maior a representao da sociedade
civil nos conselhos, quanto mais diversificados os agentes que os compem
e, por fim, quanto maior a interveno desses organismos no processo de
deciso de uma poltica, maiores as chances de se construir efetivamente a
dimenso pblica de uma poltica, no sentido estrito da palavra.
Nesse aspecto, acredita-se que o Brasil possui ainda um longo caminho a
percorrer, na medida em que apenas 17% e 13,3% dos municpios afirmam
ter Conselho Municipal de Cultura e Conselho Municipal de Preservao e
Proteo do Patrimnio Cultural, respectivamente. Esses dados podem ser
justificados pelo fato de a cultura no possuir ainda uma regulamentao
federal especfica para a constituio de conselhos, como acontece em outras reas como sade, educao e assistncia social (IBGE, 2007). Mais uma
vez, quanto maior o municpio, maior a frequncia de conselhos na gesto
pblica, sendo que 72,2% e 50% dos municpios com mais de 500 mil habitantes possuem Conselho Municipal de Cultura e Conselho Municipal de
Preservao e Proteo do Patrimnio Cultural, respectivamente.
120
121
Manifestao
tradicional popular
65
89
52
47
34
88
86
85
16
13
77
70
7
79
78
86
40
23
9
82
80
54
85
41
32
30
16
86
83
86
91
83
63
58
31
17
10
9
7
85
88
84
83
73
67
73
73
Fonte: Desenvolvido pelo prprio autor com base em informaes do IBGE, Munic Cultura 2006.
Novamente, o clculo priorizado pelo artigo difere do procedimento adotado pelo IBGE. O porcentual da
modalidade de festivais ou mostras, feiras, exposies e concursos foi calculado com base no nmero de municpios que realizaram essas atividades nos ltimos 24 meses e no com base no nmero total de municpios.
(%)
Vdeo
Modalidade
Msica
Dana
Festivais ou mostras
75
Teatro
Gastronomia
Cinema
Vdeo
Artes e artesanato
Agropecuria
71
Feiras
Livros
Nota_grfico
7
Moda
Artesanato
Artes plsticas
Exposies
68
Fotografia
Acervo histrico
Artes visuais
Dana
Msica
Literatura
Dramaturgia
55
Concursos
Fotografia
Cinema
Cordel
(%)
Ainda com base na tabela acima, a ltima coluna demonstra a expressiva participao do governo municipal nas atividades de festivais ou mostras, feiras, exposies e concursos. Independentemente da modalidade, pelo menos 50% recebe apoio do poder pblico, provavelmente pelo fato de constiturem atividades
que movimentam a economia do municpio, a chamada economia regional, com
o aumento do nmero de visitantes que favorece a economia de vrios setores:
hoteleiro, alimentcio, transportes, turismo etc. A concentrao de atividades desse
porte aumenta a visibilidade do municpio e, consequentemente, do seu gestor.
Por outro lado, os dados revelam tambm um alto grau de dependncia em relao aos recursos financeiros do Estado; trata-se de uma via de mo dupla, em que
ambos os lados acabam sendo favorecidos.
Em relao a essa temtica, vale destacar a ampla atuao do Estado nas atividades
de festivais ou mostras de manifestao tradicional popular (89%), msica (88%) e
dana (86%); feiras de artes e artesanato (86%) e agropecuria (82%); exposies de
acervo histrico (91%) e artesanato (86%); e, por fim, concursos de msica (88%),
dana (85%) e literatura (84%).
As festas populares com o apoio do governo municipal ocorrem com maior incidncia na Regio Nordeste (97%), seguida de Sudeste (93%), Norte (90%), Centro-Oeste (87%) e Sul (78%).
Atividades culturais com financiamento ou patrocnio do poder pblico Brasil
Produo
de filmes
Montagem Publicaes
de peas
culturais
teatrais
Eventos
Festas
populares
Brasil
27
18
73
91
At 5.000
13
61
87
De 5.001 a 10.000
17
10
65
90
De 10.001 a 20.000
27
16
74
92
De 20.001 a 50.000
35
25
82
93
De 50.001 a 100.000
10
50
35
91
92
De 100.001 a 500.000
24
65
56
89
91
Mais de 500.000
58
69
81
97
97
Fonte: Desenvolvido pelo prprio autor com base em informaes do IBGE, Munic Cultura 2006.
122
123
Grandes regies
Produo
de filmes
Montagem Publicaes
de peas
culturais
teatrais
Eventos
Festas
populares
Brasil
27
18
73
91
Norte
19
11
69
90
Nordeste
29
16
72
97
Sudeste
27
20
73
93
Sul
28
23
74
78
Centro-Oeste
23
15
74
87
Fonte: Desenvolvido pelo prprio autor com base em informaes do IBGE, Munic Cultura 2006.
h) Meios de comunicao
Centro-Oeste (45%), Norte (38%) e, por fim, Sul (38%). J o provedor de internet
mais presente no Sudeste (53%), Centro-Oeste (52%), Sul (48%), Norte (43%) e
depois o Nordeste (36%).
Meios de
comunicao
existentes
Brasil
(%)
Norte
(%)
Nordeste
(%)
Sudeste
(%)
Sul
(%)
CentroOeste
(%)
Rdio comunitria
49
41
59
48
38
45
Provedor de internet
46
43
36
53
48
52
37
21
22
51
45
37
Rdio FM local
34
30
32
43
28
32
Rdio AM local
21
15
15
23
30
23
Geradora de TV
10
24
11
12
10
TV comunitria
Fonte: Desenvolvido pelo prprio autor com base em informaes do IBGE, Munic Cultura 2006.
124
125
Quanto maior o municpio, mais canais de TV aberta possui, sendo que 81% dos
municpios com mais de 500 mil habitantes possuem mais de cinco canais, contra apenas 12% dos municpios com at 5 mil habitantes. A regio com menor
incidncia de TV aberta o Norte, em que 87% do total dos municpios a possui
(Nordeste 96%, Sudeste 98%, Sul 94% e Centro-Oeste 93%). No Sudeste, 40% dos
municpios possuem mais de cinco canais, contra 10% no Norte, 8% no Nordeste,
18% no Sul e 7% no Centro-Oeste.
A comunicao um fator estratgico para a democratizao e a cidadania; ela
exerce forte influncia nos processos de produo, difuso e consolidao das
prticas culturais. A televiso, como um dos meios de comunicao, capaz de
ditar tendncias e comportamentos, pois influencia a formao e a estruturao
de valores da sociedade como um todo. Se bem utilizada, pode contribuir para
a criao de uma conscincia social de respeito diversidade, no no sentido de
homogeneizar as diferentes culturas, mas de evidenciar e valorizar as singularidades criativas de cada um.
i) Equipamentos culturais
No que se refere aos equipamentos culturais, mais uma vez os municpios
maiores possuem uma quantidade maior de equipamentos. No entanto, seria
interessante um estudo que identificasse a localizao desses equipamentos culturais nas grandes cidades, no sentido de verificar se a sua distribuio territorial
atende preferencialmente s regies perifricas ou s mais centrais do municpio, principalmente em relao s grandes capitais. No interior, o acesso a espetculos, centros culturais, museus e, principalmente, salas de cinema pequeno,
o que dificulta o estmulo, a experimentao e a criao.
As regies que possuem o maior nmero de municpios com equipamentos culturais so o Sudeste e o Sul, com pouca diferena entre elas.
interessante fazer uma comparao entre os dados dos equipamentos culturais. Alm da predominncia da biblioteca pblica nos municpios, encontramos em ordem decrescente a existncia de estdios ou ginsios poliesportivos
(82,4%), videolocadoras (82%), clubes e associaes recreativas (73%), lojas de
discos, CDs, fitas e DVDs (60%). Em sua anlise, o IBGE (2007, p. 103) ressalta que
a forte presena de estdios ou ginsios poliesportivos, bem como de clubes e
associaes recreativas, evidencia uma dimenso da sociabilidade brasileira associada s atividades de prticas esportivas. No entanto, a pesquisa revela que a
TV aberta est presente em 95% dos municpios, como j abordado, e a existncia de videolocadoras e lojas de discos, CDs, fitas e DVDs expressa uma dimenso
completamente diversa da anterior, porm tambm muito presente. Ou seja,
possvel concluir que, paralelamente sociabilidade coletiva e pblica, os brasileiros possuem como hbito o consumo de contedos culturais em seu espao
privado e domstico, provavelmente pelo baixo custo dessas atividades.
89
82,4
25
22
21
9
98
94
90
79
77
Bibliotecas pblicas
Estdios ou ginsios poliesportivos
Centros culturais
Museus
Teatros ou salas de espetculo
Cinemas
Fonte: Dados Filme B, nossa elaborao.
126
127
Equipamentos culturais por tipo Brasil
Videolocadoras
Clubes e associaes recreativas
Lojas de discos, CDs, fitas e DVDs
Unidades de ensino superior
Livrarias
Shopping centers
Fonte: Desenvolvido pelo prprio autor com base em informaes do IBGE, Munic Cultura 2006.
Concluso
Vale reforar a importncia de uma pesquisa desse porte, que, alm de servir de subsdio para repensar o campo da cultura, formular novas polticas
pblicas e reformular aes antigas, acaba por orientar a gesto dos municpios, na medida em que o questionrio aplicado possui informaes relevantes para o gestor, que podem pautar suas aes nos itens e questes
abordados pelo estudo. Ou seja, o prprio rgo gestor do municpio consegue ter uma mensurao do desenho institucional que se espera para
a implantao de polticas culturais em sua cidade e, consequentemente,
parte da gesto do setor cultural como um todo.
128
129
Por fim, foi possvel perceber que existem ausncias e presenas que so
universais e tambm surpreendentes. Outras se relacionam ao tamanho do
municpio e regio e/ou estado, mas isso no deve autorizar a generalizar
presenas e ausncias. Por exemplo, o estado de So Paulo tem o maior
nmero de municpios com a gesto cultural ligada diretamente ao prefeito,
isto , em seu formato mais tradicional.
Diante do cruzamento dos dados da pesquisa, arrisca-se concluir que temos
menos diferenas e diversidade e mais desigualdades e ausncias. Os dados,
em sua maioria, revelam no a nossa diversidade cultural, mas a incidncia
de modelos de hierarquizao.
Referncias bibliogrficas
BERNARD, Franois de. Para uma definio do conceito de diversidade cultural.
In: BRANT, Leonardo (Org.). Diversidade cultural. Globalizao e culturas locais:
dimenses, efeitos e perspectivas. So Paulo: Escrituras/Instituto Pensarte,
2005. p. 73-81.
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Janeiro: IBGE, 2007. 129 p.
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2007. 268 p.
_____. Sistema de informaes e indicadores culturais 2003. V. 18. Rio de Janeiro:
IBGE, 2006. 126 p.
LINS, Cristina Pereira de Carvalho. Indicadores culturais: possibilidades e limites
As bases de dados do IBGE. Braslia: MinC, 2006. 17 p.
LINS, Cristina Pereira de Carvalho; ALKMIN, Antonio Carlos. O sistema e o sistema
o projeto em curso no IBGE e o estudo sobre a cultura. In: Revista Observatrio
Ita Cultural. So Paulo: Ita Cultural, n. 4, jan.-mar. 2008. p. 59-67.
SILVA, Liliana Sousa e; OLIVEIRA, Lcia Maciel Barbosa de. Munic Cultura: o
necessrio protagonismo das cidades nas polticas culturais. In: Revista Observatrio Ita Cultural. So Paulo: Ita Cultural, n. 3, set.-dez. 2007. p. 69-73.
SILVA, Rosimeri Carvalho da. Indicadores culturais: reflexes para a construo
de um modelo brasileiro. In: Revista Observatrio Ita Cultural. So Paulo: Ita Cultural, n. 4, jan.-mar. 2008. p. 44-58.
130
131
recursos humanos
da cultura: perfil,
nvel e rea de
formao nos
municpios brasileiros
Maria Helena Cunha
Resumo
Este artigo analisa os recursos humanos para a cultura nos municpios brasileiros e suas referncias estaduais, considerando o vnculo empregatcio, o nvel
de instruo e a rea de formao. Problematiza a dimenso relativa ao grau
de instruo dos agentes culturais diante da estrutura organizacional municipal, tratando-os comparativamente ao investimento em formao especfica de
atualizao desse profissional.
Palavras-chave: cultura, recursos humanos municipais, formao, gesto
cultural, pesquisa
Introduo
Este artigo tem como objetivo apresentar e refletir sobre parte dos resultados do Suplemento de Cultura da Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais (Munic), pesquisa realizada pelo IBGE que foi a campo no segundo
semestre de 2006. Mais especificamente, analisa os dados referentes aos
recursos humanos do setor pblico municipal para a cultura, a partir de
uma viso mais ampla, por estados e regies do Brasil, considerando, para
tanto, os nveis de instruo dos funcionrios e suas principais reas de
formao, bem como o investimento pblico realizado com o objetivo de
formao cultural e, por fim, o tipo de vnculo empregatcio dos funcionrios pblicos municipais.
Principais objetivos
Dinamizar as atividades culturais do municpio
Garantir a sobrevivncia das tradies culturais locais
Preservar o patrimnio histrico, artstico e cultural
Integrar a cultura ao desenvolvimento local
Tornar a cultura um dos componentes bsicos para
a qualidade de vida da populao
Ampliar o grau de participao social nos projetos culturais
Democratizar a gesto cultural
Descentralizar a produo cultural
Outros
Com base nos dados disponibilizados pela Munic, o grande desafio traar
um paralelo entre os processos de profissionalizao, formao e reconhecimento do setor como estratgia de poltica pblica. Devemos levar em
considerao que, at bem pouco tempo, assistamos a um completo descaso com relao ao investimento estrutural no setor pblico, como afirma
Rubim (2008):
O esquecimento de polticas de atualizao e qualificao tem sido
uma triste marca de praticamente todas as polticas culturais implantadas pelos governos nacionais. (...) Esta, sem dvida, uma das ausncias mais gritantes e graves das polticas brasileiras e um dos fatores
eminentes da tradio de instabilidade na atuao do estado nacional
na cultura. (RUBIM, 2008, p. 62)
132
133
Porcentual
37,4%
37,1%
36,7%
32,5%
37%
28,8%
6,5%
3,9%
0,7%
Na prpria anlise dos resultados publicados da Munic, considera-se que os objetivos principais citados, como dinamizar as atividades culturais do municpio
(37,4%), garantir a sobrevivncia das tradies culturais locais (37,1%) e preservar os patrimnios histrico, artstico e cultural (36,7%) so pontos obrigatrios e,
tradicionalmente, parte da construo de uma poltica pblica. Em um porcentual
nem to abaixo dos demais citados anteriormente, j surgem itens referentes a
uma discusso mais contempornea, como tornar a cultura um dos componentes
bsicos para a qualidade de vida da populao (37%) e integrar a cultura ao desenvolvimento local (32,5%) dos municpios. No entanto, os dois ltimos pontos
referentes democratizao e descentralizao cultural que indicam um perfil
mais atual de desenho de polticas culturais comprometidas com o desenvolvimento social local ainda tm um porcentual muito pequeno, respectivamente,
6,5% e 3,9%. So pontos relevantes a ser tratados junto com os novos gestores
pblicos que assumem suas pastas neste ano de 2009, perodo em que devero
estar frente da construo de planos de governo.
No h dvida de que o quadro poltico existente para o setor cultural tem
como desafio reverter seu posicionamento diante da realidade de outros
setores sociais que compem o conjunto das polticas pblicas nacionais. Para
tanto, preciso enfrentar alguns obstculos-chave, como a implantao de
polticas e programas de capacitao profissional para o setor, apontada pelo
relatrio da Munic: a formao de pessoal voltado especificamente para as
demandas da cultura uma das maneiras eficazes de inclu-la na agenda das
polticas locais (IBGE, 2007).
Paralelamente, necessrio investir, em mbito nacional, em aes como essa de
parceria entre MinC e IBGE, que disponibilizam informaes mais objetivas para
o setor como forma de conhecimento e reconhecimento do campo da cultura.
Assim, ao analisar a poltica cultural brasileira, Rubim (2008) considera a implantao de planos e programas, como os citados anteriormente, por parte do Ministrio da Cultura, como uma atitude que visa construo de aes estruturantes
para o campo. Ou seja, para que haja capacidade de funcionamento de planos
e programas como proposto, preciso ter compreenso das aes de planejamento, de participao social, de financiamento, de estruturao de polticas
setoriais, de informao e de institucionalizao de rgos gestores das polticas
culturais (MINC, 2006, p. 19). Isso significa, consequentemente, a profissionalizao do setor cultural e, nas palavras de Rubim (2008):
A construo que vem sendo realizada pelo ministrio, em parcerias
com estados, municpios e sociedade civil, de um Sistema Nacional de
Cultura vital para a consolidao de estruturas e de polticas, pactuadas e complementares, que viabilizem a existncia e persistncia de
programas culturais de mdios e longos prazos, logo no submetidos
s intempries conjunturais. (RUBIM, 2008, p. 66)
134
135
42,18
40
35
30
25,12
25
Contrapondo-se ao alto ndice de profissionais ainda de nvel mdio no setor pblico de cultura, temos duas regies que se destacam, comparativamente, pelo alto
ndice de funcionrios com ps-graduao: a Regio Centro-Oeste, com 14%, e
a Regio Sul, tambm com 14%. Logo abaixo vem a Regio Sudeste, com 5,18%.
No caso especfico das duas primeiras regies, podemos supor que os alunos dos
cursos existentes de ps-graduao esto, de fato, sendo absorvidos como mo de
obra especializada para ocupar cargos nos rgos pblicos de cultura.
20
15
10
5
7,79
2,77 3,08
2,35
6,83
1,78
0,91
Outra questo que podemos levantar refere-se s mudanas constantes de funcionrios nos setores pblicos, seja pela pouca maturidade deles, que buscam novas experincias; seja pela busca de novas oportunidades de crescimento profissional; seja pela falta de estabilidade relacionada ao vnculo empregatcio (regimes
flexveis e cargos de confiana). Nesse sentido,
uma caracterstica identificada e muito comum nesse setor o que podemos chamar de nomadismo profissional, referindo-se aos caminhos
percorridos, que apresentam uma sequncia de mudanas sucessivas
de locais de trabalho e projetos variados. Esse fato deve-se complexidade gerada pela prpria demanda do mercado cultural que amplia a
oferta e disponibiliza novos postos de trabalho tanto no setor pblico
quanto no privado. Lida-se com a multiplicidade de interlocutores e
perfis institucionais diferenciados nas prprias organizaes culturais
pblicas e na criao, fato ainda mais recente, de gerncias culturais nas
empresas privadas no Brasil. (CUNHA, 2007, p. 109)
10,90
5,59
0,26
1,47
0,80
Administrao
Biblioteconomia/documentao
Histria
Arquitetura
Comunicao social
Cincias sociais
Arquivologia
Museologia
Produo cultural
Artes cnicas
Msica
Outros
Pedagogia
136
137
Nessa perspectiva, o resultado apresentado pela Munic nos revela essa interprofissionalizao do setor cultural, e trs dados chamam ateno: o porcentual
de 25,12% para pedagogos, que se explica pela vinculao, em grande parte,
de secretarias de Educao e Cultura; outro dado refere-se aos profissionais de
produo cultural, que representam 0,8%, um ndice baixo compreendido por
ser uma profisso ainda no atendida com cursos superiores de graduao, pelo
menos em grande escala, que so excees. No entanto, aparece um dado surpreendente: 42,18% dos funcionrios que responderam a essa questo colocam-
Os dados nos revelam vrios pontos que devem ser levados em considerao
quando se trata de investimento pblico no processo de formao de seus funcionrios. Em primeiro lugar, preciso estar ciente de que deve ser uma ao
contnua como parte de um plano de poltica pblica. Tais aes podem ser
promoes diretas por meio de programas de formao cultural ou por meio
de incentivos para que seus funcionrios busquem melhor qualificao profissional e acadmica. Ressalte-se que, de alguma forma, esse o caminho para a
profissionalizao e a institucionalizao do setor cultural, mas ainda restrito aos
municpios com maior nmero de habitantes.
O Ministrio da Cultura, por meio da Secretaria de Articulao Institucional (SAI/MinC), em parceria com o Servio Social do Comrcio
(Sesc/SP), tem trabalhado na consolidao de um Programa de Fortalecimento Institucional e Gesto Cultural, que desenvolva a arquitetura
de implementao do Sistema Nacional de Cultura e um Programa de
Formao Cultural. (SOTTILI, 2009)
O segundo ponto que foi levado em considerao nessa anlise refere-se ao investimento em formao por parte das instituies pblicas municipais de cultura. Os
dados revelam os seguintes nmeros: 1/3 dos municpios brasileiros investe em
curso de atualizao profissional para formao do gestor responsvel pelo rgo
de cultura do municpio; 24,9% para os responsveis por projetos ou programas
culturais realizados pela prefeitura; e 21% para o pessoal envolvido em atividades
culturais especficas. Os nmeros completos esto apresentados no Grfico 2.
1.793
1.188
500
449
466
Nmero de
municpios
15%
Municpios com
investimento
7,4%
4,2%
22
17,7%
1.668
1.500
21,2%
Outros
139
24,9%
138
1.000
27
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
449
1.793
1.668
1.188
466
22
22
27
22
Ao fazer uma anlise por regio, fica evidente o investimento maior nas
regies Sul, Sudeste e Nordeste, proporcionalmente ao nmero de municpios de cada regio. Tais dados retratam um quadro nacional de desigualdade de investimento no setor cultural, reflexo tambm de outras reas sociais e econmicas.
O ltimo ponto que abordaremos relativo ao vnculo empregatcio dos funcionrios pblicos municipais. Como podemos constatar nos Grficos 4 a 8, o
porcentual entre estatutrio e celetista muito pequeno em relao ao regime
flexvel. No caso da Regio Norte, podemos verificar um porcentual de regime
estatutrio e celetista (64,64%) bem maior que o regime de carter flexvel
(35,15%), o que difere dos demais estados, que tm uma pequena diferena
entre as categorias de regime empregatcio.
Com relao existncia de escola, oficina ou curso regular de atividades culturais nos municpios, chega-se a um nmero de 46,9%, tendo como principais atividades as seguintes reas artsticas, j includa a rea de gesto: msica:
33,8%; artesanato: 32,8%; dana: 30,8%; teatro: 23,2%; manifestaes tradicionais
populares: 19,4%; artes plsticas: 18%; literatura: 6,6%; patrimnio, conservao
e restaurao: 5,4%; gesto cultural: 3,3%; fotografia: 2,4%; cinema: 2,3%; circo:
2,3%; vdeo: 2,1%; e outras: 4,6%.
Observa-se que ainda permanecem em evidncia as reas artsticas mais tradicionais, como a msica, o artesanato, a dana e o teatro. Destaca-se tambm o
surgimento de oficinas ou cursos relativos gesto cultural, ainda com um porcentual pequeno (3,3%), proporcional ao nmero de municpios por regio. No
entanto, essa uma rea que tem o maior investimento do setor pblico, 86,8%,
exatamente por ser uma necessidade intrnseca ao prprio funcionamento e
organizao das instituies culturais.
140
141
Outro ponto tambm a ser considerado com relao a esse fato que, muito
recentemente, toma-se conscincia da necessidade de formao desse profissional como investimento na institucionalizao do setor cultural seja ele
pblico ou privado. Assim, a importncia do papel do gestor cultural vem do
prprio processo de profissionalizao da cultura e da reestruturao desse
mercado, que devem ser tratados como fatores determinantes no processo inicial de reconhecimento desse profissional.
O redimensionamento do papel da cultura no mbito da sociedade e a complexidade das relaes de trabalho no mundo contemporneo exigem maior
profissionalismo diante do mercado cultural. H bem pouco tempo que se
associa discusso na rea de polticas pblicas e no mercado de cultura a concepo do perfil de um profissional que atue especificamente no mbito da
produo ou gesto cultural.
Outros cursos que tm o maior investimento de recursos pblicos so: msica:
85,9%; patrimnio, conservao e restaurao: 83,7%; teatro: 78,6%; literatura:
78,4%; dana: 76,6%; artesanato: 76,8%; manifestaes tradicionais populares:
76,3%. Os investimentos em tais reas artsticas e culturais reforam ainda mais as
reas tradicionalmente j amparadas pelo poder pblico, e assistimos ao pouco
investimento em manifestaes artsticas contemporneas e/ou de vanguarda.
63%
18,12%
15,83%
1,64%
Total do
pessoal
ocupado na
rea de
cultura
Estatutrios
Celetistas
1,2%
Somente
Estagirios
comissionados
Sem vnculo
permanente
13.597 pessoas
100% pessoas
44,93%
37,63%
27,49%
25,66%
13,71%
15,88%
17,18%
19,39%
4,45%
2,58%
Total do
Estatutrios
Celetistas
pessoal
ocupado na
rea de
cultura
Fonte: Elaborao da autora, 2008.
Somente
Estagirios
comissionados
Total do
Estatutrios
Celetistas
pessoal
ocupado na
rea de
cultura
Fonte: Elaborao da autora, 2008.
Sem vnculo
permanente
142
Somente
Estagirios
comissionados
143
4.759 pessoas
8.526 pessoas
46,55%
47%
20,67%
21,11%
1,57%
Total do
pessoal
ocupado na
rea de
cultura
Estatutrios
Sem vnculo
permanente
Celetistas
5,2%
Somente
Estagirios
comissionados
7,18%
Sem vnculo
permanente
7,7%
Total do
Estatutrios
Celetistas
pessoal
ocupado na
rea de
cultura
Fonte: Elaborao da autora, 2008.
11,5%
Somente
Estagirios
comissionados
13,54%
Sem vnculo
permanente
144
145
Para proporcionar maior capacidade executiva de planos de polticas pblicas de cultura, o caminho consiste em investimentos que fortaleam institucionalmente as estruturas dos equipamentos pblicos municipais, coloquem o setor em um patamar de igualdade como poltica de governo e, ao
mesmo tempo, invistam na formao de recursos humanos para atuar de
forma propositiva no mbito municipal, qualificando as discusses pblicas
a respeito da cultura.
No caso especfico da gesto cultural, o processo formativo deve ser entendido como identificao de referenciais coletivizados que possam delimitar um
campo comum de atuao profissional e discusso terica, proporcionando
nveis e modalidades diferenciadas de formao para que possa atender aos
diversos perfis de profissionais atuantes nesse setor e apontados como resultados na Munic. Ao mesmo tempo, sobre a construo de um programa de
formao cultural, alm do item referente gesto, preciso paralelamente
investir na formao artstica e tcnica que engloba todo o campo e perpassa
toda a cadeia produtiva do setor de cultura.
Por fim, em todo esse processo de realizao da pesquisa, disponibilizao
dos dados referencias e sua anlise por especialistas, munindo o setor cultural
de informaes objetivas e consistentes, o mais importante fazer com que
todo esse material chegue s mos dos dirigentes municipais e seus assessores para que sirvam, de fato, como indicadores e parmetros para o desenvolvimento de polticas pblicas municipais. Essa ser a grande diferena e
contribuio desses trabalhos com relao s transformaes social, cultural
e econmica dos municpios brasileiros, num programa estrutural e conjunto
com os estados e a Federao.
146
Referncias bibliogrficas
CUNHA, Maria Helena. Gesto cultural: profisso em formao. Belo Horizonte:
DUO, 2007.
IBGE. Perfil dos municpios brasileiros. Pesquisa de informaes bsicas municipais: cultura. Rio de Janeiro: IBGE, 2007.
IBGE. Sistema de informaes e indicadores culturais 2003-2005. Rio de Janeiro: IBGE, 2007.
MEIRA, Mrcio; GAZZINELLI, Gustavo. O Sistema Nacional de Cultura. In: Oficinas do Sistema Nacional de Cultura. Braslia: MinC, 2006.
MINC. Oficinas do Sistema Nacional de Cultura. Braslia: MinC, 2006.
RUBIM, Antnio Albino Canelas. Polticas culturais no governo Lula/Gil: desafios e enfrentamentos. In: RUBIM, Antnio Albino Canelas; BAYARDO, Rubens.
Polticas culturais na Ibero-amrica. Salvador: EDUFBA, 2008.
SOTTILI, Tatiana. Fortalecimento institucional. Disponvel em: http://www.cultura.gov.br. Acesso em: 11 fev. 2009.
loucura, morte e
ressurreio do
cinema no brasil:
cineastas, estado
e poltica
cinematogrfica
nos anos 1990
147
manchete nos jornais e ganha at torcida pelo Oscar. Nas telas brasileiras surge
o cinema da retomada. O que aconteceu? Por que o cinema no Brasil havia sido
dado como morto e como ele renasceu?
Bourdieu ressalta que esses so dois polos do campo artstico, e que alguns bens
simblicos se encontram em categorias intermedirias, entre o campo erudito
e a indstria cultural. o caso do cinema, que oscila entre esses dois polos, pois
, simultaneamente, uma forma artstica necessariamente industrial ( uma arte
industrial4), mas as regras que estruturam o campo cinematogrfico so as da
cultura erudita (principalmente no Brasil, onde o fazer cinematogrfico considerado uma atividade autoral).
Com base no entendimento do campo cinematogrfico como um importante espao social de produo material e simblica que obedece a leis prprias de funcionamento, mas est em constante dilogo com o mercado e com o Estado, podemos entender melhor o cinema brasileiro e, em especial, o cinema da retomada.
148
149
O famoso ensaio de Walter Benjamin sobre o cinema esclarecedor a esse respeito: o cinema uma arte industrial, feito para ser reproduzido. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica. In:
Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1985.
5
Veja-se a esse respeito: BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma histria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979; CALIL, Carlos Augusto. Panorama histrico da produo de filmes no Brasil. In: Estudos
de cinema. So Paulo: Editora 34, 2000, n. 3; RAMOS, Ferno (Org.). Histria do cinema brasileiro. So Paulo: Art
Editora, 1987; e RAMOS, Jos Mrio Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais: anos 50/60/70. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983.
4
se encontra com Alex (Fernanda Torres), brasileira que trabalha como garonete
em Portugal e vive com Miguel (Alexandre Borges), um msico contrabandista e
viciado em herona. As histrias de Paco e Alex confundem-se e, perseguidos por
bandidos interessados no pacote, eles decidem fugir para a Espanha, mas a fuga
no bem-sucedida e Paco baleado.
Esse filme carrega as marcas do incio da dcada de 1990, tempo em que, parafraseando a famosa frase de Tom Jobim, a melhor sada para o Brasil parecia mesmo ser o aeroporto. Terra Estrangeira mostra um mundo cada vez mais integrado
e globalizado, mas onde as pessoas parecem cada vez mais soltas, sem referncias de lugar, de pertencimento, perdidas no mundo sem fronteiras. A histria de
Paco passa da apatia para a desesperana e por fim para a fuga desesperada, e
nesse sentido pode-se traar um paralelo com o campo cinematogrfico brasileiro do perodo. Algumas cenas so sintomticas:
Nesse quadro que se instala com o fim da Embrafilme, a produo cinematogrfica cai drasticamente: em 1991, apenas oito filmes brasileiros foram lanados e,
em 1992, apenas trs filmes6. Diante da crise, os cineastas comeam a se organizar, pressionando o Estado pela elaborao de outra poltica cinematogrfica.
A ruptura da slida ligao entre o Estado e o cinema brasileiro, decretada por
meio de uma medida provisria, representou um forte abalo no campo cinematogrfico, desestruturando-o totalmente. possvel entender esse momento da
histria cinematogrfica brasileira por meio de um paralelo com o filme Terra
Estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), que mostra o duro golpe que
o Plano Collor representou golpe sentido no apenas no campo cinematogrfico, mas em toda a sociedade. Esse filme, embora seja uma produo de meados
da dcada de 1990, tem sua ao localizada durante o incio do governo Collor e
retrata o desestmulo, a apatia, a falta de esperana, a soluo individual encontrada na fuga, a ausncia de projetos coletivos e as frustraes que marcaram o
perodo. O campo cinematogrfico no incio dos anos 1990 refletiu essa situao,
transformando-se num verdadeiro salve-se quem puder, quando se perderam
as ideias de identidade nacional, do cinema como reflexo da cultura brasileira e
da tentativa de identificao com o popular, que em outros momentos foram
fundamentais para o cinema brasileiro.
150
Terra Estrangeira conta a histria de Paco (Fernando Alves Pinto) e sua me (Laura
Cardoso), uma espanhola que sonha voltar a seu pas de origem. Quando o presidente Collor anuncia seu plano, que inclua o confisco das economias de toda a
populao, a me de Paco sofre um ataque cardaco e morre, j que perdera todo
seu dinheiro e consequentemente teria de abandonar o projeto de voltar Europa. Sozinho, desorientado e sem dinheiro, Paco aceita entregar um misterioso
pacote em Portugal, em troca do custeio da viagem. Aps perder o pacote ele
Segundo dados do prprio governo federal citados em SECRETARIA do Audiovisual/Ministrio da Cultura.
Economia da cultura. Braslia: SAV/MinC, 2000, p. 54. Vale ressaltar que a produo de um filme leva em mdia
um ano e meio, portanto, os filmes lanados em 1991 j estavam sendo produzidos antes do fim da Embrafilme,
e o encerramento das atividades da mesma veio a refletir na produo do ano de 1992.
151
A falta de esperana e de perspectivas tpica do perodo, mas Cac Diegues reage ao pessimismo do momento com Dias Melhores Viro (1989), outro filme sintomtico do perodo, mas com um vis mais otimista,
caracterstico do autor.
8
Msica de Jards Macal e Wally Salomo, sucesso na voz de Gal Costa na dcada de 1970.
7
A falta de perspectivas e de uma poltica para o cinema fez com que o perodo do
governo Collor fosse relacionado morte ou s trevas, para muitos cineastas. Por
exemplo, Murilo Salles se refere ao incio dos anos 1990 como grande depresso
do governo Collor10, Jos Roberto Torero fala desse perodo como a nossa idade
das trevas11 e Cac Diegues fala em trevas colloridas12. A ideia de morte do cinema brasileiro, representada pela aluso s trevas, se associava tambm ideia da
impossibilidade de fazer cinema no Brasil naquele momento. O depoimento do
cineasta Emiliano Ribeiro muito esclarecedor nesse sentido13:
152
10
153
que nem conseguia manter sua autonomia? O cineasta Arthur Fontes, da Conspirao Filmes, uma das poucas empresas cinematogrficas criadas no incio dos anos
1990, contou suas dificuldades e como foram enfrentadas17:
154
155
20
BERNARDET, Jean-Claude. Acreditam os brasileiros nos seus mitos: o cinema brasileiro e suas origens. In: Revista USP n. 19, So Paulo: USP, set.-nov. 1993, p. 20.
21
COUTO, Jos Geraldo. Um dilogo de surdos: reflexes a partir de No quero falar sobre isso agora. In: Revista
USP n. 19. So Paulo: USP, set.-nov. 1993, p. 95.
uma comisso22 coordenada por Luiz Paulo Vellozo Lucas (diretor do Departamento de Indstria e Comrcio do Ministrio da Economia). A comisso contava
tambm com Miguel Borges (secretrio-adjunto de Ipojuca Pontes), Gilson Ferreira (do Departamento de Comrcio Exterior), Clemente Mouro (do Ministrio
das Relaes Exteriores) e Liliane Rank (tambm do Departamento de Indstria e
Comrcio). Essa comisso tratou o cinema como parte da indstria audiovisual,
assimilando a concepo de filme como produto de entretenimento e ignorando qualquer possibilidade artstica ou cultural que no fosse vivel economicamente por meio do mercado. Com base em anlises e estudos, a comisso
resolveu utilizar o dinheiro da Embrafilme, que estava parado no governo federal,
para a produo cinematogrfica (a Embrafilme arrecadava 70% do imposto de
25% sobre a remessa de lucros das distribuidoras estrangeiras). Essa foi a primeira
aproximao do governo Collor com o campo cinematogrfico, mas esse processo de devoluo do dinheiro da Embrafilme s seria regulamentado anos depois, no governo Itamar Franco.
Alm disso, essa mesma comisso elaborou um projeto de financiamento para
os filmes brasileiros, por meio de uma linha de crdito no BNDES, com juros
subsidiados para as produes de cinema e vdeo. Os pedidos de financiamento dos cineastas deveriam vir acompanhados de garantias de pagamento,
como estudos sobre a viabilidade do filme, possibilidade de xito comercial
etc. O chefe da comisso, Luiz Paulo Lucas, declarou ao Jornal do Brasil que:
preciso no confundir poltica cultural com subsdios paternalistas para a
indstria do entretenimento23.
156
Com essa mentalidade empresarial, tratando o cinema como produto de entretenimento e que precisa ser autossustentvel, que cineastas e Estado voltaram a
conversar. O secretrio da Cultura, Ipojuca Pontes, no incio de 1991 trouxe de volta
a cota de tela para o cinema nacional: 70 dias de exibio obrigatria (metade da
cota que vigorou durante a dcada anterior) e a obrigatoriedade de 10% do acervo
das videolocadoras ser composto de filmes brasileiros (antes, eram necessrios
25%). Mas essas medidas protecionistas terminavam no dia 31 de dezembro do
mesmo ano, quando o cinema deveria se inserir no livre mercado.
157
Mas nem tudo so flores e, a partir de 1998, esse modelo de financiamento baseado na renncia fiscal entra em crise, devido a denncias de superfaturamento
de oramentos, recompra de ttulos de filmes, privatizao de empresas estatais (as maiores patrocinadoras) e crise econmica brasileira e mundial. Smbolo dessa crise da retomada o caso do filme Chat, de Guilherme Fontes, que
consegue levantar enorme quantia de dinheiro para sua produo mas no se
realiza. O escndalo Chat causa pssima repercusso na imprensa e no meio
cinematogrfico, contribuindo para o desestmulo do investimento em cinema
e at certo descrdito. Uma reportagem da revista Veja de 30 de junho de 199931,
intitulada Caros, Ruins e Voc Paga, ilustra bem esse momento:
158
O cinema nacional volta a ser assunto do dia, e o governo FHC aproveita-se dessa visibilidade para se promover como o responsvel pela retomada do cinema
brasileiro. Um trecho do Relatrio de Atividades da Secretaria do Audiovisual
Cinema, Som e Vdeo: 1995-200230 diz o seguinte:
Com a extino da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) e do Conselho Nacional de Cinema (Concine), no incio dos anos 90, e a abertura
indiscriminada do mercado audiovisual brasileiro, os instrumentos de
regulao, fiscalizao e financiamento da atividade cinematogrfica
SECRETARIA do Audiovisual/Ministrio da Cultura. Relatrio de Atividades da Secretaria do Audiovisual Cinema, Som e Vdeo: 1995-2002. Braslia: SAV/MinC, 2002, p. 2.
29
Segundo a revista eletrnica Contracampo, de 1995 a 2003, 115 cineastas realizaram seu primeiro longa-metragem. Ed. 57, jun. 2003. Disponvel em: www.contracampo.com.br.
30
SECRETARIA do Audiovisual/Ministrio da Cultura, op. cit., p. 3, grifos meus.
Poucos pases se esforaram tanto quanto o Brasil para ter uma cinematografia nacional. Nos ltimos cinco anos, o governo federal abriu
mo de 280 milhes de reais para a produo de filmes, por meio de
duas leis de incentivo que usam a mecnica da renncia fiscal. Com
esse dinheiro, seria possvel dobrar o nmero de bibliotecas pblicas,
que hoje so 4.000. Destinado a orquestras, manteria funcionando por
dezoito anos seguidos trs das melhores do pas: a Sinfnica Brasileira, a Sinfnica do Estado de So Paulo e a Amazonas Filarmnica.
Dirigido a museus, poderia erguer 186 deles. A referncia, nesse caso,
o Museu Nacional do Mar, em Santa Catarina, que custou 1,5 milho
de reais, valor que inclui a compra e a restaurao de um imvel de
7.000 metros quadrados e todo o acervo. Dessa comparao, surge a
seguinte pergunta: por que priorizar o cinema?
159
Em meio crise e s voltas com a falta de patrocinadores, o campo cinematogrfico novamente se articula, manifestando-se e defendendo-se como pode.
Nesse contexto, em junho de 2000, ocorre o III Congresso Brasileiro de Cinema
(CBC), 47 anos depois da realizao do ltimo CBC32. O III CBC rene associaes
de classe, cineastas, exibidores e distribuidores, que se unem para pressionar o
Estado, buscando solues para a crise. A unio do campo em torno das reivindicaes pode ser percebida no tom do discurso de encerramento feito pelo
presidente do CBC, o cineasta Gustavo Dahl33:
28
MASSON, Celso. Caros, ruins e voc paga. In: revista Veja. So Paulo: Abril, 30 jun. 1999, p. 37-40.
AUTRAN, Arthur. A questo industrial nos congressos de cinema. In: CATANI, Afrnio Mendes et. al. (Org.).
Estudos Socine de cinema: ano IV. So Paulo: Panorama, 2003.
33
O discurso de encerramento de Gustavo Dahl encontra-se no site do CBC: www.congressocinema.com.br.
31
32
O CBC elabora uma pauta com 69 reivindicaes, propondo uma poltica cinematogrfica mais slida, envolvendo no apenas a produo, mas tambm a distribuio e a exibio, e pedindo maior comprometimento do Estado. A partir
das reivindicaes do Congresso, criado o Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indstria do Cinema (Gedic), vinculado Casa Civil da Presidncia, que
responsvel pela elaborao de um pr-projeto de Planejamento Estratgico da
Indstria Cinematogrfica.
Do Gedic surge a Agncia Nacional de Cinema (Ancine), em 2001. A Ancine
o rgo oficial de fomento, regulao e fiscalizao das indstrias cinematogrfica e videofonogrfica, dotada de autonomia administrativa e financeira34.
uma agncia reguladora, que emite certificados, fiscaliza as produes e
responsvel pela arrecadao de impostos das produes audiovisuais. Sua
atuao no vinculada ao Ministrio da Cultura, mas sim Casa Civil da
Presidncia.
Com a criao da Ancine, em 2001, estabelece-se uma nova institucionalidade
para o cinema brasileiro e muitas das reivindicaes do campo cinematogrfico so atendidas. Se ainda faltavam arestas a aparar, a partir de ento o campo
cinematogrfico sabia ao menos onde reclamar. Por meio de avanos e retrocessos, de lutas internas e em guerra com o Estado, o cinema brasileiro dos
anos 1990, ou o cinema da retomada, conseguiu tornar-se visvel. Mesmo com
a crise do fim da dcada, a produo cinematogrfica no chegou a cair drasticamente. Fazer cinema no Brasil ainda difcil, mas talvez no seja mais um
caso de internao.
34
160
161
Distribuio de
recursos na
indstria
cinematogrfica:
o impacto
da carga tributria
Rodrigo Guimares e Souza
162
1. Apresentao
O presente trabalho busca observar o impacto da carga tributria na indstria
cinematogrfica brasileira por meio de um exerccio que simula a comercializao de um projeto fictcio de longa-metragem pelas janelas de comercializao1
de cinema, home video e televiso.
Essa simulao buscou ser o mais fiel possvel quanto correlao de resultados
entre as janelas de comercializao. O mercado externo no foi includo no exerccio justamente pela ausncia de dados publicados que permitam estabelecer
qualquer tipo de correlao. As correlaes utilizadas no tm origem em um
estudo economtrico, pela ausncia de dados tambm para home video e televiso, e foram realizadas com base em pesquisas publicadas e relaes comerciais entre os agentes, tambm amplamente divulgadas.
Janela de comercializao a nomenclatura dada s distintas mdias nas quais o filme de longa-metragem
comercializado, sendo as principais: 1) o mercado de salas de cinema; 2) o mercado de home video, rental (venda
a locadoras) e sell through ou retail (venda no varejo); e 3) o mercado de televiso, TV paga e TV aberta.
163
Os modelos de distribuio utilizados nas janelas de cinema e televiso, apresentados a seguir, representam o modelo-padro na indstria cinematogrfica. J o
modelo utilizado em home video, o de comisso de distribuio2, no o nico
utilizado, porm permite uma melhor visualizao da distribuio de recursos entre os agentes. Sendo realizado um estudo mais aprofundado da forma de operao desses agentes, ainda no mercado de home video seria possvel incorporar ao
modelo de distribuio de recursos as empresas locadoras e os varejistas o que
tornaria ainda mais precisa a valorao da carga tributria nessa janela.
Os modelos de distribuio de recursos apresentados a seguir, em um exemplo fictcio, podem ser aplicados a projetos reais e adaptados a quaisquer outras
janelas, como mercado externo, venda para avies, navios, entre outras.
Aps a apresentao dos modelos de distribuio, so apresentadas simulaes
de desonerao tributria que permitem observar o significativo impacto positivo
de arrecadao de todos os agentes envolvidos decorrente dessa desonerao.
A concluso de que um processo de imunidade tributria na indstria cinematogrfica pode gerar um aumento na arrecadao dos produtores de 70% suficiente para o incio de uma movimentao mais efetiva do setor.
2
So praticados dois modelos de comercializao para o setor de home video: 1) o modelo de comisso de
distribuio, no qual o distribuidor tem direito a um determinado porcentual sobre o valor bruto das vendas
de DVD; e 2) o modelo de royalties, no qual o produtor quem absorve um determinado porcentual sobre o
valor bruto das vendas de DVD. A determinao do valor a ser repassado ao produtor, no modelo de comisso
de distribuio, contempla a deduo dos gastos de comercializao e permite observar de forma mais clara a
destinao dos recursos.
Sua forma de apurao basicamente a deduo sobre a receita bruta de comercializao, em qualquer janela, dos impostos e contribuies incorridos, das
comisses dos agentes (exibidor e distribuidor) e das despesas de comercializao, geralmente incorridas pelos distribuidores na forma de adiantamento.
Premissas gerais
Impostos incorridos no faturamento:
A seguir esto relacionados os agentes envolvidos neste projeto fictcio, assim como
os respectivos porcentuais de participao patrimonial incidentes sobre a RLP.
Federais:
PIS = 1,65%
Cofins = 7,6%
Alquotas incidentes sobre o valor total efetivamente faturado pela empresa.
Para a determinao das alquotas dos impostos federais PIS e Cofins, so permitidos descontos sobre o valor da alquota recolhida, em funo dos custos
operacionais da empresa. As alquotas tributrias desses impostos federais utilizadas nos modelos a seguir no consideram possveis crditos fiscais.
Estaduais:
ICMS = 12,5%
ICMS substituto = 2,5%
Alquotas incidentes sobre o valor total efetivamente faturado pela empresa.
Distribuidor = 30%
Valor estimado para a contrapartida de investimento via Artigo 3 da Lei do Audiovisual. Valores diferentes so aplicados para negociaes distintas no mercado.
164
165
Municipal:
ISS = 5%
Alquotas incidentes sobre o valor total efetivamente faturado pela empresa.
A seguir so apresentadas as premissas utilizadas para a determinao da distribuio de recursos na janela de cinema. Depois apresentado o modelo de
distribuio no Quadro 1.
Taxa de cmbio:
R$/US$ 1,61 (cotao de 4/7/2008)
Fonte: Banco Central do Brasil.
ISS 5%
R$ 7.581.000
(R$ 937.650)
PIS 1,65%
(R$ 131.670)
Cofins 7,6%
(R$ 606.480)
R$ 3.516.188
Impostos na distribuio
(R$ 501.057)
PIS 1,65%
(R$ 58.017)
Cofins 7,6%
(R$ 267.230)
(R$ 175.809)
R$ 3.015.131
Comisso de distribuio
(R$ 829.161)
Distribuidor 20%
(R$ 603.026)
Canal de televiso 5%
(R$ 150.757)
Produtora 2,5%
167
(R$ 199.500)
(R$ 3.127.163)
ISS 5%
166
(R$ 399.000)
Ecad 2,5%
e) Comisso de distribuio
R$ 7.980.000
(R$ 75.378)
(R$ 1.240.000)
(R$ 1.240.000)
R$ 0,00
R$ 945.970
(R$ 134.801)
Cpias:
Quantidade de cpias = 100 (quantidade estipulada para este exerccio).
Custo unitrio de copiagem = R$ 2.400,00 (preo mdio unitrio de cpias =
US$ 1.500,00 estimativa).
Impostos na produo
(R$ 811.169)
Participaes
(R$ 486.701)
PIS 1,65%
(R$ 15.609)
Cofins 7,6%
(R$ 71.894)
ISS 5%
Distribuidor 30%
(R$ 243.351)
(R$ 121.675)
Art. 1 10%
(R$ 81.117)
Outros 5%
(R$ 40.558)
(R$ 47.298)
R$ 324.468
A seguir so apresentadas as premissas utilizadas para a determinao da distribuio de recursos na janela de home video (rental e sell through), depois so
apresentados os modelos de distribuio nos Quadros 2 e 3.
a) Faturamento
A estimativa de faturamento para comercializao da janela de home video
determinada pela proporo do faturamento dessa janela sobre o somatrio
do faturamento bruto total de cinema e home video. Essa forma de estimativa
utilizada devido ausncia de dados estatsticos disponveis dessa indstria.
Quantidade rental
= Faturamento bruto home video (rental) / preo (rental)
= R$ 7.261.800,00 / R$ 82,00* = 88.559 unidades
168
169
A tributao apresentada nesse modelo usualmente incorrida por filmes nacionais, enquanto filmes estrangeiros podem apresentar um modelo distinto, uma vez
que o detentor dos direitos patrimoniais dos filmes so empresas estrangeiras.
Modelo de comisso de distribuio
Impostos na distribuio
R$ 7.261.800
(R$ 119.820)
Cofins 7,6%
(R$ 551.897)
ICMS 12,5%
(R$ 907.725)
(R$ 1.650.244)
(R$ 1.650.244)
(R$ 105.123)
ICMS 12,5%
(R$ 172.900)
R$ 1.047.774
Comisso de distribuio
(R$ 314.332)
Distribuidor
170
171
(R$ 211.878)
ISS 5%
(R$ 139.393)
(R$ 397.670)
(R$ 397.670)
R$ 335.772
Impostos na produo
(R$ 47.847)
PIS 1,65%
(R$ 5.540)
Cofins 7,6%
(R$ 25.519)
ISS 5%
(R$ 16.789)
(R$ 1.062.702)
(R$ 397.271)
(R$ 314.332)
Participaes
R$ 2.787.867
(R$ 34.580)
(R$ 1.062.702)
Cofins 7,6%
R$ 287.924
(R$ 172.755)
Distribuidor 30%
(R$ 86.377)
(R$ 43.189)
Art. 1 10%
(R$ 28.792)
Outros 5%
(R$ 14.396)
R$ 115.170
R$ 2.390.596
(R$ 1.434.358)
Distribuidor 30%
(R$ 717.179)
(R$ 358.589)
Art. 1 10%
(R$ 239.060)
Outros 5%
(R$ 119.530)
Cofins 7,6%
(R$ 46.000)
Participaes
(R$ 22.823)
(R$ 181.545)
R$ 5.500.814
PIS 1,65%
(R$ 335.426)
PIS 1,65%
Distribuidor 30%
(R$ 1.760.987)
PIS 1,65%
R$ 1.383.200
Impostos na distribuio
R$ 956.238
Polticas
a) Faturamento
R$ 27.011
Impostos na produo
(R$ 3.849)
PIS 1,65%
Culturais:
Reflexes
e Aes
Cofins 7,6%
ISS 5%
(R$ 1.351)
(R$ 446)
(R$ 2.053)
R$ 23.162
(R$ 13.897)
Distribuidor 30%
(R$ 6.949)
(R$ 3.474)
Art. 1 10%
(R$ 2.316)
Outros 5%
(R$ 1.158)
R$ 9.265
R$ 45.000
Impostos na distribuio
(R$ 6.413)
PIS 1,65%
(R$ 743)
Cofins 7,6%
(R$ 3.420)
ISS 5%
(R$ 2.250)
(R$ 11.576)
(R$ 11.576)
R$ 0,00
Impostos na produo
(R$ 3.849)
(R$ 446)
Cofins 7,6%
(R$ 2.053)
ISS 5%
(R$ 1.351)
Participaes
R$ 23.162
(R$ 13.897)
Distribuidor 30%
(R$ 6.949)
(R$ 3.474)
Art. 1 10%
(R$ 2.316)
Outros 5%
(R$ 1.158)
d) Comisso de distribuio
Distribuidor = 30% (valor-padro do setor para a janela de TV aberta). Atualmente, o
canal de televiso e o produtor proponente no possuem comisso de distribuio
na janela de TV aberta.
R$ 0,00
R$ 27.011
R$ 38.588
PIS 1,65%
173
R$ 9.265
O quadro a seguir demonstra a distribuio de recursos na janela de TV aberta contemplando todos os agentes envolvidos. A estrutura dessa demonstrao de resultados retrata a forma de interao dos elos da cadeia, distribuio e produo.
R$ 192.000
Impostos na distribuio
(R$ 27.360)
PIS 1,65%
(R$ 3.168)
Cofins 7,6%
(R$ 14.592)
ISS 5%
(R$ 9.600)
R$ 164.640
Comisso de distribuio
(R$ 49.392)
(R$ 49.392)
R$ 0,00
Distribuidor
R$ 0,00
R$ 115.248
Impostos na produo
(R$ 16.423)
PIS 1,65%
(R$ 1.902)
Cofins 7,6%
(R$ 8.759)
ISS 5%
(R$ 5.762)
R$ 98.825
(R$ 59.295)
Participaes
Distribuidor 30%
(R$ 29.648)
(R$ 14.824)
Art. 1 10%
(R$ 9.883)
Outros 5%
(R$ 4.941)
R$ 39.530
174
175
R$ 3.127.163
R$ 846.377
R$ 399.846
R$ 40.558
R$ 272.432
R$ 81.117
R$ 1.240.000
R$ 1.972.507
R$ 7.980.000
R$ 1.972.507
Impostos federais
Contribuio
Impostos municipais
R$ 1.150.900
R$ 199.500
R$ 622.108
39,19%
10,61%
5,01%
0,51%
3,41%
1,02%
15,54%
24,72%
100%
58%
10%
32%
3. Anlises
Os quadros a seguir apresentam a relevncia de cada janela de comercializao
no faturamento total do projeto e os resultados resumidos por janela.
Quadro 6: Faturamento bruto por janela
Cinema
Home Video Rental
Home Video Sell Through
TV Paga
TV Aberta
Total
R$ 7.980.000
R$ 7.261.800
R$ 1.383.200
R$ 45.000
R$ 192.000
R$ 16.862.000
47,33%
43,07%
8,2%
0,27%
1,14%
100%
Percebe-se a forte relevncia das janelas de cinema e home video (rental) para o faturamento de um filme nacional. Estimativas de mercado apresentam uma relevncia
maior na janela de home video (rental e sell through) para o filme norte-americano.
R$ 2.367.423
R$ 956.238
R$ 119.530
R$ 358.589
R$ 239.060
R$ 1.062.702
R$ 2.158.258
R$ 7.261.800
R$ 2.158.258
Impostos federais
Impostos estaduais
Impostos municipais
R$ 929.594
R$ 1.089.270
R$ 139.393
32,6%
13,17%
1,65%
4,94%
3,29%
14,63%
29,72%
100%
43%
50%
6%
R$ 400.709
R$ 115.170
R$ 14.396
R$ 43.189
R$ 28.792
R$ 397.670
R$ 383.273
R$ 1.383.200
R$ 383.273
Impostos federais
Impostos estaduais
Impostos municipais
R$ 159.005
R$ 207.480
R$ 16.789
28,97%
8,33%
1,04%
3,12%
2,08%
28,75%
27,71%
100%
41%
54%
4%
R$ 18.525
R$ 9.265
R$ 1.158
R$ 3.474
R$ 2.316
R$ 0,00
R$ 10.262
R$ 45.000
R$ 10.262
Impostos federais
Impostos municipais
R$ 6.661
R$ 3.601
41,17%
20,59%
2,57%
7,72%
5,15%
0%
22,8%
100%
65%
35%
Distribuidor
Produtor proponente
Outros scios
Canal de televiso
Investidor Artigo 1
Gastos de comercializao
Impostos
Total
R$ 79.040
R$ 39.530
R$ 4.941
R$ 14.824
R$ 9.883
R$ 0,00
R$ 43.783
R$ 192.000
R$ 43.783
Impostos federais
Impostos municipais
R$ 28.420
R$ 15.362
41,17%
20,59%
2,57%
7,72%
5,15%
0%
22,8%
100%
65%
35%
177
Na distribuio dos recursos entre os impostos, os de competncia federal possuem maior incidncia, com 65% do total de impostos arrecadados.
R$ 3.127.163
R$ 3.712.074
R$ 1.520.049
R$ 180.584
R$ 692.508
R$ 361.168
R$ 2.700.372
R$ 4.568.083
R$ 16.862.000
R$ 4.568.083
Impostos federais
Impostos estaduais
Impostos municipais
Contribuio
R$ 2.274.580
R$ 1.296.750
R$ 797.253
R$ 199.500
18,55%
22,01%
9,01%
1,07%
4,11%
2,14%
16,01%
27,09%
100%
50%
28%
17%
4%
Observando o faturamento consolidado em todas as janelas de comercializao, encontra-se um resultado impressionante: a carga tributria (impostos +
contribuio) absorve o maior porcentual desse total, 27%.
Na distribuio dos recursos entre os impostos, os de competncia federal possuem maior incidncia: 50% do total de impostos arrecadados.
Observa-se que a RLP absorveria um impacto positivo de 48% em sua arrecadao total em um caso de desonerao tributria de 100%, gerando um
valor arrecadado de R$ 6.236.213,00, ou seja, valor suficiente para retornar o
investimento de R$ 4.500.000,00 em um filme oramento mdio para longas-metragens nacionais.
100%
29%
42%
70%
73%
62%
73%
75%
21%
31%
51%
53%
45%
53%
50%
14%
21%
33%
34%
30%
34%
25%
7%
10%
16%
17%
14%
17%
178
100%
48%
75%
36%
50%
24%
25%
12%
179
No existe a pretenso neste trabalho de afirmar que uma desonerao tributria permitiria a todos os filmes nacionais ser financiados sem leis de incentivo
fiscal, ou que imediatamente aps um processo de desonerao no seriam
constitudos modelos de financiamento que ainda utilizassem parcialmente
tais mecanismos de incentivo. A previso de pblico neste exerccio, geralmente alcanada por alguns projetos de foco comercial, bem otimista e no
pode ser aplicada totalidade das produes. Porm, possvel avaliar como
a viabilidade econmica e financeira permanece distante de ser alcanada
sem um processo de desonerao tributria.
Vale ressaltar tambm que no foi foco deste exerccio o clculo da taxa interna de retorno de um possvel investimento, conceito financeiro para avaliao
de projetos que incorpora os prazos de investimento e retorno econmico ao
longo de um determinado perodo.
4. Concluso
Livros, jornais e peridicos adquiriram imunidade tributria h alguns anos, e est
em andamento no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional
que garante imunidade tributria a fonogramas (CDs) e videofonogramas (DVDs)
Rodrigo Guimares
Economista formado pela UFRJ, aps trs anos como consultor em fuses e aquisies
dedicou-se rea cultural em 2004, especializando-se no setor audiovisual. Tem ps-graduao pela Fundao Getlio Vargas, com formao executiva em cinema e televiso. Na
produtora Total Filmes, foi gerente financeiro entre 2004 e 2006. Scio-diretor da empresa
Elaborar Projetos, iniciou em 2007 trabalho de consultoria a produtoras de cinema e vdeo
e tambm desenvolveu mais de 30 planos de negcio a projetos cinematogrficos destinados aos editais de financiamento do BNDES e do Fundo Setorial do Audiovisual. Desenvolve estudos e artigos sobre a economia do cinema brasileiro, participou da criao do
Laboratrio do Audiovisual no Instituto de Economia da UFRJ e realiza pesquisas com a
RedeSist (rede de pesquisa interdisciplinar), tambm para o Instituto de Economia.
180
181
2007
2003
2001
1999
1997
1995
1993
1991
1989
1987
1985
1983
1981
73 82
2007
2005
1999
24 30 30 30
2003
31
2001
26
12 23 22
1997
3 4 7
1995
1993
51 51
1991
1989
1987
1985
1983
1981
1979
1977
EUA
Reino Unido
Japo
183
1975
182
Pode-se dividir a histria do cinema brasileiro em trs perodos, nas ltimas quatro
dcadas: a era de ouro (1971-1987), os anos de chumbo (1988-1995) e a retomada
(aps 1996). O principal indicador para isso a srie de lanamentos de filmes nacionais, tornando claro que o apogeu do nosso cinema ocorreu sob o modelo de
produo e distribuio da Embrafilme (embora valha lembrar que essa empresa
no participava diretamente de dois teros dos filmes produzidos no pas). Com
a crise do modelo Embrafilme e sua extino no governo Collor, a produo de
filmes nacionais quase acabou, chegando a apenas trs filmes em 1993. Desde
ento, o novo modelo perseguido uma conjugao das leis de incentivo com o
surgimento de outra empresa a Globo Filmes , como se ver adiante.
1973
O cinema perdeu espao desde a dcada de 1970, tanto no Brasil como no resto
do mundo, em funo do aparecimento de formas alternativas de entretenimento. Dentre essas formas, destacam-se outros suportes para a exibio de filmes: o
maior nmero de canais de TV aberta e fechada, o VHS e o DVD. O que se observa
no uma queda no pblico para filmes, e sim para as salas de cinema.
milhes de ingressos
1979
1. Introduo
3.500
3.000
2.500
2.000
1.500
1.000
500
0
1977
Fabio S Earp
Helena Sroulevich
1975
1971
O mercado de
cinema no brasil
350
300
250
200
150
100
50
0
1973
milhes de ingressos
1955
1965
1985
1995
2005
Observa-se uma especificidade do quadro brasileiro: a coexistncia de duas geraes de produtores. A primeira, com mais de 50 anos de idade, que teve sua
origem na era de ouro, atuando tanto no setor privado quanto nos quadros da
Embrafilme. Esses profissionais compartilham uma experincia comum e formam uma rede que hoje se espalha pelas produtoras, distribuidoras e exibidoras. Existe igualmente uma segunda gerao, formada j na poca da retomada,
que teve sua origem na publicidade e na televiso e hoje atua, sobretudo, nas
produtoras. A complementaridade e as tenses no seio de cada uma dessas
geraes e entre esses grupos formam a cultura peculiar do cinema brasileiro,
assunto que mereceria uma reflexo atenta.
2007
2005
2003
2001
1999
1997
1995
1993
1991
1989
1987
1985
1983
1981
1979
1977
1975
1973
1971
10
Fonte: Filme B.
Nosso objetivo neste trabalho examinar alguns traos do que ocorreu desde
meados dos anos de chumbo, englobando todo o perodo da retomada e
tentando identificar alguns pontos fortes e fracos para a expanso dos negcios
do cinema no pas. Comearemos por uma avaliao da oferta de cinema por
meio de seus principais elos na cadeia produtiva: a produo, a distribuio e a
exibio. Em seguida, apresentaremos um perfil da demanda, mostrando como
o consumidor v o cinema entre as alternativas de entretenimento. E, finalmente,
examinaremos a evoluo do pblico de cinema em relao ao consumo das
famlias e o papel da evoluo do preo do ingresso e da diversidade de opes
de home video sobre o mercado.
185
2.1. A produo
2. A oferta de cinema
Para uma viso da situao europeia, ver BONNEL (2006) e BENHAMOU (2006).
187
Lei do Audiovisual, art. 1 A empresa pode investir at 6% de seu imposto de renda
devido na obra cinematogrfica, tornar-se scia patrimonial dela por meio da aquisio de
Certificados de Investimento Audiovisual regulamentados e emitidos pela CVM e deduzir
125% desse valor de seu imposto de renda.
Lei do Audiovisual, art. 1 A (antiga Lei Rouanet) A empresa pode investir at 6% de seu
imposto de renda devido na obra cinematogrfica e deduzir 100% desse valor de seu
imposto de renda.
Lei do Audiovisual, art. 3 A empresa distribuidora pode investir at 70% sobre a remessa
de lucros destinada ao exterior. o mecanismo de coproduo utilizado pelas empresas
distribuidoras para investimento na produo cinematogrfica nacional, tornando-as
scias dos agentes locais. Alm disso, implicam a no incidncia da Condecine (que
equivale a 11% sobre a remessa de lucros).
Pessoas fsicas tambm podem investir em cultura por meio das leis. Pela Lei do Audiovisual, art. 1 A, as pessoas podem investir at 6% de seu imposto de renda devido em
projetos culturais. Esse investimento caracterizado como patrocnio ou doao. J na Lei
do Audiovisual, art. 1, pessoas fsicas podem adquirir Certificados de Investimento
Audiovisual no valor de at 5% do imposto de renda devido.
As leis de incentivo estaduais e municipais variam muito e hoje passam por reformulaes, que tambm sero afetadas posteriormente pela proposta de reforma
tributria.
No que se refere distribuio dos filmes nacionais, merece destaque a importncia da Europa Filmes/MAM, que liderou o setor em 2007, com participao
ligeiramente superior das majors Universal e Sony/Buena Vista.
2007
2005
2003
2001
1999
1997
1995
Outras 5,7%
Universal 6,8%
1993
Paramount 13,3%
Outras 3,6%
1991
Paris 1,5%
Warner 7%
1989
Riofilme 1,5%
1987
PlayArte 3,9%
Estao 2,1%
Fox 9,7%
1985
Europa/MAM 4,8%
Warner 14,6%
1983
Fox 14,8%
Downtown 2,2%
A queda do pblico de cinema no Brasil em meados dos anos 1980 foi acompanhada pela reduo do nmero de salas de cinema. As salas de rua foram substitudas por outras com menor nmero de assentos localizadas em shoppings, local
preferido pelo pblico. Assim, de mais de 3 mil salas no fim dos anos 1970, camos
para pouco mais de mil em 1977. A partir de ento, o nmero comeou a aumentar, fruto de uma poltica de financiamento propiciada pelo BNDES.
1981
Imagem 4,9%
Universal 24%
2.3.1. Theatrical
1979
Sony 15,8%
Sony 2,3%
2.3. A exibio
1977
189
1975
Esse segmento composto de empresas e as principais atuantes no setor so as firmas denominadas majors, filiais das matrizes Disney, Sony, Warner, Fox, Paramount
e Universal Pictures, e as empresas brasileiras Europa Filmes e Imagem Filmes.
188
1973
Europa/MAM 24,3%
1971
2.2. A distribuio
Atualmente existem pouco mais de 2 mil salas com 417 mil assentos, com uma
taxa mdia de ocupao de 13,2% em 2006. Essas salas pertencem a cerca de 50
grupos empresariais. Os quatro maiores grupos, com pouco mais de um tero do
nmero total de salas, so:
Tabela 1: Distribuio de salas pelos principais grupos
Exibidor
Cinemark
Grupo Severiano Ribeiro
UCI
Arco-ris
Outros
N de salas
358
177
121
107
1.292
por essa razo que firmas distribuidoras tm decidido frequentemente lanar filmes de porte mdio unicamente no mercado de DVDs, contra retornos de previso de pblico e bilheteria cada vez mais pessimistas, o que no
compensaria o adiantamento dos custos de comercializao realizado pela
empresa. A distribuio feita pelas mesmas firmas distribuidoras:
% do total
17,1%
8,4%
5,8%
5,1%
63,2%
190
191
Fox 18%
Universal 11%
Warner 15,8%
Paramount 14,1%
Disney 10,5%
Europa 9,2%
Sony 5%
Outros 16,4%
Fonte: Nielsen
J possvel falar sobre a demanda de cinema no Brasil com base em dados confiveis. Pesquisa realizada em 2007 para o Instituto Datafolha mostra um perfil de
comportamento do pblico nas dez regies metropolitanas brasileiras, segmentado pelos grupos idade, classe socioeconmica e cidade de moradia.
91
88
89
2006
2007
68
2003
66
2002
1997
1996
1995
1994
1993
52
66
99
74
2001
85
2000
75
1999
70
1998
75
2005
91
92
95
2004
123
1992
140
120
100
80
60
40
20
0
1991
milhes de ingressos
Os resultados brasileiros so semelhantes queles verificados nos Estados Unidos nos perodos 1992-1996 e 2004-2007. No entanto, de 1998 a 2003, existe
um forte contraste. De fato, enquanto nos EUA existe uma suave tendncia ascendente, no Brasil a curva da venda de ingressos apresenta uma barriga que
cumpre explicar. Na parte final deste trabalho apresentaremos a hiptese de que
isso se deu em funo do preo do ingresso.
EUA
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
193
Alm disso, o cinema visto como uma forma de interao, tanto entre pais e filhos como entre pessoas que esto travando conhecimento e que precisam promover o dilogo, o que se espelha em declaraes como voc est conhecendo
uma pessoa, o melhor programa ir ao cinema, voc sai e tem o que conversar.
Por outro lado, os mais velhos declaram pesquisa do Datafolha sua preferncia por assistir a filmes na TV ou em DVD e navegar na internet. Em geral, essas pessoas j constituram famlia e tm obrigaes profissionais que tornam
penoso seu deslocamento para uma sala de cinema aps o regresso a sua
residncia, ou a ida ao cinema direto aps sarem do trabalho, chegando tarde
em casa para jantar com a famlia.
192
Brasil
11,22
8,2
8,23 8,82
2007
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
8,32 8,15
2006
9,07
2005
9,52 9,95
interessante compararmos esses resultados com aqueles verificados nos Estados Unidos. Naquele pas, a ida ao cinema uma atividade preferida em relao
a outros tipos de atividades externas em 2007 foi vendido 1,4 milho de ingressos em salas cinematogrficas, contra 341 milhes em parques temticos e 186
milhes em todos os espetculos esportivos. Uma razo a diferena de preo
do ingresso, como mostra a tabela abaixo:
194
No temos como avaliar a evoluo do combo, mas podemos faz-lo com o preo
mdio do ingresso. Os dados sobre preo do ingresso de cinema no Brasil so habitualmente fornecidos em dlar pelo Filme B. O uso dessa informao para anlise do
mercado cinematogrfico se justificava plenamente durante a poca da alta inflao,
diante da precariedade do padro monetrio brasileiro. A partir dos planos de estabilizao, porm, um instrumento mais til a srie de preos em reais, descontado o
efeito da inflao. Este trabalho tomou o valor mdio do ingresso em dlares correntes
fornecido pelo Filme B, converteu-o em moeda nacional pelos valores fornecidos pelo
Ipeadata, e assim obteve o valor corrente em moeda nacional (expresso em reais). Esses valores, por sua vez, foram trazidos para reais constantes em 2007, inflacionando a
srie pelo IGP-DI. Realizados esses ajustes, verifica-se que o preo mdio do ingresso
efetivamente pago nas bilheterias de cinema aumentou cerca 75% em termos reais
no perodo 1991-1998, indo de 7,63 reais para 13,17 reais. Em seguida, o ingresso recuou para 8,82 reais em 2007, o que ainda 20% superior ao de 1991 (Grfico 11).
195
Essa metodologia foi desenvolvida inicialmente para comparar custos de livros para consumidores de diversos
pases, em S-Earp e Kornis (2005). O ndice de Capacidade de Compra (Ic) de um pas i dado por Ici = R*i /PMi,
onde R* a renda per capita do pas e PM o preo mdio do produto naquele mesmo pas.
Um combo um conjunto de atividades desenvolvidas sequencialmente e se refere a tudo que feito a cada
vez que a pessoa sai de casa. Desenvolvemos o conceito em S-Earp e Sroulevich (2008).
1992
1991
12,44 13,17
reais de 2007
2004
2003
cionamentos), pelo relativo desconforto das salas (em relao prpria casa), pelo
mau atendimento dos funcionrios das salas, pela insegurana das ruas etc.
Uma nova comparao com os dados norte-americanos mostra que os frequentadores mais assduos de salas de cinema so aqueles que mais investiram em
entretenimento domstico: de quanto mais opes domsticas dispem, mais
vo ao cinema. De fato, enquanto os grandes usurios vo ao cinema em mdia 7,9 vezes ao ano, o mesmo segmento possui ou assina mais de cinco tipos
de hardware de entretenimento domstico7. Ocorre que nos Estados Unidos o
acesso das famlias a esses bens se fez anteriormente e foi diludo ao longo do
tempo, visto que a economia crescia mais suavemente. Por outro lado, no Brasil,
a economia s passou a acelerar o crescimento a partir de 2004, perodo no qual
tambm se expandiu o crdito para a compra de eletroeletrnicos de consumo.
Entretanto, o preo do ingresso no o nico vilo a afastar o pblico dos cinemas. A maior diversidade e o aumento da qualidade de formas alternativas de
entretenimento tambm so importantes. A se inclui a internet, mas, acima de
tudo, a melhoria do padro do filme visto no domiclio, por uma srie de razes.
Consumo
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
1993
1992
197
1991
196
Primeiro, reduziu-se substancialmente o tempo decorrido entre a primeira exibio do filme em sala de cinema e sua exibio em outras janelas. Por vezes,
a verso pirata oferecida pelos camels mesmo antes da estreia, por preos
to baixos como 5 reais, e o DVD legal pode chegar s lojas apenas dois meses depois do lanamento nas salas. As emissoras de TV aberta e por assinatura
tambm reduziram substancialmente o prazo para exibio e a expanso dos
assinantes foi acentuada nos ltimos anos, tanto por meio das assinaturas oficiais
quanto das ilegais (o popular gatonet)6.
Bilheteria
5
6
As opes so PPV/VOD, DVR, Surround Sound, MP3 player (vdeo), digital cable, DVD rental services, Satellite
TV e Movie downloading services. Conforme MPAA (2008).
A partir deste estudo, comeamos a observar o cinema no Brasil como objeto de anlise com base no instrumental-padro de economia, ainda que
em carter muito preliminar. Podemos caracterizar a configurao dos mercados, atacar alguns problemas e, sobretudo, propor pontos a serem objeto
de prximos estudos.
Por outro lado, a partir de 2003 existe uma reduo do pblico que permanece
at o presente. Esse foi o momento do barateamento dos produtos eletrnicos no
mercado brasileiro e da expanso do crdito, com a venda nas grandes lojas de varejo. H razes para crer que isso possa ter influenciado a ida ao cinema, na medida
em que o pblico passou a contar com outras opes de entretenimento.
108
79
74
147
163
125
140
130
79
89
72
70
69
129
107 107
119
109 104
96
96
97
104
108 116
93
78
93
2007
Ingresso
Pblico
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
198
1998
1997
1996
1995
1994
1993
55
1992
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
1991
200
358
331
Pblico filme
brasileiro
2005
2004
2003
2002
93
2007
116
2006
243
108
2001
1994
547
2000
1993
80
1999
1992
100
41
1997
1995
1996
104
100
1991
100
0
735
1998
199
Ingresso
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worldbank.org/ICPINT/Resources/icp-final.pdf.
200
201
Festivais
audiovisuais
Brasileiros:
Um diagnstico
do setor
Tet Mattos
Antonio Leal
Introduo
No segmento do audiovisual brasileiro, o setor dos festivais de cinema e vdeo
vem apresentando um significativo crescimento no decorrer das ltimas dcadas, revelando um enorme potencial cultural, social e econmico.
Este artigo tem como objetivo apresentar e analisar os resultados da pesquisa
realizada pelo Frum dos Festivais em parceria com a Secretaria do Audiovisual do Ministrio da Cultura , que resultou num diagnstico dos festivais brasileiros de cinema, vdeo e outras linguagens audiovisuais que aconteceram
tanto no Brasil quanto no exterior no ano de 2006.
Mas nos anos 1990 que o pas assiste a um verdadeiro crescimento dos festivais de cinema. O curta-metragem ganha duas mostras de peso: o Festival
Internacional de Curtas-metragens de So Paulo, criado em 1990, e a mostra
Curta Cinema, realizada no Rio de Janeiro em 1991. Surgem tambm festivais
que apresentam obras em campos de criao especficos, como o Anima Mundi, dedicado ao cinema de animao, e eventos dedicados ao cinema documentrio (Tudo Verdade e Mostra do Filme Etnogrfico).
A realizao do Diagnstico Setorial 2007/Indicadores 2006 um reflexo da necessidade de prospectar, analisar e consolidar as principais informaes desse
setor estratgico para o audiovisual brasileiro, produzindo um estudo setorial
referencial, fazendo surgir uma base informativa indita em condies de contribuir para a construo de polticas pblicas e nortear os apoios da iniciativa
privada ao circuito de festivais. Trata-se de organizar e disponibilizar uma plataforma consultiva que oriente as relaes de todos os segmentos interessados
na esfera de atuao dos festivais de cinema.
As capitais Vitria (ES), Recife (PE), Fortaleza (CE), Cuiab (MT), Natal (RN), Teresina (PI) e municpios como Tiradentes (MG) e Armao dos Bzios (RJ), com
perfis tursticos, passam a sediar eventos audiovisuais nos anos 1990. Somamse a eles festivais com foco na produo universitria, com a temtica da diversidade sexual, filmes latinos ou infantis.
202
203
Com esse significativo crescimento do setor dos festivais no decorrer das duas
ltimas dcadas revelando um enorme potencial cultural, social e econmico , urge a necessidade de conhecimento desse setor.
Compreender a configurao do setor dos festivais de cinema brasileiros realizados no Brasil e no exterior;
Identificar os diferentes perfis dos setor;
Diagnosticar o potencial cultural, econmico e social desse setor;
Identificar aspectos relacionados s aes dos festivais;
Criar base de dados para subsidiar aes da Secretaria do Audiovisual do Ministrio da Cultura;
Identificar expectativas, sentimentos, opinies e dificuldades encontrados pelos
organizadores dos festivais audiovisuais.
A quarta etapa constituiu-se no levantamento dos dados. A coleta das informaes foi a etapa que apresentou maior dificuldade pelo retorno descontinuado do questionrio-padro, com impacto nos cronogramas predefinidos
e demandando esforo redobrado da equipe responsvel por essa tarefa. O
desafio da pesquisa foi lidar com a ausncia de bancos de dados, a informalidade de alguns festivais e a impreciso de algumas informaes. Essas dificuldades foram superadas com o exaustivo trabalho da equipe de produo na
cobrana das respostas, algumas vezes feitas por meio de telefonemas.
204
205
N de eventos
Crescimento em relao
ao ano anterior
Variao em relao
ao ano anterior (%)
1999
2000
2001
38
44
48
62
+ 6 eventos
+ 4 eventos
+ 14 eventos
15,78%
9,09%
29,16%
75
86
96
132
+ 13 eventos
+ 11 eventos
+ 10 eventos
20,96%
14,66%
11,62%
+ 36 eventos
37,5%
2002
2003
2004
2005
2006
Fonte: Site Frum dos Festivais e Guia Brasileiro de Festivais de Cinema e Vdeo (Kinoforum).
So Paulo
Rio de Janeiro
Minas Gerais
A anlise do Quadro 1 aponta que o circuito de festivais cresceu a um porcentual mdio de 19,82% nos ltimos sete anos, com destaque para os anos de
2002, 2003 e 2006, que ficaram acima dessa mdia.
Do ponto de vista geogrfico, dos 132 eventos realizados em 2006, 123 festivais
aconteceram no Brasil e 9 ocorreram em territrio estrangeiro.
No Brasil, apenas em Roraima e no Acre no foram identificados registros de
eventos audiovisuais em 2006. O estado com maior presena de festivais foi
So Paulo, com 26 eventos, seguido pelo Rio de Janeiro, com 20. A Regio
Sudeste desponta como aquela que possui o maior nmero de festivais: 68.
Esse desenho geogrfico que revela uma forte atuao de festivais na Regio
Sudeste acompanha os resultados verificados em todos os levantamentos estatsticos regionais na rea cultural: aprovao de projetos nas leis federais de
incentivo cultura, volume de captao de recursos por meio das leis federais
de incentivo cultura, inscrio e seleo de projetos em selees pblicas,
inscrio e seleo de projetos em editais. Em todas essas situaes, a Regio
Sudeste concentra o maior nvel de participao.
Porm, ao contrrio dessas aes, o circuito de festivais revela uma significativa
presena qualitativa e econmica de eventos de grande expresso cultural em
outras regies do pas, que surge como um elemento compensatrio diante da
anlise puramente quantitativa. Ou seja, apesar do maior nmero de eventos
estar concentrado na Regio Sudeste, outras regies do pas apresentam festivais consolidados no circuito, com anos (e at dcadas) de realizao contnua
e com enorme capacidade para alavancar negcios e parcerias com base em
seu potencial artstico-cultural.
206
207
Cear
Esprito Santo
Paran
Pernambuco
Mato Grosso
Amazonas
Distrito Federal
Gois
Santa Catarina
Estados Unidos
Frana
Par
Rio Grande do Norte
Alagoas
Alemanha
Amap
Espanha
Israel
Japo
Maranho
Mato Grosso do Sul
Paraba
Piau
Portugal
Rondnia
Sergipe
Tocantins
Acre
Roraima
Total
Festivais em 2006
26
20
18
8
19,69%
15,15%
13,64%
6,06%
5
4
4
3,79%
3,03%
3,03%
4
4
4
4
3
3,03%
3,03%
3,03%
3,03%
2,27%
3
3
2
2,27%
2,27%
2
2
2
1
1
1,51%
1
1
1
0,76%
0,76%
0,76%
1
1
1
0,76%
0,76%
0,76%
1
1
0,76%
0,76%
1
1
1
0,76%
0,76%
0,76%
1,51%
1,51%
1,51%
0,76%
0,76%
0,76%
0%
0%
132
100%
Maranho
Mato Grosso do Sul
Paraba
Piau
Portugal
1
1
0,76%
0,76%
0,76%
0,76%
1
Festivais audiovisuais
brasileiros: um
diagnstico do setor
Rondnia
Sergipe
Tocantins
Acre
Roraima
Total
1
1
1
0,76%
0,76%
0,76%
0,76%
0%
0%
132
100%
Festivais em 2005
Festivais em 2006
5
14
50
12
9
20
68
15
80%
42%
36%
25%
9
90
6
96
11
123
9
22%
36,67%
50%
132
37,5%
Norte
Total
29
6
7
3
42,64%
70%
53,33%
72,72%
9
78
0
45
100%
100%
208
209
Os festivais brasileiros de Miami, Nova York, Paris, Israel e Tquio realizam suas
atividades nos pases-sede de seus eventos. J outros quatro eventos internacionais multiplicam-se por outras naes. So eles: Brasil Plural, Festival Brsil
en Mouvements, Cineport Festival de Cinema dos Pases de Lngua Portuguesa e Festival de Cinema Hispano-Brasileiro.
O Festival Brasil Plural inicia suas atividades na Alemanha e promove itinerncias por ustria e Sua. O mesmo acontece com o Festival Brsil en Mouvements, que depois da Frana segue para a Blgica.
O Cineport Festival de Cinema dos Pases de Lngua Portuguesa caracteriza-se pela itinerncia continental a cada ano. Depois de realizar sua primeira
edio em 2005, na cidade de Cataguases (MG), o evento aconteceu em Lagos,
no Algarve, Portugal, em 2006.
O Festival de Cinema Hispano-Brasileiro define-se como um festival binacional (Rio de Janeiro/Brasil e Valncia/Espanha), realizado em coproduo com a
LAgencia de Informaci, Formaci e Foment del Audiovisual (Laiffa).
Esse circuito composto de nove festivais cresceu 50% em relao a 2005 e
conquistou um pblico de 109.200 espectadores, atraindo investimentos da
ordem de 6,4 milhes de reais.
Os resultados variveis culturais
O Diagnstico Setorial 2007/Indicadores 2006 identificou uma rede de valiosas
interlocues entre os festivais de cinema e os demais segmentos que com-
Gois
Amazonas
Rio Grande do Sul
Distrito Federal
Festivais no exterior
Cear
Santa Catarina
Bahia
Mato Grosso
Pernambuco
210
211
Esprito Santo
Par
Maranho
Rio Grande do Norte
Rondnia
Paran
Sergipe
Mato Grosso do Sul
Amap
Paraba
Tocantins
Alagoas
Piau
Acre
Roraima
Total
Festivais em 2006
479.100
456.800
184.609
181.000
21,68%
20,67%
8,36%
8,19%
156.000
129.500
120.000
7,06%
5,86%
5,43%
109.200
99.000
47.000
46.000
44.000
4,95%
4,48%
2,13%
2,08%
1,99%
38.000
37.300
18.650
1,72%
1,69%
15.000
10.000
10.000
8.600
5.000
0,68%
4.500
3.000
2.000
0,20%
0,14%
0,09%
2.000
1.800
1.500
0,09%
0,08%
0,07%
2.209.559
100%
0,84%
0,45%
0,45%
0,39%
0,23%
Na anlise do pblico mdio dos festivais por estado, Gois foi quem apresentou
a maior mdia de pblico, com 60.333. A anlise do pblico mdio dos festivais
leva em considerao o total de pblico apurado no estado relacionado com
a quantidade de festivais que o estado realizou. O pblico mdio nacional do
circuito de festivais em 2006 foi de 16.739 espectadores. J o Festival do Rio foi o
evento que obteve o maior nmero de pblico, como demonstra o Quadro 6.
Festival
Pblico
Festival do Rio
Mostra Internacional de Cinema de So Paulo
Festival Internacional de Cinema e Vdeo Ambiental (Fica)*
250.000
200.000
150.000
112.000
Anima Mundi
Amazonas Film Festival Mundial do Filme de Aventura
70.000
37.000
35.000
As exibies e os espaos
De acordo com as respostas apuradas, o circuito de festivais realizou 12.512
exibies em 2006 em todas as sesses programadas. Esse um dado que
espelha a pujana dos festivais no que diz respeito oferta de ttulos aos espectadores e comprova que o circuito de festivais a vitrine natural dos curtasmetragens. Foram mais de 9 mil exibies desse formato.
As dificuldades encontradas pelos curtas-metragistas para a exibio de suas
obras fazem dos festivais uma plataforma indispensvel. No h outra janela
de exibio no Brasil que se compare ao circuito de festivais em termos de
importncia para a difuso dos filmes curtos.
Seriado
Total
212
213
%
72,97%
52,25%
47,75%
34,23%
23,42%
14,41%
8,11%
O Diagnstico Setorial 2007/Indicadores 2006 apontou que a opo preferencial dos festivais foi a utilizao de espaos alternativos de exibio. Assim,
72,97% dos festivais mapeados fizeram uso de salas de exibio j existentes
para esse fim em espaos culturais. Esse foi o maior ndice porcentual indicado
pelos organizadores. J 52,25% dos festivais adaptaram ou adequaram salas
de exibio em espaos culturais, 47,75% realizaram projees ao ar livre, enquanto 23,42% montaram tendas/lonas para exibir suas sesses. A opo de
incluir salas do circuito comercial de exibio em sua programao foi revelada
por 34,23% dos pesquisados.
Observamos que essas opes de exibio podem ocorrer simultaneamente
nos eventos, ou seja, um festival pode dispor de salas adaptadas, projees ao
ar livre, em tendas, e tambm de salas do circuito comercial, por exemplo.
Perfil e abrangncia
Curta-metragem
Longa-metragem
Mdia-metragem
89.000
70.000
70.000
Formato
Quantidade de exibies
Participao (%)
9.048
2.575
841
48
72,31%
20,58%
6,72%
0,39%
12.512
100%
Os festivais promovem exibies nos mais variados espaos, desde salas tradicionais at projees ao ar livre, passando por tendas, escolas e outras opes.
H eventos que acontecem, inclusive, em cidades onde no h sala de cinema
nem espaos adequados para exibio, o que obriga os organizadores a construir espaos alternativos. Nessas cidades, os festivais so a nica possibilidade
para que a populao mantenha contato com o cinema.
O Diagnstico Setorial 2007/Indicadores 2006 captou uma importante tendncia segmentao dos perfis temticos dos festivais de cinema no Brasil.
Apesar de a grande maioria dos eventos declarar que no possui um perfil
pautado por uma temtica especfica, foi possvel identificar que 29,5% dos
festivais mapeados j atuam dessa forma. Nesse campo, o destaque fica por
conta da categoria ambiental, que registra a realizao de oito festivais, como
demonstra o quadro a seguir.
Tema
93
8
6
5
Temtica variada
Ambiental
Universitrio
Animao
Aventura/Esporte
4
3
3
Documentrio
Infantil/Infanto-juvenil
Etnogrfico
Internet/Novas mdias
3
2
2
1
Cinema feminino
Diversidade sexual
TV
Cinema de arquivo
1
1
132
Total
Nmero de festivais
Nacional
Internacional
Latino-americano
Ibero-americano
Luso-brasileiro
Hispano-brasileiro
Total
214
215
Festivais que incluem a reflexo na programao
Seminrios, debates ou mesas de discusso
Oficinas
Workshops
%
71,97%
60,61%
43,94%
91
32
5
2
68,94%
24,24%
3,78%
1,52%
1
1
0,76%
0,76%
132
100%
ram um valioso apoio aos festivais na forma de bens ou servios: Centro Tcnico Audiovisual (CTAV), Cinemateca Brasileira, Ministrio das Relaes Exteriores, Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior, Agncia
Nacional do Cinema (Ancine), BNDES, Cinemateca do Museu de Arte Moderna
(MAM) do Rio de Janeiro, Sesc, Canal Brasil, Revista do Cinema Brasileiro, Revista
de Cinema, Rede Brasil, alm de companhias areas, restaurantes e empresas
que atuam nos segmentos de distribuio, exibio, comunicao, logstica e
tecnologia. Essas aes totalizaram um apoio de 6.076.926,20 reais em 2006.
Os resultados obtidos no vetor econmico do Diagnstico Setorial 2007/Indicadores 2006 revelam a importncia do setor de festivais para o segmento das
indstrias criativas e comprovam que os eventos audiovisuais possuem grande
capacidade e potencial para contribuir com a produo de bens e servios
culturais com ampliao do mercado de trabalho.
Quadro 12: Total de recursos que o setor movimentou em 2006 por regio e no exterior
Regio
Sudeste
Centro-Oeste
Exterior
Nordeste
Norte
Sul
Total
48,46%
12,82%
10,81%
9,99%
5.534.000,00
5.209.663,00
9,23%
8,69%
59.976.403,00
100%
R$
Lei Rouanet
Governo estadual
Bens e servios
26.184.236,80
7.283.400,00
6.076.926,20
5.800.575,00
43,66%
12,14%
10,13%
9,67%
5.716.715,00
5.402.050,00
9,53%
9,01%
1.820.000,00
681.500,00
521.000,00
490.000,00
3,03%
1,14%
0,87%
0,82%
59.976.403,00
100%
29.066.240,00
7.690.000,00
6.483.000,00
5.993.500,00
Tipo de captao
216
217
R$
Financeira
Bens e servios*
Total
53.899.476,80
6.076.926,20
59.976.403,00
89,87%
10,13%
100%
O Diagnstico Setorial 2007/Indicadores 2006 revelou que a maioria esmagadora dos festivais apresenta oramentos limitados a 300 mil reais. Noventa
eventos encontram-se nessa condio, o equivalente a 68,18% do circuito. A
confirmao dessa tendncia de oramentos modestos fica evidenciada com
a apurao da faixa de eventos com valores abaixo de 100 mil reais: 47,73%, ou
seja, quase metade do circuito.
Essa revelao torna claro o perfil econmico dos festivais de cinema: eventos
com oramentos caracterizados por conter valores reduzidos, com forte concentrao na faixa oramentria que vai at 300 mil reais.
Bahia
Rio Grande do Norte
Maranho
Sergipe
Polticas Culturais: Reflexes
e Aes
Paraba
Piau
Alagoas
Valores apurados
Quantidade de eventos
10
6
8
18
7,57%
4,55%
6,06%
13,64%
27
63
20,45%
47,73%
132
100%
Norte
Tocantins
Rondnia
Amap
Acre
Roraima
Total da Regio Norte
Centro-Oeste
Gerao de emprego
A contribuio dos festivais para a ampliao do mercado de trabalho das
mais significativas. O nvel mdio de empregabilidade calculado pelo Diagnstico Setorial 2007/Indicadores 2006 atingiu a marca de 45,31 contrataes por
evento, com gerao total de 6 mil postos de trabalho. Destaca-se nessa etapa
do estudo a Regio Sudeste, que revelou capacidade para contribuir com praticamente a metade dos empregos gerados pelo setor de festivais em 2006.
Quadro 16: Gerao de emprego por estado, regio e exterior
Regio
Estado
Empregos
gerados
% no total de
empregos do circuito
Sudeste
Rio de Janeiro
So Paulo
Minas Gerais
Esprito Santo
Total da Regio Sudeste
Rio Grande do Sul
Paran
Santa Catarina
Total da Regio Sul
Cear
Pernambuco
1.076
1.027
707
152
17,99%
17,17%
11,82%
2,54%
2.962
562
205
49,52%
9,4%
3,43%
121
888
225
116
94
2,02%
14,85%
3,76%
1,94%
1,57%
72
40
40
1,2%
0,67%
0,67%
10
10
0,17%
Sul
Nordeste
Bahia
Rio Grande do Norte
Maranho
Sergipe
Paraba
Piau
Alagoas
Total da Regio Nordeste
Norte
Amazonas
Par
Tocantins
Rondnia
7
614
501
0,17%
0,12%
10,27%
8,37%
55
13
10
0,92%
0,22%
0,16%
Amazonas
Par
Exterior
Total geral
Distrito Federal
Gois
Mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Total da Regio Centro-Oeste
Festivais no exterior
Roraima
218
219
94
1,57%
72
40
40
1,2%
0,67%
0,67%
10
10
0,17%
7
614
501
0,17%
0,12%
10,27%
8,37%
55
13
10
0,92%
0,22%
0,16%
6
0
0
0,11%
585
201
0%
0%
9,78%
3,36%
130
78
2,17%
1,3%
13
0,22%
422
7,05%
510
8,53%
5.981
100%
45,31
Quadro 17: Festivais que realizam sesses em locais pblicos com entrada franca
Local
Projees ao ar livre
Tendas/lonas
Escolas
%
47,75%
23,42%
14,41%
Concluso
A presena de festivais no Brasil registra uma ampla cobertura nacional e experimenta uma forte curva de expanso. Se em 2006 a pesquisa detectou a
presena de 132 eventos, podemos hoje prospectar um nmero que gira em
torno de 180 eventos brasileiros. Esse crescimento faz parte de um fenmeno
mundial. Em pases com dimenses continentais semelhantes ao Brasil (Estados Unidos e Canad, por exemplo), o nmero de festivais bem superior
ao nosso. Ainda h muito espao para crescer, especialmente se levarmos em
considerao que:
O Brasil possui 5.564 municpios;
Apenas 8% deles possuem salas comerciais de exibio;
60% dos brasileiros nunca foram ao cinema;
O volume total de ingressos vendidos est concentrado nas mos de poucos
milhes de habitantes que residem em cidades com potencial econmico;
O preo mdio do ingresso est operando em nveis acima dos padres de
renda do brasileiro mdio;
As famlias brasileiras utilizam, em mdia, apenas 3% de seus ganhos para gastos com bens culturais;
A taxa de ocupao do filme brasileiro no mercado nacional est situada na
casa dos 10%;
No pas h um grupo de muitos milhes de brasileiros sem tela, sem perspectivas de contato com a cinematografia nacional;
H uma necessidade imperiosa de escoar a produo audiovisual brasileira por
todo o pas;
220
221
de polticas pblicas conduzidas com base em mensurao estatstica e fundamentos que espelham a realidade de um setor estratgico para o audiovisual
brasileiro. Essa uma ao indita que produzir efeitos de mobilizao, valorizao e fortalecimento do circuito de festivais.
222
Antonio Leal
diretor-executivo do Frum dos Festivais, diretor do Congresso Brasileiro de Cinema
(CBC), diretor-executivo do Instituto Brasileiros de Estudos de Festivais Audiovisuais (Ibefest), professor do curso Film & Televison Formao Executiva em Cinema e TV, da FGV.
tambm consultor de Incentivos Fiscais Cultura e das Oficinas de Formatao de Projetos da Caravana Petrobras Cultural/Programa Petrobras Cultural. Coordenou o primeiro
estudo setorial dos festivais audiovisuais, o Diagnstico Setorial dos Festivais Audiovisuais
Brasileiros.
Tet Mattos
Niteroiense, mestre em cincia da arte e professora do curso de produo cultural na
Universidade Federal Fluminense. vice-presidente do Frum dos Festivais e diretora da
mostra Arariboia Cine Festival de Niteri, que se encontra na VIII edio. Tambm curta-metragista, tendo dirigido os documentrios premiados Era Arariboia um Astronauta?
(1998) e A Maldita (2007).
223
ALENCAR, Miriam. O cinema em festivais e os caminhos do curta-metragem no Brasil. Rio de Janeiro: Artenova, 1978.
ARAJO, Guido (Org.). O curta-metragem brasileiro e as jornadas de Salvador. Salvador: Grfico Econmico, 1978.
BAHIA, Ber. (Org.) 30 anos de cinema e festival: a histria do Festival de Braslia
do Cinema Brasileiro 1965-1997. Braslia: Fundao Cultural do Distrito Federal,
1998.
BERTINI, Alfredo. Quando o caso de cinema, a paixo um festival. Recife: edio
do autor, 2006.
CAKOFF, Leon. Cinema sem fim A histria da Mostra 30 anos. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2007.
CARRION, Luiz Carlos. Festival do Cinema Brasileiro de Gramado. Porto Alegre:
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CARVALHOSA, Zita (Org.). Guia brasileiro de festivais de cinema e vdeo 1999. So
Paulo: Kinoforum/Canal Brasil, 1999.
_____. Guia brasileiro de festivais de cinema e vdeo 2000. So Paulo: Kinoforum/
Canal Brasil, 2000.
_____. Guia brasileiro de festivais de cinema e vdeo 2001. So Paulo: Kinoforum/
Canal Brasil, 2001.
_____. Guia brasileiro de festivais de cinema e vdeo 2002. So Paulo: Kinoforum/
Canal Brasil, 2002.
_____. Guia brasileiro de festivais de cinema e vdeo 2003. So Paulo: Kinoforum,
2003.
_____. Guia brasileiro de festivais de cinema e vdeo 2004. So Paulo: Kinoforum,
2004.
_____. Guia brasileiro de festivais de cinema e vdeo 2005. So Paulo: Kinoforum,
2005.
_____. Guia brasileiro de festivais de cinema e vdeo 2006. So Paulo: Kinoforum,
2006.
_____. Guia brasileiro de festivais de cinema e vdeo 2007. So Paulo: Kinoforum,
2007.
RAMOS, Ferno; MIRANDA, Luiz Felipe. Enciclopdia do cinema brasileiro. So Paulo: Editora Senac, 2000.
Algumas notas
sobre a economia
do carnaval
da Bahia
Palabras claves: carnaval, carnavales brasileos, Carnaval baiano, carnavalnegocio, industria cultural, economa de la cultura, turismo
Abstract
224
Paulo Miguez
Resumo
O Brasil o pas dos muitos carnavais, um conjunto amplo e diferenciado de
festejos que risca, em cores vivas, um dos traos mais vigorosos do tecido simblico brasileiro. Ao lado das significativas diferenas que individualizam os
muitos carnavais brasileiros, possvel, no entanto, identificarmos, contemporaneamente, um trao comum de grande importncia. Trata-se da emergncia
de uma lgica e de prticas tpicas do campo da economia que acabaram por
garantir festa, muito especialmente aos carnavais carioca, pernambucano e
baiano, a condio de grandes mercados. Este artigo dedica-se a mapear os
elementos que, nos ltimos 25 anos, configuraram, no Carnaval baiano, uma
complexa economia que envolve mltiplos negcios e um grande nmero de
atores pblicos e privados.
Palavras-chave: carnaval, carnavais brasileiros, Carnaval baiano, carnavalnegcio, indstria cultural, economia da cultura, turismo
225
Brazil is the country of many carnivals, an ample and differentiated set of festivals that scratch one of the most vigorous traces of the symbolic Brazilian
life. By the side of the significant differences that individualize the many Brazilian carnivals, it is possible to identify, contemporaneously, a common trace of
great importance. It is about the emergency of a logic and practices from the
economics field that had guaranteed to the festivals, especially to the carnivals from Rio de Janeiro, Pernambuco and Bahia the condition of great markets. This article is dedicated to map the elements that, in the last twenty five
years, had configured, in the Bahian Carnival, a complex economy involving
multiples businesses and a great number of public and private actors.
Keywords: carnival, Brazilian carnivals, Bahian Carnival, business-carnival, cultural industry, economics of culture, tourism
Brasil, um pas de muitos carnavais
O carnaval no Rio o acontecimento religioso da raa, proclamou Oswald de Andrade, em 1924, no Manifesto da Poesia Pau Brasil
(ANDRADE, 2007). Podemos dizer que, de olho no Rio de Janeiro,
Oswald, um dos pais do Modernismo Brasileiro, alcanou, e com preciso milimtrica, o Brasil. Sim, bastante comum que uma simples
meno ao Brasil remeta, sem mais, ao carnaval. Assim que somos,
definitivamente, aos olhos do mundo, para o bem e para o mal, o
pas do carnaval se que algum mal possa existir em se carac-
Todavia, em que pesem especificidades e particularidades, possvel identificarmos traos que so comuns aos muitos carnavais brasileiros, tanto do
ponto de vista de suas trajetrias histricas quanto no que diz respeito a
suas configuraes contemporneas.
226
227
O entrudo, cujos registros mais antigos, no Brasil, datam do sculo XVII, eram jogos festivos que se realizavam
nos 40 dias que antecediam a Quaresma (QUEIROZ, 1987). Tais jogos consistiam, basicamente, numa espcie de
guerra em que os contendores utilizavam como armas limes ou laranjinhas de cheiro pequenas bisnagas de cera contendo gua perfumada, mas tambm outros lquidos no exatamente perfumados como, por
exemplo, urina e que, no raro, descambava para a violncia. O destaque mais propriamente festivo ficava por
conta da presena da populao negra, que ocupava as ruas com suas msicas e danas.
2
Difcil precisar datas, mas so seguramente os ltimos 20 anos do sculo XIX que delimitam o incio do Carnaval
como um substituto do entrudo. Esse processo aponta particularmente no sentido da europeizao da festa,
com o objetivo de substituir a barbrie representada tanto pela violncia e anarquia dos jogos do entrudo propriamente ditos (Risrio, 1981; Queiroz, 1987) como pelo fato de os festejos servirem de oportunidade para
manifestaes pblicas dos costumes da populao de origem africana (Guerreiro, 1994; Menezes, 1994).
1
228
Com nmeros menores, mas no menos significativos, possvel identificar
a existncia de um mercado da festa tambm no Carnaval de Pernambuco,
intensamente atrelado aos interesses da economia do turismo. Dados publicados sobre o Carnaval de 2005, por exemplo, indicam que a mquina do
Carnaval pernambucano, movida no compasso do frevo, maracatu, caboclinhos e outros ritmos locais, movimentou R$ 204 milhes, garantiu uma
taxa de ocupao da rede hoteleira de 100% e gerou algo como 42 mil postos [de trabalho] diretos e 120 mil indiretos (CARNAVAL no Recife, 2007).
No diferente o caso do Carnaval baiano. Nessa festa, da qual nos ocuparemos mais detalhadamente a partir de agora, um grande mercado estabeleceu-se, a partir da metade dos anos 1980, como eixo impulsionador e
organizador de uma robusta e multifacetada economia da cultura.
229
Se ao longo do tempo muitas foram as tramas tecidas por sua histria e sua
cultura na tessitura contempornea da Bahia, no entanto, um aspecto salta
vista: a existncia de um mercado de bens e servios simblicos alimentado
por articulaes que, ancoradas na rica experincia simblica de seus habitantes, particularmente do segmento populacional negro-mestio, entre si
estabelecem a festa que, registremos, inscreve-se como elemento central
do corpus da cultura baiana ainda que, como bvio, no esgote a totalidade da sua produo cultural , a indstria fonogrfica, a economia do lazer
e do turismo e mais um conjunto variado de atividades ldico-econmicas.
Aqui, de olho na Bahia contempornea, no h lugar para dvidas. o Carnaval, com sua rica ecologia organizacional (ver descrio no Quadro 1),
Aqui, a referncia Bahia no corresponde ao territrio do estado da Bahia, que nos seus 567,3 mil quilmetros
quadrados de territrio demarcado pelo federalismo republicano abriga uma grande diversidade de culturas resultante de distintos processos de formao histrica, mas sim a uma regio ecolgica e culturalmente bastante
homognea, nucleada do ponto de vista urbano por Salvador, a cidade de So Salvador da Bahia de Todos os
Santos ou, simplesmente, a Cidade da Bahia como costumeiramente chamada h sculos e que inclui as
terras em volta das guas de sua grande baa, conhecidas como Recncavo Baiano.
4
O Brasil foi descoberto em 1500, em terras baianas. At fins do sculo XVIII, Salvador foi a capital do Brasil
colnia, sua cidade mais rica e de maior dinamismo urbano e, tambm, a segunda cidade do imprio portugus,
imediatamente depois da metrpole lisboeta.
3
lesca. Renem em torno de 500 participantes, exceo do tradicional afox Filhos de Gandhi, que chega a desfilar com 8 mil folies.
Enquadram-se
Polticas Culturais: Reflexes
e Aesnessa
Trios eltricos
(independentes)
Blocos afro
Surgiram na metade dos anos 1970, inaugurando o processo conhecido como reafricanizao do Carnaval baiano. So formados pela
populao negro-mestia da cidade. Organizaes de ntida inspirao tnica, manejam um repertrio esttico de matriz afro-baiana
que, do ponto de vista cultural, hegemoniza a festa. De outro ponto
de vista, colocam-se num plano cujo mbito de atuao transcende
a festa, produzindo arranjos que combinam cultura, poltica e
negcios. Os maiores blocos afro, como Olodum e Il Ayi, desfilam
com um nmero que varia de 3 mil a 5 mil participantes.
Blocos de trio
Blocos de
travestidos
Blocos de ndios
Blocos de
percusso e sopro
Blocos
alternativos
Blocos infantis
Blocos especiais
Blocos de samba
Descrio
Afoxs
Trios eltricos
(independentes)
230
231
Surgiram na metade dos anos 1970, inaugurando o processo conhecido como reafricanizao do Carnaval baiano. So formados pela
populao negro-mestia da cidade. Organizaes de ntida inspirao tnica, manejam um repertrio esttico de matriz afro-baiana
Blocos afro
que, do ponto de vista cultural, hegemoniza a festa. De outro ponto
5
So assim chamadas as pessoas,
folies, quenum
participam
do Carnaval
sem
estar vinculadas
a organizaes
de vista,oscolocam-se
plano cujo
mbito de
atuao
transcende
festa, produzindo
arranjos
que combinam
cultura,
e
carnavalescas. A expressoapipoca
decorre do fato
de os folies
danarem aos
pulos,poltica
o que lembra
o moviOs maiores blocos afro, como Olodum e Il Ayi, desfilam
mento do milho durante a negcios.
feitura da pipoca.
com um nmero que varia de 3 mil a 5 mil participantes.
6
A origem dos blocos carnavalescos antecede o surgimento do Carnaval propriamente dito. possvel localizar
decorre
do fatofestividades
de utilizarem
um trio
eltrico
organizaes semelhantes Sua
tantodenominao
no entrudo como
em diversas
religiosas,
bastante
comuns na socomo substituto das charangas e orquestras com instrumentos de
ciedade colonial. Seus provveis antepassados so os grupos de mascarados conhecidos como cucumbis, forpercusso e sopro que caracterizavam os blocos tradicionais.
mados
porde
negros
que participavam
do entrudo.
grupos desfilavam
cantando e danSurgiram
na metadedos
dosfestejos
anos 1970,
mas foiTais
na dcada
seguinte que
Blocos
trio e escravos
adquiriram
grande
por
capitanearem
o processo
de utilizando
ando ao som de instrumentos
musicais,
sendoimportncia
predominante
o trao
satrico com
que retratavam,
mercantilizao do Carnaval. Os maiores chegam a reunir 5 mil
mscaras e fantasias, a sociedade branca. Esse esprito festivo transfere-se para os modernos blocos de carnaval,
participantes.
que passam a representar, efetivamente, o contraponto popular nos festejos marcadamente europeizados dos
bailes de mscaras e dos desfiles
dos prstitos
caracterizaram
osde
primeiros
carnavais.
So formados
por que
homens
travestidos
mulheres,
que realizam,
Blocos de
assim, um dos rituais de inverso de papis to caros festa
travestidos
carnavalesca. Bastante antigos, existem registros de sua presena
nos festejos de rua desde os carnavais do incio do sculo XX.
Surgiram nos ltimos carnavais dos anos 1960. Em sua origem
estavam jovens da comunidade negro-mestia da cidade, at ento
Blocos
alternativos
Blocos infantis
SoAlgumas
blocos quenotas
congregam
crianas.
Adotam o do
mesmo
padro
sobre
a economia
carnaval
esttico-musical e organizativo dos blocos de trio.
Blocos especiais
Blocos de samba
Pequenos blocos
Camarotes
da bahia
A rigor, no estranha ao Carnaval a convivncia com prticas mercantis. J antes do Carnaval propriamente dito, durante o entrudo, escravos e negros libertos
fabricavam e comercializavam os limes de cera que serviam de munio aos
combates travados nas ruas pelos folies. Nos carnavais da primeira metade do
sculo XX, ainda que organizados e realizados sob o predomnio de um esprito
eminentemente ldico, podemos observar alguns eventos carnavalescos, tais
como os gritos de carnaval7 , concursos musicais, de fantasias e de mascarados,
patrocinados por grandes casas comerciais, emissoras de rdio e jornais que se
utilizavam da popularidade da festa para promover a divulgao e expanso de
seus negcios.
233
No entanto, so os anos mais recentes que vo agregar festa carnavalesca baiana, em definitivo, dinmicas tpicas do mundo dos negcios, dando lugar configurao do que pode ser chamado de carnaval-negcio, marca registrada que
particulariza a configurao contempornea do Carnaval da Bahia.
Com efeito, s volta do Carnaval que Salvador, realinhando tradio e contemporaneidade, vai assistir, a partir dos anos 1980, aproximao entre a festa e a
lgica da indstria cultural. Esse fato, absoluta novidade, resulta da conjuno de
trs cortes importantes experimentados pela festa carnavalesca nos ltimos 50
anos, embora distintos culturalmente e distantes entre si no tempo.
Os gritos de carnaval, espcie de bailes pr-carnavalescos pblicos, aconteciam em vrios pontos da cidade
no perodo imediatamente anterior ao Carnaval propriamente dito.
234
Quanto ao Carnaval propriamente dito, o trio eltrico, alm de transformar radicalmente o espao da festa, criou novas formas de participao nos festejos. Primeiro,
os folies passaram a pular carnaval o que quer dizer danar com movimentos
simples e livres ao som das msicas executadas pelo trio eltrico. Segundo, sendo
o trio eltrico uma espcie de palco mvel que se desloca pelas ruas da cidade
(Figura 2), sua presena praticamente eliminou a dualidade palco-plateia, at ento
hegemnica na festa, e assim definiu o carter participativo como trao distintivo,
desde ento, do Carnaval baiano.
At o surgimento do trio eltrico, portanto, durante a primeira metade do sculo XX, o Carnaval baiano dividiase entre dois. Um, o Carnaval oficial, organizado e patrocinado pela aristocrtica elite local, que consistia, basicamente, nos suntuosos desfiles dos prstitos, do corso e das pranchas pelas avenidas centrais da cidade e,
tambm, nos bailes privados realizados em clubes fechados. O outro, um Carnaval popular, de extrao negromestia, com seus afoxs, batucadas, cordes e blocos, praticamente impedido de ocupar as avenidas nobres
do centro da cidade e que transitava to somente pelos bairros populares e ruas prximas ao centro. esse
Carnaval popular que, a partir de 1950, com o surgimento do trio eltrico, invade as zonas centrais da cidade e,
assim, promove a desierarquizao do espao social da festa.
9
A utilizao de madeira macia na fabricao dos instrumentos, em substituio ao violo eltrico tradicional,
permitiu superar o fenmeno da microfonia, principal problema tcnico da inovao.
8
235
ocupam fsica e culturalmente espaos da cidade, alguns antes estigmatizados por serem lugar de preto, outros hegemonizados desde
sempre pelas elites. Fazem-se produtoras e produtos no mundo da
cultura e das artes, assumindo o mercado como um fator importante
da cultura de massas. Assumem e explicitam a matriz negra da cultura baiana numa dimenso nunca antes registrada. (LOIOLA; MIGUEZ,
1995, p. 344)
Os marcos fundamentais desse processo foram o renascimento de um dos smbolos do Carnaval baiano, o afox Filhos de Gandhi organizao carnavalesca
fundada em 1949 por trabalhadores da estiva do porto de Salvador, um ano antes, portanto, do aparecimento do trio eltrico, e que no incio dos anos 1970
praticamente desaparecera , e o surgimento do Il Aiy, o primeiro dos muitos
blocos afro surgidos no perodo.
236
237
Os anos 1980 vo dar lugar ao terceiro e ltimo dos cortes indicados. Tratase do aparecimento dos blocos de trio (Figura 5). Com suas cordas, priva-
e uma indstria plenamente desenvolvidas e consolidadas, e imensas e diversificadas possibilidades de negcios significativamente representativas como fonte
de emprego e renda para a cidade.
Figura 5: Desfile de bloco de trio
238
239
Os negcios da festa
O Carnaval baiano transformou-se, na linguagem do show business, num megaevento. Uma rpida olhada sobre alguns dos nmeros da festa apresentados
no Quadro 2 confirma essa condio.
Quadro 2: Indicadores gerais do Carnaval baiano (2006-2007)
Item
Durao dos festejos
Discriminao
6 (seis) dias
Pblico estimado
227
97 mil
34 mil
227
97 mil
34 mil
115 mil
72,9%
Fluxo de passageiros
(transporte rodovirio)
156 mil
446 mil
238 mil
2.531
240
241
242
243
244
245
Item
Discriminao
302,1 milhes
Cenrio I conservador
(multiplicador = 1,4)
423 milhes
Cenrio II moderado
(multiplicador = 1,5)
453,2 milhes
483,4 milhes
Receita pblica
5,8 milhes
1,6 milho
Taxas municipais
1,3 milho
Cotas de patrocnio
2,9 milhes
Receita privada
171,1 milhes
Organizaes carnavalescas
(blocos, afoxs etc.)
69,3 milhes
Hotis
59,9 milhes
Camarotes
17 milhes
Transporte rodovirio
5,3 milhes
Ferryboat
1,7 milho
Infraestrutura (montagem,
energia, limpeza etc.)
14,6 milhes
Comunicao/publicidade
3,5 milhes
Camarotes
17 milhes
5,3 milhes
Transporte rodovirio
1,7 milho
Infraestrutura (montagem,
energia, limpeza etc.)
14,6 milhes
Comunicao/publicidade
3,5 milhes
Despesas pblicas
49,1 milhes
20,6 milhes
27,7 milhes
Ministrio da Cultura
0,9 milho
125 milhes
Patrocnio s entidades
privadas (estimativa)
30 milhes
223 milhes
246
Um primeiro e importante conjunto de atividades diz respeito festa propriamente dita. Trata-se da economia articulada por entidades e grupos carnavalescos, os blocos carnavalescos. Com uma trajetria que se confunde com a prpria
histria dos festejos carnavalescos, os blocos passaram, majoritariamente, de
simples agremiaes ldicas a empresas altamente lucrativas e capitanearam
o conjunto de inovaes organizacionais e tecnolgicas experimentadas pela
festa nos ltimos 25 anos.
Totalizando, hoje, um nmero superior a duas centenas, os blocos demandam
um sem-nmero de atividades. Os grandes blocos, por exemplo, chegam a
empregar por volta de 2 mil pessoas durante o Carnaval, recrutadas entre trabalhadores autnomos e o exrcito de subempregados e desempregados para
prestar servio como msicos, danarinos, garons, pessoal de sade, motoristas, seguranas, cordeiros12, estilistas, eletricistas, carpinteiros, tcnicos de som
e iluminao etc.
A esse numeroso conjunto de prestadores de servios devem ser agregados os
12 So assim denominados os milhares de trabalhadores, em geral negro-mestios e pobres, encarregados de
carregar as cordas que delimitam o espao dos blocos durante o desfile carnavalesco.
247
A venda de abads;
A captao de patrocnios para o desfile, que em muitos casos se estende a
outros eventos vinculados ao bloco, como a participao em carnavais fora de
Salvador e a realizao de festas e shows durante todo o ano Brasil afora;
A comercializao de bebidas e alimentos durante o desfile e nos eventos que
realiza;
A propriedade ou copropriedade de outros blocos;
A explorao dos camarotes;
Franquias da marca do bloco operadas em muitas das mais de 50 cidades brasileiras que realizam carnavais fora de poca;
A parceria empresarial com cantores e bandas que d lugar a negcios variados
como a explorao de trios eltricos e camarotes, a participao nos carnavais
fora de poca e micaretas, e a promoo e realizao de shows.
Aqui, vale registrar, profundamente associado ao crescimento dos blocos est
o sucesso artstico e empresarial alcanado por cantores e bandas musicais que
ocupam, hoje, um lugar destacado no espao mercantilizado do Carnaval. De
simples cantores de bloco, muitos, inclusive, lanados no mercado pelos prprios
blocos, esses cantores e bandas tornaram-se grandes estrelas do show business
carnavalesco: criaram suas produtoras e editoras para cuidar das carreiras que
vendem centenas de milhares de discos, implantaram estdios de gravao e,
principalmente, entraram de forma decidida no mercado do carnaval-negcio,
criando seus prprios blocos ou tornando-se coproprietrios de blocos j existentes, montando seus trios eltricos, participando dos carnavais fora de poca e
micaretas em muitas cidades brasileiras.
13
Nome que se d indumentria utilizada pelos integrantes da maior parte dos blocos.
Um segundo e expressivo conjunto de atividades imbricadas com o carnavalnegcio corresponde aos servios e produtos ligados, direta e indiretamente,
economia do turismo: a rede hoteleira, as transportadoras areas, as agncias de
viagens, as operadoras de turismo, o setor de restaurantes, bares, boates e casas
de espetculos, as locadoras de automveis, as frotas de txis e de transportes
pblicos coletivos, as indstrias de bebidas e alimentos etc.
Por outro lado, o poder pblico arrecada pouco em termos de tributos seja
devido elevada sonegao, seja, tambm, pelo grau de informalidade com que
muitos dos negcios so realizados , mas obrigado a arcar com gastos considerveis em reas vitais para a realizao da festa, como, por exemplo, infraestrutura, servios pblicos, sade e segurana. Ator fundamental para o sucesso do
Carnaval, sua presena de fundamental importncia tanto para a regulao do
mercado carnavalesco quanto para o exerccio de uma governana efetiva da
festa sem o que a tendncia so a ampliao e o aprofundamento do quadro
de desigualdade que tem excludo os atores e setores mais frgeis de uma melhor repartio dos benefcios econmicos gerados pela festa.
248
249
Desafios da festa
O Carnaval baiano, em que pesem o tamanho e a pujana de sua economia
que, como apontado no Quadro 3, movimenta, numa estimativa conservadora,
algo como 423 milhes de reais, ainda no teve a oportunidade de constituirse, efetivamente, como um espao onde as vrias alternativas de sobrevivncia
experimentadas por expressivo contingente da populao de Salvador possam
transformar-se em um projeto de desenvolvimento devidamente sintonizado
com o que podemos chamar de vocao ps-industrial da cidade de Salvador.
Com efeito, a repartio da riqueza gerada pela grande festa baiana absolutamente desigual. Os maiores benefcios financeiros concentram-se quase que exclusivamente nas mos das poucas empresas que atuam nos segmentos dominados pelos grandes capitais responsveis pelos mltiplos negcios dos grandes
blocos e pelo parque hoteleiro. Na outra ponta dessa economia, micros e pequenas empresas e um exrcito de trabalhadores informais disputam alguma renda,
num ambiente altamente competitivo e com baixssimas margens de lucro.
Paulo Miguez
Graduado em cincias econmicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA, 1979), mestre
em administrao (UFBA, 1995) e doutor em comunicao e cultura contemporneas
(UFBA, 2002). Atualmente professor do Instituto de Humanidades, Artes e Cincias e do
Programa Multidisciplinar de Ps-graduao em Cultura e Sociedade, ambos da UFBA, e
pesquisador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Cult/UFBA). Membro do
Conselho Estadual de Cultura da Bahia e do High-Level Experts Group on Creative Industries da UNDP Special Unit for South/South Cooperation (SU/SSC), Nova York.
250
Mardi Gras:
uma tera-feira
gorda alimentada
o ano inteiro
Fred Ges
251
A comunicao tem como propsito demonstrar como na cidade de New Orleans, na Luisiana, Estados Unidos, o Mardi Gras tornou-se a mais importante
atrao turstica e cultural da regio e as estratgias utilizadas em diferentes
reas para tirar partido da festa durante todo o ano.
Durante o segundo semestre de 2003 e o primeiro de 2004, desenvolvi pesquisa
sobre o Mardi Gras de New Orleans, na Universidade de Tulane, com bolsa da
Fundao Rockefeller. O resultado desse trabalho foi publicado como livro no incio de 2008, com o ttulo Antes do Furaco: o Mardi Gras de um Folio Brasileiro em
Nova Orleans1. Venho palestrando e publicando artigos sobre o tema sob os mais
diferentes enfoques, mas ainda no havia me atido ao impacto econmico da
festa para a cidade. Sendo eu oriundo das letras, no reno ferramentas precisas
como dados financeiros ou tabelas estatsticas, mas tenho uma percepo crtica
arguta do quanto precisamos aprender com os norte-americanos em termos de
economia da festa.
Ns, que tanto nos orgulhamos de sermos os produtores do melhor e mais plural
carnaval do planeta, tiramos muito pouco proveito desse nosso manancial e, pior
que isso, no nos claro, muito menos ao poder pblico, o quanto a festa gera em
termos econmicos, tursticos, culturais etc., e como tirar melhor proveito dela.
1
GES, Fred. Antes do furaco: o Mardi Gras de um folio brasileiro em Nova Orleans. Rio de Janeiro: Lngua
Geral, 2008.
252
253
Nas principais ruas do centro histrico, o French Quarter ou Vieux Carr, a esmagadora maioria das lojas vende produtos ligados ao Mardi Gras: colares de
contas, bos, chapus, bonecos (inclusive os originais do vodu, completamente
ressignificados), mscaras de todo tipo, camisetas e tudo mais que possa estar
relacionado com a grande festa. impressionante como os turistas, especialmente os norte-americanos, aderem brincadeira assim que chegam ao centro histrico. Veem-se centenas de indivduos usando os acessrios, a desfilar
pela rea do bairro francs, sobretudo pela Bourbon Street, a mais famosa rua do
bairro. Foi l que, ultrapassando os limites do carnaval, a brincadeira do flashing
tornou-se prtica do ano todo. Os homens se posicionam nos balces de ferro
batido das casas centenrias assobradadas e de l oferecem colares s jovens
transeuntes que, para merec-los, devem exibir os seios. Quanto maior o nmero
de colares ganhos, mais atraente e mais disputada ser a jovem. Vale observar
que exibir o corpo, nos Estados Unidos, considerado atentado grave ao pudor,
assim como carregar bebidas alcolicas fora dos hipcritas saquinhos pardos
(brown bags) em espao pblico proibido em todo o territrio nacional. No
French Quarter, no entanto, o difcil encontrar algum que no esteja portando
um copo colorido com drinques cujos nomes indicam sem circunlquios a intensidade do efeito: vulcano, hurricane.
No desfile das krewes, ou das sociedades, os homens mascarados, que desfilam
nos carros alegricos, acima da populao, lanam os tais colares de contas plsticas, fabricados na China (beads), principal mimo oferecido populao. Esse
gesto tanto refora a ideia da supremacia do homem branco (no alto do carro,
acima da populao) numa cidade predominantemente negra e que se notabiliza ou distingue aos olhos do mundo como o bero do jazz, quanto demonstra
que, numa sociedade onde tudo se compra e se vende, receber um presente,
seja ele qual for, tem uma carga significativa especialssima.
A importncia econmica do carnaval de tal ordem para a cidade que as cores
oficiais de New Orleans so as do Mardi Gras: verde (de esperana), amarelo (de
prosperidade) e roxo (de justia). Com essas cores se decoram as casas e o comrcio durante todo o perodo carnavalesco. At um bolo tradicional, King Cake, uma
adaptao regional do famoso Gallete de Roi, originrio do norte da Frana, recebe
uma cobertura de acar colorido. Na temporada carnavalesca de 2004, foram consumidos mais de 8 milhes de unidades em New Orleans. O bolo tem como curiosidade o bonequinho da sorte colocado em seu interior e chamado de Golden Bean
(la fve).
Na margem oposta do Rio Mississpi, bem diante de New Orleans, h uma localidade chamada Gretna onde est localizado o complexo carnavalesco Mardi Gras
Arthur Hardys Mardi Gras Guide 27th Annual Edition 2003. p. 18.
254
255
Referncias bibliogrficas
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1998.
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entre 1880 e 1920. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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Programa de Ps-graduao em Cincia da Literatura, ano X, n. 14. Rio de Janeiro,
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_____. (Org.) Brasil, mostra a sua mscara. Antologia de contos, crnicas, poemas
e letras de cano sobre o Carnaval. Rio de Janeiro: Lngua Geral, 2007. 280 p.
_____. Antes do furaco: o Mardi Gras de um folio brasileiro em Nova Orleans.
Rio de Janeiro: Lngua Geral, 2008.
JOHNSON, Jerah. New Orleanss Congo Square: an urban setting for early Afroamerican culture formation. Louisiana History, v. XXXII, n. 2, Spring 1991. p. 127.
MATTA, Roberto da. Carnaval, malandros e heris. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1983.
256
257
registro do
patrimnio vivo
de pernambuco:
limites e
possibilidades da
apropriao do
conceito de cultura
popular na
gesto pblica
Maria Acselrad
Um dos instrumentos mais relevantes das polticas pblicas voltadas para o reconhecimento e a valorizao das culturas populares desenvolvido atualmente no Brasil
tm sido as patrimonializaes de bens culturais imateriais. Com o objetivo de desenvolver aes de apoio s condies de sua transmisso e reproduo, valorizao
e promoo, defesa de direitos, acompanhamento, avaliao e documentao, essas
polticas visam salvaguarda por meio do instrumento do registro dos ofcios e
modos de fazer, das formas de expresso, da religiosidade, dos lugares, das formas de
sociabilidade prprias das culturas populares (SANTANNA, 2008).
Com este artigo, venho propor uma reflexo sobre o conceito de cultura popular,
assim como sobre os limites e possibilidades da apropriao desse conceito pela
gesto pblica, revelando as disputas existentes nesse campo, observadas a partir
de minha experincia frente da Coordenadoria de Cultura Popular e Pesquisa da
258
259
Um cruzamento desses depoimentos e observaes com a bibliografia que tratou de conceituar, em perodos histricos distintos, os limites e alcances do que
se convencionou chamar de cultura popular vem contribuir para a desconstruo
e identificao do grau de elasticidade do conceito e das disputas existentes no
campo envolvendo identidades culturais e benefcios decorrentes, no caso especfico desse instrumento. importante ressaltar que, na condio de antroploga
assumindo um papel de gestora pblica de cultura, algumas das questes aqui levantadas tangenciam uma problematizao acerca do que representou essa nova
rea de atuao, o que revela tambm que o lugar de onde estarei falando , como
no poderia deixar de ser, passvel de relativizao.
A Lei do Patrimnio Vivo de Pernambuco na agenda das polticas de
patrimnio imaterial
No mbito internacional, a discusso foi consolidada pela constituio de instrumentos jurdicos para a proteo dos bens culturais, as chamadas declaraes,
recomendaes e convenes da Unesco, que tm como marco inicial, em 1945,
Oficinas, exposies, apresentaes, palestras e concursos de redao j foram promovidos com essa inteno.
BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia: Senado Federal, 1988.
a publicao da Declarao Universal dos Direitos do Homem, inaugurando, assim, uma nova perspectiva sobre a noo e o valor da cultura, seguida pela Conveno Relativa Proteo do Patrimnio Mundial, Cultural e Natural, de 1972;
pela Recomendao sobre a Salvaguardada da Cultura Tradicional e Popular, de
1989; e, enfim, pela Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Imaterial, em
2003. Nesse documento, o patrimnio imaterial definido mais detalhadamente
como o conjunto de:
importante destacar que todo esse esforo para incluir os bens imateriais na
legislao internacional de patrimnio tem nos pases orientais e latino-americanos seus principais porta-vozes. Liderados por pases como a Bolvia e orientados
por experincias-modelo como a de programas nacionais de reconhecimento
e salvaguarda, tais como os realizados por Japo, Tailndia, Filipinas, Romnia
e Frana, conhecidos como Tesouros Humanos Vivos ou Matres dArts, tinham
como objetivo ampliar a agenda das polticas patrimoniais no mundo, inserindo
esse tema na pauta de diversos debates pblicos (BARBOSA; COUCEIRO, 2008).
UNESCO. Conveno para a salvaguarda do patrimnio imaterial. Paris, 17 out. 2003. Disponvel em: http://
unesdoc.unesco.org.
261
So pr-requisitos para a apresentao de uma candidatura ao edital: a comprovao de pelo menos 20 anos de atividades culturais, alm de residncia no
estado por no mnimo igual perodo; estar capacitado a transmitir seus conhecimentos ou tcnicas; e ser indicado por entidades juridicamente constitudas, de
carter cultural, ou rgos governamentais. Tais candidaturas so analisadas por
uma Comisso Especial de Anlise, que elabora pareceres individuais e uma lista
de recomendao, ficando a deliberao sobre os premiados a cargo de uma
avaliao do Conselho Estadual de Cultura7.
Com base em um estudo realizado sobre o acervo de candidaturas ao Registro do Patrimnio Vivo dos dois primeiros anos do concurso, verificamos que a
maioria dos candidatos se concentrava na Regio Metropolitana do Recife e que
uma significativa parcela era inabilitada por problemas na documentao apreDecreto 27.503, de 27 de dezembro de 2004. Disponvel em: http://legis.alepe.pe.gov.br.
Idem.
7
O Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco foi institudo pela Lei n 6.003, de 27 de setembro de 1967.
Em seu regulamento apresentam-se como finalidades a formulao de diretrizes de aes culturais e a defesa
do patrimnio histrico, artstico e cultural, tangvel e intangvel, do estado. Composto de dez membros, geralmente personalidades eminentes da cultura local, indicados pelo governador do estado, com mandato de seis
anos, rene-se semanalmente para discutir assuntos pertinentes a sua atribuio. Atualmente, tais conselhos
encontram-se na contramo do processo de implementao de um sistema nacional de cultura, a ser seguido
por conselhos municipais e estaduais, com base em modelos de representao e participao democrtica.
5
6
sentada; que a comisso responsvel por analisar as propostas era composta por
quadros da prpria Fundarpe, no necessariamente especializados no campo da
cultura popular e que, consequentemente, o processo de anlise no fomentava
uma discusso mais aprofundada sobre o pblico-alvo, sobre a adequao de
critrios e sobre a prpria funo social dessa poltica de patrimonializao.
Com base nessa leitura, foram promovidas discusses, difundindo o conhecimento sobre a lei em diferentes regies do estado, cuja localizao ou concentrao de manifestaes tradicionais justificava sua realizao. Assim, foram realizados os Seminrios do Patrimnio Vivo nos sertes do Paje, Moxot e Itaparica
regies conhecidas por sua tradio de poesia popular, samba de coco, cantos
de trabalho, reisado, bandas de pfano, alm da presena de comunidades rurais,
indgenas e quilombolas para um pblico de gestores, produtores e agentes da
cultura popular e tradicional. Essas discusses aconteceram tambm no mbito
dos Fruns Regionais de Cultura8, realizados nas 12 regies de desenvolvimento
do estado, assim como em oficinas direcionadas a segmentos culturais especficos, como o das comunidades de matrizes africanas, ligadas aos terreiros de
candombl, jurema e umbanda.
Com o mesmo objetivo de ampliar e aprofundar o debate, a composio da
comisso de anlise foi revista, passando a integr-la especialistas do campo da
cultura popular, entre eles pesquisadores, professores e gestores que, por meio
de resoluo, elegeram o conceito de diversidade cultural tal como definido pela
Unesco na Conveno sobre a Proteo e Promoo da Diversidade Cultural,
para orientar seu processo de anlise. Referiam-se
262
multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expresso. Tais formas so transmitidas entre e
dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta
no apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e
se transmite o patrimnio cultural da humanidade mediante a variedade de expresses culturais, mas tambm atravs dos diversos modos
de criao, produo, difuso, distribuio e fruio das expresses culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados.9
Os Fruns Regionais de Cultura fazem parte do Plano de Gesto da Fundarpe (2007-2010), Pernambuco: Nao
Cultural, que vem buscando a consolidao de canais de participao coletiva, por meio da elaborao de um
plano estadual de cultura para Pernambuco. Nesses espaos de discusso tm sido compostas comisses regionais, integradas por membros da sociedade civil e por representantes do poder pblico, que tm trabalhado para a
formulao de polticas pblicas de cultura com base nas demandas locais, por linguagem, segmento e regio.
9
UNESCO. Conveno sobre a proteo e promoo da diversidade das expresses culturais. Paris, 20 out. 2005.
Disponvel em http://unesdoc.unesco.org.
8
263
sua posio: [...] no h explicao para as escolhas do cineasta Fernando Spencer e do Teatro Experimental de Caruaru que, por seu valor, mereciam ser assistidos atravs de outros mecanismos e que atropelam os verdadeiros destinatrios estabelecidos nos objetivos da Unesco e da Lei Estadual, isto os artistas,
criadores, personagens, smbolos e expresses ameaados de desaparecimento ou
extino, pela falta de apoio material ou incentivo financeiro por parte do Poder
Pblico ou da iniciativa privada11.
264
265
Na Amrica Latina, boa parte dos estudos folclricos nasceu graas aos mesmos
impulsos identificados na Europa, ou seja, inclinao romntica em resgatar os
sentimentos populares frente ao Iluminismo e ao cosmopolitismo liberal e necessidade de arraigar a formao de novas naes na identidade de seu passado
(CANCLINI, 1997). Predominaram por muito tempo, dessa forma, as interpretaes imanentes, nacionalistas e conservadoras da cultura popular, sustentadas
por uma ideologia romntica e positivista. A nfase em aspectos funcionais e
essencialistas constituram-se como um amlgama perfeito para as polticas
populistas desenvolvidas na maioria dos pases latino-americanos, ampliando o
sistema de dominao e explorao, por meio da diluio e neutralizao dos
conflitos sociais existentes.
266
Um marco temporal relevante nesse campo de estudo a criao, pelo etnlogo ingls William John Thoms, do neologismo anglo-saxo folk-lore, em 1848.
Adotado com ligeiras adaptaes pela maioria das lnguas europeias para definir
seu objeto, esse termo vinha em substituio a outros antiguidades populares
e literatura popular que designavam a prtica, corrente na Europa desde o
sculo XV, de recolher as tradies preservadas pela transmisso oral entre os
camponeses, identificando nelas uma sabedoria incomum (VILHENA, 1997).
A predileo por viagens pitorescas a terras distantes, o interesse pela vida dos
camponeses, a adoo do mtodo colecionista, o nmero crescente de publica12
A anlise quantitativa do IV Concurso Pblico do Registro do Patrimnio Vivo, realizada pela Coordenadoria
de Cultura Popular e Pesquisa, em novembro de 2008, identificou que 50% dos candidatos se inscrevia pela
primeira vez, enquanto a outra metade dos candidatos j se inscrevia no mnimo pela segunda vez.
267
Mas o que vem a ser, afinal, a cultura popular e suas ditas manifestaes artsticas? Criao espontnea do povo, memria convertida em mercadoria ou espetculo extico determinado pela indstria cultural e reduzido a uma curiosidade turstica? (CANCLINI, 1983, p. 11). Segundo esse autor, a viso que reduz a
cultura popular a um conjunto de tradies deve ser abandonada, bem como
o idealismo folclrico que pensa que possvel explicar os produtos do povo
como expresso autnoma do seu temperamento. O enfoque mais fecundo
aquele que entende a cultura como um instrumento voltado para a compreenso, reproduo e transformao do sistema social, atravs do qual elaborada e
construda a hegemonia de cada classe (1983, p. 12).
Talvez por isso, de acordo com Canclini, tenham sido acolhidas de forma to
significativa na Amrica Latina teorias da desigualdade social e da luta de classes,
defendidas por marxistas, em conjunto com a concepo estrutural identificada
nos processos de produo, circulao e recepo da cultura, defendida por
Pierre Bourdieu (1979). A alternativa analtica proposta por Canclini compreende
as culturas populares, no plural, como um processo de apropriao desigual dos
bens econmicos e culturais de uma nao ou etnia por parte dos seus setores
subalternos, e pela compreenso, reproduo e transformao, real e simblica,
das condies gerais e especficas do trabalho e da vida (CANCLINI, 1983, p. 42).
Portanto, uma das principais tarefas da investigao sobre as culturas populares
na Amrica Latina consiste em descartar qualquer reduo a um trao essencial
do que se entende por cultura popular pois conceb-la como um fenmeno
socialmente construdo implica saber identificar, por exemplo, que como estado
socioeconmico [o popular] sufoca a cultura e como conscincia de classe a
A categoria povo foi central nessa discusso. Povo foi definido com base em
uma leitura evolucionista segundo a qual o termo incluiria apenas os camponeses, que viviam perto da natureza e estavam menos marcados pelo modo de
vida moderno, o que lhes teria permitido preservar os costumes primitivos por
um longo perodo. Isso acabou por negar a condio de populares s manifestaes das elites, das camadas mdias e das massas urbanas de artesos e
operrios. Alm de obscurecer a circularidade existente entre todos esses nveis
culturais, anulando ou suavizando o conjunto de trocas que inclua dominao,
violncia simblica e resistncia cultural (ACSELRAD, 2002).
268
269
Segundo Carvalho (2000), a posio brasileira tpica em relao ao folclore estaria expressa na Carta do Folclore Brasileiro, de 1951, documento que propunha
um guia de aes e no qual se expressava a preocupao com o resgate e a
conservao do folclore como identidade do povo brasileiro, numa atitude basicamente colecionista, uma vez que, sendo inadivel a necessidade de preservar
os produtos da inventiva popular, deveriam ser criados museus de folclore municipais, estaduais e nacionais.
A identificao entre as memrias nacional e popular, ou coletiva, segundo Ortiz
(1994), absolutamente ilusria na medida em que esta da ordem da vivncia e aquela se refere a uma histria que transcende os sujeitos e no se concretiza imediatamente em seu cotidiano. Alm de estar ligada a uma ideologia,
ser produto de uma histria social, e no da ritualizao da tradio. Assim, o
nacional no poderia se constituir como prolongamento de valores populares,
mas como um discurso de segunda ordem, que, inclusive, dissolve a heterogeneidade da cultura popular.
Martha Abreu (1999) reconhece no termo cultura popular um conceito espinhoso impossvel de ser utilizado ingenuamente, ao contrrio, passvel de ser enfrentado, e, ao defender a sua utilizao, justifica que seu objetivo colocar no
centro da investigao as pessoas pobres (1999, p. 28), mas tambm ressalta a
necessidade de aprofundar a histria do conceito para que sejam observados
os juzos de valor, as idealizaes, as homogeneizaes e as utilizaes polticoideolgicas implicados na sua identificao como local da autenticidade, do
conservadorismo, da resistncia e [...] da alma nacional (1999, p. 684). Preocupa-a, inclusive, o risco de uma espcie de reificao ou absolutizao da cultura
popular, priorizando mais estilos e formas do que os significados da produo
cultural dos agentes culturais.
270
271
A questo que nos parece pertinente destacar o fato de que a implementao desses processos nem sempre condizente com os mecanismos de construo de referncias culturais internas de tais comunidades. E, assim, algumas
inadequaes podem decorrer desse fato. A quem pertencem essas tradies?
Que grupos sociais as legitimam? De que maneira se d o processo de reconhecimento, no mbito das comunidades? A quem interessa registrar um patrimnio
imaterial? Com base em que parmetros o poder pblico confere esse ttulo?
Qual o ndice que mede o grau de risco de desaparecimento de determinada
manifestao cultural para torn-la uma prioridade das polticas de registro?
Jos Lopes da Silva Filho, mais conhecido como Mestre Z Lopes, mamulengueiro de Glria do Goit, e Afonso Aguiar, do Maracatu Leo Coroado, de Olinda,
expressam a complexa teia da construo de referncias culturais que envolve o
reconhecimento de um mestre por sua comunidade:
Ser mestre a pessoa dominar o conhecimento, ter resposta principalmente pra algumas perguntas e o conhecimento da arte que ele faz.
Por exemplo, eu sou mamulengueiro. Se eu tivesse aprendido a fazer
o boneco e a histria do boneco, eu era um mestre, digamos. Mas um
mestre precisa de um conhecimento maior. Preciso saber de onde veio o
meu trabalho, a origem do meu trabalho, a madeira que eu trabalho, que
o mulungu, se est em extino, o que podemos fazer pra no entrar
em extino, renovar junto com a tecnologia, internet, televiso. ter um
conhecimento geral de todas as coisas. O povo diz que eu sou mestre
e eu me considero, porque eu gosto do que fao, e sei que as pessoas
gostam do que eu fao. Eu tenho que considerar a opinio do povo que
diz que eu sou mestre e eu sentir dentro de mim que eu sou mestre. Mas
no pode parar, tem sempre muita coisa pra aprender pela frente. (Mestre
Z Lopes, em depoimento concedido autora durante o IV Encontro de
Mestres, em Juazeiro do Norte/CE, em dezembro de 2008.)
Mestre aquele que tem a funo de discernir as coisas dentro
daquele grupo onde ele considerado mestre. aquele que tem conhecimento do que t fazendo, do que t comandando, como fazer,
como resolver as coisas. Eu creio que a funo do mestre seja essa.
uma funo muito rdua e de muita responsabilidade. Porque a gente
encontra muita gente por a se dizendo mestre, mas no . mestre
de bateria, disso, daquilo, mas no o mestre considerado, feito era
o Mestre Salustiano, Mestre Luis de Frana, que sabem, que conheciam mesmo as coisas. Por isso mesmo que eu no me digo Mestre do
Leo Coroado. Uma das funes do mestre repassar aquilo que ele
sabe, que a gente no pode ostentar tudo s pra gente. Tem que soltar
porque seno vai acabar. Ento, ele tem tanto a aprender, porque os
272
273
ceituao de cultura popular e tradicional, considerando suas condies de manuteno e reproduo, suas formas de transmisso, suas reas de atuao, seus
novos contextos de realizao, superando velhos e novos esteretipos, porm
sem perder os contornos de sua identidade na diversidade que a constitui.
Patrimnios vivos de Pernambuco
274
275
Alcunha
Nome
Atividade
Local
Lia de Itamarac
Maria Madalena
Correia do Nascimento
Cirandeira
Itamarac
Z do Carmo
Escultor e pintor
Goiana
Camaro
Reginaldo
Alves Ferreira
Sanfoneiro
Recife
Dila
Xilogravurista
e cordelista
Caruaru
Banda Curica
Sociedade
Musical Curica
Banda musical
Goiana
Nuca
Manuel Borges
da Silva
Ceramista
Tracunham
Manuel Eudcio
Manuel Eudcio
Rodrigues
Ceramista
Caruaru
J. Borges
Jos
Francisco Borges
Xilogravurista
e cordelista
Bezerros
Maracatu Carnavalesco
Leo Coroado
Maracatu de
baque virado
Olinda
Xilogravurista
e cordelista
Condado
Artista circense
Jaboato dos
Guararapes
Clube carnavalesco
Olinda
Irmandade religiosa
Floresta
Ceramista
Tracunham
Margarida Pereira
de Alcntara
Clube de Alegoria
e Crtica Homem
Homem da Meia- Noite
da Meia-Noite
Confraria do Rosrio
Confraria do Rosrio
de Floresta
ndia Morena
Fernando Spencer
Fernando Hartman
Spencer
Cineasta
Recife
TEA
Teatro Experimental
de Artes
Grupo teatral
Caruaru
Selma do Coco
Selma Ferreira
da Silva
Coquista
Olinda
Caboclinho 7 Flechas
Caboclinho 7 Flechas
Caboclinho
Recife
Maria Acselrad
bacharel em cincias sociais pelo Instituto de Filosofia e Cincias Sociais (IFCS/UFRJ); especialista em etnomusicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestre
em antropologia e sociologia pelo PPGSA/UFRJ. Possui experincia com ensino e pesquisa
na rea das culturas populares, patrimnio imaterial, antropologia da dana e etnologia
indgena. Desenvolve, atualmente, pesquisa sobre as polticas de patrimonializao de
pessoas e grupos culturais e seu impacto na transmisso de saberes. Desde 2007, atua
como coordenadora de cultura popular e pesquisa da Fundao do Patrimnio Histrico
e Artstico de Pernambuco (Fundarpe).
Referncias bibliogrficas
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Janeiro: 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, So Paulo: Fapesp, 1999.
ABREU, Regina; CHAGAS, Mrio. Memria e Patrimnio ensaios contemporneos. Rio de Janeiro: Faperj, 2003.
ACSELRAD, Maria. Viva pareia a arte da brincadeira ou a beleza da safadeza:
uma abordagem antropolgica da esttica do cavalo marinho. Dissertao de
mestrado. Rio de Janeiro: Programa de Ps-graduao em Sociologia e Antropologia da IFCS/UFRJ, 2002.
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CANCLINI, Nstor Garcia. As culturas populares no capitalismo. So Paulo: Brasiliense, 1983.
_____. Culturas hbridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. So Paulo:
Edusp, 1997. (Ensaios latino-americanos 1)
276
277
a cena
mangue e as
transformaes
no bairro do
recife antigo
Rejane Calazans
Em uma tpica noite de vero, em fevereiro de 2007, Pupilo1 caminhava pelas ruas
do bairro Recife Antigo, na capital pernambucana. Ele parou em frente ao prdio
de trs andares que abriga o shopping Pao Alfndega e avistou, a poucos metros dali, os contornos da construo do palco do festival Recbeat. Pupilo entrou
pela porta principal do shopping, que d acesso ao piso Ariano Suassuna2, e saiu
pela porta lateral, prximo Rua da Moeda. Nessa rua, meses depois, em novembro do mesmo ano, foi construda uma escultura de Chico Science3. A escolha do
local para homenagear o falecido lder da banda Chico Science & Nao Zumbi
no foi por acaso. A Rua da Moeda e as ruelas em seu entorno foram aladas
condio de ponto de encontro dos mangueboys4 no incio da dcada de 1990.
At hoje a rua abriga o bar Pina de Copacabana, que na dcada de 1990 pertencia a Roger de Renor5 e era o principal point da cena mangue. Atualmente, o bar
278
279
Fred Zero Quatro foi um dos idealizadores da cena mangue e sua declarao
uma referncia s mudanas que o movimento trouxe cidade do Recife. Fao,
ento, um convite ao leitor para fazermos uma viagem no tempo e retornarmos
s dcadas de 1980 e 1990 para vislumbrar como era a vida cultural recifense.
Nosso foco ser direcionado para um grupo de amigos que se uniram em torno
da paixo pela msica e para o bairro do Recife Antigo.
de uma grande gravadora e abriu o bar Pina de Copacabana, que contribuiu para a consolidao de uma cena
alternativa no Recife. Atualmente apresentador do programa televiso Sopa Dirio, uma espcie de agenda
cultural da cidade.
6
Renato Lins, jornalista e DJ, foi apelidado de ministro da informao do mangue e uma espcie de porta-voz
da cena mangue.
7
Apelido de Jos Carlos Arcoverde, designer e produtor multimdia, espcie de ministro da tecnologia do mangue.
8
Codinome de Helder Arago, designer e DJ. No incio da cena mangue, Helder formava a dupla Dolores e
Morales, com o cineasta Hilton Lacerda. Essa dupla era responsvel pelos cartazes de divulgao de festas e pela
capa do primeiro CD da banda Chico Science & Nao Zumbi, lanado em 1994, pela Sony.
9
Esse encontro de Pupilo com seus amigos realmente aconteceu e foi presenciado por Cludio Serrano e Lus
Guilherme Guerreiro, respectivamente tcnico de som e fotgrafo do documentrio A Lama, a Parablica e a
Rede, conforme os dois me relataram. J o percurso de Pupilo pelas ruas do Recife Antigo uma suposio do
possvel caminho, para ilustrar a configurao do bairro em fevereiro de 2007.
10
Fred Zero Quatro o codinome de Fred Montenegro, vocalista da banda mundo livre s.a.
11
Entrevista com Fred Zero Quatro, em 24 de maro de 2006, no Rio de Janeiro.
Como Renato L. escreveu em seu texto Mangue Beat Breve Histrico do Seu
Nascimento, o que unia aquele grupo de amigos era a (...) paixo pela msica e
uma insatisfao com o que era produzido no Brasil em termos de cultura pop,
especialmente em Pernambuco (...)16. Para tentar burlar o marasmo que impregnava Recife, esses amigos mantinham encontros assduos, quase dirios, durante
os quais ouviam msica. Eles encontravam dificuldade at para comprar corda
para guitarra, e mais ainda para comprar discos e revistas sobre msica, especialmente em uma poca em que ainda no existia o facilitador da internet.
Anos 80, as coisas esto comeando a chegar a Recife. Final dos 80 pra
comeo dos 90. Na verdade, (Recife) era longe de tudo.12
280
Entrevista com Jorge Du Peixe (vocalista da Nao Zumbi), em 24 de abril de 2007, em So Paulo (com participao de Clarisse Vianna).
13
De acordo com pesquisa do Institut Population Crisis Commitee, de Washington, conforme publicado em 26
de novembro de 1990 no Jornal do Commercio, de Pernambuco.
14
Entrevista com Renato L. em 9 de fevereiro de 2007, no Recife (com participao de Clarisse Vianna).
15
Os idealizadores da cena mangue foram entrevistados durante o trabalho de campo da minha tese de doutorado Mangue: a Lama, a Parablica e a Rede. A maior parte das entrevistas foi filmada e resultou no curtametragem A Lama, a Parablica e a Rede, dirigido em parceria com Clarisse Vianna e com o patrocnio do Programa Petrobras Cultural.
12
281
Diante da inexistncia de locais que proporcionassem a diverso que procuravam, ou seja, que tocassem a msica que ouviam, aquele grupo formado por
jovens insatisfeitos comeou a promover festas na capital pernambucana. Essas
festas constituam a oportunidade de divulgar as novidades e ampliar a rede de
circulao das informaes sobre o mundo pop. Para DJ Dolores, conforme a
citao a seguir, as festas eram motivadas pela necessidade de transformar a cidade em que viviam:
A gente comeou a fazer festa juntos porque o Recife, na dcada de 80,
era um lugar muito insuportvel, no havia uma cena musical. Havia
uma ou outra banda de rock, mas no havia espao pra tocar, no
havia clubes com DJs. Isso era impensvel. Ento a gente comeou,
todo mundo duro, no podia sair daqui e ir morar em Londres, no
podia fugir da cidade, fugir do pas. Ento a soluo era melhorar a
cidade. J que tinha que viver nessa merda, pelo menos fosse uma
merda menor.19
nhecido20. Um dos locais mais frequentados por aquele grupo de amigos era o
bar Cantinho das Graas que, de acordo com Renato L., foi cenrio de um anncio de Chico Science tido como catalisador da formao da cena mangue. Em
uma noite, no incio da dcada de 1990, Chico Science, ao chegar ao Cantinho
das Graas, dirigiu-se a uma mesa onde estavam reunidos seus amigos e fez o
seguinte comunicado: Fiz uma jam session com o Lamento Negro, aquele grupo
de samba-reggae, peguei um ritmo de hip-hop e joguei no tambor de maracatu... Vou chamar essa mistura de mangue!21. De acordo com Renato L., o anncio de Chico Science causou euforia e seus amigos ficaram [...] sem saber o que
era mais interessante, o som ou a palavra usada para sintetiz-lo. Os amigos de
Chico Science, ento, sugeriram que a denominao mangue no ficasse restrita a uma batida, mas que contemplasse as diversas atividades desenvolvidas
por eles. Assim, mangue deixou de nomear a batida criada por Chico e passou
a designar uma cena22. Ainda de acordo com as lembranas de Renato L., [...]
numa despretensiosa meia hora surgiram os esboos de quase todos os conceitos bsicos do mangue. Aquela noite, na minha memria, sem que ningum
percebesse, foi um momento-chave23.
No incio da dcada de 1990, quando Chico Science criou sua batida, outro
bar disputava a frequncia dos mangueboys com o Cantinho das Graas. Era a
Soparia do Pina, de Roger de Renor. A Soparia, de acordo com o prprio Roger
de Renor, era uma espcie de Orkut rstico24, um ponto onde as pessoas no
apenas se encontravam como tambm obtinham informaes sobre os eventos que estavam acontecendo na cidade, como as festas promovidas pelos
mangueboys. Conforme relatado por DJ Dolores, as festas promovidas pelos
mangueboys geralmente aconteciam em [...] um lugar totalmente off da cidade, que eram os puteiros do Recife Antigo. Era um lugar em que durante
o dia tinha loja de ferragem, durante a noite tinha putaria25. E esse lugar era
ideal para a realizao das festas, pois os baixos preos de aluguel dos espaos
eram acessveis aos mangueboys.
Apesar da distncia entre o Recife Antigo e a Praia do Pina, onde ficava o bar de
Roger de Renor, os frequentadores das festas organizadas pelos mangueboys
tambm frequentavam a Soparia, assim como o prprio Roger de Renor frequentava as festas. Esse fluxo estimulou a formao de um circuito que integrava
a Soparia s festas promovidas pelos mangueboys no Recife Antigo. Posteriormente, Roger de Renor fechou a Soparia do Pina e abriu outro bar, o Pina de
Copacabana, no Recife Antigo26. A ida de Roger de Renor para a Rua da Moeda,
no bairro do Recife Antigo, mudou a paisagem do local: Com ele, vrios grupos
e pessoas, que antes frequentavam a Soparia, tambm migraram para o bairro
do Recife, reencontrando um espao que j retinha enorme carga simblica, por
ter sido um dos primeiros palcos do movimento mangue27. preciso salientar
que o Recife Antigo um bairro porturio, com uma localizao geogrfica peculiar, conforme foi apropriadamente demonstrado por Rogrio Proena Leite
nos seguintes termos:
282
20
Em 1992, Fred Zero Quatro escreveu o release Caranguejos com Crebro para divulgar a cena mangue.
O release foi publicado na imprensa recifense como manifesto, a cena foi chamada de movimento e o
nome mangue recebeu o adendo bit, inspirado na msica Manguebit, tambm de autoria de Fred
Zero Quatro. Posteriormente, a sonoridade de bit foi confundida com beat no nome mais conhecido:
movimento manguebeat.
21
L., Renato. Mangue no fuso. In: Manguenius. Disponvel em: http://www.terra.com.br/manguenius/artigos/ctudo-entrevista-renatol.htm. Acesso em: out. 2003.
22
Idem. Mangue beat breve histrico do seu nascimento. In: Manguetronic. Disponvel em: http://www.notitia.
com.br/manguetronic/newstorm.notitia.apresentacao. Acesso em: out. 2003.
23
Idem, ibidem.
24
Entrevista com Roger de Renor, em 9 de fevereiro de 2007, no Recife (com participao de Clarisse Vianna).
25
Entrevista com DJ Dolores, em 9 de fevereiro de 2007, no Recife (com participao de Clarisse Vianna).
283
O local priorizado pelos mangueboys foi a Rua da Moeda e suas cercanias, posteriormente conhecido como Polo Moeda. Durante o dia, a Rua da Moeda nada tinha
que pudesse configurar um espao praticado, isto , um espao ocupado por uma
rede de sociabilidades. Como outras ruas do bairro, ela limitava-se a ser um estacionamento para os inmeros veculos que ocupavam a pequena ilha, sendo difcil
imaginar que ali houvesse qualquer tipo de atividade ou movimentao de pessoas.
No entanto, noite, quando outras sociabilidades eram desenvolvidas, os espaos
dessa rua ficavam preenchidos por significados, sendo convertidos em lugares29.
Posteriormente movimentao promovida pelos mangueboys no Recife Antigo, esse bairro foi escolhido como ponto de partida para um amplo processo de
revitalizao empreendido pela prefeitura do Recife. A revitalizao visava promover o enobrecimento do bairro do Recife em um processo conhecido como
Entrevista com Roger de Renor, em 9 de fevereiro de 2007, no Recife (com participao de Clarisse Vianna).
LEITE, Rogrio Proena. Contrausos e espao pblico: notas sobre a construo social dos lugares na Manguetown. In: Revista Brasileira de Cincias Sociais, v. 17, n. 49, jun. 2002, p. 125.
28
Idem, p. 122.
29
Lugar um espao de representao, cuja singularidade constituda pela territorialidade subjetivada apud
LEITE, R.P., op. cit.
26
27
gentrification a implementao de intervenes urbanas como empreendimentos que elegem certos espaos da cidade e os transformam em reas de
investimentos pblicos e privados, cujas mudanas nos significados de uma localidade histrica fazem do patrimnio um segmento de mercado. Tal processo
de enobrecimento tanto pode referir-se reabilitao de casarios antigos como
pode englobar construes totalmente novas30.
Reconstrudo como uma nova centralidade, o bairro do Recife teve sua memria
inscrita em seu patrimnio edificado e na vida cotidiana dos moradores mais
antigos subsumida pelas estratgias de marketing urbano. A construo da
imagem do Recife Antigo como smbolo de recificidade esteve ancorada, desde
o incio, na ideia de transformao do patrimnio em mercadoria cultural31. Um
exemplo disso o Pao Alfndega, shopping construdo no edifcio que antes
abrigava a antiga alfndega, voltado para a clientela turstica. Em seus trs pisos,
mesclam-se lojas que vendem produtos regionais e lojas de marcas internacionalmente conhecidas, em um exemplo tpico do entrecruzamento de elementos locais e globais.
Atualmente, o Recife Antigo ocupa cada vez mais os espaos das narrativas sobre a singularidade do local para a cidade do Recife, inclusive como locus de
fermentao da cena mangue. No entanto, inicialmente os sentidos conferidos
ao bairro pelos mangueboys no foram incorporados no processo de gentrification. O local escolhido para o incio do processo de revitalizao no foram as
cercanias da Rua da Moeda, mas outra poro do bairro, o entorno da Rua do
Bom Jesus, denominado Polo do Bom Jesus.
Como um lugar tpico de consumo e lazer, o Polo do Bom Jesus tornou-se paradigmtico para o processo de gentrification do bairro: ruas limpas, bem iluminadas, com diversificao de servios e um eficaz sistema de vigilncia. Parte
significativa dos recursos pblicos e privados foi investida nesse polo, tido como
catalisador de um projeto mais amplo de revitalizao urbana de todo o bairro
do Recife Antigo. Como comumente acontece nos processos de gentrification, o
Polo do Bom Jesus passou a contar com a presena de seus usurios porque isso
foi induzido pela interveno urbana realizada32.
revelia do processo de revitalizao do bairro, sem ser planejado ou incentivado, com um carter espontneo, o Polo Moeda conquistou fora e visibilidade
que no puderam ser ignoradas e passou a ser um polo de animao alternativo
dentro do bairro do Recife. O lazer na Rua da Moeda surgiu como um catalisador
LEITE, R.P., op. cit.
Idem, ibidem.
32
Idem, ibidem.
30
31
284
285
Idem; ibidem.
ARENDT, Hanna. A condio humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997.
286
287
Uma semana aps o trmino do Porto Musical, foi realizado o Recbeat, precursor
do Carnaval Multicultural. Iniciado, como o mangue, como uma iniciativa sem
apoio do setor pblico, o Recbeat tinha como meta a divulgao dos artistas da
cena. Seguindo o princpio da diversidade presente no iderio mangue, diversas
bandas subiam ao palco do Recbeat durante o Carnaval para apresentar seus
trabalhos, sem nenhuma obrigao de adeso a determinado ritmo musical.
Atualmente, tal modelo seguido pela Prefeitura do Recife e pelo Governo do
Estado de Pernambuco. No apenas o Recbeat financiado com verbas pblicas,
mas vrios palcos so espalhados pela cidade, durante o Carnaval, abrigando
artistas que tocam desde frevo at rock, de maracatu a hip-hop. E a iniciativa da
prefeitura no para por a. Em novembro de 2006, por exemplo, houve um show
e um desfile com artistas recifenses na cidade do Rio de Janeiro para divulgar o
Carnaval Multicultural do Recife. Ambos contaram com a presena do prefeito do
Recife e do governador de Pernambuco.
Tanto o Porto Musical quanto o Recbeat so frequentados por produtores do
mundo inteiro, que consideram esses eventos grandes oportunidades para conhecer a produo musical recifense e agenciar turns. Esses so indcios da institucionalizao da cena mangue. Para os msicos, o significado disso a possibilidade de permanecer no Recife. Ao contrrio do incio da dcada de 1990, no
mais imperativo que uma banda saia da cidade para conseguir repercusso nacional ou mesmo internacional. Atualmente, a sada uma opo para as bandas.
De bairro abandonado no fim da dcada de 1980, o Recife Antigo foi transformado no apenas em epicentro da cena musical recifense, mas de eventos que
renem pessoas de todo o mundo para discutir, comercializar e ouvir msica.
Aqueles encontros de cerca de 15 amigos, que se ampliaram em festas e shows,
conseguiram chamar a ateno de todo o mundo para aquele bairro.
No h como negar a diferena entre o Recife no fim da dcada de 1980 e o
Recife de 20 anos depois. A mudana pode ser vista em termos de autorrepresentao. Se, na dcada de 1980, o Recife era visto como a cidade do frevo e do
armorial e at mesmo os mangueboys, que recusavam essa identidade, reconheciam isso , atualmente a imagem da cidade no se resume mais a essas duas
288
Rejane Calazans
Graduada em histria pela Universidade Federal Fluminense; mestre e doutora em cincias sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Em 2008, defendeu a tese
Mangue: a Lama, a Parablica e a Rede, sobre o movimento manguebeat, que foi contemplada pelo programa Rumos Ita Cultural. Diretora (em parceria com Clarisse Vianna)
do curta-metragem A Lama, a Parablica e a Rede.
39
MEIRA, Silvio. Mangue beat. Manguebeat. Manguebit. Publicado em 2 fev. 2007 na coluna de Silvio Meira no
portal virtual G1 (http://g1.globo.com/Noticias/Colunas/0,,7421,00.html). Acesso: fev. 2007.
O programa
BNB de cultura
Henilton Menezes
289
O Brasil ainda um pas com grandes diferenas entre os que podem e os que
no podem, entre os que estudam e os que no estudam, entre os que comem
e os que no comem, entre os que tm acesso aos bens e servios culturais e
os que no tm. O Ministrio da Cultura vem divulgando alguns nmeros que
mostram a excluso educacional, social e cultural. Qualquer desses nmeros
apresenta um pas que muito pouco investe na promoo da qualidade de vida
de grande parte do povo brasileiro. E esse cenrio no atual.
O professor pernambucano Josu de Castro, j na dcada de 1940, refutava a
ideia de que as desigualdades entre os homens so inevitveis e irremediveis.
No entendimento dele, a fome sentida por parte da populao brasileira no
um problema natural e sim fruto de aes equivocadas dos homens e das polticas econmicas adotadas em cada pas (CASTRO, 1984).
Na dcada de 1980, Milton Santos, gegrafo baiano e um dos mais importantes
pensadores brasileiros, crtico ferrenho da globalizao e de seus efeitos perversos, props uma mudana radical das atuais condies da sociedade, centrando
as aes no homem e no no dinheiro. Para ele, o homem deveria ser colocado
no centro das preocupaes das polticas mundiais, o que implicaria priorizar
a satisfao de necessidades essenciais e relegar as falsas necessidades criadas
pela publicidade. Para o gegrafo, o mundo vive uma dupla tirania, a do dinheiro
e a da informao, uma intimamente ligada outra. A competitividade promovida por essas tiranias a fonte dos modernos totalitarismos, com a consequente
ampliao da pobreza (SANTOS, 2008).
290
Somente 13% dos brasileiros frequentam cinema pelo menos uma vez por ano;
92% dos brasileiros nunca estiveram num museu;
93,4% dos brasileiros nunca visitaram uma exposio de arte;
78% dos brasileiros nunca assistiram a espetculo de dana, embora 28,8% deles costumem sair para danar;
O brasileiro l, em mdia, 1,8 livro por ano (contra 2,4 na Colmbia e 7 na Frana);
73% dos livros esto concentrados nas mos de apenas 16% da populao.
O Brasil um pas de riqueza cultural singular e esse um quadro de excluso
que deveria envergonhar aqueles que detm a fora poltica necessria para promover as mudanas. Nessa situao, no h possibilidade de as comunidades
brasileiras apresentarem um nvel de produtividade cultural aceitvel, equilibrado
O Inaf considera alfabetizada funcional toda pessoa capaz de utilizar a leitura e a escrita para fazer frente s
demandas de seu contexto social e usar suas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao
longo da vida.
2
Disponvel em: www.ipm.org.br
291
3
4
Por outro lado, sabemos que, apesar da lgica de Adorno e dos pensadores da
Escola de Frankfurt, consumir um produto cultural industrializado ser sempre um
pouco diferente do que consumir uma mercadoria qualquer.
duas premissas: primeiro, que a cultura socialmente legitimada a que deve ser
difundida; depois, que basta promover o encontro entre a obra de arte e o pblico
para o problema ser resolvido.
Pessoalmente penso que a perspectiva frankfurtiana que v a ideologia exclusivamente como tcnica, o que significa assimilar a cultura mercadoria, tem o mrito de chamar a ateno para certos
problemas, mas nos impede de compreendermos outros. Eu diria
que a cultura, mesmo quando industrializada, no nunca inteiramente mercadoria, ela encerra um valor de uso que intrnseco
sua manifestao. H uma diferena entre um sabonete e uma pera
de sabo. O primeiro sempre o mesmo, e sua aceitao no mercado
depende inclusive dessa eternidade que garante ao consumidor a
qualidade de um padro. A segunda possui uma unicidade, por mais
que seja um produto padronizado. (ORTIZ, 2006, p. 146)
Tais polticas levam em conta fundamentalmente os obstculos materiais s prticas culturais, como a m distribuio ou a ausncia de espaos culturais e preos elevados dos ingressos, vistos como os entraves
bsicos a um maior consumo cultural. Mas no atentam para outros fatores, to decisivos quanto os citados e que no se reduzem dimenso
econmica ou de oferta. H distines de formao e de hbitos no
tecido da vida cotidiana que tm grande incidncia sobre as prticas
culturais a comear pelo fato de a cultura erudita, embora dominante
no plano oficial por razes histricas e pelos valores que agrega, ser apenas uma vertente que convive com outras formas de produo e outras
tradies populares, tudo bastante infiltrado pela dimenso industrial e
mercantil dos processos atuais. (BOTELHO; FIORE, 2005, p. 8)
292
293
lugar, sai e chega, indo para e vindo de vrias direes (MENEZES, 2008).
O Programa BNB de Cultura, desenvolvido pelo Banco do Nordeste do Brasil em
2005, uma ao concreta em busca da preservao dessa localidade, oferecendo aos menores recantos do Nordeste brasileiro, norte de Minas Gerais e norte do
Esprito Santo a possibilidade de produo de cultura. o incio de uma mudana
dessa realidade concentradora, muito mais grave no Nordeste e no Norte do que
nas demais regies do Brasil. O programa investe diretamente nos agentes culturais locais, oferecendo a possibilidade de desenvolvimento da produo cultural nos prprios territrios, incentivando a formao de plateias nas comunidades
menos favorecidas, permitindo o acesso aos recursos pblicos destinados cultura de forma democrtica, e acompanhando e medindo os resultados alcanados.
O Banco do Nordeste do Brasil (BNB) uma instituio financeira mltipla, criada
em 1952, cujo controle exercido pelo governo federal, detentor de 94% do capital acionrio. Com um patrimnio lquido de 1,602 milho de reais, a instituio
administra ativos que totalizam 31,335 milhes de reais, atuando em nove estados da Regio Nordeste (Maranho, Piau, Cear, Rio Grande do Norte, Paraba,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia), norte de Minas Gerais e norte do Esprito
Santo. Essa rea abrange principalmente a regio do semirido brasileiro. Com
sua sede localizada em Fortaleza (CE), o BNB mantm 181 agncias nessa regio
do Brasil, atendendo a 1.989 municpios. Com essa estrutura, responsvel por
63,1% dos investimentos de longo prazo realizados em sua rea de atuao.
Como principal agente financeiro do governo federal para o desenvolvimento
da Regio Nordeste, o BNB compreende que, para obter xito em sua poltica
desenvolvimentista, faz-se necessria uma atuao relacionada melhor compreenso que cada indivduo deveria ter de sua cultura local, considerando tambm as influncias e contribuies das culturas nacional e universal.
O BNB tem, portanto, como premissa para o exerccio de sua misso a indissociabilidade entre a cultura de um povo e seu processo de desenvolvimento, reconhecendo que o acesso s manifestaes culturais um direito social bsico e
condio indispensvel para o pleno exerccio da cidadania.
Foi nesse contexto e nesse cenrio que a instituio criou o Programa BNB de Cultura.
Criao do Programa BNB de Cultura
O primeiro momento da criao do Programa BNB de Cultura foi a realizao de
um diagnstico com base no histrico de patrocnios do banco. A instituio tinha
um grande volume de apoio financeiro para a cultura da regio, oferecido desde a
sua instalao, em Fortaleza, em 1954. Foi feito um levantamento dessas aes rea-
294
295
proposta de edital, antes de sua publicao oficial, para colher sugestes sobre
as caractersticas do programa;
Os focos de atuao so definidos anualmente, com base na demanda apresentada no ano anterior, principalmente quanto definio do volume de recursos
para cada segmento da cultura;
O banco realiza o monitoramento dos projetos patrocinados, com o objetivo de
atingir as metas de cada ao aprovada;
So fornecidas a cada proponente, de forma confidencial, todas as notas atribudas aos projetos pela comisso julgadora;
Todos os proponentes contemplados com recursos do programa so obrigados
a apresentar prestaes de contas fiscal e de resultados, quando da concluso
dos projetos.
Histrico do programa
Entre 2005 e 2008, ou seja, em quatro edies do programa, o BNB investiu 9,5 milhes de reais, promovendo a realizao de 681 aes de cultura em 328 municpios
de sua rea de atuao. Ou seja, em quatro anos, o programa atingiu 16,49% de todos
os 1.989 municpios que esto dentro da rea de atuao do Banco do Nordeste.
296
297
Nesse mesmo perodo, foram apresentados 8.946 projetos, nos seis segmentos da
cultura que o programa contempla (artes cnicas, artes visuais, audiovisual, msica,
literatura e reas integradas/no especficas), de acordo com o quadro abaixo:
Quadro 1: Quantidade de projetos apresentados por segmento (2005-2008)
rea
Artes cnicas
Artes visuais
Audiovisual
Msica
Literatura
Integradas
Total
2005
2006
505
243
0
741
418
0
1.907
586
251
244
758
498
0
2.337
2007
456
269
207
731
364
0
2.027
2008
516
207
277
639
442
594
2.675
Total
2.063
970
728
2.869
1.722
594
8.946
%
23,1
10,8
8,1
32,1
19,3
6,6
100
Total
18.089,40
Total
298
299
2005
2006
2007
2008
Pessoa fsica
0,58
0,50
0,45
0,46
Pessoa jurdica
0,42
0,50
0,55
0,54
2005
2006
2007
2008
Pessoa fsica
0,55
0,34
0,29
0,32
Pessoa jurdica
0,45
0,66
0,71
0,68
Porcentual de projetos
Porcentual projetos
0,7
0,6
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0
At 100 mil
Mais de 100 mil
2005
2006
2007
2008
At 100 mil
0,22
0,53
0,59
0,59
0,78
0,47
0,41
0,41
Situao semelhante ocorre quando feito o recorte dos projetos habilitados e selecionados por capital e outras cidades. Apesar de a maioria dos
projetos ter origem nas capitais, so selecionadas principalmente as aes
realizadas em outras cidades. Em 2005, foram habilitados 1.124 projetos da
capital e 653 do interior. Nesse mesmo ano foram selecionados 104 projetos das capitais e 83 do interior. A partir de 2006, quando foi inserida a
prioridade para municpios de at 100 mil habitantes, a proporo capital/
interior inverteu-se, considerando o resultado final da seleo. Naquele ano,
o programa recebeu 1.207 projetos oriundos das capitais e 939 do interior.
A seleo contemplou 45 nas capitais e 100 no interior, ou seja, 68,97% dos
projetos contemplados tinham suas aes voltadas para o interior dos estados. Em 2007, a tendncia permanece a mesma. Foram habilitados 1.033
nas capitais e 726 no interior. No mesmo ano, foram 63 projetos aprovados
para capitais e 94 para o interior, uma proporo de 59,87%. Em 2008, permaneceu a distribuio de projetos selecionados em proporo maior para
o interior. Foram habilitados 1.396 projetos nas capitais e 1.056 nos outros
municpios. Nesse mesmo ano, foram selecionadas 79 aes para as capitais
e 113 para o interior. Isso aponta uma proporo de 58,85%. Para o edital de
2009, cuja seleo se encontra em andamento, foram habilitados 863 projetos nas capitais e 732 no interior. Outra tendncia que fica clara na anlise
dos nmeros que a diferena da quantidade de projetos habilitados nas
capitais e nos outros municpios fica mais equilibrada a cada ano, uma prova
da evoluo da qualidade dos projetos elaborados pelos agentes culturais
que esto fora das capitais. A seguir os grficos comparativos de projetos
habilitados e selecionados por capitais e outros municpios.
Quantidade de projetos
800
300
301
600
400
200
0
2005
2006
2007
2008
2009
2005
2006
2007
2008
2009
Capital
1.124
1.207
1.033
1.396
863
Outros
municpios
653
939
726
1.056
732
Porcentual de projetos
0,9
0,8
0,7
0,6
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0
60
40
20
0
2005
2006
2007
2008
2005
2006
2007
2008
Capital
104
45
63
79
Outros
municpios
83
100
94
113
Aps esses cinco anos de experincia com o edital do Programa BNB de Cultura,
e diante dos resultados alcanados com o estabelecimento de critrios que promovem a diminuio das diferenas histricas entre os municpios de sua rea de
atuao, o banco analisa a possibilidade de utilizar os ndices sociais para privilegiar projetos cujas aes sejam realizadas em comunidades com qualidade de vida
abaixo da mdia do Nordeste. Est sendo analisada a utilizao de dois ndices sociais: o ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o ndice de Excluso Social (IES).
O IDH considera trs variveis para um clculo por mdia aritmtica: esperana de
vida ao nascer, estoque de educao (porcentual de adultos alfabetizados e porcentual de matrculas no ensino formal) e renda per capita. O IES, desenvolvido pelo
pesquisador Jos Lemos, talvez seja mais adequado realidade do Nordeste do
Brasil. Ele considera cinco variveis, com mdia ponderada. So essas as variveis e
os seus respectivos pesos no clculo final: falta de gua tratada (PRIVAGUA: 0,1460),
falta de esgotamento sanitrio (PRIVSANE: 0,1471), falta de servio de coleta de
lixo (PRIVLIXO: 0,1310), populao analfabeta, maior de 10 anos (PRIVEDU: 0,3119),
renda diria igual ou menor que US$ 1,00 (PRIVREND: 0,2640) (Lemos, 2008).
Numa anlise dos nmeros apresentados nas edies do Programa BNB de Cultura, entre 2005 e 2008, constata-se que as cidades com melhores ndices sociais,
mesmo que com populao abaixo de 100 mil habitantes, ainda so as mais beneficiadas com o programa. Nos anos de 2007 e 2008, considerando o IDH, 57%
dos projetos foram para municpios com IDH melhor do que a mdia do Nordeste,
que de 0,719. Nos mesmos anos, considerando o IES, 60% dos projetos foram
realizados em cidades com o ndice inferior mdia do Nordeste, que de 36,07.
Ressalte-se que, para o IES, quando maior o ndice, maior a excluso cultural. A proposta do BNB inverter esses resultados, oferecendo prioridade para municpios
com IDH mais baixo ou IES mais alto, comparado com as mdias do Nordeste.
Quanto distribuio geogrfica dos projetos habilitados e selecionados, entre
os estados no h um equilbrio entre a proporo de projetos habilitados e selecionados. Nem sempre o estado que envia mais projetos recebe mais recursos.
Um exemplo claro so os resultados obtidos pelo estado da Paraba, cuja sequncia histrica analisada (2005-2008) sempre mostra um porcentual maior para projetos selecionados em relao aos habilitados, uma tendncia que aponta para a
melhor qualidade dos projetos apresentados. Em 2008, esse estado apresentou
6,8% dos projetos habilitados e obteve 12,5% dos selecionados. O Cear, ao contrrio, apesar de deter um porcentual muito grande dos projetos habilitados, tem
uma proporo de projetos selecionados sempre menor. O nmero alto de projetos apresentados pelo estado do Cear deve-se, principalmente, localizao
da sede do BNB em Fortaleza e presena de dois centros culturais do banco
no estado, localizados na capital, Fortaleza, e na regio do Cariri (sul do estado).
A seguir, todos os nmeros porcentuais de projetos selecionados e habilitados
para os estados inseridos na rea de atuao do Banco do Nordeste.
302
303
2005
Hab.
Sel.
2006
Hab.
Sel.
2007
Hab.
Sel.
2008
Hab.
Sel.
4,6%
4,8%
3,2%
4,1%
5%
4,5%
3,7%
4,7%
9,7%
8%
14,7%
15,2%
16,7%
14,1%
13,4%
14,1%
31,3%
27%
25,4%
24,8%
19,3%
13,4%
25,4%
21,3%
0,4%
0%
1,5%
2,1%
1%
2,5%
1,3%
1,6%
9,3%
9,6%
7,9%
6,9%
7,5%
8,3%
7,9%
7,8%
3,3%
3,2%
3,7%
4,1%
4,5%
7,6%
4,2%
6,3%
7,6%
9,6%
10,5%
14,5%
6,9%
8,9%
6,8%
12,5%
17,4%
19,7%
15,1%
14,5%
18,8%
12,7%
15%
8,3%
3,1%
8%
4,6%
4,2%
3,8%
7%
4,8%
5,7%
5,5%
6,4%
7,1%
6,2%
7,7%
14,6%
9%
10,9%
3,6%
3,7%
3,9%
3,4%
4,9%
6,4%
5,6%
6,3%
4,2%
0%
2,4%
0%
3,9%
0%
2,9%
0,5%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
O processo de anlise dos projetos do Programa BNB de Cultura se d mediante uma metodologia desenvolvida com o objetivo de evitar quaisquer distores ou tendncias entre as linguagens, bem como concorrncia desigual
entre as faixas de valores dos projetos. Ou seja, projetos de valores at 10 mil
reais concorrem entre si. Da mesma forma, projetos das faixas de 10.001,00 a
20 mil reais e 20.001,00 a 50 mil reais so avaliados separadamente, cada um
dentro da sua faixa. Isso promove uma igualdade de condies de anlise para
projetos de valores semelhantes.
Cada projeto recebe 35 notas, distribudas em sete variveis, atribudas por
cinco profissionais que integram as comisses julgadoras, nas linguagens contempladas pelo edital. Em cada varivel, so eliminadas, automaticamente, as
notas maiores e menores, sendo consideradas 21 notas, o que totaliza o mximo de 210 pontos por projeto. As variveis de anlise, com notas que variam
de 0 a 10, so: qualidade tcnica e/ou artstica, atendimento de interesse da
comunidade, recursos financeiros voltados prioritariamente para municpios
da rea de atuao do BNB menos providos de atividades culturais, formao
ou aperfeioamento profissional, viabilidade fsico-financeira, condies de
sustentabilidade e ineditismo da proposta.
Depois de totalizada essa pontuao, o Banco do Nordeste atribui a oitava varivel, potencialidade de consolidao da imagem do BNB e dos parceiros junto
sociedade, com o total de 30 pontos por projeto. Somados aos pontos da comisso julgadora, cada projeto pode receber um total de 240 pontos.
A comisso julgadora composta de 30 profissionais, representantes de todos os estados integrantes da rea de atuao do banco, sendo cinco por
cada uma das seis categorias. Esses avaliadores so selecionados entre aqueles profissionais de reconhecida capacidade tcnica dentro das reas em que
atuam. Cada comisso julgadora no pode ter mais de um integrante de um
mesmo estado. Os nomes dos avaliadores so divulgados aps a publicao
do resultado final do programa.
Com o objetivo de oferecer um retorno sobre a anlise dos projetos, o Banco do
Nordeste envia, para cada concorrente, o resultado da pontuao atribuda a sua
proposta, de forma que sejam identificados aqueles critrios em que o projeto foi
avaliado com notas mais baixas.
305
O contexto contemporneo e mundial de uma economia mais complexa, pressionada pela alta tecnologia, pela competio, pela necessidade de uma populao mais capacitada e com maior acesso ao conhecimento. A cultura passa a
ser um reservatrio de capacidades, ofcios e saberes que, em curto prazo, poder
garantir a mudana na qualidade de vida das pessoas, fazendo com que tenham
conscincia de que estar no mundo fazer parte dele.
pela cultura que podemos mudar esse quadro de misria global. Herbert de Sousa, em sua busca pela extino da fome no Brasil, j reconhecia esse caminho:
O efetivo ingresso do Brasil em um ciclo de desenvolvimento sustentvel e duradouro deve ser moldado a partir da diversidade cultural e das aspiraes mais
legtimas do povo brasileiro em seu direito cultura, afirmava o ministro Gilberto
Gil, no Programa Cultural para o Desenvolvimento do Brasil5.
Para as regies mais pobres do Brasil, especialmente o Nordeste, o governo
federal tem atuado na rea cultural desenvolvendo aes que se aliam ao trabalho de desenvolvimento sustentvel, tendo a cultura como fator essencial
preparao da sociedade e dos nordestinos, individualmente, para enfrentar os
desafios do sculo XXI. Esse conceito j est consolidado na direo do Banco
do Nordeste, agente do governo federal. De acordo com o presidente da instituio, Roberto Smith, a direo do Banco entende que o desenvolvimento
sem cultura um mito. O BNB, ao trabalhar a concesso de crdito para todas
as camadas da populao, tem tambm no vetor cultura um importante meio
de fortalecimento regional6.
306
O Programa Cultural para o Desenvolvimento do Brasil foi lanado pelo ministro Gilberto Gil em novembro de
2006 e sintetiza o trabalho realizado pelo Ministrio da Cultura entre 2003 e 2006. a sntese da experincia de
uma gesto que propiciou a consolidao e o fortalecimento institucional do MinC.
6
Discurso do presidente do BNB, Roberto Smith, realizado no evento de inaugurao do Centro Cultural Banco
do Nordeste em Sousa (PB), em 25 de junho 2007.
5
307
Henilton Menezes
jornalista e gerente de cultura do Banco do Nordeste do Brasil (BNB). No BNB administra
os centros culturais de Fortaleza (CE), Sousa (PB) e Juazeiro do Norte (CE) e o Programa
BNB de Cultura, edital de patrocnios da instituio. Produtor musical, produtor-executivo
cinematogrfico, apresentador de rdio e diretor cultural do Instituto Nordeste Cidadania.
Publicado por
Observatrio Ita Cultural e
Fundao Casa de Rui Barbosa
Organizao e idealizao
Lia Calabre
Organizao do material
Josiane Mozer
Apresentao
Maurcio Siqueira
Referncias bibliogrficas
ADORNO, Theodor. Indstria cultural e sociedade. So Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOTELHO, Isaura; FIORE, Maurcio. O uso do tempo livre e as prticas culturais na
Regio Metropolitana de So Paulo relatrio da primeira etapa da pesquisa. So
Paulo: Centro de Estudos da Metrpole, 2005.
CANCLINI, Nstor Garcia. Consumidores e cidados: conflitos multiculturais da globalizao. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
_____. Culturas hbridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. So Paulo:
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TORO, Jose Bernardo. A construo do pblico: cidadania, democracia e participao. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2005.
Produo editorial
Caio Camargo
Carolina Miranda
308
309
Projeto grfico
Luciana Orvat
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Felipe Daros
Ricardo Daros
Reviso de texto
Kiel Pimenta
Tratamento de imagens
Humberto Pimentel