Homosexualidades Entre Os Sampadjudus Da Ilha de São Vicente de Cabo Verde
Homosexualidades Entre Os Sampadjudus Da Ilha de São Vicente de Cabo Verde
Homosexualidades Entre Os Sampadjudus Da Ilha de São Vicente de Cabo Verde
Levam m b:
(homo)sexualidades entre os sampadjudus da Ilha de So Vicente de Cabo Verde.
UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Levam m b:
(homo)sexualidades entre os sampadjudus da Ilha de So Vicente de Cabo Verde.
Levam m b:
(homo)sexualidades entre os sampadjudus da Ilha de So Vicente de Cabo Verde.
Banca examinadora:
Agradecimentos
O Eu o contedo da relao e a
relao mesma; defronta um Outro
e ao mesmo tempo o ultrapassa; e
este Outro, para ele, apenas ele
prprio.
(Fenomenologia do Esprito, Hegel)
Resumo
Esta dissertao tem como objetivo principal contribuir nos esforos de construo de
uma Antropologia da (Homo)sexualidade em Cabo Verde, frica. Tendo como foco
central a homossociabilidade, o movimento gay e as experincias homoerticas dos
homens na cidade do Mindelo, esta pesquisa etnogrfica junto aos crioulos procura
problematizar no somente a vida (homo)sexual dos mesmos e suas repercusses, mas
atentar tambm para o emergente movimento LGBT local. As perspectivas e as prticas
dos homens crioulos, gays e no-gays, contribuem para compreender no somente os
pontos de vista nativos, como para compreender mais uma experincia de elaborao
cultural de um fenmeno universal como o homoerotismo. Busco defender que se o
homoerotismo e o movimento LGBT possuem seus dilemas globais, eles esbarram na
semntica especfica deste arquiplago atlntico, produzindo o que chamei de um
Sistema Hipocrisia, permeado por silenciamentos e contradies.
Abstract
This thesis aims to contribute in efforts to build an Anthropology of (Homo)sexuality in
Cabo Verde, Africa. Focusing the (homo)socialiability, the gay movement and
homoerotic experiences of men in the city of Mindelo, this ethnographic research in
conjunction with the Creoles aims to question not only the homosexual life of the
Creoles and its repercussions, but also pay attention to the emerging local LGBT
movement. The perspectives and practices of the Creole men, gay and non-gay,
contribute not only to understand their points of view, as to understand another cultural
experience of drafting a universal phenomenon as homoeroticism. I argue that if the
homoeroticism and the LGBT movement have their global dilemmas, they bump the
specific semantics of this Atlantic archipelago, producing what I have called a
"Hypocrisy System", permeated by silences and contradictions.
Sumrio
Introduo ....................................................................................................................... 1
Percurso etnogrfico ..................................................................................................... 1
Homossexualidade em frica ................................................................................... 9
Uma sociedade crioula ............................................................................................... 15
Anlise sistmica ........................................................................................................ 21
Perfomatividade queer ................................................................................................ 25
Captulo I Histria e mito do cosmopolitismo ........................................................ 32
A Santa Inquisio, a lei e o silncio arquipelgico ................................................... 34
Colonizao da Ilha de So Vicente e a gnese dos sampadjudus ............................. 39
Uma africanidade rejeitada desde o sculo XX... ....................................................... 57
At hoje ....................................................................................................................... 62
Breve cartografia do Mindelo ..................................................................................... 72
guas Quentes da Laginha e a histria recente da velha guarda gay...................... 75
Captulo II A crtica hipocrisia.......................................................................... 82
Sistema Hipocrisia ................................................................................................... 83
Do pa dodu .............................................................................................................. 86
Contradio .......................................................................................................... 95
A Revolta das Tchindas e o (re)surgimento do homossexual ............................... 101
Anacronia do movimento LGBT em Cabo Verde e posturas queer ......................... 107
Direitos LGBT: um discurso que no pega .............................................................. 113
Homofobia, preconceito e violncia no Mindelo ........................................... 124
O ritual de mandar bocas .......................................................................................... 132
Captulo III Levam m b ................................................................................... 141
A cantada de galo ...................................................................................................... 142
A abordagem dos rapazes ......................................................................................... 153
Badiu (John) e Joaquim, os rapazes no-gays .......................................................... 164
Estratgias gays e sexo no Mindelo .......................................................................... 170
Angstia .................................................................................................................... 176
Consideraes Finais .................................................................................................. 184
Das hipteses condensadas ....................................................................................... 184
Do caminho a seguir ................................................................................................. 189
Do corpo-pesquisador gay ........................................................................................ 191
Bibliografia .................................................................................................................. 195
Introduo
Percurso etnogrfico
primeiro tatear no s sobre este tema no arquiplago, como para conhecer alguns dos
importantes atores nativos e que mais tarde, j em campo, me inseririam em uma rede
mais ampla de amizades. Paralelamente, conversei com colegas e professores2 e fiz
algumas leituras sobre histria, gnero, parentesco e masculinidade em Cabo Verde, no
intuito no somente formativo, mas de estimular a produo de questes prvias para
um projeto de pesquisa3.
Acreditando no trabalho de campo in loco como sendo fundamental ao fazer
antropolgico e tendo optado por ele como principal meio de produo de dados para
esta dissertao, vislumbrvamos poca que o caminho mais adequado a seguir seria
ento o de etnografar este movimento social, atravs de uma discusso terica de fundo
acerca da masculinidade crioula cabo-verdiana. Contudo, ao longo da pesquisa prcampo, fora se tornando mais ou menos clara a insipidez deste movimento social que,
apesar de j completos trs anos, ainda no possua uma sede e tampouco um acmulo
satisfatrio de experincia poltica e de atividades. Uma perspectiva de fora, e
certamente arriscada, mas que se tornaria ainda mais evidente no decorrer do trabalho
de campo.
Se o movimento LGBT em Cabo Verde, nas condies em que se encontrava, j
nos indicava por si s no ser um objeto suficiente para uma boa dissertao de
mestrado, ele acabaria por ser a minha principal porta de entrada no s para conhecer
os militantes gays nativos, mas para uma rede mais ampla de interlocutores. Para os
lderes do emergente movimento era estratgico meu interesse por sua atividade
Neste sentido, foram importantes a professora Juliana Braz Dias e Andra de Souza Lobo da
Universidade de Braslia, o professor Joo Vasconcelos da Universidade de Lisboa, assim como os
colegas Amanda Migliora e Everton Rangel do Museu Nacional e Raysa Martins e Alexandre Fernandes
da Universidade de Braslia.
3
Aproveito para justificar brevemente minha deciso em tratar apenas da homossexualidade masculina.
Desde o Brasil, o pouco material que chegava sobre Cabo Verde tornava a homossexualidade masculina
muito mais visvel que a feminina. Ao chegar eu mesmo a Cabo Verde, meus interlocutores mais
prximos so todos homens. Neste grupo de amigos havia apenas uma moa que se identificava como
30% homossexual e que ficava com outra amiga do grupo. Assim, raramente a (homo)sexualidade
feminina ser tratada neste trabalho, pois, alm de ser socialmente mais invisibilizada, minha prpria
condio de pesquisador homem me conduziria homossociabilidade masculina. Extraio um caso
exemplar dessa invisibilizao agenciada pelas prprias mulheres lsbicas, quando convidadas a
participar do primeiro programa de TV em Cabo Verde, que discutiu homossexualidade e no qual
participei na condio de convidado na sala de transmisso: Elzo constatou, rindo, que o programa de
hoje foi s sobre homossexualidade masculina, e contou que o Odair, o apresentador do programa
Sociedade Aberta da TCV procurara lsbicas para darem declaraes, mas que elas recusaram todos os
convites. Elzo concluiu algo que sempre defendeu: de que as lsbicas aqui no se misturam aos gays e
elas mesmo se invisilibizam. Que esse era mais um exemplo dessa auto-invisibilizao. (O programa de
TV 23/10/2013. Dirio de campo, p.246)
Principalmente se tratando de um estrangeiro de origem brasileira, um pas dito por eles grande,
rico e irmo. Certamente minha nacionalidade fora um diacrtico importante na minha boa absoro
pelos nativos.
5
Alm disso, eu fui lido como uma fonte estrangeira de recursos no s financeiros e materiais, mas
tambm como capital humano qualificado para algumas de suas atividades internas. Nesse sentido,
cheguei a ser convidado a ministrar algumas oficinas sobre os temas da homossexualidade e movimento
LGBT.
6
Agradeo primeiramente minha orientadora Andra de Souza Lobo e particularmente Clementina
Furtado, coordenadora do Centro de Investigao e Formao em Gnero e Famlia (CIGEF); Maritza
Rosabal, professora e pesquisadora cubana erradicada em Cabo Verde; Talina Pereira, presidente do
Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Gnero (ICIEG) e Sofia Figueiredo, amiga
particular de minha orientadora.
Pride. Na pgina do facebook, havia diversos textos, fotos e vdeos de divulgao, todos
recm-produzidos.
Afastado por um oceano desse evento e impossibilitado de viajar imediatamente
para acompanh-lo etnograficamente, restou-me consumir todas as informaes que eles
dispunham ao pblico na internet. Falando em crioulo, portugus, ingls e em italiano,
no intuito de divulgar o evento ao maior pblico possvel, pude conhecer virtualmente
algumas daquelas figuras que estariam no meu dia-a-dia alguns meses depois7. Mas
ansioso pelo contato, decidi procurar Suzete8, que de acordo com as notcias que
chegavam, era a presidente da Associao Gay Cabo-verdiana e Elzo, o vice-presidente
da mesma. Eram eles, os que mais concediam entrevistas, os mais visveis naquele
palco ainda to distante para mim. Decidi ento busc-los no facebook, para tentar um
canal mais direto e encontrei a pgina pessoal de apenas um deles, Elzo, com quem
tratei logo de estabelecer um contato.
Em seguida, eu receberia uma resposta um tanto fria, mas que em poucas
conversas se tornaria calorosa. Atravs do facebook, conversamos sobre o papa, sobre
meu visto, sobre meus planos de pesquisa, sobre burocracias, sobre a AGC, at que eu
ofereci ajuda, no sentido de levar algo material que fosse de interesse deles. Elzo ento
solicitara um computador porttil, supostamente para uso da Associao, haja vista que
eles no possuam um. Morando na chamada quadra da informtica, em Braslia, fui
atrs de um notebook usado, que estivesse em boas condies e que eu pudesse arcar
com o custo. Alm do computador, pediu-me filmes com temticas LGBT que
segundo me informara eram raros por l para que pudessem formar uma coleo
disponvel a exibies pblicas. Um pouco antes de viajar para Cabo Verde, eu
conseguira o computador e, nele, mais de cem filmes com as temticas desejadas.
Dias depois, j no ms de Julho, eu entraria em contato, tambm atravs do
facebook, com outra figura de destaque no Mindelo: Didi. Novamente me apresentei e
7
Assisti no somente os vdeos de divulgao do evento, mas tambm algumas reportagens da emissora
local. O lngua crioula cabo-verdiana falada nestes vdeos me impuseram quase sempre algum medo
diante da possibilidade de no conseguir me comunicar com aquelas pessoas, assim que eu chegasse ao
pas. Mas no Mindelo, meus interlocutores na maior parte do tempo falavam comigo em portugus e
mesmo quando conversavam entre si em crioulo, em seguida traduziam, generosamente, para mim.
Mesmo aquelas pessoas com menor escolaridade eram capazes de se comunicar em portugus, haja vista
que naquele pas, esta a lngua oficial, usada portanto nos meios de comunicao e no governo. No
entanto, no nego que desconhecer a lngua corrente nativa um limitante significativo nesta pesquisa.
8
Exceto no caso de Tchinda, por razes que explicarei em momento oportuno, todos os nomes foram
modificados e remodificados nesta dissertao, com o intuito de no expor meus interlocutores.
conversamos algumas vezes sobre minha pesquisa, sobre meios de transportes interinsulares, passagens areas, sobre visto, o papa, movimento LGBT, racionalismo
cristo, hospedagem e sobre relacionamentos.
Mas o mais importante das conversas com Didi certamente foi descobrir nelas
que, por l, os gays no se relacionam com gays, uma equao-chave, como veremos,
para o universo homoertico do Mindelo, e de Cabo Verde. Ofereci-me tambm para
levar a ele uma encomenda. E ao invs de livros de cinema antigo, como me pedira
antes, Didi escolhera agora filmes clssicos, em formato de DVD. O nico deles que
achei, em uma livraria do Rio de Janeiro, seria Mata Hari, com Greta Garbo, atriz na
qual ele era f. O mercado fono e cinematogrfico no Mindelo bastante precrio, a
cidade possui pouqussimas lojas de CDs e no conta atualmente com nenhuma sala de
cinema disponvel9.
Os presentes entraram em minhas contas como despesas do campo. Eu j
conhecia atravs das etnografias a importncia das encomendas em Cabo Verde,
produtos que tanto entram quanto saem do pas, num fluxo de constante
(re)estabelecimento de relaes sociais (LOBO A. d., 2012). Se o computador, ainda
que em timo estado, nunca fora usado em toda minha estadia por l, o DVD de Greta
Garbo arrancou um sorriso gratificante do presenteado, que da em diante tornou-se um
importante interlocutor. Eu tambm ganhara presentes, para alm de suas companhias,
amizades e histrias. Ganhei uma verso de Chiquinho, obra clssica da literatura caboverdiana, alm de um corte de cabelo, um mapa da cidade e um pacote de preservativos
promocionais que sobrara do Mindelo Pride10.
Mas eu no havia conseguido hospedagem no Mindelo ainda. Para isso tive o
auxlio de Elzo que, antes mesmo de minha chegada, conseguiu um timo apartamento
no Alto Miramar, regio nobre, adjacente morada o centro da cidade do Mindelo.
Sem me dar quaisquer informaes sobre o imvel, apenas informou-me o preo e eu o
transferi via Western Union, prtica de remessa internacional de dinheiro mais do que
comum em Cabo Verde, pas que tem mais populao na dispora do que no territrio
nacional.
exceo do Centro Cultural do Mindelo, um teatro que se faz de cinema por vezes para exibies
pblicas da stima arte.
10
Por esses presentes em especfico, agradeo a Didi e ao Cesar.
11
Entre essas novas conjunturas, uma companhia area estatal cabo-verdiana, com vos regulares de
Fortaleza, no Brasil, para Praia, sem escalas.
Fig. 1 Ao centro, a Praa Dr. Regala, nome dado em homenagem ao famoso mdico Francisco Regala e
na qual passvamos muitas madrugadas. FONTE: Airbnb.com
Na Praa do Dr. Regala, mdico famoso que testemunha morta de quase tudo
que narro aqui, ns falvamos de todos os assuntos que jovens amigos costumam
conversar, como msica, poltica, economia, sociedade, drogas, bebidas, histria,
entretenimento e, como no poderia deixar de ser em um grupo gay, de sexo e de
homens. Assim, no passei pelo mesmo problema que Evans-Pritchard, sobre uma falta
de convergncia entre os interesses acadmicos do pesquisador e o que interessava, de
fato, aos seus interlocutores (EVANS-PRITCHARD E. E., 2005, pp. 244-5). Meus
interlocutores falavam e adoravam falar de sexo. Assim, se no incio da pesquisa, a
inteno era tratar mais propriamente de questes de gnero e masculinidades, o campo
acabou me conduzindo para tratar propriamente da sexualidade masculina local.
Mas sexo no era o nico assunto de nossa pauta e, sem moralismo, acho uma
questo de honestidade etnogrfica insistir nisso para no transform-los nesta
dissertao em bestas sexuais, quando no fundo, meus interlocutores, em sua grande
maioria, eram pessoas que perpassavam com desenvoltura vrios campos de
conhecimento e dialogavam sobre absolutamente tudo. Como disse, entre meus
principais interlocutores havia artistas, que trabalhavam como atores, carnavalescos e
costureiros. Havia tambm estudantes das universidades locais em cursos de jornalismo,
7
12
Gostaria de agradecer particularmente aos estudantes Luisa e Carlos, que me receberam de maneira to
generosa, oferecendo no somente suas histrias, comidas e lares, como me proporcionando encontros
fundamentais com alguns dos sujeitos gays de Praia.
Homossexualidade em frica15
Agradeo imensamente ao meu amigo Alexandre Fernandes, que ao ter notcia de que eu fugira de
campo, hospedara-me em seu apartamento alugado, a revelia do proprietrio. E agradeo tambm a gentil
e prestativa bibliotecria da SGL, que me ajudara na pesquisa de alguns arquivos coloniais.
14
Impus a mim mesmo limites a esta participao, entre eles, o relacionamento sexual/afetivo com os
meus interlocutores, por ter um relacionamento fixo e considerar que um trabalho de cunho antropolgico
sobre sexualidade prescinde disto (MURRAY, 1996).
15
Neste primeiro momento, seguindo a sugesto de Igor Kopytoff(1987), tomo aqui frica enquanto
unidade de anlise.
comportamentos
homossexuais
no
continente
africano,
primeiramente
Antes de terminar a escrita desta dissertao, o presidente nigeriano Goodluck Jonathan assinara no dia
14/01/2013 uma lei que criminalizara a homossexualidade, com penas de at 14 anos de priso para quem
viver unies de fato com pessoas do mesmo sexo e para quem participe de organizaes em defesa dos
direitos homossexuais no pas (Publico.pt, 2014). No dia 24 do ms seguinte, seria a vez do presidente de
Uganda, Yoweri Museveni assinar lei que condena os homossexuais priso perptua (Globo.com,
2014).
17
Ao mesmo tempo, interessante notar certo lugar de exceo do arquiplago de Cabo Verde neste
cenrio pan-africano. No somente no h relatos de prises ou julgamentos, como Cabo Verde destacase como o segundo pas do continente a realizar uma parada do orgulho gay com a anuncia das
autoridades locais.
18
Em Cabo Verde, porm, diferena de muitos outros pases africanos, no encontro na atualidade
qualquer discurso que associe negativamente e de forma direta homossexualidade e o ocidente. Entre
outras razes possveis para o fenmeno, o fato da sociedade crioula cabo-verdiana j ter nascido do
encontro entre europeus e africanos e no nutrir, nos dias de hoje, essa severa crtica ao ocidente, visto
que muitas vezes os cabo-verdianos se consideram dele fazendo parte.
13
[...]as pinturas rupestres das cavernas de San, atribudas aos bosqumanos da frica Austral, datadas
de 15 mil anos, onde so evidentes egrgias prticas sexuais tais como sexo anal ou intracrural em
grupo (MOTT, 2005, p. 12)
20
Murray aponta criticamente para a preocupao de vrios autores construtivistas sociais que
argumentam pela contingncia histria da homossexualidade, mas que neste exerccio acabam por
14
essencializar outras categorias como heterossexualidade, sexualidade, raa, classe etc (Murray
apud ROSCOE, 1996, p.209).
21
Como tratarei em momento mais oportuno, o Sistema Hipocrisia com letras maisculas a
objetivao que fiz para estabilizar a percepo dos gays cabo-verdianos em relao ao seu prprio
sistema de gnero. Tanto as categorias sistema quanto hipocrisia so micas, mas passaram por um
processo de esvaziamento da carga moral para se tornarem uma categoria de anlise objetificante e,
portanto, virtual. Os dois movimentos chaves para se compreender o Sistema Hipocrisia de Cabo Verde
so o silenciamento diante da existncia da homossexualidade e a contradio entre a heteronorma e as
prticas homossexuais. No segundo captulo, pretendo explorar o Sistema Hipocrisia a fundo.
22
Apesar de ser possvel no Mindelo atual, como veremos, que os sujeitos transgridam em seus corpos as
normas de gnero hegemnicas.
23
Uma das importantes contribuies propostas por Ulf Hanners abolir as categorias raciais e tnicas
para dar conta de novas totalidades nacionais surgidas com o colonialismo e o ps-colonialismo
(HANNERS, The World in Creolisation, 1987, p. 551). Da a utilidade dela para a compreenso de
contextos nacionais como o cabo-verdiano.
15
Eu acrescentaria ainda, no caso especfico da Ilha de So Vicente de Cabo Verde, a forte influncia
britnica na figura dos marinheiros e trabalhadores porturios.
16
17
E afirma que o uso deste modelo torna possvel a compreenso das sociedades
tradicionais da Guin sem lanar mo necessariamente do fator tnico (2003, p. 10).
Desta forma, Trajano Filho ir ento conciliar a tese de Kopytoff acerca da expanso
populacional africana dentro do prprio continente com especial nfase sobre os
povos da costa da Guin com as ideias de Hannerz sobre sociedades crioulas nascidas
dos encontros entre culturas distintas, para provar seu argumento de que a crioulidade j
era uma caracterstica endmica das sociedades africanas daquela regio (mas, por
derivao lgica, tambm do resto do continente). Pois o quadro encontrado pelos
portugueses no sculo XV no pressupe um passado anterior esttico. A dinmica
social em frica no foi trazida pelos europeus. uma caracterstica de todas as
sociedades humanas (2003, p. 7). Aps explicar os processos de expanso de vrias
etnias da frica ocidental, o autor conclui:
Uma das consequncias deste processo de povoamento que combinava o deslocamento de
pequenas levas migratrias pacficas com grandes movimentos de conquista foi o surgimento
de comunidades polticas que se reproduziram por meio de processos mais complexos do que a
pura imposio de estruturas de dominao e a consequente excluso de estruturas antigas e de
todo sistema de valores e smbolos. Bem ao contrrio, a construo de estruturas estatais na
regio foi produto de um complexo fluxo de emprstimos e da constituio de fronteiras
permeveis. As unidades polticas que surgiram da conquista mandinga no Kaabu e no rio
Gmbia e dos deslocamentos de grupos beafadas, balantas, banhuns e cassangas, manjacos e
papis para as bordas destes novos reinos resultram de intensos processos de assimilao e
incorporao, envolvendo os construtores estatais estrangeiros e as populaes donas do cho.
Ora os primeiros incorporaram o universo simblico e certos princpios organizacionais dos
derrotados donos do cho, ora implantavam junto s populaes por eles conquistadas certos
elementos da bagagem cultural que traziam consigo de seus territrios de origem, como o
caso da instituio da mansaya (realeza) entre os mandingas do Kaabu(TRAJANO FILHO,
2003, p. 13).
19
as quais se articula, embora fluida e com fronteiras mveis e porosas (TRAJANO FILHO,
2003, p. 18)26.
O autor assim tenta recuar sobre a abrangncia do conceito que elabora, mas o
empreendimento no parece possvel. O prprio conceito sociedade crioula, genrico
por natureza, pressupe a sua expanso e aplicao em outros contextos. Alm do que,
no somente este era o objetivo de sua confeco na lingustica (servir de maneira geral
s lnguas nascidas do pidgin), mas assim fora apropriado na prpria tradio
antropolgica, na incorporao pioneira de Ulf Hannerz. E por fim, ainda que dotada de
suas especificidades, categoria mica em regies etnogrficas distintas, como o Haiti,
no caribe ou em Cabo Verde, na macaronsia. Contudo, concordo que
no seu todo, a sociedade crioula produto de um compromisso social e cultural entre as
vertentes sociais que a formaram. Seus membros falam o crioulo, e as prticas religiosas, o
modo de organizao familiar e a estrutura de valores ali desenvolvidas tambm revelam o
funcionamento deste compromisso que tem uma natureza pendular, oscilando entre o mundo
europeu e africano (TRAJANO FILHO, 2003, p. 22).
A ideia de locuo objetificante, como uma inveno do antroplogo para identificar objetificamente
uma entidade social, ser-me- til para pensar o Sistema Hipocrisia em Cabo Verde, que tratarei ao
longo do trabalho.
27
Mesmo na cidade da Praia, h narrativas da elite sobre o processo de ocidentalizao pelo qual a
cidade-capital supostamente estaria passando, como nos descreve a sociloga Claudia Rodrigues: Fruto
de um crescimento econmico razovel, a cidade tem sido alvo de intervenes voltadas para uma
modernizao/estilizao ocidentalizada do espao e das infra-estruturas, baseadas num discurso de
transformao e modernidade: novos bairros de classe mdia e elites; prdios administrativos altos (para o
padro local); asfaltagem das principais vias da cidade; universidades e escolas; bem como a proliferao
de espaos de restaurao e bares, que procuram ser sofisticados e urbanos, onde surgem movimentos de
jovens da elite detentores de capital econmico, intelectual, e artstico considervel (RODRIGUES C. ,
2010, p. 55)
20
(2003, p. 18). Como veremos, essa assertiva seria bastante til para entender algumas
aparentes disparidades. Por exemplo, prticas discursivas de um movimento LGBT
internacional tentando ser incorporadas pelos atores locais, ainda que sem muita
gramaticalidade com a cultura local.
Anlise sistmica
Este trabalho, porm, no apenas sobre uma sociedade crioula, mas sobre
sexualidade na sociedade crioula cabo-verdiana, com foco na Ilha de So Vicente.
Portanto, pretendo conjugar no plano terico uma anlise sistmica e outra performativa
a respeito da sexualidade crioula. Isso significa dizer que trabalharei com modelos de
gnero e sexualidade tpico-ideais uma vez que eles auxiliem na estabilizao e
objetificao de uma dada realidade social. Esta, contudo, no foi uma deciso a priori,
mas condicionada pela prpria realidade do campo, que mostrou coexistir pelo menos
dois modelos ideais de experincia da (homo)sexualidade masculina em Cabo Verde.
Quando os modelos no derem conta de explicar as transies e os novos arranjos,
acionarei a teoria da performatividade queer. Por ora, entendamos a anlise sistmica.
Parto ento para as formulaes do antroplogo Peter Fry que, na dcada de
1970, etnografou a relao entre homossexualidade e candombl, na periferia da cidade
de Belm, norte do Brasil (FRY, 1982a). Em Da hierarquia igualdade: a construo
histrica da homossexualidade no Brasil, o autor pretendeu
[...] investigar a construo das categorias sociais que dizem respeito sexualidade masculina
no Brasil, numa tentativa de desfocar a discusso da sexualidade do campo da medicina e da
psicologia para coloc-la firmemente no campo da antropologia social (FRY, 1982b, p. 87)
21
28
22
No Captulo II tratarei a fundo do ritual de mandar bocas. Por hora, esclareo que trata-se de um evento
em que os rapazes provocam os sujeitos gays pelas ruas da cidade.
30
Utilizo o termo no-gay para me referir a todos os sujeitos que, apesar de habitar o universo
homoertico, no se identificam a partir de uma categoria (homo)sexual. Em momento oportuno,
circunscreverei o que ser no-gay neste universo de pesquisa.
23
as relaes realmente desviantes [...] so as que ocorrem entre pessoas que desempenham o
mesmo papel de gnero, isto , entre uma bicha e outra ou entre um homem e outro. Essas
relaes so consideradas desviantes porque quebram a regra fundamental do sistema que
exige que as relaes sexuais-afetivas corretas sejam entre diferentes papis de gnero
ordenados hierarquicamente (FRY, 1982, p. 90).
Parece que na elite da cidade da Praia e entre alguns sujeitos do Mindelo, este
sistema B, descrito por Fry comea a ter ressonncia. Como desenvolverei ao longo
desta dissertao, mesmo no Mindelo, onde o modelo hierrquico hegemnico,
comea a haver alguma presso de substituio pelo modelo simtrico, ainda que
quase nunca tal se realize. Isso devido a presses do movimento LGBT internacional e
local, devido s telenovelas brasileiras expondo os valores da homoafetividade em
horrio nobre, ao sucesso de publicizao das teses cientficas sobre sexualidade, e
devido a todo fluxo de ideias e valores do mundo ocidental moderno, no qual os gays
crioulos e, mais especificamente aqueles do Mindelo, procuram incorporar.
Por fim, Fry (1982b) faz duas ressalvas importantes que nos conduziro teoria
queer. Se, por motivo de sistematizao e clareza, ele isolou dois modelos ideais
sendo um hierrquico e outro igualitrio d a entender que esses modelos no se
efetivam nunca integralmente, quando diz que rara a expresso total desses
modelos (1982b, p. 105). Na realidade, o que h so estratgias dos sujeitos nos usos
desses modelos, marcadas em muitas categorias lingusticas intermedirias e ambguas,
como viado, homossexual, bicha, bofe, gilete, bissexual etc. O mesmo
poderia ser estendido ao caso cabo-verdiano, pois como ensina Fry, os princpios
bsicos de um ou outro modelo podem ser invocados situacionalmente pelo mesmo ator
social (1982b, p. 105). Portanto, estes modelos operam apenas enquanto ideais, e cada
ato performativo dos sujeitos desloca e reconfigura os prprios modelos.
Perfomatividade queer
pretendo aqui realizar uma grande sntese ou reviso da referida teoria, mas apenas
incorporar algumas ideias propostas por essa nova ontologia de gnero baseado na
performatividade (SALIH, 2012, p. 196), na medida em que ela me ajude a pensar o
caso cabo-verdiano.
Para dar incio a esta seo, trago uma das possveis origens etimolgicas do
termo badiu, termo que designa os originrios da Ilha de Santiago em Cabo Verde,
narrada por uma de minhas interlocutoras na cidade da Praia e anotada em meu dirio
de campo:
Andreza, que badia, me contou da origem etimolgica do termo badiu, numa verso da
perspectiva das mulheres badias. (Me contou como se fosse historiografia, mas no posso
confirmar por hora a veracidade dos fatos). Disse-me ela que as mulheres de Ilha de Santiago,
supostamente conhecidas como mulheres mais fortes e lutadoras que as de outros lugares, em
uma das muitas crises de fome do perodo colonial, resolveram juntar-se para saquear os
armazns de alimentos da costa. Os homens da Ilha, segundo Andreza, nunca ousavam fazer
isso, temendo represarias de seus senhores. As mulheres ento saquearam e carregaram
alimentos morro acima, para alimentarem seus homens e seus filhos. Os colonizadores, donos
dos armazns, ento as chamaram de vadias por isso. A partir da, houve um processo de
apropriao e crioulizao deste nome. E o nome acabou por se positivado at o ponto de se
tornar uma denominao regional de uma ilha inteira: os badius so aqueles que nascem na
Ilha de Santiago. (Morabeza. 30/10/2013 Dirio de campo, p.273)
(SALIH, 2012, p. 19). Voltando a Cabo Verde, nesse sentido que alguns termos
micos, como veremos em detalhes mais tarde nesta dissertao, supostamente teriam
uma forte potncia subversiva para o movimento LGBT do Mindelo, apesar de, na
prtica, serem rechaados pelos ativistas locais.
Mas a teoria queer muito mais do que a proposta de uma mera re-significao
de vocativos acusatrios ou de recitao. Um de seus mais caros objetivos a prpria
desconstruo do gnero e do sexo. A teoria queer empreende uma investigao e uma
desconstruo dessas categorias, afirmando a indeterminao e a instabilidade de todas
as identidades sexuadas e generificadas (SALIH, 2012, p. 20). Butler e outros autores
filiados a esta corrente, defendem que tanto sexo quanto gnero so categorias
socialmente construdas em uma matriz heterossexual de poder e que no pr-existem
ao discurso (BUTLER, [1990] 1999, p. 30). Neste sentido, o prprio corpo sexuado se
macho ou fmea no existe sem que a linguagem o inscreva numa semntica sexual
binria.
Para exemplificar, Butler traz o caso dos intersexo, pessoas que nascem com o
sexo indefinido e que so os mdicos que definem arbitrariamente se, afinal de contas,
trata-se de meninos ou meninas. Diz a autora que este seria um exemplo claro de que
no existe um corpo sexuado dado na natureza, mas que somente no ato de nomeao
( menina!) e na srie posterior de atos de interpelao que algum faz o
gnero.
A metafsica da substncia refere-se crena difundida de que o sexo e o corpo so entidades
materiais, naturais, autoevidentes, ao passo que,para Butler, como veremos sexo e gnero so
construes culturais fantasmtica que demarcam e definem o corpo. Butler argumenta que a
incapacidade de [pessoas intersexo como] Barbin em se conformar aos binarismos de gnero
mostra a instabilidade dessas categorias, colocando em questo a ideia do gnero como uma
substncia e a viabilidade de homem e mulher como substantivos [...] o gnero uma
produo ficcional [...] o gnero no um substantivo, mas demonstra ser performativo
(SALIH, 2012, p. 72).
27
Assim, o gnero seria para a teoria queer um processo que no tem origem nem
fim, de modo que algo que fazemos, e no algo que somos (SALIH, 2012, p. 67).
Em Cabo Verde, esta dimenso performativa era flagrante na construo dos corpos de
meus interlocutores gays, uma vez que eles articulavam, no dia-a-dia, roupas,
acessrios, vocativos e performances tanto tradicionalmente masculinas quanto
tradicionalmente femininas, misturando-os em criaes prprias, recitando um batom
ou uma bolsa, em seus corpos ao mesmo tempo masculinizados31. Assim, o carter de
construo de si pressupe intrisicamente a possibilidade de reconstruo e neste
sentido que Butler v a possibilidade de subverso da hegemonia heterossexual.
Mas nesta monografia etnogrfica no me interessa tratar dos universais (por
isso abro mo de discutir as complexas teorias psicanalticas e filosficas de Butler),
mas descrever o sistema de gnero em Cabo Verde, sob a tica dos sujeitos gays, a
partir de algumas ideias da teoria queer. Assim, a matriz heterossexual cabo-verdiana
guardaria grandes similaridades com o modelo proposto por Butler, mas possuiria
tambm algumas especificidades como a no-proibio, nem discursiva quanto mais
seria pela lei, esta entendida de forma genrica, das relaes homossexuais. No modelo
de matriz heterossexual de Butler, o repdio e a proibio requerem a
homossexualidade para se constiturem. Longe de eliminar a homossexualidade, ela
sustentada pelas prprias estruturas que a probem (SALIH, 2012, p. 182). Para Butler,
A homossexualidade no abolida mas conservada, ainda que conservada
precisamente na proibio imposta sobre a homossexualidade (BUTLER, 1997, p. 142)
Apesar de, novamente, no querer entrar nas discusses psicanalticas sobre a
heterossexualidade melanclica e no crer que se trate propriamente de uma
proibio na matriz heterossexual cabo-verdiana, coerente o argumento de que o
sistema de matriz heterossexual necessita da ideia da homossexualidade, como
contraposto lgico. E que a homossexualidade permanecer como oposio binria
31
Para ver mais sobre a construo dos corpos travestes em Cabo Verde, ver RODRIGUES C., 2010, pp.
63-6.
28
32
33
29
31
34
Sampadjudus uma palavra de origem crioula que designa contemporaneamente aqueles naturais da
Ilha de So Vicente ou, mais especificamente, da cidade do Mindelo, a depender do contexto. De acordo
com uma interlocutora de Praia, uma suposta origem etimolgica advm da expresso portuguesa: so
palhudos, ou seja, s falam, no agem. J no Mindelo, a explicao de sampadjudu, por outro lado,
seria faz tudo. Em meu trabalho de campo esta era uma categoria acionada sempre em oposio
badiu, termo que nomeia aqueles nascidos na Ilha de Santiago. As rivalidades simblicas e polticas entre
as ilhas so expressas em parte nestes termos, que a depender do interlocutor pode ganhar tons pejorativos
ou de orgulho. Pretendo explorar melhor esta rivalidade ao longo deste trabalho.
35
A escolha dos termos homossexual ou homoertico permeada por discusses tericas e polticas.
De acordo com alguns autores, como o psicanalista Jurandir Freire Costa, o primeiro termo seria herana
de outro mais antigo, o homossexualismo, fruto do discurso medicalizante e estigmatizador dos fins do
sculo XIX. Como a funo da linguagem no apenas comunicar, mas criar subjetividades, o segundo
termo seria mais adequado politicamente, segundo o autor, porque no est filiado ao projeto burgus,
que dividiu o mundo entre uma sexualidade normal - a heterossexualidade e a anti-norma a
homossexualidade (COSTA, 1992). Contudo, como um trabalho de cunho antropolgico, este no deve
desprezar as categorias nativas, por uma viso de que tais categorias seriam fruto do equvoco lingustico
ou poltico, mas devem ser compreendidas em sua totalidade. nesse sentido, que no posso abandonar
nesta dissertao o termo homossexual, haja vista que, ainda que opere precariamente, ele um signo
poderoso no universo simblico do Mindelo, tanto para nomear sujeitos como prticas. Ao mesmo tempo,
referir-me-ei por vezes a homoerotismo, enquanto categoria de anlise, sempre que quiser mencionar
um conjunto de prticas erticas e sexuais entre duas pessoas do mesmo sexo.
32
buscarei,
sempre
que
for
possvel,
articular
dados
historiogrficos aos temas que mais interessam a esta dissertao. Neste sentido,
acrescento meus prprios dados etnogrficos, em uma espcie de memria oral, para
relatar a vida dos homossexuais do Mindelo desde, pelo menos, a dcada de 1970.
Apresento assim um dos clebres locais rememorados pelos sujeitos gays mais antigos
da cidade, as guas Quentes da Laginha.
36
Assim como homossexual, gay uma categoria mica, que apesar de ser rechaada em algumas
oportunidades, costuma operar localmente ainda que de forma precria para identificar pessoas e
grupos de pessoas. Us-la-ei aqui como um sinnimo para homossexual e em contraposio aos nogays, sujeitos que no se identificam a partir de uma identidade (homo)sexual, mas que, no entanto, se
relacionam sexualmente com sujeitos do mesmo sexo.
33
Sodomia era, no perodo inquisitrio, o termo jurdico usado para a cpula anal seja htero ou
homossexual. O antroplogo Luiz Mott nos explica que tal termo desmembrava-se em sodomia
foeminarium para as relaes lsbicas, sodomia imperfeita para a penetrao anal heterossexual e,
simplesmente sodomia para as relaes homoerticas, abrangendo as vrias prticas sexuais entre
homens (MOTT, 1989).
38
Os registros so disponibilizados gratuitamente na internet, atravs do site: http://antt.dglab.gov.pt/
34
dava alguma cousa, inda que de pouca considerao, alguns vintns, papel e ataca. Com
Garcia, 13 anos, assentado em uma rea, se deitou ele confitente no regao do menino para
catar [piolho] e ali lhe meteu a mo na braguilha e lhe pegou no membro viril e o mesmo fez o
dito menino. Certa vez, passando pela sua porta um negro de 16 anos, que no conhecia, e
por lhe parecer bem, o chamou e persuadiu que cometessem o pecado de sodomia e penetroulhe o vaso traseiro, dando-lhe dois vintns. Com Duarte, escravo de seu pai, praticou por um
ano muitas sodomias... Lembrou-se de 82 cmplices, predominando negros e mulatos, forros e
escravos, muitos cantores e msicos da S de Cabo Verde (MOTT, 2005, pp. 21-2).
Para alm destes dois casos, Mott contabiliza a existncia, entre 1547 e 1739,
de 72 sodomitas notrios degredados para diferentes terras africanas Angola,
Prncipe, So Tom, Cabo Verde e Guin (2005, p. 20)39. Portanto, alm dos sodomitas
da terra, digamos assim, chegaram outros degredados a Cabo Verde, seja da
metrpole seja de outras colnias do imprio portugus. Baseado neste e em outros
dados fornecidos pelo autor, aproveito para concordar com sua tese sobre a existncia
de lampejos de uma identidade homossexual no s muito antes da medicalizao da
homossexualidade no sculo XIX como tambm fora do mundo europeu:
Embora a Inquisio ameaasse os sodomitas sentenciados com duras penas no caso de
reincidncia no que se cognominava de mau pecado, h notcia de muitos amantes do mesmo
sexo que no abandonaram a prtica do homoerotismo. A estes os inquisidores chamavam de
incorrigveis avaliao que descarta a infundada hiptese de Michel Foucault de que os
sodomitas, antes da medicalizao da homossexualidade no sculo XIX, eram to somente
praticantes ocasionais da cpula anal: a documentao inquisitorial comprova cabalmente,
quando menos a partir do sculo XVI, tambm em Portugal e suas colnias, e no apenas na
Inglaterra, Frana, Espanha e Holanda, a existncia de uma estruturada subcultura sodomtica,
inclusive com lampejos de afirmao identitria por parte dos sodomitas mais incorrigveis
(2005, p. 20)
Se for correta a crtica da hiptese repressiva, tal como formulada por Foucault,
que refuta o pressuposto generalizado de que a sexualidade no sculo XIX era algo
apenas do campo da represso pela lei, a sua datao parece incorreta. Foucault
argumenta que a sexualidade, em vez de reprimida pela lei, era por ela produzida e que,
longe de um silncio em torno do sexo, o que havia no sculo XIX, era a multiplicao
dos discursos sobre o sexo no prprio campo do exerccio de poder: incitao
institucional a falar de sexo e a falar cada vez mais (FOUCAULT, 1988, p. 22). Sem
discordar da crtica hiptese repressiva, ainda que as funes de represso e produo
no sejam autoexcludentes (BUTLER, [1990] 1999), o que autores como Mott e
Dabhoiwala vm mostrando que a origem da sexualidade moderna antecede e muito
o sculo XIX.
39
Parece, contudo, que Angola era, por excelncia, o destino de degredo de sodomitas (MARCOCCI &
PAIVA, 2013, p. 224)
35
Como tambm nas prticas, observa-se que por volta de 1620, Lisboa abrigou
seu primeiro espao de diverso notoriamente gay: a Dana dos Fanchonos (MOTT,
1989, p. 496)40. O historiador ingls Faramerz Dabhoiwala, em seu recente trabalho
sobre a histria da primeira revoluo sexual ocorrida na Inglaterra a partir do fim do
sculo XVII parece concordar com a tese de Mott acerca da antecedncia do marco de
origem das nossas modernas concepes de sexualidade e identidade sexual
(DABHOIWALA, 2013, p. 17).
Mas pulemos para alguns sculos depois e chegamos em Portugal dos anos de
1960, em pleno perodo de represso do Estado Novo, quando Jlio Fogaa, poca
dirigente do Partido Comunista Portugus, sentenciado por se relacionar
amorosamente com outro homem. Quem remonta essa histria o ativista portugus
Srgio Vitorino, em artigo independente:
Tendo sido classificado de pederasta passivo e habitual na prtica de vcios contra a
natureza, Fogaa sujeito a um perodo de deteno seguido de uma liberdade vigiada por
cinco anos, sob obrigao de fixar residncia em Lisboa, dando conhecimento da morada
Polcia Judiciria, mas no podendo ausentar-se sem prvia autorizao do Tribunal. -lhe
ainda imposto dedicar-se ao trabalho honesto com permanncia, mas no prtica de
quaisquer vcios contra a natureza, bem como no acompanhar cadastrados, antigos
companheiros de priso, pederastas ou quaisquer pessoas de conduta duvidosa (...)
(VITORINO, 2007)
No seria a primeira priso de Fogaa, que j teria sido deportado duas vezes
para o arquiplago de Cabo Verde em dcadas anteriores, revivendo prticas punitivas
reminiscentes de outros sculos:
40
Curiosamente, o depoente Rafael Fanchono, preso pela Santa Inquisio de Lisboa, no sculo XVI,
revela algo sobre os fanchonos, que sculos depois seria revivido, como veremos, pelos sujeitos gays
sampadjudus: Os famchonos so os pacientes e nunqua famchono com famchono peco neste peccado
(Lisboa, A.N.T.T., Inquisio de Lisboa, Processo n. 1982, Rafael fanchono (Antnio da Costa) fols, s/n
[32 w 33]
36
No se trata da primeira priso desde dirigente do PCP. Em 1935 foi preso e deportado para a
priso do Tarrafal (Cabo Verde). Amnistiado, regressa a Portugal em 1940 e participa na
reorganizao do PCP. de novo detido em 1942, sendo de novo amnistiado em 45, aps nova
passagem pelo Tarrafal (VITORINO, 2007).
Razo pela qual, tanto em Portugal como nas colnias africanas, os vcios
contra a natureza, constantes no artigo 71, permanecem criminalizados. Sem nunca
parecer ter sido usado para levar qualquer pessoa a julgamento por tal crime, o Cdigo
Penal Cabo-verdiano de 2004, contudo, retira o artigo com a seguinte justificativa:
Foram eliminados tipos penais onde no existe bem jurdico merecedor de tutela penal ou,
existindo bem jurdico se no mostre necessria a interveno do direito penal. Deste ponto de
vista, tipos como o duelo, greve lock-out, adultrio, homossexualidade, vadiagem,
mendicidade, e os que consubstancia meros crimes contra a religio, ou os bons costumes no
surgiram naturalmente no Cdigo Penal, e, pelas mesas ordens de razoes, foi
significativamente reduzido o nmero de crimes contra o Estado[...](2004, p. 31, grifo meu).
O Cdigo Pena afasta-se, assim, do preceituado no artigo 71. do Cdigo anterior, o qual previa
a aplicao de medidas de segurana pr-delituais nomeadamente a vadios,rufies, prostitutas,
os que se entregam habitualmente prtica de vcios contra a natureza etc (2004, pp. 27-8)
souberam relatar qualquer caso de processo, condenao ou priso por tal crime nas
ltimas dcadas.
Como vimos, mesmo no perodo pr-independncia de Cabo Verde, em plena
ditadura salazarista, conhecida pela perseguio contra homossexuais em Portugal, no
h registros da mesma perseguio na colnia africana. Se na letra fria da lei, a
criminalizao da sodomia perdura at 2004 em Cabo Verde, como alis em diversas
ex-colnias africanas tm perdurado41, esta parece no ter sido de interesse penal pelo
sistema judicirio em Cabo Verde desde, pelo menos, o fim da Santa Inquisio.
verdade tambm que desde o sculo XVI sabido haver uma maior
liberalidade dos costumes nas colnias do que no reino, como nos mostra Paulo
Drummond Braga, em seu estudo sobre a criminalidade feminina no arquiplago dos
seiscentos:
Se a maior parte dos crimes se parecem muito com os de outros espaos geogrficos, qui
mesmo com os do prprio reino de Portugal, o mesmo no se pode dizer do caso particular da
mancebia. As 12 cartas perdoando tal delito mostram o arquiplago de Cabo Verde e a ilha de
So Tom como sociedades de costumes mais permissivos do que no Reino (BRAGA, 2006, p.
102).
A homossexualidade permanece ilegal em alguns pases da frica Lusfona como Angola e GuinBissau, enquanto que So Tom e Prncipe a descriminalizou em 2011. Moambique sancionou lei que
considera ilegal a discriminao por orientao sexual em 2007. Um ano depois, Cabo Verde sancionou
lei parecida (Amnesty International, 2013)
42
O primeiro teria sido a frica do Sul.
38
43
A sociloga Claudia Rodrigues narra um caso de agresso de travestes sampadjudas na cidade da Praia:
Pela primeira vez, h cinco anos, veio Praia um grupo de travestis da cidade do Mindelo que
organizaram um concurso Miss Gay. A populao compareceu em peso e participou no show como se de
uma pea de teatro cmico se tratasse, mas a situao mais crtica ocorreu quando as travestis resolveram
passear nas ruas da cidade e foram agredidas por pessoas, no s verbalmente como, tambm,
fisicamente (RODRIGUES C. , 2010, p. 52) Outro exemplo notvel desta diferena entre Praia e
39
Mindelo poder-se-ia ser encontrado no relato do antroplogo cabo-verdiano Jos Manuel Veiga Miranda,
que pesquisou em sua dissertao de mestrado a masculinidade em uma vila de pescadores localizada na
costa oeste da Ilha de Santiago. O autor menciona que por l apenas o fato de um homem colocar a mo
nas ndegas de outro homem j seria motivo de morte (MIRANDA, 2013, p. 34).
44
A inabitabilidade do arquiplago no perodo da pr-colonizao portuguesa no uma tese
historiogrfica unnime, mas concordam com ela (CORREIA E SILVA, 2000; VASCONCELOS, 2007;
RODRIGUES C., 2010; RODRIGUES M., 2011).
40
H aqui resqucios, sem dvida, de um hbito historiogrfico marxista de culpabilizar o estrangeiro pela
explorao e mazelas locais. Hbito este que acaba se refletindo nas concepes dos habitantes da cidade.
Contemporaneamente, em meu trabalho de campo, apareceu uma reclamao de meus interlocutores
sobre o caso dos japoneses, que supostamente estariam pescando ilegalmente na costa de Cabo Verde.
Os chineses, por outro lado, estariam entulhando a ilha de produtos de plstico. E a ltima acusao
em moda no Mindelo contra o capital estrangeiro dirigida aos alemes, aparentemente proprietrios
da marina da cidade. Segundo meus interlocutores, o empreendimento no gera receitas cidade, pois a
concesso do espao teria sido feita de forma fraudulenta pela cmara municipal. Enquanto escrevo esta
dissertao, surge a notcia de que entidades desconhecidas do governo cabo-verdiano estariam
prospectando petrleo nas guas territoriais do arquiplago. O governo, contudo, negou:
http://www.abola.pt/mundos/ver.aspx?id=457485
41
46
42
Correia e Silva nos conta que o contingente populacional nessa nova tentativa de
colonizao era de 56 famlias originrias de Santo Anto e que coube aos notveis
dessa ilha e ao comandante de So Vicente a transferncia dessas pessoas (2000, p. 50).
Mas no seria ainda dessa vez que o processo deslancharia ascendentemente. A fome
regressa s ilhas do Norte entre 1823 e 1826 e no poupa a frgil colnia da ilha do
Porto Grande(2000, p. 52). So Vicente uma ilha pouco dada s chuvas (ALMEIDA
G. , 2004, p. 39). Pois como o resto arquiplago, S. Vicente vive sob a sentena do
ciclo das chuvas e das secas; mas com um agravante, a de ser mais pobre que do que
qualquer uma de suas irms (CORREIA E SILVA, 2000, p. 52). Pelo menos seria at
ento.
Com o regresso dos liberais ao poder em 1834, argumentar Correia e Silva,
procura-se reordenar o arquiplago em benefcio da regio norte, de ocupao mais
recente, o Barlavento. nesse sentido, que o Marqus de S da Bandeira, secretrio de
estado do ultramar e seu colaborador Joaquim Pereira Marinho iro tentar posicionar
So Vicente no centro da vida comercial de Cabo Verde, antes disputado pelas ilhas do
Sotavento, sendo Santiago, a principal (2000, p. 59). O objetivo concreto era tornar o
Porto Grande em um entreposto de mercadorias africanas, mais notadamente aquelas
dos rios da Guin, para onde convergiriam os mercadores internacionais (2000, p. 60).
Surge, no pela primeira vez, a ideia de transferir a capital do arquiplago da
ilha de Santiago para a de So Vicente. Desta vez, porque o agente colonial Pereira
Marinho, segundo Correia e Silva, achar que a localizao da sede administrativa
nessa vila [Ribeira Grande, vila na ilha de Santiago que precedeu a cidade da Praia]
coloca o poder poltico sob permanente ameaa, uma vez que a ilha encontrava-se em
clima poltico tenso de contestaes sociais.
Tentativas histricas de mudana da capital e os reflexos dessa disputa
permanecem at hoje no imaginrio popular das duas ilhas e alimenta a rivalidade entre
sampadjudus e badius nas questes da poltica e da economia nacional. Ainda hoje, em
S. Vicente, os homens bons e outros de origem social mais popular manifestam a sua
distncia relativamente aos da Praia, imputando-lhes o menosprezo de So Vicente
43
47
44
Percebe-se nos discursos dos sampadjudus que a aluso aos ingleses remete
para um suposto patamar civilizacional mais adiantado do que o que teriam alcanado
se confinados ao contacto com o colonizador portugus (NASCIMENTO, 2008, p. 31).
Um discurso evolucionista muito gramatical em Cabo Verde at o incio do sculo XX
(VASCONCELOS, 2007, p. 172), mas que ainda hoje parece ter ressonncia.
Nesse sentido, de acordo com Correia e Silva (2000), a Gr-Bretanha foi um ator
primordial na reestruturao dos fluxos atlnticos. Pressionando para o fim do trfico
negreiro frica-Amrica, surge um novo fluxo de emigrao dos camponeses europeus
para as terras sulamericanas, com a crise agrcola europeia. Camponeses esses que,
emigrados, demandam produtos industriais de origem inglesa. Alm desse mercado, a
Inglaterra precisa abastecer suas colnias africanas e aquelas localizadas no oceano
ndico, tornando o Atlntico rota ainda mais importante para este pas. E Cabo Verde
estava estrategicamente posicionado nesta rota.
45
49
certo, no entanto, que a partir daquele ano, os ingleses criam no mar depsitos
carvoeiros para o reabastecimento dos seus navios que escalam S. Vicente (2000, p.
66). E completa: Um prenncio tmido do que viria a acontecer (2000, p. 66). A
colonizao de So Vicente pelo emergente capitalismo ingls de fato ocorreu.
No incio dos anos 60 do sculo passado a Mac Lead and Martin constri o
chamado quarteiro ingls, contendo mais de 50 casas de habitao social. Outro
exemplo o da Millers & Cory que tambm constri um conjunto habitacional para os
seus trabalhadores (2000, p. 122). Wilson, Sons & C e outras fazem o mesmo.
Enfim, as companhias inglesas se multiplicam pelo Mindelo, imprimindo algo de sua
cultura. O mesmo afirma o antroplogo portugus Joo Vasconcelos ao se referir a
importao do costumes ingleses, como o vesturio tpico, aos anglicismos no lxico
os esportes como football, tennis e criquet, adotados na ilha (VASCONCELOS, 2007,
p. 77).
De acordo com Correia e Silva, o poder que as empresas inglesas detm no
Mindelo enorme, quanto mais no seja porque constam das suas listas de empregados
cerca de 50% dos trabalhadores de toda a ilha (CORREIA E SILVA, 2000, p. 123).
Percebe-se na anlise de Correia e Silva uma grande penetrao das companhias
inglesas na vida no s econmica, mas tambm cultural dos insulares de So Vicente.
Ainda que cauteloso em relao distncia entre os valores e ideias trazidos pela
presena inglesa e as prticas reais dos trabalhadores, baseadas em valores camponeses
enraizados, Correia e Silva ainda mais direto sobre a transformao dos emigrantes de
So Vicente, a partir da imitao dos ingleses (2000, p. 124).O romancista Germano
Almeida nos fornece em sua obra de fico uma boa imagem do processo civilizador
que os sanvicentinos pensam ainda empreender para com os migrantes recm-chegados
das outras ilhas, como nessa conversa entre seus personagens Luizo e Miguilim:
Tu um p-rapado que veio de So Nicolau ainda a andar torto por estar cheio de pulguinha at
aos sovacos, e graas a ns de So Vicente que conheceste sabonete desinfectante e hoje em
dia andas calado e at aprendeste a comer com faca e garfo! (ALMEIDA G. , 2004, p. 49)49
49
Vi cena muito parecida entre dois desconhecidos na Pracinha da Igreja, no Mindelo. O sanvicentino
acusava jocosamente um recm-chegado do interior de andar a passos lentos, como seria tpico do
ambiente rural. A brincadeira acabou com um deles falando algo pejorativo da mulher do outro.
50
De acordo com Rodrigues, Mindelo teve, ao longo de sua histria, constantes fluxos migratrios de
zonas rurais para as zonas suburbanas (RODRIGUES M., 2011, p. 11).
51
Por heteronormativo nomeio um amplo conjunto de normas com signos mais ou menos instveis,
referentes s prticas sexuais e performances corporais, que se conformam para atender um sistema de
gnero binrio, onde existem apenas dois sexos/gneros: o feminino e o masculino. Em seu significado,
est pressuposto o heterossexismo, que pode ser definido como um princpio de viso e diviso do
mundo social, que articula a promoo exclusiva da heterossexualidade excluindo a homossexualidade
(TIN, 2003), formando uma nova composio binria.
51
ele tenha se constitudo, est longe de ser um paraso incontestvel da liberalidade dos
costumes52. A estrutura da moralidade conservadora crioula e o sistema de gnero
binrio permanecem ali, transformados e atenuados de alguma forma, mas atuam com
eficcia relativa na normatizao e padronizao dos corpos e dos desejos, como
veremos ao longo desta dissertao.
Todavia, no sero somente os trabalhadores porturios que chegaro ao
Mindelo e sero responsveis pela manuteno de um status quo da moralidade rural
crioula. Importantes e ricas famlias tambm migraro para So Vicente, advindas do
Barlavento, buscando oportunidades de multiplicar seus negcios (2000, p. 127).
Sobrenomes como vora, Martins e Leite aportam no Mindelo e ainda hoje so
ilustres na cidade, indicando as origens, inclusive, de alguns de meus interlocutores.
Mas no s de cabo-verdianos e ingleses povoou-se a Ilha de So Vicente.
Correia e Silva nos conta em relao ao contingente populacional diverso em So
Vicente j no fim do sculo XIX, que contribuiria para a formao do mito do
cosmopolitismo da ilha:
Nos anos 80 a cidade uma autntica babel caboverdiana. Ela tem dentro o arquiplago todo.
o que nos diz, com expressividade, o administrador do concelho Joaquim Botelho da Costa:
Na ilha de S. Vicente no h linguagem, ou, como se diz, crioulo prprio de todas as ilhas.
o cosmopolitismo escala arquipelgica. (2000, p. 128)
52
Alis, a Inglaterra estava longe de ser um paradigma de liberalidade no que diz respeito aos costumes,
haja vista que este pas, por exemplo, s viria a descriminalizar a homossexualidade na segunda metade
do sculo XX, mais precisamente em 1967. Agradeo a esta observao feita pelo professor Peter Fry na
banca.
52
53
Soncente o termo crioulo equivalente So Vicente. Almeida, a revelia do resto do ttulo de sua
obra em lngua portuguesa, usa este termo crioulo para se referir ilha.
53
54
Devido ao fim do apogeu do Porto Grande e desde a crise econmica em que Cabo Verde se encontra h
pelo menos uma dcada, a grande maioria desses consulados ou vice-consulados se encontram hoje
fechados. Muitos das casas que os abrigavam esto em runas, como o consulado da Holanda, na zona do
Alto Miramar. E a presena estrangeira se percebida ainda hoje, muito mais representada pelos turistas
em frias que desembarcam dos transatlnticos e passeiam pela cidade do que funcionrios lotados em
reparties.
55
Hoje o fluxo pendular de pessoas que partem e chegam ao Mindelo menos intenso e diversificado,
mas mais regular. Contaram-me que os perodos de frias escolares de vero, por volta do ms de Agosto,
assim como as festas de fim de ano e o carnaval, costumam atrair muitos emigrados de volta ao Mindelo.
As percepes quanto a esse enchimento da cidade nestes perodos so diversas entre meus interlocutores,
mas no geral, tem-se como prazerosos perodos, haja vista que aumentam os nmeros de festas e de
possveis parceiros sexuais, alm de outras subjetividades relacionadas.
54
Essa aproximao com o Brasil56 nos lembrada tambm por Moacyr Rodrigues
no samba Caf Atlntico, cantado por Cesria vora. Na msica, a metfora ainda
hoje atual do Mindelo como um Brasilzinho:
Jam conchia So Vicente/ na s ligria na s sabura/ mam ca faz um ideia/ S. Vicente um
brasilin/ chei de ligria/ chei de cor/ ness trs dia di locura (RODRIGUES M. , 2011, p. 9)57
56
Em meu trabalho de campo, pude observar a enorme influncia das telenovelas brasileiras, exibidas
mais de uma vez por dia na televiso local e febre das famlias, como no Brasil. Alm disso, no s a
Rede Globo, mas tambm a brasileira Rede Record ganha terreno em Cabo Verde, em parte por sua
programao televisa atrativa, principalmente pelos programas de auditrio e pelos programas de
violncia urbana todos com contedo exclusivo para o pblico brasileiro, todavia consumidos em Cabo
Verde parte, por sua insero no mercado religioso local com a Igreja Universal do Reino de Deus. No
futebol, parece que h maior interesse pelos times e campeonatos portugueses, apesar de conhecerem
times e jogadores brasileiros. Fato relacionado aos tempos em que Cabo Verde ainda era colnia de
Portugal, como disse-me certa vez Didi. O crioulo do Mindelo tambm o mais prximo aos falantes do
portugus brasileiro. Alm disso, os sampadjudus absorvem de bom grado muitas das expresses e o
sotaque brasileiro. Empolgavam-se bastante toda vez que descobriam minha nacionalidade. (Para
discusses tanto sobre a insero da Igreja Universal do Reino de Deus quanto para o lusofonia na ilha,
ver VASCONCELOS, 2004. Para a influncia das telenovelas brasileiras nos pases africanos, ver
MENDES, 2012.
57
Traduo fornecida pelo autor: J conhecia S. Vicente/ na sua alegria e na sua entrega ao prazer/ mas
no fazia ideia/ S. Vicente um brasilzinho/ cheio de alegria/ cheio de cor/ nesses trs dias de loucura.
55
Nascimento analisa este que seria um dos traos do sentimento de especificidade dos mindelenses:
Um trao dessa especificidade poder ser a prpria nfase na sua distino por comparao com a normal
ou expectvel diferena de ilha para ilha e, consequentemente, dos vrios ilhus entre si [...] Os
sanvicentinos teriam, ento, uma ideia de serem diferentes e mais inteligentes ou, se quisermos, mais
mundanos do que os naturais de outras ilhas. Para eles, a prova dessa decantada especidificidade
estabelecida pelas opinies de terceiros, citadas at por pessoas de extraco social mais popular
(NASCIMENTO, 2008, p. 27)
56
Verde (2000, p. 196). Rodrigues, por outro lado, mais otimista e conta que anos mais
tarde, em 1917, instala-se um Liceu no Mindelo, que vai alargar sua populao, atraindo
gente de todas as ilhas e de todas as camadas sociais. Rodrigues considera a cidade da
primeira metade do sculo XX como a Meca da cultura caboverdiana(RODRIGUES
M. , 2011, p. 39).
De qualquer forma, o cosmopolitismo encerraria o sculo XIX j sedimentado
no esprito sampadjudu. Em artigo sobre cultura global, Ulf Hanners empreende um
enquadramento da categoria cosmopolita que nos ajuda a pensar o caso do Mindelo.
Apesar de uma perspectiva individualista e tpica-ideal, o autor compreende o
cosmopolitismo como um estado mental e uma forma de administrar significados
(HANNERS, 1999, p. 252):
A perspectiva do cosmopolita precisa envolver relacionamentos com uma pluralidade de
culturas consideradas entidades distintas [...] Porm, alm disso, o cosmopolitismo, num
sentido mais estrito inclui uma posio em relao prpria diversidade, em relao
coexistncia de culturas na experincia individual. O cosmopolitismo mais autntico , acima
de tudo, uma orientao, uma vontade de se envolver com o Outro [...] Entretanto, a vontade de
se envolver com o Outro, e a preocupao de alcanar uma destreza nas culturas que a
princpio so estranhas, relacionam-se ao mesmo tempo com as consideraes do prprio eu. O
cosmopolitismo a maioria das vezes possui um filo narcisista; o eu arquitetado no espao
onde as culturas se refletem entre si. (1999, pp. 253-4)
57
Adianto que entrarei brevemente aqui nas rivalidades histricas e polticas sobre
a constituio da identidade nacional de Cabo Verde, para em seguida, trazer meus
prprios dados etnogrficos que revelam na atualidade uma tendncia mindelense clara:
uma rejeio difusa pelos signos de africanidade. Isso porque, a inclinao ao oeste do
globo, alm de uma caracterstica histrica do povo mindelense, uma estratgia de
criao de um diacrtico fundamental para os gays sampadjudus na atualidade, haja
vista a intensificao da perseguio aos homossexuais nos diversos pases africanos do
continente.
Para passar brevemente pela histria do sculo XX em Cabo Verde, aciono os
escritos dos antroplogos Joo Vasconcelos e Juliana Braz Dias.
Vasconcelos afirma que em finais do sculo XIX que encontramos indcios
seguros da circulao da ideia de que existe uma individualidade cabo-verdiana
(VASCONCELOS, 2004, p. 170). Segundo o autor, isto ocorreria por trs agendas
polticas concomitantes na colnia portuguesa: o debate sobre a definio do estatuto
administrativo de Cabo Verde (se provncia ultramarina ou arquiplago adjacente); a
exigncia de um reforo do investimento do Estado na instruo pblica; e a defesa de
uma poltica migratria civilizadora, que substituiria as migraes para as roas no
continente em benefcio das emigraes para a Amrica do Norte (2004, pp. 170-1).
No plano econmico, Mindelo comea a apresentar um processo irreversvel de
decadncia, devido a vrios fatores, como o crescente aumento do valor do carvo; a
concorrncia com os portos de Dacar e das Canrias; a Primeira Guerra Mundial,
culminando na Grande Depresso de 1929 (DIAS, 2004, pp. 108-9). Mas na primeira
metade do sculo XX tambm, mais precisamente em 1917, que como adiantamos, o
seminrio-liceu de So Nicolau substitudo pelo liceu de So Vicente. Concordando
com Rodrigues (2011), para Dias,
o investimento no domnio do ensino trouxe dinmica cidade. Diversas famlias em todo o
arquiplago mandavam os seus filhos para estudar em So Vicente sempre que as condies
financeiras permitissem. Era o motivo de um novo fluxo migratrio para a ilha, agora atingindo
outras camadas da sociedade cabo-verdiana. Mais tarde, esse vnculo construdo entre So
Vicente e a educao formal seria tambm responsvel por fortalecer a imagem da ilha como
capital cultural de Cabo Verde (DIAS, 2004, p. 108).
colnia a nvel pessoal, pois que a nvel institucional nunca o arquiplago teve qualquer
autonomia da metrpole (2004, p. 171)59. Mas tal funcionalismo contribuiria para que
todos cabo-verdianos, diferena de todas outras colnias africanas, gozassem do status
de serem cidados portugueses de jure do fim do sculo XIX at 1961 (2004, pp. 1701).
No incio do sculo XX possvel observar a emergncia de um sentimento panafricanista em Cabo Verde, mas que se mostraria muito diferente daquele dos
intelectuais negros norte-americanos, como qualifica Vasconcelos:
Mas o pan-africanismo digerido pelos intelectuais cabo-verdianos do comeo do sculo XX era
substancialmente diferente do africanismo da negritude que viria apaixonar alguns intelectuais
dos anos 50 em diante. Ao contrrio deste ltimo, celebrava a hegemonia civilizacional
europeia, no vislumbrava o que fosse o relativismo cultural e era resolutamente anti-racista.
(2004, pp. 172-3).
59
Tal afirmao deve ser relativizada. Como vimos no caso da aplicao do Cdigo Penal, as colnias
chegaram a ter alguma autonomia, pelo menos, na administrao da justia.
60
Segundo eles, nem mesmo o Brasil teria vivido essa formao: O argumento central do seu ensaio [de
Gabriel Mariano, sobrinho de Baltasar Lopes] que essa ausncia de complexos ou conflitos interiores se
devia ao facto de o mulato cabo-verdiano, em vez de ter ficado entalado entre um grupo branco
hegemnico e um grupo negro dominado, ter comandado ele prprio desde muito cedo a estruturao da
sociedade da colnia papel que no Brasil coubera ao portugus reinol (2004, p. 175).
59
A crtica a essa perspectiva eurocentrista viria ento com os jovens caboverdianos nos anos 1950, filhos da conjuntura internacional do ps-guerra. [...] esta
gerao encetou luta aberta contra o colonialismo europeu, sob as bandeiras da
independncia nacional, da unidade africana e do socialismo (VASCONCELOS, 2004,
p. 177). Na intensificao da crtica cultural e literria, em 1963, observa Vasconcelos,
foi a vez de Onsimo Silveira publicar um ensaio bem mais veemente contra o
lusitanismo e os barlaventarismo dos escritos da Claridade (2004, p. 178).
Mas da perspectiva poltica, as ideologias panafricanistas se tornam mais
complexas no cenrio cabo-verdiano. que se por um lado a elevao simblica dos
61
Diz ele em trecho de carta mencionada por Vasconcelos: So todos pretos, mas somente neste acidente
se distinguem dos europeus (2004, p. 176).
60
signos da africanidade gramatical neste novo contexto histrico, por outro, lderes do
PAIGC o partido que nasce para lutar pela independncia de Cabo Verde e da Guin
como Amlcar Cabral, precisavam encontrar um equilbrio entre um sentimento, muito
arraigado no povo cabo-verdiano, de uma superioridade diante das outras colnias do
continente e uma identidade entre esses dois povos. Alm disso, permanecia na
memria coletiva dos guineenses, que foram os cabo-verdianos, durante sculos, os
responsveis pela dominao colonial portuguesa na Guin (RODRIGUES I. P., 2003,
p. 97; VASCONCELOS, 2004, p. 179).
No entrarei nas dinmicas do partido nico em conformar as perspectivas caboverdiana e guieneense nessa luta pela independncia. Importa notar, porm, que a
tentativa de reafricanizao no vinga de forma absoluta em Cabo Verde. O
africanismo de Cabral ao mesmo tempo que apela a um arqutipo irracionalista da
frica, romanticamente citando as crenas, a religiosidade, a feitiaria, desqualifica
todas essas representaes na formao de um novo estado moderno (2004, pp. 180-1).
Em suma, a africanidade la negritude tinha de ser lembrada aos cabo-verdianos e aos
guineenses para que eles se descobrissem irmos uns dos outros: era um instrumento de
fraternidade. Mas tambm deveria ser transcendida por ambos para que juntos pudesse edificar
uma sociedade nova, justa e progressista (2004, p. 181).
Assim como o projeto da unidade poltica entre Guin e Cabo Verde no vingou,
com o golpe no primeiro pas, a reafricanizao tambm no, mesmo aps esforo
contnuo em valorizar os smbolos africanos, como a lngua crioula, a tabanca, o
batuque, funan, etc (2004, p. 182). A runa do projeto poltico do PAIGC, agora
PAICV em Cabo Verde, fez pelo menos reconciliar a elite poltica com a elite
intelectual dos claridosos, que no acreditava na africanizao tampouco na unidade
com a Guin. A partir da, Cabo Verde iria se alinhando cada vez mais com a Europa e
menos com a frica, seja pela poltica multilateral seja pela composio da elite do
partido (2004, p. 183).
Nos anos 1990, sobe ao poder o MpD Movimento pela Democracia e l fica
por toda a dcada, promovendo uma poltica neoliberal, de privatizao das empresas
pblicas e captao de investimentos estrangeiros. Atestam-no, por exemplo, a
adopo de um novo hino nacional e de uma bandeira que rompe com o verde-amareloe-vermelho da paleta cromtica do pan-africanismo. Assim como se faz a reposio
de vrios topnimos cabo-verdianos e portugueses que haviam sido substitudos por
nomes de libertadores africanos (2004, p. 184). Parece o fim desta tentativa de
61
At hoje
Chego a Cabo Verde no ano da graa de 2013. Assim, gostaria de comear meu
relato com uma conversa que tive com o Francs, como era chamado, um professor
universitrio franco-mals gay, que conheci no Mindelo, trs ou quatro dias depois de
minha chegada cidade. Fixado em Paris, ele estava na ilha para relaxar, apesar de
seus problemas de convivncia no Mindelo alm dos seus prprios no lhe
permitissem cumprir seu objetivo muito bem. Interessante, porm, foi uma conversa que
tivemos numa pizzaria, em frente marina, numa ocasio descontrada com o grupo de
amigos gays, que eu estava aos poucos conhecendo e me enturmando. Sendo ele um
scholar parisience de origem africana, interessei-me por questionar sobre suas opinies
acerca do continente. Segue o registro em meu dirio:
Questionei-o se ele concordava com a ideia de um panafricanismo l Igor Kopytoff, ele no o
conhecia, mas o expliquei as principais ideias: como algumas caractersticas que seriam muito
caras frica, como o desapego materialidade do territrio e a importncia dada aos sistemas
de linhagem. A princpio ele defendeu que a frica era muito diversa internamente e no
concordou com a ideia de uma unidade africana, comparando Mali e o Congo. Mas insisti
dizendo que eu estava me referindo mais frica subsaariana e comparei essas questes do
pertencimento terra e famlia em frica e na Amrica indgena (que so bem diferentes).
Da ele pareceu ceder. Ele ficou algum tempo me contando como essa questo das geraes era
importante localmente, em Mali e em outros lugares do continente, porque o parentesco definia
os pertencimentos mais importantes na comunidade. Eu completei que s vezes era uma
questo tambm de poder e ele disse que em Mali era tambm, mas no era tanto isso. Porque
haveria uma harmonia nas sete etnias de l na distribuio do poder. Mas como para ele era um
saco essa obsesso pelas geraes, toda a vez que ia a Mali. Porque uma mulher lhe cobrava
para contar a sua genealogia, da ele tinha que ficar dando dinheiro a cada nova gerao que ela
lhe contava. E concordamos sobre a loucura de se lembrar s vezes mais de 10 geraes de
ancestrais, at chegar no ancestral mtico. No que ele completou e eu concordei de que nem
sempre os ancestrais narrados foram reais. (Sucesso. 26/09/2013. Dirio de campo, p.51)
Outra evidncia desse afastamento que muitos cabo-verdianos tem uma relao
muito mais prxima com a Europa do que com o continente africano, pois o continente
europeu relativamente perto em vrios sentidos: tem mais conexes areas pela
TACV63 e outras companhias; participa de uma srie de acordos de cooperao; e
historicamente destino de muitos emigrados. Percebi que meus interlocutores do
62
Uma situao que achei hilria durante a estadia em Cabo Verde foi um comentrio de uma funcionria
cabo-verdiana de uma companhia area portuguesa, no aeroporto da Praia. Comentei, no sentido de
puxar assunto, que nunca tinha visto a mquina de cartes que ela usava para me vender a passagem
area de volta para Lisboa. Tratava-se de uma antiga seladora manual, em que o carto com os escritos
em alto relevo servia apenas de carimbo para o recibo. No havia um leitor digital, com tela de LCD,
conectado internet, em que eu digitasse uma senha e ela autorizasse a compra, como de costume
atualmente. Ao meu comentrio, ela respondeu aos risos: Isso frica!. Fora um comentrio jocoso
que apelava para uma suposta no-modernidade africana. Jocoso, porque ao mesmo tempo em que ela
selava o meu carto, ela comprava a passagem em seu computador, pelo sistema da companhia na
internet, evidenciando um cenrio contemporneo muito mais complexo do que uma suposta nomodernidade em frica. Contudo, interessante notar que eu s escutaria Isso frica! na Praia.
63
TACV a companhia area estatal de Cabo Verde, que possui atualmente voos regulares para quatro
destinos europeus (Amsterdo, Lisboa, Paris e Bergamo, na Itlia). Alm destes, possui voos para
Fortaleza, no Brasil, Boston, nos EUA (onde h a maior populao cabo-verdiana fora do pas) e,
finalmente, Dakar, nico destino no continente africano.
63
64
Por acaso, Didi e Sofia foram recentemente a Angola, pois estavam em turn com sua pea de teatro
por l, mas visitar ou morar no continente no parece como um desejo de nenhum dos meus
interlocutores. A no ser, como sempre comentava Lunga, por uma boa oportunidade de emprego, como a
de controlador de vo, em que supostamente se ganha 10 mil dlares, alm de casa e carro disposio
em Luanda. Na verdade, existe uma percepo entre muitos dos meus interlocutores em relao a
bonana recente em Angola.
64
65
Algo que j sabia desde o Brasil, atravs de conversas particulares com a minha orientadora, que narrou
um fluxo grande de continentais para o comrcio de arte africana nos resorts da Ilha de Boa Vista. Se
bem que, em Praia, visitei uma galeria de arte no Plat com peas feitas por artistas locais. Inclusive
algumas estatuetas de palha de milho so de um senhor chamado Hiplito que l estava.
65
Fig. 2 Mercado da cidade de Praia, localizado no Plat e sobre o qual eu me refiro anteriormente.
FONTE: Acervo do autor.
Por outro lado, ele ficou bem satisfeito quando eu bati, a seu pedido, uma
fotografia do mercado municipal do Mindelo e postei tambm em minha pgina do
facebook.
Fig. 3 Parte interna do Mercado Municipal do Mindelo, localizado na morada. FONTE: Acervo do autor.
66
66
Mesmo na cidade da Praia possvel captar um discurso que naturaliza a condio de Cabo Verde
como pas ocidental. Se em certo momento da dissertao da sociloga Claudia Rodrigues, fica
subentendido que ela toma Cabo Verde como uma sociedade ocidental e moderna, ao tratar da
permanncia do patriarcado (RODRIGUES C. , 2010, p. 30), em outra fica absolutamente clara a
incluso de Cabo Verde no escopo da ocidentalidade (RODRIGUES C. , 2010, p. 110). Alis, deixo claro
ao leitor que fao uso do termo ocidental mais em uma perspectiva geogrfica de fluxos culturais.
67
Certa vez na Laginha, contando sobre a minha pesquisa para uma jovem
mindelense, que havia vivido quase a vida toda em Lisboa, vivi um momento de tenso,
quando mencionei sobre possveis aspectos tipicamente africanos para falar de Cabo
Verde. Reproduzo, aproximadamente, a conversa com a jovem Aline:
68
Mas foi quando falei de alguns aspectos tpicos de uma sexualidade africana, que ela se
enfureceu. Ela disse, de uma forma muito exagerada e rspida, que eu jamais podia falar em
nada tipicamente africano em Cabo Verde. Eu disse ainda rindo que isso era o que pessoal de
So Vicente achava. Porque em Praia, argumentei, as pessoas resgatavam muitos smbolos
africanos, na msica, na forma de se vestir etc. Ela negou veementemente. Pareceu-lhe uma
ofensa falar que Cabo Verde tinha aspectos africanos quando ela achava Cabo Verde, na
verdade, muito heterogneo, apesar de ser um pas pequeno. Mais heterogneo que Portugal,
me garantiu. (O sexo de Didi e Elzo. 12/10/2013. Dirio de Campo, p.174)
67
69
Cabo Verde. E mesmo nestas situaes h uma crtica depreciativa dos sampadjudus
sobre este comportamento. Em uma de minhas idas Caravela, registro:
As msicas eram quase todas msicas africanas, com percurso e batidas eletrnicas. Alguns
rapazes danavam no centro da boate com aqueles trejeitos de como danariam os continentais,
especialmente os angolanos, segundo Elzo me disse. De acordo com Didi, danam igual uns
gorilas. algo meio parecido mesmo, curvados com o trax para o cho, as pernas
flexionando, para cima e para baixo, abrindo-se e fechando-se, com um centro de gravidade
muito prximo ao cho. As danas eram bem diversas, mas atendiam aos meus esteretipos de
como os africanos danam. (A abordagem dos rapazes. 11/10/2013. Dirio de Campo,
p.167-8)
Alis, aproveito para mencionar que nesta mesma boate, acontece um concurso
chamado Nego Gato, em que rapazes so selecionados para participar de um concurso
de beleza.
Fig. 4 Cartaz de divulgao de uma das fases do evento Nego Gato, fixado na Rua da Unidade Africana.
FONTE: Acervo do autor.
70
Isso para dizer que uma segunda exceo encontrada entre meus interlocutores
gays tambm no sem crticas entre eles a de positivar a categoria africano,
quando esta se encontra no mesmo campo semntico que homens, sexo,
virilidade. Assim, era comum meus interlocutores classificarem os badius como
cavalos, mquinas, brutos68. s vezes era em tom de crtica, reclamando da falta
de afetividade destes, mas em momentos mais descontrados, esses adjetivos enalteciam
a virilidade do homem cabo-verdiano e africano, ora estas como metonmias uma
da outra, ora como sinnimos. Flagrei algumas vezes meus interlocutores expressarem
seus desejos sexuais reais por aqueles corpos mandjacos, pretos, neges.
Por ltimo, uma terceira exceo que observei foi muito pontual e relacionava-se
a uma estratgia poltica do movimento LGBT do Mindelo. Um de seus lderes
argumentava que uma das intenes da sua ONG era fazer do Mindelo, cidade no
discurso agora africana e conhecida por suas qualidades liberal e cosmopolita, uma
plataforma segura para as discusses sobre homossexualidade em frica. Mindelo
seria, em sua utopia, o lugar para receber militantes de todo o continente. Tratava-se de
uma estratgia poltica querer transformar Mindelo no centro do movimento LGBT
panafricano, para promover o prprio Mindelo e ele. Mas este mesmo lder demonstrava
uma pena demasiada pedante em relao situao dos outros pases do continente,
inclusive tratando-os como coitados. Algo nada solidrio ou simtrico, o que acabava
por revelar a ideologia de superioridade ocidental clara e inequvoca deste lder
mindelense e, por extenso, no povo mindelense de uma forma geral.
Um dos raros momentos em que percebi algo perto de um sentimento que eu
chamaria imprecisamente de uma solidariedade panafricana ou no mnimo, do
compartilhamento de um passado colonial comum, foi dentro do carro de alguns dos
amigos que foram me buscar no aeroporto, assim que pisei no Mindelo pela primeira
vez. Reproduzo o acontecimento do dirio:
No rdio do carro, tocava uma msica angolana que falava da Bahia e de Gilberto Gil. Didi
achou que era brasileira, mas a moa o corrigiu, informando que era angolana. Em seguida
dizia algo como seja bem vindo Luanda e a moa comentou que era curioso a msica dizer
isso e ns estarmos entrando no Mindelo. Eu comentei que a msica ainda falava da Bahia e
completei com um a globalizao!. No que ela respondeu abruptamente: o trfico de
escravos!. Teoricamente, globalizao e trfico de escravos podem coincidir ou no, a
depender da linha terica historiogrfica que voc adote. Contudo, quando eu disse
globalizao, estava em mente um processo mais recente, do avano das tecnologias de
transporte e comunicao que permitiam esse cosmopolitismo. Eu quis dizer que estvamos
68
71
todos conectados pelos signos positivos da modernidade. Ela, no entanto, enfatizou o passado
comum e os signos histricos negativos que nos conectava. Obviamente, nenhum de ns dois
estava errado, era uma questo de nfase e poltica. Mas isso no gerou nenhum embarao, ela
no foi rude nem nada. Foi apenas um comentrio. (Eu pelo menos senti assim). (Chegando
no Mindelo e tudo parece perfeito. Dirio de Campo, p.31)
Saindo por hora das representaes sociais dos sampadjudus, voltemos urbis
do Mindelo. Em termos de organizao espacial do Mindelo, Moacyr Rodrigues quem
nos brinda com um quadro mais detalhado. Em sua obra sobre o carnaval do Mindelo,
Rodrigues enfatiza o aspecto das diferenas de classe e a segregao espacial gerada
nesta cidade porturia.
No centro da cidade, morada, moram os homens do saber, os comerciantes, os homens da
mdia que empregam grande parte da mo-de-obra, quer aos balces, no servio do porto e
como domsticas. Mais tarde os ingleses instalam-se na orla, constroem os seus depsitos de
carvo, as suas moradias, as empresas, clubes com bibliotecas e os trabalhadores
caboverdianos das casas inglesas ocupam os morros sobranceiros cidade, onde os ingleses
lhes erguem as suas residncias, nesses bairros limtrofes, pagando caro por elas.
(RODRIGUES M., 2011, p.40, grifo do autor).
72
Hoje em dia, porm, se o estilo das fachadas dos edifcios continua denunciando
a presena inglesa, ainda que apenas arquitetonicamente, e se ainda alguns insistem em
cham-la de Rua de Lisboa, a rua, oficialmente, chama-se agora Rua dos
Libertadores de frica. Nome dado em homenagem queles que lutaram pelas
independncias dos pases africanos, entre eles, os cidados de Cabo Verde. Mudar o
nome de uma rua dominada historicamente pela burguesia inglesa e nomeada em
homenagem metrpole colonizadora uma revanche simblica oficial do psindependncia, que no necessariamente possui, como parece, ressonncia entre o povo
mindelense. Pelo contrrio, a independncia frequentemente lida pelos sampadjudus
como um turning point de declnio para a cidade: verdade que So Vicente est na
agonia, desde a altura da independncia que est assim sem rumo... (ALMEIDA G. ,
2004, p. 248)69.
Se Mindelo inicia-se a partir de seu porto, mais tarde o permetro da cidade
alarga-se para alm da Praa Nova (2011, p. 44). E continuar se expandindo nas
dcadas subsequentes. Rodrigues explica o nome da praa em nota:
Chama-se assim por ter substitudo a antiga praa, de D. Luiz, sobranceira ao mar, que imitava
a do Terreiro do Pao, e destruda pelos ingleses que precisavam desse espao da orla martima
69
Como diz o prprio romancista: nenhuma fico poder alguma vez ser to elaborada como a nossa
saborosa realidade (2004, p. 161). Assim, os dados observados por vrios estudiosos, como Nascimento,
que de fato depois da independncia favorvel cidade da Praia, [...] o sentimento de perda inegvel
(NASCIMENTO, 2008, p. 29).
73
para construir quintais de carvo das suas empresas. Foi-lhe posto o nome de Serpa Pinto, e
hoje chama-se Praa Amlcar Cabral (2011, p. 44).
74
Fig. 5 Mapa da cidade do Mindelo, com destaque para a regio da Laginha, ao norte; o Porto Grande e a oeste; e a
Praa Dr. Regala ao centro. FONTE: Google Maps
Os lugares desta pequena cidade de 70 mil habitantes sero revelados aos poucos
neste trabalho medida que a etnografia avanar e com ela o meu desbravamento do
Mindelo. Para fechar este captulo, gostaria de trazer alguns dados recentes sobre a vida
dos gays do Mindelo nas ltimas trs ou quatro dcadas. Para tal, fao conhecer-lhes as
guas Quentes, na Laginha.
70
Utilizo de forma ldica o termo velha guarda, extrado do carnaval brasileiro que reapropriado pelo
carnaval mindelense, para tratar dos homossexuais veteranos do Mindelo. Sobre o carnaval mindelense,
ver RODRIGUES M., 2011.
75
Nunca tinha visto Non antes, mas naquela noite, ele juntou-se a ns na praa
Dr. Regala e resolveu dividir generosamente seu divertido passado conosco:
Non tambm contou de sua poca na Laginha, que trabalhava na companhia eltrica, onde
havia um tnel por onde passava uma gua quente, que no entendi bem o porqu. (Didi
prometeu me levar l um dia). Nesse tnel escuro e livre, agora fechado, como me contaram,
muitos gays se reuniam nas dcadas de 80 e 90 para ter relaes. Non conta com uma saudade
76
imensa dessa poca, uma poca boa, maravilhosa, sem maldade [...] Non tem
muitssimas histria sobre como nessa poca, pr-epidemia de HIV, a vida era boa para ele.
(Conhecendo a velha guarda 02/10/2013. Dirio de campo, p.106)
71
A ELECTRA, Empresa Pblica de Electricidade e gua, foi criada a 17 de Abril de 1982 [...]. Foram
trs os organismos que estiveram na origem e integraram a ELECTRA E.P., na altura da sua fundao: a
Electricidade e gua do Mindelo (EAM), que por sua vez havia sido constituda pela fuso da Junta
Autnoma das Instalaes de Dessalinizao de gua (JAIDA) com a Central Elctrica do Mindelo
(CEM). Esta fuso teve lugar em Agosto de 1978, juntando os organismos que na ilha de S. Vicente eram
responsveis pela produo e distribuio de gua dessalinizada e de energia elctrica
(http://www.electra.cv/index.php/Breve-Historial.html)
77
Por ltimo, para um melhor entendimento das dinmicas deste local, reproduzo
parte da entrevista com um dos mais famosos gays/travestes72 do Mindelo, que tambm
frequentou, na altura, as guas Quentes:
Mas j me contaram que desde a dcada de 70, existia um lugar na Laginha que eram as
guas quentes...
Justo. As guas quentes!
Voc pode me falar um pouco desse lugar?
Ah, sim. Eu vou te contar: As guas quentes era como a segunda me dos gays. Era... Sabe?
No tendo dinheiro pra pagar sauna, no tendo dinheiro para hidromassagem, tens uma gua...
Como pode se dizer? Uma ddiva da vida [...] muito grossa e bem quente. Ento tinha esse
buraco negro. Com fios tambm, tinha eletricidade, a era muito perigoso. At numa parte
fizeram bem a tapar aquele lugar, porque... Pois s vezes tinha leo [...] Que tinham muita
gente, muito fulgor, homem, mulher... Chegava um casal, homem e mulher, passaram no meio
de toda gente. Zum, zum. Depois um bocadinho... Sentia a mulher: Ahn, ahn, ahn. Depois o
homem : h, h, h. s vezes, os homens gays gostam, ns ficvamos at altas horas, com os
bofes a. [...] Ta a, no meio da gua quentinha, com a onda, com as ondas, que quebravam
dentro da gua tambm, perto da porta. Porque era gua quente [...] Ento as ondas, p... O
homem acariciando, da todo relaxado.
E muitos gays iam nesse lugar pra...
Ah, sim, muitos gays iam porque j sabiam. No s gays [mas tambm] no-gays. Gays e os
prprios homens... Humm... Os homens... Os prprios outros gays no-assumidos iam pra fazer
a sua orgia, porque era uma orgia. Porque j aconteceu com seis, sete, a gays. E os homens l
no meio, tocar a tocar. Uma pega-pega. Isso a era um bem.
Era bom...?
H?
Era sab?
Era SAB, era um bom, era bom. E saa altas hora da madrugada. Saa 3, 4 horas da madrugada.
Escondido tudo. [...] Quente, com frio da madrugada. Bruu. Muitos, muitos pegaram
pneumonia naquele lugar porque sa da, com gua do mar bem frio [...] e ficava at tarde.
Dormia s vezes num... na cochinha, deitada com homem. [...] de manh... O que eu fao?
Minha me... Deus! Ficava at... Mas era bom viver.
Isso era quando? Voc ia assim quando? Quando que as pessoas comearam a ir pra l?
Voc lembra?
L, da... Tempo da minha me, tempo dos antepassados. Porque aquele de ex Matiota.
Aquele lugar... Aquele lugar tem histria! Eu posso contar a minha parte. Mas a os gays que
vieram primeiro ns. Primeiro do que eu, primeiro que a Lady. Os que no assumiram, l
estavam, com os homens s escondidas.
Isso era um cano que fazia a dessalinizao da gua, n? Que vinha da...
Justo. Da jarda l pro mar.
Entendi.
Ento, sabe? No ... J imagina a cena. (risos) Gay aqui, gay aqui...
[...]
No era meio escuro, perigoso...?
72
Como veremos com mais detalhes nos prximos captulos, a auto-identificao desta figura e de outras
como gay ou traveste cambiante e depende sempre do contexto em que a identidade precisa ser
acionada. Razo pela qual no me sinto a vontade de designar aqui uma identidade nica para descrevla.
78
Na noite, fazia escuro. Ento na noite era, era, era... perigoso. Lgico no vai estar l sozinho.
Ento era sempre um grupinho: trs, quatro gay e tal. Cinco gay. Sozinho? Hum... L vou eu
ficar sozinho... Pode entrar dois, trs homens querendo te hum, hum... [...] Era sempre melhor
evitar, n? Mas nunca...
Entendi.
Nunca foi tarde pra pegar dois homens. Ou trs. (Entrevista Suzete, Mindelo, 29/10/2013)
afetiva. Assim, mesmo que a perseguio estatal no parea h muito tempo se efetivar
e que tenha existido uma vida sexual ativa dos homossexuais no Mindelo desde pelo
menos a dcada de 1970, estas experincias sempre tiveram de ser escondidas, como
nas tubulaes das usinas de dessalinizao, saudosamente chamadas de as guas
Quentes da Laginha.
Entendida muitas das premissas histricas e culturais, no s de Cabo Verde,
mas especificamente do Mindelo, possvel agora avanarmos por outras questes desta
etnografia.
81
Sistema Hipocrisia
73
Sempre que me referir (homo)sexualidade, estarei com isso querendo me referir tanto sexualidade
mais ampla dos cabo-verdianos, quanto s prticas sexuais entre indivduos do mesmo sexo, que esto
englobadas nesta sexualidade crioula.
83
cabo-verdiano. Este lugar, porm, pode variar nas ditas sociedades patriarcais e
certamente em Cabo Verde, a homossexualidade no assimilada culturalmente da
mesma forma que em outras sociedades deste mesmo tipo, tampouco formulada
internamente de maneira homognea. H modelos em competio (FRY, 1982b, p. 91).
sobre a inspirao destes modelos tipolgicos recriados por Fry (1982b), que
pretendo diferenciar no somente dois sentidos da categoria hipocrisia na perspectiva
dos homossexuais a respeito do sistema de gnero cabo-verdiano (o silenciamento e a
contradio), como diferenciar as prprias experincias em relao sexualidade
(modelo hierrquico e modelo simtrico)74.
Assim, de um lado, tem-se um modelo hierrquico hegemnico no arquiplago
em que emergem as figuras dos homens e das bichas, cujos comportamentos
sexuais respectivamente sero no plano ideal ativo e passivo, reproduzindo a
dominao masculina sobre o feminino; por outro lado, percebo a emergncia de um
modelo sexual tipicamente igualitrio ou simtrico, onde surge a figura do
homossexual (ou homoafectivo) masculino, cujo comportamento sexual (se ativo
ou passivo) no o diacrtico por excelncia entre esses sujeitos homossexuais (ou
homoafectivos).
Operarei analiticamente com esses modelos tipolgicos, pois eles contribuem
para o trabalho de estabilizao, pressuposto em uma pea antropolgica. E, apesar
desse modelo terico ter sido gerado em outro quadro de referncia emprica, o Brasil,
serve como grande inspirao ao caso cabo-verdiano. Por outro lado, a teoria queer j
nos relembrou que estes modelos nunca so realizados na sua plenitude pelos sujeitos.
, portanto, nas repeties dos atos performativos destes, em suas bricolagens de signos
de sexualidade dispostos na cultura, que se cria a falsa aparncia de substncia de
gnero (e desses modelos). Portanto, nem todos os homoafectivos vivero de fato
relaes simtricas com outros homoafectivos, tampouco, no outro modelo, todos os
homens sero sempre ativos ou todas as bichas sempre passivas75. Como
74
Modelos que seriam inspirados nas ideias de Louis Dumont, como o prprio Fry fez questo de
enfatizar na banca de avaliao desta dissertao.
75
Desde o incio do trabalho, Fry alerta deliberadamente para o fato de se propor analisar representaes
sociais, discursos e retricas e no as prticas sexuais em si, o que lhe proporciona criar modelos ideais.
Mas em uma nota de fim, o autor claro quanto a essa fluidez ao dizer que os entendidos uma figura
anloga ao aqui homoafetivo, supostamente simtricos aos parceiros preferem manter relaes
sexuais com os classificados homens e no com outros entendidos, apesar da regra do modelo
igualitrio (FRY, 1982b, p. 113).
85
Do pa dodu
Usarei a categoria gay sempre que precisar me referir a todos os sujeitos que se reconheam a partir
de uma identidade sexual no-heterossexual, sejam eles homossexuais, homoafectivos, travestes,
ou bichas.
77
Uma ressalva importante a ser feita que Rodrigues pesquisou membros da elite da Praia
(RODRIGUES, 2010:14), com exceo de uma traveste da periferia. A questo da classe scioeconmica um vetor fundamental para a conformao de diversos discursos, inclusive discursos que
forjam diacrticos mesmo dentro de um suposto grupo, como os chamados LGBTs. O que quero dizer
que se deve levar em conta que os relatos por ela obtidos possuem um vis de classe inegvel como a
conjugalidade romantizada em contraposio promiscuidade, o interesse nos direitos civis e
patrimoniais, o poder econmico e simblico para viver uma vida dentro do armrio, a crtica do
travestismo e da passividade das bichas etc. Como veremos, Rodrigues pesquisou indivduos que se
aproximariam de um sistema moderno de experincia da homossexualidade, que Peter Fry j chamou
de o sistema B, onde o ato sexual dramatizaria a igualdade e a simetria (FRY, 1982b, p. 94). Contudo,
analisar os homoafectivos possibilitar vislumbrar um sentido de hipocrisia, qual seja, o de
silenciamento, difuso na populao gay do pas. Para verificar os diacrticos discursivos dos
homossexuais da elite cabo-verdiana para com os das classes populares, ver RODRIGUES C., 2010, p.
81.
86
O que se percebe neste relato que a hipocrisia aqui uma acusao moral
dos indivduos homoafectivos em relao queles outros indivduos de sua sociedade
que,
supostamente
incapazes
de
confrontar
realidade
da
existncia
da
78
Rodrigues esclarece que optou pelo termo homoafectivo, ao invs de outros termos para designar
seus interlocutores, por considerar que este termo mico, apesar de importado do Brasil, daria conta de
uma totalidade mais ampla que apenas a dimenso sexual (RODRIGUES C. , 2010, p. 3). Ainda que
concordemos com a aplicao do conceito no trabalho da sociloga, em meu trabalho, porm, usarei o
termo homoafectivo apenas para me dirigir aos seus interlocutores. Neste trabalho os termos
homossexual e gay se mostram mais convenientes tendo em vista que: 1) ainda que precrio do ponto
de vista de sua capacidade de conferir identidade, estes so termos micos operantes e que atribuem
significados em Cabo Verde; 2) esta etnografia, pelos rumos que ela mesmo tomou, pretende ter como
foco a (homo)sexualidade dos cabo-verdianos; 3) O afecto entre sujeitos homossexuais em So
Vicente, foco desta dissertao, muitas vezes negado como possvel.
87
Contudo, mesmo entre sujeitos dessa elite, possvel captar uma crtica
sistmica, como no depoimento de Maria, companheira de Joana e tambm interlocutora
de Rodrigues. Maria dir que sua sociedade desde que no seja confrontada com uma
certa actividade de forma bastante explcita, ela hipcrita o suficiente para no ser
frontal, nem em termos de perguntar para tirar dvidas nem em termos de agredir
(RODRIGUES C. , 2010, p. 89).
Tal crtica social, contudo, no levar essa elite homoafectiva de Praia ao
enfrentamento do status quo. A hiptese de Rodrigues de que aos homoafectivos da
elite da Praia, detentores de capital econmico, intelectual e artstico, portanto
detentores de poder na sociedade praiense (RODRIGUES C., 2010:55), no lhes tm
interessado confrontar politicamente a estrutura de poder existente, inclusive a
heteronormatividade, pois so, em outros aspectos, os prprios beneficirios dessa
estrutura. Em outras palavras, no parece vantajoso aos homoafectivos da Praia
colocar em risco seus privilgios de elite em prol de uma identidade sexual
(RODRIGUES C. , 2010, p. 100).
A partir dessa perspectiva classista e conservadora desta elite gay da praiense, a
hipocrisia parece ganhar o sentido de uma crtica moral queles que ousam
desestabilizar a hierarquia de classe posta, ao colocar em questo a sexualidade
desviante dos estabelecidos membros dessa elite. A queixa ento desses membros
homoafectivos da elite se torna moralizante e no aspira a um movimento de
transformao social mais profunda. Constatao que levar Rodrigues a uma autoreflexo crtica sobre no ser da obrigao dos sujeitos homoafectivos, que estes
participem em movimentos sociais por seus supostos direitos (RODRIGUES C.,
2010:91).
88
89
Assim, fica claro desde j que, apesar das reclamaes pontuais, de maneira
geral, os homoafectivos entrevistados por Rodrigues vivem bem, de uma maneira
total. E eu poderia dizer algo parecido para os meus prprios interlocutores no
Mindelo. Suspeito que os interlocutores homoafectivos de Rodrigues no aderem a
um movimento LGBT: primeiro, porque, assim como muito de meus interlocutores no
Mindelo, eles j no se afetam ou se sentem representados pelas identidades sexuais
postas nesta sigla (elas j no seriam mais to gramaticais atualmente); segundo, existe
uma tolerncia em Cabo Verde em relao homossexualidade, o que, como
veremos, dificultar bastante a solidificao de um movimento LGBT no arquiplago,
porque o inimigo a ser combatido supostamente a homofobia mais difcil de
ser localizado.
Tratarei de ambos os pontos ainda neste captulo. Mas, parece-me evidente que,
acima de tudo, no h uma saturao por parte tanto dos interlocutores da Praia como os
do Mindelo com o silenciamento em relao (homo)sexualidade caracterstica
cultural marcante da sociedade cabo-verdiana que os leve a contestar radicalmente o
sistema de gnero em seu pas. Talvez essas sejam boas chaves para pensar a angstia
da sociloga em relao falta de associativismo dos homoafectivos em Praia em
torno da questo. Alm do mais, esta tese do no-associativismo estranha quando a
experincia etnogrfica demonstra uma forte tendncia associativa no arquiplago,
muito associada aos processos de modernizao/cosmopolitizao. E, por fim, o
movimento associativo LGBT em Cabo Verde, iria surgir justamente pelas mos das
travestes de So Vicente, no por acaso, um dos grupos mais marginalizados da
estrutura social daquele pas.
De certa forma, Rodrigues corrobora com a constatao do silenciamento da
homossexualidade em Cabo Verde quando demonstra a partir do discurso de Joana que
a prtica crioula difusa da hipocrisia (lida aqui, como no-confrontao) em relao
aos homoafectivos no chega a afetar os sujeitos, tamanho seu assentamento numa
tradio corroborada socialmente. Seria somente nas relaes didicas, vindo de
pessoas prximas, que sua interlocutora apontaria como algo que a magoa mais
(RODRIGUES, 2010:93).
Fica claro no depoimento de sua interlocutora Joana que a afetao se d a partir
do momento em que o sujeito tem suas expectativas frustradas. Tais expectativas,
90
porm, so projetadas sobre os outros mais prximos, a quem se espera certos tipos de
lealdade. O depoimento de Joana demonstra que em relao sociedade mais ampla j
no se espera lealdades neste sentido, mas o silncio em relao (homo)sexualidade,
to caracterstico dos costumes locais. Assim, a hipocrisia (ou a no-confrontao),
enquanto prtica, s se torna um problema para aquele grupo, de fato, quando ela
encarna nas pessoas do crculo social daquele sujeito homoafectivo, que quebram o
pacto do no-dizer e tecem ilaes ainda que indiretas.
Sobre a constituio deste silenciamento
2004, enquanto vigorou a lei que criminalizava os vcios contra a natureza, entre eles,
a homossexualidade. Mas ao mesmo tempo
O Estado cabo-verdiano, foi-me narrado diversas vezes, no possui qualquer poltica pblica
direcionada aos grupos LGBT. Sobre a temtica do direito unio estvel, que tratarei mais detidamente
em outro momento, cito por ora, uma passagem da fala de Ana, registrada por Rodrigues: sim em termos
sociais no h outras questes, estvamos a pensar e a tentar transformar numa unio de convivncia
numa unio de facto, formalmente reconhecida e no h lei, no se consegue... (RODRIGUES C., 2010,
p.99 grifo meu).
92
Em termos de vivncia, e de como esta forma de agir da sociedade as afecta, as duas afirmam
que esta situao no as afecta, pois levam a sua vida como querem. E percebe-se que
incorporam o agir social da suposta indiferena e no agem como atitudes que possam
provocar algum choque. O refreamento das suas manifestaes pblicas visto como um sinal
de respeito pelos outros (RODRIGUES, 2010:99)
Como veremos com o depoimento da traveste Sandrinho, a relao dos familiares com os filhos
homossexuais era particularmente reveladora dessa atitude de no-confrontao. E mesmo no Mindelo,
onde as marcas da homossexualidade so mais permitidas de serem impressas nos corpos, h uma
hegemonia do silncio, que somente aos poucos quebrada. Quando tratar das histrias de meus
interlocutores, espero deixar ainda mais clara esta hiptese.
93
94
nada dito) (MURRAY, 1996, p. 246), ou pelo menos feito sem estrilo (escndalo),
para usarmos uma categoria do prprio crioulo cabo-verdiano81.
Contradio
81
Sobre o indizvel, por exemplo, das (homo)sexualidades camponesas no interior do Brasil, ver
ROGERS, 2006.
95
homossexual aqui ser efeminado, que igual a ser mulher. Dois homossexuais que se
relacionam, so duas mulheres que relacionam. E a isso do o nome de Lesbianismo.
(Dando a largada na organizao do plano de trabalho 25/09/2013. Dirio de Campo, p.42)
Suspeito que haja outro aspecto pressuposto nesta associao, que no somente a
adequao das identidades homossexuais dentro de um sistema de gnero binrio, tal
qual sugere o modelo hierrquico de Fry (1982b). Judith Butler em Bodies That Matter,
d o exemplo de um cartoon, em que a enfermeira/parteira com o beb recm-nascido
no colo, ao invs de exclamar menina!, exclama: lsbica!. E a autora afirma:
Longe de ser uma piada essencialista, a apropriao queer do performativo imita e
denuncia tanto o poder vinculante da lei, que impe a heterossexualidade, quanto a sua
expropiabilidade (BUTLER, 1993, p. 232).
A associao homossexualidade masculina = mulher um artifcio
adaptativo do modelo hierrquico no Sistema Hipocrisia, que por ter como base uma
ideologia sexual binria (macho e fmea), tenta encaixar a homossexualidade masculina
dentro da categoria mulher, reatualizando a assimetria de gnero. A brincadeira da
acusao de lesbiandade pode ser, por outro lado, uma forte evidncia do carter queer
dos sampadjudus. Afinal, tal qual a enfermeira, aqueles que enunciam a lesbiandade
entre dois homens gays no o fazem pela fidedignidade conceitual ou simblica, por
realmente acreditar que se trata de lesbianismo ou por desconhecer o conceito, mas por
uma jocosidade metafrica que denuncia a prpria falseabilidade das identidades de
gnero neste sistema, sejam os denunciantes sujeitos gays ou no.
Assim, acrescento o relato de Elzo, em entrevista, para reforar o argumento:
Sim. Por exemplo, eles acham que todo gay feminino. A maioria trata todos os gays por
adjetivo feminino, por elas e tananan... E no sei, no vem a gente como homem que gosta
de homem. Eles vem meio afeminado, mulher, n?. mais essa ideia de que a gente
meio feminino.
Mas entre vocs, vocs tambm no se tratam s vezes no feminino?
Sim, sim... (risos) A gente se trata muito no feminino, mas isso no sei... (risos). Acho que
tanto desse costume deles tratarem a gente no feminino, que a gente acaba se tratando mesmo
entre si no feminino. E, mais... No . Mais uma... carinhoso, n? mais carinho. No no gozo
nem porque voc ache que a pessoa seja mulher ou esse tipo de coisa. (Entrevista Elzo.
Mindelo, 30/09/2013)
82
Por sugesto vocabular da traveste Suzete, chamarei de sujeitos no-gays todos aqueles indivduos
que no se reconhecem enquanto portadores de uma identidade gay, ainda que tenham experincias
homoerticas frequentes.
97
Fig. 6 Militante reivindicando contra a hipocrisia no Mindelo Pride (2013), primeira parada gay de Cabo Verde.
FONTE: Pgina do Facebook da Associao Gay Cabo-verdiano Contra a Discriminao.
De certa forma, esta fala de Tita aponta para uma maior cautela na leitura performativa do gnero,
tpica da teoria queer butleriana. Contestando o carter performativo das experincias transexuais, Prosser
afirma: h trajetrias transgenerificadas e, em particular, trajetrias transexuais, que almejam aquilo
que esse esquema (ou seja, a performatividade) desvaloriza. Em outras palavras, h transexuais que
buscam, em vez disso, ser constativos, que simplesmente buscam ser (PROSSER, 1998, p. 32). Assim,
Tita e outras diversas travestes com quem convivi se esto em seus corpos bricolando uma nova
possibilidade de gnero, em seus discursos, porm, h um ideal de gnero tradicional a ser alcanado, ser
mulher, substanciada e ontolgica, em conformidade com o binarismo do prprio Sistema Hipocrisia.
84
Vale lembrar que tambm os homossexuais ou homoafectivos masculinos no modelo simtrico de
Fry tendem igualmente a performar um gnero que escape desses nus, como fica claro nos exemplos
retirados da etnografia de Carmen Dora Guimares (2004).
99
85
100
Antes, porm, importante dizer que se no sistema de gnero local, onde impera
o modelo hierrquico, existem basicamente homens e mulheres, sendo os
homossexuais masculinos mal-enquadrados como mulheres em corpos de homens e
homossexuais femininas como o inverso simtrico, no sistema classificatrio dos
prprios homossexuais, esta diviso binria sexista, tpica do modelo hierrquico, no
os sempre satisfatria. Uma dessas categorias do lxico cabo-verdiano que englobaria
os homossexuais masculinos seria tchinda, mas como veremos mais adiante, ela
encontra enorme resistncia de metonimizao entre os gays sampadjudus. Um exemplo
da diversidade de identidades sexuais que opera dentro do universo gay masculino
encontrado no relato a seguir:
Fechadas essas questes dos questionrios e da Suzete pedi ao Elzo para fazer uma lista das
pessoas que poderamos contatar e lhe entreguei um caderno e caneta. Espontaneamente, ele
elaborou uma classificao prpria e fez listas de gays, travestis, heterossexuais,
lsbicas, e bissexuais. Ao lado de cada nome, indicou se fazia parte ou no da associao.
E ainda criou uma legenda M.T., que, segundo ele indicaria, seriam as travestis que apenas
s vezes se transformam. (Dando a largada na organizao do plano de trabalho 25/09/2013.
Dirio de Campo, p.41)
86
Digo surgimento ou ressurgimento porque no posso garantir a partir de meus dados de campo ou da
bibliografia que tais identidades so completamente inditas na histria do pas ou se j eram esboadas
em outros tempos histricos. Porm, parece-me que, a partir dos relatos do antroplogo Luiz Mott, o
esboo de identidades fanchonas ou homossexuais j poder-se-iam ser encontradas desde o sculo
XVI naquele arquiplago. O que posso garantir que, tal como so hoje, elas j pareciam existir desde a
dcada de 1970, nas guas Quentes da Laginha, passando pelo movimento poltico de solidificao
dessas identidades sexuais na dcada de 1990 e assim permanecem at hoje, ainda que tenham sofrido
crticas, desconstrues e atualizaes.
101
Ento, por isso que eu tenho toda esta fama em Cabo Verde. E no s, em outras partes do
mundo, onde h cabo-verdianos que...
Lhe conhecem
Me conhecem. (Entrevista Tchinda. Mindelo, 27/09/2013)
Tchinda uma traveste alta, negra e j pelos seus quarenta anos. Na primeira
vez que eu a vi, vestia-se bem, ainda que simples como se espera de uma ida ao
supermercado, que para onde estava de fato indo. Usava uma cala saruel marrom de
um material mole, fresco. E uma blusa apertada, de tecido fino e estampada, que ia at
seu pescoo, fazendo um conjunto elegante. Brincos, batom vermelho e algumas
pulseiras, alm do cabelo quase Chanel, acompanhavam sua construo feminina.
Chamava-me sempre a ateno o fato dela, assim como outras travestes em Cabo
Verde, no possuir seios, devido a indisponibilidade de polticas pblicas locais, assim
como de recursos, materiais e profissionais, necessrios aos processos de feminilizao
dos corpos travestes87.
Fig. 7 Tchinda dando entrevista para os meios de comunicao locais a respeito do primeiro Mindelo
Pride (2013). FONTE: Divulgao/Pgina do Facebook da Associao Gay Cabo-verdiana
87
Em Cabo Verde, pas de recursos bastante escassos, diziam-me as travestes, no h a possibilidade, via
sade pblica, de cirurgia de mudana de sexo, tampouco a disponibilizao de hormnios femininos.
Alm disso, no h em Cabo Verde, um mercado de prteses de silicone, e mesmo que existisse, poucas
seriam as travestes que teriam recursos financeiros para aplic-lo. No geral, elas alegam no terem
interesse em mudar de sexo, dizem que tm medo da cirurgia e no parecem dispostas a abdicar de seu
rgo sexual masculino. Mas afirmavam que estavam dispostas, caso fosse possvel, a implantar silicone
nos seios e nas ndegas. O objetivo era unnime: parecem-se mais mulheres. O mesmo fenmeno fora
observado por Rodrigues na cidade da Praia (2010, pp. 62-3).
102
Rodrigues dir que mesmo depois dos anos de 1940, a figura do travesti
permanece no carnaval, como figura de subverso da moral pblica:
Apesar das modificaes sofridas a partir dos anos 40 do sculo passado, ainda conserva os
seus palhaos, travestis, que atiram farinha ou um tipo de fuligem para cima dos
espectadores/mirones, e usam bisnagas de gua suja ou lama (o que hoje j proibido, por
causa dos abusos), que criticam as instituies, que subvertem a moral pblica, que provocam
o inusitado e pela surpresa do acontecer nunca imaginado (RODRIGUES M., 2011:67 grifo
meu).
103
O grupo carnavalesco Pomba Gira um nome importado dos cultos afrobrasileiros ainda desfila pelos carnavais do Mindelo e muitos de seus integrantes
foram meus interlocutores de pesquisa, entre eles, Tita.
Fig. 8 Dery desfilando em um dos blocos no carnaval do Mindelo (2014). FONTE: Divulgao/Pgina do Facebook
de Dery.
104
Mas a transio entre poder travestir-se apenas num evento anual e tornar-se
uma prtica cotidiana no Mindelo no foi algo pacfico. Foi preciso que um grupo de
travestes sasse s ruas do Mindelo, a luz do dia, reivindicando o direito de existirem
como queriam. Quem nos conta Suzete, uma das figuras importantes do movimento
que chamarei aqui de Revolta das Tchindas88:
Refiro que eu fui um dos primeiros gays, pioneiros a dizer no discriminao. Eu, Tchinda,
eu, a Botina, deus o tenha, Kate, a Katrina, Barbie, ento fomos uns dos primeiros a dizer
basta com essa hipocrisia. Ento era chocar com a religio, era chocar com a sociedade. Era
como dizer oh, seu renegado, que voc ta fazendo aqui. A sociedade ento... Foi assim: foi
bem cruel, bem duro conosco.
Isso na dcada de 90?
Sim. Fomos apedrejados, fomos... Fomos socorridos pela polcia!
Aqui no Mindelo?
Sim, sim. Mindelo no tudo... Mindelo tambm j teve a sua parte. Porque agora, os
homossexuais, que eu referi, ta mais aberto. Tem mais arestas, tem mais aresta, tem mais...
Tem mais espao, tem menas discriminao. Mas no princpio no foi nada fcil, n? Eu que te
conto... (Entrevista Suzete. Mindelo, 29/10/2013)
Tchinda, como adiantei, uma figura traveste que acabou virando poca uma espcie de ttem, que
representaria todos os homossexuais masculinos de Cabo Verde. O nome prprio vira um nome comum,
um vocativo. Escolho nomear assim o evento, pela ressonncia social da categoria e em homenagem a
este importante personagem da genealogia homossexual do Mindelo e de Cabo Verde.
105
89
Tal ato no acontece sem que no haja um dilogo com um contexto global de ps-modernidade. Em
A identidade cultural na ps-modernidade, Stuart Hall afirma: as velhas identidades que por tanto
tempo estabilizaram o mundo social, esto em declnio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando
o indivduo moderno [...] A chamada crise de identidade vista como parte de um processo mais amplo
de mudana, que est deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando
os quadros de referncia que davam aos indivduos uma ancoragem estvel no mundo social (HALL,
2002, p. 7). No a toa que a categoria identitria tchinda nasceria para se desvanecer logo em seguida.
106
90
Apenas relembro o leitor que todos os nomes foram trocados, para no identificar as pessoas.
107
O termo grego thauma cunhado na filosofia de Plato para indicar a experincia que origina o
pensamento filosfico. Significa o espanto, a admirao ou a perplexidade primordiais que conduziro ao
ato reflexivo.
108
A busca pela igualdade, como se percebe, acaba por eclipsar a prpria identidade
sexual, vista agora, de maneira estratgica, no mais como um diacrtico. E isso, vale
lembrar ao leitor, por uma integrante ativa de um movimento que se arroga LGBT, ou
seja,
um
movimento
de
acrnimo
lsbicas,
gays,
bissexuais,
109
Mas Cesar era, dos amigos, frequentemente, o que mais se indignava com a
pergunta e como muitos dos outros, apelava para uma justificativa pela igualdade:
E... Como voc se identifica assim sexualmente ou identidade de gnero ou voc no se
identifica numa categoria...
Eu no gosto de me identificar como homossexual porque... Eu no vejo a necessidade de Eu
sou homossexual, ele htero. Acho que somos todos gente, pessoas. E eu no quero
pertencer a um gueto, a uma casta. Eu sou igual a todos. Eu no penso antes de agir. Eu no
penso que eu sou gay e eu no quero pensar nisso. Eu quero conviver com as pessoas, sejam
elas quais forem.
E... E desde quando voc tem essa viso do mundo?
Desde sempre!
Desde sempre...
Vem de casa.
Jovem j voc no queria se identificar, como voc se...
No uma questo de no querer se identificar. A minha me me educou duma forma que eu
tinha que me sentir igual a todos. No por eu ter, ser sexualmente... ter uma procura diferente
da maior parte das outras pessoas, eu teria que me identificar como uma casta ou me identificar
como... no! Sou assim e pronto. (Entrevista Cesar. Mindelo, 26/09/2013)
110
111
vida como quer, fala com as pessoas, respeita e respeitado e que, por isso, no tem nenhuma
bandeira a levantar. Lunga disse algo parecido. (A antroploga nativa, o sentimento egosta e
a conversa mgica 14/10/2013 Dirio de campo, p.181-2)
Nomeada em lngua inglesa, talvez como estratgia de marketing internacional. Mas no descartaria a
sempre resgatada herana inglesa da cidade como justificativa complementar. At hoje nas ruas do
Mindelo, algumas placas oficiais de sinalizao de trnsito, que indicam a parada, tm em sua simbologia,
a palavra stop.
94
As Canrias so um arquiplago atlntico espanhol, localizado a 1600 km ao norte de Cabo Verde.
112
113
amanh da nova associao e estava contando ainda com Didi). Explicou que ele acha que foi
bom ter participado da organizao do Mindelo Pride at ento organizado pela AGC mas
que acha que sua contribuio foi (e deve ser sempre) artstica. Ele no quer isso para a vida
dele, no tem pretenses polticas nesse sentido. Depois de conversarmos muito sobre
sexualidade, cultura cabo-verdiana e teoria queer, argumentou principalmente que ele no se
identifica primordialmente a partir da categoria homossexual, mas como Didi. Foi
interessante, que aconteceu toda essa conversa que narro a seguir e, no fim, Didi disse que
sempre pensou assim tal qual a teoria queer que eu o tinha resumido e concluiu com um
puta incentivo para mim dizendo que achava que eu tinha captado j muito bem as coisas, que
eu estava no caminho certo! (A antroploga nativa, o sentimento egosta e a conversa
mgica. 14/10/2013. Dirio de campo, p.181)
Esta era uma das importantes conversas que vnhamos tendo nas nossas longas
noites na Praa Dr. Regala, no Mindelo. Peo pacincia ao leitor para reproduzir a
seguir a longa (mas tambm reveladora) discusso que tivemos naquela noite, com o
intuito de mostrar a complexidade dentro do movimento LGBT local, assim como a
complexidade das prprias identidades daqueles sujeitos. Tentarei demonstrar que
existem razes mais complexas do que o estigma para explicar a atual falta de
ressonncia social do movimento LGBT em Cabo Verde.
Elzo, costureiro e vice-presidente da AGC, por razes de discordncias com o
atual presidente e movido por ambies pessoais, estava em pleno processo de ruptura
com a Associao e pretendia formar uma nova, a ACADIS. Didi, convidado para
participar dessa nova associao, no estava confortvel com o convite, pelas razes que
j expus no trecho transcrito de meu dirio. Apesar de ele achar importante, em algum
nvel, a existncia de uma associao LGBT, no fundo, Didi no se v privado de
nenhum direito atualmente em seu pas e em sua cidade. Disse-me que circula por onde
quer, vive a vida como quer, fala com as pessoas, respeita e respeitado e que, por isso,
no tem nenhuma bandeira a levantar. O professor Lunga dizia algo parecido. Na
verdade, tal fato no me causara tanto espanto, pois uma vez entendida que a existncia
pblica da homossexualidade, encarnada inclusive nos corpos, era possvel no Mindelo,
Didi era apenas um rapaz inteligente, educado e simptico, merecedor do respeito que
lhe conferiam.
Todavia, a conversa na Praa Dr. Regala desenvolveu para uma crtica moral de
meus interlocutores gays sobre algumas das travestes, mas em especial a Dadinha, que
no escolarizada, que supostamente no dedicada aos assuntos coletivos e que
parece no levar as coisas a srio. Segundo as palavras de Didi e de Lunga, Dadinha
s quereria saber de homem, de colocar roupa de mulher e sair pra rua e beber.
Dadinha, que foi a nica pessoa que conheci no Mindelo que ou no sabia ou se
114
Uma discusso semelhante pode ser encontrada num debate de 1979 do grupo Somos de So Paulo,
descrito por Fry (1982b, p. 106).
96
A sociloga Claudia Rodrigues afirma algo do que parece ser uma viso da elite a respeito dos pobres
do pas: em Cabo Verde, no geral, as pessoas so pouco dadas a empenharem-se em causas ou "darem a
cara" por qualquer movimento, algo que podemos considerar como um estilo de vida, oposto a aqueles
que tm uma vivncia mais militante (RODRIGUES C. , 2010, p. 87)
116
97
Exceto em alguns casos narrados a mim, mas sem muitos detalhes, de famlias ricas do pas que
mandavam seus filhos para estudar na Europa e nos EUA, assim que percebiam que eles eram ou tinham
tendncias homossexuais. O intuito, diziam-me, era de esconder esses filhos da opinio pblica local.
117
Em uma de minhas ltimas noites em Cabo Verde, conheci dois homossexuais na capital, uma delas era
a famosa Tita, a outra, um jovem rapaz chamado Graa. Elas, que preferiam ser chamadas no feminino,
vestiam-se de maneira claramente feminina: Graa com uma faixa na cabea e Tita vestida com roupas
femininas. Mesmo vestidos assim e performando vrios outros signos de feminilidade nas suas expresses
orais e corporais, as entrevistei na rua, em um bairro perifrico da cidade, por onde costumavam andar. Se
nesta conversa, Tita contou-me ter sua casa destruda por um incndio criminoso logo depois de dar uma
entrevista contando sua vida para um jornal local, ela terminou a conversa dizendo que estava atrasada
para o culto na Igreja Universal do Reino de Deus, onde, segundo ela, ela era muito bem acolhida.
118
por ser o vice-presidente e no ter feito, segundo ele, quase nada em seus trs anos de
existncia). Senti-me vontade para provoc-los sobre se as demandas que o Elzo tinha
estavam sustentadas em demandas sociais. Desistindo de tratar das travestes e da sua
suposta alienao, pois j estava para mim clara a crtica moralmente conservadora e
de classe dos meus interlocutores, tentei desviar o foco da discusso e perguntei se no
existia uma classe mdia gay na cidade. Eles ficaram pensativos, mas concluram que
ela existia. Perguntei para sugerir em seguida que a essas pessoas, de uma maneira
geral, as demandas do movimento LGBT que esses lderes perseguiam poderiam ser
mais interessantes.
Isso, porque o movimento LGBT internacional hoje no ocidente
majoritariamente um movimento burgus, que est atualmente interessado em legislar
sobre a propriedade, sobre os direitos civis, trabalhistas, previdencirios etc, uma vez
conquistadas minimamente a visibilidade, a descriminalizao e o reconhecimento.
Argumentei que talvez fosse interessasse para a classe mdia dividir patrimnio,
compartilhar plano de sade, previdncia etc, pois a esse grupo scio-econmico faria
mais sentido falar em direitos sobre patrimnio. Pelo fato um tanto evidente de que eles
so quem, de fato, possuem patrimnio.
Perguntei irnica e retoricamente: as travestes tm patrimnio? Tm casa?
Bens? Tm plano de sade? Ento a que lhes interessa o casamento em sua forma
jurdica, se elas j vivem o travestimento e a sua sexualidade mais ou menos livre por
aqui? Insisti que talvez lhes interesse como pauta poltica transformar seus corpos,
porque isso que lhes parecia interessar nas entrevistas e conversas rotineiras. Pareciame que mais do que querer casar ou antes de se casar , elas queriam ser mulher. Mas
esta no era uma pauta prioritria para AGC, no que tange s transexuais.
Enfim, dessa conversa e outras, cheguei a algumas concluses, entre elas, a de
que a ACADIS um projeto pessoal do Elzo. Certa hora, ele mesmo interrompeu a
conversa pra dizer algo como vou confessar uma coisa muito egosta, mas eu quero e
estou fazendo a associao porque eu acho importante no dia que eu quiser casar, eu
poder. Outra concluso que se no debate sobre identidade de gnero, as travestes
parecem reforar o sistema sexista ao quererem transformar seus corpos para que se
aproximem cada vez mais do que ser mulher, reafirmando o carter substancial desta
categoria, por outro lado, sua postura em no conceder ao Estado o poder de
119
Algo que ficar mais claro no prximo captulo, mas que importante j
mencionar, que a homossexualidade entre meus interlocutores do Mindelo
majoritariamente vivida de maneira no-conjugalizada e dificilmente romantizada. Seja
nas classes populares seja nas mdias. Mesmo havendo uma queixa e angstia de
muitos por essa falta de romantismo, a homossexualidade vivida majoritamente em
encontros sexuais pontuais, diferente dos casos selecionados por Rodrigues (2010).
Alis, de acordo com a bibliografia etnogrfica, isso no s um problema dos
homossexuais, tambm a heterossexualidade encontra barreiras em Cabo Verde para se
conjugalizar, pelo menos em nossos termos (LOBO A. d., 2012; MIRANDA, 2013).
99
Arrisco dizer que isso se deve a uma percepo generalizada da populao cabo-verdiana sobre a
escassez de recursos do Estado. Frequentemente umas das mais fortes imagens que meus interlocutores
promoviam de seu pas em conversas comigo a de um pas pequeno, pobre, sem recursos,
dependente das remessas internacionais.
120
Fig. 9 Steffy carrega uma placa com os dizeres Quero casar em C.[Cabo] Verde, como uma das pautas
do Mindelo Pride, que, no entanto, destoa das prticas conjugais locais. FONTE: Divulgao/Pgina do Facebook da
Associao Gay Cabo-verdiana.
Didi defendeu ainda que demoraria dcadas para mudar a cabea dos homens
cabo-verdianos, para que quisessem se casar. Esta era mais uma das provas da falta de
sustentao do movimento LGBT a partir de uma demanda social forjada externamente.
Mas no s isso: a conjugalidade uma questo mais ampla que afeta tambm os
heterossexuais em Cabo Verde. Trata-se de uma forma de vivenciar as relaes
100
Ter com uma locuo crioula que abrange alguns de significados no campo semntico das relaes
pessoais. Quando um sujeito tem com outro, isso poder significar que o sujeito teve uma nica relao
sexual com o outro ou que com ele mantm relaes sexuais contnuas. Por outro lado, a expresso pode
se referir tambm a um relacionamento afetivo/sexual com alguma fixids que se estabelea entre dois
sujeitos. A locuo, contudo, no est restrita ao universo homoertico e tambm acionada em relaes
heterossexuais.
121
conjugais, que tem nas categorias me de fidji e pai de fidji suas maiores
expresses101. As formas como se constri a masculinidade do homem cabo-verdiano
(LOBO A. d., 2012) tem seus nus e bnus tanto para as mulheres quanto para os autoidentificados homossexuais, com quem esses homens costumam se envolver
(MIRANDA, 2013). Assim, no Mindelo, os rapazes gays valorizam a virilidade, a
pegada dos outros homens no-gays, a forma mscula como abordam, mas, e ao
mesmo tempo, se queixam algumas vezes da falta de romantismo, da falta de uma
relao fixa e de carinho. Existe uma angstia de alguns desses meus interlocutores
que compartilham dos valores romnticos, da monogamia e da conjugalidade que
chegam de muitas formas, mas em grande parte atravs das novelas brasileiras. A
verdade que no so somente os gays sampadjudus que reclamam dessa falta de
afetividade dos homens cabo-verdianos, as mulheres por l parecem fazer o mesmo102.
No prximo captulo tratarei melhor das abordagens dos rapazes no-gays aos
gays e vice versa, assim como tratarei das maneiras como se do as relaes sexuais e
afetivas entre homens e homossexuais no Mindelo. Por ora vejamos apenas o relato
de Didi, em entrevista, a respeito do assunto, para que se compreenda o dissenso entre a
atual pauta do movimento gay internacional, pelo menos aquela perseguida na maioria
dos pases ocidentais, e o que de fato acontece nas ilhas de Cabo Verde:
E a.. Bom, a relao sexual acontece, mas existe alguma cumplicidade, existe alguma
relao afetiva, de cime, de saudade...
Hum... no. Se existir, acho que imediatamente aniquilado por eles mesmo. Porque a presso
tanta... Eles, no sei, muito confuso... No d mesmo, no d. Eu diria que no existe
qualquer tipo de afetividade, no... No existe. Se comear a despontar alguma coisa, como te
disse, anulado imediatamente. Tem nada. No tem como mesmo. Comigo e com os outros
tambm. claro que existe outros casos de alguns que conseguem levar, no sei o que... Mas
porque eles investem do seu tempo e insistem e insistem e sofrem, sofrem, sofrem, sofrem,
sofrem... Mas eu no! Eu costumo dizer que eu gosto muito, muito de mim mesmo. (Entrevista
Didi. Mindelo, 26/09/2013)
101
Trata-se categorias micas cabo-verdianas que designam pessoas com quem se tem uma relao a
partir do compartilhamento de um descendente. Pai de fidji, por exemplo, uma categoria que
privilegia no o lao conjugal entre homem e mulher, mas a relao que o homem tem com uma mulher, a
partir de um filho.
102
Esta , inclusive, uma das razes me ditas por Mnica, uma amiga sampadjuda entrevistada, do porqu
ela se envolver afetiva e sexualmente com outras moas.
122
No. Namorado entre aspas, por aqui, por aqui no se deve nem utilizar esta palavra.
Ah ? Por que?
Namorar aqui ... tem... como uma balana: tem um prato pra cima e outro pra baixo.
difcil equilibrar-se. Porque o parceiro nunca, nunca totalmente entregue a ti. Tem sempre
uma conjuntura ou um outro. Um outro lado envolvente. uma coisa, tipo... Uma salada.
E voc est falando de parceiros homens especificamente?
Especificamente.
[...]
Voc teria vontade de namorar?
Com certeza! a minha maior vontade.
E no consegue porque esses homens no assumem, no querem esses relacionamentos...
... (Entrevista Leandro. Mindelo, 26/09/2013)
123
Seja nas entrevistas que muitas vezes foram realizadas em grupo de amigos, seja
nas nossas interminveis noites de conversa na Praa Dr. Regala, uma permanente
questo se colocava para ns: h ou no homofobia em Cabo Verde? A categoria
homofobia, um neologismo criado pelo psiclogo George Weinberg em 1971 e que
de to falada j possui at dicionrio prprio105, no fora introduzida por mim, como por
um vcio etnocntrico, no lxico dos gays do Mindelo. Como vimos no trabalho de
Rodrigues (2010)106, a categoria j fora por eles incorporada dos fluxos globais de
105
124
107
Mandar bocas uma locuo verbal crioula que permite um conjunto mais ou menos alargado de
significados. Pode, portanto, se referir tanto a fazer brincadeiras entre amigos, tidas como inocentes, at
operar como deboches, insultos e humilhaes. As bocas podem ser dirigidas aos alvos tpicos de
troas e gozaes, como os gordos, os muito magros, os do interior rural, os sem dentes, os
efeminados, os muito estpidos e quaisquer outros identificados como desviantes.
125
H o relato de um dos meus interlocutores mais velhos, hoje na faixa dos seus cinquenta anos, sobre
uma pedrada que teria levado na juventude, por volta da dcada de 1970, quando estava a ter com um
rapaz em um local ermo, na zona acima da Laginha. Contudo a vtima em momento algum associou
explicitamente ou deu a entender que se tratava de uma violncia homofbica ou gerada por
discriminao em relao a sua sexualidade. Alertando aos mais jovens que ali estavam, sobre o perigo
daquela rea, Marlon deixava aberto interpretao vaga de que tal lugar era simplesmente perigoso.
Se a violncia da pedrada fora ou no por razes de preconceito, no possvel saber, contudo no
parece ter sido pelo menos assim registrada mentalmente por ele.
127
homem tava assim. Eu magrinho, como um espaguetti. Com uma faca assim... Ai, fiquei toda
assustada. Mas graas a deus, l se foi aquela parte. Eu nem quero lembrar daquela parte.
(Entrevista Suzete, Mindelo, 29/10/2013)
Atualmente, como uma das lderes do movimento gay local, Suzete, para alm
de suas percepes subjetivas e concretas da realidade cabo-verdiana, tem interesse
poltico em demonstrar que h preconceito, homofobia e discriminao em Cabo
Verde, com fins de justificar sua militncia. Afinal, no toa, a organizao a qual criou
e na qual presidente se chama: Associao Gay Caboverdiana contra a
Discriminao. Igualmente, era comum Elzo, outro lder do movimento gay local, se
mostrar contrrio s perspectivas de negao da homofobia, defendidas, por exemplo,
por Cesar, um dos nossos amigos gays, que alega nunca ter sofrido preconceito nem
em Cabo Verde nem nos outros vrios pases onde morou, por ter sempre se dado ao
respeito. Diz ele:
Ns estamos numa sociedade muito boa, que no existe homofobia. Ns somos ilhus, ou seja,
somos pessoas que vivem presas numa ilha. Portanto, a viso diferente: tudo se goza, tudo se
brinca, no ?
Dias depois, na casa de Lady, o lder poltico Elzo revelaria para mim o que
pensa deste discurso de Cesar, presenciado por ele:
Elzo compartilhou comigo que acha que o Cesar tem uma viso muito homofbica. Que no
concorda com ele, quando ele diz, por exemplo, que no existe homofobia, porque, segundo
Elzo, o Cesar era a existncia em si da homofobia. Como no existe homofobia, Cesar? Voc
a homofobia em pessoa aqui em frente disse-me simulando se dirigir a Cesar. Explicoume que quando Cesar diz que no h homofobia em Cabo Verde, ele est querendo dizer que
no h violncia fsica como em outros lugares fora de Cabo Verde (apesar de que j sei, pelas
entrevistas, que h sim ou j houve!). Mas completou que existe outras homofobias e que o
Cesar seria um representante. (Mais um dia de trabalho, mas sexta-feira. 27/09/2013 Dirio
de Campo, p.60)
Contudo, nem mesmo este lder poltico local escapa aos mitos sociais nos quais
est imerso. Elzo titubeia entre o mito sampadjudu da liberalidade do Mindelo e,
consequentemente, da maior aceitao e no-violncia com os gays e a evidncia
128
129
E eu j fui vtima tambm de violncia fsica. Que uma coisa mesmo muiiito pouca, muito
raro. Nem existe uma estatstica, no existe. Eu j fui vtima de violncia e no entendi muito
bem, no sei o que. No consegui... no processei muito bem. Mas depois, eu j fui...
Na rua?
Na rua! Eu tinha acabado de chegar de Angola, de Luanda. Tinha sado com Elzo. E... Eu tinha
sado com uma amiga, minha colega de teatro, no? Bebi muito naquela noite. Acabei
encontrando o Elzo com uns... alguns travestis, n? Normalmente, no, no o meu ambiente.
Mas acabei... No que tenha a ver. No tem nada a ver com eles. Mas eu sa.
130
Existe. s no muito barbarizada como tenho visto em outros lugares. Tipo, na frica
continental. Coisas nem de se ver.
No Brasil tambm, infelizmente...
Infelizmente. Aqui ainda no temos casos extrema. No temos. Acho impressionante aquelas
boquinhas ao ar, ao vento. Mas j... Muitos dizem essas palavras pra... pra chamar a ateno.
Muitos deles dizem isso para chamar a ateno. (Entrevista Leandro, Mindelo, 26/09/2013)
E continua:
Mas quando eu voltei, eu disse quela rapariga: Vocs esto a falar comigo? [...] So
covardes com as pessoas aqui em Cabo Verde, quando voc confronta. Com certeza, se
disserem alguma coisa, vo desmentir ou vo ficar calados. Eu disse Vocs estavam a falar
comigo? Elas disse: No, no estava a falar contigo. Continuo meu caminho, continuaram a
chamar. Eu disse: Olha, uma coisa: ... Eu sou... Eu posso ser o que que eu, que eu quero. Eu
sou eu. E tu, com certeza, se tinhas algum familiar na mesma situao com, que eu, Tu ias, tu
queria que alguma pessoa assim troar com ele, falar mal dele, chamar ele na rua? Querias que
isso acontecer com ele? Ela ficou calada e tambm eu disse: Eu estou a fazer, cuidando da
132
minha vida. Enquanto estou a cuidar da minha vida, estou a avanar. Com certeza vou avanar
muito para frente e voc repara na sua situao. E depois elas se calaram e foram falando.
Mas com certeza no sei se levaram aquela lio, aquela coisa, mas com certeza alguma coisa
levaram. Daquela situao, por parte delas, eu tenho certeza que nunca mais eu vou passar.
(Entrevista Romeu. Mindelo, 09/10/2013)
Presenciei tambm pelo menos uma vez um grupo de meninas mandar bocas a
Elzo e a mim. J havia anoitecido e, sentadas no banco da praa em frente
universidade, algumas meninas nos olharam e reconheceram Elzo. Chamaram-no
sarcasticamente de presidente das tchindas, em referncia ao seu cargo na associao
gay local. Falaram para ns as escutarmos, em claro tom de provocao: o presidente
das tchindas! Amigo da Suzete.
Tchinda, como j foi dito, fora supostamente o primeiro homossexual assumido
em Cabo Verde e tornou-se muito famoso por isso. Didi contou-me que o nome
tchinda fora ento usado para designar todos os homossexuais em Cabo Verde. So
todos tchindas, porque as pessoas no diferenciam os diferentes homossexuais que
existem reclamava Didi. Disse-me ainda que por essa indistino, esse termo j o
irritou muito, mas que hoje em dia no mais109. Elzo me disse logo depois da fala das
meninas, que nem sabia que ainda usavam esse termo e riu.
Mas afinal de contas, quais so as bocas que os rapazes mandam? O que dizem
eles aos gays no Mindelo? Alm de ter ouvido muitas vezes na rua alguns desses
termos, fiz essa pergunta aos meus interlocutores gays e as respostas foram variadas.
Para alm do no muito usual coisinha, do largamente usado paneler e do antigo
tchinda, existe ainda um rico lxico de vocativos: maracas110, biba, bicha,
bichona, boiola, frutinha, viado, mona, diablica111, cadela, pandu,
109
Durante minha permanncia na ilha, um colaborador estrangeiro, ativista gay e que os ajudara a
realizar o Mindelo Pride em 2013, havia postado em sua pgina do facebook algo sobre as tchindas do
Mindelo, o que gerou uma fria entre meus interlocutores, pois, segundo eles, o colaborador estaria
supostamente cometendo a mesma gafe que cometeriam todos aqueles cabo-verdianos, que seriam
supostamente incapazes de reconhecer a diversidade dentro dos chamados LGBTS. Na verdade, a figura
deste ativista j no era muito bem quista por um dos lderes do movimento local e por alguns de seus
amigos.
110
O outro caso que um rapaz ao passar pela gente, chamou-nos de maracas. Termo novo que nem
o Elzo nem o Didi souberam me dizer o significado. Mais tarde, quando estvamos no bar, ainda cogitei
com Didi a aproximao fontica de maricas, termo largamente usado na lngua espanhola e menos na
lngua portuguesa para gays, no que ele j conhecia e concordou que podia ter a ver. E o perguntei se
tinha alguma referncia no crioulo e ele disse que no. E continuamos sem entender o termo. (Mais um
dia de trabalho, mas sexta-feira. 27/09/2013. Dirio de campo, p.62)
111
Esses ltimos oito termos importados das telenovelas brasileiras, segundo me disseram.
133
112
Alguns desses vocativos tambm so positivados pelos gays, ainda que no sejam direcionados
exclusivamente a eles, como o caso de gostosa e poderosa. Segue um relato de meu dirio de
campo e uma entrevista com Lady acerca disso: Nesse rpido intervalo, passou um carro por ns cheio
de rapazes, que d janela se dirigiram a ns dizendo gostosa e est nos deixando doido (essa frase em
crioulo, traduzida pra mim pelo Didi). muito comum essas cantadas na rua, quase sempre feita por
rapazes mais jovens. (O sexo de Didi e Elzo. 12/10/2013. Dirio de campo, p.172). E a abordagem
deles? Como que eles... O que que eles falam? Muitas vezes dizem. Por exemplo, eu... Me chamam de
gostosa, chamam de poderosa, outros... (risos)... Doida. Essas coisas... (Entrevista Lady. Mindelo,
27/09/2013)
113
Categoria nativa do crioulo que significa escndalo, acionada algumas vezes para se referir atitude
equivocada a se tomar em uma relao homoertica.
134
Cesar: Deixa explicar que as pessoas que fazem esses comentrios acabam sempre indo pra
cama convosco.
Didi: Ah, exatamente.
Cesar: por isso no homofobia. H que saber dividir coisa! Eles lanam a boca bem profunda,
pra chocar o gay, o gay olha pra eles com raiva e a gente...
(Risos gerais).
Entendi.
Cesar: no homofobia.
Mas...
Didi: uma estratgia!
Cesar: sim!
Ah sim, uma estratgia de caa.
Leandro: Exato.
Elzo: Ou falta de estratgia.
Leandro: Ou falta de estratgia!
(risos gerais)
Este bate-papo entre o grupo de amigos acabou por revelar que as bocas
mandadas pelos rapazes no-gays em pblico podem ter a funo ritual de atrair a
ateno dos gays para eles. Seria uma estratgia neste sentido. Quando Elzo diz e
Leandro concorda com o que seria supostamente uma falta de estratgia dos rapazes,
aludindo negativamente a uma falta, no querem naquele contexto negar que se trate
de uma estratgia propriamente, mas com ironia desejam critic-la. O que eles querem
dizer que essa forma de abordagem grosseira, estpida, que os rapazes no
sabem chegar, so desajeitados, ainda que se divirtam ao contar isso114.
Na entrevista particular que concedeu a mim, Didi trata do assunto, mostrando o
que seriam tambm outras estratgias, alm do mandar boca, como o olhar e a
abordagem tmida,
Por exemplo, uma coisa que usada muito o contato visual. muito usado. E tambm eles
gostam de chamar a ateno sobre eles, n? Por exemplo, com esse tipo de abordagem (risos)
chamando nomes, no sei o que. E s vezes a coisa evolui para o sexo, que isso mesmo que
eles esto pensando. A ideia fazer a coisa chegar mesmo naquele ponto. Tem alguns que so
corajosos o suficiente para fazer uma abordagem muito tmida. Tipo, a gente est sentado aqui.
Eles se sentam ali. Existem conversinhas e pirocos, tipo "psiiu", e da adiante. E a gente
tambm... Normalmente, na maior parte das vezes somos ns que tomamos a iniciativa. A
gente d um sinal. (Entrevista Didi. Mindelo, 26/09/2013)
114
Essa forma de abordagem dos rapazes no-gays no se restringe ao momento do primeiro encontro ou
do flerte inicial, mas ela permanece ao longo das frgeis relaes que eles constroem com esses rapazes.
Quero dizer que a estupidez ou agressividade destes rapazes geram consequncias mais graves para
as sensibilidades dos gays no longo prazo, pois algo que, perpetuado para alm do ritual da conquista
sexual, gera angstia e frustraes.
135
sentidos pejorativos, como pelos sentidos apreciativos. Seja paneler, seja gostosa,
como todos os signos lingusticos, nenhuma categoria tem sentido em si mesma e
depende sempre das relaes semnticas para ganhar sentido. E nesse ritual privado ou
pblico, permeado por tenses, que a categoria ganhar um sentido especfico.
Como da natureza do ritual, este pode no ser efetivo, pode dar errado, seja
como no caso de Graa, como vimos, em que a boca gerou uma humilhao tamanha
e uma oportunidade de provar seu orgulho, que no se permitiu que a relao sexual se
consumasse ali, seja como quando os sujeitos gays mal-interpretam os sinais dos
rapazes no-gays:
E se no for o caso desses rapazes no estarem querendo e, de repente, vocs tomam a
iniciativa e no isso.
s vezes, chato. Alguns acabam por ser bem agressivos. E.. pode ser constrangedor e...
Porque s vezes voc compreende errado, os sinais, interpreta de uma forma errada, distorcida.
Mas na maior parte das vezes, (risos) a gente acaba por estar certo mesmo. (Entrevista Didi.
Mindelo, 26/09/2013)
Mas nos casos em que so eficazes, eu pergunto com certa consternao, afinal
de contas, porque os gays se envolvem com esses rapazes no-gays e se frustram, se
est posto culturalmente que a linguagem da relao est permeada por esses signos
entendidos como estupidez, ignorncia, grosseria etc.
... Ainda tem mais essa, porque ns... Eu falo por mim, mas posso tambm falar por outros.
E... Temos fetiches para dificuldade. Quase isso atrai. Ao invs de estarmos aqui no meio gay,
umas pessoas mais associadas uma com a outra. Ao invs de estarmos aqui pacficos, vivendo
nossa conversa. No! No vivemos assim! Vamos procurar o problema bem... peludo e bicudo
tambm.
Que so esses rapazes...
Exatamente.
E por que? O que atrai neles?
No sei (risos). At hoje estou a procura da explicao. No sei, no sei... Gosto. Acho que
gosto. Porque s uma pessoa para gostar.
Mas existe algum atributo fsico, um jeito, o que que atrai?
Com certeza! Muito atrai. A questo fsica indiferente. Mas agora, s vezes mesmo por, pelo
carter tambm. s vezes vemos alguma coisinha que, tipo um... um grozinho que atrai. Mas
no fim da conta no, no acertado. Fica sempre uma coisa... (Entrevista Leandro. Mindelo,
26/09/2013)
Tais relatos nos conduzem a pensar que um dos aspectos mais importantes para
uma antropologia da (homo)sexualidade em Cabo Verde entender que o mandar
bocas por vezes apressadamente interpretado como preconceito ou homofobia
nem sempre podem ser facilmente enquadrados nestes termos. No Mindelo, e no
apenas na Ilha de Santiago, como diagnostica Miranda, a masculinidade construda,
137
138
3)
inaugurar o que viria a ser o moderno movimento LGBT local. Em seguida, contudo,
lano a hiptese da anacronia deste movimento que, inspirado nas experincias e na
gramtica do movimento LGBT internacional (construdo desde o final da dcada de
1960 em outros pases norte-americanos e europeus), no parece mais corresponder s
expectativas e aos dilemas da sociedade crioula cabo-verdiana tampouco sua
populao gay neste incio de sculo XXI. Pois as pautas que esto postas, geradas em
outros sistemas sociais, encontram um assentamento precrio no arquiplago. Por
exemplo, a descriminalizao da homossexualidade, tal como perseguida pelos
movimentos LGBT em muitos pases africanos, uma pauta no-gramatical em Cabo
Verde, pois a efetiva criminalizao de fato nunca parece ter ocorrido no pas, apesar do
cdigo penal prescrev-la at 2004. Outro exemplo seria a inviabilidade da legalizao
do casamento gay. Isso porque o modelo hegemnico de casamento ocidental, marcado
pela co-habitao dos cnjuges, um modelo historicamente rejeitado pelas prticas
culturais na sociedade crioula e as homoafetividades no arquiplago parecem no fugir
dos modelos de afetividade e conjugalidade tradicionais. Por ltimo, a prpria
demarcao das fronteiras identitrias promovida pelo movimento LGBT parecem no
corresponder
fluidez
dos
homossexuais
cabo-verdianos,
que
se
afastam
140
incompatibilidade entre alguns valores romnticos ideais, cada vez mais absorvidos
pelos sujeitos gays sampadjudus e a sua realidade emprica, tende a lev-los a um
sentimento de angstia.
Abro o captulo com um evento que considero uma sntese no s das
abordagens dos rapazes no-gays do Mindelo, como de todo o chamado Sistema
Hipocrisia. Trata-se de uma cantada na qual eu mesmo fui o alvo e que me revelou
muito do que pensam os rapazes cabo-verdianos que no se reconhecem enquanto
gays, mas que, no entanto, habitam o universo do homoerotismo. Os rudos na
comunicao com o jovem Julio far-me-o compreender os significados do que ser
gay para os sampadjudus e todas as consequncia que disso decorrem.
Na seo seguinte, parto para exemplificar os tipos de abordagem dos rapazes
no-gays, que podem ser compreendidas dentro de um continuum entre um tipo
estpido e outro, mais sutil. Estratgias como o mandar boca, o olhar, a chamada, o
assovio, o pedir dinheiro so possveis e articuladas pelos envolvidos, a depender dos
desejos, das conjunturas e dos prprios sujeitos.
Na terceira seo, busco apresentar meus dados sobre algumas das biografias
dos sujeitos no-gays, suas agncias e suas subjetividades, para contextualizar as
operaes particulares que estes fazem a partir dos signos culturais de gnero dispostos
115
Perdoe-me se eu te machuquei muitas vezes / Mas eu sei que eu te amo / Perdoe-me, meu amor,
perdoe-me / Meu egosmo e meu machismo / a herana de minha raa.
141
no Sistema Hipocrisia. Assim, tanto John e Joaquim quanto Julio sero fundamentais
para compreender padres de comportamento de gnero desses sujeitos, em que se
destacam a no-incorporao de uma identidade gay e o descolamento conceitual
entre prtica sexual e afetividade conjugalizada.
Em seguida, procuro enfatizar as agncias e estratgias dos gays do Mindelo,
assim como mostrar parte de suas prticas homoerticas. Auto-imaginados por vezes
como passivos e vtimas de um sistema de gnero opressor, esses sujeitos ganham
agncia no s na militncia, mas tambm no ritual homoertico, invertendo a
hierarquia posta na sociedade crioula mais ampla, onde os gays deteriam menos signos
de positivao dos que os sujeitos no-gays. Seu poder de deciso, a partir da expresso
levam m b (me leve contigo), proferida pelos no-gays, de alguma forma os confere
poder. Principalmente, porque na reflexo sobre a inverso possvel no prprio ritual,
que uma conscincia sobre o Sistema Hipocrisia surge e lhes possibilita, ao menos,
denunci-la.
Por fim, identifico que nessas relaes sexuais e afetivas fugazes, h uma
sequela possvel. O sentimento de angustia atinge muitos de meus interlocutores gays,
que no conseguem operacionalizar o plano ideolgico de uma afetividade e
conjugalidade burguesas, tal qual apresentadas seja nas telenovelas brasileiras, seja nos
discursos do movimento LGBT internacional, com a sua prpria realidade cultural, em
que esses valores so sistematicamente negados pelos homens no-gays com quem eles
se relacionam.
A cantada de galo116
116
O ttulo um trocadilho entre a expresso jocosa cantar de galo, que na lngua portuguesa significa
uma atitude de exibio de si, exaltando as prprias qualidades, com cantada, que na mesma lngua
significa flerte, abordagem afetiva ou sexual, com, finalmente, a briga de galo, evento famoso na
literatura antropolgica. Em poucas palavras, trata-se de um episdio em que o antroplogo Clifford
Geertz e sua esposa decidem correr da polcia assim que esta chega numa rinha de galos, que apesar de
tpica nas aldeias de Bali, eram ento reprimidas pelas foras policiais. Correr subitamente como um
nativo fizeram-lhes ganhar a admirao e identificao instantnea daqueles balineses. Alm disso, a
briga de galos revelaria grande parte do que Bali, assim como um campo de beisebol revelaria a
Amrica do Norte (GEERTZ, 2011). nesse sentido metonmico que creio ser possvel enquadrar essa
cantada do jovem Julio em relao sociedade Mindelense.
142
Peo permisso e pacincia ao leitor para lhes narrar de forma literria uma
histria em que, inevitavelmente, o antroplogo que a escreve virou tambm um dos
seus principais personagens. Algo relativamente comum em peas etnogrficas que se
dedicam a compreender a sexualidade em outros universos culturais (LEWIN & LEAP,
1996). Assim, cada momento desse dilogo ser de importncia mpar para que se
compreenda como pensam e agem alguns dos rapazes no-gays117 de Cabo Verde.
Estvamos alguns amigos gays e eu caminhando ao lado da mureta que divide o
calado e a praia da Laginha. Naquela noite de outono, havia j trs rapazes sentados
na grade da mureta. Despretensiosamente, sentamo-nos prximos a eles. Ao nos ver, o
mais velho pediu algo a meu amigo Cesar. Creio que era dinheiro para comprar bebida
uma abordagem tpica entre os jovens mindelenses sejam eles amigos ou no. Por acaso,
Cesar j conhecia o homem e, por no nutrir simpatias por ele, negou a demanda.
Em seguida, com um sorriso no rosto, este homem ficou falando em crioulo
comigo, mas na hora eu no o compreendi. Cesar, gentilmente como sempre, traduziu
para mim. O tal homem estava querendo ter comigo118 e, ao que parece, estava sendo
bem direto desde o princpio, apesar deu s ter entendido depois suas intenes.
Surpreso, fui gentil, mas disse no. Ele no estava s, mas com outros dois rapazes,
estes bem mais novos que ele.
Um desses rapazes se chamava Julio e dizia ter dezenove anos. Eu nunca o tinha
visto antes. Era mulato e de estatura baixa. Vestia-se um pouco mais simples ou mais
casual que os demais rapazes vaidosos que frequentam a noite da Laginha. Calava
chinelos de dedo, uma bermuda e uma t-shirt clara. Ele era muito simptico e
comunicativo, apesar de no falar fluentemente o portugus. Exemplificando a
morabeza da ilha de So Vicente, ele estava sempre com um sorriso no rosto e de pouco
em pouco tempo, ao longo da conversa, ou me dava um abrao ou apertava minha mo.
Na primeira vez em que ele me cumprimentou, abraando-me, eu reparei em sua
roupa simples, que parecia indicar uma condio socioeconmica mais pobre do que a
117
Como j adiantei em outros captulos, uso o termo no-gay para me referir a todos os sujeitos que,
apesar de habitar o universo homoertico, no se identificam a partir de uma categoria (homo)sexual.
118
Ter com uma locuo crioula que abrange alguns significados no campo semntico das relaes
pessoais. Quando um sujeito tem com outro, isso poder significar que o sujeito teve uma nica relao
sexual com o outro ou que com ele mantm relaes sexuais contnuas. Por outro lado, a expresso pode
se referir tambm a um relacionamento afetivo/sexual com alguma fixids que se estabelea entre dois
sujeitos. A locuo, contudo, no est restrita ao universo homoertico e tambm acionada em relaes
heterossexuais.
143
119
No Mindelo, fui espontaneamente classificado como branco em algumas oportunidades. Entre elas,
quando sofri um cassi bodi, um termo crioulizado da expresso inglesa cash or body, que significa
assalto ou roubo. Sugeriu-se que minha condio de branco teria sido um atrativo para os ladres
me escolherem como vtima, haja vista que eu trazia no corpo branco as marcas de uma estrangeiridade
associada riqueza. Alm disso, minha condio de branco, principalmente simbolizada em meus fios
lisos de cabelo, era um diacrtico no mercado (homo)sexual local.
120
Pedro, um jovem universitrio de So Vicente demonstrava sempre uma fervorosa f catlica. Apenas
depois de conhecer seu namorado, um policial da cidade de Praia, que Pedro, agora assumidamente
gay, se sentiu a vontade para falar de suas preferncias homoerticas. Contudo, ao ser perguntado sobre
como ele conciliava a sua f catlica e a sua identidade gay, muito incomodado, ele disse que ele preferia
no falar disso.
144
mulheres brasileiras, que segundo ele, so as mais lindas. Fez com as mos a silhueta
de uma grande bunda e teve um tremelique, como quem s de lembrar, j fica excitado.
O tal homem mais velho, j margem da conversa, insistiu em flertar comigo e a
certa hora eu disse que era casado. Julio ento se virou para mim e perguntou se era com
uma pequena121. Eu disse que era com um gajo. Ele inclinou-se para trs, olhou-me
bastante espantado e perguntou novamente. Corrigi-me, disse que no era casado ainda,
mas que pretendia casar e que, portanto, eu seria noivo. Ele passara os olhos em minhas
mos provavelmente procurando uma aliana, mas no havia nenhuma. Julio perguntou
novamente com uma expresso de espanto se era com um gajo mesmo. Eu reafirmei e
ele fez caretas de espanto, jocosamente exageradas. Sem se convencer, ele soltou um:
Sem preconceito, no tenho nada contra.
Em seguida, ele pediu que eu sentasse ao seu lado e a partir da eu pude
conhecer em parte como pensam e agem alguns dos rapazes no-gays do Mindelo. Ele
me viu chegar com amigos gays praia, pessoas reconhecidas por todos como tais,
naquela cidade de pouco mais de setenta mil habitantes. Para ele minha sexualidade era
confusa, pois eu no trazia s vistas, como eles dizem, as marcas do ser gay no
Mindelo, ou em Cabo Verde.
Ele ento insistia algumas vezes com a pergunta sobre se eu era realmente gay
e eu lhe respondia todas as vezes que sim. Testando-me e com alguma curiosidade,
perguntou-me o porqu deu gostar de gajos. Eu respondi que no sabia, que era
desde sempre assim. A cara dele permanecia como a de algum incrdulo, olhos
descrentes, boca entreaberta. Minhas roupas e voz masculinas no se encaixavam na sua
classificao de identidades sexuais. Somente aos poucos ele me concederia o indulto
da estrangeiridade e entenderia junto comigo a possibilidade da existncia doutro gay.
Para compreender melhor, ainda que com algum pudor, ele me perguntou bem
baixo em meu ouvido se eu gostava mesmo de dar o cu, pois como eu entenderia
depois, este ato como uma espcie de metonmia para o ser gay em Cabo Verde.
Rindo e um pouco sem graa, eu revelei minha preferncia em ser o ativo, aquele que
penetra. Confundi-lhe mais uma vez. Em toda sua expresso corporal, Julio no
121
O fato deu chegar na Lajinha com amigos gays talvez tenha despertado desde j a sua curiosidade
acerca da minha sexualidade. Se andar com amigos gays no condio necessria para ser socialmente
lido como homossexual, trata-se no Mindelo de um indcio.
145
escondia sua incompreenso. E antes deu mesmo entender o rudo, devolvi para ele a
mesma pergunta que ele me fizera, provocando-o. Ele negou balanando bruscamente a
cabea e exibindo no rosto, uma expresso de nojo e/ou de dor. Contudo, ele
permanecia avidamente interessado em matar aquela charada que eu me tornara para
ele.
Em algum momento, entre uma rpida mexida e outra em seus rgos genitais,
um hbito frequente da expresso de virilidade dos rapazes do Mindelo, sempre
desconfiado, ele afirmou que eu no parecia gay. Informao crucial, mas que s
depois de conviver com os sampadjudus no Mindelo, eu entenderia plenamente. Da em
diante, Julio no parou de conversar comigo ao p do meu ouvido, falando em voz baixa
e em tom de segredo. E para tal, lanava seu corpo sempre em direo ao meu, haja
vista que no estvamos completamente prximos. Era-me claro naquele momento que,
sem grandes tenses, o canal de comunicao entre ns estava se sofisticando.
Sentindo-me confortvel para tal, perguntei-lhe se ele tambm gostava de
gajos. Ele titubeou. Disse em um portugus um tanto precrio que gostava de ser o
homem. Tentando traduzir na hora para o meu sistema simblico, eu no entendi se ele
estava dizendo ser heterossexual ou se ele gostava de ser o homem com outros
homens. Mas ele esclareceu em um tom muito confessional que era a segunda
alternativa: que ele gostava de meter em gay (ou seja, em termos crioulos ser o
homem, ser aquele que penetra).
Estando nada certo ainda em relao minha (homo)sexualidade e portanto,
inseguro sobre se eu era um interlocutor ideal para suas confisses e investidas, disseme que gostava de mulher tambm. Para logo em seguida, contudo, dizer que preferia
cu de gay. O que lhe fez permanecer ainda no campo mais seguro da ambiguidade. Eu
lhe perguntei se ele j tinha tido com gays e ele respondeu que sim.
Para entender melhor sua experincia sexual e afetiva, questionei-lhe se ele j
havia namorado gays. Ele fez uma de suas caretas hilrias. Senti que o peguei de
surpresa com a pergunta. Assustado e com uma expresso de dvida, como quem no
entendeu o sentido da pergunta, ele respondeu que no. Quando lhe inquiri sobre o
porqu disso j que ele dizia preferi-los sexualmente ele me deu uma resposta
reveladora: disse-me que nunca havia nem pensado nisso.
146
No foi o nico dos rapazes no-gays do Mindelo a me dar essa resposta para
esta mesma pergunta. Namorar e gay no costumam fazer parte do mesmo campo
semntico para este(s) rapaz(es) e, juntas, as duas categorias no fizeram sentido,
mesmo quando eu argumentava, provocando-o(s), que se ele(s) gostava(m) mais, ele(s)
deveria(m) namorar um. Julio era-me uma espcie de tipo-ideal dos rapazes nogays do Mindelo. Ele enquadrava as categorias gay, homossexual enquanto
sujeitos, e no prticas como algo do plano estritamente sexual, como objetos para
satisfao de um desejo momentneo. Namorar de outro campo semntico, o da
norma, da afetividade, da publicidade, da continuidade no tempo e da tradio122.
Curioso pelos caminhos surpreendentes que aquela conversa seguia, perguntei
qual era a diferena entre homem e mulher. Ele disse-me ento que comer cu de
homem mais sab (bom, gostoso, em crioulo), pois pode meter mais forte e
mais quente. Curioso pela especificidade da expresso daquele desejo, perguntei se
para ele o cu de mulher no era igual ou ao menos parecido. Ele respondeu
enfaticamente que no! Reclamou ainda que as mulheres no gostam de dar (fazer
sexo anal sendo passivas), ao contrrio dos gays. Como quem diz que, ainda que
fossem iguais, a oferta dos primeiros nfima.
Com homem, o sexo mais moral sentenciou espontaneamente. Moral
(pronuncia-se murale no crioulo dos mindelenses) neste contexto significa menos
cheio de frescuras, mais sacana, segundo informaes que depois meus
interlocutores me forneceram. Diferente de antes, ao simular com as mos a silhueta da
bunda de uma mulher brasileira genrica, Julio agora classificava os orifcios anais
masculinos com um entusiasmo de quem realmente gosta da coisa, mas ao mesmo
tempo com alguma vergonha que o faz permanecer falando baixo ao meu ouvido, sem
estrilo, sem escndalo. Uma estratgia que, ao mesmo tempo em que o protege das
fofocas, o faria mais sedutor.
Mas Julio no se convence nada fcil. A minha identidade sexual ainda muito
pouco gramatical para ele, que permanece desconfiado. Ele ainda no tem certeza sobre
onde est pisando e me pergunta, testando-me e tentando ao mesmo tempo me seduzir,
122
Mesmo o namoro entre parceiros de sexos diferentes tm suas especificidades em Cabo Verde e
categorias como afetividades e publicidade devem ser relativizadas. Sobre conjugalidade nas ilhas,
ver LOBO ( 2012).
147
se eu gosto da pia123 grande. Eu respondo que no, ele espanta-se novamente. Nesse
momento, sem querer, eu confundo mais ainda seu sistema classificatrio, porque os
sujeitos gays do Mindelo quase sempre valorizam esse signo da enormidade do falo e
at classificam os rapazes a partir dele. Um rapaz que nos abordava frequentemente na
rua em busca de sexo rpido ganhou de meus amigos gays mindelenses at o maldoso
apelido de paliteiro, pela fineza de seu conhecido rgo.
E eu, que para Julio j no parecia um sujeito gay pela minha vestimenta
tipicamente masculina e pela minha performance como um todo muito pouco feminina,
depois de tudo, ainda falar que no gostava de pia grande, causava-lhe mais
insegurana ainda quanto minha (homo)sexualidade.
Nesse momento ele comenta reticente, levantando o queixo e afastando o tronco
para trs, como quem pergunta desconfiando e espera uma resposta: Voc no gay...
Eu imediatamente insisto que sou, j achando bastante graa naquele rudo de
comunicao interminvel e aparentemente insolucionvel. Era engraado e intrigante
aquela traduo precria da categoria gay, homnima homfona em nossos sistemas
lingusticos. Pois que no era somente um rudo causado pela disparidade de nossas
lnguas maternas, mas um uma incompreenso de todo um sistema simblico que
extrapola a lngua.
No embalo daquela conversa reveladora e descontrada, pergunto ento se ele
tinha uma pia grande, j que eu entendera que ele iniciara este assunto sobre o tamanho
do pnis, em grande medida, para fazer uma autopromoo, e fao o gesto que eles
fazem no Mindelo sempre para se referir a isso. Trata-se de colocar o dedo indicador no
antebrao (ou no pulso), como quem mostra a medida de um pnis, cujo tamanho seria
medido da ponta dos dedos esticados de uma mo at aquele local indicado no
antebrao ou no pulso pelos dedos da outra mo.
Ele me diz que a sua pia no grande e faz o gesto com seu indicador, fixandoo abaixo de seu pulso, como quem mostra que pequeno. E pelo menos para os
padres que sempre me foram narrados pelos meus interlocutores, segundo sua
indicao mtrica, seria de fato pequeno. Julio disse isso muito provavelmente
porque, uma vez que eu tinha dito que no gostava da pia grande e que ele estava,
123
Significa pnis em crioulo. Pia seria o termo mais vulgar para tratar do rgo masculino, mas h
outros termos como peixe, que so largamente usados.
148
124
No pude averiguar a extenso social em que este atributo positivado no Mindelo. Contudo, a fico
de Germando Almeida, clebre romancista da ilha de So Vicente, indica que tal atributo extrapolaria a
sociabilidade gay, quando um de seus personagens, Eugnio, para impressionar sua amiga Sulena, diz
jocosamente ser um trauma desde a juventude ter um cacete de polcia [...] entre as pernas (ALMEIDA
G. , O Mar na Lajinha, 2004)
125
Sejam eles heterossexuais de fato ou de direito, para usarmos uma expresso do mundo jurdico.
149
E possivelmente Julio era menos experiente, pela pouca idade, na arte de seduo dos crioulos caboverdianos, que no costumam conceder tempo para que voc racionalize sobre sua suposta educao.
127
Sobre a questo, anoto em meu dirio de campo em relao a outra situao: Perguntei tambm se
entre os rapazes, eles conversavam entre si sobre essas experincias e Didi me disse ter certeza que sim e
esclareceu: Disse que s vezes acontece de algum rapaz vir j sabendo de todos os atributos (fsicos ou
performativos) deles. O que, me confessaram, s vezes bastante constrangedor e riu. Nesse momento
Cesar retornou da Caravela e Didi repetiu minha pergunta para ele, para integr-lo na conversa e para que
ele pudesse dar a opinio dele. Cesar foi categrico: Conversam tudo! Voc nem chegou na sua casa
ainda e eles j esto pegando o telefone para contar pro amigo. Eu perguntei ento: Se eles tm a
liberdade de contar entre os amigos, de quem afinal de contas, eles escondem?. Didi respondeu que eles
escondem da sociedade mais ampla, da famlia, das namoradas. (Um passeio de domingo 29/09/2013.
Dirio de campo, p.83)
150
parecia no gostar. De fato, no sei se ele aceitaria ser penetrado caso estivesse na
terceira ou na quarta relao sexual com o mesmo sujeito homossexual (e, portanto,
com mais intimidade e mais livre). Pois, segundo me diziam os amigos gays de l, os
rapazes no intuito de performarem a virilidade que os prprios gays esperam deles, se
recusam a serem passivos inicialmente. Mas eventualmente acabam dando depois de
alguns encontros, por livre vontade, por um desejo enrustido ou por mera
curiosidade. Os gays contam sobre essas situaes com uma ironia misturada a certa
decepo. O que sei que, definitivamente, no parecia a Julio uma boa ideia.
Como j aludi no captulo anterior, ser gay no modelo hegemnico de Cabo
Verde guarda proximidades ao ser bicha na periferia de Belm, etnografada em 1974
pelo antroplogo ingls Peter Fry (1982b). Ou seja, a conversa com Julio me ajudou a
entender que ser gay hoje tem muito a ver no s com uma postura de assumir a
prpria homossexualidade publicamente (e isso se realiza no s de forma verbal, mas
tambm com as pessoas com quem se anda, os vesturios, a performance corporal etc.)
mas tambm com a classificao local sobre as performances sexuais, que cola
passividade masculina homossexualidade. Ser gay naquelas ilhas tambm
trazer no prprio corpo masculino signos do feminino, parecer mulher, de alguma
forma ou em algum aspecto128.
Da uma das brincadeiras do suposto envolvimento sexual de dois gays, que
como vimos no segundo captulo, algo que na prtica nunca acontece no Mindelo,
desses serem classificados como lsbicas, ou seja, mulheres que se interessam
sexualmente por outras mulheres, numa correlao lgica sexista e binria. Signos de
feminilidade no so somente e sempre alvos de chacotas, mas so muitas vezes
valorizados, buscados e articulados pelos prprios sujeitos gays em seus corpos, de
maneiras as mais diversas, como afirmao de uma identidade diferenciada e como
subverso de uma ordem heteronormativa, numa postura que se poderia classificar de
queer, como j tratado anteriormente.
Contudo, no limite, a feminilizao exacerbada do sujeito gay em Cabo Verde,
expressa nas expresses corporais exageradas, pode ser acusada de leviandade, seja
pelos sujeitos no-gays seja pelos prprios sujeitos gays. Assim sendo, possvel no
Mindelo recomendaes tais como: S espero que voc no seja um gay leviano,
128
Sobre ser gay em Cabo Verde, ver a Introduo e o Captulo II desta dissertao.
151
como disse a irm de Elzo, quando descobriu sua homossexualidade. O mesmo estava
implcito em alguns comentrios de alguns gays que escutei em relao s travestes129.
Alm disso, o mais significativo nessa conversa com Julio e a razo pela qual eu
a escolho para abrir esse captulo que ela uma espcie de sntese do que encontrei no
exerccio (homo)sexual de alguns rapazes do Mindelo. A princpio e na superfcie, a
virilidade do homem cabo-verdiano e de sua abordagem; a exaltao do corpo feminino
como signo de sociabilidade entre os homens; a meno e a filiao religiosidade
catlica (e seu quadro moral e normativo); a aproximao cultural com o Brasil e as
atualizaes que este exporta para Cabo Verde; a simulao da homofobia atravs das
bocas130 e obscenidades ditas; e, sob o manto dessa heteronormatividade, surge o desejo
homoertico, que permanece envergonhado. Se enunciado, deve ser feito em volume
baixo, sem estrilos131, assim como a sua consumao.
As relaes sexuais entre homens parece ser uma prtica muito mais recorrente
do que se poderia supor quando se associa a homossexualidade apenas aos rapazes e
moas que publicizam em seus corpos suas identidades sexuais. Etnograficamente,
captei uma parte da vida sexual dos sampadjudus que mostra que as relaes
homoerticas entre homens so muito mais recorrentes do que se supe. Sentindo-se por
vezes alvos do preconceito de sua sociedade, meus interlocutores gays revelaram-me
um sistema em que eles so os testas-de-ferro, se os posso chamar assim, expostos tanto
s investidas sexuais quanto violncia, muitas vezes iniciativas dos mesmos
indivduos, o que geraria a suposta contradio. No rastro de suas prprias concepes,
chamei tal sistema de Hipocrisia132.
Assim, sob a invisibilidade socialmente estimulada dos desejos homoerticos de
alguns homens cabo-verdianos, que por motivos culturais e psicolgicos no
incorporam uma identidade gay (no sentido de bicha) ou homossexual (no
sentido do modelo simtrico proposto por Fry), os sujeitos que o fizeram e fazem ou
129
Como vimos no captulo anterior, a fronteira que separa gays e travestes, muito tnue e porosa. A
identidade traveste diz respeito no somente a classificaes por intensidades de
masculinizao/feminilizao dos corpos, mas tambm reverbera posies de classe. No geral, porm, as
travestes so aquelas que nasceram com rgos genitais masculinos, so pessoas mais pobres, que ao
desejarem ser mulher mantm seus corpos ao mximo feminilizados e que advogam, por vezes, esta
identidade para si.
130
Ao dizer, que ele no tem nada contra, ele deixa clara a pressuposio de que a homossexualidade ,
sociologicamente, alvo de crticas. Sobre as bocas, ver captulo 2.
131
Termo que em crioulo significa escndalo.
132
Ver captulo 2.
152
seja, os gays acabam por realizar em seus prprios corpos uma grande demanda de
efetivao desses desejos homoerticos dos no-gays, e sustentam assim o Sistema
Hipocrisia, apesar de tentar subvert-lo em alguns momentos, como na formao e luta
do nefito movimento LGBT local133.
Esse tipo de configurao cultural encontrado em Cabo Verde para dar conta do
desejo homossexual dos homens, se gera o tipo no-gay, que proporciona aos sujeitos
gays muitas experincias sexuais narradas como prazerosas e at um smbolo nacional
(ao destacarem o homem cabo-verdiano como tendo uma pegada supostamente
melhor que os de outras nacionalidades), tambm gera neles algumas angstias,
principalmente medida que os valores romnticos da conjugalidade e do afeto se
solidificam entre eles e se tornam expectativas frustradas perante esses homens caboverdianos, avessos a um modelo de conjugalidade crist. O ativismo internacional das
organizaes LGBT no Mindelo, suas experincias migratrias e as telenovelas
brasileiras exibidas diariamente na televiso estatal tm pressionado esse fenmeno134.
Mas antes de passar anlise da angstia que o Sistema Hipocrisia tem gerado
nos atuais gays do Mindelo, importante que analisemos as abordagens dos rapazes
no-gays e as estratgias dos gays, nos rituais de cortejo.
153
eles fazem. Eu observei na mesma hora e vi o rapaz que havia mexido conosco na esquina da
Rua Baltasar Lopes da Silva, ainda olhando. Cesar completou que isso no era homofobia.
(Mais um dia de trabalho, mas sexta-feira 27/09/2013. Dirio de Campo, p.61)
Essa categoria a sigla para homens que fazem sexo com outros homens, a qual introduzi sem muito
sucesso entre meus interlocutores do Mindelo. Trata-se de um termo utilizado no Brasil para se referir a
homens que no se reconhecem enquanto gays ou homossexuais, mas que mantm relaes com
outros homens. Essa categoria fora absorvida pelas polticas pblicas de sade no Brasil, para dar conta
de um contingente populacional, que por no se reconhecer enquanto gay ou homossexual, muitas
vezes tambm por apenas serem eles os penetradores, no era alvo de campanhas epidemiolgicas de
doenas sexualmente transmissveis, frequentemente dirigidas apenas aos homossexuais masculinos.
136
Constatei apenas uma nica vez o receio de Didi com um grupo de rapazes que estavam aparentemente
bbados na rua, como anoto em meu dirio: Um grupo de rapazes estava na nossa frente caminhando na
mesma direo que ns, porm no meio da rua, enquanto estvamos na calada esquerda. Didi pediu para
que eu andasse mais devagar, para a gente no alcanar os meninos e minha atitude foi de quase parar.
Ele riu e falou que eu no precisava me preocupar, me apontou os rapazes e falou s que os rapazes
pareciam meio alterados e era melhor no chamar muita ateno. V a garrafa de bebida na mo? Eu
via. Fomos andando mais devagar, mas eles, em grupo, andavam mais devagar ainda. Foram mais para
direita da rua e passamos paralelos a eles. Didi estava bem produzido: maquiado de base e batom, com
um macaco de pano fino branco, com uma enorme fenda no peito e duas botas de cano longa sem salto.
Os meninos nos viram. E um deles, da onde estava, falou em voz alta, para escutarmos, que era f do
Didi. Didi olhou meio desconfiado, mas cumprimentou o garoto e agradeceu. Depois os meninos
continuaram andando e o mesmo menino disse que o amigo dele queria uma coisa com o Didi. Falavam
em crioulo e Didi foi me perguntando se eu entendia e fazendo a traduo simultnea. Passamos, sem
incidentes. (Mais um dia de trabalho, mas sexta-feira.27/09/2013. Dirio de campo, p.65-6). Sobre a
violncia fsica contra gays no Mindelo, ver captulo 2 desta dissertao.
154
Ento a gente.. Ta passando na rua, pode te chamar, quero te conhecer, e no sei que sei que,
me d teu nmero, onde voc mora?, no sei que, ah... vai sair hoje?, v, ento a
gente se encontra na Laginha, a gente se encontra na praa e no sei o que...
E se voc no quiser, tranquilo?
Sim, pois voc no obrigado. Se voc no quiser... (Entrevista Lunga. Mindelo, 30/09/2013)
Entendendo que Lunga pretendeu criar uma breve sntese em sua resposta,
apenas registro que as supostas falas dos rapazes as quais ele se refere parecem
idealizadas. As abordagens costumam ser um pouco mais complexas do que faz parecer
neste trecho. Sendo mais ou menos simplificadas, o surpreendente na forma como os
rapazes abordam que suas estratgias so absolutamente flexveis e seguras para eles
quaisquer que sejam os resultados do flerte. Assim, se eles os chamam de coisinhas e
os gays esto dispostos a ter com eles naquela noite, o termo coisinha poder ganhar o
sentido de uma provocao, de uma cantada. Esta cantada pode ser entendida como
desajeitada ou pattica se o sujeito gay estiver aspirando experienciar algo mais
romntico do que ser chamado de coisinha ou poder ser considerada viril se o sujeito
gay possuir expectativas mais erticas do que afetivas. Ambas as percepes dos gays
no inviabilizariam automaticamente a eventual relao sexual que decorra desse ritual,
pelo contrrio.
Por outro lado, o mesmo termo coisinha poder ser interpretado como uma
provocao, mas de cunho pejorativo, discriminatrio e at humilhante, caso os sujeitos
gays, alvos do vocativo, no estejam dispostos a receber essa abordagem, por infinitas
razes pessoais ou conjunturais. Se isto acontece, coisinha passa ser lido socialmente
como uma boca mandada, no sentido uma gozao ou uma troa de mau gosto, o que
mantm os provocadores distanciados e seguros em suas posies de macho. E, de
fato, a boca pode algumas vezes no passar disso mesmo para os rapazes, umas simples
troa. Refiro-me coisinha, pois neste caso muito evidente a flexibilidade do sufixo
diminutivo inha contido nele, que sabidamente na lngua portuguesa tem tanto a
potncia da afetividade e do carinho quanto da desqualificao e do rebaixamento. Mas
a ambiguidade ora mencionada serve para quaisquer desses vocativos lanados no ritual,
inclusive paneler137.
Assim, terminando em um bate-boca pblico ou em um ato sexual, qualquer que
seja o resultado da provocao, este jogo entre os rapazes garante no plano ideal a
perpetuao da heteronormatividade para alm do ritual. O que quero dizer com isso
137
Para uma anlise do uso do termo paneler no Mindelo, ver captulo 2 desta dissertao.
155
156
138
157
De fato, pode haver outros interesses envolvidos neste ritual homoertico que
no apenas a realizao do desejo sexual contida no ato. No s Didi me falava a
respeito do desejo dos rapazes para que fossem convidados para as festas que os gays
iam como eu mesmo pude constatar isso algumas vezes. Alm disso, o dinheiro era
frequentemente algo que perpassava as negociaes do sexo nas ruas do Mindelo, como
neste exemplo:
Passava j da meia-noite [...] Um rapaz passou pela rua que margeia a praa olhando para ns
sem parar por um segundo. [...] Os olhares continuaram mtuos. O rapaz chegou na esquina da
rua, ainda olhando para trs, em nossa direo. Parou e gritou de l, perguntando em crioulo, se
tnhamos 100 escudos, pois ele precisava de dinheiro. Dissemos que no e ainda ficou parado
um tempo pensando e olhando para ver se topvamos d-lo os 100 escudos (em troca do sexo
que ele ofereceria). Desistiu e continuou andando, mas ainda olhando. [...] Ele sumiu do
alcance de nossas vistas. Pouco tempo depois, o rapaz volta, olha de novo e Elzo o chama. Ele
sobe os trs degraus que conduz praa em que estvamos (que mais elevada que a rua) e
vem em nossa direo. Estvamos sentados no banco (e eu em p). O rapaz cumprimenta a
todos, com o tal soquinho, inclusive a mim. Pergunta nossos nomes e dissemos. Ele um
garoto magro, mulato, com cara de menino, mas um jeito muito marrento. Ele pede, em
crioulo, agora, 50 escudos. Insistimos que no temos. Ele, meio irritado sai na hora, acusando
de estarmos ali apenas para passear noite, como se ns tivssemos fazendo-o perder tempo.
Meus amigos chegam concluso de que ele no estava ali s pelo dinheiro, que ele queria
alguma coisa, mas ficou amedrontado por ns sermos 4. Didi e Elzo confessaram depois que j
saram com esse rapaz [...] Nas diferentes ocasies em que eles tiveram algo com o rapaz,
disseram-me, o rapaz no pediu dinheiro algum (De volta s entrevistas 30/09/2013. Dirio
de campo, p.92-3)
Apenas para que fique entendido, o tal soquinho era uma forma padro jovem
e masculinizada pela qual os rapazes se cumprimentavam, chocando levemente os
punhos da mo, e, por vezes, levando-a ao seu peito em seguida. Apesar do
cumprimento entre ns ser quase sempre feito com beijos no rosto, os rapazes
costumavam nos cumprimentar com o tal soco: uma outra forma, assim como as bocas
mandadas, de no s construrem performativamente as suas masculinidades, mas de
proteger as mesmas caso o ato homoertico no se realizasse. Dito isso, perceptvel
que nesta e mesmo em outras situaes, se o dinheiro era um mediador frequente (tanto
nas relaes erticas quanto nas relaes de amizade), no acredito como Didi e Elzo
que o principal ou exclusivo objetivo dos rapazes com os gays fosse sempre ganhos
financeiros ou bilhetes de festas. Primeiro, porque os sujeitos gays raramente tinham
dinheiro para dar aos rapazes e mesmo que o tivessem, diziam se recusar a pagar por
sexo, pois ainda eram jovens. Alm disso, nunca os vi aceitando levar os rapazes a
qualquer festa que fosse. Em segundo lugar, no mercado homossexual do Mindelo h
sempre rapazes desejveis e disponveis ao sexo no-pago. Segundo Elzo, esses rapazes
ento lhe pedem dinheiro com a estratgia de se colar, colou.
158
159
sobre carnaval, eles me contaram como era a dinmica das festas. Como saam os blocos.
Disseram que era no inverno, no perodo mais frio (mnimas de 20C, segundo Elzo).
Contaram por onde os grupos desfilam, sobre as fantasias e as dinmicas da competio.
Falaram que no carnaval, uma loucura. Didi sups que no carnaval fosse o perodo que
mais se fazia sexo. Elvis disse que era todo dia. No bar em que estvamos, Carlos pagou a
conta, porque j no tnhamos mais dinheiro. Um cara muito bbado abordou Didi. Ele j vinha
atrs de ns, h algum tempo, chamando-nos. Didi fingia que no o ouvia, mas comentou com
o Elvis quem era o homem. O tal, que j era mais velho, entrou no bar onde estvamos e foi
perguntar se Didi no queria hoje [ter com ele]. Didi disse que no enfaticamente e tentava sair
de perto. O cara insistiu um pouco, mas a certa hora viu que no teria o que queria. Segundo
Didi, ele j havia tido com esse cara. Elzo disse que quando era pequeno esse cara o perseguia.
Que quando ele era criana, achava que o rapaz queria bat-lo e morria de medo, mas que s
depois entendeu o que ele realmente queria. Um bbado abordando um homossexual na rua
para ter uma relao sexual no novidade nenhuma para mim que j vi isso aqui e acol, mas
impressiona que em Cabo Verde os homens faam isso com muito menos discrio do que
exigiria a moral urbana brasileira. Os homens vm at ns publicamente, diante de outras
pessoas, dos clientes e dos funcionrios do bar, com muito menos pudor do que no Brasil,
tenho achado. (Oficina e os rapazes do Regala. 16/10/2013. Dirio de campo, p.203)
160
at briga entre o casal, me disseram. Perguntei se pai de famlia tambm olhava, e eles
disseram com nfase que sim. Didi disse para eu me preparar, porque os rapazes j esto
comeando a ver que eu estou andando com a irmandade, vo ficar mais seguros sobre qual
a minha, e que mais cedo ou mais tarde, podem acabar me abordando. Eu disse, com alguma
modstia, mas tambm sincero, que eu acho que no chamo tanta ateno. Eles foram enfticos
em dizer que TODOS chamam. (Um passeio de domingo. 29/09/2013. Dirio de campo,
p.83)
140
161
que se pea, por exemplo. (Oficina e os rapazes do Regala. 16/10/2013. Dirio de campo,
p.202-203)
Esses estudantes do Liceu, realmente deixavam-me muito intrigado. Lembreime, inevitavelmente, de meus tempos de escola no Rio de Janeiro e no consegui
vislumbrar qualquer possibilidade de um grupo de amigos, como o meu, naquele tempo,
sair a conversar noite com figuras sabidamente gays pelas praas da cidade, sem que
isso gerasse uma chacota imensa e aquele que o fizesse, acusado at o fim do colegial
de ser viado, com todos os nus desse estigma141. A homossexualidade em meu
sistema cultural era metaforicamente contagiosa. O contato com os reconhecidamente
gays era evitado, negado, fugido. No parecia ser sempre o caso no Mindelo atual.
E Didi aproveita o momento para me ensinar sobre a dinmica do flerte com os
estudantes:
estranho isso, mas Didi me disse que sempre assim: os rapazes quando esto em grupo
sempre mandam um deles vir e o mais corajoso vem, me disse. Da, depender, entre outras
coisas, do tipo de informao que esse que vai levar para os outros. estranho tambm porque
dessa vez tinha umas meninas juntas. No sei o que passa entre eles, e como seja normal um
deles vir falar com um grupo de homens sabidamente gays, que no seja para hostilizar, mas
por pura curiosidade ou interesse sexual. Mas no sei como isso pode ou no ser de boa entre
os amigos de escola. Sinceramente, isso me deixa muito encucado. Preciso entrevistar esses
rapazes!. Depois ele voltou pro grupo e depois foram embora. (Gamja e a volta dos rapazes do
Regala 17/10/2013. Dirio de campo, p.209)
141
Com direito eventualmente a violncia fsica, violncia simblica, excluso do grupo, desprezo
coletivo etc.
162
quando eles dizem Eu no sou gay, sou macho, eu sou isso, sou aquilo. Mas no vamos ver...
Eu sou mais macho do que eles. (Entrevista Suzete. Mindelo, 29/10/2013)
Se j vimos como agem, resta perguntar quem so, afinal de contas, esses
rapazes. A qual faixa etria pertencem? Qual seu perfil socioeconmico? Qual seu
estado civil? Tantas questes e to pouca possibilidade de interao para os fins
acadmicos, que aproveito para perguntar por eles em algumas entrevistas, como na
seguinte:
E... Eu queria que voc falasse mais um pouquinho desses, desses homens, n? Caboverdianos que... ... procuram os homossexuais.
muitos... (risos)
Mas assim, eles tm relacionamento com mulheres?
Sim, sim, sim.
Quem so esses homens? Como que eles so?
Muitos so, so homens... a camada jovem.
Quantos anos mais ou menos?
(Risos) Ah... Uns... Posso dizer...
(Elzo: Bem novinho!)
Uns 14 pra cima. J comeam a procurar os homossexuais. Dos 14 at os 80. Sim, at os 80
anos. (Entrevista Lady. Mindelo, 27/09/2013)
142
De fato, alm do argumento exposto, sempre senti que no apresentavam seus parceiros a mim com
medo de que esta atitude de alguma forma prejudicasse seus relacionamentos com eles. Cesar, por
exemplo, em certo momento do campo, voltou a se relacionar com seu ex-marido, mas apesar de
estarmos sempre juntos, jamais vi o tal homem. Mesmo quando batamos a sua porta e ele dizia estar com
o homem l dentro de sua casa, este homem nunca aparecia. Outro exemplo, seria o recente casamento da
traveste Barbie, que nos contou numa noite na praia da Laginha ter tido direito at a vu e grinalda, mas
esse marido era uma espcie de fantasma para ns todos. Parecia-me muito evidente, que eles protegiam
esses homens os quais tinham relaes um pouco menos fluidas. Refletindo mais tarde, percebi que alm
da proteo fazia parte do ethos cabo-verdiano preservar a privacidade das relaes afetivas.
163
Romeu me conta sobre o primeiro rapaz com quem teve uma relao sexual e o
perfil permanece muito semelhante:
Eu queria voltar na, bom, nesse rapaz a que foi da sua primeira vez. Ele era assumido?
Ele no era assumido, no assumido e continua no sendo assumido. Pra mim, ele um rapaz
que tem sua vida, que tem seus filhos, gosta... Ele... Acho que ele gosta de ter relaes com
homensexuais, mas por mim, ele fez aquilo alguma vez e gostou e continua sempre a fazer.
Mas eu acho que ele tem alguma atrao por gay. No sei dizer. Mas acho que ele tem alguma
atrao sim, se no ele no tinha... Ele no fazia relaes com homens, com homensexuais.
(Entrevista Romeu. Mindelo, 9/10/2013)
Poderiam ser trazidos aqui muitos outros depoimentos sobre quem so esses
homens, sobre suas abordagens e como se do as relaes com eles. Mas por se
assemelharem demasiadamente, pouparei o leitor. O que consegui reunir de informaes
sobre estes rapazes suficiente para informar ao leitor que se trata de homens tanto
jovens quanto j mais velhos; sendo que em todo o campo, a maioria dos homens que vi
abordando os gays eram mucin, rapazes mais jovens. No posso afirmar isso
categoricamente, mas em relao s condies scio-econmicas, a maioria era de
jovens de classe mdia e baixa. Esmagadora maioria deles no so assumidos diante
da sociedade e muitas das vezes possuem namoradas, esposas e filhos. Mas eu no
sossegaria enquanto no pudesse conversar com pelo menos alguns desses rapazes.
De fato, ao longo de todo o campo consegui conversar apenas com trs dos
rapazes no-gays143. O primeiro foi Julio, em uma conversa a qual abro este captulo e
143
Tenho cincia de que a perspectiva que construirei aqui a partir de seus depoimentos poderia ser mais
rica, caso eu houvesse conseguido depoimento de outros rapazes enquadrados como no-gays. Mas por
164
foi quem mais me abriu o mundo das perspectivas dos rapazes no-gays do Mindelo.
Alm dele, conversei com o Badiu e com Joaquim, como relato nesta seo.
Comecemos pelo Badiu.
Era dia 11 de Outubro de 2013. Estvamos, como quase sempre, sentados na
Praa Dr. Regala conversando sobre mil assuntos e vendo mais uma madrugada ventosa
de outono passar. No havia mais ningum, que no ns. No me recordo qual era o
tema da conversa na hora, s recordo que, de repente, chegaram dois rapazes na praa,
de uns vinte e cinco anos cada (ou mais), que vieram direto em nossa direo. Um deles
era um negro de pele mais escura, bem alto, muito forte, grande, bonito, que soubemos
pela conversa, que era badiu, ou seja, originrio da Ilha de Santiago. O outro tinha a
pele um pouco mais clara, era mais magro e mais baixo, mas tambm bem mais bonito
que o amigo, concordamos depois entre ns. Este era de So Vicente mesmo. Ambos
vestiam-se como os demais rapazes do Mindelo, camisas t-shirt, cala jeans e cordes.
Uma vestimenta tpica para as sadas noturnas, jovem e masculina.
Chegaram com copos de bebida alcolica nas mos. Os dois estavam bbados,
mas o badiu parecia mais: ele no ficava em p muito bem, falava mais alto, tinha mais
atitude, gesticulava, enquanto o sampadjudu, seu amigo, ficava mais quieto, apenas
observando. O badiu pediu para acendermos seu cigarro, ficou se insinuando, passando
a mo nos meninos. Mos que de to grandes foram assunto para muitas especulaes
depois sobre qual seria o tamanho de seu pnis, numa correlao jocosa. O badiu fez
com que bebssemos a sua bebida, oferecendo-a a cada um de ns por vez. Mas sempre
que segurvamos o seu copo, para bebermos o contedo, ele o retirava com a
advertncia de que queria ele mesmo nos dar na boca. Deixvamos.
Disse-nos que Didi e eu ramos as mais gatinhas, no feminino mesmo. E nos
beijou a todos no rosto, demonstrando uma atitude de cumprimento diferente dos socos
com punho, tpicos dos jovens no-gays. Certa hora ele perguntou meio retoricamente
se todos ns ramos gays, algo que nem respondemos, mas estava subentendido. A
partir da ento ele focou mais no Cesar, sentou em seu colo, abriu-lhe as pernas, pediu
um beijo na boca, fez carcias, falou bem perto do seu rosto. Sempre de uma forma bem
viril e sedutora, sem deixar de encarar a todos em sua performance. Seu amigo
ora o possvel com a difcil interao que se pode ter com eles. Alm do que, de certa forma, apoiei-me
na mxima de alguns interlocutores gays que diziam que conhecendo um, voc conhece todos, num
exerccio de homogeneizao daqueles sujeitos, que, alis, eles mesmos repudiavam para tratar de si.
165
166
Para John, fora preciso explicar que o amigo era gay, ainda que no aparentasse,
e rapidamente justificar que o amigo viera de Portugal146. John mesmo no parecia
assumir tal identidade gay para si, colocava-se apenas como um homem que se atraa
sexualmente no s pelas mulheres.
O mesmo poderia ser dito para Joaquim, um menino de apenas quinze anos, mas
que, por ser criado relativamente solto nas ruas do Mindelo, j domina toda a gramtica
adulta local, entre elas, a (homo)sexual:
145
Evidentemente, como quase todos os nomes aqui, eu troquei seu nome para no exp-lo. De qualquer
forma, eu o veria ainda mais uma vez, desfilando em um concurso de beleza masculina na boate Caravela.
146
Sobre o que ser gay em Cabo Verde, ver tambm o segundo captulo desta dissertao.
167
Despedi-me do Didi e do Lunga e fui com o Elzo para casa. Joaquim nos acompanhou. No
caminho, botou a mo no meu ombro e no do Elzo. Ele um rapaz alto, apesar de ter muito
cara de menino. Quando passamos a rua do Elzo, ele empurrou o Elzo e disse v para casa, eu
levo ele em casa, se referindo a mim. (Agora voc veja! Tem 15 anos e j tem essa atitude
toda!) Elzo disse que no e eu disse que Elzo tinha que passar l em casa para pegar remdio.
Cheguei na porta do prdio em que eu me hospedo e eles se sentaram na soleira para me
esperar. Eu subi, procurei o remdio, mas no achei. Desci, pedi desculpas para o Elzo, que no
pareceu chateado e se levantou. Joaquim continuou sentado onde estava. Enquanto eu falava
com o Elzo, ele passou descaradamente o dedo nos plos da minha perna e eu senti na hora,
mas no me assustei, nem disse nada. E me olhou. Cumprimentei Elzo que j se encaminhava
para ir embora. Joaquim reclamou, perguntando se no amos ficar ali conversando e demorou
para ele mesmo se levantar. Eu fiquei em p, meio que esperando ver qual era a reao dele.
Elzo estava cada vez mais longe e se afastando e Joaquim ficou olhando pros lados, meio se
fazendo de perdido e como quem ta aguardando que eu o faa um convite para subir. Antes que
Elzo virasse a rua, porm, eu estendi a mo para o Joaquim, que olhava para os lados, e lhe
disse gentilmente: Ento tchau, boa noite. Ele se virou e meio decepcionado, apertou a mo e
respondeu a saudao noturna. E saiu correndo para alcanar o Elzo. (De volta rotina do
Regala. 18/10/2013. Dirio de campo, p.237)
168
Perguntei se j tinha namorado homem. Ele disse que nunca tinha nem pensado nisso.
Assim como o Julio, da Laginha, ele ficou meio desconcertado com a pergunta, no
parece constar no seu universo de possibilidades.
Ao perguntar se as pessoas sabiam que ele tinha com os gays, ele me respondeu
que no, porque ele disfara[ria]. Perguntei-lhe ento se ele no se importava de ser
visto andando com gays nas ruas. Ele respondeu que ningum teria nada com a vida
dele. Justifiquei a pergunta dizendo que me parecia bvio que o fato dele andar com os
gays poderia sugerir para as pessoas que ele tambm era gay.Joaquim me respondeu que
se ele est com meninas, suspeitam que ele estaria disfarando, se no, tambm. Ento
que se dane, disse. Perguntei se os amigos sabiam dele, se j tinham comentado que
tambm procuravam gays. Ele respondeu que s tem um amigo-irmo e revelou que
este tal amigo outro menino da sua idade ou ainda mais novo, que eu conheceria horas
mais tarde no sabia e que nunca tinham conversado sobre isso. Assim acredito que
essa leitura cultural da homossexualidade como contgio simblico que muito
comum em alguns sistemas heterocentrados ainda que exista no Mindelo, parece no
ter a mesma intensidade que em outros lugares.
Mas Joaquim visivelmente mais esperto que os demais rapazes de quinze anos.
E muito solto na rua tambm. Naquele dia ficou conosco at uma da manh na porta do
Pontdgua, em pleno perodo escolar. Fora os outros dias da semana em que ficava at
de madrugada conosco na praa. Ele tentava se enturmar num grupo onde tnhamos
vinte e quatro, vinte e sete, vinte e oito, trinta e seis e at mais de quarenta anos. Mas
Joaquim no entrara conosco naquela festa, no tinha dinheiro para pagar o ingresso e
no seduziu ningum a faz-lo por ele.
No dia em que ele tentou ter comigo, porm antes do episdio, anoto em meu
dirio de campo:
No caminho encontramos o Joaquim (o menino de 15 anos, filho de pai senegals e me caboverdiana emigrada em Portugal). Eu o conheci no dia da festa do Pontdgua. Didi est sempre
irritado com ele e no tem a menor pacincia, no sei ainda tanto o porqu disso. Joaquim um
rapaz muito saidinho, como a gente diz no Brasil. Hoje, na volta da casa do Cesar, viemos
conversando ns dois somente. Ele perguntou como ia a pesquisa com os gays (falou essa
palavra baixo e apontou simultaneamente Didi, Elzo e Lunga que caminhavam a nossa frente).
Eu disse que estava caminhando bem. Eu disse que a pesquisa o inclua tambm.
Imediatamente ele disse que no, como quem diz que no gay e que, portanto, no teria nada
a ver com ele. Eu achei engraada a reao e aliviei: disse que de uma certa forma incluiria ele
tambm e a sim ele concordou meio sem graa. (De volta rotina do Regala 18/10/2013.
Dirio de campo, p.236)
169
Todavia, seria somente em outra conversa com Didi, que eu descobria mais da
biografia de Joaquim, como assim fazendo, compreenderia a implicncia que Didi nutre
por ele:
Ainda conversamos sobre o menino Joaquim. Finalmente entendi porque Didi tinha tanta
implicncia com ele. E foi Didi mesmo quem me explicou. Joaquim, apesar de no ser garoto
de rua, fica andando pela rua desde muito novinho, pois tem pai estrangeiro e me emigrada
da sua malandragem e esperteza. Didi me disse que ele, junto com outros amigos ainda mais
novos, uma vez estavam debruado sobre o carro de Cesar, conversando. No dia seguinte,
parece que rolou uma fofoca de que eles, Didi e Cesar, eram pedfilos, afinal de contas,
estavam de conversa com meninos de 12, 13 anos. Didi ficou revoltado, porque era o Joaquim
e os amigos que ficavam em cima, e por isso que at hoje, ele no quer saber desse menino. Me
contou ainda que Joaquim era um dos meninos no escndalo do Simpatia. Um prdio onde,
de acordo com ele, uns irlandeses passavam estadias aqui e contratavam os meninos (e tambm
meninas) menores de idade para transarem. Prostituio infantil. Uma das vizinhas uma vez fez
um barraco e chamou os irlandeses de porcos. Didi me disse que prostituio infantil um
problema srio aqui e crescente. Muitos meninos novinhos ficam andando na rua e acabam
aliciados. Joaquim seria um desses que teria dormido com estrangeiros. Por isso que Didi
perguntou se eu pagaria a entrada do Joaquim na festa, pois segundo ele, o menino estava
achando que eu iria faz-lo. Joaquim, diferente do que eu acreditava, no estuda no liceu. Faz
s aulas de piano. (O programa de TV 23/10/2013. Dirio de campo, p.240-1)
170
Alterarei aqui os nomes que vinha usando at ento para no expor em demasia a vida sexual de meus
interlocutores.
171
Dois aspectos das estratgias dos sujeitos gays que chamaram minha ateno so
o abuso da linguagem ftica e o acionamento de parentescos fictcios. Tais estratgias,
foi-me dito diversas vezes, funcionavam por no espantar os rapazes. Na primeira
abordagem no parece ser muito conveniente falar logo em sexo, ambos os lados do pa
dodu (fazem-se de doidos) no ritual. O segundo aspecto o acionamento do
parentesco (ainda que fictcio) pareceu-me ter o sentido de criar uma aura familiar
abordagem, baseada nas relaes de confiana, lealdade e vizinhana, no intuito daquele
rapaz se sentir vontade149, o que seria o inverso das abordagens estpidas dos
rapazes.
Em relao s tticas dos sujeitos gays, obtive de Non, um homossexual de 63
anos e, portanto, o mais velho que conheci no Mindelo, o depoimento mais rico:
Comeou contando algumas de suas tcticas para conseguir rapaz. Uma delas era assistir
filmes porns em sua casa, de maneira que a imagem da TV refletisse na janela. Isso atraa os
rapazes curiosos que, volta e meia, pediam para entrar. Ele dizia que sempre vai aos poucos.
No pode assustar. Da a razo dele responder que os filmes so sempre hteros, quando lhe
perguntei se eram filmes gays. O filme gay chocaria, j revelaria a situao e me parece que
aqui se cultiva muito o mistrio das relaes entre homens: a conquista, a conversa, o charme,
a dvida e o risco (do gostar ou no de homem, quase sempre no muito explcito)... Tenho
escutado de alguns, que no gostam quando o rapaz muito dado, ou muito rpido. Non
nos contou ainda uma histria sobre outro rapaz muito bonito que passava todo dia na sua rua.
Um dia ele puxou conversa com o rapaz, perguntou-lhe se ele era parente de uma pessoa l
149
172
qualquer. (Vi essa mesma ttica sendo usada por Elzo, h alguns dias). Eles conversaram e,
entre outros assuntos, o rapaz contou a Non que sua me estava doente. Ento, noutro dia,
Non lhe perguntou como estava sua me e uma amizade se formou entre o senhor e o rapaz.
At que um dia, o rapaz pediu para entrar para beber uma gua. A me de Non, bem idosa,
estava na sala vendo televiso. Eles entraram e tiveram uma relao sexual. (Conhecendo a
velha guarda 2/10/2013. Dirio de campo, p.105-106)
At aqui, expus muitas das abordagens de rua, mas existem outros meios e
locais tambm possveis para o cortejo:
Existem meios tambm, locais, tipo existe uma boate que se chama "Caravela" - no uma
boate gay, uma boate heterossexual, que abre as quintas, sextas e sbados - mas j se sabe a
que as pessoas vo ali, pelo sexo mesmo. Ento tambm um meio. No sei... Voc mesmo
pode fazer propostas, se voc ver algum que te interesse, n? Voc pode fazer propostas, no
sei o que...
Internet?
Tambm, pode ser. Tambm, tambm, sim. Hoje em dia, sim.
Na internet, como que ? Existe um site? Facebook?
No existe. Sim, mesmo pelo facebook, sim. As pessoas esto descobrindo esse instrumento.
O facebook mesmo. (Entrevista Didi. Mindelo, 26/09/2013)
esquina da rua onde estvamos. E, depois de algum tempo de conversas entre eles,
comearam a subir em direo a ns. Passaram por mim e olharam, mas continuaram
pelo caminho por onde haviam passado Abreu e Cleiton minutos antes, morro arriba
(acima). Quando me dei conta do que realmente iria acontecer, Aline, que estava
comigo, e eu resolvemos descer. Ficamos ento os quatro (Aline, Cesar, Mnica e eu)
conversando no banco do calado.
Depois de algum tempo, desceram os quatro rapazes. Imaginei que Abreu e
Cleiton desceriam em seguida e foi o que aconteceu. Eles realmente tiveram com os
meninos. Fizeram broche em pelo menos trs dos rapazes. Cleiton deu para um deles.
Abreu me contou que primeiro eles conversaram qualquer coisa. E depois Abreu disse
que queria ter uma conversa em particular com um deles e o arrastou para um canto.
Cleiton contou que, na hora, no soube gerenciar sozinho os outros trs.
Abreu confessou que adora quando est conversando com um rapaz e o tal fica
vidrado olhando fixo em seus olhos, fissurado naquele momento. Assim, Abreu
comea a alisar o pnis do rapaz e comea a sentir ele endurecendo aos poucos at
latejar. Contou-me isto generalizando, mas se referindo obviamente ao ato sexual que
acabara de experienciar. Abreu parecia, assim como Graa, na Praia, sentir prazer no
s no sexo em si, mas na prpria inverso de poder que performavam. Se Graa, como
vimos, sentiu o prazer da vingana, pois era quem agora tinha o poder de dizer no ao
rapaz que a desejava, Abreu tambm no escondia o prazer de ter os rapazes sob seu
domnio temporrio.
Os rapazes ejacularam e se foram. Abreu e Cleiton ficaram ainda um tempo no
local. A explicao para a demora era que Abreu estava com o pnis ainda em estado de
ereo e, vestido com sua cala legging, colada ao corpo, ele precisaria esperar at
diminuir a ereo, seno iria aparecer tudo. Os rapazes depois sentaram num banco do
calado, prximos de onde estvamos. Cleiton foi ento l para pedir seu(s) nmero(s)
de telefone(s), mas acabou conversando com eles150. Quando o vimos, ele estava
150
Eu estive alguns minutos com esses meninos, mas infelizmente no conversei tanto com eles. No
senti que era vivel question-los sobre o que eles tinham acabado de fazer. Ao meu pedido, um deles
acendeu um cigarro para mim. Eles pareciam bem tranquilos com toda aquela situao, apesar de
novinhos. Um deles dormia deitado no banco. Pareciam um pouco cansados e com os pensamentos
dispersos. Riam, ouviam msica e conversavam entre eles. A cena me lembrou muito da cano brasileira
Geni e o Zepelim, na parte em que fala dos meninos de internato.
174
novamente se encaminhando, junto com um dos rapazes, para o mesmo lugar onde
acabaram de ocorrer as relaes sexuais.
Dessa segunda ida, Cleiton estava demorando mais a descer e, preocupado,
Abreu me chamou para irmos atrs dele. Foi s a que conheci pessoalmente o local
onde tudo tinha acabado de acontecer. Era uma rua no alto, deserta, com pouca luz.
Muitas casas grandes e geminadas. Seguimos por um caminho ngreme de terra e pedras
no morro, at alcanarmos um plat, que Abreu contou-me viver algumas pessoas de
classe mdia alta da cidade. Abreu me mostrou onde foi que ele ficou com o rapaz, um
canto qualquer entre alguns carros.
Procurvamos, mas no achvamos Cleiton, at que ele gritou de um beco muito
escuro que j estava indo nos encontrar. Na penumbra, percebemos que ele estava
agachado sobre os joelhos, e eu logo deduzi que ele devia estar se limpando. Abreu e eu
ficamos rindo. E no deu outra, depois de algum tempo Cleiton veio em nossa direo
com uma cueca suja e embrulhada, era dele. Procurava um saco de lixo para p-la
dentro. Depois pegou um saco na rua e jogou tudo em um terreno baldio prximo.
Cleiton falou que quando sentiu que, por problemas intestinais, o sexo anal no seria
possvel ou desejvel, mandou o menino ir embora. Abreu disse que por isso que no
tem mais o hbito de fazer sexo anal na rua, penetrao s em casa, justamente para
evitar essas situaes constrangedoras. O risco e o medo do passar um cheque (como
alguns sujeitos gays do Mindelo, por uma importao da expresso do universo gay
brasileiro, chamam o ato de sujarem de fezes o parceiro no ato sexual anal) so uma
constante, principalmente quando as prticas sexuais de penetrao ocorrem em locais
pblicos.
O intercurso sexual anal uma questo central para um modelo hierrquico de
(homo)sexualidade masculina, como proposto por Fry (1982b). De acordo com o
modelo, no ato sexual a bicha, que se comportaria sexualmente como passivo,
dramatizaria a sua submisso ao homem, aquele que ativo sexualmente, e,
portanto, se configuraria como o sujeito dominante. Assim, o que se percebe na anlise
do ritual que ao contrrio do que supe o modelo, a passividade neste ritual sexual
no est colada necessariamente ao papel de submisso, ainda que as identidades de
gnero dos sujeitos permaneam prximas do que se prope no modelo proposto por
Fry (homem:masculino::bicha:feminina). Aqui, percebo que o passivo sexual
175
(aquele que penetrado) que conduz os rapazes, que dita as regras e que pode, a hora
que lhe convier, interromper o ato e mandar que seu objeto de prazer o falo do rapaz
se v. E o falo obedece.
A inteno de rememorar esta cena no s ilustrar o ritual, mas mostrar como o
ato sexual pode se realizar a partir de um investimento e iniciativa dos rapazes no-gays
do Mindelo, ao mesmo tempo em que h, por outro lado, uma agncia dos sujeitos gays
no s no sentido de retribuir os olhares e flertes, mas tambm na deciso final sobre se
o ato sexual se realizar ou no, com quem, como, onde etc. claro que nem sempre os
atos sexuais ocorrem da mesma forma e a inverso aqui descrita no se realiza em todos
os casos, mas, pela primeira vez, eu vi sendo atendido o pedido levam m b, que, de
fato, inverte as relaes de poder entre sujeitos gays e no-gays, concedendo aos
primeiros as decises sexuais, e, pela primeira vez tambm, acompanhei todo o
processo ritual homoertico mais significativo do Sistema Hipocrisia, quando rapazes
no-gays performam o intercurso (homo)sexual.
Angstia
176
entre idas e vindas com antigos parceiros, acabou por reatar com um ex-marido, que
jamais conheci. Mas anoto em meu dirio:
Cesar tambm contou rapidamente que tinha voltado com seu ex-marido. Um rapaz de 28
anos, de So Vicente mesmo e que mora numa zona pobre. (Apesar de sua famlia ter a
melhor casa do local, segundo Cesar). Cesar contou que ele muito cobiado em sua zona.
Contou ainda que quando eles terminaram e ele, Cesar, foi para Paris, as pessoas por l diziam
ao rapaz que Cesar no voltaria mais para Cabo Verde, como forma de dissuadi-lo de esperlo. O rapaz ento foi namorar a menina mais linda do local, diz Cesar concordando sobre sua
beleza. Parece que ontem, essa menina que teoricamente ainda namorada do tal rapaz ligou
para o rapaz e este mandou que Cesar a atendesse. Cesar atendeu e ao ser perguntado sobre
quem era, Cesar respondeu que era ele, Cesar. Como o rapaz e Cesar foram casados
durante 13 anos, todos o conhecem. E a menina, que ligou para seu namorado noite e acabou
falando com o ex-marido dele, imediatamente entendeu que os dois teriam reatado. Cesar diz
que gosta muito dele, que ele foi o homem mais importante da vida. [...]Completou ainda que
quando eles foram transar ontem, depois de uns 3 anos separados, o rapaz ficou muito ansioso
e no conseguiu, a principio, ter mais ereo. Cesar disse que o ofereceu uma coca-cola para
ele se acalmar. Mas ele e Cesar brigaram ontem, quando o rapaz resolveu mostr-lo fotos da
namorada, para que ele visse o nvel de mulher que ele conseguia atrair. Cesar ento contou
que o questionou: se ele achava que ela era melhor do que ele, que o rapaz podia ir ficar com
ela, como quem tem muita segurana sobre o seu prprio valor. Quando perguntei a Cesar
porque ele tinha voltado com este ex-marido (j que ele andava bem com o outro rapaz de
quem dizia tambm gostar), ele respondeu que foi obrigado pelo ex-marido. Eu perguntei se
o rapaz tinha essa moral e ele respondeu afirmativamente. Depois passou falando o resto do dia
desta confuso que ele tinha arrumado em voltar com esse ex-marido. (Uma segunda
abandonado. 7/10/2013. Dirio de campo, p.138-9)
O terceiro era Pedro, o professor de educao fsica de 29 anos, que disse ter
vivido um relacionamento conjugal, com coabitao na Ilha de Santo Anto, mas que
agora vivia o que parecia ser um casamento distncia:
Voc hoje em dia mora s? casado?
Pronto, eu sou casado. Moro com a minha me neste momento e com um sobrinho meu.
Uhum. E casado com quem?
Com um canariano. Pronto, canariano, no! Porque ele nascido na Espanha, em Galcia.
Ento ele vive em Tenerife. Hoje j no. Agora ele est vivendo em Ferrole, Corunha, na
Espanha, com a me. E... pronto. Em breve, ele vem, em breve. Pra Cabo Verde, talvez...
E como essa relao de vocs?
Pronto. Ns temos uma relao estvel. Uma relao, pronto. Ns temos uma relao (?) uma
relao lindo. Porque ns damos muito bem. Nunca tivemos, ... Desavenas na nossa relao
e atualmente eu estou feliz com ele.
E vocs se encontram de quanto em quanto tempo?
Pronto. Neste momento, com problema que ele tem com a sua me, que a sua me est doente,
ento ele j vem raramente para Cabo Verde. Porque ele est mais em cima da sua me, porque
ele estava... a trabalhar aqui. Estvamos a viver juntos. Neste momento ele est ausente, mas
temos comunicao pela internet, pelo fone. Ento estamos sempre a comunicar.
E voc, voc vai pra l tambm?
Vou, vou. Vou nas frias.
Ah ta. ... Mas... Esse casamento de vocs monogmico, ele pode ter outro parceiro, ele
pode ter outros parceiros ou no?
177
No... (?) Esse nosso casamento , pronto... Eu, eu... (?) com ele que eu tenho
responsabilidade. Mas podemos (?) parceiro, porque neste momento estamos viver... estamos
longe.
Ento pode ter outros parceiros?
Pode ter outros parceiros. (Entrevista Pedro. Mindelo, 9/10/2013)
Elzo certa vez ironizou a afirmao tanto de Cesar quanto de Pedro de que
ambos tinham marido, pois para Elzo parecia muito estranho algum ter marido e no
morar com este, como no caso de Cesar, ou, pior, ficar muito tempo sem o ver, como no
caso de Pedro151. Mas no pretendo investigar os sentidos da categoria casamento e
marido para os sujeitos gays e travestes, pois me faltam dados para tal152. Gostaria,
contudo, de demonstrar que uma queixa corrente entre os sujeitos gays a de que essas
relaes que eles estabelecem com esses homens no-gays so quase sempre casuais.
Diferente da acusao dos gays da elite de Praia descritos por Rodrigues153, no se
trataria de uma ignorncia tpica dos gays das classes populares, mas se daria
principalmente pela recusa dos homens no-gays na assuno de uma identidade
propriamente gay, como fica claro nessa entrevista com Lunga:
Como que a relao entre os parceiros do mesmo sexo aqui no Mindelo? sempre
assim casual? Existe namoro?
No, casual! Acho que 99% tudo casual. Se que existe 1% (risos), tudo casual. Pode ser
um casual que dure alguns meses, pode durar anos, mas tudo casual.
Por que? Que que ento ser casual?
Porque assim... Aqui... muito complicado. Porque aqui, no sei se por ser um lugar pequeno,
as pessoas... Isso... A homossexualidade aqui em Cabo Verde muito complicada. Eu que sou
gay assumido, por exemplo, ou o Elzo que assumido... Ns somos gays, ns dissemos que
somos gays e que ns gostamos de homens e no sei que... Os rapazes que se relacionam
conosco, eles no so... Podem se relacionar com voc anos e anos, mas pra eles, eles no so
gays. Eles so rapazes que gostam deestar com gays, mas eles no se identificam como gays.
Uhum.
151
A literatura etnogrfica de Cabo Verde, porm, demonstra que tais regimes de casamento no so nada
incomuns nos sistemas de parentesco locais. Ver LOBO A. d., 2007, p.180).
152
Parece-me apenas significativo quanto a isso, que tanto Pedro quanto Cesar tenham tido uma longa
experincia emigratria o primeiro na Europa e o segundo tanto no continente americano, quanto no
europeu de onde podem ter introjetado certos valores estrangeiros de conjugalidade. Arrisco tal
associao pela semelhana com um terceiro caso, o do professor Lunga, tambm j emigrado para a
Europa: E voc namora? No, infelizmente. Infelizmente? Porque queria namorar... Sim. ... Mas j
namorou alguma vez? Uma vez s em Portugal. Em Portugal. Por que no aqui? Porque... (risos) no
encontrei ningum. Por isso, s por isso. difcil encontrar algum? Eu acho que sim. Porque eu acho
que as pessoas querem mais s sexo, esse tipo de coisa. Eu j to cansado disso, ento prefiro ficar
sozinho. To querendo uma pessoa para estar com a pessoa... No estar aqui um dia com um, um dia com
outro. Isso no. Ento... (Entrevista Lunga. Mindelo, 30/09/2013)
153
A seu ver, os gays das classes populares reproduzem o modelo de homoafectividade que se resume a
uma relao sexual, com clara distino entre o homem macho e o gay, reportanto para a relao de
poder entre dois homens. Aquele que pratica sexo oral no outro, ou tem uma postura afectiva, visto
como um igual ou, na voz do meu interlocutor, como bicha, e os gays da classe popular querem ter
relaes com homens que eles vm como hteros e no como bichas (RODRIGUES C. , 2010, p. 81)
178
Ento, da eu acho que vem essa dificuldade de ter uma relao. Porque eles podem at gostar
de voc e querer ficar com voc, mas no querem enfrentar a sociedade, no querem assumir.
Por exemplo, ele pode dizer pro Elzo, por exemplo, Ah, eu quero ficar com voc e pode at
ter uma relao, mas tudo escondido. Ele no vai sair com voc a... Eu no to falando de sair
na rua de mo dada, porque eu tambm no quero isso. Mas eles no vo... Por exemplo, dizer
ah, eu namoro com ele, eu namoro com esse e sim pra te encontrar e vir at a sua casa ou...
tudo muito discreto, porque... eles no querem enfrentar, no querem dizer na rua Ah, eu
moro com rapaz ou... Ento a relao um bocado complicado. Acho que mais por causa
disso que as relaes ficam s na esfera da casualidade, n? tudo...
Entendi. E esses rapazes namoram meninas tambm?
Na maior parte dos casos sim. Nos 99% dos casos (risos). (Entrevista Lunga. Mindelo,
30/09/2013)
Lembremos do primeiro captulo o trecho do portugus Rafael Fanchono depondo na Santa Inquisio
sobre a impossibilidade de fanchonos se relacionarem com fanchonos no sculo XVI em Portugal.
180
anulado imediatamente. Tem nada. No tem como mesmo. Comigo e com os outros tambm.
claro que existe outros casos de alguns que conseguem levar, no sei o que... Mas porque eles
investem do seu tempo e insistem e insistem e sofrem, sofrem, sofrem, sofrem, sofrem... Mas
eu no! Eu costumo dizer que eu gosto muito, muito de mim mesmo. (Entrevista Didi.
Mindelo, 26/09/2013)
Em meu dirio de campo, anoto sobre a tal entrevista, fornecendo mais dados
sobre Tiago e tecendo concluses:
O prximo entrevistado era o menino Tiago, de 16 anos que era vizinho de Elzo. Tiago alto,
negro, mas com a pele mais clara, tem um culos com lentes de um grau bem elevado. Usava
roupa de rapaz da sua idade, bermuda e camiseta. Tiago chegou meio assustado. Segundo Elzo,
que foi quem intermediou esta entrevista, Tiago lhe pediu para no contar para ningum que
era bissexual. Razo pela qual, assim que ele chegou, pedi para o Didi e o Lunga nos
deixarem a ss. Algo que eles j tinham oferecido por livre e espontnea vontade antes e que
atenderam sem problemas. Mas somente eu poderia saber de sua opo, j que iria fazer a
155
Alguns exemplos de telenovelas brasileiras que tinham em sua trama casais homoafetivos e que foram
retransmitidas em horrio nobre em Cabo Verde so: Amrica, Paraso Tropical, Avenida Brasil,
Senhora do Destino entre outras.
181
entrevista. Tiago um menino, ainda no Liceu, que se diz bissexual, mas que no se
assumiu, apesar de sua me j saber. Entrevist-lo foi interessante para ver uma das
possibilidades de como a questo da homossexualidade est sendo reatualizada nessa gerao.
No entanto, uma das possibilidades que ele deslumbra pro futuro, casar-se com uma mulher e
botar-lhe corno, como costume dos hteros aqui, ou seja, manter o padro cultural do
grupo dos rapazes no-assumidos. (De volta s entrevistas 30/09/2013. Dirio de campo,
p.89-90)
Assim, este captulo traz mais uma evidncia de que populaes crioulas
expem dificuldades de replicar a cultura e a linguagem europeia nos trpicos
(RODRIGUES I. P., 2003, p. 92). Termino repetindo a evidncia nativa mais clara,
representada na maneira sagaz como Didi provoca Elzo: Ok! Se instauram o casamento
[entre pessoas do mesmo sexo] aqui. Quem vai casar com quem? Voc vai convencer o
rapaizinho ali a casar? Realmente conquistar a afetividade dos rapazes no-gays parece
tarefa difcil aos gays sampadjudus, qui por ora possvel no Mindelo, ou em Cabo
Verde.
***
Se no segundo captulo, dei maior ateno s representaes sociais dos sujeitos
gays em Cabo Verde, neste captulo III, busquei evidenciar a partir dos meus
interlocutores no Mindelo, como se d uma parte da vida sexual e afetiva dos rapazes
crioulos. Dessa forma, trouxe a cantada de Julio que, alm de deflagrar a importncia do
corpo gay do antroplogo como agente produtor fundamental da prpria etnografia,
revela em seu cortejo, muito do contexto cultural no qual os rapazes cabo-verdianos
esto imersos e a partir do qual eles elaboram suas estratgias sexuais. A sntese cultural
contida na cantada de Julio se reflete em alguns trechos, como quando surgem: a
virilidade do homem cabo-verdiano e de sua abordagem; a exaltao do corpo feminino
como signo de sociabilidade entre os homens; a dominao masculina pressuposta no
modelo hierrquico, que segrega ativos e passivos, conferindo-os valores distintos;
a meno e afiliao religiosidade catlica; a aproximao cultural com o Brasil e as
atualizaes que este exporta para Cabo Verde; a simulao da homofobia atravs das
bocas e obscenidades ditas. E, apenas sob o manto da heteronormatividade, surge o
desejo homoertico, permitido pela lei, mas ainda envergonhado. Nesta conversa,
percebo que o desejo homoertico, quando enunciado, feito em volume baixo, sem
estrilo (como sempre ser a prpria consumao do ato). Alm de tudo, o rudo na
comunicao com Julio, no que diz respeito a nossa (in)compreenso mtua dos
significados de gay para o outro, revela para mim, a importante informao de que ser
182
gay por aquelas ilhas tem a ver com feminilidade, identidade e afetividade para alguns
e apenas desejo homoertico para outros.
Esses outros seriam os homens no-gays categoria na qual pretendi
englobar todos os sujeitos que no se reconheciam a partir de uma identidade noheterossexual. Este critrio no apenas uma arbitrariedade do antroplogo, mas dos
prprios interlocutores gays que tendiam sempre a enquadrar esses rapazes htero com
as aspas ou no-gays sobre uma mesma classe. O prefixo no no toa: ele
utilizado aqui porque justamente na coincidncia das respostas negativas desses
rapazes, quando perguntados se so gays, que h uma possibilidade de classific-los
dentro de um mesmo grupo, haja vista que outras caractersticas como idade, condio
socioeconmica, estado civil etc. me eram muito difcil precisar. De qualquer forma,
esses sujeitos ainda que no se reconheam ou que se assumam gays, esto
habitando o universo homoertico e se relacionando sexualmente com outros homens.
Assim, abordo trs rapazes-exemplos: Julio, John (badiu) e Joaquim. Por um lado, os
trs tm em comum o fato de no se considerarem gays e, ao mesmo tempo, os
desejarem sexualmente. Por outro, se aproximam por no vislumbrarem se relacionar
com os sujeitos gays de forma afetiva e conjugalizada, como propagado por certos
modelos. Reclamaes dos sujeitos gays crioulos acerca da estupidez desses homens
no-gays e da hipocrisia contida neste sistema de homens e bichas so proferidas a
toda hora. Todavia, insisti ao longo deste trabalho que esta no uma especificidade das
relaes homossexuais, pois tal reclamao ocorre, de acordo com a literatura sobre o
pas, com as relaes heterossexuais.
Por ltimo, vimos que, para alm das estratgias de abordagem do Julio, existe
algumas outras possibilidades de abordagem dos rapazes, quando estes pretendem obter
sexo com os sujeitos gays. Seja atravs do olhar, do assovio ou do mandar boca, esses
rapazes encontram formas de chamar a ateno dos gays e de ter com eles. Mas este no
um exerccio unilateral: tambm os sujeitos gays possuem estratgias de atrao dos
rapazes. Entre essas estratgias, chama a ateno: o uso da linguagem ftica e do
acionamento do parentesco, ainda que fictcio. Ambas tem o objetivo de no amedrontar
os rapazes. Assim, busquei narrar mais detalhadamente um destes rituais de cortejo
como forma no apenas de ilustrar as dinmicas, mas de argumentar que a
passividade pressuposta no modelo hierrquico pode ser invertida no ato sexual
real. Por ltimo, percebo que as experincias (homo)sexuais fulgazes com esses
183
fugidios rapazes j no parecem satisfazer s expectativas dos sujeitos gays, que cada
vez mais incorporam valores romnticos da monogamia, do afeto mtuo, da
conjugalidade, da cohabitabilidade etc, que chegam atravs de vrios canais, como a
mdia, as suas prprias experincias emigratrias e o movimento LGBT internacional. O
que percebo nos sampadjudus uma angustia por no poderem realizar plenamente seus
projetos de sujeito gay cosmopolita dentro de uma cultura nacional como a sua.
Consideraes Finais
porto internacional; a ligao desta cidade com as dinmicas atlnticas, ocidentais por
excelncia; ea especializao de uma vida boemia e intelectual, que pensaria
posteriormente o pas. Neste sentido, o mais importante foi perceber a construo
histrica, historiogrfica e mtica do cosmopolitismo e liberalidade dos
sampadjudus. Essas caractersticas, fortemente incorporadas na auto-imagem dos
mindelenses, tornam mais plausvel, nesta e no em outras ilhas de Cabo Verde, a
possibilidade de insurreio das travestes, no evento que denominei Revolta das
Tchindas, assim como do movimento LGBT que da derivou.
Demonstrando o processo de tentativa de reafricanizao dos espritos, levado a
cabo no sculo XX, assim como as atuais narrativas de meus interlocutores, e a cultura
material do Mindelo, principalmente expressa nas artes, busquei argumentar que, ainda
que os sampadjudus se pensem cosmopolitas, este cosmopolitismo ou morabeza
encontra alguns limites para a incorporao de outros. Um desses limites diz respeito a
uma difusa, mas igualmente tensa, rejeio dos signos de africanidade em So Vicente.
Signos de africanidade ora ligados aos mandjacos, ora aos badius. Da mesma forma, a
liberalidade da cidade do Mindelo encontra barreiras, como a manuteno de uma
moralidade tradicional que pressiona para o silenciamento da (homo)sexualidade como
possibilidades sexual, identitria e afetiva. Assim, mesmo que a perseguio estatal no
parea existir h muito tempo e que tenha existido uma vida sexual ativa dos
homossexuais no Mindelo desde pelo menos a dcada de 1970, estas experincias
sempre tiveram de ser escondidas, como nas tubulaes das usinas de dessalinizao,
saudosamente chamadas pelos meus interlocutores como as guas Quentes da
Laginha.
No captulo II, a partir de meus dados e daqueles fornecidos por outros
pesquisadores, busquei mostrar ao leitor a perspectiva dos homossexuais caboverdianos a respeito do seu prprio sistema de gnero. Neste intento, constru uma
categoria analtica, que chamei de Sistema Hipocrisia e que pretendeu apenas dar
conta da sistematizao desses dados. Pareceu-me significativo a recorrncia da palavra
hipocrisia quando os sujeitos gays se referiam a sua sociedade, acusando-a
moralmente. Contudo, longe de ter um nico significado, a categoria mica hipocrisia
recorrentemente entendida ora como acusao do tpico silenciamento da sociedade
cabo-verdiana em relao evidncia emprica da homossexualidade, ora como
acusao da suposta contradio diagnosticada por estes mesmos sujeitos gays entre
185
3)
inaugurar o que viria a ser o moderno movimento LGBT local. Em seguida, contudo,
lano a hiptese da anacronia deste movimento que, inspirado nas experincias e na
gramtica do movimento LGBT internacional (construdo desde o final da dcada de
1960 em pases norte-americanos e europeus), no parece mais corresponder s
expectativas e aos dilemas da sociedade crioula cabo-verdiana tampouco sua
populao gay neste incio de sculo XXI. Pois as pautas que esto postas, geradas em
outros sistemas sociais, encontram um assentamento precrio no arquiplago. Por
exemplo, a descriminalizao da homossexualidade, tal como perseguida pelos
movimentos LGBT em muitos pases africanos, uma pauta no-gramatical em Cabo
Verde, pois a efetiva criminalizao de fato nunca parece ter ocorrido no pas, apesar do
cdigo penal t-la prescrita at 2004. Outro exemplo seria a inviabilidade da legalizao
do casamento gay. Isso porque o modelo hegemnico de casamento ocidental, marcado
pela co-habitao dos cnjuges, um modelo historicamente rejeitado pelas prticas
culturais na sociedade crioula e as homoafetividades no arquiplago parecem no fugir
dos modelos de afetividade e conjugalidade tradicionais. Por ltimo, a prpria
demarcao das fronteiras identitrias promovida pelo movimento LGBT parecem no
186
corresponder
fluidez
dos
homossexuais
cabo-verdianos,
que
se
afastam
Por ltimo, vimos que, para alm das estratgias de abordagem do Julio, existe
algumas outras possibilidades de abordagem dos rapazes, quando estes pretendem obter
sexo com os sujeitos gays. Seja atravs do olhar, do assovio ou do mandar boca, esses
rapazes encontram formas de chamar a ateno dos gays e de ter com eles. Mas este no
um exerccio unilateral: tambm os sujeitos gays possuem estratgias de atrao dos
rapazes. Entre essas estratgias, chama a ateno: o uso da linguagem ftica e do
acionamento do parentesco, ainda que fictcio. Ambas tem o objetivo de no amedrontar
os rapazes. Assim, busquei narrar mais detalhadamente um destes rituais de cortejo
como forma no apenas de ilustrar as dinmicas, mas de argumentar que a
passividade pressuposta no modelo hierrquico pode ser invertida no ato sexual
real. Por ltimo, percebo que as experincias (homo)sexuais fugazes com esses fugidios
rapazes j no parecem satisfazer s expectativas dos sujeitos gays, que cada vez mais
incorporam valores romnticos da monogamia, do afeto mtuo, da conjugalidade, da
cohabitabilidade etc, que chegam atravs de vrios canais, como a mdia, as suas
prprias experincias emigratrias e o movimento LGBT internacional. O que percebo
nos sampadjudus uma angustia por no poderem realizar plenamente seus projetos de
sujeito gay cosmopolita dentro de uma cultura nacional como a sua.
Do caminho a seguir
Cabo Verde, aos homens da periferia de Belm, no norte do Brasil, no parecia haver
contradio entre serem eles machos e ao mesmo tempo terem relaes com as
bichas, pois o homem poderia desempenhar comportamentos homossexuais se se
restringisse atividade (FRY, 1982b, p.94). Em linhas gerais, Fry defende modelos
de sexualidade masculina que variam entre um tipo hierrquico (de dominao
masculina, em que mulheres e bichas teriam equivalncia dentro do sistema, ou
seja, ambos submissos e passivos ao homem) e um tipo simtrico (de relaes
igualitrias em que aos homossexuais no seria mais to relevantes os comportamentos
sexuais ativos ou passivos).
O mundo masculino deixa de se dividir entre homossexuais msculos e homens efeminados
como no primeiro sistema, e se divide entre heterossexuais e homossexuais, entre
homens e entendidos (FRY, 1982b, p.94)
Do corpo-pesquisador gay
Uma ltima pergunta seria aquela proposta pela antroploga feminista AbuLughod: quando o outro que a antropologia est estudando simultaneamente
construdo, pelo menos parcialmente, como um self? (ABU-LUGHOD apud LEWIN,
E., & LEAP, W. L., 1996, p.10, traduo minha). Chamando-nos de halfies, a autora
mesmo responde sua questo dizendo que nestes casos o pesquisador deve fazer a
mediao entre falar por e falar desde. Creio que essa ambiguidade perpassa todo
este trabalho, no como algo que o desqualifique do ponto de vista da cincia
antropolgica, mas pelo contrrio, como uma perspectiva analtica privilegiada que o
enriquece. A identidade gay do pesquisador costuma proporcionar no s uma boa
abertura para o grupo gay local, como pressupe em alguns casos o compartilhamento
191
William (1996), pesquisador gay que estudou os indgenas two-spirited norteamericanos e que afirma que teve enorme vantagem em expor sua orientao sexual
para eles, far a ressalva de que compartilhar uma orientao sexual no garante por si
s a continuidade de boas relaes com os outros (seja transculturalmente, seja entre
pessoas de mesmo contexto cultural), mas que isso ajudaria a abrir muitas portas que, de
outra forma, permaneceriam fechadas.
Se os significados das categorias gay ou homossexual eram, por vezes,
culturalmente distintos entre os cabo-verdianos e eu, havia nelas algo de comum que
nos permitia comunicar temporariamente como iguais. Meu corpo gay e masculino
assim revelado a eles desde os primeiros contatos instaurou um tipo de relao
especfica com aqueles sujeitos. Peo licena ao leitor para transcrever uma longa
citao do meu dirio de campo, quando reflito sobre o meu lugar naquele grupo, tendo
j transcorridas algumas semanas de convvio:
Mas eles sempre, sempre, ou insinuam que eu estou me encontrando com algum s
escondidas, quando, por exemplo, eu fico em casa e no saio; ou quando eu resolvo ir para casa
mais cedo; ou quando para c resolvo vir sozinho. Ou, como hoje, quando supostamente
apareo com a pele boa, como disse Cesar e Didi, ou simplesmente muito alegre. Assim, eles
me acusam jocosamente de ser tambm uma cabra, ou um safado ou qualquer outro termo
que denuncie a minha suposta libidinagem ocultada. Por outro lado, vez ou outra, eles me
incentivam a ter com um cabo-verdiano. (Nunca uma imposio opressora, nem maliciosa,
nem ofensiva ou vulgar, mas sempre em tom jocoso comigo). Raras so as vezes que eles
concordam comigo que eu no deveria realmente ter com nenhum dos rapazes daqui. [...] Mas
192
eles costumam dizer, sempre que surge o assunto (e que eu de alguma maneira participo), que
eu deveria aceitar sair com um cara daqui e at agem para isso, por exemplo, chamando os
rapazes e dizendo que sou quem quero conhec-los (isso j aconteceu uma ou duas vezes). Por
exemplo, hoje, isso ocorreu quando Elzo me deixou em casa e saiu antes que o menino que
veio conosco fosse com ele, como que liberando o caminho para que eu, com privacidade, o
convidasse a subir. Ultimamente, a retrica principalmente do Elzo a de que eu deveria
sair com um rapaz daqui para eu poder entender melhor a dinmica e, assim, fazer uma
pesquisa melhor. Ele e os outros tm usado esse expediente, porque eu me posiciono algumas
vezes muito poucas, eu acho como pesquisador. E quando eles brincam s vezes falando
que eu deveria transar com um cabo-verdiano e eu no uso o argumento de que eu sou
comprometido, eu digo que eu estou aqui a trabalho. A questo que eu levo o trabalho bem
a srio e eles j perceberam isso. Razo pela qual, eles viram uma possibilidade de me
convencer por essa via da qualidade cientfica. J at tivemos uma conversa dia desses sobre
isso. Elzo usou esse argumento sobre uma possibilidade de melhor compreenso da coisa a
partir da experincia real da coisa. A coisa, no caso, seria o sexo. Eu disse apenas que tinha
questes ticas tambm envolvidas nisso. Mas ele no usa esse argumento creio eu porque
de fato esteja comprometido com a qualidade cientfica do meu trabalho ou preocupado com a
minha melhor experincia do real. Ou pelo menos suspeito que esses no sejam seus objetivos
primeiros. Creio que o que ele quer principalmente dissolver essa hierarquia que est posta: a
de que eles transam e eu s registro (o que, numa sociedade em que o sexo, apesar de certa
liberdade, ainda tabu, me d um poder moral sobre eles). Algo que ele j reclamou
claramente para mim, aqui em casa, dizendo que o papel de entrevistado muito mais difcil
do que do entrevistador (e ele no estava somente se referindo entrevista em si, mas toda a
pesquisa). Alm disso, acredito que eles queiram com essa jocosidade tambm me integrar
mais no grupo, me fazer um deles e etnograficamente isso um mximo! Eu j me sinto como
um deles, mas apenas em parte: eu compartilho histrias, segredos, risadas, desejos, intrigas,
fofocas, confidncias, informaes as mais diversas, mas sinto que para eles apesar da
excelente recepo que tive aqui no o suficiente. Eles tm que me fazer viver o que eles
vivem. [...] E tambm uma questo de ddiva (eles tm o direito de tambm conhecerem as
minhas experincias e no s eu as deles. Por isso sempre conto tambm minhas experincias
com os homens). E eu percebo como eles ficam empolgados com pequenos sinais meus de que
eu estou partilhando daqueles desejos deles pelos rapazes. Se eu mesmo chamo um rapaz para
nosso encontro ou elogio alguns ou at mesmo se eu dou conversa por livre iniciativa a outros,
eles j ficam felizes e demonstram isso com brincadeiras, piadas e troas, mais empolgadas e
mais ntimas. No toa, que depois de que fui cortejado por alguns rapazes, Didi veio
espontaneamente dizer que eu estou um cabo-verdiano, que eu j estou completamente
adaptado. (De volta rotina do Regala. 22/10/2013. Dirio de campo, p.233)
194
Bibliografia
Agncia de Notcias de Portugal. (10 de Novembro de 2013). Fonte: Cabo Verde cria
Fundo de gua e Saneamento e PM pede poupana no consumo:
http://noticias.sapo.cv/lusa/artigo/16772790.html
ALMEIDA, A. d. (1938). Sobre seus caboverdianos adultos do sexo masculino. Lisboa:
Boletim Geral das Colnias.
ALMEIDA, G. (2004). O Mar na Lajinha. Lisboa: Editorial Caminho SA.
ALMEIDA, G. (1997). O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Arajo.S. Vicente:
Ilhu Editora.
Amnesty International. (2013). Making Love a Crime: Criminalization of Same-sex
Conduct in Sub-Saharan Africa. Londres: Amnesty International Publications.
BATESON, G. (1972). Steps to an ecology of the mind: A revolutionary approach to
man's understanding of himself. Chicago: University of Chicago Press.
BAUMAN, Zygmunt. (2004) Amor lquido: sobre a fragilidade dos laos humanos. Rio
de Janeiro: Zahar.
BRAGA, P. D. (2006). Mulheres criminosas, Mulheres perdoadas (Cabo Verde e So
Tom. Sculo XVI). Islenha, 38, pp. 98-105.
BUTLER, J. (1993). Bodies That Matter: On the Discursive Limits of Sex. New York:
Routledge.
BUTLER, J. ([1990] 1999). Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity.
New York: Routledge.
BUTLER, J. ([2002] 2003). O parentesco sempre tido como heterossexual? Cadernos
Pagu (21) , pp. 219-260.
BUTLER, J. (1997). The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. Stanford:
Stanford University Press.
CAVALCANTI, M. L. (1998). Cultura e ritual: trajetrias e passagens. In: E. ROCHA,
Cultura e Imaginrio (pp. 59-68). Rio de Janeiro: Mauad.
Cdigo Penal de Cabo Verde. (2004). Cdigo Penal de Cabo Verde . Cabo Verde.
CORREIA E SILVA, A. L. (2000). Nos Tempos do Porto Grande do Mindelo. Praia e
Mindelo: Centro Cultural do Mindelo.
COSTA, J. F. (1992). A inocncia e o vcio: estudos sobre o homoerotismo. Rio de
Janeiro: Relume-Dumar.
195
196
197
198
PROSSER, J. (1998). Second Skins: The Body Narratives of Transsexuality. New York:
Columbia University Press.
Publico.pt. (14 de Janeiro de 2014). Acesso em 25 de Fevereiro de 2014, disponvel em
Dezenas de pessoas presas na Nigria com entrada em vigor de lei que probe
homossexualidade: http://www.publico.pt/mundo/noticia/ja-esta-em-vigor-a-lei-quecondena-a-homossexualidade-na-nigeria-1619606
RODRIGUES, C. (2010). A Homoafectividade e as relaes de gnero na Cidade da
Praia. Dissertao de Mestrado . Praia, Cabo Verde: UniCV.
RODRIGUES, I. P. (2007). As mes e os seus filhos dentro da plasticidade parental:
reconsiderando o patriarcado na teoria e na prtica. In: M. GRASSI, & I. VORA,
Gnero e Migraes Cabo-Verdianas.
RODRIGUES, I. P. (2003). Islands of Sexuality: Theories and Histories of Crioulization
in Cape Verde. The Internacional Journal of African Historical Studies, 36, pp. 83-103.
RODRIGUES, M. (2011). O Carnaval do Mindelo. Formas de Reinveno da Festa e
da Sociedade. Representaes mentais e materiais da cultura mindelense.
ROGERS, P. (05 de Maio de 2006). Os afectos Mal-Ditos: O Indizvel Das
Sexualidades Camponesas. Dissertao de Mestrado . Braslia.
ROSCOE, W. (1996). Writing Queer Cultures: An Impossible Possibility? In: E.
LEWIN, & W. L. LEAP, Out in the Field (pp. 200-211). Chigago: University of Illinois
Press.
SALIH, S. (2012). Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autntica Editora.
TIN, L.-G. (2003). Htrocentrisme, Htronormativit, Htrosexisme. In: L.-G. TIN,
Dictionnaire de L'Homophobie (pp. 207-211). Paria: Presses Universitaires de France.
TRAJANO FILHO, W. (maio de 2008). O trabalho de crioulizao: as prticas de
nomeao na Guin colonial. Etnogrfica 12(1) , pp. 95-128.
TRAJANO FILHO, W. (2003). Uma experincia singular de crioulizao. Srie
Antropolgica, 343 . Braslia.
TURNER, V. (1974). O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura. Petrpolis: Vozes.
VASCONCELOS, J. (2012). "Manera, ess Muv?": mobilidade como valor em So
Vicente de Cabo de Verde. In: J. B. DIAS, & A. d. LOBO, frica em Movimento (pp.
49-62). Braslia: ABA Publicaes.
VASCONCELOS, J. (2007). Espritos Atlnticos: Um Espiritismo Luso-Brasileiro em
Cabo Verde. Tese de Doutorado . Lisboa: Universidade de Lisboa.
199
200