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Aviso Aos Náufragos - R Kurz (Usar Textos Indiv)
Aviso Aos Náufragos - R Kurz (Usar Textos Indiv)
Aviso Aos Náufragos - R Kurz (Usar Textos Indiv)
htm (11/11/2010)
Ttulo original: Avis aux naufrags - Chroniques du capitalisme mondialis en crise
Lignes & Manifeste, Paris, 2005
Robert Kurz
REALISTAS E FUNDAMENTALISTAS
De regresso ao sculo XVII: a auto-iluso ideolgica do Ocidente
Na imagem que faz de si mesmo, o Ocidente um mundo livre, democrtico e
racional, ou seja, o melhor dos mundos possveis. Do seu ponto de vista, esse mundo
pragmtico e aberto, sem pretenses utpicas ou totalitrias. Cada um deve ser feliz
segundo seu prprio modo de ser, de acordo com a promessa de tolerncia feita pelo
Iluminismo europeu. Os representantes desse mundo se dizem realistas. Afirmam que
suas instituies, seu pensamento e sua ao encontram-se em harmonia com as leis
naturais da sociedade, com a realidade atual. O socialismo, pelo que ouvimos,
desmoronou porque era irrealista. Junto com o socialismo, foi definitivamente
enterrada toda utopia de uma mudana fundamental da sociedade. E os antigos crticos
do way of life ocidental agora se acotovelam nas bilheterias do realismo para
comprarem a tempo seu ingresso na economia de mercado globalizada.
Esse idlio da tolerncia e da democracia econmica mundial, no entanto, produziu um
novo inimigo. Com a morte do socialismo, entrou em cena o fundamentalismo religioso.
O fundamentalismo feio, muito mais feio do que o socialismo jamais poderia s-lo.
Aos olhos dos idelogos ocidentais, ele possui feies rabes muito acentuadas. Nos
ltimos anos, o Pentgono comeou a conceber o fundamentalismo islmico como um
substituto para o papel de inimigo histrico. Como nos tempos da Guerra Fria, so
subvencionadas na nova constelao mundial todas as foras polticas que se declaram
contra o fundamentalismo e a favor do Ocidente, por mais corruptos e cruis que sejam
os regimes frente de tais foras. Mas o novo clculo estratgico com que os
especialistas ocidentais procuram justificar sua existncia insiste em deixar resto. Ao
contrrio do socialismo, o fundamentalismo no mais um adversrio racional,
politicamente definido e previsvel em suas aes. Alm de no possuir um centro de
atividades nitidamente localizvel no mundo, ele tambm no se restringe apenas ao
islamismo. Em muitas regies da frica no-muulmana e em toda a Amrica Latina,
seitas fundamentalistas crists assumiram nos ltimos anos o lugar antes ocupado pelos
movimentos socialistas.
A mesma iluso social do fundamentalismo religioso floresce tambm nos prprios
centros econmicos ocidentais. Foi um choque para os Estados Unidos descobrirem que
os responsveis pelo devastador atentado a bomba em Oklahoma City no eram
terroristas islmicos e estrangeiros, mas sim cidados brancos e norte-americanos,
adeptos de uma faco ideolgica crist. E quem poderia imaginar que num pas como o
Japo, considerado o aluno exemplar do sucesso econmico, um movimento radical que
prega o final dos tempos, o Aum Shinrikyo comandado por Shoko Asahara, pudesse
influenciar tantas pessoas e at aliciar adeptos no Exrcito japons?
Os fanticos religiosos tomam a ofensiva por toda parte. De onde eles vm? Com
certeza no de outros planetas. Vm justamente do interior do prprio mundo dominado
pela economia de mercado. O realismo neoliberal, na verdade, conhece muito mal as
pessoas. Ningum mais pode negar que no mundo do liberalismo econmico a misria
social se alastra como um incndio de vastas propores. No apenas no Brasil, mas
tambm em todo o mundo a liberdade e tolerncia ocidentais do provas de um cinismo
prprio democracia do apartheid, como bem a denominou Jurandir Freire Costa
(Universidade do Rio). Ao mesmo tempo, no apenas nas favelas que os vnculos
sociais so rompidos, mas em todas as classes sociais. Tanto o efetivo processo
econmico quanto a ideologia neoliberal tendem a dissolver as relaes humanas na
economia. O economista norte-americano Gary S. Becker foi laureado, em 1992, com o
Prmio Nobel por desenvolver a hiptese de que todo comportamento humano (at
mesmo o amor) orientado pela relao custo-benefcio e pode ser representado
matematicamente.
Os realistas no tm resposta para a misria social nem para a misria das relaes e
sentimentos humanos num mundo inteiramente racionalizado pela economia; eles
apenas encolhem os ombros e passam ordem do dia imposta pelo mercado. Mas a
misria no pode permanecer calada, tem de encontrar sua prpria linguagem. Como
porm a linguagem racional do socialismo est morta, o irracionalismo da linguagem
religiosa faz seu retorno a uma sociedade confusa s que agora com uma gramtica
muito mais selvagem e funesta. O neoliberalismo econmico clama economia de
mercado e faz-se ouvir o eco pseudo-religioso fim do mundo. Agora se tornou
evidente que o socialismo no era apenas uma ideologia, mas tambm uma espcie de
filtro tico sem o qual a civilizao moderna totalmente incapaz de existir. Privada
desse filtro, a economia de mercado sufoca em sua prpria imundcie, que deixou de ser
digerida institucionalmente.
Ao longo de quase 150 anos, at a dcada de 70 deste sculo, todo surto de
modernizao econmica desencadeava simultaneamente uma reao revolucionria da
juventude intelectual. A solidariedade aos fracos e oprimidos foi sempre um forte
impulso oposio e crtica radical, inclusive entre a juventude dourada das classes
mais altas da sociedade. Aps a vitria global do mercado, esse impulso extinguiu-se.
Os golden boys e as golden girls da era neoliberal querem apenas jogar na Bolsa. A
juventude da classe mdia, numa atitude narcisista, est desmoralizada e deixou de lado
o trabalho intelectual. Seu esprito capitulou diante do mercado globalizado. Seja no
Egito ou na Arglia, no Brasil ou na ndia, jovens ocidentalizados sonham em ganhar
dinheiro como engenheiros ou mdicos, jogadores de futebol ou corredores de
atletismo; no se sentem mais responsveis pela misria social.
E tambm no Ocidente a classe mdia mergulha no cinismo social. Na Alemanha, entre
certos jovens que conduzem carros de luxo, tornou-se chic um autocolante com os
dizeres: A sua pobreza desgosta-me Os intelectuais estetizam a misria e a exploram
comercialmente; os sofrimentos daqueles que passam fome so transformados em
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Robert Kurz
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Robert Kurz
A LUZ DO ILUMINISMO
O simbolismo da modernidade e a expulso da noite
Ainda hoje, aps mais de 200 anos, continuamos ofuscados pelo belo claro do
iluminismo burgus. A histria da modernizao compraz-se em metforas da luz. O sol
radiante da razo h de penetrar as trevas da superstio e fazer ver a desordem do
mundo, para que enfim a sociedade seja configurada segundo critrios racionais. A
escurido no se manifesta como a outra faceta da verdade, mas como o reino negativo
do demnio. J no Renascimento, os humanistas polemizavam contra seus opositores
tachando-os de ''obscurantistas''. ''Mais luz!'', ter clamado Goethe em 1832, prostrado
em seu leito de morte. Como clssico, cumpria-lhe uma sada em grande estilo.
Os romnticos bateram-se contra esta luz fria da razo e votaram-se novamente
religio, de modo sinttico. Em vez da racionalidade abstrata, eles propalaram um
irracionalismo no menos abstrato. Assim, em lugar de metforas da luz, eles se
deliciaram em metforas das trevas. Novalis escreveu um ''Hino Noite''. Ora, esta mera
inverso do simbolismo iluminista na verdade passava ao largo do problema. Inaptos a
superar a duvidosa unilateralidade dos iluministas, os romnticos s fizeram por ocupar
o plo contrrio da modernizao e tornaram-se de fato ''obscurantistas'' de uma forma
de pensar reacionria e clerical.
Porm o simbolismo da modernidade tambm pode ser criticado por razes
diametralmente opostas: como paradoxal desrazo da prpria razo capitalista. Pois
sem dvida curioso como as metforas iluministas da luz cheiram, por assim dizer, a
misticismo chamuscado. A noo de uma fonte luminosa de brilho sobrenatural, como
sugere a idia da razo moderna, relembra a descrio do reino dos cus transfundido
pela flama divina, e dos sistemas religiosos do Extremo Oriente j se conhece o
conceito de ''iluminao''. Embora a luz da razo iluminista seja terrena, ela assumiu um
carter estranhamente transcendental. O lampejo celeste de um Deus perfeitamente
indevassvel foi apenas secularizado na banalidade monstruosa do fim em si mesmo
capitalista, cujo trato cabalstico com a matria terrena consiste na acumulao absurda
do valor econmico. Isto no razo, mas supremo desvario; e o que a rebrilha o
fulgor do absurdo, que aflige e ofusca a vista.
A razo irracional do Iluminismo quer totalizar a luz. Essa luz, entretanto, no um
mero smbolo no reino do pensamento, mas possui antes um forte significado
socioeconmico. Era fatal, neste aspecto, que o marxismo e o movimento histrico dos
trabalhadores tivessem compreendido a si mesmos como os legtimos herdeiros do
Iluminismo e de suas metforas da luz. Na ''Internacional'', o hino do marxismo, fala-se
do maravilhoso futuro socialista: ''Ento brilhar o sol sem cessar''. Um caricaturista
alemo tomou essa frase ao p da letra e mostra, no ''reino da liberdade'', uns homens
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suarentos que erguem a vista ao sol escaldante e suspiram: ''J faz trs anos que ele
brilha e deixou de se pr''.
Isso no apenas uma piada. De certa forma, a modernizao efetivamente
''transformou a noite em dia''. Na Inglaterra, que como se sabe foi a precursora da
industrializao, a iluminao a gs foi introduzida j em incios do sculo 19 e logo
expandiu-se por toda a Europa. Ao trmino do mesmo sculo, as lmpadas a gs
cederam lugar luz eltrica. H muito se provou medicinalmente que a quebra da
distino entre dia e noite, sob a luz fria dos sis artificiais, afeta o ritmo biolgico do
homem e causa danos psquicos e corporais. Por que ento a forosa iluminao
planetria, que hoje alcana o mais afastado rinco da Terra?
Karl Marx, ele prprio um herdeiro do Iluminismo, declarara com acerto que o
infatigvel ativismo da produo capitalista ''desmedido''. Contudo esta falta de
medida no pode tolerar em princpio nenhum tempo que permanea ''escuro''. Pois o
tempo da escurido tambm o tempo do descanso, da passividade, da contemplao. O
capitalismo requer, ao contrrio, a ampliao de sua atividade s raias do esforo fsico
e biolgico. Esses limites so temporalmente determinados pela rotao da Terra sob
seu eixo, ou seja, as 24 horas completas do dia astronmico, que tm um lado claro
(voltado para o sol) e outro escuro (de costas para o sol). O pendor do capitalismo
totalizar o lado ensolarado e tomar posse do dia astronmico como um todo. O lado
anoitecido perturba este impulso. A produo, circulao e distribuio das mercadorias
h de ''varar a noite'', pois ''tempo dinheiro''. Ao conceito de ''trabalho abstrato'' na
moderna produo de mercadorias corresponde no apenas seu prolongamento absoluto,
mas tambm sua abstrao astronmica. Tal processo anlogo alterao da medida
de espao. O sistema mtrico foi introduzido em 1795 pelo regime da Revoluo
Francesa e difundiu-se com tanta rapidez como a iluminao a gs. Na Alemanha, a
transio para esse sistema deu-se em 1872. As medidas de espao baseadas no corpo
humano (p, cbito etc.), que eram to diferenciadas quanto as culturas humanas, foram
substitudas pelo metro astronmico abstrato, correspondente quadragsima
milionsima parte do permetro da Terra. Essa unificao abstrata das medidas de
espao espelhava a imagem mecnica do mundo da fsica newtoniana, que por sua vez
serviu de exemplo economia mecnica da cincia de mercado moderna, do modo
como a analisara e propalara Adam Smith (1732-1790), o fundador da economia. A
imagem do universo e da natureza como uma grande mquina nica coincidia com a
mquina universal econmica do capital, e as medidas astronmicas tornaram-se uma
forma comum da mquina universal fsica e econmica. Isso no se aplica apenas ao
espao, mas tambm ao tempo. Ao metro astronmico, a medida do espao abstrato,
corresponde a hora astronmica, a medida do tempo abstrato; e estas so tambm as
medidas da produo capitalista de mercadorias.
S com o tempo abstrato foi possvel ao dia do ''trabalho abstrato'' avanar sobre a noite
e abocanhar o tempo de descanso. O tempo abstrato pde desligar-se de relaes e
objetos concretos. A maioria dos relgios antigos, como a ampulheta e a clepsidra, no
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apontavam ''que horas eram''; antes, eles eram aferidos segundo processos concretos, a
fim de designarem o ''tempo apropriado''. Talvez se pudesse compar-los a um contador
de minutos que soa o toque de campainha para dizer se o ovo est quente ou cozido.
Aqui, a quantidade do tempo no abstrata, mas sim norteada por uma qualidade
especfica. O tempo astronmico do ''trabalho abstrato'', ao contrrio, destaca-se de toda
qualidade. A diferena visvel tambm quando lemos por exemplo em documentos
medievais que a jornada de trabalho dos servos nas glebas devia durar ''da alvorada at o
meio-dia''. Ou seja, a jornada de trabalho era mais reduzida do que hoje no apenas em
termos absolutos, mas tambm relativos, por variar conforme a estao e ser menor no
inverno que no vero. A hora astronmica abstrata, por sua vez, permitiu fixar o incio
da jornada ''s 6 horas'', sem considerar as estaes do ano nem os ritmos do corpo.
Eis por que a poca do capitalismo tambm a era dos ''despertadores'', dos relgios
que, a um toque estridente, arrancam os homens ao sono para impeli-los a locais de
trabalho banhados em luz artificial. E, uma vez antecipado o incio da jornada para a
noite, nada mais bvio do que avanar o fim da jornada noite adentro. Essa mudana
possui tambm seu lado esttico. Como o meio ambiente de certo modo
''desmaterializado'' pela racionalidade empresarial, j que a matria e suas correlaes
tm de submeter-se aos critrios de rentabilidade, ele tambm privado de sua
dimenso e proporo por esta mesma racionalidade. Quando por vezes certos edifcios
antigos nos parecem de algum modo mais belos e confortveis do que os modernos, e
quando ento declaramos que eles, em comparao aos atuais edifcios ''funcionais'', nos
impressionam de algum modo como irregulares, isso remonta ao fato de que suas
medidas so apropriadas s medidas corporais e suas formas, s da paisagem. A
arquitetura moderna, pelo contrrio, utiliza medidas astronmicas de espao e formas
''descontextualizadas'', ''destacadas'' do meio circundante. O mesmo vale para o tempo.
Tambm a moderna arquitetura do tempo se encontra despida de proporo e contexto.
No apenas o espao tornou-se mais feio, mas tambm o tempo.
Nos sculos 18 e incio do 19, tanto o prolongamento absoluto quanto o relativo da
jornada de trabalho, por meio da introduo da hora astronmica abstrata, foram
sentidos como uma tortura. Por muito tempo, houve uma luta desesperada contra o
trabalho noturno ligado industrializao. Trabalhar antes do amanhecer e aps o
crepsculo era, por assim dizer, imoral. Quando na Idade Mdia calhava de os artesos
trabalharem noite por razes de prazo, cabiam-lhes lautos repastos e salrios
principescos. O trabalho noturno era uma rara exceo. E consta das ''grandes'' faanhas
do capitalismo ter logrado converter o aguilho do tempo em regra geral da atividade
humana.
Nada mudou com a paulatina reduo da jornada absoluta de trabalho desde os
primrdios do capitalismo. Pelo contrrio, o chamado trabalho por turnos ampliou-se
cada vez mais no sculo 20. Com auxlio de dois ou mesmo trs turnos, as mquinas so
mantidas em funcionamento quase ininterrupto, com breves pausas para a troca de
pessoal, manuteno e limpeza. Lojas e magazines tambm devem estender ao mximo
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seu horrio, beirando o limite das 24 horas. Na Alemanha, este ano, tivemos um debate
sobre o horrio legal de fechamento do comrcio, que at h pouco estava fixado no
patamar das 18h30. E desde 1 de novembro de 1996 prolongou-se at s 20h. Em
muitos pases, como nos Estados Unidos, no h horrio de fechamento definido em lei,
e inmeros estabelecimentos ostentam a tabuleta: ''Aberto 24h''. Desde que a tecnologia
microeletrnica de comunicao globalizou o fluxo monetrio, a jornada financeira
transita sem interrupo de um hemisfrio a outro. ''Os mercados financeiros nunca
dormem'', diz o anncio de um banco japons.
a luz da razo iluminista que clareia os turnos da noite. medida que a concorrncia
se faz total, o imperativo externo e social transforma-se tambm numa coao interna do
indivduo. O sono passa a ser um inimigo to srdido quanto a noite, pois enquanto se
dorme, oportunidades so perdidas e a guarda irremediavelmente baixada ao ataque
alheio. O sono dos indivduos em uma economia de mercado torna-se cada vez mais
curto e leve, como o de um animal selvagem e isso na proporo direta do seu desejo
de ''sucesso''. O tormento do trabalho noturno mecnico, imposto por outrem, manifestase ao nvel da administrao como recusa ''voluntria'' ao sono. Existem at seminrios
nos quais se faculta o exerccio de tcnicas de minimizao do sono. Com pia seriedade,
os alunos de administrao hoje afirmam: ''O empresrio ideal nunca dorme'',
exatamente como os mercados financeiros!
Ora, a submisso do homem ao ''trabalho abstrato'' e sua medida temporal astronmica
impossvel sem um controle total. Controle universal requer igualmente observao
universal, e a observao s possvel na luz: pouco mais ou menos como a polcia, no
interrogatrio, dirige um facho de luz ao rosto do delinquente. No por acaso o termo
''iluminismo'', em alemo, possui uma acepo militar, qual seja, o ''reconhecimento do
inimigo''. E uma sociedade em que cada um torna-se inimigo dos demais e dele prprio,
pois a todos cabe servir o mesmo Deus secularizado do capital, converte-se com
necessidade lgica num sistema de observao e auto-observao total.
Num universo mecnico, tambm o homem tem de ser mquina e padecer o tratamento
da maquinaria. A luz do Iluminismo aprestou-o para tanto e o fez ''transparente''. O
filsofo francs Michel Foucault revela em seu livro ''Vigiar e Punir'' (1975) como essa
''visibilidade'' total tornou-se uma armadilha histrica. Em princpios do sculo 19, o
capitalismo ainda ensaiava a observao total por meio de uma ''pedagogia
penitenciria'', nos moldes desenvolvidos pelo filsofo utilitarista e liberal Jeremy
Bentham (1748-1832), como um atilado sistema de organizao, de punio e at de
arquitetura para presdios, fbricas, escritrios, hospitais, escolas e reformatrios.
A esfera pblica do mercado no propriamente o mbito da livre comunicao, mas
uma esfera da observao e do controle. Isso nos recorda da utopia negativa ''1984'', de
George Orwell. Se esse controle, nas ditaduras totalitrias, era exercido externamente
pelo aparato burocrtico do Estado e da polcia, na democracia ele tornou-se
autocontrole introjetado, suplementado pela mdia comercial, na qual os holofotes dos
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Robert Kurz
POPULISMO HISTRICO
A confuso de sentimentos burgueses e a busca de bodes expiatrios
O mais dileto de todos os passatempos sociais a busca de culpados. Quando algo sai
errado em grande escala, quase nunca se permite que a prpria coisa seja posta em
xeque, o problema h de estar nas pessoas. No se responsabilizam propsitos dbios,
relaes sociais destrutivas ou estruturas contraditrias, e sim a falta de vontade, a
escassa competncia ou mesmo a m-f das pessoas. Bem mais fcil fazer rolar
cabeas do que subverter relaes e modificar formas sociais.
Essa tendncia espontnea da conscincia irrefletida para digerir dificuldades mediante
atribuies subjetivas de culpa vai ao encontro da ideologia do liberalismo: afinal, ela
subjetivou de cima a baixo a questo das causas dos problemas sociais. A ordem
reinante do sistema social lhe foi alada a dogma de uma lei natural, fora de qualquer
possibilidade de avaliao da que a causalidade de experincias negativas no poder
recair seno nos sujeitos, em sua existncia imediata. Cada qual culpado de seus
prprios infortnios ou fracassos, mas tambm crises e catstrofes sociais s podem ser
causadas por pessoas ou grupos subjetivamente culpados. O erro nunca est no prprio
sistema, sempre foi algum que cometeu algum desacerto ou crime.
Esse ponto de vista, embora profundamente irracional, um alvio para a conscincia,
porque ento ela no precisa mais se dar ao trabalho de examinar criticamente as
condies da prpria existncia. Problemas em sua essncia impessoais da estrutura
social e do seu desenvolvimento so identificados a certas pessoas, grupos sociais etc.
ou descarregados simbolicamente sobre estes. No Velho Testamento, esse mecanismo
descrito como a funo do "bode expiatrio", ao qual a sociedade transfere seus pecados
e que depois apedrejado. Esse mtodo da personalizao superficial de problemas e
desastres pode trilhar dois caminhos.
O primeiro consiste em acusar os indivduos do respectivo grupo ou instituio. Ou as
pessoas e rgos dirigentes so denunciados pelo z-povinho como representantes
incapazes ou estes viram o feitio contra o feiticeiro e incriminam o z-povinho de
incompetentes, de no terem dado duro o suficiente etc. Na poltica moderna, um tal
mecanismo poltico de imputao de culpa como que o princpio de seu
funcionamento. O povo destrata os polticos e os polticos destratam o povo. E, como se
sabe, nenhum partido de oposio poltica remonta os problemas sociais ao sistema da
poltica como tal e ao modo de produo subjacente, mas somente ao fato de se
encontrarem seus concorrentes ao leme do Estado e fazerem "m poltica".
O segundo mtodo ainda mais irracional e perigoso. As dificuldades sociais so
projetadas de modo genrico a um ou mais grupos de pessoas, que simbolizam pura e
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concorrncia. Ningum e todos podem s-lo. Nos anos 20, Fritz Lang, em seu filme
clssico "M - O Vampiro de Dsseldorf", mostrou de modo aflitivo como a caada a um
desconhecido assassino sexual na metrpole Berlim, com o pano de fundo da crise
econmica mundial, se funde a uma sndrome psicolgica coletiva que gera um clima
difuso de suspeita, denncia e cega violncia: a sociedade revela uma careta que
pouco menos assustadora que a do prprio assassino.
Na presente crise mundial, a mesma sndrome faz-se notar com ressonncias mltiplas
nos meios de comunicao eletrnicos. Poltica e mdia praticam cada vez mais um
populismo histrico, que desencadeia em ltimo recurso o linchamento. Quando na
Inglaterra os tablides publicaram os nomes e endereos de supostos pedfilos, uma
multido furiosa levou os indigitados ao suicdio e destruiu o consultrio de uma
pediatra, porque no sabia distinguir "pedofilia" de "pediatria" (um belo indcio da
situao do ensino britnico). Tais incidentes mostram como j vai avanada a parania
social. Uma sociedade que no quer mais desvendar os seus prprios segredos est
condenada a instaurar a caa s bruxas.
Original HYSTERISCHER POPULISMUS em www.exit-online.org. Publicado na
Folha de S. Paulo de 18.03.2001 com o ttulo POPULISMO HISTRICO e traduo de
Jos Marcos Macedo
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Robert Kurz
a fica claro como os dois lados so quase almas gmeas: ambos so igualmente adeptos
da "razo instrumental". Pois a ambos se aplica aquilo que o estranho capito Ahab diz,
na Moby Dick de Melville, grande parbola da modernidade: Todos os meus meios so
sensatos, s meu objetivo desvairado. A economia do terror e o terror da economia
correspondem-se como imagens em um espelho. Desse modo, o autor de um atentado
suicida se mostra como a consequncia lgica do indivduo isolado na concorrncia
universal, que no lhe oferece perspectivas. O que ento se revela a pulso de morte
do sujeito capitalista. E que essa pulso de morte inerente prpria conscincia
ocidental, e no apenas desencadeado pela desesperana intelectual do sistema
totalitrio de mercado, o que do provas os casos frequentes de psicopatas que
invadem escolas norte-americanas para assassinar em srie filhos da classe mdia e o
atentado de Oklahoma, reconhecidamente um produto genuno do delrio interior dos
Estados Unidos. O ser humano reduzido a funes econmicas enlouquece da mesma
maneira que aquele cuspido como "suprfluo" pelo processo de valorizao. A razo
instrumental dispensa seus filhos.
Como o ncleo irracional de sua ideologia tal e qual o do fundamentalismo islmico, o
capitalismo nada mais pode que conclamar a uma cruzada, "guerra santa" da
"civilizao" ocidental. Somente vtimas como as colunistas mais famosas dos EUA,
corretores em Manhattan e cidados da liberdade ocidental so vistas como vtimas reais
e pranteadas em missas sua memria. Por outro lado, os civis iraquianos mortos e
crianas srvias esfaceladas por bombas atiradas de uma altura de dez quilmetros,
porque a pele preciosa dos pilotos americanos no podia sofrer um arranho, no
aparecem como vtimas humanas, e sim como "efeitos colaterais". Mesmo diante dos
mortos o apartheid global no cessa. O conceito ocidental de direitos humanos contm
como pr-requisito tcito saber se o indivduo tem valor de venda e poder de compra.
Quem no preenche esses critrios na verdade no mais um ser humano, mas uma
poro de biomassa. Dessa maneira, o fundamentalismo ocidental divide o mundo no
"reino" supostamente civilizado, de um lado, e nos "novos brbaros", de outro como o
jornalista francs Jean Rufin j constatava no incio dos anos 90.
O imprio balana. Dentro de poucos meses o mito da invulnerabilidade econmica ser
desmascarado pela crise da new econonmy. O mito da invulnerabilidade militar est
agora em chamas com o Pentgono. O pensamento utilitrio do funcionalismo de elite
tenta tirar proveito at mesmo dessa catstrofe. Pois, com os mercados financeiros
despencando, consegue-se de repente contedo para uma verso forjada dos fatos: no
a ordem vigente que est obsoleta, se outras bolhas financeiras esto estourando e a
economia mundial de mercado porventura est entrando em colapso. O "choque
externo" do ataque terrorista, sim, que teria sido a causa disso segundo Wim
Duisenberg, presidente do Banco Central Europeu. O fracasso do sistema redefinido
pela maldade externa dos outros, "infiis". Mas isso no consegue apagar o acontecido.
Ao mesmo tempo, espalha-se uma onda de propaganda de guerra igualmente histrica e
sentimentalide, como se estivssemos vivendo o agosto de 1914. Por toda parte esto
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indstria, os volumes de gua escoam e se infiltram ali numa medida muito menor do
que o faziam no passado. Os crticos ecologistas demonstraram, verdade, esses nexos,
alertando sobre as catstrofes que agora se manifestam realmente. Mas eles sempre
evitaram colocar em questo o princpio econmico causador como tal. Tericos e
publicistas ecologistas, partidos "verdes" e ONGs como o Greenpeace deixaram-se
render todos juntos aos princpios "eternos" do capitalismo. Nunca quiseram algo
diferente de uma espcie de "lobby da natureza", inserido no quadro exato da lgica que
destri a biosfera. Todo o debate sobre o chamado "desenvolvimento sustentvel"
ignora o carter do princpio abstrato da valorizao e do crescimento, que no possui
nenhum senso para as qualidades materiais, ecolgicas e sociais e, por isso, tambm
completamente incapaz de tom-las em considerao. Absurdo por inteiro o projeto de
querer que a economia industrial contabilize em seus balanos os custos da destruio
da natureza que ela tem acumulado. A essncia da economia industrial consiste, claro,
justamente no fato de externalizar sistematicamente os custos, que por fim j no podem
mais ser pagos por nenhuma instncia. Se ela devesse parar com isso, j no seria mais
nenhuma economia industrial, e os recursos sociais para o "processo de metabolismo
com a natureza" teriam de ser organizados em uma forma qualitativamente diferente.
uma iluso que a economia industrial deva renegar seu prprio princpio. O lobo no
vira vegetariano, e o capitalismo no vira uma associao para a proteo da natureza e
para
a
filantropia.
Um
"luxo"
Como era de esperar, todas as conferncias de cpula acerca da proteo do clima e da
sustentabilidade, do Rio a Johannesburgo, passando por Kyoto, fracassaram de forma
lamentvel, e a resistncia "sustentvel" dos EUA, que no querem perder a alegria de
seu consumo de potncia mundial, no foi a ltima das razes. Uma vez que o
reequipamento perfeitamente possvel com outras tecnologias pesaria nos clculos da
economia industrial e estreitaria os lucros, ele recusado, e o gs-estufa continua a ser
emitido em grandes quantidades; da mesma forma, o desgaste do ambiente segue
desenfreado. Entrementes a disposio para intervenes ecolgicas na economia
chegou a recuar de maneira dramtica, porque o fim do capitalismo de bolhas
financeiras ameaa estrangular a economia mundial e, por isso, a proteo da natureza e
do clima parece ser apenas um "luxo", o primeiro a ser cortado. Sob a impresso da
crise econmica, cada vez mais ex-ecoativistas proeminentes se confessam filhos do
capitalismo, no querendo saber mais nada de uma limitao da economia industrial.
Um deles o [cientista poltico" dinamarqus Bjrn Lomborg [autor de "O
Ambientalista Ctico", ed. Campus", que se tornou o predileto da imprensa econmica e
pode viajar a toda parte como missionrio bem pago da indstria, j que remete a
catstrofe do clima para o reino da fantasia e assevera que, com a ajuda da economia de
mercado global, tudo ficar cada vez melhor e at a natureza desabrochar pra valer.
Sem
esfriamento
Tomada de entusiasmo por essa falsificao descarada dos fatos, a "Wirtschaftswoche",
o rgo central do neoliberalismo alemo, dedicou toda uma srie s teses de Lomborg.
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Robert Kurz socilogo e ensasta alemo, autor de "Os ltimos Combates" (ed.
Vozes) e "O Colapso da Modernizao" (ed. Paz e Terra). Ele escreve mensalmente na
seo
"Autores",
do
Mais!.
Traduo de Luiz Repa.
http://planeta.clix.pt/obeco/
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CONTRA-REALISMO
Robert Kurz
Os conflitos sociais so sempre tambm uma luta por conceitos, pelo "poder de
definio" sobre a forma como os problemas podem ser encarados. Tambm se poderia
dizer que os problemas so definidos, quase naturalmente, de acordo com os critrios da
lgica do sistema dominante. E os conceitos assumem ento a cor correspondente, ao
jeito do camaleo. No existe uma proibio expressa ou uma censura, pois o
mecanismo da construo dos conceitos e o processo da definio decorre de forma
muito mais subtil. Uma determinada forma do discurso manifesta-se de determinado
modo e, de repente, toda a gente comea a falar a mesma linguagem, aparentemente
com profunda convico. Principalmente no plano scio-econmico, institui-se na
investigao cientfica, nos media e na classe poltica uma regulamentao geral do
discurso, um "discurso do consenso", que funciona ainda mais rigidamente por no ter
sido fixado administrativamente.
Esta situao baseia-se no facto de a cincia, os media e a poltica no poderem
funcionar de forma to estpida e automtica como a mo invisvel do mercado. Eles
instituem o lado "subjectivo" em relao s leis "objectivas" do sistema. A
conformidade com os imperativos capitalistas no por isso nunca dada por si prpria,
mas tem sempre de ser produzida num processo discursivo. Uma funo essencial deste
discurso consiste em os participantes alinharem uns contra os outros com base no
"boletim meteorolgico" capitalista, ao qual preciso adaptar todas as relaes sociais e
culturais. precisamente para isso que serve a regulamentao do discurso. Neste
sentido, cincia, media e classe poltica constituem uma espcie de cartel que zela por
que ningum saia dos carris. institudo um quadro geral em que, se, por um lado, a
prpria clientela enredada na conversa fiada do marketing, por outro, agarrada pelo
freio.
A semntica do controlo ideolgico dominada por quem detm o poder bsico de
definir o que a "realidade" e, por consequncia, a "Realpolitik" (poltica realista). O
cartel semntico hoje dominante erigiu as exigncias da administrao capitalista da
crise em princpio da realidade e redefiniu, em correspondncia, o conceito de reforma.
O antigo "pathos" social e emancipatrio do reformismo, tal como se constituiu no
decurso do desenvolvimento histrico da contratao colectiva, do "Estado de bem
estar" e do servio pblico, agora, precisamente ao contrrio, instrumentalizado para a
contra-reforma. As campanhas de privatizao e de restries sociais subordinam-se ao
lema: "ns somos a modernidade". Quanto mais privado e mais barato melhor.
Todos se preocupam com a possibilidade de fazer as "reformas" contra "o eterno
passado". Prope-se o compromisso na "conformao da sociedade". Por exemplo:
reduz-se a despesa em 5 ou 10% ? Tem de ser fechado o hospital ou a creche? Devem
eliminar-se os benefcios dos doentes de cancro ou dos deficientes? Faz-se um aumento
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Robert Kurz*
IMPERIALISMO DE CRISE
6 Teses sobre o carcter das novas guerras de ordenamento mundial
1. O capitalismo no uma sesso budista e no pode ser entendido com uma
compreenso ahistrica. A lgica identitria do princpio da valorizao no causa o
eterno retorno do mesmo, mas um processo histrico irreversvel com situaes
qualitativamente diversas. A constelao mundial em vigor a cada dado momento
apenas pode ser explicada com base no desenvolvimento do capital mundial. De cada
vez que se esgota uma determinada fase da valorizao, tambm as instituies, os
conceitos e as ideologias polticas que a ela se encontram associados se tornam
obsoletos. Isto tanto mais se aplica no caso de o sistema mundial ter atingido um grau
de maturidade como o atingiu no final do sculo XX.
A terceira revoluo industrial, causada pela microelectrnica, comeou nos anos
oitenta a colocar um limite histrico intrnseco valorizao do trabalho vivo. O capital
torna-se "incapaz de explorar" na medida em que, altura dos padres de produtividade
e rentabilidade irreversveis por ele prprio produzidos, j no possvel uma
reproduo alargada em termos econmicos reais (expanso da valorizao). Esta
"hiperacumulao estrutural" do capital mundial conduz, nas metrpoles, devido
aplicao da microelectrnica, a um desemprego estrutural, a capacidades excedentrias
escala mundial e fuga do capital monetrio para a superestrutura financeira
(conjuntura das bolhas financeiras). Na periferia, a falta de pujana econmica impede o
reequipamento microelectrnico; mas isso apenas conduz a um colapso tanto mais
rpido de economias nacionais e regies mundiais inteiras, porque estas ficam to
aqum dos padres da lgica do capital que a sua reproduo social declarada "nula"
pelo mercado mundial.
Em consequncia disso produz-se uma corrida reduo dos custos e aos fechos de
empresas. A globalizao no outra coisa seno uma racionalizao transnacional e,
nessa medida, realmente tem algo de qualitativamente novo. A tradicional exportao de
capitais sob a forma de investimentos de ampliao no estrangeiro segundo o sistema
Lego substituda pelo outsourcing de funes da economia empresarial a fim de se
aproveitar as diferenas de custos a nvel global. Assim nascem, por um lado, cadeias
transnacionais de criao de riqueza, ao passo que, por outro lado e ao mesmo tempo,
partes crescentes da reproduo social vo secando e morrendo. Este processo
encimado e controlado pelo igualmente globalizado capital das bolhas financeiras.
No entanto, a velha distncia entre as metrpoles e a periferia tambm se mantm nas
condies de crise da globalizao; agora, j no sob a forma da distncia no grau do
desenvolvimento capitalista, mas como a distncia no grau da decomposio social. A
criao transnacional de riqueza adensa-se nos espaos da "trade" (EUA/Amrica do
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Norte, Unio Europeia, Japo/Sudeste asitico), ao passo que vai ficando cada vez mais
rarefeita no resto do mundo. No decurso deste processo, a dinmica da globalizao nos
moldes da economia empresarial no contexto dos mercados financeiros transnacionais
rebenta os espaos regulativos das economias nacionais.
O estado nas metrpoles no desaparece, mas deixa de ser o "capitalista global ideal" no
sentido clssico. Como, contrariamente economia empresarial, no se pode dispersar a
nvel transnacional, ele perde uma funo regulativa aps a outra e converte-se numa
administrao meramente repressiva da crise. Mas no se trata apenas de uma
degradao social de partes crescentes da sociedade mas, ao mesmo tempo, o capital
tambm destrui involuntariamente toda uma srie das suas prprias condies de
enquadramento e existncia. Isso manifesta-se, no em ltimo lugar, numa contradio
de qualidade nova entre a valorizao transnacional do capital e a forma nacional do
dinheiro (moeda).
Na periferia, juntamente com a maior parte da reproduo capitalista, os aparelhos de
estado dissolvem-se numa medida muito maior. Os servios pblicos desaparecem
quase por completo, a administrao capitula, os aparelhos repressivos asselvajam-se. O
que resta so apenas pequenas ilhas da produtividade e da rentabilidade imersas num
oceano de desorganizao e misria. Qualquer desenvolvimento econmico nacional
pra, as grandes empresas globais abotoam-se com esses sectores insulares para os
transformar em partes integrantes da sua economia empresarial transnacional. Em
paralelo nasce uma economia de saque em que esventrada a substncia fsica da
economia nacional desmoronada e onde grupos da populao, segundo critrios tnicos
ou religiosos, caem uns em cima dos outros numa continuao da concorrncia por
outros meios. s instituies estatais substituem-se grupos rapinantes. Uma grande
parte das elites transforma-se na liderana de bandidos tnicos ou religiosos e milcias
de cl, em senhores da guerra e prncipes do terror.
Esta situao constitui apenas um estdio de transio da crise mundial no limite
histrico do processo de valorizao. Para j, a economia de saque ainda pode ligar-se
ao mercado mundial e fazer passar o esventramento das runas econmicas pela
continuao do processo de valorizao, tal como tambm acontece nos centros com o
sempre novo enfunar das bolhas financeiras. Mas ambos estes fenmenos se aproximam
da exausto total.
2. Perante este pano de fundo, o imperialismo clssico passou histria. Tal como, por
um lado, a economia empresarial j no pode ser formada e regulada a nvel nacional,
assim, por outro lado a sujeio e incorporao de massas populacionais inteis para o
capitalismo deixa de fazer sentido. A forma territorial do domnio e da expanso
tornaram-se obsoletas. As "hands", na sua maioria global, deixaram de ter uso, mas sem
conseguirem sair da lgica capitalista que, enquanto socializao negativa do mundo,
mantida de p a todo o custo.
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A ME DE TODAS AS BATALHAS
Robert Kurz
Ensombrados pelos acontecimentos da guerra, os complexos das causas rapidamente se
perdem de vista. Nas sociedades modernas, a economia capitalista a me de todas as
coisas e, nessa mesma medida, tambm a verdadeira me de todas as batalhas. As
motivaes pessoais e os motivos ideolgicos no podem ser explicados sem se ter em
mente a objectividade do desenvolvimento do capitalismo mundial. A guerra do Iraque
distingue-se das guerras de ordenamento mundial dos anos 90 sobretudo pelo facto de j
no ocorrer sob o signo da grande prosperidade aparente das bolhas financeiras. A baixa
das bolsas no s aniquilou um capital monetrio de propores astronmicas,
despoletando assim um abrandamento conjuntural escala planetria, como igualmente,
em consequncia disso, provocou uma profunda crise dos sistemas bancrios e dos
seguros.
O derretimento dos valores contabilsticos das carteiras de aces abre crateras
gigantescas nos balanos e nos capitais prprios, ao passo que a enxurrada de falncias
deixa atrs de si um rasto de crdito malparado de dimenses semelhantes s que j se
verificaram no Japo e no Sudeste asitico, mas desta feita tambm no seio da UE e nos
EUA. Ao mesmo tempo o fluxo de impostos, taxas e prmios de seguros ameaa secar
ainda mais. Os sistemas de segurana social vacilam tanto como a arquitectura das
finanas comerciais. J em Fevereiro ocorreu um "encontro secreto" do chanceler
federal alemo, Gerhard Schrder, com representantes das direces dos bancos, onde
foi proposta, seguindo o exemplo japons, a fundao de uma sociedade estatal de
acolhimento do crdito malparado ("Bad Bank") a fim de se evitar um agravamento
dramtico da crise dos bancos na RFA. E como a crise alimenta a crise, a segunda e
principal repercusso sobre a economia real j no vem longe. Nessa altura,
possivelmente o abrandamento conjuntural planetrio no dar lugar prxima retoma,
mas a uma grande depresso mundial.
A esta problemtica geral sobrepe-se o cenrio de crise especfico da ltima potncia
mundial, ou seja, dos EUA, que h muito tempo tem vindo a ganhar forma e momento e
que, de resto, do conhecimento geral. O aparelho militar de alta tecnologia, sem
qualquer concorrncia no mundo, no s no consegue pacificar a barbrie e a violncia
nas regies globais em derrocada como, ele prprio, tem ps de barro em termos
econmicos. O endividamento interno e externo dos EUA, sem qualquer precedente
histrico, h muito que ultrapassou tudo o que pudesse passar por razovel. Apenas o
constante afluxo de capital monetrio mantm viva uma economia aparente que, em
contrapartida, devora a riqueza deste mundo por intermdio de um excedente das
importaes igualmente sem precedentes. J se disse muitas vezes: Por esta altura,
este o balo de oxignio que resta conjuntura mundial. Por enquanto a bolha
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financeira dos EUA ainda no encolheu tanto como a asitica e a europeia, mas o
colapso perfila-se no horizonte.
Perante este pano de fundo pode ser explicada uma poltica de emergncia global que
emana do centro, ou seja, dos EUA, e em cujo seio se articulam momentos
aparentemente desconexos. Desse lote tambm faz parte a guerra no Iraque que tudo
leva a crer no passar de um pontap de sada. O emprego indiscriminado do aparelho
de violncia de alta tecnologia suposto reafirmar a pretenso de controlo escala
global e forar um afluxo continuado de capital monetrio. Na medida em que o
petrleo desempenha um papel de relevo, trata-se menos de um esforo para assegurar
as respectivas reservas, o que tambm seria possvel sem o recurso a uma guerra, do que
da "opo", destinada a estabilizar os mercados financeiros, por uma reduo drstica
do seu preo, o que poder levar runa tanto dos pases da OPEP como da Rssia.
Simultaneamente esta "soluo" da crise dever ser flanqueada por uma globalizao
ainda maior do capital sob a gide dos EUA, imposta com todo o rigor, e pela destruio
consciente de todos os sistemas de segurana social e ecolgica em todo o mundo que a
ela se encontra associado. Se for necessrio que alguns dos grandes bancos ocidentais se
desmoronem, com consequncias a condizer no seio da economia real, tal deve
acontecer fora dos EUA. Uma poltica de crise deste modo brutalizada implica
necessariamente tambm a destruio do sistema de legitimao existente at data
(ONU, direito internacional).
O desentendimento de Chirac, Schrder e Putin com a administrao dos EUA no se
enquadra minimamente num esquema tradicional de concorrncia nacional e imperial
por mo-de-obra (isso ento nem um bocadinho!), mercados, matrias-primas e "esferas
de influncia". Antes, o que est em causa o "como" do regime global de crise. O
acordo geral quanto liquidao de todos e quaisquer direitos sociais. No entanto, e
contrariamente poltica dos EUA, uma parte dos governos da UE tanto tem escrpulos
perante a eventualidade do estabelecimento de uma ditadura militar directa dos EUA no
prximo Oriente e nas regies globais em derrocada, como face runa intencional da
OPEP e, sobretudo, da Rssia. Alm disso, e a fim de, perante resistncias
institucionais, mais facilmente poderem levar a cabo a liquidao dos sistemas sociais,
eles querem tambm salvar resqucios do sistema de legitimao, tanto dos estados
nacionais como a nvel internacional, e da coerncia em termos de economia poltica
(veja-se o exemplo da "Bad Bank").
Ao mesmo tempo, porm, sabem exactamente que, em todos os aspectos, dependem
para a sua sobrevivncia dos EUA que, por intermdio do seu endividamento extremo
absorvem os fluxos tanto do capital monetrio como das mercadorias, mantendo assim a
aparncia de processos de valorizao bem sucedidos. Um colapso da economia dos
EUA e um maior enfraquecimento do dlar, longe de fortalecer o poder da UE,
arrastava-a atrs de si por intermdio do colapso das estruturas de exportao; acresce
que os europeus, por algumas dcadas, seriam incapazes de estabelecer um controlo
militar independente dos processos de crise globais. por isso que a parte menos
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No-rentveis, uni-vos!
Robert Kurz
dos bairros de lata do Terceiro Mundo: aps o fim do trabalho dirio, o trabalho para
elas apenas comeou e s comea com o trabalho de reproduo para a parte da vida
"indigna de viver" do ponto de vista capitalista.
As mulheres sozinhas teriam sucumbido h muito tempo sob este fardo, ou a sociedade
ter-se-ia dissolvido. Por isso o Estado adicionalmente tinha de criar as reas
secundrias, derivadas, da "vida indigna de viver" fora da rentabilidade, atravs de
impostos, contribuies e sistemas de seguro, portanto de certa maneira atravs do
"sangrar" do processo rentvel de valorizao. Conforme a extenso que teve, isto foi
visto como mais ou menos "social". E a crtica histrica do capitalismo limitava-se em
grande parte quantidade desta sangria, enquanto a terrvel lgica fundamental
permanecia na sombra e intacta. Isto foi possvel (com interrupes de crises), enquanto
o processo de valorizao estava historicamente em progresso e pde absorver cada vez
mais trabalho lucrativo. Porm com a terceira revoluo industrial, esta expanso ficou
parada. A bitola da rentabilidade est demasiado elevada, cada vez chumbam mais
vlidos para o trabalho. Como consequncia o sangrar da valorizao para as reas
secundrias esgota-se.
Torna-se visvel a cabea de medusa da lgica capitalista intrnseca, at agora ocultada.
No mundo inteiro, os "no-rentveis" tm de experimentar a respectiva "desvalorizao
da vida" absoluta ou relativa. Com uma consequncia frrea so atingidos primeiro os
desempregados de longa durao, as crianas e adolescentes, os enfermos, os deficientes
e os idosos. Conforme o pas e a situao no mercado mundial, isto acontece com maior
ou menor rapidez, mas caminha-se irresistivelmente nessa direco. Tambm na RFA, j
apenas relativamente "rica" no sentido capitalista: Os pagamentos de seguros esto a ser
diminudos, os cuidados mdicos, a assistncia aos enfermos e aos idosos reduzidos, as
penses sociais desviadas, jardins infantis encerrados. Nas escolas, o reboco est a cair
das paredes, o material didctico est a ficar antiquado e a apodrecer. E parece que
nunca mais acaba, face a novos e novos projectos de cortes. Silenciosamente, est a
colocar-se um trao sobre toda a reproduo social.
A "Agenda 2010" uma agenda da demncia de rentabilidade, que j no reconhece
nenhuma barreira social ou moral, por sua margem se ter tornado demasiado estreita. As
classes poltica e econmica remetem apenas silenciosa fsica social capitalista. E
perece a velha e desamparada crtica de capitalismo limitada ao mero sangrar da
valorizao. Os antigos peritos para o melhoramento social mudaram de profisso para
a limitao cosmtica de danos nas deterioraes. Os supostos coveiros do capitalismo
tornaram-se em ajudantes de coveiro da sociedade humana. Sob as circunstncias
historicamente novas, o antigo papel sindical social-democrata virou, em termos do seu
contedo social, o contrrio.
Chamar o resultado da fraca revolta contra a "Agenda 2010", que era infelizmente de
esperar, um compromisso preguioso, seria lisonjeiro. Onde a capacidade de governo
deveria ser sacrificada em nome da resistncia social, a resistncia social , pelo
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vista neste contexto, ainda que o autor no tenha tido conscincia disso. De facto, isto
no significa seno que o prprio capital, atravs da necessidade estrutural e da
preponderncia numrica dos servios pblicos e de outros sectores secundrios, produz
um grau de socializao que o prprio j no consegue suportar.
Na terceira revoluo industrial esta contradio agrava-se. O capital destri a sua
prpria base num movimento de tenaz: Por um lado, aumentam as reas que aparecem
na reproduo do capital total como "custos mortos". Por outro lado, a revoluo microelectrnica faz com que encolha como nunca o ncleo de produo de capital da
produo industrial. A marginalizao do proletariado fabril idntica crise capitalista
fundamental de novo tipo. verdade que, atravs de privatizao, os sectores pblicos
secundrios podem ser transformados formalmente em capital comercial, embora, uma
vez que desta forma o seu carcter economicamente derivado no muda, eles so ao
mesmo tempo reduzidos e directamente destrudos. Ao no poder manter o grau de
entrelaamento atingido, o capital dissocializa a sociedade. O resultado uma
sociologia de crise de desempregados em grande escala e beneficirios de rendimento
mnimo garantido, de estabelecidos fictcios e empresas de misria, de mes solteiras, e
"jobhopers" flexibilizados etc., at para l da queda do Terceiro Mundo na economia de
subsistncia primitiva e na economia de pilhagem.
Nesta crise revela-se tambm o carcter da concorrncia, que j est inerente ao prprio
conceito de capital. No s concorre o trabalho contra o capital, mas igualmente
trabalho contra trabalho, capital contra capital, ramo contra ramo, nao contra nao, e
actualmente tambm localizao contra localizao, bloco econmico contra bloco
econmico, homem contra mulher, indivduo contra indivduo, at criana contra
criana. A "luta de classes" est dissolvida como parte integrante deste sistema da
concorrncia universal, e tem-se revelado como mero caso especial desta, que de modo
algum consegue transcender o capital. Pelo contrrio, num baixo nvel de
desenvolvimento, ela foi directamente a sua forma de movimento imanente, quando
ainda se tratava de reconhecer os proletrios fabris como sujeitos civis neste sistema.
Para poder concorrer, tem de se agir nas mesmas formas comuns. O capital e o trabalho
so no fundo diferentes estados de agregao de uma mesma substncia social. O
trabalho capital vivo e o capital trabalho morto. A nova crise porm consiste
precisamente no facto de que, atravs do desenvolvimento capitalista, a prpria
substncia do "trabalho abstracto" derretida como base de produo de capital.
Assim, a noo da "luta de classes" perde a sua luminiscncia metafsica, aparentemente
transcendente. Os novos movimentos j no podem definir-se a si prprios,
"objectivistica" e formalmente atravs de uma ontologia do "trabalho abstracto" e
atravs da sua "posio no processo produtivo". Eles podem definir-se apenas pelo
contedo atravs daquilo que querem. Nomeadamente, o que querem impedir: a
destruio da reproduo social atravs da falsa objectividade dos constrangimentos
formais capitalistas. E o que querem ganhar como futuro: o emprego racional comum
das foras produtivas alcanadas, de acordo com as suas necessidades em vez de
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Robert Kurz
diferena? Como pode ento ser compatvel com os direitos humanos desrespeitar a
vida de tantos indivduos?
Quem argumenta desse modo esquece que o procedimento totalmente normal e
cotidiano da socializao global atravs dos mercados implica um no-reconhecimento
permanente de inmeras vidas humanas. Quando os bombardeiros high-tech dos EUA
jogam sua carga fatal sobre justos e injustos, eles s executam ativa e violentamente a
mesma lgica que se efetua, numa extenso muito maior, passiva e silenciosamente,
atravs do processo econmico. Ano aps ano morrem milhes de pessoas (inclusive
crianas) de fome e enfermidades pela simples razo de no serem solventes. verdade
que o universalismo ocidental sugere o reconhecimento irrestrito de todos os indivduos,
em igual medida, como "seres humanos em geral", dotados dos clebres "direitos
inalienveis". Mas, ao mesmo tempo, o mercado universal que forma o fundamento de
todos os direitos, incluindo os direitos humanos elementares. A guerra pela ordem do
mundo, que mata pessoas, conduzida em prol da liberdade dos mercados, que
igualmente mata pessoas e, com isso, tambm em prol dos direitos humanos, visto que
estes no so imaginveis sem a forma do mercado. Temos de lidar com uma relao
paradoxal: reconhecimento por meio do no-reconhecimento, ou, inversamente, noreconhecimento justamente por meio do reconhecimento.
A aparente contradio se dissolve se perguntamos pela definio de ser humano que
subjaz a esse paradoxo. A primeira frmula dessa definio reza: "O ser humano" em
princpio um ser solvente. O que naturalmente significa, por consequncia, que um
indivduo inteiramente insolvente no pode ser em princpio um ser humano. Um ser
tanto mais semelhante ao homem quanto mais solvente ele , e tanto mais inumano
quanto menos preenche esse critrio.
Se um milionrio excntrico lega em testamento sua fortuna a seu co, segundo essa
lgica o animal assim enriquecido um ser humano em grau mais elevado que uma
criana da favela. Contudo a solvncia constitui nesse exemplo apenas uma
caracterstica externa contingente. Mas, se entendermos a definio de ser humano
como uma relao social, que naturalmente um cachorro no pode contrair, ento a
caracterstica da solvncia indica que se trata de um sujeito do sistema produtor de
mercadorias. Somente um ser que ganha dinheiro pode ser um sujeito do direito. A
capacidade de entrar numa relao jurdica est ligada, portanto, capacidade de
participar de alguma maneira no processo de valorizao do capital. Conforme essa
definio, o ser humano tem de ser capaz de trabalhar, ele precisa vender a si mesmo ou
alguma coisa (em caso de necessidade, os prprios rgos do corpo), sua existncia
deve satisfazer o critrio da rentabilidade. Esse o pressuposto tcito do direito
moderno em geral, ou seja, tambm dos direitos humanos.
No incio, esse direito foi designado "direito natural". Em particular os filsofos do
Iluminismo ocidental viam os indivduos como se tivessem sado do corpo materno
diretamente para o mundo na forma "natural" de um sujeito de direito. Porm essa
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pretenso totalitria vida dos indivduos, que so forados a sacrificar abertamente sua
vida para o fim, to banal quanto realmente metafsico, da valorizao sem fim do
dinheiro atravs do "trabalho". S secundariamente, para um resto da vida, que serve na
verdade apenas regenerao em prol do fim totalitrio, lhes permitido qualificar sua
prpria vida real. A satisfao de suas necessidades somente um produto residual
daquele automovimento metafsico do dinheiro a que eles esto acorrentados justamente
por meio de seu reconhecimento como sujeitos abstratos do direito.
Esse reconhecimento paradoxal (do ser humano abstrato) atravs do noreconhecimento (do ser humano vivo e social) obtm sua notvel fora de
convencimento pelo fato de que poderia vir a ser ainda pior. Pois o no-reconhecimento
relativo contido nesse reconhecimento meramente abstrato pode tornar-se a qualquer
hora um no-reconhecimento absoluto, a saber: quando os seres humanos se despregam
do movimento totalitrio do fim em si mesmo capitalista, isto , quando no podem
mais ser sujeitos nesse sentido. Nesse caso eles at mesmo perdem a "capacidade de ser
reconhecidos" como seres humanos meramente abstratos, deixando de ser, conforme
aquela definio, seres humanos em geral; nesse aspecto, eles valem "objetivamente"
apenas como um fragmento de matria, como meros objetos naturais, tal qual seixos,
equissetos ou escaravelhos de batateira. O Marqus de Sade foi o primeiro a anunciar, j
no sculo 18, essa consequncia, com toda a argcia cnica.
Sob uma tal ameaa, o azar de ser reconhecido meramente como ser humano abstrato,
reduzido, transforma-se na sorte duvidosa de pelo menos possuir, nessa forma negativa
e fantasmtica, vigncia social e uma certa semelhana com o homem. Embora o
reconhecimento seja meramente negativo e pressuponha uma submisso, tampouco os
"cados" escapam pretenso totalitria do sistema. A submisso dos homens forma
abstrata enobrecida em "direito humano" porque essa submisso considerada uma
vantagem em relao queles que nem sequer so mais submetidos, mas sim
inteiramente afastados do ser homem.
Uma vez que se abre aquela lacuna sistemtica entre a pura existncia dos seres
humanos e o "direito de se submeter", os indivduos no so por natureza "homens"
nesse sentido, eles s podem se transformar em seres humanos assim definidos e em
sujeitos de direito mediante um seletivo "procedimento de reconhecimento". O
procedimento de seleo pode ser "objetivo" (segundo as leis da valorizao e da
situao do mercado) ou ser efetuado "subjetivamente" (segundo as definies
ideolgicas ou polticas de "amigo" e "inimigo"). De acordo com esse procedimento, a
existncia real dos indivduos pode ser reprovada tanto quanto uma mercadoria no
reconhecida pelo mercado, considerada "suprflua". E, caso necessrio, os msseis ou,
como ultima ratio, as bombas atmicas terminaro definitivamente o "procedimento de
reconhecimento", a fim de levar os indivduos no mais capazes de reconhecimento ao
status de matria fsica.
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Por esse motivo, a promessa dos direitos humanos desde sempre uma ameaa: se no
podem ser preenchidas as condies tcitas que definem na modernidade "o ser
humano", ento deve faltar o reconhecimento. No entanto, para a maioria das pessoas,
essas condies tcitas no so mais preenchveis atualmente, mesmo que se esforcem
at chegar auto-renncia, que consiste em acatar a submisso forma abstrata do
dinheiro e do direito. O trmino de sua existncia, na qualidade de "danos colaterais" do
mercado mundial ou das intervenes da polcia mundial, previsvel. Essa constatao
amarga no depe contra os motivos de muitos indivduos e organizaes que defendem
as vtimas em nome dos direitos humanos e muitas vezes demonstram coragem contra
as foras dominantes. Mas esses esforos assemelham-se ao trabalho de Ssifo, se no se
consegue superar a forma paradoxal e negativa da sociedade mundial, que possui poder
de definio acerca de quem de modo geral um "ser humano" e que, por conseguinte,
define os direitos humanos.
Original DIE PARADOXIEN DER MENSCHENRECHTE in www.exit-online.org.
Publicado na Folha de So Paulo de 16.03.2003 com o ttulo Paradoxos dos direitos
humanos e traduo de Luis Repa. Publicado em ARCHIPEL, FORUM CIVIQUE
EUROPEN, Junho 2003
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O que a terciarizao?
Perspectivas de mudana social.
Robert Kurz
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ao lado das outras. O que ainda era futuro para uns era para outros o presente ou j
mesmo o passado. Esse desnvel do tempo histrico produziu como por si s o
paradigma do "desenvolvimento", que nas categorias capitalistas se apresentava como
corrida de recuperao dos retardatrios histricos. Diante da Gr-Bretanha, a Alemanha
e outros pases continentais europeus passaram no sculo 19 por uma semelhante
"modernizao recuperadora"; no sculo 20, perante o Ocidente, a Rssia, a China e os
ex-pases coloniais do sul global se limitaram a repetir a mesma coisa. A nao se
converteu aqui no espao especfico da no-simultaneidade histrica.
O movimento operrio ocidental clssico tambm foi determinado por um paradigma
anlogo; s que aqui a "modernizao recuperadora" no se referia, ou pelo menos no
em primeira linha, posio da prpria nao em face das naes mais adiantadas, mas
sobretudo posio jurdica e poltica do trabalhador assalariado perante outras classes
sociais, no interior da mesma nao. Estava em jogo o "reconhecimento" dos
assalariados como sujeitos jurdicos de sua fora de trabalho e como cidados plenos. O
direito de voto universal e igual, a igualdade jurdica das mulheres, o direito de greve, a
liberdade de coalizo, a liberdade de reunio e a autonomia na negociao salarial
formavam contedos importantes dessa "modernizao recuperadora" ligada s relaes
sociais internas, a qual foi concluda, mesmo nos pases ocidentais mais avanados,
somente no curso do sculo 20. O reconhecimento externo dos retardatrios histricos
do leste e do sul como naes no mercado mundial correspondia ao reconhecimento
poltico e jurdico interno dos assalariados como cidados e sujeitos de direito.
Mas esse reconhecimento foi, em certo sentido, uma cilada histrica. Pois, na medida
em que as sociedades das diversas regies mundiais foram confirmadas e fixadas como
sujeitos formais do capitalismo da mesma maneira que os assalariados individuais, elas
estavam desse modo tambm condenadas inapelavelmente s formas nacionais e sociais
do moderno sistema produtor de mercadorias. Tanto os Estados da "modernizao
recuperadora" quanto os partidos operrios e os sindicatos nacionais sofreram uma
mutao, passando a ser executores das falsas "leis naturais" desse sistema. Sob as
condies da globalizao, no resta a todos eles nada mais que administrar de maneira
mais ou menos repressiva a crise capitalista. O que a social-democracia j havia
exercido previamente desde a Primeira Guerra Mundial repete-se agora em escala
global.
Talvez se pense que esse desenvolvimento negativo empalideceu a glria da "libertao
nacional" e dos partidos operrios nacionais. De certo modo, esse tambm o caso. No
mundo todo arde uma insatisfao violenta com as instncias polticas da esquerda
tradicional, que perderam por completo sua qualidade de oposio justamente na hora
da nova crise mundial, uma vez que eles permaneceram ligados aos paradigmas da
"modernizao recuperadora", j esvaziados de substncia. Mas esses paradigmas esto
arraigados to a fundo que eles continuam eficazes mesmo entre os prprios
descontentes. H algo de fantasmtico em si na maneira como a nova oposio,
dirigindo-se contra a ex-oposio ingressada na representao do sistema dominante, se
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decisivo o quadro a que se refere na verdade essa mdia. Ele univocamente o plano
econmico-nacional da produo social. S no espao interno de uma economia
nacional se aplicam as condies-limite comuns que podem produzir de modo geral
algo como uma "mdia social". Disso faz parte um grau comum de desenvolvimento da
infra-estrutura, do sistema da educao etc. No plano do mercado mundial, no entanto,
no existem condies-limite comuns dessa espcie. Por esse motivo, tampouco pode se
constituir um nvel mdio global de produtividade. A relao das naes ou das regies
mundiais no mercado mundial no apresenta nenhuma analogia com as empresas no
interior de uma economia nacional. Desse modo, no plano global se impe
forosamente o nvel de produtividade dos pases industriais mais antigos do Ocidente,
mais desenvolvidos em termos capitalistas. Na mesma medida em que o espao
nacional se torna objetivamente obsoleto por causa da globalizao, esse nvel forma o
critrio global imediato e sem filtro para todos os participantes do mercado. ilusria a
esperana de que, no novo sistema de referncias transnacional, a mdia de
produtividade socialmente mdia venha a diminuir e que a fora de trabalho inutilizada
se rearticule mais facilmente na produo.
No aspecto filosfico, uma expectativa analogamente anacrnica determina o
pensamento dos insatisfeitos. Pois a filosofia do assim chamado Iluminismo, cujos
fundamentos foram colocados no sculo 18, considerada ainda o horizonte
intransponvel das idias. Fazem de conta que o mundo poderia, tambm nesse sentido,
continuar a se desenvolver no quadro da modernidade burguesa. Quanto a isso a nova
oposio no d mesmo nenhum passo alm da velha. Mas o paradigma do Iluminismo
est to esgotado quanto a economia do moderno sistema produtor de mercadorias, do
qual ele foi simplesmente a expresso filosfica. As idias iluministas centrais de
"liberdade", "igualdade" e de "auto-responsabilidade" do "indivduo autnomo" esto,
segundo seu conceito, talhadas para a forma capitalista do sujeito do "trabalho abstrato"
(Marx), da economia empresarial, do mercado totalitrio e da concorrncia universal.
Liberdade e igualdade no sentido do Iluminismo foram sempre idnticas autosubmisso dos homens s formas sociais do sistema capitalista.
A luta do movimento operrio clssico e dos movimentos de libertao nacional pelo
"reconhecimento" jurdico e poltico podia apelar filosofia do Iluminismo porque eles
s objetivavam entrar e crescer nessas formas, cuja condio-limite social foi formada
pela nao exatamente como no aspecto econmico. H apenas sistemas nacionais de
direito burgus. Ao explodir o quadro nacional, a globalizao torna obsoleta no
apenas a forma econmica, mas tambm a forma jurdica e poltica do sujeito burgus.
Com isso a filosofia do Iluminismo est historicamente acabada. No tem nenhum
sentido invocar mais uma vez o idealismo da liberdade burguesa, pois para essa espcie
de liberdade no h mais nenhum espao de emancipao. Isso se aplica tambm s
regies mundiais que nunca foram alm dos comeos ditatoriais de uma universalizao
da forma moderna do sujeito. Como a produtividade econmica, tambm a
subjetividade burguesa medida pelo standard global homogneo, em que no cabe a
maioria dos seres humanos.
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Original alemo Die neue historische Gleichzeitigkeit. Das Ende der Modernisierung und der Beginn
einer anderen Weltgeschichte em Deutsch. Publicado no Jornal "Folha de So Paulo", domingo, 25
de janeiro de 2004, com o ttulo A nova simultaneidade histrica. A crtica precisa apreender os
pressupostos repressivos dos obsoletos paradigmas da esquerda. Traduo de Luiz Repa.
http://obeco.planetaclix.pt/
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Robert Kurz
o capital que rende juros, como pretensa fonte do mal, a fim de reconduzir o dinheiro,
do qual aparentemente "h o suficiente", para os investimentos de capital produtivos.
Nisso, a relao de causa e efeito posta de pernas para o ar. Na realidade, a crise est
condicionada pelo prprio limite intrnseco do capital produtivo. A fora produtiva da
terceira revoluo industrial ultrapassa a capacidade da produo capitalista, demasiada
fora de trabalho "libertada", os rendimentos capitalistas diminuem, criam-se sobrecapacidades, pelo que os investimentos produtivos j no compensam. S por causa
disso nasceu a economia de endividamento e de bolhas financeiras, como mero
resultado da manifestao da crise, no como a sua causa.
Mas a conscincia de momento dominante nos movimentos quer criticar apenas o
capital financeiro, no o modo de produo capitalista. Este padro de argumentao
utilizado at nos sindicatos e no marxismo acadmico remanescente, como se tivesse
sido esquecida toda a teoria de Marx da acumulao e da crise. Isto um retrocesso, at
para trs de Hilferding. Quais so as razes para tal?
Em primeiro lugar, com a queda do socialismo estatal, tornou-se obsoleta a opo
original do marxismo do movimento operrio, de assumir na governao do "Estado
proletrio" o "poder progressivo" do capital financeiro. Isto j ningum ousa defender.
Em segundo lugar a base social dos movimentos j no nenhuma "classe operria que
produz mais-valia", mas um difuso sujeito universal da valorizao, cujas diferentes
categorias sociais se misturam cada vez mais, desde a beneficiria do rendimento
mnimo garantido, passando pelo trabalhador temporrio, a estudante de longo prazo e o
trabalhador de ABM1, at mal-afamada Ich-AG (Eu, S.A.)2. De forma espontnea o
carcter social da resultante tem uma qualidade pequeno-burguesa de certo modo
secundria (cada um o seu prprio capital humano, cada uma faz a sua prpria autovalorizao), em que o meio de produo autnomo se reduz pele do ser humano. E,
em terceiro lugar, na nova qualidade da crise, at o ncleo remanescente do trabalho
industrial aparentemente produtivo de capital ficou dependente da antecipao feita pelo
capital financeiro sobre a futura produo de valor (super-estrutura de crdito, megaendividamento a todos os nveis, economia de bolhas).
Com base nestas relaes, a dependncia geral do capital financeiro desacoplado
experimentada como o verdadeiro escndalo, ignorando-se a causa real da crise.
Tambm o marxismo acadmico j aguado pelo keynesianismo se torna sensvel a esta
interpretao redutora; a teoria keynesiana concentra-se assim numa pretensa soluo
endocapitalista da crise cingindo-se aos juros e ao capital financeiro. No pode ser
ocultado que a crtica de capitalismo reduzida de tal forma torna-se susceptvel de
ligao com as ideologias de crise populistas da direita. Assim, simplesmente um facto
que historicamente a crtica reduzida ao capital financeiro se enriqueceu cada vez mais
com esteretipos anti-semitas. E os mdia burgueses descobrem aqui j uma
possibilidade de denunciar o movimento social como "potencialmente anti-semita". Isto
s pode ser enfrentado quando a reduo regressiva da anlise ao capital financeiro for
ultrapassada, exigindo em novos moldes a socializao e seus potenciais civilizatrios
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