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13 o Mundo Esta As Avessas Relacoes Tensoes e Enfrentamentos Religiosos Nos Folhetos de Leandro Gomes de Barros - Recife 1900-1920

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Edivania Alexandre da Silva

“O MUNDO ESTÁ AS AVESSAS”: relações, tensões e


enfrentamentos religiosos nos folhetos de Leandro Gomes
de Barros – Recife (1900-1920)

Salvador
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - UFBA
2007
2

Edivania Alexandre da Silva

“O MUNDO ESTÁ AS AVESSAS”: relações, tensões e


enfrentamentos religiosos nos folhetos de Leandro Gomes
de Barros – Recife (1900-1920)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em História, sob a
orientação da profª Dra. Edilece Souza Couto.

Salvador
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - UFBA
2007
3

Edivania Alexandre da Silva

“O MUNDO ESTÁ AS AVESSAS”: relações, tensões e


enfrentamentos religiosos nos folhetos de Leandro Gomes de
Barros – Recife (1900-1920)

Dissertação defendida e aprovada pela banca examinadora constituída pelos


professores:

_________________________________________
Profª Drª Edilece Souza Couto -UFBA

Profª Drª Elizete da Silva –UFBA /UEFS

Profº Dr. Gilmário Moreira Brito – UEFS / UNEB


4

A meus pais com carinho e muita saudade

A Jason Bittencourt
5

AGRADECIMENTOS
Aos meus pais Dona Neide e Seu Zé do Doce, que no ano de 2007 decidiram terminar um noivado
que já durava trinta e um anos, e finalmente, vão se casar!! (rs!);

A minhas irmãs Rose, Vania, Aurea e Alexandra, mulheres fortes e decididas, que me servem de
exemplo, me protegem e me cuidam, mesmo à distância. A meus irmãos Maycon e Ronildo, que
tentam ter alguma voz em meio a tantas mulheres...

Ao meu amigo Everaldo Santos Oliveira por me ouvir, aconselhar e amar (isso é por minha conta!).
Agradeço seu carinho, que se iniciou antes mesmo desse ir e vir (SSA – SP) e se fortaleceu, mesmo
em meio aos nossos encontros e despedidas;

As pessoas das instituições e acervos que, gentilmente, me acolheram: Fundação Joaquim Nabuco,
Biblioteca Pública de Pernambuco, Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (PE); Instituto de
Estudos Brasileiros (USP), Biblioteca Central Mario de Andrade (SP); Museu Casa do Sertão (UEFS);
Biblioteca Pública dos Barris. Um agradecimento carinhoso à Miguel Teles, pessoa gentil e solícita,
que me cedeu ricos materiais, e me manteve sempre próxima aos “causos” do sertão (Miguel é de
Pedrão, por merecimento!);

Aos professores da UEFS por contribuírem significativamente na minha formação acadêmica e


pessoal. Devo-lhes muitas lições de ética, coerência e compromisso. Agradeço notadamente aos
professores Rogério de Fátima, João Rocha Sobrinho, Eurelino Teixeira Coelho, Marco Barzano e
Professora Elizete da Silva, a quem devo um agradecimento à parte, por ler a versão inicial do meu
projeto e fazer sugestões pontuais para o desenvolvimento do trabalho;

A professora Gabriela Sampaio por ter me acompanhado desde o projeto inicial, por suas
intervenções pontuais e fundamentais para os resultados que apresento;

Ao professor Onildo Reis David pela atenção e dedicação que me acompanham desde a graduação,
e que agora tive o prazer de novamente receber. Agradeço imensamente a leitura atenta e crítica de
um dos meus primeiros leitores, bem como seu afeto, que certamente é (muito) recíproco;

A Edilece, orientadora, pela disponibilidade, presença e suporte necessários à construção desta


dissertação. Ela foi fundamental para todo o processo, porque soube perceber o meu tempo, meu
ritmo, e conseguiu trabalhar com eles. Pude contar com sua paciência e sensibilidade, ao que sou
imensamente grata;

Aos companheiros de casa Agrimária Matos e Igor José Trabuco, por aceitarem com paciência as
“redefinições” dos espaços durante o período de escrita da dissertação, e por tornarem esse tempo
agradável e divertido. A Igor agradeço a boa vontade, disposição e incentivo nos momentos de
impaciência, desespero e falta de dinheiro! A Guiu agradeço as incontáveis horas de audição e
discussão em que precisou interromper seu café, seu sono, seu estudo, seu merecido ócio. A Igor
agradeço por ter feito silêncio, e a Guiu, por ter feito Igor fazer silêncio! (rs!)
6

A Tito Casal que “riniticamente” (palavras dele) me cedeu alguns dias de suas férias como
pesquisador nos arquivos do Recife;

A Igor Gomes pela atenção e disposição em ler, discutir e fazer proposições, principalmente no
período inicial da pesquisa;

A Tatiana Farias, Fabrício Mota e João Lucas Mota (meu afilhado) pelos momentos agradáveis de
descontração, pela preocupação e suporte a mim dispensados desde o primeiro dia na cidade de
Salvador. Agradeço as visitas, os bate-papos gostosos, as discussões teóricas, e principalmente a
alegria de pertencer a essa família;

A amiga Ana Clara Farias pela presença, e apoio em todos os momentos da pesquisa, principalmente
pela disposição em se deslocar ao Recife para me ajudar na coleta de fontes. Agradeço suas
propostas convidativas e divertidas, que certamente me ajudaram a manter a serenidade, durante
todo esse processo;

A Bia, Ângela e Umberto por me hospedarem no Recife e serem tão prestativos e gentis em território
tão próximo, e ao mesmo tempo tão distante...

A Luango e Júlio Braga pelos momentos de descontração e risadas que passamos juntos. A
Luanguinho pela companhia firme e divertida no banco de trás, pelos abraços e beijinhos roubados
quando seu pai não estava olhando (rs!). A Júlio por todas as consultas prestadas, empréstimo de
obras fundamentais de sua biblioteca, e principalmente solicitude e atenção sempre a mim
dispensadas;

A amiga Iris Verena pela preocupação que sempre dirige a mim. Agradeço por me devolver o chão
quando me falta, dar um norte nos momentos de desespero, ser firme nas inseguranças, e
principalmente pela certeza de que não estou só. Agradeço pelas palavras duras nos momentos de
precisão, e também pelas perguntinhas retóricas em momentos pontuais, e que (sempre) já sabe a
resposta!

Ao professor Gilmário Moreira Brito com quem aprendo a muitos anos os meandros do ofício do
historiador. Mesmo que desejasse não conseguiria agradecê-lo como merece, porque foram
incontáveis discussões, correções, orientações e leituras feitas com rigor e firmeza. Sou grata pelos
bons momentos que passamos juntos, seu bom humor, as engraçadas histórias de São Paulo, Vitória
da Conquista, do carro roubado, do mutetão, dos abacates numerados e tantas outras (rs!). Não teria
palavras para descrever o empenho, boa vontade e carinho de uma pessoa extremamente
observadora, que percebeu, inclusive, que eu cantarolava enquanto escrevia. Pensei que como seria
impossível lhe agradecer por tudo, ao menos lhe dedicaria todas as canções que embalaram essa
dissertação!!! (rs!)

A FAPESB que, através de seu programa de bolsas possibilitou um ambiente mais tranqüilo para a
realização deste trabalho.
7

“O sertanejo sabe pelo rádio ou por


ouvir dizer os acontecimentos
importantes. Mas só acredita
quando sai no cordel. Se sai no
cordel, então é verdade.”
8

RESUMO

Os folhetos populares começaram a ser impressos e divulgados no final do


século XIX, tornando-se suporte de relações sociais e uma importante mídia de
comunicação difundida pelo Nordeste brasileiro. Através de suas narrativas, é
possível desvelar tensões culturais advindas de diferentes sujeitos que, originários
de tradições orais, não letradas, manifestavam e registravam posições, valores,
enfrentamentos e tradições através das poesias ali presentes. Nesse trabalho,
examinamos o processo de formação e difusão de práticas culturais religiosas
católicas, nas duas primeiras décadas do século XX, na cidade do Recife,
principalmente a partir dos enfrentamentos empreendidos pelo poeta paraibano
Leandro Gomes de Barros, um dos maiores autores da literatura de folhetos
nordestina, possivelmente o primeiro a unir o advento das gráficas à impressão de
narrativas. Ele é, sem sombra de dúvidas, sujeito de importância ímpar para o
presente trabalho, pois, a partir de sua produção, retiramos materiais essenciais
para entender aspectos da cidade e religiosidade ali presentes. A partir dos
posicionamentos contundentes e incisivos desse poeta, partimos para outras fontes
e desvelamos tradições, relações e tensões estabelecidas entre sujeitos de
diferentes posições sociais, dando a ver aspectos da produção de um segmento da
população muitas vezes excluído e invisibilizado pela historiografia.

Palavras-chave: Folhetos Populares; Tradições Religiosas; Catolicismo Popular;


Narrativas Orais.
9

RÉSUMÉ

Les feuillets populaires ont été imprimés et divulgués depuis la fin du 19ème
siècle, en devenant un support de relations sociales et un important moyen de
communication diffusé dans le Nord-Est brésilien. Dans ses narratives, il est possible
de dévoiler des tensions culturelles issues des différents sujets qui, originaires des
traditions orales, non lettrées, manifestaient et enregistraient des positions, des
valeurs, des affrontements et des traditions à travers les poésies ici présentes. Dans
ce travail, nous examinons le processus de formation et de diffusion des pratiques
culturelles religieuses dans les deux premières décennies du 20ème siècle, à Recife,
surtout à partir des affrontements entrepris par le poète issu de Paraiba, Leandro
Gomes de Barros, un des plus grands auteurs de la littérature de feuillets du Nord-
Est, probablement le premier à unir l’avènement des imprimeries à l’impression des
narratives. Il est, sans aucun doute, sujet d’importance impaire pour le présent
travail, car à partir de sa production nous retirons des matériaux essentiels pour
comprendre des aspects de la ville et de la religiosité ici présents. A partir des
positionnements contondants et incisifs de ce poète, nous passons à d’autres
sources et nous avons dévoilé des traditions, des relations et des tensions établies
entre des sujets de différentes positions sociales, donnant vue sur des aspects de la
production d’un segment de la population plusieurs fois exclu et occulté par
l'historiographie.

Mots Clefs: Feuillets Populaires; Traditions Religieuses; Catholicisme Populaire;


Narratives Orales.
10

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Capa do folheto Casamento a Prestação / O testamento de <<Cancão de


Fogo»........................................................................................................................ 12

Figura 2: “Infalliveis da semana” palpite oferecido pelo jornal O periquito a


apostadores do Jogo do Bicho.................................................................................. 44

Figura 3: Capa do Folheto Doutores de 60............................................................... 47

Figura 4: Sátira publicada no Periódico “Lanterna Mágica” sobre as epidemias que


assolavam a cidade do Recife. ................................................................................. 54

Figura 5: Charge do Periódico “Lantena Mágica” sobre a cobertura jornalística da


passagem do aviador Santos Dumont pela cidade................................................... 66
11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1:
“MUNDO VELHO DESGRAÇADO TEU POVO PRECISA DE FREIO”:
O poeta e as transformações da cidade................................................................ 20
1.1. Leandro Gomes de Barros: mais um retirante na Capital......................... 27
1.2. Recife e o novo século: inovações e olhares de protesto ........................ 38

CAPÍTULO 2:
PELEJA ENTRE FOLCLORISTAS E POETAS: LEITURAS ACERCA DE
POSTURAS E COMPORTAMENTOS DO CLERO.................................................. 69
2.1. Poesia e Religiosidade nas Letras dos Folcloristas ................................. 71
2.1.1. O folclore e a busca do “popular”: registros de fontes escassas.............. 72
2.1.2. “Ninguém me fale de padre, seja lá o que for” - Em busca da fé
do outro: religiosidade na construção do folclorista.................................. 89
2.2. Poesia e Religiosidade em Folhetos Populares: observações
acerca do Clero Católico......................................................................... 105

CAPÍTULO 3:
“POVO INCRÉDULO E DESCRENTE”: EM DEFESA DE UMA MORAL
RELIGIOSA PARA O RECIFE ............................................................................... 121
3.1. “As cousas não vão de graça”: religiosidade nos folhetos
populares em oposição a valores e práticas em profusão na cidade..... 123
3.2. “Ou que lugar desgraçado”: enfrentamentos religiosos
contra a presença estrangeira................................................................. 144
3.3. “A nova-ceita é caipora”: ofensiva contra os protestantes...................... 161
3.4. Esse mundo não é meu: retirantes sertanejos e suas manifestações
religiosas no Recife................................................................................. 177

Considerações Finais........................................................................................... 187


Fontes .................................................................................................................... 192
Referências Bibliográficas .................................................................................. 196
12

Introdução

Por volta do ano de 1914, Leandro Gomes de Barros escreveu o folheto


Casamento a Prestação 1 , uma brochura de dezesseis páginas que contava de forma
engraçada e jocosa algumas das novidades em profusão na capital pernambucana
naquele início de século. Prestação, seguros de vida, indenizações, namoros
desregrados, cobranças de serviços religiosos, eram alguns dos motes explorados e
criticados pela narrativa.
O poeta se servia de suas histórias bem humoradas para chamar atenção de
seus leitores e apontar o descontentamento com o rumo que as coisas tomavam na
cidade. A capa do folheto funciona como uma espécie de síntese de sua obra, pois
ali identifica de forma simples e direta alguns dos sujeitos que considerava “culpados
pelo atraso da nação”:

Figura 1: Capa do folheto Casamento a Prestação / O testamento de <<Cancão de Fogo>>

1
BARROS, Leandro Gomes de. Casamento a prestação / Testamento de Cancão de Fogo. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. Tomo III. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura,
Fundação Casa de Rui Barbosa, Universidade Federal da Paraíba, 1977.
13

A capa de Casamento a Prestação, folheto singular ao enfatizar as


“reviravoltas” em acontecimento naquele início de século na cidade do Recife 2 , é
singular ao sugerir de forma pontual alguns dos sujeitos, cujas ações eram alvo de
observação e crítica por parte do poeta: Mulheres “fúteis”, “espalhafatosas”,
desejosas de parecerem modernas, que se enfeitavam, pintavam, vestiam roupas
“indecentes” e “desavergonhadas”, produzidas por modas “mundanas”, que
contrariavam a moral e os bons costumes da cidade; Somava-se a elas homens das
classes mais ricas, que copiavam e desejavam seguir à risca referenciais
estrangeiros, de roupas, comportamentos, falas, posturas, costumes, eram
indivíduos que ansiavam por ostentar a classe e a “civilização” do velho mundo,
principalmente de Paris; Além disso, havia os próprios estrangeiros, considerados
“invasores”, ingleses, franceses, italianos, tidos como responsáveis pela profusão de
lógicas, balizadas por referenciais puramente comerciais e mercadológicos, cujo
objetivo principal era o lucro, isso, sem contar suas novas e diferentes religiões, a
exemplo da famigerada “nova-seita”, uma alegoria direta ao protestantismo; Para
finalizar, padres gatunos, interesseiros, golpistas, que vendiam por um bom
“precinho” os serviços do Senhor e da salvação.
Prontamente, a capa do folheto, entrevem de maneira pontual alguns dos
sujeitos enfatizados e alegorizados nas narrativas de Barros, que os combate
regularmente ao longo de sua obra, registrando posições contundentes e
enfrentamentos significativos contra eles e as inovações em desenvolvimento no
início do século XX na cidade do Recife. O poeta e seus leitores percebiam uma
inversão no mundo que conheciam, e lutavam com empenho para afirmar tradições
e valores que consideravam pertinentes, num universo que tentava negá-los, por
considerá-los “atrasados”, “incultos”, “incivilizados”, diferentes dos referenciais
pretensamente “modernos” e “universais”.
É importante salientar que os sujeitos produtores deste suporte material
imprimiam em suas obras o fervor da religiosidade, ensinando valores e dando
conselhos que apareciam ancorados a experiências cotidianas. Oriundos geralmente
2
“Porque se originou de um acidente geográfico – o recife ou o arrecife – a designação do Recife não
prescinde do artigo definido masculino: O Recife e nunca Recife. Por isso no Recife, do Recife, para o
Recife e não em Recife, de Recife, para Recife”. MELLO, José Antônio Gonsalves de. O Recife e os
arrecifes, apud REZENDE, Antônio Paulo. O Recife: Histórias de uma cidade. 2º edição. Recife:
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2005, p. 21.
14

de tradições católicas oralmente transmitidas, interpretadas a partir de suas


vivências, estes poetas registravam em suas obras sentimentos e práticas de uma
cultura religiosa impregnada de valores e tradições. Veiculavam crenças e
reelaboravam aspectos significativos da religião, através de um diálogo vigoroso,
permanente e dinâmico com grande parte da população, a qual influenciava e por
ela eram influenciados 3 . É interessante perceber que, mesmo ao tratar de assuntos
diversificados como moda, inovações tecnológicas, ou cobrança de impostos, as
vivências e valores religiosos sempre eram tomados como referencial para avaliar as
posturas mais corretas.
Além disso, cabe-nos ressaltar a peculiaridade dessa religiosidade, presente
nos materiais produzidos e difundidos no início do século XX, pois, apesar de ser
pautada em referenciais católicos, nem sempre possuía estreita relação com a Igreja
Católica tradicional. Em muitos momentos, os folhetos que circulavam na cidade
criticavam, inclusive, alguns religiosos que se mostravam gananciosos e
interesseiros, pautando sua conduta em lógicas, cuja finalidade era a obtenção de
lucros. Esses sujeitos não eram absolvidos e tinham seu lugar garantido no rol de
sujeitos problemáticos, alvo de condenação.
Com base nessa apresentação inicial acerca dos folhetos e temáticas por eles
abordadas, enfatizamos a especificidade dessa fonte que começou a ser produzida
e veiculada no final do século XIX, tornando-se suporte de relações sociais em uma
sociedade em que eram fortes as tradições de cantar, rezar, contar histórias,
utilizando-se da oralidade como meio de transmiti-las para gerações. 4 Sua produção
era realizada por pessoas simples, que muitas vezes sequer possuíam aproximação
com a língua portuguesa formal, entretanto conseguiam registrar sentimentos,
esperanças, temores, valores, formas de ver, pensar e sentir o mundo de um
segmento da população, que, durante muito tempo, permaneceu à margem das
produções historiográficas.

3
BRITO, Gilmário Moreira. Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações
escritura, oralidade, gestualidade, visualidade. 2001. 295f. Tese de Doutorado em História Social -
Programa de estudos Pós- Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2001. Orientadora: Antonieta M. Antonacci. p. 20.
4
ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado das Letras: Associação de
Leitura do Brasil, 1999. p. 91.
15

Nesse trabalho, enfatizamos a criação e inventividade do poeta paraibano


Leandro Gomes de Barros, mais um dos milhares de retirantes que chegou à cidade
do Recife no início do século XX, e ali passou a produzir e difundir os seus folhetos.
Esse autor possui relevância singular para o presente trabalho, porque suas
produções estão carregadas de valores e tradições que representavam segmentos
sociais que tentavam se afirmar e se posicionar naquele universo “distinto” e
“contraditório” de transformações por que passava a cidade.
As produções de Leandro de Barros são tomadas como porta de entrada para
a cidade e o cotidiano das pessoas simples que compravam, liam, ouviam,
dialogavam e, através das narrativas presentes nos folhetos, manifestavam seus
pontos de vista, visões de mundo e experiências. A religiosidade presente nesse
material é salutar, pois é utilizada para manifestar diretamente a relação com o
campo, e com as tradições que tentavam defender em relação às mudanças e
novidades que presenciavam na cidade.
Embora os folhetos da literatura popular possam ser considerados peculiares
por sua aproximação com segmentos sociais menos favorecidos da população,
desejamos destacar alguns cuidados metodológicos que adotamos ao trabalhar com
essa fonte, que em alguns momentos também pode se apresentar incerta e
escorregadia.
É importante ressaltar que os folhetos da literatura popular, durante muito
tempo, foram utilizados como importante veículo de comunicação de massa, já que
possuíam formato editorial barato, e eram consumidos por segmentos específicos da
população. Muitas vezes sua produção era realizada por membros de outras classes
no intuito de propagar idéias e pensamentos que pudessem chegar a segmentos
mais pobres e a um maior número de pessoas. Destacamos entre elas as produções
de religiosos que, no intuito de difundir valores e dogmas da Igreja Católica,
imprimiam nessa mídia ensinamentos ligados às doutrinas da instituição. 5
Outra categoria que também se apropriou da produção de folhetos foram os
editores, que estampavam nesses folhetos histórias produzidas por grandes

5
Nessa perspectiva, ver principalmente BRITO, 2001, op.cit.
16

literatos, mas reduziam, cortavam, censuravam, remanejavam e adaptavam as


narrativas para torná-las legíveis a indivíduos não familiarizados com os livros. 6
Além das diferentes apropriações do formato editorial do folheto, outro
problema bastante comum ao empreendermos trabalho com essa literatura se
relaciona à tradição oral de que ela é depositária, pois muitas narrativas pertencem a
gêneros, épocas e tradições múltiplas e fragmentadas, havendo uma distância
cronológica e social considerável entre o contexto de produção, circulação e leituras
desse material. 7
No intuito de minorar algumas dessas questões, com relação à utilização dos
folhetos populares como fonte, fizemos a opção metodológica de trabalhar com a
produção de um único poeta, Leandro Gomes de Barros, pois assim poderíamos
amenizar as questões da imprecisão cronológica da produção, além de poder
localizar o lugar social que o poeta ocupava, bem como suas intenções ao produzir e
distribuir sua literatura. Destacamos que esta opção foi importante, pois assim
pudemos apreender na obra do autor aspectos de seu cotidiano, relações e tensões
estabelecidas entre as pessoas com as quais vivia e se relacionava, além de nos
aproximarmos de sua inserção nos fazeres da cidade e num período definido e
específico.
Com relação aos riscos de eleger um único sujeito como principal vetor de um
processo histórico do qual pretendemos nos aproximar, ratificamos Carlo Ginzburg
em seu livro O queijo e os vermes ao defender a utilização de personalidades
individuais na pesquisa histórica: “[...] da cultura do próprio tempo e da própria
classe não se sai a não ser para entrar no delírio e na ausência de comunicação”. 8
Assim, elegemos o trabalho de Barros como um dos principais condutores para nos
aproximarmos daqueles dias e também dos sujeitos com os quais dialogava.
Entendemos que a partir de sua produção é possível estabelecer relações com
aquele determinado processo.

6
Sobre essas discussões ver: BURKE, Peter. Cultura Popular na idade Moderna. São Paulo: Cia das
letras, 1989; El FAR, Alessandra. Páginas de Sensação: Literatura popular e pornográfica no Rio de
Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004;
7
Ver CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Tradução Álvaro Lorencini.
São Paulo: Editora UNESP, 2004.
8
GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1987, p. 27.
17

Com base na proposição da apropriação da obra do poeta para estudo


histórico, fizemo-nos vigilantes no sentido de perceber a produção literária desse
sujeito inserida num contexto e processo históricos específicos, buscando tomar sua
produção como evidência histórica. Nesse sentido, corroboramos com Sidney
Chalhoub, na sua indicação acerca da utilização da literatura como fonte para o
estudo da História:

[...] a proposta é historicizar a obra literária [...] inseri-la no movimento da


sociedade, investigar suas redes de interlocução social, destrinchar não sua
suposta autonomia em relação à sociedade, mas sim a forma como constrói
ou representa a sua relação com a realidade social - algo que faz mesmo ao
negar faze-lo. Em suma, é preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem
reverências, sem reducionismos estéticos, dessacralizá-la, submetê-la ao
interrogatório sistemático que é uma obrigação do nosso ofício. Para
historiadores a literatura é, enfim, testemunho histórico 9 (grifo do autor)

Nesse sentido, acreditamos que a literatura produzida na cidade do Recife no


início do século XX deve ser pensada e tomada como problema histórico, uma
produção que se destaca não somente por sua finalidade de diversão e
entretenimento puro e simples, mas também por seus objetivos, manifestações,
posturas e posicionamentos que marcavam lugares sociais de relações, embates e
tensões, a partir da defesa de valores e tradições pertencentes aos seus produtores
e leitores.
Em função disso, trabalhamos também com outras fontes, que exerceram
valor estimado para o presente trabalho, pois auxiliaram na percepção acerca das
relações estabelecidas na cidade. Utilizamos materiais produzidos e coletados pelos
folcloristas do final do século XIX e início do século XX que, no intuito de “salvarem”
as tradições populares, que julgavam em extinção durante o processo de
“modernização” do país, recolheram aspectos singulares de nossa cultura. Embora
as coletas desses estudiosos fossem feitas com o mínimo de interferência possível,
o olhar que lançavam sobre as manifestações populares as alocava como
fragmentos folclóricos, desprovidos de sentidos e significados. Aproximamo-nos
desses materiais lançando novas questões, e tentando localizá-las dentro de seus

9
CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (orgs). A História Contada: capítulos de
História Social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 7.
18

contextos de produção, utilizando como fonte, não somente as coletas, mas inclusive
os posicionamentos de seus estudiosos.
Vale ressaltar que outro material fundamental para a pesquisa foram as
crônicas e outros escritos deixados pelos memorialistas que viviam na cidade no
momento da produção dos folhetos. Esses registros, carregados de saudosismos e
minuciosidades foram capitais para percebermos o cotidiano da cidade, bem como
suas atividades, festejos, curiosidades e manifestações. Tentamos perceber os
posicionamentos desses sujeitos que registravam com detalhes os acontecimentos
ali vivenciados, sem deixarem de emitir opiniões e posicionamentos, que revelavam
os lugares sociais de onde falavam.
Por fim, trabalhamos também com jornais, periódicos, relatórios e outras
produções do período que nos auxiliaram na percepção de elementos da história da
cidade, bem como posições assumidas por sujeitos que ali viviam e se
manifestavam.
Dividimos o texto em três capítulos. No primeiro, localizamos o narrador dos
folhetos, Leandro Gomes de Barros, evidenciando o lugar social de onde falava, sua
origem, atividades que desenvolvia, e sua chegada na capital, como mais um
retirante que fugia da seca e buscava ali alternativas de sobrevivência. Em seguida
trabalhamos o contexto de transformações e modernizações da cidade nas duas
primeiras décadas do século XX. Fizemos isso a partir de indicações presentes nos
folhetos de Barros, tentando acompanhar as críticas do poeta em relação às
mudanças físicas, infra-estruturais e de valores ali presentes.
No segundo capítulo, analisamos os enfrentamentos em relação às
transformações religiosas vividas na urbe, principalmente através das críticas a
posturas e comportamentos do clero católico. Localizamos os enfrentamentos
travados pelo poeta, bem como coletas e posicionamentos empreendidos por
folcloristas que, apesar de se dizerem próximos às tradições populares e aos
sujeitos de origem sertaneja, muitas vezes tinham visões destoantes daquilo que se
podia encontrar nos folhetos.
No terceiro capítulo enfatizamos outros enfrentamentos religiosos perpetrados
nos folhetos de Barros. Tentamos enfatizar os modos que o poeta assumia para
levar para o campo religioso o combate dirigido às inovações, tradições, valores e
19

também sujeitos que representavam os “novos tempos”. Médicos, intelectuais,


mulheres, capitalistas, estrangeiros, protestantes, todos eram combatidos e
satirizados. Fechamos esse capítulo tentando apontar caminhos que indicassem as
tradições que estavam em questão, os sujeitos que as compartilhavam, e os
elementos que desejavam combater.
Nesse sentido, convidamos o leitor a um passeio ao Recife do início do século
XX. O texto possui a especificidade de dialogar com sujeitos bravos, engraçados,
satíricos, surpreendentes, que utilizam a experiência da narração para a transmissão
de valores baseados em uma interpretação da religiosidade calcada em experiências
cotidianas. Em alguns momentos eles marcam seus lugares a partir do confronto
direto, enfrentando e desnudando seu oponente, mas na maioria das vezes riem,
fazem chacotas, e mostram que estavam atentos à cobrança de posturas corretas e
contundentes, mesmo vivendo um mundo que consideravam estar “às avessas”!
20

Primeiro Capítulo:
“Mundo velho desgraçado teu povo precisa de freio”: o
poeta e as transformações da cidade

No início do século XX a cidade do Recife passava por intensas modificações


em seus aspectos físicos e comportamentais. A urbe era reformada de maneira a
modificar sua infra-estrutura: prédios antigos eram demolidos, ruas alargadas, eram
implementadas redes de esgotos e de luz elétrica, criavam-se novas formas de
lazer, ampliavam-se os circuitos de transportes urbanos, dentre muitas outras
modificações. Concomitantemente, planejava-se também mudar alguns hábitos,
comportamentos, modos de ver e viver da população. No entanto, essas
transformações não passavam despercebidas a certos olhares, que insistentemente
censuravam, criticavam e se manifestavam contrários às tentativas de mudança
presentes no novo século:

Há quem diga assim mesmo


Que o ceculo é civilisado
Eu para faser favor
Não fallo, fico calado
Elle tem luz como as noites
Sem lua em tempo turbado 1 (sic)

Nesse verso, recortado do folheto Casamento a prestação do poeta Leandro


Gomes de Barros, provavelmente escrito em 1914, o conjunto da narrativa traz
algumas informações sobre as transformações da cidade e o sentimento de algumas
pessoas naquele início de século. Através de sua rima afiada, o poeta deixava clara
a tensão entre as inovações, advindas das transformações do Recife, por um lado, e
o seu posicionamento crítico, forjado a partir de vivências e experiências cotidianas,
ancoradas em tradições que prezavam por valores já consolidados, por outro. Ao

1
BARROS, Leandro Gomes de. Casamento a prestação / Testamento de Cancão de Fogo. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. Tomo III. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura,
Fundação Casa de Rui Barbosa, Universidade Federal da Paraíba, 1977, p. 136.
21

manifestar seu descontentamento, Barros utiliza uma narrativa irônica, patente no


caso de um pai que vendeu a filha em quatro prestações, para um noivo que não
podia pagar à vista.
No verso apreendemos uma crítica que se inicia pelas terminologias utilizadas
para discernir os tempos. É perceptível certa ironia e um pouco de sarcasmo
advindos do autor, que se apropriava com destreza em sua poesia de qualificações,
utilizadas naquele período 2 para mostrar suas opiniões. Iniciava o verso
demonstrando que a qualificação dada ao “novo século” não era sua: “Há quem diga
assim mesmo que o ceculo é civilisado”, ou seja, provavelmente, havia um esforço
para denominar o século de “novo” e assim propagar suas “vantagens”, adjetivando-
o como “moderno”, “civilizado”, “cheio de avanços” e “inovações”. Ao se apropriar
ironicamente do termo “civilizado”, Barros insinua que não falaria sobre o assunto e
ficaria calado, mas acaba por expressar sua opinião. Para ele, o alvorecer do século
mostra-se agitado, sombrio, um “tempo turbado”, na sua própria expressão.
A história aqui indicada, Casamento a Prestação, pode ser tomada como
porta de entrada para esse universo da cidade do Recife, pois reúne uma série de
características sobre o modo como os poetas tratavam criticamente as inovações
daquele período. As narrativas dos folhetos produzidos na capital pernambucana no
início do século XX mostram a opinião de pessoas que nem sempre estavam
contentes com os problemas decorrentes das transformações da urbe, sendo
peculiares em suas escolhas sobre o modo como deveriam relatar os
acontecimentos.
No folheto, o poeta trata as relações comerciais, seguros de vida e negócios à
prestação, de forma veemente e chacoteada, como tentativa de criar alegoria
satírica e extremista das mudanças de relações na cidade:

E aqui em Pernambuco
Progrediu esta envenção
Hoje é plaxe de negocio,
Da capital ao sertão
Ja temos visto até noivo

2
Não é difícil encontrar a denominação “século das luzes” nos jornais da época, o Diário de
Pernambuco, por exemplo, faz uso da expressão em reportagem sobre os avanços da ciência em
remédio para homens. “OS VELHOS teem a palavra”. Diário de Pernambuco, Recife, 04 mar. 1917. p.
7.
22

Comprar noiva a prestação 3 (sic)

Na narrativa o poeta exagera, tentando chamar a atenção de seus leitores


para as transformações das relações sociais e culturais pelas quais passava a
cidade, que, sob sua ótica, estava perdendo as referências dos valores e
sentimentos familiares, passando por uma banalização, efetivada por relações
comerciais e de mercado alimentadas por grupos sociais que apresentavam novas
perspectivas ideológicas. Contrapondo-se à ética de um tempo fundamentado em
relações nas quais notas promissórias, assinaturas e papéis substituíram o valor da
palavra, o poeta reagia ao mostrar que as modernas relações comerciais e de
mercado chocavam-se profundamente com o perfil dos novos moradores que
chegavam à cidade.
Diversos elementos presentes nessa história demonstram uma visão de
mundo diferente daquela que, provavelmente, vinha sendo difundida por autoridades
e instituições oficiais na capital pernambucana. O poeta, através de suas rimas,
mostra que não se via participando das contínuas inovações e transformações da
cidade. Sua posição, ao contrário, era de aguda desconfiança, uma vez que traçava
clara associação entre as transformações materiais e as muitas variações
comportamentais das pessoas que ali viviam. Estas mudanças de valores
preocupavam-no de modo significativo, tanto que faz clara distinção alegórica entre
as atitudes do passado e o “tempo das luzes”,

Os do tempo do atraso
Tinham carater e ação
Criavam bem as familias
Davam bôa criação
Alguns do ceculo das luzes
Vendem filhas a prestação

Um homem naquelle tempo


Que chamavam-lhe ceculo escuro
Uma benção dos pais velhos
Era um brilhante futuro,
Hoje querem ter mãe velha
Para botar no seguro 4 (sic)

3
BARROS, Leandro Gomes de. Casamento a prestação/ Testamento de Cancão de Fogo. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. op.cit., p. 136.
4
Ibid., p. 137.
23

Nos versos selecionados, o autor evidencia clara separação de tempos, e


mostra suas restrições com o início do século XX, momento em que as relações
estabelecidas por diferentes grupos que se enfrentavam passaram a estabelecer
oposições. Para o autor, os tempos se configuravam de expectativas absolutamente
distintas, principalmente por que, se para alguns grupos as referências do viver na
cidade eram marcadas pelos avanços tecnológicos e inovações infra-estruturais,
para outros, tais modificações deviam ser enfrentadas, porque impunham rupturas
na postura do corpo, “no caráter e na ação”, e no comportamento das pessoas, que
“vendem filhas a prestação” e querem “ter mãe velha para botar no seguro”, eram
mudanças que promoviam diferenças profundas nas tradições e nos valores.
Nesse sentido, o “tempo do atraso” caracterizou-se na poesia por
recordações e saudosismos, pois era marcado por virtudes e valores idealizados,
como “caráter”, criar “bem as famílias”, usar a “benção dos pais velhos”. Tudo, enfim,
a expressar atitudes consideradas apropriadas pela tradição, valores e condutas
moldadas por sujeitos e baseadas nas relações de solidariedade, respeito e afeto,
diferentes daquelas que vinham sendo disseminadas, aceitas e praticadas em nome
do novo século.
Ao traçar um paralelo entre o “ceculo escuro” e o “ceculo das luzes”, Leandro
Barros aponta em sua narrativa poética algumas referências sobre valores, normas
de comportamentos relacionados ao cotidiano de grupos que, apesar de viverem em
uma grande cidade do Nordeste do Brasil, no início do século XX, ainda guardavam
modos de viver baseados em relações familiares, de solidariedade e de honra que
estavam, declaradamente, sendo colocadas em oposição a outros tipos de valores
que emergiam na cidade, e eram pautados em referências mercadológicas e
materiais em plena difusão.
Tal oposição, enfatizada pelo autor, cumpre o papel de indicar que o “homem
de antigamente” estava fortemente ligado a valores e tradições, inclusive religiosas,
ao passo que o “homem do ceculo das luzes” não apenas rejeitava essas
“reminiscências”, como se colocava como defensor de nova ordem, cujos
pressupostos fundamentais simplesmente estavam apegados às novas demandas
de negócios e lucros.
24

Observamos ainda nos versos selecionados os conflitos escolhidos pelo autor


para situar pesos e valores de cada tempo, e criar alegorias e padrões para
confrontar diferentes modelos de vida. Através de uma comparação, evidencia que,
se por um lado o homem para o qual se aplica o tempo “do escuro”, escolhido por
receber “benção dos pais velhos”, tem possibilidade de organizar “um brilhante
futuro”, por outro lado, para os homens de “hoje”, isto é, do início do século, a única
vantagem de ter mãe velha é para poder “botar no seguro”.
O respeito aos pais e mais velhos, valor reiterado na narrativa poética, era
uma prática tão enraizada e constante na vida de muitos grupos de sertanejos, que
inclusive em suas poesias não é raro encontrar situações nas quais respeito, carinho
e atenção fossem motes recorrentes em suas poesias 5 . Além de possuir aspecto
muito difundido nas práticas e no cotidiano, o respeito aos pais revela ainda uma
dimensão religiosa, já que “honrar pai e mãe” é um dos dez mandamentos do antigo
testamento 6 . Observar e respeitar este mandamento eram caminhos a ser trilhados
para estar próximo a Deus. Com efeito, o poeta encontra mais um motivo para
censurar os “novos tempos” que, em sua concepção, propunham um conjunto de
relações para inverter valores e subverter modos de se comportar, desrespeitando,
inclusive, práticas e ensinamentos religiosos, com o propósito de impor novos
relacionamentos desprovidos de valores e de fé.
Além disso, o poeta registrava uma prática social que estabelecia uma
hierarquia baseada no respeito e na obediência às experiências acumuladas nos
lugares sociais, configuradas no ato de tomar a bênção, que parece ter sido um dos
comportamentos alterados. No Antigo Testamento, a bênção é a palavra de Deus
para harmonizar toda a sua criação 7 , de modo semelhante, o Novo Testamento
aponta que Jesus utilizava a bênção enfatizando o sentido de paz 8 . Na Santa Ceia,

5
MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: Poesia e Linguagem do Sertão Nordestino. 3º edição.
Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962. p. 181-215.
6
“Honre seu pai e sua mãe: desse modo, você prolongará sua vida, na terra que Javé seu Deus dá a
você” (Êxodo, 20:12). BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada - Edição Pastoral. São Paulo: Edições
Paulinas, 1990. p. 92.
7
“Eu farei de você um grande povo, e o abençoarei; tornarei famoso o seu nome, de modo que se
torne uma bênção. Abençoarei os que abençoarem você e amaldiçoarei aqueles que o
amaldiçoarem. Em você, todas as famílias da terra serão abençoadas”. (Gênesis, 12: 2-3) BÍBLIA,
1990, op.cit., p. 25.
8
“Desejem o bem aos que os amaldiçoam, e rezem por aqueles que caluniam vocês.”. (Lucas, 6: 28).
BÍBLIA, 1990, op.cit., p. 1319.
25

quando abençoou o pão e o vinho, 9 associou esse gesto à ”eucaristia” no sentido de


dar graças e de “louvar”.
No sentido sugerido pela interpretação bíblica do antigo e novo testamentos,
percebemos que o poeta estava interessado em apontar diferenças, e
principalmente se posicionar diante desse “novo tempo”, de inovações materiais e
também de valores. Para o autor, além das virtudes e boas atitudes dos indivíduos
dos “tempos do atraso”, o recorte destacado acima também tenta disseminar
caminhos e valores religiosos de fundamental importância para seus leitores
enfrentarem as mudanças que estavam em curso no início do século na cidade do
Recife.
Partindo dessas inquietações do poeta, percebemos que estudar questões da
religiosidade nos folhetos da literatura popular poderia ser interessante para
desvelar relações/tensões culturais entre diferentes pontos de vista de moradores do
Recife. Estes, migrantes do interior nordestino, estranhavam as reformas e normas
urbanas, pretensamente modernas, pois apresentavam valores “antigos” e sagrados,
advindos de tradições orais, diferenciando-se de outros valores, inseridos em novas
relações comerciais, empreendimentos, infra-estruturais, locais de convivência ou
entretenimento.
Diante desse processo, interessa-nos perceber relações e tensões entre
esses distintos sujeitos, seus posicionamentos ante as tradições de cunho moral e
sobre os avanços de idéias e práticas capitalistas na cidade. Preocupamos-nos,
sobretudo, com os conflitos travados entre eles, pelo modo como determinados
sujeitos despontam em defesa de uma tradição em xeque, a maneira como se
rebelavam contra a imposição de novos valores e, sobretudo, como imprimiam e
difundiam seus posicionamentos, enfrentando outros segmentos sociais para afirmar
os valores que professavam.
Nessa investida, inicialmente apresentaremos o poeta Leandro Gomes de
Barros, autor cuja obra serve de baliza para acompanharmos alguns segmentos
sociais que viviam, escreviam, liam, ouviam, expunham seus temores, esperanças,
sentimentos e visões de mundo, naquela cidade do Recife do início do século XX.

9
“Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção, o partiu, distribuiu aos
discípulos, e disse: «Tomem e comam, isto é o meu corpo.»“ (Mateus, 26: 26). BÍBLIA, 1990, op.cit.,
p. 1275.
26

Apresentaremos alguns aspectos da vida e obra desse poeta, para muitos um dos
maiores autores da literatura de folhetos nordestina, possivelmente o primeiro a
combinar o advento das gráficas com a impressão de narrativas, para nós, sujeito de
importância singular, pois, partindo da sua produção, colhemos informações
essenciais para entender certos aspectos da cidade e da religiosidade ali praticada.
Por intermédio da obra desse poeta e de seus folhetos, podemos esboçar
alguns valores, sentimentos e experiências de certos segmentos da população, que
viveram naquele início de século na cidade do Recife, pois é necessário reconhecer
que, mesmo lidando com uma fonte literária, não podemos prescindir das críticas,
tensões, modos de ver o mundo presentes nos folhetos. Estes podem contribuir para
identificar e caracterizar pessoas comuns que escreviam, compravam, liam, sentiam,
assimilavam e recontavam histórias carregadas de humor e tensões sociais.
A narrativa poética do autor permite que nos aproximemos daqueles dias,
episódios e principalmente sujeitos que, em meio aos acontecimentos e
transformações, viviam, resistiam e, eventualmente, diferenciavam-se, registrando e
difundindo suas idéias e valores. Por essa razão, buscamos entender de onde,
como, por que e para quem falava essa figura inquieta, que não se intimidava com
as novas perspectivas abertas pela modernização da cidade e, sobretudo, pelejava
com diversos sujeitos, autoridades e instituições, mantendo opiniões firmes e
contundentes.
Ao problematizar as relações, tensões de práticas culturais religiosas vividas
e difundidas principalmente através da produção literária de folhetos nas duas
primeiras décadas do século XX, é necessário investigar os acontecimentos
ocorridos no Recife à época, para compreender o contexto no qual vivia e produzia
Leandro Gomes de Barros, cuja produção poética tomamos como ponto de partida
para apreender aspectos da religiosidade vivenciados e difundidos naquela cidade.
A apresentação das tensões e relações acerca das inovações que chegavam à
cidade será realizada na segunda parte do capítulo.
No presente texto, tentamos apreender histórias que, menos humoradas, às
vezes são igualmente relatadas em fontes oficiais e acadêmicas, mas estas últimas
nem sempre expressam integralmente as opiniões de segmentos populares que
viviam e se manifestavam naquela cidade em transformação. Assim posto,
27

queremos saber por que, diante de tantas mudanças na capital pernambucana do


princípio do século XX, pessoas comuns, gente simples, como Leandro Gomes de
Barros, manifestavam-se e incitavam outros segmentos da população que achavam
que o mundo e o seu povo, definitivamente, “precisava de freios!”. 10

1.1. Leandro Gomes de Barros: mais um retirante na Capital

Normalmente o poeta Leandro Gomes de Barros não é figura conhecida e


visitada nos materiais que tratam da História do Recife. Sujeito de origem muito
simples e humilde, marcou sua presença na cidade por meio de pequenas
publicações, conhecidas como folhetos. O material produzido pelo poeta trazia grafia
muitas vezes irregular e afastada dos cânones literários presentes em produções da
época, no entanto marcava lugares sociais, que diziam sobre seu autor e
principalmente sobre grupos de retirantes que, por diferentes motivos, partiam do
campo em direção à cidade e ali passavam a viver e se manifestar, afirmando suas
experiências e tradições.
Afirma-se comumente que Leandro Gomes nasceu em 1865, na fazenda
Melancia, Município de Villa do Pombal, Estado da Paraíba. Aos dezesseis anos de
idade transferiu-se para Pernambuco, onde residiu por longos anos nas cidades de
Vitória de Santo Antão, Jaboatão e posteriormente Recife. Viveu unicamente do
produto de suas histórias rimadas, escrevendo mais de mil narrativas 11 . De acordo
com o próprio poeta, teria começado a escrever em 1889, como declara nesta
sextilha de A Mulher Roubada, publicada em 1907 no Recife,

Leitores peço desculpa


Se a obra não for de agrado
Sou um poeta sem força

10
Frase utilizada por Leandro Gomes de Barros para indicar que os costumes se “afrouxavam” na
cidade do Recife. LESSA, Orígenes. Nota Introdutória. In:______; SILVA, Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, Centro
de Pesquisas, Setor de Filologia, 1983. p. 1.
11
SLATER, Candace. A vida no Barbante: A literatura de cordel no Brasil. Tradução de Octávio Alves
Velho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 29.
28

O tempo tem me estragado,


Escrevo há 18 anos
Tenho razão de estar cansado. 12 (sic)

Todavia, segundo Márcia Abreu, o mais antigo folheto de Leandro que se tem
notícia data de 1893. 13
A maioria dos autores também afirma que Leandro faleceu no dia 4 de março
de 1918, ele teria deixado sua produção literária para seu genro, o escritor Pedro
Batista, que publicou suas histórias em Guarabira, Paraíba, até por volta de 1920,
período em que a viúva do poeta, D. Venustiniana Aleixo de Barros, 14 vendeu parte
dos direitos autorais ao poeta João Martins de Atayde. Algumas dessas histórias são
publicadas atualmente pelas filhas de José Bernardo da Silva, no Ceará, mas nem
sempre mencionam o nome do poeta. 15
Essas são as informações encontradas nas diversas fontes sobre o início da
produção de folhetos populares no Brasil. Dizem pouco sobre os modos de ser e ver
o mundo de um dos maiores poetas populares dessa época, homem de posturas e
opiniões contundentes, expressas nas histórias que contava em suas narrativas, por
isso sentimos necessidade de ir um pouco além, e tentar encontrar mais
informações sobre a vida pessoal, posição social, relações, conflitos, que
permeavam a vivência do poeta e inflluenciavam em seu modo de se posicionar, ver
e criticar o mundo, levando-o a travar pelejas contra empreendimentos modernos,
censurando valores, posturas e sujeitos que causavam modificações nas vivências e
tradições que considerava corretas.
Diante da escassez das fontes, procuramos sanar a deficiência do material a
partir do inter-cruzamento entre produções sobre a vida a e obra do poeta,
informações contidas em seus próprios folhetos, bem como documentos produzidos
sobre a cidade de Recife, no contexto em que o narrador ali habitava.

12
PROENÇA, Manoel Cavalcanti. Antologia Literatura Popular em Verso. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986,
p. 575; CURRAN, Mark J. História do Brasil em Cordel. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1998, p. 43.
13
ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado das Letras: Associação de
Leitura do Brasil, 1999. p. 92.
14
Em alguns materiais referentes à vida do poeta, encontramos diferenças com relação ao nome de
sua esposa, conhecida também como Venustiniana Eulália de Souza. TERRA, Ruth Brito Lemos.
Memória de Lutas - Literatura de Folhetos no Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983, p. 40.
15
LOPES, José Ribamar. Literatura de Cordel; Antologia. Fortaleza. BNB. 1982, p.19; PROENÇA,
1986, op. cit., p. 577.
29

O folheto Leandro Gomes de Barros: o pioneiro de literatura de Cordel, de Antônio


Klévisson Viana, ajudou-nos a levantar alguns aspectos da vida e obra de Barros.
Esta brochura está em sua terceira edição e faz parte da “Série heróis e mitos
brasileiros”, vol. IV. 16 A narrativa é interessante, pois mostra aspectos detalhados
acerca da saída de Leandro Gomes da fazenda Melancia, onde nasceu, para a
Serra do Teixeira, Paraíba, local de forte efervescência poética, que influenciou o
jovem retirante, então com quinze anos de idade, no ofício de poetar. Ali conviveu
com sujeitos de expressiva importância para a poesia oral e escrita no Brasil, dentre
os quais, Nicandro Nunes da Costa, Bernardo Nogueira, Inácio da Catingueira e
Romano Mãe d’água, todos poetas de primeira linha, que forjaram um ambiente de
versos no qual o poeta cresceu.
Segundo Francisco Linhares e Octacílio Batista registram na Antologia Ilustrada dos
cantadores, a Serra do Teixeira – PB é local de significativa importância para a
poesia popular no Brasil, já que Agostinho Nunes da Costa (1797- 1858), primeiro
poeta de grande relevância e destaque nas narrativas orais, passou os últimos anos
de sua vida nessa localidade, deixando ali seus filhos Antônio Ugolino Nunes da
Costa, conhecido como Ugolino do Sabugi, e Nicandro Nunes da Costa, outros dois
expressivos poetas populares desse período. 17
A passagem de Leandro Gomes pela Serra do Teixeira e o contato que manteve
com esses mestres da poesia oral indicam que esse percurso teve aporte
fundamental na definição de sua aptidão para a poesia, concretizada através da
decisão em investir na produção, comercialização e veiculação de folhetos como
alternativa da qual se tornou o primeiro a sobreviver exclusivamente. A brochura de
Klévisson Viana deixa evidente a aproximação de Leandro Gomes com a produção
poética da Serra do Teixeira e ressalta também o diferencial de Barros ao conseguir
aliar experiência de versejar à impressão de folhetos. Aproveitou a presença das
tipografias na região, criando um tipo de mídia diferenciada, que alcançaria todo o
Nordeste do Brasil.

16
VIANA, Antônio Klévisson. Leandro Gomes de Barros: O pioneiro de literatura de Cordel. Fortaleza:
Tupynanquim editora, 2005.
17
LINHARES, Francisco e BATISTA, Octacílio. Antologia Ilustrada dos Cantadores. Fortaleza:
Edições UFC, 1982, p. 338.
30

Candace Slater afirma que a presença e inserção dessas prensas no Nordeste


deveu-se, em parte, ao capital acumulado pela produção algodoeira, que juntamente
com o açúcar constituíam os principais gêneros exportados pela ampla região
polarizada pelo Recife, durante o século XVIII. Os preços e a produção do algodão
nordestino foram declinando como resultado da forte concorrência com a produção
dos Estados Unidos no século seguinte. Contudo, a Guerra Civil Norte-Americana
forçou as indústrias têxteis britânicas a buscarem novos fornecedores de fibra crua,
incentivando a retomada da produção algodoeira do Nordeste, o que acabaria por
promover um novo surto produtivo e de trabalho na região, nas palavras da própria
Slater:

O aumento da renda por causa do algodão contribui muito para explicar a


presença de prensas impressoras de segunda mão em cidades
relativamente insignificantes (...). A necessidade de gerar novas fontes de
negócios em um meio limitado tornou essas prensas, que entraram em ação
diversas décadas antes do final do século, um estímulo importante para a
produção de folhetos. Apesar de estes terem de ser produzidos de forma
barata, de longe execederam em número as publicações eruditas, tornando-
os lucrativos para os poetas assim como para impressoras. 18

Seguindo sugestões dessa pesquisadora, percebemos que Leandro Barros


conseguiu atentar para essa conveniência e entreviu a possibilidade de unir dois
empreendimentos dos quais se aproximara: a poesia – uma aptidão – e a impressão,
uma possibilidade de reproduzir sua obra e distribuí-la para lugares cada vez mais
longínquos. Na contra capa de seus folhetos, é possível verificar que as histórias
produzidas e impressas na cidade do Recife eram distribuídas para inúmeras
localidades do Norte e Nordeste, principalmente através do trabalho dos
representantes de cada região, que se encarregavam de viajar de feira em feira
vendendo o material.
Apesar de ser um dos maiores autores de seu tempo, constituindo um enorme
patrimônio poético, seu ofício não garantia a certeza de riqueza. Aliás, em nenhum
dos documentos pesquisados há quaisquer referências a enriquecimento com a
venda de folhetos, ao contrário, o que apreendemos, de modo geral, é uma
constante batalha pela sobrevivência.

18
SLATER, 1984, op.cit., p. 25.
31

No decorrer de suas narrativas, são muito recorrentes passagens que contam


em versos trechos do cotidiano do poeta, suas viagens de trem para vender folhetos
em outras cidades, hospedagens pelo Nordeste, dificuldade com a falta de dinheiro
para garantir o sustento de sua família,

Chego em casa muito triste,


Achei a mulher trombuda,
Perguntei: filha o que tem?
Pespondeu-me, carrancuda:
Ora a 18 de Maio,
O mundo velho se muda.

Perguntei: tem jantar promto?


Venho com fome e cançado,
Desde hontem, respondeu-me,
Que o fogão está apagado,
Devido a esse cometa’
Não querem vender fiado.
[...]

Fui fallar um fiadinho,


Que eu estava de olho fundo,
O marinheiro me disse:
Já por alli, vagabundo.
Eu disse: venda Seu Zé
Que eu pago no outro mundo. (sic) 19 (grifo do autor)

Esses versos da narrativa poética O cometa, publicada em 1910, conta o


desespero de alguns moradores da cidade com a notícia acerca da passagem de
um astro móvel pelo céu, o que foi interpretado por alguns, como sinal do fim dos
tempos. As informações presentes no material eram referentes à aparição do
Cometa Halley, que passou pela Terra em 18 de maio de 1910 20 , data fielmente
registrada no folheto.
No texto, o poeta argumenta que havia regressado de uma viagem que fizera
à cidade de Natal, no Rio Grande do Norte e, ao chegar, constata a precária
situação econômica de sua casa; sua esposa já não comia desde o dia anterior; o
fogão estava apagado; ao tentar “fallar um fiadinho” não parecia encontrar eco entre
os comerciantes, que, talvez pelas dívidas que já possuíam no comércio, ou mesmo

19
BARROS, Leandro Gomes de. O cometa / Romano e Ignácio da catingueira. In: Antologia Leandro
Gomes de Barros – 2, op. cit., p. 210-211.
20
WIKIPEDIA, Cometa Halley. Disponível em <http://gl.wikipedia.org/wiki/Cometa_Halley> Acesso
em: 12 nov. 2006.
32

pela desconfiança em relação ao fim do mundo, não queriam abrir crédito.


Observamos que restritas condições de vida estavam presentes, já que o próprio
poeta afirma que já “estava de olho fundo”, certamente devido à fome, e mesmo
tento acabado de chegar de viagem, não trazia recursos minimanente necessários
para saldar suas dívidas no entanto, também notamos que, mesmo diante dessa
situação, ele não perdia o bom humor, fazendo promessas de que pagaria suas
dívidas “no outro mundo”!
Assim, notamos que a vida do poeta parecia ser, de fato, uma batalha
cotidiana pela sobrevivência. Podemos acompanhá-la em parte através de alguns de
seus folhetos, mas também mediante outros trabalhos que muito ajudam a desvelar
aspectos da vida desse sujeito. Um desses trabalhos intitula-se Os mestres da
Literatura de Cordel: Leandro Gomes de Barros, publicado em maio de 1999. O seu
autor, Antônio Américo de Medeiros, é um veterano que há 32 anos escreve, publica
e vende folhetos da literatura popular.
Nesse sentido, aborda o êxodo de Leandro Gomes e Silvino Pirauá da cidade
de Vitória de Santo Antão para o Recife, onde muitas tipografias eram responsáveis
pela produção de brochuras que circulavam por todo o Estado de Pernambuco.
Conforme Medeiros, esses dois poetas muito se empenharam para produzir e
reproduzir suas poesias, de tal forma que, em 1898, Leandro possuía mais de vinte
originais de narrativas inéditas para serem publicadas. Nesse ir e vir para publicar
suas histórias, em 1908 muda-se definitivamente para a Capital Pernambucana e,
como mais um dos milhares de retirantes, busca ali alternativas para sua
sobrevivência.
Acerca do êxodo para o Recife no final do século XIX, Raimundo Arrais no
livro Recife, culturas e confrontos afirma que em 1872 a cidade atingiu a soma de
100 mil habitantes, e em 1910 arrancou para 200 mil, praticamente dobrando em
pouco mais de trinta anos. Sua pesquisa revela que o impulso demográfico não
resultou apenas do crescimento natural da população, mas também das ondas
migratórias advindas das decadentes zonas açucareiras, às quais se somavam as
33

vagas periódicas de retirantes que buscavam salvação em face de catástrofes


naturais, como as secas que assolavam a região 21 .
Arrais afirma que a usina de açúcar representou, em Pernambuco, o esforço
modernizador do início do regime republicano. Nos primeiros vinte anos do novo
regime, com o apoio do Estado, as usinas prosperaram, expandindo sua capacidade
produtiva a partir de maior racionalidade no processo fabril. Contudo, privilégio de
grandes produtores, a usina de açúcar fez com que proprietários de pequeno porte
não alcançassem competitividade, sendo reduzidos a simples fornecedores de cana,
ou, quando endividados, perdessem suas terras e mudassem para a cidade, onde
integravam as camadas médias urbanas. De acordo com o autor, essas camadas
não eram as únicas a procurarem a cidade como refúgio:

O Recife não recebia apenas os filhos das elites decaídas: a cidade tornou-
se desaguadouro do movimento populacional que o processo de instalação
das usinas havia desencadeado. Massas humanas liberadas pelas
mudanças que a usina introduziu no campo – concentrando propriedades,
arruinando produtores de subsistência e liberando braços – se dirigiam ao
centro mais atrativo da região. O Recife não apenas exercia dominação
sobre uma região que recobria outros estados, como concentrava, em
relação a seu território, a maior parte do comércio, das indústrias, serviços e
instituições. 22

As pessoas procuravam a cidade, porque, de fato, era uma das mais


prósperas da região. Desde meados do século XIX, as mudanças já aconteciam em
um grau de relativa intensidade, principalmente através do incremento das
indústrias, vias férreas, navegação a vapor, emprego do ferro nas construções,
utilização de água canalizada, serviços de bonde de tração animal, serviço de
telégrafo, serviço telefônico manual, dentre muitos outros 23 .
No entanto, a mesma cidade, que se transformava e se modernizava para
uns, tornava-se lesiva e excludente para outros:

21
As principais secas que atingiram o Nordeste do Brasil no final do XIX e primeiros anos do século
XX foram: 1877- 1879; 1888-1889; 1898; 1900; 1903-1904. SOUZA, Itamar; MEDEIROS FILHO,
João. Os degredados filhos da seca: uma análise sócio-política das secas no Nordeste. 2.ed.
Petrópolis: Vozes, 1983, p. 38-39.
22 ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Recife, Culturas e Confrontos: As camadas urbanas na
Campanha Salvacionista de 1911. Natal: EDUFRN, Editora da UFRN, 1998, p. 42.
23
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. O pântano e o Riacho: A formação do espaço público no
Recife do século XIX. 2001. Tese de Doutorado em História Social - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Orientador Prof. Dr. Marcos
Antônio da Silva, p.180; ARRAIS, 1998, op.cit., p. 45-46.
34

Na primeira década do século as mudanças eram visíveis no novo quadro


social da cidade: o aumento da população, a extensão das manchas de
mocambos e pensões insalubres nas áreas residenciais da cidade, a
mendicância, o abandono dos menores nas ruas, o recrudescimento das
condições sanitárias, os altos números da mortalidade, as ameaças
crescentes aos valores que haviam norteado tradicionalmente os
comportamentos. 24

Notamos que, além dos problemas infra-estruturais enfrentados pelos novos


moradores, ao chegar à cidade, havia ali também um choque cultural, no qual
inclusive os valores mais íntimos que esses sujeitos traziam também eram
questionados.

Instalado na cidade, o poeta passava também a conviver com muitas dessas


restrições impostas pelos novos tempos e, diante dessa realidade, registrava em
seus folhetos tanto as lembranças e histórias de magia e encantamento trazidas do
sertão, como também críticas e enfrentamentos aos valores e empreendimentos que
surgiam em seu novo local de habitação.

Barros mostrava posicionamentos contundentes daqueles que, assim como


ele, passavam a fazer parte de uma urbe que inchava, modificava-se, enchia-se de
problemas sociais, embalados com muitas inovações urbanísticas e tecnológicas,
afirmava seus pontos de vista em oposição a uma cidade que se pretendia
“civilizada” e, para isso, negava tudo e todos que não correspondessem a seus
referenciais de “modernidade”.

Essas pessoas eram frequentemente varridas para longe do centro da cidade,


pois definitivamente não se enquadravam nos referenciais dos novos tempos.
Seguindo os locais de habitações do poeta, impressos como lugar de vendas dos
folhetos, podemos dizer que ele era mais um desses sujeitos “indesejáveis” na urbe:
Rua do Alecrim no 38 E (1910); Rua do Alecrim no 34 (provavelmente, 1911 a 1914);
Areias, Arrabalde do Recife (1915); Rua do Motocolombó no 28, Afogados do Recife
(1917); Rua do Motocolombó no 190, Afogados / Arrabalde do Recife (1917) 25 . Os

24
ARRAIS, 1998, p. 43.
25
Informações obtidas nos seguintes folhetos: O cometa / Romano e Ignácio da Catingueira, Recife,
1910; O Cachorro dos mortos (Obra completa), Recife, s.d.; Festas do Juazeiro no vencimento da
guerra, Recife, 1914; A crise actual e o augmento do sello / A urucubaca / O antigo e o moderno,
35

endereços revelam que Leandro de Barros era mais um dos moradores dos
arrabaldes da cidade, inclusive em alguns momentos morava de aluguel, haja vista
as constantes mudanças de endereço, às vezes para casas localizadas na mesma
rua, e que certamente passava pelos mesmos problemas de diversos outros
moradores, como o desemprego, as péssimas condições de saneamento básico, os
altos impostos, a falta de iluminação e transporte público, dentre outros.

Além disso, seus locais de habitação indicam que o poeta não era homem de
muitas posses, mas certamente sabia improvisar a sobrevivência, uma vez que,
segundo as fontes, a sua renda era proveniente exclusivamente da produção e
venda de folhetos, que discorriam sobre temas e personagens cotidianos, facilmente
reconhecidos pelo seu público consumidor, formado por gente simples, exilada,
exposta aos rigores da sobrevivência, mas também uma gente que sabia rir da
própria condição e buscava nos folhetos, além de informação, um mote para a
diversão.

A propósito dessa presença sertaneja na obra de Leandro Gomes, Luís da


Câmara Cascudo em seu livro Vaqueiros e Cantadores registra que Barros escreveu
para sertanejos, matutos, cantadores, cangaceiros, almocreves, comboieiros,
feirantes e vaqueiros. Os seus versos eram lidos nas feiras, fazendas, sob as
oiticicas, no oitão das casas pobres, nas horas do “rancho”, soletrados com paixão e
admiração 26 , tanto que as estrofes dos seus romances, histórias em versos, pelejas
e cantigas eram decoradas pelos cantadores que se aproximavam dessas
narrativas, viam-se, identificavam-se e interagiam com as histórias que lhes eram
apresentadas.

Os conteúdos das narrativas contadas e cantadas pelos poetas, cantadores e


trovadores populares parece possuir forte relação com seu público, que os
referenda, consome, divulga, uma vez que seu conteúdo parece dispor de opiniões,
vivências e experiências bastante semelhantes às de seus consumidores. Acerca
dessa relação de proximidade do autor com seu público, Mikhail Bakhtin aborda

Recife, 1915; A defesa feita pelo doutor Ibiapina em que livrou da força um réo já sentenciado, Recife,
1917; Echos da Pátria / Guerra / Canto da Guerra, Recife, 1917.
26
CASCUDO, Luís da C. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,1968, p. 264.
36

tópicos interessantes referentes às relações estabelecidas na praça pública, que


parecem se aproximar do nosso tema:

[...] Ouvimos o “grito” do vendedor de feira, do charlatão, do mercador de


drogas miraculosas, do vendedor de livros de quatro centavos, ouvimos
enfim as imprecações grosseiras que se sucedem aos reclames irônicos e
aos louvores de duplo sentido. Assim, o tom e o estilo do Prólogo retomam
os gêneros do reclame e da linguagem familiar empregada na praça pública.
Nesse Prólogo, a palavra é o “pregão”, isto é, o palavrão pronunciado no
meio da multidão, saído da multidão e a ela dirigido. O que tem a palavra é
solidário do público, não se opõe a ele, não lhe passa sermão, não o acusa,
não o intimida, mas ri com ele. 27 (grifo do autor)

Embora Bakhtin se referisse a outro contexto, a essência dessa relação entre


autor, vendedor, comerciante, negociante, enfim aquele que possui a palavra, ou a
produção dos materiais, não parece diferir do sentido que percebemos na obra de
Barros, pois seus folhetos eram igualmente anunciados nas feiras, mercados, trens,
comércios, contados e cantados com o intuito de atrair os leitores e ouvintes, que
geralmente não eram o alvo de suas críticas, mas, assim como a imagem trazida de
Bakhtin, ria junto, anuía, comprava e divulgava suas produções, e dispunham de
idéias, valores, críticas sociais bastante próximas às dos poeta.

Contudo, se os folhetos de Leandro Gomes, repletos de críticas sociais,


causavam admiração e reciprocidade a alguns, particularmente àqueles de camadas
sociais mais baixas, suscitavam o desdém e a reprovação de outros, a exemplo
daqueles responsáveis pelo controle e manutenção da ordem. Isto nos é relatado de
modo inédito por Manoel Monteiro, no folheto Leandro Gomes: O rei do Cordel. 28 A
quadra intitulada “Têje preso cabra!” relata um episódio abordado por Ruth Brito
Lemos Terra em Memórias de Luta: Literatura de Folhetos do nordeste. 1893 –
1939. O caso foi resumido assim:

27
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François
Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1993, p. 144.
28
MONTEIRO, Manoel. Leandro Gomes: o rei do cordel. Campina Grande:Projeto Paraíba, sim
senhor!, 2005.
37

[...] Contam que já morava aqui no Recife quando um senhor de engenho,


indignado com um morador, resolveu aplicar uma sova de palmatória (...)
Um dia o senhor de engenho é surpreendido por violenta punhalada vibrada
pela mesma mão que levava seus bolos. O poeta Leandro aproveita o caso
policial, transformando-o em folheto que era libelo contra o senhor de
engenho. Descreve em O PUNHAL E A PALMATÓRIA, com calor e
simpatia, a inesperada vindita.
O chefe de polícia, enfurecido com a literatura de Leandro (e a serviço do
latifundiário), manda metê-lo na cadeia. Apesar de folgazão, Leandro era
homem de muita vergonha e de muito sentimento. E como naquele já
distante ano de 1918 a cadeia constituia uma humilhação, à humilhação da
cadeia sucumbiu o grande trovador popular 29

Terra informa que não é possível verificar a veracidade das afirmações


relacionadas à prisão e morte do poeta, mas Manuel Monteiro interpreta que
Leandro Gomes morreu de tristeza em decorrência da prisão, entendendo que o
castigo se mostrou incontornável na vida do poeta, pois “feriu seu peito tão fundo
que o ferimento exposto, suas forças consumiu”. 30

Monteiro lembra ainda que os poetas não gostam de falar da morte de


Leandro Gomes, no entanto é interessante notar que sua versão, contada em prosa
e verso, difere daquela apresentada por outros estudiosos. É o caso de Ribamar
Lopes, que afirma ter sido o poeta vitimado fatalmente pela influenza, a terrível gripe
espanhola que chegou ao Brasil em setembro de 1918 e vitimou cerca de 300 mil
pessoas no país. 31

Não parece haver evidências que confirmem essa última versão, pois
segundo o estudo de Geraldo Maia, a influenza chegou ao Brasil em setembro de
1918 32 , enquanto o poeta teria morrido em março do mesmo ano. Versões
controversas à parte, é forçoso reconhecer ter sido a morte de Leandro Gomes
permeada por mito, que também serviu de mote à criação literária de outros poetas.

Os jornais recifences de grande circulação à época não fazem menção


alguma aos episódios acima descritos. 33 Isso nos leva a considerar que talvez o

29
TERRA, 1983, op.cit, p. 41.
30
MONTEIRO, 2005, op. cit., p. 16.
31
LOPES, 1982, op.cit., p. 19.
32
MAIA, Geraldo. A influenza espanhola. O Mossoroense. Mossoró: 28 jun. 2005. Nossa História.
Disponível em: < http://www2.uol.com.br/omossoroense/mudanca/nhistoria.htm>. Acessado em: 20
jun. 2006.
33
Pesquisamos nos jornais A província, Diario de Pernambuco, Jornal do Recife e Jornal Pequeno.
38

poeta fosse representativo apenas no segmento popular do qual fazia parte, sendo
desconhecido ou desprezado no ambiente da elite letrada. No entanto, embora haja
esse espaço nas produções de sua época, é inegável a contribuição desse autor
para a poesia e produção literária popular, sua afirmação e difusão, com ênfase à
visibilidade alcançada por segmentos da população, nem sempre privilegiados por
outros tipos de fontes.

Atualmente sabemos que, apesar do “desconhecimento” enfrentado por


Leandro Gomes durante sua vivência na cidade do Recife, seus folhetos foram fonte
para inúmeras reedições, que até hoje são encontradas nas feiras, bancas e
comércios de cidades como Recife, Campina Grande, Fortaleza, Feira de Santana,
Salvador e inúmeras outras localidades, indicando que possuíam grande aceitação
entre o público consumidor, o que pode servir como indicativo para pensar a
anuência por parte da população, que comprava, consumia e divulgava tais
publicações.

Nessa perspectiva, buscamos contextualizar e acompanhar informações


acerca da vida desse poeta, cuja obra servirá de suporte para acompanharmos as
relações e tensões ocorridas na capital pernambucana nos primeiros anos do século
XX, principalmente aquelas que circundam os sentimentos e valores religiosos.
Tentaremos evidenciar algumas das muitas transformações que ocorriam na cidade,
para assim entender os sentimentos e posicionamentos do poeta e das pessoas que
compartilhavam de suas opiniões. A incursão pela urbe será de muita relevância
para que possamos compreender críticas e embates travados por certos segmentos
da população, que partiam em defesa de tradições que vinham sendo questionadas
e modificadas naquele início de século.

1.2. O Recife e o novo século: inovações e olhares de protesto

A proposta desse tópico é fazer uma imersão sobre a cidade do Recife nas
duas primeiras décadas do século XX. Desejamos perceber as relações ali
estabelecidas, as mudanças, a injunção de valores que se pretendiam universais, as
39

imposições e principalmente as reações de determinados segmentos sociais diante


das alterações.
No entanto, ao fazer essa aproximação com a cidade, temíamos que os
elementos ressaltados durante a observação das relações e acontecimentos ali
vividos ficassem deslocados de nosso objeto e sujeitos de estudo, por essa razão
decidimos tomar como base os próprios folhetos de Leandro Gomes de Barros como
suporte para fazer essa investida. É como se aceitássemos as provocações
oferecidas por esse autor e com elas tentássemos construir nosso próprio guia para
percorrer a cidade. Optamos por esse caminho para não correr o risco de
contextualizar a cidade a partir de aspectos fortuitos que, talvez, sequer tivessem
relação com os sujeitos com os quais estamos dialogando.
Seguindo essa estratégia, acompanhamos principalmente as pistas presentes
no folheto Casamento a prestação, no qual o poeta perpetra críticas ferrenhas às
inovações do “ceculo das luzes”, inclusive àquelas que considerava responsáveis
pelo “atraso do Brazil”. Nesse folheto, o poeta cita empreendimentos que não
paravam de chegar à cidade de Recife, e para os quais lançava seu olhar de
desconfiança e reserva. Além dessa narrativa, outros folhetos do poeta também
serão utilizados.
No início do século XX, muitas novidades surgidas na cidade do Recife eram
alvos constantes dos olhares críticos dos poetas que, atrelados a valores tradicionais
e desconfiados do excesso de mudanças, chamavam a atenção, em seus folhetos,
para os desarranjos do mundo. Eles censuravam impiedosamente quem ousasse
aderir às inovações, compondo narrativas engraçadas e carregadas de crítica social,
que geralmente partiam em defesa dos costumes, valores e práticas das quais eram
adeptos. Formas de lazer, jogos, novas tecnologias, práticas comerciais, presença
de novos sujeitos, e, principalmente, mudanças nos comportamentos, inclusive os
religiosos eram alvos corriqueiros das críticas e censuras dos poetas.
O folheto Casamento a Prestação e outros folhetos de autoria de Leandro
Gomes de Barros estão permeados por críticas e censuras, foram escritos numa
época considerada bastante conturbada pelo poeta. No decorrer da narrativa, o seu
posicionamento em relação às mudanças físicas estruturais, de princípios e valores
40

da região fica bastante evidente. O poeta marca sua posição contestante desde as
primeiras linhas da narrativa:

O atraso do Brazil
É esta desunião
Cinema jogo de bichos
Automoveis e balão
Esses Seguros de vida
E negocio a prestação 34 (sic)

No primeiro verso do folheto, o poeta identifica de forma simples e direta os


elementos que considera responsáveis pelo “atraso” por que passava o Brasil. A lista
é extensa e inclui o cinema, o jogo do bicho, os automóveis, o balão, o seguro de
vida e as compras a prazo, ou à prestação. Eram estes novos fenômenos que
pareciam, na visão do poeta, ser os responsáveis pela desagregação social ou, nas
suas próprias palavras, pela “desunião” que causava o “atraso do Brasil”.
A narrativa aponta alguns caminhos interessantes de investigação ao indicar
a recusa de parte da população em aceitar certos tipos de empreendimentos que
chegavam à cidade naquele início de século, e principalmente o estranhamento a
esses elementos, até então somente conhecidos por ouvir dizer.
O cinema, primeiro a ser lembrado, pode nos dar algumas pistas sobre os que
eram contrários às investidas da “modernização” na cidade, pois foi um dos mais
concorridos meios de diversão das camadas urbanas no começo do século passado,
sendo também alvo de muita rejeição.
Segundo Raimundo Pereira Alencar Arrais, no livro Recife, culturas e
confrontos, o cinema exerceu um papel importante ao contribuir para introduzir as
camadas populares na renovada vida citadina. Isto acontecia porque criava a
sensação no público de estarem partilhando das conquistas dos tempos modernos.
Segundo ele, em pouco tempo as salas dominaram as áreas mais nobres e
elegantes da cidade, contribuindo, entre outras coisas, para modificar hábitos
antigos, como o de recolher-se antes das nove horas da noite 35 . Intencionalmente ou
não, o cinema terminou por influenciar esse costume, já que as variadas

34
BARROS, Leandro Gomes de. Casamento a prestação / Testamento de Cancão de Fogo. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. Tomo III, op. cit., p. 136.
35
ARRAIS, 1998, op.cit, p. 50-51.
41

programações iniciavam às seis e terminavam às dez da noite, sempre com muitas


novidades 36 .
O memorialista Mário Sette (1886-1950), escritor autodidata, descreve o
“reboliço” que as primeiras salas de cinema causaram na cidade do Recife, com
afluência de muita gente às saídas, que se aglomeravam nas calçadas e
dificultavam a passagem dos bondes. Sette afirma que as salas de espera ficavam
superlotadas e as bilheterias eram concorridíssimas. Lembra ainda que, desde as
primeiras apresentações do Cosmorama, o pai fundador do cinema, os mais velhos
já observavam as inovações com olhares pouco otimistas. Avessos a tais novidades,
avistavam com ar de reprovação ou exclamando que aquilo só podia ser “artes do
inimigo!” 37 .
Segundo o memorialista, o advento do cinema em sua versão mais moderna
aumentou as possibilidades de lazer. Homens sisudos começaram a regressar aos
lares depois das dez horas da noite, o que era considerado um comportamento
escandaloso à época, ou melhor, “uma indisfarçável imoralidade”. A atribuição de
culpa por esta atitude heterodoxa recaía invariavelmente sobre as salas de cinema,
ainda que a sisudez daqueles homens estivesse experimentando outras formas de
lazer. 38 O escurinho do cinema também colaborou para ampliar as possibilidades de
encontros e namoros menos discretos, o que suscitava a censura de moradores
mais antigos e zelosos da cidade, o que o poeta Leandro Barros percebeu como
uma invasão de hábitos e costumes dos moradores.
A primeira sala de projeção chegou à capital pernambucana em 1909, recorda
Sette, abrindo caminhos para muitas outras. Elas acabariam se espalhando por toda
a cidade, mas sob olhares reprovadores que anunciavam prognósticos bastante
pessimistas:

- Aquilo não dura dois meses.


- Dura nada! Nem um. Ouvi dizer que no Rio já está esfriando...
- Diversos cinemas fecharam à falta de fregueses.

36
Quase sempre os jornais do período dedicavam uma página inteira à programação a ser exibida nos
cinemas da cidade ou faziam colunas para falar sobre suas acomodações. Ver principalmente A
provincia, Diario de Pernambuco, Jornal do Recife, Jornal Pequeno, O andarilho.
37
SETTE, Mário. Maxambombas e Maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante Brasileiro,
1958, p. 136.
38
SETTE, 1958, op.cit., p.139.
42

- Está visto! Que dirá aqui, hein, seu Marcolino? Numa terra destas!
- A mais infeliz do mundo. Com esse govêrno...
- E temos lá gente para ir ao cinema todo dia?
- Maluquices dos Guedes Pereiras.
- Fogo de Palha... 39 (sic)

Certamente o cinema concorria para modificar diversos costumes da


população citadina, além de fazer com que o ritmo frenético dessas mudanças
fugisse ao controle dos zeladores da moral. Estes últimos pareciam desejar que as
condutas não se alterassem de forma irreversível, por isso tomavam partido e
torciam pelo insucesso dos novos empreendimentos, que, uma vez falidos,
possibilitariam a restituição da pretensa harmonia social. Todavia, as previsões
pessimistas não se confirmaram e as salas de cinema se espalharam-se por
diferentes pontos da cidade.
Mesmo passados alguns anos da inauguração da primeira sala de projeção, a
rejeição a essa forma de entretenimento parecia perdurar. O jornal O andarilho de 07
de novembro de 1913 traz uma pequena nota informando que, além dos
freqüentadores normais, o cinema atraía também um público inconformado:

“Qual é o desoccupado que no Cinema Olinda no feitosa, dirige pilherias


para os freqüentadores do mesmo!...” 40 (sic)

O trecho acima traz indícios de que era possível pessoas da cidade se


deslocarem aos locais das salas de cinema para manifestarem censuras aos seus
freqüentadores. O jornalista e autor da nota reclama das “pilhérias” proferidas pelo
“manifestante”, tanto que o classifica pejorativamente como “desoccupado”. O tempo
verbal utilizado pelo periodista – presente do indicativo, “dirige” – indica que aquela
era uma ação freqüente dos opositores do cinema.
Outro aspecto digno de nota diante do recorte em discussão é a
personificação do problema causado pelo novo entretenimento. A nota registra
claramente que o “desoccupado” não disse “pilherias” aos funcionários ou aos
proprietários da sala de projeção, mas tão só e generalizadamente aos
freqüentadores do mesmo, como se transferisse para esses a responsabilidade pela

39
SETTE, 1958, op.cit., p. 139.
40
O andarilho, Recife, 07 nov. 1913, p. 3.
43

presença e funcionamento do cinema. O que não chega a surpreender, pois eram os


“freqüentadores” que, influenciados pelas modas estrangeiras e os comportamentos
“inovadores” projetados nas telas dos cinemas, tornavam-se potencialmente os
propagadores mais decisivos das mudanças sociais em curso.
A partir desses argumentos, constatamos alguns dos motivos que levaram o
poeta Leandro Gomes de Barros a dirigir recriminações contra o cinema,
considerando que estava “tudo pelo avesso” 41 . O poeta partia em defesa de sujeitos
apegados a valores tradicionais cujos meios de diversão nada tinham a ver com as
novidades que não paravam de chegar.
Em seus folhetos, de vez em quando Barros deixava escapar atividades
realmente valorizadas, consideradas meios de diversão, que em sua opinião não
causavam problemas em relação à moral ali presente. Referimo-nos aos momentos
alegres de cantigas, pelejas, trovas, danças, autos populares, anedotas, bate papos
e até mesmo as festas públicas, com conversa jogada fora durante o momento de
apreciação de uma boa cachaça.
Embora muitas dessas atividades não fossem mais praticadas na cidade, o
poeta não deixava de contrapô-las aos novos empreendimentos de lazer, que
traziam mudanças nos hábitos e costumes da cidade, além de modelos de
comportamentos, posicionamentos sociais e referências, em sua maioria, vindas do
estrangeiro. 42
Contudo, como já fora citado nos primeiros versos da narrativa Casamento a
prestação, o cinema não era o único responsável pelas “desordens da nação”. O
jogo do bicho era outro divertimento público que entrava no rol dos “desordeiros”,
sendo também digno de reprovação.
No início da pesquisa não conseguimos visualizar as relações do jogo do
bicho com aspectos da modernização do Recife, ou seja, elementos e caminhos
propostos por esse movimento que estivessem em oposição aos antigos valores e
práticas já consolidadas no início do século passado. Contudo, ao atentar para os

41
BARROS, Leandro Gomes de. As cousas mudadas / História de João da Cruz. In: Antologia
Leandro Gomes de Barros - 2.op.cit., p. 284.
42
Mário Sette informa sobre os atraentes filmes da Ambrósio, Gaumont, Éclair, Nordisque, fábricas
francesas, italianas e dinamarquesas que produziram grandes sucessos cinematográficos, que,
reproduzidos no Recife ajudavam a inventar comportamentos e modas, como o beijo tipo zepelin:
compridos e amarrando à torre dos lábios para demorar. SETTE, 1958, op.cit., p. 140.
44

indícios e as curiosidades que foram emergindo sobre sua relação com a cidade,
insistimos em seguir a pista, rastreando o jogo nos folhetos de Leandro Gomes.
Adiantamos que essa temática é bastante sugestiva para a pesquisa, não somente
por que ampliou as possibilidades de análise sobre as transformações citadinas,
mas particularmente por que descortinou uma teia de confrontos entre saber popular
e outros saberes, bastante evidente nas brochuras do poeta.
Presente no Brasil desde os primeiros anos da República, o jogo do bicho
possuía no Recife caráter informal e constituiu-se fonte de criminalidade. De acordo
com Raimundo Arrais, algumas autoridades policiais tentavam controlar essa
contravenção, mas tal intenção resultava ineficaz, pois, como era sabido, até as
autoridades policiais de várias patentes jogavam. 43
Pesquisando jornais dos primeiros anos do século XX no Recife, não é raro
encontrarmos colunas como essa:

Figura 2 – “Infalliveis da semana” palpite oferecido pelo jornal O periquito a


apostadores do Jogo do Bicho.

43
ARRAIS, 1998, op. cit, p. 73.
45

A coluna, extraída do jornal O Periquito 44 , faz clara referência ao jogo do


bicho através de imagens e números correspondentes a três grupos de animais que
compõem o conjunto de possibilidades de apostas. O jornal recomendava um palpite
para aqueles jogadores que, certamente, ficavam atentos às sugestões de grupos,
dezenas, centenas, milhares, que pudessem favorecer a sua sorte durante a
semana, que possuía uma temporalidade independente, contada de quinta-feira a
quinta-feira. Na tabela oferecida, há um palpite muito comum entre os apostadores
do bicho, pois cerca alguns animais começados com a letra c – “cabra”, “cavalo” e
“cobra” –, jogada muitas vezes reproduzida pelos apostadores. Importante destacar
que O Periquito não era o único periódico do Recife a oferecer essas tabelas. O
periódico Jornal Pequeno também chegou a publicá-las durante algum tempo —
numa espécie de cerco aos bichos no papel. 45
Renato Carneiro Campos, em seu livro Ideologia dos poetas populares do
Nordeste, afirma que essa modalidade de jogo era forte em Pernambuco, sendo
retro-alimentado pelo sonho do trabalhador de ganhar algum dinheiro extra que, ao
menos por certo tempo, melhorasse a sua situação econômica. Dinheiro que desse
para comprar uma roupa nova, um chapéu, um sapato,

Arriscam sempre os matutos – velhos, homens, mulheres e até meninos.


Esperam que uma alma do outro mundo lhes indique a milhar do dia ou o
lugar onde esteja enterrada uma botija. Acreditam que os sonhos tanto
podem ser bons, indicando o caminho da sorte, como também aziagos e de
maus presságios. Traduzem as imagens do sonho pela semelhança com
animais ou alguma coisa que tenha relações com eles [...] há bichos que
trazem sorte como há outros que sugerem desgraça. 46

Apesar de possibilitar um “dinheirinho extra”, que eventualmente tirasse o


sujeito do aperto, o jogo do bicho nem sempre era visto com bons olhos naquela
sociedade de início de século. Em muitos jornais da época era freqüente a
associação de bicheiros com atividades escusas ou prática de atos condenáveis.
Observemos, por exemplo, essa nota extraída do jornal O Andarilho de 1913,

44
O Periquito. Recife , 24 Jan. 1902, p. 8.
45
MOTA, Mauro.O jogo do bicho. Jangada Brasil: e o Bicho vai pegar. Ano VIII, edição especial, No
88, Mar de 2006. Disponível em: <http://www.jangadabrasil.com.br/revista/marco88/especial26.asp>
20 mar. 2007.
46
CAMPOS, Renato Carneiro. Ideologia dos Poetas Populares do Nordeste. Recife: MEC-INEP –
Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife, 1959, p. 33.
46

A minha Arara diz:


Que o conhecido bicheiro Arnaldo Leite tem ultimamente sido visto n’um
estado de completa embriaguês, transitando pelos beccos immundos de
Santo Antônio beijocando as meretrizes que da janella lhe dirigem
gracejos. 47 (sic)

O periodista faz, pelo menos, duas associações entre o bicheiro e atitudes


consideradas socialmente reprováveis. A primeira delas se refere ao uso freqüente
de bebida alcoólica, já que Leite era visto “ultimamente” em estado de “completa
embriaguês”, ou seja, deixa margem para que a figura do bicheiro fosse associada
ao descontrole causado pela bebida. O tom da nota enfatiza a imagem de um
bêbado, marginal que ocupa lugar de indisciplina, solto pelos becos da cidade, sem
qualquer preocupação com o recato.
A nota faz referência ainda à prostituição, deixando implícito que o bicheiro
não se preocupava com a moral social daquela sociedade que se desejava
moderna, freqüentando abertamente locais de baixo meretrício, que o jornal
adjetivava de “immundos”, portanto, passivos de censura.
Apesar de ser uma pequena nota, cujo tom era desqualificar através da
fofoca, já que a frase “A minha arara diz” sugere ter chegado ao conhecimento
público através de boca-a-boca ou de ouviu dizer, a reportagem aponta as razões
para que o jogo do bicho fosse visto com reprovação pelos leitores. Em apenas um
parágrafo, a reportagem identifica o bicheiro à marginalidade, relacionando ao
mesmo tempo sua imagem ao jogo, álcool e prostituição.
Mas, voltando a outros folhetos de Leandro Gomes, percebemos que o jogo
do bicho volta a aparecer sempre retratado com desaprovação. O poeta reforça
constantemente seu posicionamento em defesa da tradição e dos antigos costumes,
e, sempre que tem oportunidade, condena a atividade do jogo, que para ele havia se
alastrado em meio à população. Nesse sentido podemos observar, por exemplo, a
capa do folheto Doutores de 60, que provavelmente foi escrito entre 1911 e 1914.

47
O andarilho, Recife, 29 Dez. 1913. p 2
47

Figura 3 – Capa do Folheto Doutores de 60

Em sua narrativa, o poeta novamente se mostra descontente com as


“inovações” do século e aponta suas armas contra mais um dos “males da
modernidade”, dessa vez compra briga com os médicos da cidade. Na história
denuncia a formação de alguns “doutores” que, através da compra de diplomas no
Rio de Janeiro, retornavam ao Recife para desempenhar a medicina de maneira
improvisada e perigosa, cometendo erros absurdos devido à falta de preparação
para o exercício da profissão.
Em uma breve observação sobre a capa do folheto, observamos logo abaixo
do título Doutores de 60 a palavra “burro”, juntamente com a gravura de um burrinho,
caracterizado por orelhas compridas e cabeça volumosa. A capa sugere, portanto,
48

ao leitor da escrita e da imagética, uma síntese da narrativa poética, que procura


estabelecer estreita relação entre os doutores que compravam os diplomas e os
burros, geralmente identificados como preguiçosos, teimosos e de pouca
inteligência.
Observamos que ao lado da palavra “burro” há quatro números registrados
09,10,11,12, justamente as dezenas que representam o animal no jogo do bicho. Um
olhar apressado sobre a capa desse folheto poderia supor que, apesar de ácidas
críticas às inovações e modernidades, conforme aquelas dirigidas ao jogo em
questão, o poeta entrava em aparente contradição ao divulgar as dezenas
correspondentes ao animal na capa de seu folheto, e terminava por fazer alusão ao
sorteio, ajudando a difundi-lo entre os praticantes.
No entanto, ao observarmos mais atentamente o conteúdo da história
narrada, encontramos em todo o seu conjunto apenas uma alusão ao jogo do bicho,
localizada na última estrofe da narrativa, concluída da seguinte forma:

Por isso não sou dotor,


Sustento isso a capricho
O dinheiro’de um diploma,
E’ melhor botar no lixo
Talvez aproveitasse mais
Jogando tudo no bixo 48 (sic)

Com efeito, ainda que a capa fizesse alusão ao jogo do bicho, o conteúdo se
mostrava bastante crítico já que relacionava de maneira contundente o gasto com a
aposta a um dinheiro desperdiçado, “jogado no lixo”. Constatamos assim que a
posição do autor se mantinha negativa em relação a essa modalidade de jogo,
mesmo quando ‘brincava’ com as dezenas do animal na capa de seu folheto.
Assim, a narrativa do folheto Doutores de 60 não é importante apenas por
demonstrar a posição do poeta em relação ao jogo do bicho, considerado como mais
um “causador do atraso da nação”. O folheto é também singular por inserir em sua
abordagem uma discussão sobre elementos significativos para as transformações da
capital pernambucana. Referimo-nos especificamente às transformações médicas e

48
BARROS, Leandro Gomes de. Doutores de 60. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo
V. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Universidade
Federal da Paraíba,1980, p. 149.
49

sanitárias ocorridas na cidade. Estas foram agregadas ao rol de enfrentamentos


empreendidos pelo poeta, principalmente através das críticas direcionadas aos seus
principais representantes: os médicos.
No folheto, Leandro Barros trava uma peleja engraçada, reforçada por muita
anedota e zombaria, na qual enfrenta seus opositores, desnudando pontos
vulneráveis e frágeis de sua profissão, no intuito de compor uma caricatura daquilo
que seria o aparato médico-sanitário da cidade. No folheto Doutores de 60, o
enfrentamento aos novos saberes que se organizavam com a nova constituição da
cidade é declaradamente exposto através da apresentação satírica e irônica sobre
as insuficiências da formação de alguns profissionais da saúde, e, em decorrência
disso, suas práticas pouco confiáveis.
Observamos desde o princípio da história o modo como o poeta arquiteta o
desenrolar de sua narrativa, deixando bem clara sua opinião sobre alguns médicos
da cidade:

Porque a coisa pençada


Peresse até um revez,
Criaturas que só faltam
Andarem de quatro pés,
Um desses diz: sou doutor
Graças a secenta mil reis.

Deu-se agora uma questão


Com o dr. berduega,
Quem disse foi o pae d’elle
Creio que o velho não nega
Um burro passou por elle
Disse: bom dia colega.

O dr. lhe disse burro


E’s dos irracionaes,
O burro então perguntou-lhe
Collega o que é que quer mais
Somos diferentes em corpos
No saber somos iguaes

O dr. disse-lhe burro,


Então não sabes quem és?
Es um animal estupido
So andas de 4 pés
O burro disse eu custei,
Duzentos e dez mil reis 49 (sic)

49
Barros, Leandro Gomes de. Doutores de 60. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3.op. cit., p.
141-142.
50

O folheto expõe de maneira jocosa e engraçada possíveis estranhamentos


dos moradores da cidade com os médicos e sua formação acadêmica débil, cujo
exercício profissional era caracterizado por pouca teoria e nenhuma prática. Na
opinião de Barros, os doutores prescreviam tratamentos tão estranhos, executados
de maneira bizarra e até mesmo equivocada, que nem mesmo eles tinham certeza
da eficácia, no entanto, sempre permeados por intenções de lucro.
No pequeno recorte dos versos em destaque, notamos que o poeta
demonstra muita criatividade ao traçar um paralelo entre os médicos da cidade e os
burros, deixando explícita a crítica social direcionada aos profissionais da saúde. A
brochura também nos aproxima de sujeitos que desempenharam atividades
relevantes naquele momento de transformações na cidade, e que, por essa razão,
terminavam sendo alvo constante de austeras críticas formuladas por alguns
segmentos da população.
É assaz curioso o modo como o poeta pretende difundir a figura do médico na
imaginação de seus leitores, ao identificá-lo com uma planta muito comum no Norte
e Nordeste do Brasil: “Dr. Berduega”. A beldroega é também denominada
popularmente como bênção-de-deus, capanga, bredo, caruru, língua-de-vaca, maria-
gomes, maria-gorda, ora-pro-nobis. O termo científico é Talinum paniculatum 50 e se
caracteriza por ser uma planta invasora de outras culturas, nasce em qualquer tipo
de solo, reproduz-se facilmente e, principalmente, é resistente às mais extremas
mudanças de ambiente. A beldroega é uma espécie de erva daninha, que nasce em
qualquer lugar e pode servir para alimentar tanto pessoas como animais.
Diante disso, podemos arriscar que o poeta estivesse inconformado com a
atuação dos médicos, considerando-os como seres irracionais e sem valor, ou
melhor, menos racionais e valiosos que o burro. Percebemos que o autor da poesia
constrói, sutilmente, uma expectativa de que, através do seu folheto, ao satirizar
certas práticas e comportamentos médicos, pudesse chamar atenção de seus
leitores, denunciar e apresentar mecanismos para vigiar, criar procedimentos que,
de certa forma, contivesse uma possível expansão dessa categoria pela cidade.

50
LORENZI, H., ABREU, M.F.J. Plantas Medicinais no Brasil: Nativas e Exóticas. São Paulo: Instituto
Plantarum, 2002.
51

Não obstante, o poeta vai além de nomear o seu opositor com o nome de
erva daninha, pois, durante o diálogo efetuado com o burro, percebemos as formas
que encontrava para privilegiar o animal com respostas prontamente aptas a
desqualificar o “doutor”. Um exemplo dessa afirmação se refere ao momento em que
o burro cumprimenta o médico e este se ofende, enfatizando a irracionalidade do
animal. Notamos que, durante a réplica, o burro em momento algum nega sua
irracionalidade, mas afirma que em matéria de saber eram iguais, ou seja, ambos
irracionais. Evidenciamos por meio da sinuosidade dos diálogos as intenções do
poeta em diminuir o doutor, fazendo-o perder uma discussão até mesmo para um
burro, que insiste em afirmar que, mesmo com sua estupidez ou irracionalidade,
ainda assim valia mais que o médico.
Nesse trecho o poeta expõe de forma pontual o enfrentamento aberto entre o
saber popular e o saber acadêmico, evidenciando que não estava desatento às
redes de transformações por que passava a cidade, que se apoiava muitas vezes
nos discursos dos médicos para legitimar as mudanças que eram impostas à
população. O poeta assume o lugar daqueles que muitas vezes eram negados
durante esse processo de “limpeza” urbana que, respaldada pelo discurso da
higienização, varria essas pessoas do centro, impunha-lhes sanções e regras que se
opunham a tudo aquilo que elas consideravam correto.
Esse confronto declarado direcionado ao médico nos faz indagar os motivos
que levariam esse poeta, ligado aos problemas e vivências da população, a escrever
uma narrativa que em seu conjunto fazia duras críticas à formação dos médicos e ao
modo como exerciam a profissão. Até aqui é possível perceber que o poeta não
estava muito contente com a atuação desses profissionais. Mas por que os
considerava ‘invasores’, e os comparava a uma erva daninha? Por que sentia que os
médicos se alastravam? Que acontecimentos da cidade o instigavam a assumir essa
batalha declarada aos médicos através desse mote para compor essa narrativa
poética? Quais teriam sido as causas que levariam o poeta a caracterizá-los como
irracionais, ignorantes, e questionar através de sátiras os conhecimentos e
tratamentos que ministravam?
Diante desses questionamentos, decorridos de uma leitura atenta do folheto
Doutores de 60, vemos a necessidade de investigar a presença e atuação dos
52

doutores naquele período, e assim tentar compreender alguns motivos da


hostilidade declarada a esses profissionais. Essa investigação é relevante para
entender o contexto no qual os saberes médicos influenciavam no processo de
transformação da cidade.
Ao pesquisar periódicos da época, encontramos algo sintomático sobre a
presença dos doutores a partir das notas publicadas nos jornais de grande
circulação, pois o número de médicos e tratamentos oferecidos é algo considerável.
Em uma única edição de oito páginas do Diário de Pernambuco, de 1918,
encontramos quarenta e seis anúncios classificados de médicos, ofertando variados
tratamentos, além de trinta e uma opções de medicação para diferentes problemas
de saúde, somando setenta e sete referências relacionadas à saúde. 51
Os números presentes na edição não parecem insignificantes, pois, se
calcularmos uma média entre todas as propagandas que aparecem nas oito páginas
do veículo de comunicação, percebemos que nenhum outro assunto possuía tantos
anúncios quanto aqueles relacionados à saúde pública. A quantidade de médicos,
bem como as ofertas de tratamento nos jornais são indícios da forte presença,
atuação e relevância desses profissionais na cidade.
Na referida edição do Diário de Pernambuco, é possível encontrar diferentes
aspectos da presença dos médicos na cidade do Recife, desde os simples anúncios
sobre mudanças no seu cotidiano de atendimento, às listagens elaboradas sobre
diferentes clínicos especialistas e as doenças tratadas por eles.
Utilizando-se do mesmo expediente, o Dr. Victor de Moura apresentava seus
serviços médicos, juntamente com muitos outros profissionais. Nessa ocasião,
oferecia terapêutica para “moléstias dos órgãos genito-urinarios, syphilis e partos”.
Outro médico, o Dr. Lins e Silva anunciava tratamentos para “moléstias das
creanças, vias urinarias, da pele e syphilis”, assim como o Doutor Ladislau
Cavalcante, especialista em “Syfilis e moléstias de creanças”. Muitos outros
profissionais das áreas médicas também ofertavam tratamentos para as mais
variadas enfermidades: “molestias internas, doenças nervosas, mentais, molestias
de senhoras e creanças, cirurgia geral nas vias urinarias, syfilis, tratamentos da

51
Diario de Pernambuco, Recife, 04 mar. 1918, passim.
53

cabeça, coração, rins, bexiga, estômago, coração, olhos, garganta, nariz e ouvidos,
erysipela, febre typhoide”, dentre muitas outras. 52
Considerando-se o número de profissionais que ofereciam os seus serviços,
receitavam e assinavam os medicamentos, bem como o amplo espaço dedicado aos
aspectos de saúde no jornal, vemos que em 1918 o número de profissionais da área
médica na cidade crescia rapidamente. Talvez, por isso, não fosse por acaso a
comparação, nos folhetos de Leandro Gomes de Barros, com a “berduega”, planta
que crescia ligeiramente e se alastrava sem controle algum.
Embora beirando a chegada dos anos 1920 fosse tão fácil encontrar e
mapear os serviços oferecidos pelos médicos através dos jornais de grande
circulação, é importante salientar que os médicos nem sempre foram categoria
numericamente representativa na região. Na verdade, durante todo o século XIX, a
cidade do Recife não tinha tantos desses profissionais, possuindo, ao longo de todo
o período, pouco mais de 102 doutores. 53
No entanto, com a formação e retorno de muitos profissionais que estudaram
nas escolas de medicina do Rio de Janeiro e de Salvador, o número de clínicos foi
ampliado gradativamente. Isso se deu, principalmente, a partir dos primeiros anos do
século XX, quando retornavam à cidade e atuavam juntamente com seus colegas de
profissão em diferentes esferas da saúde pública.
A presença desses profissionais de saúde contribuiu de forma cada vez mais
intensa para controlar os hábitos da população, principalmente porque nesse
período as questões de higiene pública estavam na pauta das discussões sobre os
problemas da cidade e os médicos exerciam um trabalho incisivo e marcante na
disciplinarização da população.
É importante notar que, desde meados do século XIX, a capital de
Pernambuco era constantemente assolada por epidemias, chegadas através do
porto. Embora trouxesse benefícios comerciais para a cidade, as docas também

52
Diario de Pernambuco, Recife, 04 mar. 1918, passim
53
LOPES, Maria Aparecida Vasconcelos. Cidade Sã, corpo São: Urbanização e saber médico no
Recife (Final do século XIX, início de século XX). 99f . 1996. Dissertação de Mestrado em História -
Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1996.
54

eram portas de entrada para inúmeros surtos de diferentes doenças, como varíola,
febre amarela, sarampo, coqueluche, influenza, dentre outras. 54 .
Os altos números de mortalidade causada pelas doenças faziam com que o
55
Recife fosse apelidado de “cidade bombainizada” ou “cidade da morte”. Assim, o
médico sanitarista Octávio de Freitas, desde o século XIX, muito se destacou na
atuação junto à higiene pública e apresentava indicações que ajudavam a entender
alguns problemas sanitários da cidade. Segundo esse médico, a situação higiênica
da capital era agravada pela sua situação geográfica, quase ao nível do mar; pelas
galerias de esgotos mal construídas; péssimo serviço de limpeza e remoção dos
dejetos domésticos; ruas estreitas e mal traçadas; condições precárias dos pobres
que habitavam mocambos e cortiços. 56
As preocupações com a higiene eram expostas por certos segmentos sociais
que durante algum tempo se manifestavam nos jornais do período através de sátiras
como esta publicada no periódico Lanterna Mágica de 1903. 57

Figura 4: Sátira publicada no Periódico “Lanterna


Mágica” sobre as epidemias que assolavam a cidade
do Recife.

54
LOPES, 1996, op.cit, p. 48-50.
55
Ibid., p. 50.
56
FREITAS, Octavio de. Do registro sanitário das habitações. Memória apresentada ao Congresso
Médico Pernambucano. Recife. Imprensa Industrial, 1909 apud LOPES, 1996, op. cit., p. 39.
57
Lanterna Magica., Recife, 10 Jul. 1903. Ano XXII, Número 736, p 4.
55

As sátiras, bastante comuns nos periódicos da cidade, zombavam das


autoridades políticas e seu desgoverno diante de epidemias que se sucediam na
região, como a de peste bubônica, adjacente à epidemia de febre amarela. Na
gravura vemos representações de epidemias que conversam aparentemente em tom
amigável, discutindo qual das duas teria maior impacto no próximo surto, com a
ressalva de que a febre amarela parecia bem mais confiante!
Os jornais cobravam providências da administração pública para efetivação
de ações decisivas no combate às doenças, bem como maior atenção às reformas
sanitárias. Políticos, engenheiros, intelectuais, médicos e demais representantes da
administração pública discutiam as necessidades de reformas, já adotadas em
outros estados, principalmente na capital do país, e constituíam referência para a tão
pretendida modernização.
Nesse contexto, nas primeiras décadas do século XX, um dos principais
requisitos desejados pela elite política e intelectual para que a nação atingisse a
“grandeza” e “prosperidade” dos “países mais cultos” era indubitavelmente a solução
dos problemas relacionados à higiene pública. 58 Acerca do processo de difusão da
nova ordem de “modernização”, “limpeza” e “embelezamento” nas cidades, Cátia
Wanderley Lubambo em seu livro Bairro do Recife entre o Corpo Santo e o Marco
Zero explica que:

Nos espaços urbanos, onde a nova ordem se propagou com mais


intensidade e rapidez, tornou-se oficial a urgência do saneamento e da
higienização. Formalizaram-se, nesta época, as Políticas Sanitaristas e os
Planos de Saneamento nas principais cidades do País. Neste ímpeto,
assume a Direção Geral da Saúde Pública, em 1903 (Governo de Rodrigues
Alves) Oswaldo Cruz, permanecendo no cargo até 1909. Recém chegado
da Europa, médico e sanitarista brasileiro, Oswaldo Cruz, orientou as
pesquisas de medicina experimental, reformulou o Código Sanitário, a partir
de estudos sobre as condições sanitárias em várias partes do País e

58
Sobre os processos de urbanização e Higienização adotados em outros estados, principalmente no
Rio de Janeiro, ver principalmente CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte
imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; SEVCENKO, Nicolau. A revolta da Vacina: mentes
insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984. Na Bahia, ver FONSECA, Raimundo
Nonato da Silva. “Fazendo fita”: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1987-1930.
Salvador: EDUFBA; Universidade Federal da Bahia. Centro de estudos Baianos, 2002; LEITE, R. C. E
a Bahia Civiliza-se...: em um contexto de modernização urbana Salvador 1912-1916. 139 f.
Dissertação de Mestrado em História Social - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996;
ALBUQUERQUE, Wlamira R. de. Algazarra nas Ruas. Comemorações da Independência na Bahia
(1889-1923). Campinas, Editora da Unicamp, 1999.
56

colocou a Diretoria Geral da Saúde Pública a frente da campanha contra a


varíola, a peste bubônica, a tuberculose, a malária e a febre amarela no Rio
de Janeiro. 59

A dianteira desse processo de saneamento e higienização foi tomadas pela


Capital Federal, que se tornou uma das pioneiras no processo de urbanização e
reforma, objetivando tornar-se uma metrópole moderna. Os governos do presidente
Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos tomaram as mudanças que
transformaram a cidade em verdadeiro emblema da Nação. Os vícios, pobreza,
doenças e outras “mazelas” foram varridos para a periferia, com o propósito de
deixar o centro com aparência de urbe moderna. A reforma também pretendia mudar
costumes e criar uma nova mentalidade, voltada para o progresso 60 . Para executar
essa política, um consentimento especial foi dado aos médicos, que, a exemplo de
Oswaldo Cruz, assumiam funções públicas determinantes no processo de
modificação e higienização da cidade.
No Recife as discussões sobre as reformas foram bastante acirradas desde a
época do império, principalmente diante da necessidade de ampliação e
melhoramento do porto, que há muito tempo já não correspondia às demandas.
Contudo, foi somente sobre a égide política de Rosa e Silva, nascido em Recife e
tornado vice-presidente entre 1898 e 1902, que o processo foi acelerado. De acordo
com Lubambo:

[...] Rosa e Silva era tido como um autocrata rico e cosmopolita que
governava Pernambuco à distância, do Rio de Janeiro, ou o fazia do Porto,
a bordo dos navios em que ia para a Europa ou voltava da Europa para a
sua casa, na Capital Federal. Evitava vir a Pernambuco e desprezava o
Nordeste por considerar pouco civilizado. 61

Apesar de sua distância, o político lançou mão de sua grande influência e se


tornou um intermediário entre o Recife e a Capital Federal, buscando acirradamente
realizar a reforma da sua cidade. As reivindicadas reformas infra-estruturais foram
iniciadas no Recife a partir de 1908, com diversas ações empreendidas para

59
LUBAMBO, Cátia Wanderley. Bairro do Recife entre o Corpo Santo e o Marco Zero: A reforma
urbana do início do século XX. Recife: CEPE/Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1991. p. 80.
60
CHALHOUB, 1984, op.cit., p. 35.
61
LUBAMBO, 1991, op. cit., p. 103.
57

reformar o porto e acabou se constituindo no embrião das amplas modificações


urbanas da cidade:

Analogamente ao projeto de Melhoramentos no porto, [...] o debate sobre


uma Reforma Urbana no Bairro do Recife seguramente tornou-se cotidiano,
a partir do momento em que a reforma urbana na Capital Federal
apresentou-se uma configuração bastante expressiva daquela mudança que
se operava no País. Contudo, não se pode entender a Reforma no Recife
como um exemplar de um modismo nacional, só com base na avaliação dos
interesses daqueles que encabeçaram a idéia e de todos os outros
envolvidos, é que se evidenciarão as suas justificativas. 62

No que tangia às mudanças físicas da cidade, as transformações ocorreram


de acordo com as pretensões dos reformadores, pois, sempre que se fazia
necessário, o processo de desapropriação, demolição, alargamento, planejamento e
edificação eram precedidos pela força a fim de acelerar a conclusão das obras.
Obviamente, tudo era feito sob o crivo da lei, que também se adaptou, quando
necessário:

[...] o plano de Reforma do Bairro do Recife propunha um grande número de


desapropriações, tanto nos trechos onde seriam rasgadas novas avenidas,
quanto naqueles onde seriam alargadas ruas antigas e onde seria aberta a
avenida do cais. É interessante observar que o ônus que tais
desapropriações adicionariam ao custo das obras não parece ter constituído
entrave maior à execução dos serviços. É que, na realidade, com as
alterações imprimidas “oportunamente”, durante a reforma da Capital
Federal, a “LEI DAS DESAPROPRIAÇÕES”, o projeto de Reforma no Bairro
do Recife teve seu custo reduzido. 63

Conforme Lubambo, as desapropriações e demolições eram feitas muito


rapidamente, pois a própria lei permitia uma redução no cálculo das indenizações a
serem pagas aos ex-proprietários. Por outro lado, eram excluídos do ressarcimento
prédios considerados “ruinosos”. Nessa categoria, poderiam ser enquadrados
inúmeros “pardieiros”, ocupados por oficinas, mocambos, pequenos
estabelecimentos comerciais e casas de cômodos. Era comum que a demolição
desses prédios ocorresse sob a justificativa de “insalubridade”, atestada pela
Comissão de Saneamento. Tal justificativa foi usada para que diversas construções

62
LUBAMBO, 1991, op. cit., p. 98-99.
63
Ibid., p. 105.
58

fossem demolidas, mesmo estando fora dos limites físicos aprovados para
desapropriações. 64
No lugar dos prédios demolidos surgiam novas e caras construções e seus
antigos moradores invariavelmente tinham que se mudar para os arrabaldes da
cidade, juntamente com grande parte da população que chegava fugindo das crises
e secas do interior do estado. Essa população pobre, que possuía representantes
como o poeta Leandro Gomes de Barros, tinha que enfrentar, além da especulação
imobiliária, crescente com a urbanização, também uma ofensiva contra seus hábitos
e costumes, que se tornaram alvo constante dos reformadores.
Nos relatórios de saneamento da cidade do Recife, produzidos pelo
engenheiro sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de Brito (1864-1929), que
empreendeu obras de reformas sanitárias na cidade a partir de 1910, havia
reclamação constante contra o que chamavam de “má vontade” e “antipatia injusta”
da população. 65 O sanitarista e aqueles que trabalhavam nas reformas não mediam
esforços para cumprirem suas proposições, mesmo que tivessem que impor à força
os referenciais a serem seguidos.
No entanto, a ofensiva médico-sanitária era contestada pelos segmentos mais
pobres que se sentiam invadidos e mostravam sua indignação diante das medidas
de higienização,

Anda tudo apavorado


Aqui pela capitá;
É a puliça sanitara
Que ta dando o que fala.

Intope inté as cacimba


E quebra os jarro de frô;
Tira as cortinha de asa
Pur orde de seu dotô. 66 (sic)

Os versos recortados do jornal A Lanceta se referem às visitas domiciliares


empreendidas pela campanha da Inspetoria de Hygiene Publica do Recife, realizada
em 1912, que objetivava remover, através da limpeza pública, tudo que fosse
64
LUBAMBO, 1991, op. cit., p. 106.
65
BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. Saneamento de Recife: descrição e relatórios. Rio de
Janeiro : Imprensa Nacional, 1942, p. 9-10.
66
LEMOS FILHO. Clã do açúcar, Recife1911/1934. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1960. p. 38
apud LUBAMBO, 1991, p. 81.
59

considerado insalubre nas habitações. Contudo essa “limpeza” era realizada


mediante a invasão dos domicílios independente do consentimento de seus
proprietários.
Logo, ao observamos a expressão “anda tudo apavorado aqui pela capitá”,
surpreendemos o sentimento de insegurança que tomou conta de alguns grupos de
moradores do Recife. Naquela conjuntura na qual se tentava instituir uma forma de
prevenção contra a ofensiva de doenças historicamente presentes na cidade, havia
receio e temor diante das medidas governamentais que, através do poder de polícia,
impunham posturas, intrometiam-se nos lares, desapropriavam habitações, e faziam
obras, nem sempre discutidas ou negociadas com a população.
Podemos compreender o desespero do poeta, ao reclamar do entupimento
das cacimbas, já que essas representavam, muitas vezes, a única fonte de água
limpa das famílias que sofriam com problemas de abastecimento. O fornecimento de
hídrico se dava por meio de transportes realizados por canoas ou canos feitos de
chumbo. 67 Sendo assim, não parecia improcedente tanto apavoro na cidade, visto
que, antes mesmo de resolver o grave problema do abastecimento da água, os
grupos políticos tomavam medidas autoritárias e entupiam cacimbas, sem ao menos
discutir prioridades, ou dar maiores esclarecimentos sobre as medidas preventivas
realizadas pela polícia sanitária.
Chama atenção o último verso do trecho publicado no jornal, no qual o autor
parece identificar o responsável por todos os problemas causados pelas medidas
sanitárias empreendidas na cidade. Tudo acontecia “Pur orde de seu dotô”.
Novamente o médico aparece à frente das investidas da “modernização”, logo, não é
de estranhar a assertiva feita em Doutores de 60 de que esses profissionais se
proliferavam como uma erva daninha.
Sem dúvidas, as reformas urbanas criaram um clima de efervescência
civilizadora, que incitava a população a seguir uma lógica de práticas, atitudes e
valores diferentes daqueles a que estava acostumada. Mas muitos não deixavam de
manifestar certa desconfiança e pessimismo em relação às perspectivas abertas
pelos civilizadores do novo século:

67
Sobre a contaminação da população por chumbo ver principalmente PARAÍSO, Rostand. Esses
Ingleses. 2ª ed. Revista e Ampliada. Recife: Bagaço, 2003, p. 164 e LOPES, 1996, op. cit., p. 28.
60

Este anno é o anno da cigarra


Este ceculo das luzes é tâo escuro!
Vejo um rio se encher de sangue puro
E o mar civilisado ir fazer barra.

A mizeria com desdem no mundo escarra


O desastre diz garboso, estou seguro
Ja rasguei as vestes do futuro,
E o meu curso de heroe ninguém esbarra. 68 (sic)

Diante das incertezas, do “presente” e também dos tempos vindouros, o poeta


Leandro de Barros não se cansava de contestar o mundo “civilizado” no qual vivia e
expressar seu pessimismo com relação aos “novos tempos”. Escreveu esses versos
no poema A Urucubaca, que registra o seu pouco entusiasmo em relação ao ano de
1915, em decorrência dos conflitos gerados pela Primeira Guerra Mundial e seus
resultados para a cidade do Recife.
O poeta repete a sua opinião sobre o século XX, insistindo no trocadilho que
reafirmava sua contestação aos “novos” tempos: “este ceculo das luzes é tâo
escuro!”. Posiciona-se na defensiva com relação aos resultados da guerra que foram
comemorados pelas elites políticas e culturais como “conquistas da civilização”,
expansão dos avanços tecnológicos, reviravoltas e redefinições das relações de
poder a nível internacional.
Nesse sentido, o novo século trazia mudanças significativas que iriam
transformar os modos de vida de amplos segmentos da sociedade, e que foram
materializados nas inovações tecnológicas, urbanas, médicas, ideológicas e
políticas, afetando os mais diferentes campos da existência humana. As novidades
criadas e difundidas à época se alicerçavam na idéia de que ser moderno era
economizar tempo, dinheiro e energia.
Assim, a rapidez, ou melhor, a velocidade se tornou uma das principais
características da modernidade, fazendo com que, por vezes, fosse considerada a
mais importante do ser civilizado. 69 Atento a ícones dos novos tempos, não por
acaso, os automóveis e os balões, meios de transporte que impunham ritmos,
68
BARROS, Leandro Gomes de. A crise atual e o augmento do sello/ A urucubaca / O antigo e o
moderno. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.op.cit., p. 317.
69
SILVA, J. P. Asas cobrem os céus. In: XXII Simpósio Nacional de História, 2003. Livro de resumo-
XXII Simpósio Nacional de História: história, acontecimento e narrativa. João Pessoa: ANPUH/UFPB,
2003, p. 198.
61

dinâmicas urbanas, disciplinas laborativas e corporais, características de novas


cadências e descompassos estabelecidos nas tensas relações de grupos de
moradores do Recife, já haviam sido percebidos pelo poeta.
Essas duas novidades deram muito o que falar no “ceculo das luzes”. Ao
longo de todo o século XX acompanhamos que as linhas de montagem e a produção
em massa de veículos motorizados permitiram aos fabricantes produzir mais
produtos com menos custo, isso fez com que o automóvel se tornasse o meio de
transporte mais importante do século. O mesmo se aplica à invenção de máquinas
voadoras mais pesadas que o ar, e de motor a jato. Mesmo chegando à cidade em
escalas super reduzidas, essas duas inovações foram alvos de muita polêmica no
início do século XX.
De acordo com o memorialista Mário Sette, os automóveis que ganhavam as
ruas do Recife naquele início de século, ultrapassando “absurdamente” os limites de
velocidade - até então ditados pelos carros movidos à tração animal - causavam
muitas discussões entre os moradores. Estes falavam sobre os seus proprietários, o
barulho, a velocidade etc. O novo veículo havia se tornado a fonte para muitas
discussões.
O primeiro automóvel a circular no Recife chegou em 1903. O veículo era da
marca Renault, com alavancas de marchas exteriores e iluminado a carbureto. O
seu proprietário era o já citado doutor Otávio de Freitas, que passava triunfante
pilotando a sua máquina importada. Chegou causando espanto e admiração às
pessoas, que deixavam tudo o que estavam fazendo para verem o carro passar. À
noite nas calçadas era fato do dia a ser comentado:

- Ouvi dizer que o diacho foi da Rua do Crêspo à passagem da


Madalena em 15 minutos!
- Minha Nossa Senhora! Que desadôro de correr!
- É capaz de ir a Caxangá em meia hora...
- Se é! O capeta voa, D. Inácia. Não viu êle inda não?
- Vi, não. Me disseram que êle passa tôdas as manhãzinhas para o
hospital, mas é pela Santa Cruz.
- Aonde foi que o Dr. Otávio comprou êsse automóvel?
- Em Paris.
- Logo vi... Oh! Terra para mandar novidades! Cada moda!
[...]
- Mas, isso de automóvel não pega, não, compadre.
- Mode o quê?
- Fogo de palha... Vem êsse, babau, acabou-se. Só de amostra...
62

- Eu também acho. Então, aqui neste Recife. Isto é um lugar que não
dá mais nada... Daqui para a trás vocês vão ver. Já se foi o tempo das
vacas gordas. Me enforquem neste lampião se alguém comprar outro...
70
[...] (sic)

Caso a aposta do compadre fosse levada a sério, muitos enforcamentos no


lampião seriam necessários! Novamente as previsões daqueles que boquejavam o
insucesso do empreendimento automobilístico não se confirmaram. Ao contrário do
que desejavam ou previam os atentos observadores, os automóveis ganharam cada
vez mais espaço nas ruas da cidade, tanto que no ano de 1912 o Recife criou a sua
primeira Delegacia de Trânsito, órgão destinado a regular e fiscalizar o ir e vir dos
veículos ali existentes. 71
De acordo com Mário Sette, depois que o automóvel chegou à cidade, o
sumiço processual de antigos veículos, como os cupês, landôs, berlindas, vitórias e
cabriolés foi inevitável. Eles foram aos poucos cedendo espaço para os novos e
“velozes” motores, que assim como outras inovações do período se expandiriam por
todos os lugares. É bem verdade que esse crescimento foi bastante lento e gradual,
mas não deixava de chocar as pessoas onde quer que chegasse.
A expansão automobilística não aconteceu do dia para a noite. Rostand
Paraíso observa que até o ano de 1914, quando os bondes de tração animal e
trenzinhos a vapor, conhecidos como maxambombas, ainda faziam linha pela
cidade, era comum entrarem pela contramão, já que o número de automóveis era
bastante reduzido. 72 Entretanto, apesar de nos primeiros anos do século XX os
carros não terem tido expansão acelerada na cidade, as reformas da capital se
encarregaram do alargamento das ruas e do calçamento das vias públicas que
favoreciam aos veículos tomarem cada vez mais espaços, substituindo os antigos
meios de transporte movidos a tração animal.
Retomando o memorialista Mario Sette no diálogo apresentado acima,
percebemos que, embora o Recife não possuísse uma frota muito significativa, os
automóveis já entravam para o rol das novidades mais detestáveis por alguns
segmentos da população. Supomos que para essas pessoas sua presença estava
70
SETTE, 1958, p. 178-179.
71
Detran /PE – Departamento Estadual de Trânsito de Pernambuco. “Pernambuco Registra um
milhão de veículos”. 12 Nov. de 2002. Disponível em
<http://www.detran.pe.gov.br/noticias2002/news_12112002.shtml> 15 maio 2007.
72
PARAÍSO, 2003, p. 130.
63

intimamente relacionada à presença da modernidade na cidade. Por coincidência,


ou não, o primeiro automóvel a circular na capital pernambucana pertencia a um
médico, logo, sua velocidade, os acidentes que eventualmente causava, e até
mesmo seus proprietários, diziam bastante sobre os segmentos sociais que se
faziam contemplados com tais inovações. As propostas embutidas nas tecnologias
em ascensão no início do século estavam impregnadas de um universo que se
pretendia “civilizado”, que trazia perspectivas e valores novos, pretensamente
universais, e conseqüentemente se chocavam com outros valores e tradições.
Atentos a esses enfrentamentos interculturais e também materiais,
acreditamos que o universo dos membros das classes mais abastadas, que podiam
trazer seus automóveis de Paris, estava abissalmente distante do mundo daqueles
sujeitos que precisavam voltar para casa em bondes movidos a tração animal,
iluminados a carbureto. Sujeitos que, ao utilizar o meio de transporte que lhes cabia,
precisavam aturar os desmandos das cobranças indigestas de administradores
ingleses, bem como seus serviços mal prestados constantemente alvo de
reclamações. 73 Logo, entendemos que a presença do automóvel e o grau de
modernidade que esse representava podiam significar a afirmação de valores,
tradições que desejavam ser assimiladas e aceitas na cidade. Indubitavelmente
essas tradições se chocavam com outras, menos modernas, muitas vezes taxadas
de “rústicas”, “atrasadas” e, portanto, pretensamente passíveis de serem extirpadas.
Retornando às inovações que adentravam a cidade, as novidades temerárias
não se limitavam à chegada do automóvel. Outra invenção, igualmente criticada no
folheto Casamento a Prestação e que causou espanto e fascinação aos cidadãos da
cidade, foram os balões. Invento engenhoso, era mais um dos símbolos que
aproximava a capital dos tão sonhados “tempos civilizados”.
Desde o final do século XIX, a exemplo do que já acontecia em cidades como
Lisboa e Paris, o Recife presenciava tentativas desafiadoras de fazer funcionar
empreendimentos aeronáuticos na cidade. Em 1868, a população viu pioneiramente

73
Rostand Paraíso informa que o gerente da Brazilian Street Railway, um inglês chamado Fletcher
era uma pedra de gelo diante das inúmeras reclamações, queixas e protestos, contra as
maxambombas. Impassível, sem tomar qualquer providência, ele se limitava a dizer: “Passageira não
estar satisfeita vai a pé...”. PARAÍSO, 2003, op.cit., p. 133.
64

Júlio Burlay levantar vôo no seu balão até certa altura e fazer acrobacias no ar preso
a uma corda pendurada na barquinha. 74
Anos depois, em 1905, a cidade recebeu a visita do capitão português
Antônio da Costa Bernardes, o famoso Ferramenta, que chegou disposto a
demonstrar sua coragem e também a funcionalidade de seu aeróstato. De acordo
com Mário Sette, a presença desse português deu muito que falar, pois o público
comparecia em peso às suas apresentações. Muitos se decepcionaram, pois nos
dois primeiros dias as tentativas de Ferramenta foram frustradas e ele não decolou,
dando mote para alguns expectadores mais criativos comentarem com ironia:

O pau rolou,caiu,
Seu Ferramenta não subiu. 75 (sic)

Atribuíram o insucesso à má qualidade do gás da companhia de iluminação,


que segundo Mário Sette era fraco. Nada obstante, nos outros dias, o português
obteve sucesso e sobrevoou triunfante pelos céus da cidade.
Apesar do êxito das apresentações do Seu Ferramenta, ninguém obteve mais
sucesso nos céus do Recife do que o legítimo aeronauta pernambucano Zé da Luz.
Capitão José Pereira da Luz, como era formalmente conhecido, foi um músico
asilado do exército que, em outubro de 1906, levou a cidade ao delírio ao realizar
um sobrevôo espetacular em um balão esférico pelo céu da capital pernambucana.
O Capitão era um sertanejo nascido em Limoeiro do Norte, pouco antes da Guerra
do Paraguai. Retirante da seca de 1877, foi um sobrevivente que realizou
76
incontáveis atividades durante sua vida.
Conta Mário Sette que o aeronauta vendeu um piano, juntou dinheiro, seduziu
amigos para entrarem em um empreendimento e mandou vir da Europa um balão
igual ao do Ferramenta. 77 Segundo o memorialista, a chegada desse balão foi uma
festa para o Recife antigo, tendo saído dos armazéns da Alfândega num carroção
todo enfeitado, com uma banda do exército à frente.

74
SETTE, 1958, op.cit., p. 291.
75
Ibid., p. 292.
76
WANDERLEY, Eustórgio.Tipos Populares do Recife Antigo. 2ª série, 2ª edição. Recife: Colégio
Moderno, 1953-1954, p. 213-218.
77
SETTE, 1958, op.cit., p. 293.
65

Como se tratasse de um pernambucano era [...] natural que aparecessem


os incrédulos, os descontentes e os críticos, somando todos êles apenas
uma classe: os invejosos. Remoques, descrenças, ironias, fingidos receios...
Até para a polícia apelaram. Tornava-se necessário impedir essa doidice.
Onde já se vira um filho de Pernambuco voar? Que o fizessem alemães,
gregos, portuguêses, chinas, argentinos, vá lá. Ou mesmo filhos de outros
estados brasileiros. Mas. Daqui!! Gente do Capiberibe ou do Una, de
Garanhuns ou de Afogados de Ingàzeira, qual! [...] 78 (sic)

Apesar da torcida contra a investida aerostática de Zé da Luz, quando o seu


balão subiu aos céus, a população entusiasmou-se, vibrou, explodiu, saudando-o
com vivas, palmas, gritos, gestos, foguetes, música. 79 Posteriormente, esse
aeronauta seria rememorado pelos pernambucanos, pois à sua maneira trazia uma
novidade tecnológica que outras cidades do mundo já conheciam, particularmente
aquelas relacionadas ao campo da aeronáutica.
Muitos recifenses orgulhavam-se dos feitos do Capitão Zé da Luz, pois ele e
suas evoluções aéreas faziam-lhes sentir a chegada dos ares do progresso, ao
menos do progresso aeronáutico. Outros moradores da cidade, no entanto,
observavam distantes, reticentes e, muitas vezes, descrentes desse
desenvolvimento. De qualquer modo, orgulhosos e descrentes viviam em um mundo
que não era apenas veloz, o mundo voava!
Concomitantemente aos balões, as inclinações para a exaltação dos inventos
modernos penderam, em 1903, para os empreendimentos da aviação, isso ocorreu
durante a visita de Santos Dumont, que, a caminho da Europa, ancorou no Recife
por algum tempo. O periódico Lanterna Mágica não deixou de publicar e comentar a
presença do aviador 80 :

78
SETTE, 1958, op. cit., p. 293.
79
Ibid., p. 294.
80
Lanterna Magica. Recife, 1903. Ano XXII, Número 744. p 4.
66

Figura 5 – Charge do Periódico “Lantena Mágica” sobre a cobertura jornalística da passagem


do aviador Santos Dumont pela cidade.

Sempre com sua veia humorística bastante acentuada, o periódico destacou a


presença do aviador na cidade, entendida ali como sinal de prestígio, já que o
condecorado brasileiro era de renome internacional e bastante prestigiado no mundo
inteiro. Na gravura publicada pela Lanterna Mágica, percebemos vários fotógrafos
tentando registrar sob diferentes ângulos a presença de Santos Dumont no Recife.
O aviador sequer aparece na gravura, que prima por mostrar os muitos profissionais
que realizavam a cobertura do evento, cada um tentando encontrar um bom ângulo,
mesmo que fosse para registrar o navio ou a lua!
Provavelmente, além de uma possível sátira, o jornal pretendia enfatizar a
especificidade da cobertura jornalística acerca da presença do importante aviador na
cidade. Afinal, fora realizada por um contingente significativo de fotógrafos, o que
67

naquele período constituía-se algo pouco comum, pois a fotografia com finalidade
jornalística era usada há muito pouco tempo. 81 Deduzimos, portanto, que a presença
do aviador, somada à significativa cobertura jornalística e fotográfica indicavam
sinais do progresso!
Com isso percebemos que a necessidade de se mostrar próximos e íntimos
aos avanços tecnológicos e infra-estruturais é patente ao pesquisar as fontes do
Recife no início do século XX. Havia um desejo acentuado nas classes dominantes
da capital pernambucana em estar sintonizada com as mudanças que ocorriam nas
grandes cidades do mundo. Fosse promovendo reformas urbanas e sanitárias,
incorporando de novos locais de lazer e entretenimento, ou mesmo através da
implementação da tecnologia aeronáutica ou automobilística, o que valia eram as
tentativas de se inserir nos tempos modernos.
No entanto, é necessário lembrar que, de acordo com os grupos dominantes,
para se tornar “civilizado” não bastariam as inovações físicas ou tecnológicas,
concomitante a ela havia também a necessidade de reformar costumes, hábitos,
comportamentos e valores dos moradores da cidade. Essas investidas às vezes
eram sutis, divulgadas pelos veículos de comunicação através de lançamentos da
moda, anúncios, propagandas; outras vezes, truculentas, coercitivas, repressivas,
aplicadas pela polícia, impostas aos grupos menos favorecidos de cima para baixo.
Não obstante, essas ofensivas nem sempre foram respondidas com silêncios
ou consentimentos explícitos, ao contrário, alguns segmentos da população se
mostravam profundamente invadidos com tais pretensões das classes mais
abastadas e respondiam suas investidas com estranhamento, traduzido em
satirizações, zombarias e diminuição dos valores que tentavam ser impostos. De
diferentes maneiras esses segmentos sociais buscavam mostrar que suas tradições
e valores eram outros e que estavam muito distantes daquilo que se queria anunciar
como universal e homogêneo.
O poeta Leandro Gomes era um desses sujeitos que, através de seus
folhetos, marcavam lugares sociais de grupos que consideravam absurdas as

81
Kubrusly informa que em 1897, faltando apenas quatro anos para terminar o século, o New York
Tribune do dia 21 de Janeiro publicava a primeira imagem impressa sem “auxílio da mão do artista”.
De acordo com o autor a reprodução gráfica transformou definitivamente a fotografia num produto de
massa. KUBRUSLY, Cláudio A. O que é fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 72.
68

investidas que fervilhavam na urbe. Barros apresenta em suas narrativas tradições


fundamentadas e consolidadas, afirmando com veemência e convicção seus pontos
de vista. Estranhava, insinuava, brincava, e principalmente ria das “modernidades”
em voga, deixando claro o que pensava e quão absurdas eram as inovações. Tudo
isso de maneira bastante convicta e também estratégica, pois levava muitos dos
enfrentamentos para o campo religioso, e dali deixava claro com muita persuasão o
quanto seu opositor era ridículo, e destoava dos valores e modos de vida
experienciados por ele e por pessoas que, assim como ele, possuíam valores
diferentes e totalmente distantes daqueles ali praticados.
Nesse sentido, no próximo capítulo tentaremos evidenciar algumas dessas
tensões. Trabalharemos principalmente com fontes recolhidas pelos senhores
folcloristas, enfatizando distintos olhares sobre o comportamento do clero católico na
cidade, mostrando que o poeta criticava impiedosamente as posturas de alguns
religiosos que, inseridos no processo de transformação e modificação da urbe,
também modificavam suas atitudes e práticas, cometendo erros imperdoáveis.
Barros fazia parte de um grupo de pessoas que viam ações e práticas
reprováveis nos novos tempos e não se calavam diante das novidades que lhes
causavam estranhamento e indignação, não paravam de criticar um mundo que, em
sua opinião, precisava de freios!
69

Segundo Capítulo:
Peleja entre folcloristas e poetas: leituras acerca de
posturas e comportamentos do clero

No primeiro capítulo, mostramos que, no início do século XX, a cidade do


Recife se encontrava inserida num processo de transformações, no qual não
somente sua infra-estrutura mudava, mas também valores, atitudes, e desejos de
seus moradores sofriam modificações, principalmente em decorrência da chegada
de elementos da “modernidade”. Evidenciamos que, com o processo de saída do
campo para a cidade, o Recife recebia novos moradores que traziam, juntamente
com esperanças de sobrevivência, modos de vida e valores que, muitas vezes,
entravam em choque com aquilo que ali encontravam.
O poeta Leandro Gomes de Barros era um dos milhares de retirantes que ali
chegavam e tomavam a cidade como um novo lugar para viver. Seu grande
diferencial foi conseguir, através dos folhetos que imprimia, e vendia, dar visibilidade
a posicionamentos que não eram somente dele, mas de todo um grupo social, que
criticava, manifestava-se e insurgia-se contra valores que não considerava
apropriados, mas se encontravam em pleno processo de difusão na cidade.
No presente capítulo, apresentamos e discutimos algumas especificidades
dessa religiosidade, de modo particular as peculiaridades dessa manifestação, a
qual se mostrava, ao que parece, calcada à prática cotidiana daqueles que a
difundiam, tanto na defesa e exaltação da religião católica e dos valores cristãos, em
determinados processos, quanto na manifestação de ferrenhas críticas aos valores
em profusão na cidade, em outros contextos.
Nesse capítulo, especialmente, iniciaremos as discussões com uma das
temáticas mais peculiares das narrativas, que ajudam a compreender sua relação
com elementos do campo religioso ali presente; enfatizaremos os enfrentamentos
direcionados ao clero católico, justamente para mostrar que a religiosidade que as
pessoas manifestavam muitas vezes se chocava, inclusive, com o ‘padrão’ religioso
ali presente.
70

Devemos ressaltar que acompanhamos evidências em folhetos e, ao contrário


de muitas interpretações, não foi verificada nem total “subserviência” à Igreja
Católica, nem tão pouco um “anticlericalismo” declarado e impetuoso. Observamos
apresentações de posturas marcadas pelos modos de ver e viver o mundo daqueles
que produziam as narrativas e, apesar de pregarem e difundirem crenças e práticas
ligadas à religião católica, não deixavam de repreender, satirizar e condenar
posturas que consideravam incorretas, mesmo que estas fossem praticadas pelo
clero, evidenciando uma religiosidade específica que muitas vezes fugia do modelo
que se pretendia exclusivo.
Na tentativa de buscar evidências sobre essas diferentes percepções e
atitudes diante da religiosidade que se praticava na cidade, nesse capítulo
dialogamos com dois tipos de fontes: o primeiro, registros recolhidos e comentados
por folcloristas, intelectuais que se preocupavam em coletar e avaliar aspectos da
poesia popular que consideravam “prestes a serem perdidos”, portanto, passíveis de
recolhimento para suposta preservação 1 ; e o segundo, conforme já foi citado, eram
narrativas produzidas por poetas sertanejos que sobreviviam de sua produção,
escreviam e imprimiam visões de mundo em pequenos folhetos, de diferentes
temáticas, inclusive a religiosa. Esses materiais foram produzidos por distintos
sujeitos, que falavam de lugares sociais diferentes. Tento, a partir de sua
investigação, esclarecer relações e levantar questões acerca das tensões de seus
posicionamentos.
O texto está dividido em dois subcapítulos: no primeiro, faço um histórico
sobre a atuação dos folcloristas, os interesses pela cultura popular, com destaque à
suas aproximações com a poesia dos folhetos, tendo em vista a busca de uma
nacionalidade brasileira. Trato, ainda, de forma específica, sobre a produção de
Leonardo Mota, um dos folcloristas que mais se destacou na coleta e comentários
da literatura de folhetos, a partir de sua obra, enfatizo principalmente, aspectos que
tangem à religiosidade nos folhetos e suas opiniões com relação ao comportamento
dos religiosos. Na segunda parte do capítulo, faço um contraponto entre a posição
do folclorista, relacionada à obra de Leandro Gomes de Barros. Analiso algumas de

1
CERTEAU, Michel de. A beleza do morto In: A cultura no plural. Tradução Enid Abreu Dobránszky.
Campinas, SP: Papirus, 1993.
71

suas histórias e procuro, a partir de sua produção, surpreender relações e tensões


entre poetas e intelectuais evidenciando os diferentes lugares de onde falavam e
manifestavam diferentes sentidos e significados de religiosidade.

2.1. Poesia e Religiosidade nas Letras dos Folcloristas

Perceber experiências e vivências de determinados grupos socialmente


excluídos que não tiveram abundantes registros de suas manifestações religiosas na
sociedade nem sempre é empreendimento dos mais simples. Evidenciar
sentimentos de sujeitos que tiveram pouca aproximação com os códigos letrados
pode ser tarefa complicada e às vezes escorregadia.
No processo de aproximação com as fontes, a necessidade de apreender
elementos da experiência religiosa difundida na literatura de folhetos em finais do
século XIX e início do século XX no Recife, recorremos a registros e memórias
deixadas pelos folcloristas que recolheram, comentaram e avaliaram pormenores
dessa produção material. Os acervos, registros e estudos deixados por esses
intelectuais são de importância fundamental, pois, além de conterem narrativas não
encontradas em outros documentos, trazem consigo juízos, normas, valores e
interpretações sobre a religiosidade que consideravam “retratada” no material
recolhido. Através de sua produção, mostram estranhamentos e as tensões que
possibilitam avaliar os lugares de onde e para quem falam.
Ao examinar de perto algumas publicações e “impressões” deixadas por
folcloristas e tomando os cuidados que os historiadores devem adotar para avaliar
as fontes, percebemos se tratar de concepções de mundo bastante diferentes, ou
completamente opostas àquelas que os poetas expunham em seus folhetos.
Todavia, esse diálogo com as fontes produzidas por folheteiros e folcloristas nos
ajudou a questionar de onde falam e para quem falam esses sujeitos, que lugares
pretendiam ocupar na sociedade do Recife, quais os significados de tensões
verificadas em suas diferentes, e opostas, visões de mundo.
72

2.1.1. O folclore e a busca do “popular”: registros de fontes


escassas

No final do século XIX, o Brasil foi marcado por produções acadêmicas que
privilegiavam correntes de pensamento vindas da Europa como o cientificismo e
positivismo, utilizadas para explicar a sociedade. Estas correntes levaram vários
intelectuais a se preocuparem com o caráter da sociedade brasileira, que, formada
por uma mistura de raças, e localizada numa região tropical, não reunia as
condições propícias para o desenvolvimento e, uma vez comprovada a veracidade
das teorias raciais, a sociedade estaria fadada ao fracasso.
Levando em consideração as peculiaridades da composição racial da
população brasileira, que não se encaixava nas teorias científicas da época, partiu
das inquietações de alguns intelectuais o interesse pela “construção” de uma
identidade nacional, baseada no resgate das origens do país, no intuito de buscar
novos caminhos para repensar a História e, a partir disso, compreender a sociedade
brasileira e seu devir 2 .
Nesse contexto de mudança de século, o país passava por transformações
políticas, econômicas, estéticas, culturais, dentre outras, produzidas no curso das
lutas desencadeadas pelos movimentos republicano e abolicionista. Como
acompanhamos no capítulo 1, no Recife essas transformações eram visíveis desde
os últimos anos do século XIX através de aceleradas mudanças que imprimiam uma
evolução urbana à cidade.
A partir das alterações materiais, vitais para as atividades econômicas e
satisfação das crescentes necessidades de conforto da aglomeração urbana, houve
melhoramento do porto sobre o qual se haviam concentrado as expectativas de
amplos setores urbanos, dado que essa realização representava o fortalecimento
dos vínculos econômicos locais com o mercado mundial e inseria a cidade num
círculo cultural que tinha Paris como centro.

2
DA MATTA, R. Digressão: A fábula das três Raças, ou o problema do racismo à brasileira. In:
Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981.
73

Com o processo de modernização cada vez mais acentuado, havia em alguns


grupos de intelectuais um constante sentimento de que as tradições e valores
culturais estavam “prestes a serem perdidos” 3 . Com base nesse sentimento de
perda, germina a urgência em “adentrar” o interior e coletar os elementos mais
arraigados na “alma popular”, “antes que se perdessem”.
O crítico literário e historiador da literatura Sílvio Vasconcelos da Silveira
Ramos Romero foi um dos primeiros intelectuais a reconhecer e incentivar a busca e
registro dos aspectos mais diversos das tradições culturais brasileiras. Em meio a
suas produções sobre sociologia, história e crítica literária, filosofia e política,
estiveram presentes também produções sobre o folclore brasileiro e a poesia
popular.
Romero queria desvelar o Brasil, irritava-se com aqueles que “macaqueando”
inconsideravelmente a frase “a França é Paris” diziam “o Brasil é o Rio de Janeiro!”.
Insistia que havia tendências diversas das províncias do Norte e do Sul, e reforçava
que tais diferenças deveriam ser mantidas. Valorizava as diferenças porque
acreditava que a grandeza futura do Brasil viria do desenvolvimento autônomo de
suas províncias. Tinha convicção de que os impulsos originais que aparecessem nos
estados deveriam ser ajudados, aplaudidos, pois daí viria o nosso progresso:

Não sonhemos um Brasil uniforme, monótono, pesado. Indistinto, nulificado,


entregue à ditadura de um centro regulador das idéias. Do concurso das
diversas aptidões dos Estados é que deve sair o nosso progresso (...).
Continuai, continuai, poetas e romancistas, estudai os costumes
provincianos; reproduzí nos vossos cantos e nas vossas novelas o bom
sentir do povo, quer do norte, quer do Sul; marcai as diferenças e os laços
existentes entre estas gentes irmãs, que são o braço e o coração do Brasil
(...) 4

Esse recorte é interessante porque mostra postura contrária a alguns


intelectuais que se interessavam por construir referências homogêneas,

3
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. O pântano e o Riacho: A formação do espaço público no
Recife do século XIX. 2001. Tese de Doutorado em História Social - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Orientador Prof. Dr. Marcos
Antônio da Silva, p. 36.
4
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira: Contribuições e estudos gerais para o exato
conhecimento da literatura brasileira. Primeiro Tomo – 3º Edição aumentada. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1943, p. 135.
74

estabelecidas a partir do Rio de Janeiro para a nação como um todo. Seguindo em


diferente direção, Romero não se interessava pela “ditadura do centro”, mas pela
exaltação da pluralidade de idéias, as quais deveriam ser buscadas em todas as
partes de norte a sul, caracterizando-se as diferenças, que deveriam emanar no
“bom sentir do povo”, da “gente tão diversa”, “mestiça”, “plural”, “ampla”, “difícil de
ser definida”, que se encontrava “escondida” por todo o território nacional e, que,
segundo o folclorista, merecia ter seus cantos e novelas reproduzidos, estudados.
Ciente do lugar, da importância do pleito e dos limites de sua ação, apelava àqueles
que poderiam “resgatá-las”: “continuai, continuai...”.
Percebemos, nessa convocação de Romero, uma extrema necessidade de
encontrar o “povo”, “único espírito capaz de preencher a imagem da nação”. Um
povo que não poderia ser identificado isoladamente como o “caboclo, negro, luso,
sertanejo, matuto, caipira, praieiro”, etc, pois, de acordo com o autor, “o Brasil não é
nada disto; porque é mais do que tudo isto”. Romero acreditava que haveria um
espírito geral que compreendia e dominava: “o espírito popular”, subjetivo à nação,
que não podia ser fabricado, devia ser espontâneo, estar “contido no sentir especial
do brasileiro”. 5
O crítico literário defendia de tal forma a valorização do homem simples do
povo, que chegava a enfrentar a elite dos intelectuais da capital e das grandes
cidades que insistia em desqualificar e falar mal das “gentes da roça, sertanejas ou
não”, sem levar em consideração que “há quatro séculos, era ela quem trabalhava e
produzia, sustentando o Brasil como povo que vive e como nação que se defende”. 6
Porém, é importante indagar por que essa defesa intransigente. E, afinal,
quem era a “gente” da qual falava? Já que o “povo” que Sílvio Romero considerava
tão importante tinha alguns “defeitos” que, ao seu modo de ver, precisavam ser
corrigidos para que somente assim pudesse alcançar a “civilização” e uma possível
“identidade nacional”. De acordo com a perspectiva e aspiração do folclorista,
faltava-lhe:

5
ROMERO, 1943, op.cit., p. 132.
6
ROMERO, Sílvio. O Brasil Social. In: O Brasil Social e outros estudos sociológicos. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2001, p. 89.
75

[...] hierarquização social, o encadeamento das classes, a solidariedade em


geral, a integração consensual, a disciplina consciente dum ideal comum, a
homogeneidade íntima [...] o aferro ao trabalho, a base econômica, livre,
ampla e segura, e, mais a masculinidade da vontade, o espírito de iniciativa,
a audácia do esforço, do empreendimento, a luta pelo progresso e bem
estar.
Notam-se de sobra a indisciplina, espírito de clã, a divisão, a desarmonia, a
falta de solidariedade, de consciência coletiva popular. 7

Percebemos, por meio das críticas do estudioso, conhecido por empreender


constante busca pelo “espírito capaz de preencher a imagem da nação”, que,
quando finalmente sua procura terminava e o “povo” era encontrado, nem sempre
correspondia às expectativas idealizadas por seus entusiastas, pois a representação
de povo: “disciplinado”, “consciente”, “aferrado ao trabalho”, “audaz”, “macho de
corpo e espírito” e, principalmente, “empreendedor do progresso e do bem estar”,
“modelo perfeito” para cumprir papel patriótico, cabia apenas em seus discursos e
expectativas. Na prática, o “povo” se apresentava demasiado diferente daquilo que
procuravam, e ao encontrá-lo se chocavam por ser excessivamente diferente. Não
conseguiam percebê-lo com suas características e especificidades e, a partir de
então, tentavam adequá-lo, já que só serviria à medida em se enquadrasse aos
8
ideais desses estudiosos.
A partir dessa evidência, podemos vislumbrar a postura desse intelectual ao
observar seu “objeto” de estudo, na figura do povo, pois, se não conseguia percebê-
lo dentro de uma situação específica, contexto, coerência, dinâmica, também não
entenderia os significados de suas manifestações, lançando sobre elas um olhar de
cima para baixo, como o intelectual que deseja registrar suas manifestações pelo
simples valor incalculável do “exótico”.
Assim como Sílvio Romero, outros folcloristas partiram para os lugares mais
interioranos do Brasil no intento de encontrar o “povo”, e assim tentar “salvar” suas
origens que consideravam a gênese cultural do país. Nesse afã de encontrar a raiz
do povo brasileiro, recolhiam o material que consideravam original para dar forma e
feição à nação, coletavam canções, histórias em prosa e verso, autos, festas,

7
ROMERO, 2001, op. cit., p. 90.
8
CERTEAU, 1993, op.cit., p. 56.
76

danças, tradições, usos, rezas, crenças, superstições, dentre outros, como um


verdadeiro “thesouro esquecido [...], a fonte verdadeira da vida da nossa raça” 9 .
Para esses estudiosos interessados na cultura popular, tão importante quanto
buscar este “thesouro” era organizar o modo de coletá-lo, para que não se perdesse
nenhuma especificidade de seu conteúdo. Ao examinarmos produções sobre o
folclore, percebemos um grande cuidado dos estudiosos no momento da coleta, na
tentativa de manter a “autenticidade” da mesma. Um claro exemplo pode ser
percebido no livro Manual de Coleta folclórica de Renato Almeida, publicado pela
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, que recomenda:

(...) anote cuidadosamente todas as informações e descrições que lhe


fizeram várias pessoas sôbre o mesmo acontecimento. Não se limite a
tomar apontamentos, para depois reconstituir uma versão, porque nesse
caso essa versão será sua. Você desrespeitou a inviolabilidade dos textos
que ouviu, a santidade dos textos como já foi chamado, para mostrar a
importância do registro fiel. 10 (sic) (grifo nosso)

Percebemos, nesse manual escrito para leigos que recolhiam aspectos da


cultura popular de suas cidades, o cuidado e repetidas recomendações de que não
houvesse interferências no material recolhido, para que a “santidade” do registro
fosse mantida e houvesse o mínimo de intromissão possível por parte da pessoa
que realizava a coleta. O termo “santidade” utilizado por Almeida evidencia o quanto,
para esses estudiosos, chegava a ser “sagrado” o objetivo de não interferir nas
manifestações recolhidas.
Para os pesquisadores que trabalham com as coletas dos folcloristas, o
cuidado tomado na hora do recolhimento se mostra muito importante, pois as
descrições encontradas nesses materiais geralmente são pormenorizadas, com
exposições completas dos ritos, festas, cantos, contos, danças, dentre outros. No
entanto, como foi afirmado anteriormente, o grande problema desse tipo de material
foi a forma estanque como os estudiosos percebiam as culturas com as quais
interagiam.

9
ARINOS, Affonso. Lendas e tradições brasileiras. São Paulo: Typographia Levi, 1917, p. 4.
10
ALMEIDA, Renato. Manual de Coleta Folclórica. Rio de Janeiro, Oficinas Gráfica Olímpica Editôra
Luiz Franco, 1965, p. 34.
77

Nesse sentido, o historiador inglês Edward P. Thompson apresenta o cuidado


que devemos tomar ao estudar costumes e hábitos, transmitidos oralmente,
recorrendo à produção dos folcloristas:

De valia, desde que utilizado com cautela, o material descritivo recolhido


pelos folcloristas oitocentistas ainda pode ser útil. Todavia, o costume e o
ritual foram freqüentemente encarados pelos cavalheiros paternal e
estrangeiro [...] a partir de uma e por cima de uma fronteira de classe, sendo
ainda divorciados de sua situação ou contexto". 11

O autor esclarece os cuidados e precauções que o historiador deve tomar ao


trabalhar com este tipo de fonte, já que, nos procedimentos de coleta esses
estudiosos terminavam por desprover dos acontecimentos seus significados.
Reforça seu uso como documento, somente a partir de novas perguntas que
procurem recuperar os costumes perdidos e as crenças que os embasavam,
devolvendo-os ao seu contexto. 12
Atentos a possíveis armadilhas nas fontes do folclore, retornamos ao texto
para evidenciar a “busca do nacional”, realizada por outros estudiosos brasileiros. A
professora Mariza Lira, nascida em 1899, na cidade do Rio de Janeiro, era uma
dessas folcloristas, apaixonada pela busca dos aspectos do Folclore no Brasil, foi
diretora da Sociedade Luso-Brasileira de Etnografia e componente da Comissão
Nacional de Folclore, um organismo que promoveu Campanha Nacional destinada a
defender o patrimônio folclórico do Brasil e a proteger as artes populares.
Esta comissão trazia uma proposta de “atuação urgente”, pois, de acordo com
seus intelectuais, no folclore se encontram os elementos culturais autênticos da
nação e, com o avanço da industrialização e a modernização da sociedade, havia
uma séria ameaça do seu desaparecimento, devendo a cultura do povo ser
“intensamente divulgada e preservada”. Mariza Lira evidenciava o incentivo às
buscas e aos estudos do popular na dedicatória do seu livro Migalhas folclóricas
publicado em 1951, ao ambicionar “que estas migalhas folklóricas possam fazer
parte do pão de cada dia dos folkloristas do Brazil”. 13

11
THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organizadores: Antônio Luigi
Negro e Sérgio Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 231.
12
Ibid., p. 234.
13
LIRA, Mariza. Migalhas Folklóricas. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Ltda, 1951.
78

A folclorista tenta despertar nos companheiros de trabalho o estímulo para


prosseguir em suas constantes buscas pelo “ser nacional”, pois até aquele momento
haviam conseguido coletar apenas “migalhas”, havendo ainda muito a ser recolhido.
Apreendemos, da mesma forma, que, mesmo as descobertas sendo “poucas”, ainda
assim, deveriam servir de alimento básico para aqueles que freqüentavam a mesma
expedição.
Dentre as diferentes parcelas dessas “migalhas” coletadas por Mariza Lira, há
destaque especial para a poesia que, segundo a autora, possui um exaustivo
registro de nossa vida político-social, servindo como documento “valiosíssimo”, já
que o brasileiro “sempre” revelou apreciável vocação poética, que acompanha sua
existência “desde o berço ao túmulo”, iluminando a “simplicidade” da nossa gente:

Ainda de colo, ouve os versos das cantigas de ninar, mais tarde aprende os
das cantigas de roda, na idade adulta, sabe versos para cantar nas festas
profanas, nas cerimônias religiosas e até mesmo ouvindo as ladainhas e
orações conforme a nossa tradição mística. 14 (grifo da autora)

Observamos, por intermédio desse recorte, que, segundo as indicações de


Lira, a poesia popular estava presente no cotidiano do brasileiro desde o berço,
quando, ainda sem saber falar direito, o recém nascido e a criança ouviam cantigas
de ninar que, cantadas pelas mães através de melodias, versos e canções simples,
criavam um clima de aconchego, fazendo os pequenos dormir; Quando maiores, as
crianças também podiam participar das cantigas de roda, momentos de brinquedo,
no qual, dando as mãos, formavam uma roda e cantavam todas juntas, podendo ou
não executar coreografias acerca das letras cantadas; Ao se tornarem adultos, os
versos tanto podiam fazer parte da vida profana do sujeito durante festas e
diversões, como também da vida sagrada, no momento de fazer orações ou
ladainhas, suplicando aos santos e mártires da Igreja a intervenção junto a Deus
pelos fiéis.
Acompanhando as sugestões da folclorista Mariza Lira, percebemos alguns
contornos da utilização da poesia no cotidiano das pessoas. No entanto,
ressaltamos que, para além do conteúdo “divertido”, “dócil” e “quase infantil”
observado pela autora, a poesia popular podia também assumir, em outros
14
Ibid., p. 25.
79

contextos, um caráter rebelde, contestatório e até mesmo subversivo, imprimindo em


suas formas questionamentos, visões de mundo e posicionamentos sociais, que se
relacionavam e se chocavam com os diferentes aspectos da sociedade, como é o
caso da poesia de Leandro Gomes de Barros, que estudaremos mais abaixo.
Logo, vislumbramos que, por esses contornos múltiplos e peculiares, as
produções poéticas podem ser utilizadas, nessa pesquisa, como suporte para
problematizar sentimentos, esperanças, temores, valores, formas de ver, pensar e
sentir o mundo do segmento da população que o produzia e dava-se a ver a partir
de sua obra.
Essa dimensão da poesia relacionada à prática cotidiana de grupos sociais
espalhados pelo Brasil também foi registrada por outros intelectuais. Basílio de
Magalhães foi um deles, mineiro nascido na cidade de São João del Rei em 1874,
muito se dedicou aos estudos do populário nacional, inclusive sua poesia escrita.
Diplomou-se pela Escola de Minas de Ouro Preto (MG), foi professor de História em
São Paulo e no Rio de Janeiro.
Em seu Folk-Lore no Brasil 15 , publicado em 1928, aborda alguns aspectos
consideráveis sobre a poesia popular brasileira fazendo breve mapeamento do
material encontrado sobre essa produção poética. Em suas considerações afirma
que, além de algumas notas sobre a “nossa literatura de cordel” encontradas em
Sílvio Romero: Novas contribuições para o folk-lore brasileiro, somente conhece o
juízo de Paulo Barreto (pseudônimo literário: João do Rio) no final de um capítulo de
seu livro A alma encantadora das ruas (1908), em que, sob o título “A musa das
ruas”, trata da nossa poesia bárdica.
O capítulo sobre a poesia encontrada, e enaltecida pelo folclorista, trata,
especialmente, de dois poetas: Eduardo das Neves, palhaço, poeta, cantor,
compositor e violonista, nasceu em 1874 no Rio de Janeiro; e Catulo Cearense,
além de violonista, flautista, letrista, cantor, poeta e estivador do cais do porto,
morreu em 1918. Talvez pela posição social ocupada por ambos, suas produções
não foram muito valorizadas, permanecendo no “esquecimento”, ou sendo
“adotadas” por outros poetas.

15
MAGALHÃES, Basílio de. O Folk-Lore no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Quaresma, 1928.
80

Nesse sentido, é interessante atentar para o que Basílio de Magalhães


observou sobre a circularidade das poesias na sociedade da época:

[...] Dessas produções, caem algumas em olvido, como as politicas e as


carnavalescas, que vão substituindo por outras novas, permanecendo,
todavia, no galarim, com assombrosa vitalidade, as lyrico-eroticas mais
antigas. Note-se o que acontece com os termos e phrases do calão popular:
- nascem nas alfurjas ou nas saburras e vão insensivelmente penetrando os
altos salões, e dahi passam a ser apadrinhados por escriptores de boa nota
[...] 16 (sic)

O fragmento Recortado do texto de Magalhães é muito relevante, pois nos


coloca diante das relações e tensões culturais vislumbradas por muitos estudiosos
que trabalham com a poesia popular. A partir do recorte, podemos depreender que
havia uma renovação nas canções e poesias que faziam parte do universo de
divertimento e brincadeira - com maior expressividade para aquelas de cunho
político e carnavalesco - no entanto, as de cunho lírico-erótico sempre estavam em
evidência.
Contudo, notamos que, de acordo com o folclorista, os elementos advindos
das classes populares não permaneciam simplesmente nessas camadas, mas
penetravam sorrateiramente, nas “altas rodas”, servindo de fonte de inspiração, de
“mote” para escritores “de boa nota” para quem, de acordo com a observação de
Magalhães, as formas de origem popular serviam de fonte para as produções
eruditas.
As relações entre uma cultura produzida nas “alfurjas” ou “suburras” e que
vão invisivelmente penetrando os altos salões apadrinhados por “escritores de boa
nota” é uma discussão impossível de não ser enfrentada quando se trata de estudar
a literatura popular. Na perspectiva apontada pelo autor, depreendemos uma tensão
entre os locais de produção da poesia e apropriação dos escritores ao “batizar” o
popular.
Nesse sentido, é interessante indicar que a discussão sobre circulação
cultural, e de forma específica poética, entre camadas dominantes e dominadas, na
literatura de cordel e de folhetos, já foi motivo para muitos debates e controvérsias

16
MAGALHÃES, 1928, op. cit., p. 13.
81

no interior dos estudos sobre cultura popular. Dois autores em especial, os franceses
Robert Mandrou e Geneviève Bollème, debateram em seus estudos sobre a
biblioteca “azul” de Troyes. Possuíam o mesmo objeto de estudo: a literatura de
cordel, mas abordado de maneira diferente.
Robert Mandrou, nos livros De la culture populaire aux XVIIe et XVIIIe e La
bibliothèque bleue de Troyes (1964 e 1975), propôs-se a estudar não a cultura
produzida pelas classes populares, mas a cultura imposta às classes populares e
concluiu que essa literatura teria alimentado por séculos uma visão de mundo
banhada de fatalismo e determinismo, de maravilhoso e misterioso, impedindo que
seus leitores tomassem consciência da própria condição social e política,
desempenhando uma função reacionária.
Ao contrário de Mandrou, Geneviève Bollème, no livro La Bibliotèque bleue de
Troyes (1975), apesar de não contestar a origem erudita dessa literatura, que fora
buscada nos acervos antigos da imprensa de Troyes, por impressores que
“exumaram” uma cultura própria da aristocracia medieval, considerou essa biblioteca
“popular” por ter conquistado o grande público, e por possuir uma pobreza particular
de escrita e de leitura. Considerou-a expressão espontânea de uma cultura popular
original e autônoma, sem mistificação ou alienação, voltada para o real. 17
A discussão sobre a polarização ou não da matriz primordial das composições
tidas como populares teve melhor direcionamento e abordagem na obra do crítico
literário russo Mikhail Bakhtin Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento 18 .
Seu trabalho sugeriu mudanças abissais nos modelos comumente adotados para o
estudo da cultura popular, que tendiam a fazer polarizações estanques entre as
culturas, como foi o caso dos trabalhos de Mandrou e Bollème.
De acordo com Peter Burke, a definição de Bakhtin de carnaval e do
carnavalesco, pela oposição não às elites, mas à cultura oficial, assinala uma

17
Essa discussão pode ser acompanhada em DOSSE, François. A antropologia Histórica. In: A
história em migalhas: dos Annales à nova História. Tradução Dulce Oliveira Amarante dos Santos.
Bauru, São Paulo: EDUSC, 2003.
18
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François
Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo, HUCITEC; Brasília, Editora da Universidade
de Brasília, 1993.
82

mudança de ênfase que chega quase a redefinir o popular como “o rebelde que
existe em todos nós”, e não propriedade de algum grupo social. 19
Ao estudar as relações estabelecidas entre Rabelais e a cultura popular de
seu tempo, Bakhtin ressalta que a principal qualidade desse autor era manter uma
profunda e estreita ligação às fontes populares que determinaram em seu conjunto
um sistema de imagens, assim como sua concepção artística. Para Bakhtin,
Rabelais é a chave para compreender os “esplêndidos santuários” da obra cômica
popular, que permaneceu quase incompreendida e pouco explorada durante muito
tempo. Em seu estudo destaca a importância de perceber a diferença capital entre
os dois cânones grotesco e clássico:

Na realidade histórica viva, esses cânones (mesmo o clássico) nunca foram


estáticos nem imutáveis, mas encontravam-se em constante evolução,
produzindo diferentes variedades históricas do clássico e do grotesco. Além
disso, sempre houve entre esses dois cânones muitas formas de interação:
luta, influências recíprocas, entrecruzamentos e combinações. 20

Nesse sentido, Bakhtin indica que, para compreender a profundidade, as


múltiplas significações e as forças dos diversos temas grotescos, é preciso fazê-lo
do ponto de vista da unidade da cultura popular e da visão carnavalesca do mundo;
“fora desses elementos, os temas grotescos tornam-se unilaterais, débeis e
anódinos”. 21
Carlo Ginzburg, no seu livro O Queijo e os Vermes, 22 elogia a imagem
“vivíssima” da discussão de cultura popular trazida pelo trabalho de Mikhail Bakhtin,
através do influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, todavia
ressalta que o limite do trabalho de Bakhtin está relacionado a abordagem do autor,
que enfoca os protagonistas, a partir dos quais tentou descrever a cultura popular,
falando quase exclusivamente através das palavras de Rabelais, um erudito.
Em seu trabalho, Ginzburg busca melhorar essa abordagem desenvolvendo
uma investigação, através da história de Domenico Scandella, um moleiro friuliano,

19
BURKE, Peter. Cultura Popular na idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 21.
20
BAKHTIN, 1993, op. cit., p. 27.
21
Ibid., p. 45.
22
GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1987, p. 20-21.
83

conhecido por Menocchio, que foi condenado pela Inquisição. Através dessa
documentação, consegue perceber leituras e discussões, pensamentos e
sentimentos, dando novo enfoque ao processo de circularidade entre a cultura
subalterna e cultura hegemônica, que se movia tanto de “baixo para cima”, como de
“cima para baixo”. 23
Ao propor esta discussão, Ginzburg se mostra bastante inquieto com a
ambigüidade do conceito de “cultura popular”, exposto até aquele momento, pois
alguns estudos ora atribuíam à cultura popular uma passiva adequação aos
produtos sub-culturais, distribuídos com generosidade pelas classes dominantes; ora
propunham uma tácita proposta de valores, ao menos em parte autônomos em
relação à cultura destas classes; ora possuíam um estranhamento absoluto que se
colocava até mesmo para além ou aquém da “cultura”.
Acompanhando algumas sugestões, e apesar das críticas, elogia a hipótese
formulada por Bakhtin de uma influência recíproca entre a cultura das classes
subalternas e a cultura dominante, contudo, ressalta ser necessário precisar os
modos e os tempos dessa influência, e que tal posicionamento significa enfrentar o
problema posto pela documentação que, no caso do popular, quase sempre é
indireta. Ao concluir suas reflexões, afirma que, embora o conceito de “cultura
popular” seja pouco satisfatório, faz sempre a opção por uma análise de classes.
Outro interessante estudo que traz questões para pensar a discussão acerca
da cultura popular é o texto de Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna 24 . O
autor alarga as visões e problemas em torno desse debate, promove uma discussão
pormenorizada e com muitos exemplos localizados na Europa durante a idade
Moderna. Chama atenção para a falsa impressão de homogeneidade presente
nesse conceito, alertando que talvez melhor fosse utilizá-lo no plural, ou substituí-lo
por uma expressão como “a cultura das classes populares”.
Burke critica duramente o “modelo de duas camadas” de cultura de “elite” e
“popular”, ressaltando que a fronteira entre as várias culturas do “povo” e as culturas
das “elites” é vaga e, por isso, a atenção dos estudiosos deveria concentrar-se na
interação e não na divisão entre elas.

23
GINZBURG , 1987, op.cit., 13.
24
BURKE, 1989, op.cit.
84

O autor provoca discussões acerca dos problemas suscitados pelo termo


“cultura”, Burke fala sobre a ampliação de seu significado nos recentes estudos da
chamada “história sócio cultural”, reconhece um estreitamento do uso em seu
trabalho e admite ser impossível traçar um limite preciso entre o sentido estrito e o
amplo de “cultura”.
Nesse sentido, o próprio Burke evidencia a objeção do historiador Roger
Chartier ao seu conceito de “Cultura Popular”, que, apesar de tentar substituir
inteiramente o conceito, não lhe parece contraditório, mas complementar. O autor
enfatiza que o grande valor dos ensaios sobre “hábitos culturais populares”,
realizados por Chartier, é o fato de este sempre ter em mente as indefinições da
cultura. Observa que, de acordo com os estudos desse autor, não faz sentido tentar
identificar cultura popular por alguma distribuição supostamente específica de
objetos culturais, porque esses objetos eram, na prática, usados ou “apropriados”
para suas próprias finalidades, por diferentes grupos, nobres e clérigos, assim como
artesãos e camponeses. 25
No interior desse debate, a posição de Chartier é sugerir que o consumo
cotidiano é, também, um tipo de produção ou criação, pois envolve as pessoas
imprimindo significado aos objetos:

O “popular” não está contido em conjuntos de elementos que bastaria


identificar, repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo
de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na
sociedade, mas que são recebidos, compreendidos e manipulados de
diversas maneiras. Tal constatação desloca necessariamente o trabalho, já
que o obriga a caracterizar, não conjuntos culturais dados como “populares”
em si, mas as modalidades diferenciadas pelas quais eles são
apropriados. 26

Com isso, enfatiza a pluralidade dos usos e entendimentos realizados pelos


sujeitos. Para Chartier, compreender a Cultura Popular significa situar no espaço de
enfrentamentos as relações que unem dois conjuntos de dispositivos: de um lado, os
mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é tornar aceitáveis, pelos
próprios dominados, as representações e os modos de consumo que, precisamente,

25
BURKE, 1989, op. cit., p. 24.
26
CHARTIER, Roger. “Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 8, nº 16, p. 184, 1993.
85

qualificam sua cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas


específicas em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é
imposto.
Ampliando o diálogo sobre cultura popular, outro historiador que participa
desta discussão, optando por enfocá-la a partir de uma análise que privilegia o
enfrentamento entre as classes, é o inglês Eduard P. Thompson, principalmente no
livro Costumes em comum: estudos sobre a Cultura Popular Tradicional 27 , no qual
se preocupa especialmente com o tema do costume na Inglaterra do século XVIII.
Ao utilizar o termo “cultura popular”, Thompson faz um alerta sobre os cuidados que
precisamos ter com esse tipo de generalizações,

(...) Esta pode sugerir, numa inflexão antropológica influente no âmbito dos
historiadores sociais, uma perspectiva ultraconsensual dessa cultura,
entendida como “sistema de atitudes”, valores e significados
compartilhados, e as formas simbólicas (desempenhos e artefatos) em que
se acham partilhados. Mas uma cultura é também um conjunto de diferentes
recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante
e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos
conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa (...) assume forma de
sistema. E na verdade o próprio termo “cultura”, como sua invocação
confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições
sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto 28

Para evitar cair em armadilhas ao utilizar indiscriminadamente conceitos como


“cultura popular”, Thompson adverte que ele deve ser situado firmemente dentro de
contextos históricos específicos.
Estas sugestões nos levam a perceber que a utilização do conceito “cultura
popular”, bem como “circularidade cultural” devem ser realizadas com cautela, pois
envolvem muita complexidade que, deixadas de lado pelo historiador no processo de
interpretação, podem terminar por eliminar relações e tensões de grupos sociais que
lutam para gerar seus lugares na História.
Deslocando o eixo dos estudos sobre a cultura popular, da Europa para o
Brasil, focando especificamente literatura de folhetos, no que se refere à questão da
produção e circulação entre cultura dominante e dominada, observamos que tais

27
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. Revisão
técnica Antônio Negro e Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
28
Ibid., p. 17.
86

estudos apresentam significativas ponderações. Alessandra El Far, por exemplo, em


seu trabalho Páginas de Sensação: Literatura popular e pornográfica no Rio de
29
Janeiro (1870-1924) , ao abordar a literatura “popular”, explica que as obras tidas
como populares, naquele contexto, não eram aquelas produzidas ou direcionadas a
um público específico, e sim as que recebiam um tratamento editorial interessado
em baixar custo de produção e dinamizar seu consumo.
A autora mostra que muitos romances voltados para o “povo”, escritos por
autores brasileiros, foram inspirados em enredos europeus de sucesso, ou em
escolas literárias em voga no Velho Mundo. No entanto, nem por isso perderam sua
originalidade, pois, apesar do estrangeirismo latente, as narrativas e traduções
brasileiras ganharam particularidades locais. As jovens protagonistas adquiriram,
com os anos, feições próprias, em certas circunstâncias, uma pele amulatada, um
temperamento específico, pronto para interagir com seu tempo e sua sociedade.
De acordo com a autora,

(...) no desafio de expandir e disseminar o exercício da leitura, (...)


comerciantes editavam tudo. Versões mais baratas dos romances de
Alencar e de Bernardo Guimarães, por exemplo, escritores em busca de
sucesso, enredos pornográficos, manuais de assuntos diversos, livros
infantis, volumes de cantigas e trovas, dentre muitos outros. Assim, os
chamados “livros para o povo” não constituíam um gênero literário
específico. Eram, acima de tudo, obras produzidas a baixo custo e vendidas
por módicas quantias. 30

Podemos depreender que no trabalho de El Far a caracterização “literatura


popular” se dá, principalmente, pelo interesse de circuito da comercialização
editorial, no qual a produção, o preço e o conteúdo dos livros se destinavam ao povo
enquanto consumidor de um determinado produto, e não necessariamente era
produzido por este.
Outro estudo que pode evidenciar o cuidado que os historiadores brasileiros
vêm tomando com as caracterizações sobre literatura popular é o trabalho de
Gilmário Moreira Brito, Culturas e linguagens em folhetos religiosos do nordeste:
inter-relações escritura, oralidade, gestualidade, visualidade, no qual há uma
29
El FAR, Alessandra. Páginas de Sensação: Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro
(1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
30
El FAR, 2004, op.cit., p. 85.
87

preocupação em identificar o modo com o qual a Igreja Católica se utilizava dos


folhetos religiosos, no formato da literatura popular em prosa e versos, para através
de suas várias linguagens se aproximar de devoções “populares” a santos, cultuados
por amplos setores de grupos sociais nordestinos que mantinham fortes vínculos
com tradições orais. Através dessa oralidade, repassavam conteúdos, princípios,
dogmas e práticas, com os quais fiéis devotados a santos podiam apreender e
exercitar práticas religiosas do catolicismo que orientavam seus modos de vida,
comportamentos e relações familiares ou de vizinhança. 31
Sobre a utilização desse tipo de literatura, Gilmário Brito afirma que:

(...) nos ativemos à estrutura poética, narrativa e melódica (...) nos folhetos
religiosos que apresentam uma linguagem erudita e rebuscada, própria de
quem se expressa a partir de uma cultura letrada. Porém, a estrutura do
folheto, (...) os procedimentos empregados no processo de classificação por
estudiosos dessa literatura, o caráter pedagógico, e, principalmente, os
esforços na produção de linguagens próximas a de grupos sociais que
viviam em localidades mais ou menos distantes da presença de igrejas e
padres, indicam que podem ser tomados enquanto fontes, pois permitem
estudar formas de veiculação de tradições católicas e processos de
construção de culturas religiosas de grupos “populares do Nordeste” 32

Além sua preocupação com a aproximação da literatura de grupos sociais


vinculados a tradições orais e distanciados dos códigos letrados, esse autor busca
constantemente apreender o intercruzamento da linguagem letrada e erudita,
derivada do clero, com linguagens orais, gestuais, visuais, nas leituras /
transmissões / recepção dos folhetos religiosos. Tais práticas evidenciaram múltiplas
e surpreendentes incorporações e reelaborações, permanentes de imaginários e
práticas religiosas, carregadas de subjetividades, evidenciando o povo, também,
como produtor.
A partir desses levantamentos, ressaltamos os diferentes caminhos
percorridos por muitos estudiosos no sentido de abordar e estabelecer pressupostos
acerca da definição do termo “cultura popular”. Acompanhamos, através dos

31
BRITO, Gilmário Moreira. Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações
escritura, oralidade, gestualidade, visualidade. 2001. 295f. Tese de Doutorado em História Social -
Programa de estudos Pós- Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2001. Orientadora: Antonieta M. Antonacci.
32
Ibid., p. 103.
88

debates, as dificuldades existentes em encontrar uma definição que não pareça


escorregadia para o termo. Cientes dos perigos, fizemos a opção por utilizar o
conceito de “cultura popular”, situando-o, é claro, dentro de seu contexto, e tendo
sempre presente a noção de cultura popular como algo dinâmico, em constante
transformação, relação e tensão com outras esferas da sociedade, justamente por
entendermos que o conceito possui uma noção de classe.
Com essa discussão, percorremos um longo caminho apresentando
diferentes abordagens nos estudos da cultura popular, surgida aqui a partir de um
fragmento do texto do folclorista Basílio de Magalhães, que apontava a utilização por
eruditos de fragmentos de poesias de criação popular. Procuramos evidenciar, a
partir do diálogo com diferentes autores, como as abordagens sobre essa temática
foram se construindo, tanto na perspectiva de compreender a dinâmica da cultura
popular quanto, e principalmente, na tentativa de compreender como grupos de
estudiosos que denominamos de folcloristas procuraram construir o lugar do outro
dentro da sociedade e da nação e assim ser a referência.
Mas, retornando aos estudos de Basílio de Magalhães sobre a presença da
poesia popular, esse autor expõe informações sobre a poesia de folhetos no Brasil,
afirma que, apesar de ser bastante forte esse tipo de literatura no Nordeste, no
momento em que escrevia o livro, (1928), possuía apenas meia dúzia de folhetos,
pois eram poucos os que chegavam ao sul do país. No entanto, de acordo com o
estudioso, graças a Rodrigues de Carvalho, Gustavo Barroso e Leonardo Mota,
folcloristas que muito se preocuparam em recolher as poesias de folhetos, “o melhor
33
que contêm taes edições” já foi aproveitado em suas obras. Elogia o trabalho
desses intelectuais por conseguirem retratar muito da “nossa” poesia de “cordel”.
A indicação de Magalhães foi preciosa para este estudo, pois a partir de sua
sugestão tentamos acompanhar a produção desses três autores, buscando em seus
trabalhos materiais importantes, e ainda não mapeados, acerca da literatura popular,
que ajudassem a melhor formular questões e organizar uma problemática sobre a
religiosidade nos folhetos.
Nesse processo, observamos que tanto as produções de José Rodrigues de
Carvalho, como Gustavo Barroso, poderiam ser úteis para o presente trabalho,

33
MAGALHÃES, 1928, op. cit., p.12.
89

contudo, pela indisponibilidade de acesso a todas as publicações dos autores,


escassez de tempo para aprofundar o diálogo com as obras dos três folcloristas, e
principalmente por termos percebido aspectos singulares da literatura de folhetos
produzida no Recife bastante presentes nas coletas do terceiro folclorista, Leonardo
Mota, fizemos um recorte privilegiando a produção desse último estudioso.

2.1.2. “Ninguém me fale de padre, seja lá o que for” - Em busca da


fé do outro: religiosidade na construção do folclorista

Leonardo Mota nasceu na Vila de Pedra Branca, Ceará, no dia 10 de maio de


1891 e tornou-se Bacharel, formado pela Faculdade de Direito do Ceará, em 1916.
Destacou-se inicialmente como colaborador da Imprensa, escrevendo para seções
humorísticas, até que seus trabalhos alcançaram êxito e repercussão, marcados por
34
sua originalidade.
É geralmente apontado por outros folcloristas como profundo conhecedor da
realidade e peculiaridades das culturas sertanejas, e admirador entusiasta da
literatura oral nordestina, especialmente anedotas, adágios, ou provérbios
populares, presentes na poesia. Nos volumes publicados de sua obra, podemos
observar esta aproximação, pois esses materiais se tornaram carregados de cantos,
trovas e desafios, incorporados ao seu trabalho através de retransmissões de
cantadores, violeiros, repentistas e emboladores.
Segundo Basílio de Magalhães, Leonardo Mota era conhecido como
“garimpeiro do folclore”, “repórter da alma sertaneja”, “embaixador do sertão”, cuja
obra compreendia “insuperáveis colheitas da fina flor do cancioneiro primitivo”. 35
Apesar da dita “proximidade” com o sertão, anunciada em observações com
relação ao trabalho de Leonardo Mota, nessa parte do texto, abordaremos alguns
enfrentamentos e tensões presentes em suas coletas e interpretações acerca da

34
CASCUDO. Luis da Câmara. Apresentação. In: MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem
do sertão cearense. 3º edição. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961, p. 10.
35
MAGALHÃES, 1928, op.cit., p. 8-9.
90

cultura popular, principalmente por perceber diferenças significativas entre o que ele
coletava e aquilo que pudemos localizar na literatura de folhetos.
Acreditamos que as tensões existentes entre os folhetos e as coletas de Mota
aconteciam fundamentalmente devido à posição social ocupada pelo folclorista que,
muitas vezes, buscava a cultura popular como algo estanque e localizado, atribuindo
às histórias que coletava um certo grau de ingenuidade. Talvez seu grande
problema fosse tentar encontrar uma cultura popular “idílica”, “estagnada” e “pura”
no campo, quando há muito tempo ela já estava presente, transformando-se e
dinamizando-se na cidade.
Observamos que a tendência à visão estagnada, presente na obra de Mota, é
decorrente dos métodos e concepções que muitos folcloristas do século XIX
desenvolviam em relação ao estudo das culturas, buscando-as com a finalidade de
compará-las, mesmo que os parâmetros não fossem os mesmos. Nesse sentido,
Herman Lima - escritor pré-modernista, médico, romancista, poeta - atenta para o
lado “aventureiro” de Leonardo Mota, que “jamais se jactava a metodologia dos
estudos comparativos de folclorista de gabinete”, e, por isso, passou anos de sua
vida se dedicando às literaturas mais “exóticas”, percorrendo através de difíceis
caminhos rastros etnográficos ou antropológicos para estabelecer uma analogia, de
que se servia, “para ligar o fula da Guiné portuguesa ao sarará do Seridó, o lapão da
Groenlândia ao dolicocéfalo ariano da Alta Germânia”. 36
Por meio das palavras de Lima, notamos que a “analogia” de Leonardo Mota
não fugia do caminho trilhado por diversos folcloristas do século XIX, que saíam a
campo para conhecer a realidade, e estabelecer categorias para cada elemento que
encontravam. O grande problema desse método era que seus estudiosos
terminavam por estabelecer relações atemporais e hierarquizantes entre os
elementos que encontravam, ligavam “o fula da Guiné portuguesa ao sarará do
Seridó”, ignorando a espacialidade, a relação do homem com o meio ambiente e sua
história.
Acerca das aproximações entre culturas longínquas, Edward Thompson
lembra os problemas decorrentes nesse período, conhecido pelo

36
LIMA, Herman. Apresentação. In: MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do
sertão nordestino. 3º edição. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962, p.10.
91

[...] interesse estritamente classificatório com relação ao costume e ao mito,


algo semelhante ao interesse taxonômico de outras ciências oitocentistas.
Costumes e crenças foram escrupulosamente examinados de acordo com
seus atributos formais e, então, essas propriedades formais foram
comparadas transpondo-se imensos abismos culturais e temporais. 37

A complicação desse método estava em estabelecer uma cultura como a


mais “evoluída”, e sair à procura das outras culturas “atrasadas”, suas
especificidades e origens, sem notar que, na verdade, elas se relacionavam e
transformavam o tempo todo. No trabalho de Leonardo Mota não é difícil localizar
essa deficiência, pois, partindo do cerne da “cultura erudita”, o folclorista adentrava o
sertão no intuito de coletar e comparar os fragmentos da “cultura do povo”, sem
perceber que essa também sofria transformações e modificações no processo
histórico.
O empenho de Mota para realizar seus estudos através de métodos
comparativos era tão grande que, conforme lembra Lima, sacrificou tudo, “um
cartório rendoso, de que se desfez a trôco de dez réis de mel coado, sossego
próprio, estabilidade da família, saúde e confortos citadinos”. De acordo com o autor,
o maior interesse de Mota era conviver com o homem do sertão, “caboclo de
alpercata”, de chapéu-de-couro, “avesso a etiquetas atrofiantes da fibra natural”, o
“homem do pão-pão, queijo-queijo”, que encheria páginas e páginas dos livros do
folclorista. 38
Na concepção de Herman Lima, Leonardo Mota era

(...) faiscador em primeira mão de tanto tesouro perdido na ganga bruta da


alma popular, em adagiário, anedotário, desafios e trovas, ou na simples
coleta da exata locução matuta, do mais alto teor expressional e psicológico
e do mais vivo alcance para a compreensão da nossa gens 39 (sic)

Depreendemos da definição de Lima a importância atribuída ao folclorista


que, de acordo com sua concepção, exerceu papel de “faiscador”, ou seja,
garimpeiro nômade, que buscava “riquezas” tanto em áreas de minas, onde

37
THOMPSON, 2001, op. cit., p. 232.
38
LIMA, 1962, op. cit., p. 10.
39
Ibid., p. 9.
92

abundassem os “valiosos tesouros”, como também em regiões já empobrecidas e


abandonadas. Lima acreditava que o grande diferencial de Mota era “garimpar”, ele
mesmo, os saberes “mais arraigados na alma matuta” e, através de suas coletas,
“extrair” o “tesouro” mais velado nos modos de expressar da nossa gente.
Acerca dessa relação com o “garimpo”, atribuída a Leonardo Mota,
reforçamos que, embora conseguisse recolher e registrar aspectos singulares da
cultura popular brasileira, na maioria das vezes não tinha qualquer noção dos
sentidos, significados e importância que essas manifestações cumpriam na vida e no
cotidiano das pessoas das quais retirava os fragmentos.
Embora houvesse uma defasagem na lógica da coleta empreendida por Mota
e também em suas interpretações acerca da cultura popular, não podemos ignorar a
abundância, riqueza e precisão das informações coletadas. Suas principais
publicações foram: Cantadores (1921), Violeiros do Norte (1925), Sertão alegre
(1928), No tempo de Lampião (1930), Prosa vadia (1932), além de artigos
publicados na imprensa.
Examinamos algumas produções de Leonardo Mota para serem trabalhadas
nesse capítulo, dentre elas optamos por dialogar principalmente com o seu livro
Violeiros do Norte: Poesia e linguagem do sertão Nordestino 40 , publicado pela
primeira vez em 1925, pois neste trabalho encontramos informações singulares
acerca da poesia produzida em Pernambuco; narrativas religiosas que não são
localizadas em outros materiais; e também informações singulares acerca de poetas
que se destacaram na produção das primeiras publicações de folhetos populares.
Há, no volume, um capítulo que trata exclusivamente da Religião na poesia
do povo, e está carregado de informações e juízos de valor do folclorista acerca das
crenças religiosas de seus entrevistados. No início do capítulo, Mota evidencia que
temas ligados à religiosidade não poderiam escapar às pesquisas sobre a poesia
41
popular, já que era um elemento “arraigado na alma de nossa gente” . De acordo
com o folclorista, os cantadores se especializavam na discussão e comentários
sobre a doutrina católica.

40
MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do sertão nordestino. 3º edição.
Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.
41
Ibid., p. 181.
93

Para ratificar sua posição, transcreveu uma narrativa onde a presença


religiosa era forte e manifestada, a história se chama Castigo da soberba e evidencia
a confiança que os sertanejos depositavam na justiça divina:

Criou-se sem ir à Missa


E nunca se confessou,
Pôs os pés na santa Igreja
Só quando se batizou,
Negócio de penitência
Êle nunca procurou.

Esmola por caridade


Isso nunca que êle deu;
Deitava e se levantava,
Porém nunca se benzeu;
Viveu assim, dêste gosto,
Te o dia em que morreu 4 (sic)

Mota ouviu e transcreveu esse trecho do cantador Anselmo Vieira de Sousa.


A narrativa conta a história do julgamento de um pecador, acusado pelo “Cão” de
nunca ter seguido os preceitos católicos. Nos versos recortados, percebemos que o
autor, ao narrar as atitudes do personagem, enfatiza seu distanciamento de
obrigações que considerava pertinentes ao exercício religioso da fé católica,
comenta os erros do fiel, e afirma valores para seus leitores acerca das práticas
cotidianas da religião.
As mensagens religiosas se iniciam no título do poema, Castigo da soberba,
que remete imediatamente a um dos sete pecados capitais, considerados sem
perdão pela Igreja Católica, a soberba, que é descrita no folheto pelo modo de vida
do personagem, caracterizado por grandes despesas supérfluas e gostos com
ostentação e prazer, o que resulta em um castigo sem perdão, no momento de seu
julgamento final.
Além da crítica aos indivíduos que colocavam em primeiro plano o ato de “ter”
ao invés das virtudes de sujeito temente a Deus, percebemos na narrativa uma
sugestão da trajetória de vida e morte de um cristão obediente à religião: Ao nascer,
deveria ser “batizado”, para fazer parte da Igreja Católica, “criando-se” naquela
comunidade religiosa, e cumprindo seus sacramentos; Deveria se confessar, fazer
penitência, participar das missas, benzer-se, e dar esmolas em sinal de caridade e
concretização do relacionamento com Deus, exercendo obrigações e virtudes,
94

cumpridas cotidianamente do deitar-se ao levantar-se, durante todos os dias de sua


vida.
Percebemos, através do recorte transcrito, que, de acordo com afirmações de
Leonardo Mota, a presença de valores católicos era constante nas narrativas da
literatura de folhetos, e poderiam tanto estar presentes como afirmação, ou crítica
àqueles que não os seguiam corretamente. A obra do folclorista está carregada de
exemplos que indicam a afirmação dos valores religiosos em oposição a valores
mundanos.
Embora o estudioso tenha conseguido encontrar e registrar manifestações da
religiosidade católica nos folhetos da literatura popular, nem sempre as interpretou
com a devida cautela, sem levar em consideração a peculiaridade e historicidade
das produções que recolhia, por isso salientamos que é preciso ter cautela ao lidar
com suas conclusões acerca dessa cultura religiosa.
As interpretações do folclorista acerca religiosidade presente nos folhetos
populares, assim como as próprias narrativas que recolheu, serviram de mote para
adentrar a discussão sobre as peculiaridades e contornos das manifestações de
religiosidade presentes e difundidas nos folhetos populares produzidos no Recife
nas duas primeiras décadas do século XX. Dizemos isso porque suas opiniões e
pontos de vistas sobre essa religiosidade presente nos folhetos praticamente nos
forçaram a problematizar as relações, tensões e os lugares sociais que diferentes
indivíduos ocupavam e tentavam defender naquela cidade inserida num processo de
transformação e modificação, no qual os indivíduos assumiam posicionamentos e
pontos de vista no intuito de defender suas opiniões, valores e tradições.
Ao pesquisar o material do folclorista e também as narrativas desse período,
chama-nos atenção as informações que o estudioso traz acerca das relações entre
poetas e as instituições religiosas, aqui representadas diretamente pelos membros
do clero católico. Como nossa proposta é perceber relações e tensões entre distintos
sujeitos, seus posicionamentos diferenciados, a defesa de suas tradições, valores e
o modo como imprimiam e difundiam seus posicionamentos no intuito de afirmar
valores que professavam, decidimos aceitar o desafio e iniciar a discussão acerca da
religiosidade presente nos folhetos por meio dessa temática indicada e enfatizada
por Leonardo Mota.
95

Durante a leitura de seu texto, encontramos diferentes passagens referentes


ao relacionamento do homem sertanejo com membros do clero católico. Acerca
dessa temática, Leonardo Mota é enfático ao afirmar que o sacerdote era um ser à
parte no seio da comunidade sertaneja, “respeitado” e “obedecido ninguém lhe
discute os ensinamentos, e se o padre católico também erra ou peca, não é aos
seus súditos em Cristo que cabe julgá-lo” 42 :

Ninguém me fale de padre,


Seja lá que padre for:
Não gosto de ouvir falar
Dos ministros do SENHOR

Eu, como sou pecador,


Estando são ou doente,
Quero ver na minha frente
Um ministro do SENHOR. 43

O folclorista utiliza estes versos para afirmar o que tenta construir no decorrer
do seu texto, quando sucessivamente mostra narrativas e opiniões que tentam
evidenciar a imagem do padre como uma figura respeitada e presente na vida dos
fiéis. Esta perspectiva, enfatizada por Leonardo Mota, é constante em seu texto.

Em suas coletas encontramos um texto utilizado pelo folclorista para ratificar


sua concepção acerca da imagem dos religiosos, seu comportamento sério e
respeitado. Na seção referida, o estudioso tenta demonstrar o emprego do dizer
popular “Deus escreve direito por linhas tortas”, transcrevendo uma narrativa na qual
a figura do padre é muito presente e referenciada, pois aparece associada à imagem
de Santo Antônio:

Enterrado a mulher,
Depois que se viu sózinho
Correu dentro de uma mata,
Depois saiu num caminho
E viu que atrás vinha um homem
Amontado num burrinho.

Pareceu-lhe que era um padre,


Olhou pra diante e pra trás:
- “Padre sempre dá conselho,:

42
MOTA, 1962, op.cit. p. 181.
43
Ibid., p. 181.
96

Eu já sei padre o que faz,


Nem que êle dê mil conselho:
Eu morro, não volto mais!” 44 (sic)

É sabido que, no Nordeste do Brasil, a condução em lombo de animal foi


bastante utilizada tanto para o transporte de pessoas, como também cargas,
contudo, no trecho que descreve a aparição do padre “amontado num burrinho”,
existe forte associação entre o padre e a imagem de Jesus Cristo que, em sinal de
humildade e para cumprir a profecia, adentrou Jerusalém montado no lombo de um
“jumentinho”, no Domingo de Ramos, momento que abre as celebrações da Semana
Santa 45 . Logo, a associação do padre à santidade de Jesus Cristo é o primeiro
momento de destaque do trecho recortado.
Em seguida há outra característica que trata do bom relacionamento dos
padres com seus fiéis, pois evidencia sua boa vontade em distribuir conselhos a
quem necessitasse: “Padre sempre dá conselho / Eu já sei padre o que faz”, e
provavelmente suas recomendações persuadiam os fiéis, já que o indivíduo tenta se
convencer de que, mesmo que o padre viesse com seus “mil conselho”, ele não
abandonaria a idéia de tirar sua própria vida.
Durante a narrativa, o fiel conversa com o padre, que é caracterizado com
feições de “brandura”, “maciez”, “energia”, “semblante risonho”, com “palavras de
grande valor” e opiniões inspiradas “pela providência”. O interessante é que em
nenhum momento da conversa o sujeito percebe se tratar de Santo Antônio, e não
de um simples padre, indicando uma possível conduta exemplar de alguns
sacerdotes que poderiam, inclusive, ser confundidos com santos.
Essa narrativa avigora a opinião do folclorista acerca do respeito e admiração
que os poetas populares dirigiam à imagem dos religiosos. A figura do padre e a do
santo exercem uma fusão tão significativa na história que reforça a idéia do respeito
à imagem “impecável” dos sacerdotes.

44
MOTA, 1962, op.cit. p. 197.
45
“Então Jesus enviou dois discípulos, dizendo: ‘Vão até o povoado, que está na frente de vocês. E
logo vão encontrar uma jumenta amarrada, e um jumentinho com ela. Desamarrem e tragam os dois
para mim. Se alguém lhes falar alguma coisa, vocês dirão: ‘O Senhor precisa deles, mas logo os
mandará de volta’. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelo profeta: ‘Digam à filha de Sião:
eis que o seu rei está chegando até você. Ele é manso e está montado num jumento, num
jumentinho, cria de um animal de carga’”. (Mateus, 21: 1-5). BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada -
Edição Pastoral. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 1266-1267.
97

O folclorista dizia conhecer tão bem os gostos e posicionamentos dos


sertanejos com os quais tomou contato durante suas incontáveis viagens pelo
Nordeste do Brasil, que chegou a fazer uma advertência aos pesquisadores,
enfatizando que os poetas não compunham narrativas criticando posturas dos
religiosos: “Faria um rol reduzidíssimo quem se propusesse a catalogar as
irreverências religiosas contidas na poesia do povo”. 46 A recomendação mostra que
na sua percepção a relação dos homens sertanejos com os religiosos parecia ser
tão definida e harmoniosa que as críticas encontradas constituíam um rol
“reduzidíssimo”.
Apesar da insistência de Leonardo Mota na caracterização do padre como um
sujeito bastante respeitado e bem visto na sociedade, o próprio folclorista vê a
necessidade de reproduzir uma sátira, cuja aquisição foi “até” motivo de surpresa
para ele, já que, ao contrário do que afirmara repetidamente, essa narrativa continha
pesadas críticas aos membros da Igreja Católica.
Transcreve a história sem informar autor, local, nem data da coleta. A
narrativa conta sobre o enterro do cachorro de um inglês, que, mediante pagamento
ao padre e bispo, conseguiu, para seu animal, um imponente sepultamento: 47

Um inglês tinha um cachorro


De uma grande estimação,
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse, então:
- “Mim enterra êste cachorro,
Inda que gaste um milhão.”
(...)
-“Mim quer enterrar cachorro!”
Disse o Vigário: - ô inglês,
Você pensa que isto aqui
É o país de vocês?’
Disse o inglês: - “Com cachorro
Gasto tudo, desta vez...

“Êle, antes de morrer,


Um testamento aprontou,
Só quatro contos de réis
Para o vigário deixou...”
Antes do inglês findar,
O vigário suspirou. 48 (sic)

46
MOTA, 1962, op. cit., p. 182.
47
Essa narrativa presente em diversos folhetos populares foi adaptada e incluída na peça “O auto da
Compadecida” de Ariano Suassuna.
48
MOTA, 1962, op. cit., p. 213-214.
98

Na narrativa coletada por Mota, percebemos o motivo do espanto


demonstrado pelo folclorista ao se surpreender com as críticas direcionadas ao clero
católico na história. Nesse trecho notamos como o poeta aborda a atitude do
religioso, apontando-o como interesseiro, disposto a vender, “por um bom precinho”,
os serviços do Senhor e da salvação. Notamos o desespero do outro personagem
ao constatar que teria que dispensar uma grande quantidade de dinheiro para
conseguir o que queria: “Com cachorro Gasto tudo, desta vez...”.
Além da crítica ao padre, o folheto evidencia o estranhamento com relação a
outros sujeitos de atitudes desviantes. Observamos no recorte a alegorização do
estrangeiro, um indivíduo de nacionalidade inglesa, que apresentava desejo curioso
e excêntrico, retratado na história. O poeta enfatiza a presença desse inglês, rico
detentor do poder monetário, disposto a gastar quanto fosse necessário para cumprir
o desejo de enterrar seu cachorro e evitar que os “urubus do Brasil” comessem o
animal. É um personagem estereotipado, inclusive na forma de falar, que reproduz
erros de concordância geralmente praticados pelos estrangeiros, recém chegados
ao Brasil: “Mim enterra”, “Mim quer enterrar”, o que indica uma tentativa de
assemelhar o personagem à realidade, e assim melhor caracterizá-lo 49 .
O capitalista de fala e hábitos diferentes deseja obter a prestação de serviços
religiosos para uma finalidade estranha ao poeta, que registra tanto suas ações
destoantes, como também daqueles que se submetem ao seu poder monetário. A
partir disso, há destaque às ações do padre, que a princípio marca sua posição de
estranhamento com relação à situação, lembrando ao estrangeiro que ele não
estava em seu país: “Você pensa que isto aqui / é o país de vocês?”, e, no entanto,
logo em seguida, rende-se, a partir do aceno da possibilidade de ganhar algum

49
Com relação à presença dos ingleses no Recife, Raimundo Pereira Alencar Arrais afirma que
através do capital estrangeiro, notadamente inglês, o Recife recebe, depois de meados do século
XIX, uma seqüência de equipamentos modernos: água canalizada, trecho Recife-Cabo da Estrada de
Ferro Recife – São Francisco, Estrada de Recife-Olinda-Beberibe, serviços de bonde de tração
animal, serviço telegráfico, serviço telefônico manual, de tal forma que em 1900, sob certos aspectos
o Recife já podia ser chamado de “cidade moderna”. Abordaremos mais detidamente a presença e
enfrentamentos direcionados aos ingleses no capítulo 3. ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Recife,
Culturas e Confrontos: As camadas urbanas na Campanha Salvacionista de 1911. Natal: EDUFRN,
Editora da UFRN, 1998, p. 43.
99

dinheiro: “ quatro contos de réis / Para o vigário deixou...”, mudando completamente


sua posição ao suspirar de regozijo com o aceno do pagamento.

No trecho, apreendemos a intenção do poeta em evidenciar um


estranhamento com relação à presença dos estrangeiros e também “problemas” na
conduta dos religiosos. Chama atenção aos modos “desviantes” de ambos
apresentados numa poesia estereotipada e bem humorada, na qual sátiras e críticas
são direcionadas a esses sujeitos.

Os trechos desse folheto, encontrados no livro Violeiros do Norte,


apresentam-se como indício para que percebamos tensões entre o que o folclorista
apresentava acerca da relação entre fiéis e os membros do clero católico, e aquilo
que poderia ser encontrado nos próprios folhetos populares. Lembramos que o
folclorista considerou essa poesia uma exceção, já que, como afirmava
repetidamente, eram muito raras nos folhetos críticas aos membros da Igreja
Católica.
Tentamos seguir as pistas deixadas pelo folclorista, na intenção de
percebermos minuciosidades em relação às tensões apresentadas pelo estudioso.
Apesar da falta de indicação de autoria, local e data do material coletado, através de
algumas antologias, conseguimos identificar a narrativa como pertencente à lavra de
Leandro Gomes de Barros 50 , autor cuja produção é enfatizada neste trabalho
justamente por marcar lugares sociais através de suas poesias.
A narrativa recolhida por Mota e escrita por Barros intitula-se O Dinheiro, foi
produzida na cidade do Recife em 1909, possui 16 páginas e está acompanhada de
mais duas narrativas, Casamento do sapo e Ultimas palavras dum papa. O trecho do
folheto coletado encontra-se nesse material, que traz a narrativa completa e faz
pesadas críticas à submissão das pessoas ao poder representado pelo dinheiro:

O dinheiro neste mundo


Não há força que o debande,

50
PROENÇA, Manoel Cavalcanti. Antologia Literatura Popular em Verso. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; [Rio de Janeiro]: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1986, p. 576; BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro. Antologia Leandro Gomes de Barros -3.
Tomo V. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa,
Universidade Federal da Paraíba, 1980.
100

Nem perigo que o enfrente,


Nem senhoria que o mande.
Tudo está abaixo delle
Só elle alli é o grande.

Elle impera sobre um throno


Cercado por ambição,
O chaleirismo a seus pès
Sempre está de promptidão,
Perguntando-lhe com cuidado
-O que lhe falta, patrão?

No dinheiro tem se visto


Nobreza desconhecida,
Meios que ganham questão
Ainda estando perdida,
Honra por meio da infâmia,
Gloria mal adquirida.

Porque só mesmo o dinheiro


Tem maior utilidade,
E o pharol que mais brilha
Perante a sociedade.
O código dalli é elle
A lei é sua vontade. 51 (sic.)

Nesse recorte, o poeta tenta descrever a importância atribuída ao dinheiro na


sociedade em que vivia, mostrando o poder que este exercia sobre as coisas e as
pessoas: “Tudo está abaixo delle / Só elle alli é o grande”, evidenciando ser o poder
financeiro capaz de se sobrepor a todos os outros elementos da sociedade, inclusive
valores, costumes e práticas, como foi o caso do vigário apresentado no folheto, que
mostrava sua venalidade, e abria mão de suas tradições religiosas em troca de
alguns contos de réis.
O poeta demonstra sua opinião acerca dos elementos que cercavam o
dinheiro, mostrando que, pelo fato de exercer domínio sobre pessoas e coisas à sua
volta, possuía um “reino” cercado por “ambição” e “chaleirismo” (bajulação), e,
embora tivesse “honra”, esta somente se destacava por meio da infâmia. Diante da
alusão de que o dinheiro é o “pharol que mais brilha perante a sociedade”, o poeta
critica a relevância que os valores materiais adquiriam na cidade que se modificava.
O autor insistia na observação de que as práticas da sociedade “de antigamente”

51
BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo V, op.
cit., p. 90-91.
101

estavam se tornando cada vez mais dispensáveis e relacionadas a ganhos


monetários.
Nesse sentido, a narrativa encontrada no folheto tenta mostrar o poder do
dinheiro ao corromper aqueles que se mostrassem fracos diante das tentações dos
novos tempos, como foi o caso do vigário, que, diante do adiantamento de alguns
contos, não somente sagrou o sepultamento do cachorro, como também
encomendou sua alma, fez a missa de corpo presente, com direito a ladainha e tudo.
No entanto, a crítica do folheto não se direcionava a um sujeito à parte no clero, o
poeta lembra que o vigário não estava isolado na ação:

Mandaram dar parte ao bispo


Que o vigário tinha feito
O enterro do cachorro.
Que não era de direito,
O bispo ahi fallou muito
Mostrou-se mal satisfeito.

Mandou chamar o Vigário


Prompto o Vigário chegou
As ordens sua excellencia...
O bispo lhe perguntou:
Então que cachorro foi
Que o Reverendo enterrou?

Foi um cachorro importante


Animal de intelligencia:
Elle antes de morrer
Deixou á vossa excellencia
Dois contos de reis em ouro...
Se errei tenha paciência.

Não foi erro, sr. vigario,


Você é um bom pastor
Desculpe eu incommodal-o
A culpa é do portador,
Um cachorro como esse
Já vê que é merecedor. 52 (sic)

Percebemos que, não contente com a atitude do vigário, o poeta envolve


também outros segmentos do clero na armação. O bispo é chamado a fazer parte da
história, e a princípio se mostra indignado, “mal satisfeito”, querendo apurar o
acontecido, manda trazer o vigário para saber sobre o que havia ocorrido. Dirige-se

52
BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo V. op.
cit. p. 95-96.
102

ao subordinado com autoridade de quem deseja repreendê-lo e pede explicações


sobre o acontecido. Nesse momento, percebemos a malandragem do vigário que, ao
ser pressionado, inventa que metade dos quatro contos recebidos havia sido
oferecida ao bispo, que também teria direito à herança. Armado o golpe, ainda se
finge de desentendido: “Se errei tenha paciência”, ao que o bispo reage
prontamente, mudando completamente sua posição ao saber que também seria
contemplado com a “herança”. Ao final, o religioso não somente aceita a transação,
como elogia a atitude do padre e a astúcia do cachorro.
Notamos que a narrativa chama atenção para as atitudes venais de membros
do clero que, em troca de riquezas materiais, vendem-se sem muita cerimônia. As
críticas apontadas na narrativa de Leandro Barros são bastante contundentes e
podem servir de indício para problematizar tanto as atitudes do clero presente na
cidade do Recife em finais do século XIX e início do XX, como também o referencial
de comportamento religioso defendido e pertencente ao poeta.
No entanto, retornando ao trabalho de Leonardo Mota, insistimos que o
folclorista tomou a narrativa como uma simples exceção dentro da produção dos
poetas populares que investigava, enfatizando a “raridade” de críticas direcionadas
aos religiosos. Na opinião do folclorista, o respeito e admiração estavam
constantemente presentes na relação do homem sertanejo com os religiosos, figuras
tomadas como modelo de conduta.
Contudo, ao observarmos mais detidamente aspectos da poesia que o
folclorista dizia conhecer “como ninguém”, observamos que suas percepções nem
sempre correspondiam inteiramente as suas afirmações. Encontramos nas coletas
realizadas e publicadas pelo folclorista uma outra indicação de que as relações entre
fiéis e religiosos nem sempre eram “tão” harmoniosas quanto pretendia o estudioso.
Veja essa estrofe retirada do capítulo “Religião e na poesia do povo” de Violeiros do
Norte:

Pode-se achar sogra boa,


Padre desinteressado,
Italiano inocente,
Cigano sério e honrado
O que nunca ninguém viu
103

Foi nova-seita corado. 53 (sic)

Nesse recorte, utilizado para evidenciar quanto os sertanejos abominavam os


protestantes, aqui denominados “nova-seita”, percebemos que, para satirizar
indivíduos de religião e crença diferenciada, o poeta utiliza a alegoria com outras
figuras, geralmente “má afamadas” da sociedade, a exemplo da sogra, do italiano,
do cigano e, o mais interessante, do padre, que é colocado nesse rol de figuras
“problemáticas” sem maiores cerimônias, indicando que padres “desinteressados”,
que se mostrassem desprendidos, generosos, privados de interesses (de lucro
inclusive) eram difíceis, mas poderiam ser encontrados!
Ou seja, em um único capítulo de seu livro, o folclorista coletou outra crítica
direcionada aos membros do clero católico e não percebeu, ou não disse que não
percebeu. Acreditamos haver uma tensão entre o posicionamento do folclorista e os
materiais que coletava acerca da produção da poesia popular. A partir de sondagens
realizadas em folhetos do início do século XX, produzidos na cidade de Recife,
alguns coletados por Leonardo Mota, notamos que o intelectual não conseguia
compreender que as satirizações não eram ocasionais, aleatórias, eventuais, e, na
verdade, poderiam ser encontradas com certa freqüência nas narrativas.
Há um problema a ser pensado com relação à postura de Mota, pois, por
mais que tentasse se aproximar da poesia popular, através de viagens, coletas,
convívio com o homem do sertão, o “matuto”, o poeta, e todos esses sujeitos do
interior, o folclorista possuía uma percepção bastante diferente daquilo que podia ser
encontrado nos folhetos que ele mesmo coletava, ou seja, enquanto o estudioso
buscava a produção presente na literatura que supunha estar presa no campo, com
valores, costumes e tradições estagnadas, como sugeria ao propor a relação entre
religiosos e fiéis, essa cultura se mostrava bastante diferenciada, dinâmica.
Sugerimos que, enquanto o folclorista buscava uma cultura popular
homogênea, pura e bucólica, no intuito de recolher, prender e guardar aspectos da
cultura popular sertaneja com objetivo de “salvá-la” e “protege-la” do esquecimento,
não conseguia perceber que, na verdade, ela estava viva, era dinâmica e se
transformava a partir das novas situações presentes na dinâmica da sociedade.

53
MOTA, 1962, op. cit. p. 186.
104

O folclorista não percebia que, enquanto procurava uma cultura popular


“idílica” e “ingênua” no campo, muitos aspectos dela já se manifestavam e
marcavam lugares sociais na cidade, por ação dos muitos sertanejos que ali
chegavam em busca de melhores condições de vida e sobrevivência, levando
consigo suas manifestações que passavam a ser registros contundentes no sentido
de apontar problemas, transformações e modificações que incomodavam esses
novos indivíduos que ali passavam a viver.
As produções dos folhetos, que traziam uma relação umbilical com o sertão,
eram carregadas de valores, experiências e sentimentos, utilizados como referencial
em relação aos enfrentamentos empreendidos na cidade. As narrativas registravam
posicionamentos, críticas, valores em defesa de tradições constantemente
colocadas em xeque na nova dinâmica da urbe.
Essa ligação com o sertão, presente nos folhetos, era bastante peculiar, no
sentido de defender sentimentos que muitas vezes entravam em embate com outros
segmentos da sociedade, como acontecia no caso dos membros do clero, por
exemplo. Os poetas partiam em defesa de uma tradição que cobrava posturas
éticas, morais, referendadas por atitudes que tinham na moral, caridade,
desprendimento, valores singulares de sua prática religiosa. Logo, diante de uma
outra realidade, na qual notavam os “representantes da fé” assumirem atitudes
suspeitas, interesseiras e gananciosas, suas narrativas não se faziam de rogadas
em repreendê-los, satirizá-los e partirem em defesa de tradições que julgavam mais
acertadas.
Nesse sub-capítulo, abordamos as tentativas de alguns intelectuais –
folcloristas – em se aproximarem e recolherem fontes que diziam estar relacionadas
às “origens do Brasil”, estreitamente ligadas à cultura do povo. Apontamos as
maneiras como esses estudiosos, em especial o folclorista Leonardo Mota,
recolheram, estudaram e perceberam os modos de ver e viver da população mais
pobre, principalmente sua religiosidade, produzida a partir da literatura de folhetos.
Ressaltamos que as impressões desses estudiosos nem sempre se parecem com
aquelas encontradas em folhetos da época, como os que vamos trabalhar no
próximo sub-capítulo.
105

2.2 - Poesia e religiosidade em folhetos populares:


observações acerca do Clero Católico

A partir de agora vamos apresentar algumas narrativas produzidas pelo poeta


Leandro Gomes de Barros, na tentativa evidenciar seus posicionamentos
contundentes no intuito de difundir uma moral religiosa bastante forte, defensora de
valores e tradições que o poeta trouxera consigo do sertão, e que cobrava posturas
contundentes daqueles que viviam e praticavam a cidade, principalmente seus
representantes religiosos.
Abordaremos alguns aspectos de sua produção, principalmente aqueles
relacionados a atitudes e visões acerca da religiosidade católica, mais
especificamente com relação às posturas e atitudes do clero que, na obra do poeta,
perceptivelmente fugia dos modelos de atitudes que trazia consigo, como referencial
de bom comportamento religioso. Ao chegar à cidade, o poeta capta
comportamentos desviantes por parte do clero e, a partir disso, empreende
enfrentamentos que se destacam tanto pela defesa de uma religiosidade mais
próxima ao sertão, como pela ofensiva contra aquilo que considerava incorreto.
Através das fontes, perceberemos que a visão presente em muitos folhetos, muitas
vezes se diferenciava substancialmente de outras produções da época.
Desde sua chegada à cidade do Recife, Leandro Gomes de Barros trabalhava
no meio do povo, viajando, vendendo, negociando, compondo folhetos. Sua obra
está permeada de temáticas que abrangem diferentes aspectos do cotidiano da
cidade, a exemplo da política, religião, aumento de preços, cobrança de impostos,
festas, problemas relacionados à seca, comportamentos, críticas à moral, costumes,
dentre outros.
Ao trabalhar com a obra desse poeta, notamos que Barros possui uma
especial preocupação em evidenciar e divulgar a doutrina católica, pois defende com
vigor elementos constitutivos dessa prática religiosa, imprimindo para seus leitores
exemplos de religiosidade a serem seguidos desde o nascer até a morte do fiel. No
entanto, ressaltamos que, apesar dessa característica de exaltação da religião
106

católica, os folhetos de Leandro Gomes não podem ser considerados extensão


dessa matriz religiosa 54 , já que ao mesmo tempo em que o poeta defendia suas
crenças, sacramentos, normas, valores, dentre outros, também podia se colocar em
forte oposição a ela, inclusive através de severas críticas à posturas e atitudes dos
religiosos(as), evidenciando possíveis problemas com relação a atuação do clero na
cidade.
Ao estudar a produção do poeta, encontramos tanto a valorização e defesa
em favor da conduta de alguns religiosos, considerados santos, e de atitude e moral
irrepreensíveis, como também caracterizações que enquadravam os membros do
clero católico como interesseiros, gananciosos, usurários, maus caráteres,
portadores de valores diferentes daqueles por eles mesmos pregados.
Vemos o poeta tomar a imagem do religioso sertanejo como baliza para
avaliar e julgar o comportamento dos religiosos da cidade, toma beatos, vigários,
padres e outros religiosos de conduta convicta e atitudes de fé fortes como
parâmetro de bondade, caridade, desprendimento, pobreza, e, a partir desses
referenciais, avalia os demais religiosos.
Ao enfatizar a conduta exemplar dos clérigos do sertão, é comum que o poeta
recorra a figuras como o padre Cícero Romão Batista, nascido no Crato, Ceará, em
1844, e que ganhou a simpatia popular por seu trabalho de proteção e preocupação
com os sertanejos mais pobres, descumprindo, inclusive, alguns rituais burocráticos
da Igreja Católica, como o recebimento de pagamento pelos trabalhos realizados 55 .
O padre Cícero é caracterizado por Leandro Barros como “bom velho pastor”, “justo”,
“libertador da Terra”, “defensor de verdade”, dentre outros 56 , o que indica sua
admiração com relação às práticas desse sujeito e justifica a utilização desse
referencial como baliza para avaliar os outros religiosos. 57

54
Ver trabalho de BRITO, 2001, op. cit., o autor evidencia como a Igreja Católica, tendo em vista
manter sua hegemonia no interior do Nordeste brasileiro, utiliza clérigos e leigos católicos para
disseminar mensagens bíblicas, exercícios, normas e valores de uma pedagogia severa e moralista
através de folhetos religiosos.
55
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. O movimento de Juazeiro do Norte Padre Cícero e o
fenômeno do Caldeirão. In: SOUZA, Simone de (Coord). História do Ceará. Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará / Fundação Demócrito Rocha / Stylus Comunicações, 1989, p. 250-251.
56
Barros, Leandro Gomes de. Festas do Juazeiro no vencimento da guerra. In: Antologia Leandro
Gomes de Barros - 3. Tomo V. op cit., p. 209-226.
57
A figura do Padre Cícero de Juazeiro é recorrente em muitos folhetos de Leandro Barros, no
entanto não encontramos nesses materiais referências ao seu envolvimento com as oligarquias e
107

Embora haja todo um respeito e admiração aos clérigos do sertão, não


podemos dizer que essa visão do padre bondoso e caridoso se estenda a todos os
religiosos apresentados na obra do poeta, muito pelo contrário, ao chegar à cidade,
o poeta lança mão de todo o seu estranhamento para identificar, satirizar e se
contrapor a atitudes que considerava inapropriadas aos “ministros do senhor”, e isso,
muitas vezes, leva-o a ser identificado por alguns autores como “anticlerical”.
Determinados textos apresentam referências explícitas ao comportamento
desviante dos religiosos, outros utilizam caracterizações de duplo sentido, metáforas
e alegorizações para indicar problemas em suas condutas. A narrativa Como João
Leso tornou a illudir o bispo, publicada provavelmente em 1917 58 , é um ótimo
exemplo para perceber a postura adotada pelo poeta. O folheto tenta evidenciar as
contradições entre os discursos pregados pelos religiosos e suas práticas, é um
perfeito “conto do vigário”, no qual padres, bispos e ladrões se relacionam
tranqüilamente, ou tramam uns contra os outros, na tentativa de obter lucros. 59
Na história apresentada por Leandro Gomes, um trapaceiro, que já havia
enganado e roubado muito dinheiro do bispo uma primeira vez, arma um novo golpe,
e, com o auxílio de padres, deseja roubar o restante da riqueza do pontífice. Os
religiosos, na história, são tratados pelo narrador como “grandes trapaceiros”,
“mestres dos quengos”, ou seja, aqueles que sabem “o diabo onde dorme”. As
reuniões de preparação para acerto de contas são realizadas nas casas dos padres,
e o golpe é todo planejado dentro do seminário:

Estudou bem o latim


Muitas artes e sciencia
Tantos que poude obter
Nome de sua excellencia
Todos que o conheciam
Rendinham-lhe obediencia

política local, seu posicionamento de senhor de terras e dinheiro, exportador de matéria prima e rico
proprietário. O que notamos nas narrativas é uma profunda admiração e respeito a um homem
considerado referencial de justiça e santidade. Ruth Terra informa que no folheto O princípio das
coisas, Barros aborda com certa desconfiança da relação do padre com seus “fanáticos”, no entanto ,
nos folhetos posteriores, volta a exaltar o padre. TERRA, Ruth Brito Lemos. Memória de Lutas -
Literatura de Folhetos no Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983, p. 123-124.
58
Esta data é aludida a partir do endereço: Rua do Motocolombó, n. 28, Afogados, residência do
autor em 1917.
59
BARROS, Leandro Gomes de. Como João Leso vendeu o Bispo. In: Antologia Leandro Gomes de
Barros - 2. Tomo III. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa,
Universidade Federal da Paraíba, 1977, p. 245-262.
108

Meteu-se no seminário
E foi muito bem aceito
Fez dous presentes ao papa
Esse ficou satisfeito
O papa o chamou nas folhas
Alumno justo e direito 60 (sic)

No trecho selecionado, que antecede o golpe a ser aplicado no Bispo, o poeta


satiriza a formação dos padres, mostrando que, para se tornar um ladrão bem
conceituado e obter o reconhecimento, o indivíduo da narrativa estuda latim, artes e
ciências, entrando para o seminário, quiçá para complementar sua formação. Cria
um clima de desconfiança e tensão com relação aos letrados, ao propor uma
indicação de que seu esforço em instruir-se e estudar, na verdade, era uma forma de
se diferenciar das demais pessoas e, assim, talvez poder enganá-las, tanto que, ao
dizer que o ladrão conseguiu título de “sua excellencia”, tratamento gerador de
reconhecimento e submissão dos demais: “Todos que o conheciam / Rendinham-lhe
obediencia", sugere uma aproximação entre aqueles que dispunham do mesmo
título e a figura do golpista.
No recorte o poeta indica ainda que, talvez, houvesse algum tipo de
identidade entre os ladrões e padres, já que, dentro da casa de formação religiosa, o
golpista não somente é “bem aceito”, como, mediante alguns “presentinhos”, recebe,
inclusive, o reconhecimento do papa por ser bom aluno, “justo” e “direito”, embora
fosse um ladrão.
Em outro recorte da narrativa Como João Leso tornou a illudir o bispo,
percebemos a forma como o poeta explana jocosamente sua opinião sobre os
padres, segundo ele, em sua maioria venais e facilmente corrompíveis, evidenciando
um provável enriquecimento ilícito:

Foi onde estava um padre


Manifestou-lhe o que havia
Mostrando-lhe um arrolamento
Do que o bispo possuía
Disse que ele era mole
Com qualquer jeito cahia
(...)

Disse João Leso; o terreno

60
Ibid., p . 247-248.
109

Está muito bem preparado


Alli revelou ao padre
O plano que tinha armado
O padre disse com esse
Tira-se bom resultado 61 (sic)

No trecho transcrito, entendemos o padre disposto a participar do golpe,


armado contra o bispo, seu superior, quebrando totalmente a relação de hierarquia,
desde que o “resultado” fosse financeiramente bom. Não demonstra qualquer
estranhamento com relação à explanação do golpe para enganar o bispo, e aceita
prontamente a transação. Nesse recorte, o ladrão sinaliza um arrolamento dos bens
do bispo, que são pormenorizados no restante do texto, mostrando, além de uma
grande quantidade em dinheiro, propriedades, palácios e outras riquezas, segundo a
narrativa, conseguidas, a muito custo, a partir das esmolas.
De acordo com Raimundo Pereira Alencar Arrais, no interior do catolicismo,
praticado desde a colônia, o ato de dar esmolas, como parte de uma promessa ou
devoção, ou compaixão cristã, desempenhava um papel relevante dos devotos com
os santos. De acordo com o autor, a esmola, fosse a doação de um terreno por um
potentado, fosse o vintém depositado na bolsa a um pedinte de santo,
desempenhava um papel de mediação, de contribuição com a obra divina. Dentro
desse espírito, orientavam-se as ordens mendicantes, entre as quais as dos
capuchinhos, e os pedintes, que envergavam suas roupas escuras, rogando de
porta em porta esmola para os santos de sua devoção. 62
Os membros da Igreja Católica, de acordo tradição religiosa vigente, eram
tanto dispensados do pagamento de serviços privados ou públicos de caráter
pessoal, quanto dignos de receber as oferendas e esmolas para sobrevivência e
manutenção dos serviços religiosos 63 , contudo, a partir da narrativa, apreendemos
que as práticas pareciam não funcionar bem assim. Na poesia de Leandro Barros,
fica indicado que o bispo parecia lidar com uma grande quantidade de riquezas que
talvez extrapolassem inclusive o círculo das esmolas, e caridades recebidas, pois,

61
BARROS, Leandro Gomes de. Como João Leso vendeu o Bispo. In: Antologia Leandro Gomes de
Barros - 2. Tomo III. op. cit., p. 250.
62
ARRAIS, 2001, op. cit., p. 218.
63
Ibid., 2001, loc.cit.
110

ao invés de serem distribuídas “aos desgraçados ou necessitados”, passavam a


fazer parte dos bens pessoais do cura.
De acordo com Arrais, a acusação de que o clero pernambucano era
ganancioso e venal não surgiu no período em que Leandro Gomes de Barros
escrevia seus folhetos, na verdade, era muito anterior, o que fez com que, desde o
final do século XIX, houvesse nas autoridades eclesiásticas preocupação em
orientar posturas e condutas dos religiosos da Igreja Católica para evitar este tipo de
acusação. O autor afirma que o bispo Diocesano D. José Pereira da Silva Barros
procurou pôr em execução uma tabela de emolumentos para substituir aquela que
havia vigorado no tempo de seu antecessor. Nela estipulava valores que deveriam
ser cobrados pelos serviços dos párocos, incluindo também as obras que estavam
dispensadas de pagamento, para evitar acusações de desvios. 64
Parece que as acusações de enriquecimento rápido e instantâneo por parte
dos religiosos, bem como o gosto pela opulência, eram percebidas tanto pelos
membros da igreja, que tentavam se precaver ao máximo para evitar esses atos por
parte dos religiosos, como também pelos fiéis, que satirizavam os desvios cometidos
pelos clérigos. O próprio Arrais afirma que as brincadeiras dos “baixos estratos
sociais” expunham ao ridículo os sacerdotes da religião; evidencia, por exemplo, as
preocupações do Padre Miguel do Sacramento Lopes da Gama, que publicou
repetidamente em seu jornal críticas às irreverências que o povo devotava à
“Sagrada Religião”, bem como a “degenerescência” dos costumes. 65 Acreditamos
que os folhetos de Leandro Barros poderiam fazer parte de alguns dos materiais que
tanto incomodavam alguns moradores, pois circulavam por toda a cidade e serviam
para indicar as formas que as pessoas do povo encontravam para acompanhar e se
manifestar acerca das ações de determinados representantes religiosos.
As críticas presentes nesse primeiro folheto servem apenas para abrir um
leque de diversas outras manifestações do poeta que dirigiam críticas aos religiosos
da cidade, considerados muitas vezes incapacitados para sua vocação religiosa. O
folheto A cura da Quebradeira, publicado em 1915, pode ser mais um exemplo de
como podemos perceber os religiosos se “desviando dos caminhos de Deus”, pois,

64
ARRAIS, 2001, op. cit., p. 221.
65
Ibid., p. 206.
111

assim como a narrativa anteriormente trabalhada, aponta o mau comportamento dos


clérigos, mostrando os fiéis não somente interessados “em falar de padres”, como
não intimidados em satirizar e alegorizar suas ações.
A narrativa tenta, humoristicamente, tratar de um problema presente na vida
das pessoas pobres da cidade do Recife, qual seja, a falta de dinheiro ou a
“quebradeira”:

Ella quando entra em casa


Esfria logo o fugão,
Derrama-se gaz no sal
E cai água no calvão,
Cai areia na farinha
E fura-se o caldeirão,

Quebram-se os beiços da jarra,


Larga o fundo da panella,
Some-se o côco do pote,
Abre-se em banda a tijella,
Ahi a dona da casa
Toca a ficar amarella,

Da logo o cupim na roupa,


Rompe-se os bolços da calça,
Quebra-se a chave da porta
E o homem assenta praça
Porque sempre a quebradeira
Vem junto com a desgraça... 66 (sic)

Em nenhum momento da narrativa o poeta afirma, declaradamente, estar se


referindo à falta de dinheiro, causadora dos problemas dos pobres, contudo, pelas
analogias que cria para falar sobre a chegada da “quebradeira”, vemos que desejava
abordar a “doença” que atacava os bolsos da população. Relações como o
“esfriamento do fogão”, certamente pela falta de alimentos para serem cozidos, o
furo no bolso da calça, devido aos gastos constantes e excessivos de valores que se
esvaiam com facilidade, o empalidecimento da dona da casa, seguramente por
doença, ou fraqueza causada pela fome, evidenciam a falta de dinheiro e todos os
problemas, inclusive o azar, que chegavam junto com ela, pois, como já dizia o
ditado popular, “uma desgraça nunca vem só”.

66
BARROS, Leandro Gomes de. A cura da quebradeira. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III. op. cit., p. 324.
112

A partir da abordagem do que seria a “quebradeira”, bem como os problemas


que trazia, o poeta aponta meios para curá-la:

E’ um remédio excelente
Cura até para o futuro
Mas para se tomar elle
Só n’um lugar muito escuro
Calçar sapato de banho,
Que possa pular um muro
(...)

Quando o doente usar elle


Deve aplicar o cuidado
Veja não tenha por perto
Algum subdelegado,
Muito cuidado com elle
Esse bixo é carregado

Essas ruas muito largas


Que tem illuminação,
Um agente de policia
Inspetor de quarteirão
Tira a força do remmedio
Faz elle perder a acção. 67 (sic)

Através das “dicas” para a “cura da quebradeira”, o “doente” deveria ser muito
cauteloso, pois o “remmédio” possuía uma posologia delicada, a ser ministrada com
o máximo de atenção, ou perderia a eficácia. Assim como anteriormente o poeta não
diz claramente o que seria a tal “quebradeira”, também, agora, não afirma com todas
as letras a sua cura. Contudo, pelos apontamentos presentes na narrativa, podemos
aproximá-la da subtração de bens alheios, ou o mais popularmente conhecido
roubo.
Por ser algo ilícito, proibido, condenável, reforça que o caminho para a “cura
do mal” deveria ser realizado com cautela, pois assim garantiria, inclusive, o futuro
de seu autor. Para tanto, recomenda sua aplicação à noite, ou seja, no escuro, com
o máximo de cuidado para não fazer barulho, trajando vestimentas adequadas, para
uma possível fuga, até mesmo com transposição de muros, caso fosse necessário.
A escolha de um local de ruas estreitas, pouco iluminadas, bem como o cuidado com
autoridades policiais, como o subdelegado, ou autoridades locais, como o inspetor

67
BARROS, Leandro Gomes de.A cura da quebradeira. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III. op. cit., p. 326-327
113

de quarteirão, confirmam que o “remmédio” para a “quebradeira”, de fato era a


apropriação indébita de bens alheios.
O mais interessante desta história é que, como já indicamos, as narrativas
populares não se privavam de apontar possíveis problemas na conduta dos
religiosos, observe a estrofe que abre a narrativa:

Um quego, mestre dos quengos


Adoeceu da algibeira
Enserrou-se n’um convento
Estudou de tal maneira
Que descubriu um remedio
Para curar quebradeira 68 (sic)

Logo no início da história, o poeta aponta que não foi qualquer pessoa, mas
um “quego”, ou melhor o “mestre dos quengos”, ou seja, homem superior e de muito
saber; perito em esperteza, astuto, ardiloso, que descobriu “a cura da quebradeira”.
E, dentre tantos lugares possíveis para “meditar” sobre esta “cura”, encerrou-se
justamente num convento, local utilizado pelos religiosos para melhor servir e amar a
Deus. Isolado do mundo, num local reservado para ordens monásticas de vida ativa,
estudou “de tal maneira” que conseguiu descobrir o remédio para a cura da
“doença”.
É interessante perceber a idéia presente no folheto acerca das atividades que
consumiam o tempo dos religiosos dentro no convento, já que supomos, não fosse à
toa, que o local escolhido pelo poeta para pensar e criar algo ilícito e desonesto
como o roubo fosse justamente o convento, como se houvesse a indicação de uma
ociosidade por parte dos religiosos, que, em claustro, ao invés de praticarem atos
relacionados à sua religião, ficassem unicamente pensando e praticando pecados
mundanos.
Com relação à curiosidade das pessoas sobre o que se praticava no interior
dos conventos e monastérios, Alessandra El Far, em seu livro Páginas de Sensação:
Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro, mostra como este cenário era
instigante para a imaginação do brasileiro, tanto que alguns autores da literatura

68
BARROS, Leandro Gomes de. A cura da quebradeira. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III, op. cit., p. 320.
114

pornográfica do final do século XIX e primeiras décadas do século XX escolhiam


este cenário para as aventuras amorosas dos seus personagens:

Os monastérios e conventos, por representarem na vida real locais de


dedicação exclusiva ao cultivo da fé e da espiritualidade religiosa, eram
vistos pelos autores de livros pornográficos como cenário perfeito às orgias,
aos incestos, ao homossexualismo e a outras tantas relações profanas. O
isolamento e a solidão, na perspectiva desses escritores, davam aos frades
a opção de romperem seus votos para pôr em prática suas fantasias mais
íntimas, sem o flagrante dos olhares vigilantes dos superiores e fiéis. Com
isso, perdiam sua aura sagrada, assumiam ares de um verdadeiro oásis do
prazer sexual, dando ensejo aos insistentes discursos anticlericais que
acabavam por condenar a legitimidade dessas instituições. Não raro as
personagens interrompiam suas memórias ou relatos para denunciar o
ostracismo e a concupiscência reinante nesses falsos lugares de meditação
69
e privação.

Notamos que as atividades realizadas no interior do convento, seminário ou


monastério exerciam muita influência sobre a imaginação daqueles que, de longe,
supunham ações cometidas pelos sujeitos que faziam parte do ambiente de claustro.
Acreditamos que as conjecturas acerca das atividades ilícitas realizadas pelos
religiosos, no interior ou fora dos conventos, não se manifestassem
despropositadamente. Elas poderiam ter origem na observação, por parte da
população, de comportamentos suspeitos apresentados por estes indivíduos, o que
fazia com que as pessoas não estranhassem narrativas como as de Leandro de
Barros, nas quais repetidamente havia a sugestão de que os religiosos realizavam
determinados atos suspeitos.
As acusações aos clérigos, presentes nos folhetos do poeta, geralmente
abrangiam não somente um sujeito, individualmente, como foi o caso do “frei” que
descobriu a “cura da quebradeira”, mas se estendia a outros membros do clero:

Frei Quenguista vendo o mal


Que estava nos perseguindo
Consultou a outro frade
Que estava este mal sentindo
O frade deu parte ao bispo
Disse o bispo: Venha vindo.

O frade estudou a cura,


O bispo achou-a correta,

69
El Far, 2004, op. cit., p. 220-221.
115

Consultaram ao cardeal
Diz elle: a obra é completa
Um arcebispo estudou
Como há de ser a diéta.

Disse Frei Espertalhão


O remedio é exelente
A pharmacia sendo grande
Cura-se radicalmente
Mas não guardando a diéta,
Está desgraçado o doente!..

Porém uzando o remedio


Sendo bem acautellado
Logo nas primeiras dóses
Verá o seu resultado
Disse Frei Espertalhão
Que foi com isto curado 70 (sic)

A satirização do autor com a elaboração poética da “cura da quebradeira” vai


muito além de acusar e indicar um convento como o local de descoberta e
experimentação do “remmédio” contra o mal que atingia as pessoas. Percebemos
em sua elaboração jocosa a crítica também a outros membros do clero que,
possivelmente, sabiam do plano e ajudavam a aplicar o golpe. Apreendemos no
conjunto da narrativa que o poeta utiliza a brincadeira para delatar sujeitos “cínicos”
que praticavam golpes pela cidade, e também direciona sua forte crítica aos
religiosos, que tiravam “cautelosamente” bons resultados das “doses do remédio“
descoberto.
No início do trecho recortado, percebemos que o “Frei Quenguista”, apesar de
estar “encerrado” no convento, como afirmado na primeira estrofe da narrativa, sabia
e sentia o “mal que estava nos afligindo”, em uma alusão que se encaminhava para
as condições de vida da população incluindo o próprio o narrador que, ao utilizar o
pronome oblíquo átono “nos”, coloca-se entre os “doentes”. O frei “consulta”,
“estuda” e trabalha em conjunto com outros religiosos, do alto e baixo clero e, a
partir dessa interação, descobre e utiliza a “cura para o mal”.
Podemos apreender no fragmento retirado do folheto, além do tratamento
jocoso direcionado aos membros do clero, alcunhados indiretamente de ladrões, que
a narrativa está permeada de termos relacionados ao saber médico. O “frade

70
BARROS, Leandro Gomes de. A cura da quebradeira. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III. op. cit., 325-326.
116

Quenguista” exerce uma função “científica” ao se “encerrar” do convívio social,


“consultar”, “estudar”, diagnosticar, receitar, “remediar”, recomendar e finalmente
“curar” a “doença“ que afligia a população.
Notamos no folheto, além da sátira ao clero presente na narrativa, publicada
em 1915, críticas relacionadas às reformas por que passava a cidade que, conforme
acompanhamos no capítulo 1, a partir de 1908 passou a conviver com a presença
de sanitaristas, médicos, engenheiros e profissionais que ajudaram a promover uma
verdadeira reforma sanitária e urbanística, através de um projeto que visava
modernizar a cidade, destituindo-a de seus traços coloniais.
A alusão à medicina no folheto de Barros evidencia a presença desse
discurso no cotidiano da população que enfrentava ofensiva não somente infra-
estrutural, com mudanças físicas nas dependências da cidade, mas também
comportamental, à medida que era obrigada a conviver com o disciplinamento e
ordenação através de críticas constantes aos seus hábitos e costumes. 71
O folheto A cura da quebradeira é interessante justamente porque consegue
dar a ver o modo como sujeitos, colocados à margem da população, pareciam lidar
com as reformas, que alguns presenciavam apenas de longe, já que os habitantes
das periferias conviviam principalmente com seus ônus, como não mercadejar em
locais já “higienizados”, pagar pesados impostos municipais para garantir a
continuidade das reformas, habitar nas periferias da cidade, no momento em que o
centro virava local de especulação imobiliária, dentre outros 72 . A partir da satirização
presente no folheto, que utiliza os contornos e formas dos “importantes” saberes
médicos da época para descobrir algo tão desonesto como a metáfora da “cura da
quebradeira”, percebemos a importância e valoração atribuída pela população a
esses novos saberes, aproximados na narrativa de atos escusos, ilícitos, praticados
por sujeitos “Espertalhões e Quenguistas”, que talvez achassem que não estavam
sendo observados.

71
LOPES, Maria Aparecida Vasconcelos. Cidade Sã, corpo São: Urbanização e saber médico no
Recife (Final do século XIX, início de século XX). 99f. 1996. Dissertação de Mestrado em História -
Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1996.
72
ARRAIS, 2001, op. cit., p. 218; LUBAMBO, Cátia Wanderley. Bairro do Recife entre o Corpo Santo
e o Marco Zero: A reforma urbana do início do século XX. Recife: CEPE/Fundação de Cultura Cidade
do Recife, 1991, p. 133.
117

A associação entre religião e medicina mostra que talvez a população


vislumbrasse uma relação entre mudanças e corrupções, como se estivessem de
alguma forma ligadas e agindo em prol dos interesses de alguns poucos. A
satirização demonstra que, ao contrário do que afirmaram alguns intelectuais
estudiosos do “povo”, este não estava alheio aos acontecimentos da cidade e
principalmente não ignorava atos contraditórios daqueles que se diziam à parte dos
valores materiais.
Com relação ao título do folheto, podemos, inclusive, pensar em uma dupla
significação para seu uso, que não sabemos se foi proposital, mas pode ser
vislumbrada. A palavra “cura”, como é trabalhada do texto, pode ter significado de
“ato ou efeito de curar(-se); “restabelecimento da saúde, meio de debelar uma
doença; tratamento preventivo de saúde; processo de curar; solução, remédio”.
Todos, utilizados em relação à melhora da saúde, contudo a palavra “cura” também
pode significar clérigo, eclesiástico, padre, presbítero, pároco, reverendo, sacerdote,
vigário. 73 Logo, “Cura da quebradeira” pode também significar “religioso da
quebradeira”, ou aquele religioso que dá prejuízo, perda e talvez estragos ao bolso
dos fiéis.
Com isto evidenciamos que, diferente do que anteriormente havia sido
“observado” por estudiosos como o folclorista Leonardo Mota, os fiéis não somente
falavam de padre, como também observavam seus “fracos”, defeitos e problemas,
tratando-os jocosamente, como faziam com quaisquer outros sujeitos,
comportamentos, tradições, inovações que contrariassem as tradições que
valorizavam e seguiam. Nesse caso específico associavam os religiosos ao roubo,
ganância, desvio nas normas e valores, cobrando posturas éticas e exemplares em
suas práticas no convívio social.
Sobre a associação dos religiosos a atos inescrupulosos na cidade do Recife,
acompanhamos que, desde o final do século XIX, o clero pernambucano vinha
sendo bombardeado com uma série de acusações de desorganização, desrespeito,
vadiagem, desobediência às leis civis, dentre outros. Entre 1870 e 1876, o Recife foi
palco de um intenso debate filosófico-religioso, que apareceu na imprensa sob forma

73
“Cura – Ato ou efeito de curar; tratamento. Figurado: sacerdote que pastoreia um pequeno povo;
coadjutor de párocho. FIGUEIREDO, Cândido. Novo Diccionario da lingua portugueza. Lisboa: ed.
Tavares, 1899. vol1. p.370, col.2.
118

de polêmicas, discussões e acusações dirigidas ao clero católico. Foi nesta


conjuntura que se deu a gênese da Questão Religiosa, luta entre a Maçonaria e os
Bispos de Olinda, onde se travou um longo debate entre o Estado e a Igreja, fato
que não somente mostrou uma fase do jornalismo pernambucano, mas o ardor do
combate. 74
De acordo com Raimundo Arrais, a Questão Religiosa se acirra quando é
nomeado Bispo de Olinda o capuchinho frei Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira,
um jovem inflamado no ultramontismo assimilado em sua formação doutrinária na
França. O jovem assume o bispado determinado a purificar a Igreja de suas relações
seculares, edificando um catolicismo mais obediente à Roma e também
estabelecendo uma clara autoridade religiosa sobre o campo de competência da
Igreja, separando-a da esfera secular.
Gilberto Freyre, em seu romance Dona Sinhá e o filho padre, constrói a
história de um personagem fictício, que muito se assemelha à do jovem bispo.
Contando episódios que fizeram parte da Questão religiosa, mostra, através de
notícias retiradas de documentos da época, o modo como os padres eram tratados
por seus opositores:

(...) embora os jornais, a serviço dos maçons, chamassem os bispos e os


padres repetidamente, como se todos êles, anticlericais, tivessem ordem
para empregar os mesmos epítetos contra êsses inimigos, de capadócios,
padrecos, irrisórios pedagogos, bolandilhas, sicofantas, sua arma principal
contra os mesmos sicofantas, a de maior efeito entre o vulgo, num Brasil
sempre muito inclinado a se deixar empolgar pelas campanhas de ridículo,
até contra suas instituições mais sagradas, foi precisamente o ridículo, a
caricatura, a anedota.(...) (grifo do autor, indicando passagens reais e não
fictícias) 75 (sic)

Este tipo de tratamento direcionado aos religiosos esteve bastante presente


no momento da tensão entre igreja e maçonaria, principalmente porque os maçons
controlavam importantes jornais que funcionavam como veículos a seu favor. O
jornal Humorístico O diabo a quatro, por exemplo, trazia regularmente em suas

74
PEREIRA, Nilo. Dom Vital e a Questão religiosa no Brasil. Recife: Imprensa universitária, 1966. p.
19.
75
FREYRE, Gilberto. Dona sinhá e o filho Padre. 2º edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
editora/ Instituto Nacional do livro, 1971.
119

reportagens imagens de padres gorduchos e preguiçosos, que faziam do ócio sua


principal atividade.
Muitas vezes as acusações direcionadas ao clero não aconteciam sem
propósito, não se fazia difícil constatar a iniqüidade e dos vícios dos religiosos,
percebidas facilmente através da displicência dos vigários e despreparo do clero.
Raimundo Arrais afirma que sempre havia alguém criticando o estado de penúria a
que estavam relegadas as coisas da religião, pela incúria dos vigários e falta de zelo
das irmandades, responsáveis pelo culto público dos santos. Segundo o autor, as
denúncias do comportamento desregrado dos padres chegavam à dissolução e à
lascívia:

O próprio superior do convento de Santo Antônio do Recife deu fé, em


atestado escrito, do comportamento de um frei Luiz de Santa Mafalda,
descrito pelo superior como “escandalodo, e desrespeitador das leis que o
chamão ao cumprim.to de seus deveres; costuma pernoitar nos lupanares,
onde p. varias veses tem feito estrondosas assuadas, e já subio a tto. o seu
despejo e a sua desmoralização que constou-me passeara publicamente
pelas ruas desta cid.e a par de sua amazia... 76 (grifo do autor) (sic)

Desde o final do século XIX os religiosos já apresentavam comportamentos


concupiscentes, que certamente não passavam despercebidos aos olhos da
população. Logo não era de causar estranhamento o modo como os folhetos
populares vinham tratando os religiosos em suas narrativas carregadas de humor e
duplo sentido.
O que, seguramente, deve ser problematizado é o modo como os intelectuais
percebiam a produção dos poetas, na medida em que a classificam de “doce”,
“inofensiva“ como obra de uma criança, que não incomodava ninguém, não se
impunha, não conseguia demonstrar sua posição, opinião e crítica. A partir do que
foi apontado na produção de Leandro Gomes de Barros, podemos apreender que,
ao contrário do que afirmavam alguns intelectuais, a exemplo do folclorista Leonardo
Mota, as críticas ao clero aconteciam, eram bastante contundentes, evidenciando,
além da insatisfação, uma tomada de posição de segmentos menos favorecidos da
população, que, certamente, não estavam satisfeitos com tais comportamentos.

76
ARRAIS, 2001, op.cit., p. 216-217.
120

As relações e tensões que emergem da literatura popular de folhetos são


fundamentais para esse trabalho, principalmente no que tange a referenciais e
experiências de tradições religiosas das quais eram portadores. Fosse estranhando
as posturas e comportamentos do clero católico, para o qual traziam referencial
sertanejo de bondade e caridade, que constantemente contrastava com o modelo
encontrado e satirizado na cidade, fosse criticando novos comportamentos, valores,
posicionamentos que iam de encontro a tradições e valores dos quais eram
partidários, o fato era que nos materiais produzidos por esses sertanejos e retirantes
havia posicionamentos que marcavam lugares sociais naquela cidade em
transformação.
A religiosidade afirmada por meio dos folhetos pode ser singular para
evidenciar essas lutas travadas por sujeitos que criticavam e questionavam a cidade
na qual passaram a viver. O material produzido por essas pessoas é essencial para
mostrar que, mesmo diante da ofensiva da modernização e de uma pretensa
“civilização”, essas pessoas não se intimidavam, nem se faziam de rogadas, partiam
para o combate aberto, enfrentando novas formas de lazer, jogos,
empreendimentos, modas, e também seus divulgadores, fossem padres, médicos,
mulheres, estrangeiros, protestantes, todos eram afrontados em nome de tradições e
valores que esses sujeitos consideravam corretos. No próximo capítulo abordaremos
mais algumas dessas relações e enfrentamentos.
121

Terceiro Capítulo:
“Povo incrédulo e descrente”: em defesa de uma
moral religiosa para o Recife

No capítulo anterior, acompanhamos diferentes leituras acerca das ações do


clero católico na cidade do Recife, trabalhamos com a contraposição de fontes
recolhidas por folcloristas e também folhetos da literatura popular. A partir da leitura
desses materiais, apreendemos relações discordantes e até mesmo conflitantes
quando se referiam à mesma temática. Percebemos através dos folhetos a tentativa
de difusão de referenciais de valores religiosos que muitas vezes se chocavam com
aqueles que estavam presentes na cidade no início do século XX.
No presente capítulo, abordaremos de forma mais abrangente o empenho do
poeta Leandro Gomes de Barros em imprimir e reivindicar, através de seus folhetos,
uma moral religiosa católica, impregnada de experiências e visões de mundo, que se
aproximava de segmentos da população, naquele momento recém-chegados à
cidade, e que se posicionavam com estranhamento em relação ao processo de
desenvolvimento, mudanças e inovações dos valores ali presentes. Tentaremos
apreender as diferentes maneiras que o poeta encontrava para difundir mensagens
que possuíam, como pano de fundo, sentimentos religiosos impregnados de uma
moral que certamente era seguida por seus leitores.
Nesse capítulo poderemos acompanhar os olhares pessimistas que o poeta
lançava sobre os novos valores da cidade, proferindo freqüentes reclamações de
que o mundo estava mudado e a crença não era mais a mesma. O folheto As
cousas mudadas sintetiza em um verso as suas inquietações,

A muito tempo que eu digo


O mundo está as avessas,
O povo incredulo e descrente,
Me diz você, já começa
Isto é sêde de agouro
122

Ou fôme de uma conversa 1 (sic)

Para Leandro Gomes de Barros, o mundo “estava às avessas”, ou seja,


encontrava-se contrário, inverso, oposto ao que considerava correto, tanto em
relação aos acontecimentos, como também ao caráter e à índole das pessoas.
Mostrava-se inconformado com as inovações e modismos do início do novo século,
e por isso usava toda sua capacidade de rimar e fazer rir para mostrar seu lugar de
descontentamento e desprezo com relação à situação do período.
As manifestações do poeta podem ser acompanhadas através de seus
folhetos da literatura popular, aqui mais uma vez privilegiados como fonte singular
que consegue dar visibilidade a sentimentos, valores, críticas e experiências de
segmentos da população, pouco percebidos em outros tipos de materiais.
Na primeira parte do capítulo, abordaremos enfrentamentos empreendidos
por Leandro Gomes, na tentativa de defender posicionamentos e vivências
religiosas, colocadas em questão pela “nova” sociedade ascendente. O poeta
satiriza muitas relações estabelecidas na cidade e, através de sua poesia bem
humorada, alegoriza a adoção de valores e posturas dos novos tempos.
Na segunda parte do texto, preocupamo-nos com a defesa da religiosidade
católica em oposição àqueles que o poeta considerava os principais culpados pelas
mudanças que aconteciam no Recife. Nessa seção, localizamos os estrangeiros
como principais oponentes a serem combatidos pelo poeta, já que, além de
comportamentos, normas e inovações, eles eram acusados também de serem
portadores de outros cultos que se difundiam na cidade. Faremos um tópico especial
para abordar as relações e enfrentamentos direcionados aos “nova-seita”, uma
espécie de alegorização de sujeitos protestantes.
Na última parte buscamos entender um pouco mais sobre a religiosidade
presente nos folhetos de Leandro Gomes, suas origens, enfrentamentos e
principalmente o lugar social que marcava ao defender uma crença muitas vezes
estranha àqueles que pretendiam uma cidade moderna e desvencilhada de valores

1
BARROS, Leandro Gomes de. As cousas mudadas. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa,
Universidade Federal da Paraíba, 1977. p. 284.
123

rurais, sertanejos e conservadores, justamente o que a “tradição religiosa” presente


nos folhetos desejava difundir.

3.1. “As cousas não vão de graça”: religiosidade nos folhetos


populares em oposição a valores e práticas em profusão na cidade

De acordo com as discussões até aqui empreendidas, pudemos observar


que, no início do século XX, a cidade do Recife passava por uma série de
transformações infra-estruturais, que objetivavam aproximar a capital pernambucana
de modelos de “modernidade” e “civilidade” em voga no período. Contudo,
“embelezar” e modernizar a cidade não eram as únicas preocupações dos
reformadores, que aspiravam “educar” e transformar não só sua infra-estrutura, mas
também valores, condutas, costumes e hábitos da população.
No entanto, essas investidas não eram ignoradas pela população que se
posicionava com rigor, lançando olhares de estranhamento contra a disseminação
de ideais que tentavam “adequá-la” aos “novos tempos”. Esses sujeitos
contestavam, satirizavam, e, através da negação, difundiam e reafirmavam outros
valores, e posições, geralmente ancorados em tradições vividas, consolidadas e
presentes em suas vidas.
Na tentativa de acompanhar alguns dos embates religiosos empreendidos
através dos folhetos de Leandro Gomes de Barros na cidade do Recife, decidimos
iniciar a discussão com uma narrativa produzida em 1915, chamada A crise actual e
o augmento do sello, que aborda de maneira engraçada o momento de crise pela
qual passava a cidade que, além de sofrer os tormentos da Primeira Guerra Mundial,
tinha seu o comércio enfraquecido em conseqüência das decorrentes secas que
atingiam o sertão. O narrador aproveitava a agonia das pessoas diante do aumento
dos impostos para abordar a ofensiva de mudanças em relação às práticas
religiosas ali presentes e vividas.
O folheto reúne críticas a diferentes indivíduos da sociedade recifense do
início do século, mas a primeira delas, era direcionada ao clero católico, que, como
124

pudemos acompanhar no capítulo anterior, era um dos alvos preferidos do poeta.


Aqui, mais uma vez, os membros da Igreja foram representados como os
“comerciantes das coisas divinas”, que sofriam tanto prejuízo, quanto qualquer outro
tipo de negociante em tempos de crise:

O arcebispo já disse
Se a cousa não melhorar
Eu vou trocar o cajado
Por um ansol vou pescar
Até ver si inda apparece
O que se possa ganhar.
[...]

Diz o vigário: este mez


Não apurei um crusado
O senhor de engenho chamou-me
Para fazer um baptisado
Voltei a pé e com fome
E o que fiz foi fiado.

Diz o bispo: esta semana


Sabe o que me aconteceu?
Fui ver se chismava gente
Um só não me appareceu
O vinho que levei para a missa
Um desgraçado bebeu. 2 (sic)

No trecho em destaque, observamos os caminhos encontrados pelo poeta


para mostrar que a crise naquele período era tão séria que não havia quem
conseguisse escapar de seus prejuízos, e isso se estendia aos religiosos. Aponta,
através da sua poesia, os modos encontrados pelos “profissionais da fé” para
abrandarem os problemas, principalmente a falta de dinheiro.
Notamos que o poeta possuía um referencial diferenciado com relação às
atitudes do clero e por isso enfatizava com estranhamento e chacota os modos
“inapropriados” daqueles que desejavam transformar os sacramentos em negócio,
comparado a qualquer outra atividade comercial, cuja finalidade era exclusivamente
obtenção de renda e lucro. Percebemos que talvez não fosse por acaso que, ao se
referir às ações dos religiosos, o poeta privilegiasse a utilização de verbos como
“ganhar” e “apurar”, no sentido de obtenção de lucros, ambas elocuções possuíam
relação muito próxima com atividades comerciais.
2
BARROS, Leandro Gomes de. A crise actual e o augmento do sello. In: Antologia Leandro Gomes
de Barros - 2. Tomo III, op.cit., p. 303-305.
125

No trecho, o desejo de lucrar se relacionava com os sacramentos, que, de


acordo com as normas vigentes na Igreja Católica, deveriam ser cumpridos em sinal
da atuação de Cristo entre os homens, mas ali pareciam ser realizados com
aspiração à obtenção de retorno financeiro. Notemos que, quando o vigário conta
sobre o batismo que realizou a convite do senhor de engenho, ao invés de ressaltar
o benefício de ter ajudado mais um fiel a renascer para a graça de Deus e se tornar
cristão 3 , o que enfatiza é a indignação por ter se deslocado até a casa desse
senhor, que já havia sido um dos maiores representantes das classes dominantes de
Pernambuco, e ter voltado de lá sem receber nenhuma recompensa material.
Além disso, o poeta aproveita para lançar mais alguns senões relacionados
aos vícios dos religiosos. Ao mostrar a indignação do vigário diante do ocorrido:
“Voltei a pé e com fome”, associa à sua imagem dois conhecidos vícios, geralmente
atribuídos à figura dos clérigos: preguiça e gula. Não é difícil encontrar nos jornais da
época imagens de padres gorduchos e sedentários que cultivavam como ninguém
alguns desses pecados capitais, considerados sem perdão pela Igreja Católica. 4
Não obstante, de acordo com a narrativa, a deformação dos sacramentos não
era somente relacionada ao batismo, nem tão pouco privilégio do baixo clero. Ao
falar sobre as ações do bispo, o poeta entregava alguns de seus ‘deslizes’ com
relação aos preceitos católicos: “Fui ver se chismava gente/ Um só não me
appareceu“. No trecho, percebemos que, diante do desespero da falta de recursos, o
religioso partia em busca de pessoas para serem crismadas. Contudo, ao possuir o
substantivo coletivo “gente”, o trecho indica que serviria qualquer indivíduo, ou
mesmo, qualquer quantidade de pessoas, o que valia mesmo era conseguir alguém
para receber o sacramento.
No entanto, ao evidenciar o desespero do bispo por “gente” para crismar, o
trecho evidencia mais um desvio do sacerdote no sentido de se afastar dos
sacramentos, pois, na verdade, a lógica da crisma é justamente que aconteça a

3
“Então Jesus se aproximou, e falou: << Toda a autoridade foi dada a mim no céu e sobre a terra.
Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do
Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês. Eis que
eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo>>” (Mateus, 28: 18-20). BÍBLIA. Português.
Bíblia Sagrada - Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990, p. 1279.
4
O periódico jornalístico O Diabo a Quatro, publicado durante os últimos anos do século XIX, é um
exemplo do que foi afirmado. Nele é comum encontrar caricaturas de padres gordos e preguiçosos,
pouco adeptos ao trabalho.
126

partir da manifestação da vontade do fiel, e não o contrário. De acordo com a Bíblia,


esse sacramento é a confirmação do batismo, pois, ao ser ungido com o óleo, o
indivíduo assume com mais maturidade o compromisso com a Igreja, sendo assim, o
sujeito não deve ser levado ou ‘buscado’ por um terceiro, mas imbuído por sua
vontade a receber o sacramento. 5
Além dessas referências às tentativas de obtenção de lucro com as “coisas do
Senhor”, há ainda uma última satirização que gostaríamos de enfatizar uma vez que,
novamente, refere-se aos desvios dos religiosos. Logo no início do período, o poeta
ironiza ao apontar o desespero do arcebispo diante da crise. É engraçada a
indicação mostrando que o religioso pensava “até” na possibilidade de conseguir um
trabalho: “Eu vou trocar o cajado/ Por um ansol vou pescar”. É claro que esse tipo de
atividade sugerida mais se aproxima da idéia de tirar férias do que propriamente
uma ocupação séria e formal, contudo, mais uma vez reforça a idéia anteriormente
apontada com relação à preguiça e sedentarismo dos religiosos.
Através desse pequeno trecho, do folheto A crise actual e o augmento do
sello, o poeta consegue demonstrar a vigilância que mantinha nas mudanças de
práticas e valores adotados no início de século. Por meio das satirizações, notamos
que o referencial religioso do narrador se distanciava consideravelmente daquele
assumido pelos clérigos. Trabalho, caridade e desapego eram, sem dúvida,
características singulares no modelo religioso aceito e procurado pelo poeta, logo o
referencial ‘distorcido’ que encontrava na cidade fazia com que os curas fossem os
primeiros a serem lembrados e criticados em suas narrativas.
Apesar da vigília permanente com relação às atitudes do clero, estes não
eram os únicos a serem indicados no folheto como “desviantes das coisas divinas”.
É interessante perceber os modos que o poeta encontrava para satirizar e apontar
acontecimentos e situações que expunham de forma engraçada tensões, valores e

5
“Enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo atravessou as regiões mais altas e chegou a Éfeso.
Encontrou aí alguns discípulos, e perguntou-lhes: << Quando vocês abraçaram a fé receberam o
Espírito Santo?>> Eles responderam: <<Nós nem sequer ouvimos falar que existe um Espírito
Santo.>> Paulo perguntou: << Que batismo vocês receberam?>> Eles responderam: << O batismo
de João.>> Então Paulo explicou: <<João batizava como sinal de arrependimento e pedia que o povo
acreditasse naquele que devia vir depois dele, isto é, em Jesus.>> Ao ouvir isso, eles se fizeram
batizar em nome do senhor Jesus. Logo que Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo desceu
sobre eles, e começaram a falar em línguas e a profetizar.” (Atos dos Apóstolos, 19:1-6, grifo nosso).
BÍBLIA, 1990, op.cit., p. 1421.
127

práticas que, ao seu modo de ver, afastavam-se dos referenciais por ele
considerados corretos e, por isso, eram apontados com estranhamento em suas
narrativas.
Notemos, por exemplo, a capacidade de criação do poeta ao falar da ação
dos fiscais durante o aumento da cobrança dos impostos. Para isso, adotava
situações inusitadas, que tinham como pano de fundo uma ferrenha crítica à
monetarização das relações:

Ordenei mais que um noivo


Pretendendo a se cazar
Sellar-se elle e a mãe
O pai tem de se sellar,
E o pai da propria noiva
Precisa se carimbar.

A sogra do noivo não,


Não é preciso sellar
A sogra, a cobra, o lacrau
Estão isentos de pagar
Graças ao veneno desses
Sempre podem escapar
[...]

Vi uma velha chorando


Dizendo meu Deus que sina!
Já fui aos homens da terra
Fui a justiça divina
Minha filha vai casar-se
Querem sellar a menina. 6 (sic)

No trecho, é perceptível que o poeta aproveitava alguns problemas


enfrentados pelos comerciantes mais pobres, a exemplo do aumento do selo sobre
os produtos comercializados, para suscitar questões acerca de algumas relações
que vinham sofrendo transformação na sociedade. É interessante notar o modo
como a narrativa relacionava elementos pertencentes a esferas absolutamente
diferentes, como o matrimônio e os impostos, e, a partir dessa associação,
normalmente não cogitada, terminava por evidenciar a crítica ali embutida.
No fragmento destacado, é latente a inquietação do poeta ao gerar uma
situação na qual dissimulava relação aparentemente engraçada e irreverente, onde
atos e manifestações religiosas e sagradas, passavam a ser controladas,
6
BARROS, L. G. A crise actual e o augmento do sello. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -
2.op.cit., p. 310-311.
128

fiscalizadas e taxadas por autoridades civis, que lhes atribuíam novos e diferentes
valores. O trecho se desenvolve como se o autor desejasse evidenciar que, nesse
novo contexto, nada escaparia de ser transformado em mercadoria, mesmo que se
tratasse do casamento, vínculo estabelecido segundo as regras de uma religião, um
dos sacramentos da Igreja Católica, que deveria ser cumprido e vivido em sua
normalidade, para que o fiel se mantivesse próximo à vontade de Deus 7 .
Ao criar uma situação onde ficava evidente o afrontamento entre as coisas de
Deus e os valores do “mercado”, com ênfase à imposição do segundo sobre o
primeiro, o poeta inevitavelmente mostrava o lugar de onde falava, e a convicção de
algumas tantas pessoas, que, assim como ele, possuíam fortes crenças religiosas e
se manifestavam para que, diante das investidas dos novos tempos, os valores
religiosos fossem respeitados.
No trecho selecionado, percebemos que muitos personagens eram partidários
da convicção do poeta: “Vi uma velha chorando/ Dizendo meu Deus que sina!” A
senhora se chocava e mostrava seu desespero diante da transformação religiosa e
também econômica por que passava a cidade. Sua indignação era tamanha que,
diante da falta de justiça dos homens, clamava à justiça divina, pois, de acordo com
os próprios conhecimentos populares, “tarda, mas não falha”.
Essa ciência, acerca da punição dos pecadores, fica evidente na própria
narrativa. Observemos o que ocorre a um dos fiscais, responsável pela proliferação
dos selos:

Morreu um dia um fiscal


Foi dar contas ao Eterno
Ghegou lá, Deus perguntou-lhe
Rapaz, quede seu caderno?
Disse o fiscal: dei-o hontem
Ao caixeiro do inferno.

Então Deus lhe perguntou


Porque não trouxe comsigo?
Disse o fiscal é porque
Aqui eu tenho inimigo
Os empregados do mundo
Tudo aqui correm perigo.

7
“Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só
carne. Esse mistério é grande: eu me refiro a Cristo e à Igreja. Portanto, cada um de vocês ame a sua
mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido.” (Efésios, 5: 31-33). BÍBLIA, 1990, op.cit.,
p. 1506.
129

Lá, eu empatei um santo


Pedir esmola na feira,
No dia que fiz um padre
Sellar uma padroeira
Fiz a proscissão dos Passos
Sahir em toda carreira. 8 (sic)

No trecho em destaque, o fiscal passava por um momento de provação, como


conseqüência de ter levado tantos problemas à vida das pessoas na terra. Assim
como todo cristão, quando morreu, precisou prestar “contas ao Eterno”, e foi
interrogado sobre seus atos em vida 9 . O julgamento do fiscal aparece na narrativa
como uma espécie de lição de moral, e certeza de que haveria compensação ou
punição sobre todos os atos cometidos durante a existência do sujeito.
A primeira interrogação dirigida ao fiscal foi acerca de seu caderno: “Rapaz,
quede seu caderno? Disse o fiscal: dei-o hontem ao caixeiro do inferno”. Por
intermédio de Deus, o poeta perguntava sobre o caderno, porque acreditava que ali
estariam registradas todas as injustiças que os representantes do governo cometiam
contra os comerciantes e pessoas comuns aqui na terra. Durante a resposta, ficava
clara a sátira dirigida a esses profissionais, ao anunciar que antes de qualquer
atividade na sua vida post mortem, havia, primeiramente, dado uma “passadinha” no
inferno, como se indicasse familiaridade com o ambiente.
Vale ressaltar que, além de mostrar todo seu desprezo e indignação contra os
“empregados do mundo”, ao anunciar a passagem do fiscal primeiro pelo reino das
trevas, o poeta indicava que esses sujeitos também eram mal quistos no céu, e ali
possuíam muitos inimigos: “Aqui eu tenho inimigo / os empregados do mundo / tudo
aqui correm perigo”. Ou seja, o narrador desejava mostrar a reprovação por parte de
Deus, e dos moradores do céu, com relação às atitudes dos funcionários do governo
na terra.
Notamos que a campanha contra os fiscais provavelmente acontecia porque o
poeta acreditava que estes eram os mais fortes representantes daqueles que

8
BARROS, Leandro Gomes de. A crise actual e o augmento do sello. In: Antologia Leandro Gomes
de Barros - 2.op.cit., p. 314-315.
9
“Não se iludam, pois com Deus não se brinca: cada um colherá aquilo que tiver semeado. Quem
semeia nos instintos egoístas, dos instintos egoístas colherá corrupção; quem semeia no Espírito, do
Espírito colherá a vida eterna. Não nos cansemos de fazer o bem, se não desanimarmos, quando
chegar o tempo, colheremos.” (Gálatas, 6: 7-9). BÍBLIA, 1990, op.cit., p.1500.
130

desejavam intensamente as transformações e a “modernização” da cidade, além de


serem os causadores de muito sofrimento às pessoas que ali viviam.
O próprio empregado do governo, ao prestar contas de suas ações na terra,
possuía consciência de que os principais pecados que cometera durante a vida
foram afrontas contra a religião. Ao confessar, por exemplo, que empatou um santo
de pedir esmolas na feira, mostrou toda a crueldade de um sujeito que, mesmo
sabendo que aquela poderia ser a única possibilidade de sobrevivência de alguém,
ainda assim o impediu de ganhar seu pão.
A feira era momento singular na vida dos sertanejos, pois muitos se
sustentavam por meio da venda de roupas, cerâmicas, artesanatos, artigos de
couro, artefatos de palha, arreios, dentre muitos produtos. Outros sobreviviam com
apresentações artísticas, como era o caso dos cantadores, emboladores, que
cantavam através de motes tirados de improviso, acrobatas e profissionais que
conseguiam algum dinheiro através de sua criatividade e inventividade. Mas, além
disso, a feira era, ainda, espaço para indivíduos que, impossibilitados de mercadejar,
ou fazer apresentações artísticas, sobreviviam das esmolas que ganhavam, como
era o caso dos cegos e outros deficientes.
O fiscal, representado no folheto, reconhecia sua falta de compaixão ao
confessar, durante seu interrogatório, que impedira sujeitos necessitados de
exercerem uma das poucas atividades que lhes era possível. O homem reconhecia
que seu ato não fora louvável, pois, além de impedir a realização de um ato
aprovado e aconselhado pela bíblia, como era a recomendação de dar esmolas – ”A
esmola livra da morte e purifica de todo pecado. Quem pratica esmola, terá vida
longa.” (Tobias, 12: 9) 10 – ele também prejudicava pessoas que pediam e
agradeciam em nome de Deus:

Tenham pena deste cego,


Filhos da Virge Maria,
Eu sou cego de nascença,
Nunca vi a luz do dia!...
[...]

Deus lhe dê muito dinheiro,


Deus lhe dê muita alegria...

10
BÍBLIA, 1989, op.cit., p. 540.
131

Que as moeda sejam tantas


Que nem pó em serraria 11 (sic)

Nesse sentido, ressaltamos que o poeta estava atento às mínimas atitudes


dos empregados da cidade, inclusive àquelas que contrariavam normas, valores e
práticas vigentes nas tradições culturais de que era partidário, como é o caso da
doação de esmolas aos mais pobres.
Seguindo o trecho indicado no folheto de Barros, percebemos que a ação
contra os cegos não havia sido o único pecado do fiscal, que confessava atos ainda
mais graves, como ter obrigado um padre a colocar selo de cobrança de impostos
em uma padroeira: “No dia que fiz um padre / Sellar uma padroeira”, ato certamente
merecedor de castigo exemplar, pois o culto à Virgem Maria era bastante forte entre
os católicos da cidade.
O culto à Virgem Maria foi enfatizado no Recife durante o Segundo Reinado,
por volta de 1850, fazia parte das reformas por que passava a Igreja Católica que
tentava difundir os dogmas afirmados pelo papado, além de combater os
“demasiados” cultos populares existentes no Brasil desde o período colonial.
Raimundo Pereira Alencar Arrais afirma que o culto à Maria ganhou fervor entre os
recifenses:

Sob suas diversas designações, o culto de Nossa Senhora, mormente o de


Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora da Penha, adquiriu no Recife
um vigor impressionante. O fervor dos fiéis na colaboração para a demorada
construção do templo de Nossa Senhora da Penha dá uma mostra dessa
energia mobilizada pela fé. 12

Os padres e representantes do vaticano faziam exercícios cotidianos para


orientar fiéis no que dizia respeito aos rituais de culto à virgem. Manuais, livros,
propagandas, Horas Marianas, celebrações no interior e fora das igrejas eram
utilizados para expandir a devoção que era contrastada a cultos tradicionais como o
de Santo Antônio, que não se “adequavam” aos planos de gestão urbana da cidade.
A relevância da santa ganhou tamanho vigor que, a partir de 1919, Nossa Senhora

11
MOTA, Leonardo. Cantadores. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 3ª ed., 1961. p. 96.
12
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. O pântano e o Riacho: A formação do espaço público no
Recife do século XIX. 2001. Tese de Doutorado em História Social - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Orientador Prof. Dr. Marcos
Antônio da Silva, p. 225.
132

do Carmo subiu à posição de co-padroeira de Pernambuco, ao lado de Santo


Antônio. 13
A fé devotada a Maria pode ser tomada como um exemplo de que não havia
somente enfrentamentos entre fiéis e reformadores na cidade, mas também
relações, pois o culto adquiriu ao longo do século XIX e XX uma dimensão bastante
forte e significativa. É bem verdade que nem sempre a relação com a santa se dava
do modo que os reformadores desejavam, no entanto era inegável a força de sua
devoção.
A fé que os poetas depositavam em Maria aparece na literatura de folhetos de
forma expressiva. O poeta paraibano Manoel Camilo dos Santos (1905-1987) pode
servir como uma espécie de arquétipo para que salientemos a relevância da
devoção à Santa. Micheline Reinaux de Vasconcelos trabalha com um texto
significativo desse autor, no qual há uma declaração de seus princípios,
relacionando os principais motivos de sua fé e devoção à “Serva do Senhor”:

Sou católico por que tenho a felicidade de ser devoto Daquela que, 700
anos antes do seu nascimento, já os profetas se preocupavam com seu
santo e privilegiado nome, que é MARIA SANTÍSSIMA...
Maria Santíssima a Virgem e Imaculada por excelência; o tesouro venerável
do universo, a coroa da Virgindade o centro da doutrina verdadeira, o
templo indestrutível no qual enserrou-se Aquele que nenhum espaço pôde o
conter.
Maria Santíssima por quem os anjos se alegram, por que os demônios são
afugentados, por quem as criaturas decaídas readquirem a felicidade
eterna, por quem a Santíssima Trindade é exaltada no céu e na terra.
Maria Santíssima o manancial das fontes eternas, de graças, de virtude e
santidade; Maria Santíssima por quem sobe-se as mais radiosas esferas da
suprema felicidade eterna. 14 (sic)

A partir desse levantamento da obra de Manoel Camilo, bem como


informações sobre o crescimento do culto à Maria na cidade do Recife, temos noção
do tamanho da fé e credulidade dedicadas à figura da Santa naquela região. Logo,

13
ARRAIS, 2001, op.cit., p. 224 - 229.
14
SANTOS, Manoel Camilo dos. Vou dizer por Qual motivo Nunca Serei Protestante apud
VASCONCELOS, Micheline Reinaux. Os Nova-Seitas: a presença protestante na perspectiva da
literatura de cordel - Pernambuco e Paraíba (1893-1936). 116f. 2005. Dissertação de Mestrado em
História - Programa de Estudos Pós-Graduados em História na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2005.
133

ao estabelecermos relações entre os elementos mencionados e a narrativa de


Leandro de Barros, poderemos dimensionar o temor do fiscal de A crise actual e o
augmento do sello, ao confessar seu atentado contra a “Virgem Santíssima”,
arremetendo impiedosamente um selo de imposto na padroeira, atitude que,
dificilmente, teria remissão no céu.
Não obstante, acreditamos que o destino do fiscal tenha sido decidido após
confessar seu último pecado: fazer a Procissão dos Passos “sahir em toda carreira”,
pois, provavelmente, tanto os moradores do Recife, quanto os habitantes do céu,
achavam que este pecado não merecia perdão.
De acordo com o memorialista Mário Sette, a Procissão dos Passos era uma
das mais concorridas e demoradas da cidade, pois se iniciava na quinta-feira da
Quaresma, assim que a tarde caía, e se encerrava na sexta-feira, no início da noite.
Na quinta-feira, a procissão denominada do “Encerro” era iniciada na Igreja do Corpo
Santo, que foi demolida em 1913 nas obras de ampliação da cidade, principiava com
dobres lentos, dolorosos e tristes de sinos, e a imagem do Bom Jesus dos Passos
saía envolta em um dossel de seda roxa num “longo, belo e tocante cortejo noturno”
em direção ao Convento do Carmo, ali, passava toda a noite. 15
No outro dia, com o cair da tarde, a imagem retornava ao Corpo Santo em
uma procissão que tinha na cidade honras de esplendor e de fama, pois há muito
tempo as pessoas esperavam por esse momento, como se fosse uma etapa do ano
a ser cumprida. Sette recordava detalhes do ritual solene:

[...] As irmandades, as confrarias, o andor enfeitado com cravos e alecrins,


as ordens terceiras, o seminário, o pálio, [...] as músicas, o povo... Um
desfile extenso, colorido, bonito, empolgante! De quando em vez se via no
meio do préstito um homem com um rabecão, outro com um violino, outro
ainda com uma música na mão. Era a orquestra que ia tocar num dos
passos. Ali o andor parava, dando as quedas do ritual. A multidão arrojava...
16
(sic)

O memorialista conta que a procissão demorava tanto, que as pessoas que


moravam no trajeto por onde ela passava se preparavam com muita antecedência
para receber as visitas que vinham de longe, permaneciam todo o dia e ficavam para

15
SETTE, Mário. Maxambombas e Maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante Brasileiro,
1958.
16
Ibid.
134

o jantar, uma vez que, quando tudo findava, a noite já havia caído, as ruas estavam
cada vez mais vazias e escuras. 17
Em função dessas informações, apreendemos a gravidade do ato cometido
pelo “malvado” fiscal, que, de acordo com o poeta, atreveu-se a interferir no
funcionamento de uma das cerimônias mais solenes e tradicionais da cidade, e em
um ato de subversão colocou a “demorada” procissão para “correr”. Certamente, os
três feitos cometidos por esse “abusado” sujeito na narrativa, principalmente contra
os valores, obras e rituais religiosos, contribuíram para o castigo que lhe foi
atribuído:

O Eterno olhou-o e disse-lhe


Já por alli cara dura
Vá encharcar o inferno
Com sua horrenda figura
O diabo disse: vote!
Eu quero é ver-lhe a lonjura.

Voltou para o pulgatorio


Foi o mesmo desmantello,
Quizeram o apedrejar
O porteiro não quis vel-o
Foi ao inferno, o diabo
Não quis, nem pr’a derretel-o 18 (sic)

No final da história ficava evidente o castigo para aqueles que descumpriam


as normas e os valores da religião da qual o poeta era partidário. O fiscal recebe a
punição por ter atormentado a vida de tantas pessoas na terra, é expulso do céu, do
purgatório, e nem no inferno possui alguma serventia.
A partir do folheto publicado, percebemos que, apesar de trabalhar com
personagens fictícios, inseridas em situações do cotidiano da cidade, o poeta não
deixava de enfatizar lições de moral, que davam a certeza a seus leitores de que os
sujeitos que praticavam ações danosas à vida das pessoas, tanto em aspectos
materiais, como valores, normas e crenças, não ficariam impunes. Embora fosse
uma crítica engraçada, construída com base em muita criatividade e inventividade, a
narrativa não deixava de trazer uma dimensão da experiência do seu autor, que

17
SETTE, 1958, op.cit.
18
BARROS, Leandro Gomes de. A crise actual e o augmento do sello. In: Antologia Leandro Gomes
de Barros - 2.op.cit., p. 315.
135

mostrava, além de confabulações no desenrolar da história, lições e valores que


considerava os mais corretos para serem afirmados e difundidos durante as leituras
ou audições.
Com relação à riqueza presente nessas experiências das poesias rimadas, é
interessante atentar para o que dizia Walter Benjamin acerca da dimensão da
verdadeira narrativa:

Ela tem em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária.


Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa
sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer
maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se “dar
conselhos” parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão
deixando de ser comunicáveis. 19

Nesse trecho, Benjamin criticava a perda da capacidade de narrativa em


detrimento da informação, que já vem acompanhada de todas as explicações
possíveis, não deixando possibilidade de suscitar reflexão, ao contrário do que
acontece na narrativa, que deixa margem para que, ao longo de sua vida, o sujeito
vá significando seu conteúdo, compreendendo-o a partir de suas experiências.
O que nos parece é que Leandro Gomes não desperdiçava em suas poesias
a possibilidade de fazer com que seus leitores e ouvintes se inquietassem ao
acompanhar as críticas direcionadas às transformações da cidade. Através do
folheto trabalhado, percebemos que o narrador aproveitava sua habilidade de rima
para imprimir nas histórias, além de intervalos engraçados, que faziam as pessoas
se distraírem, também significados, experiências, valores que considerava corretos
naquele período de transformações. É como se o poeta deixasse para seus
interlocutores, pessoas que tinham experiências, dificuldades, e também origens
semelhantes às suas, a possibilidade de significarem e corroborarem com suas
insatisfações e descontentamentos com os acontecimentos correntes.
Acompanhamos nos folhetos de Barros constantes exercícios de intercambiar
experiências e difundir valores, mesmo quando estes eram caracterizados como
“antiquados” e “fora de uso”. É o caso do folheto As saias calções, escrito entre 1910
e 1913, uma narrativa singular, permeada de críticas e restrições às inovações que

19
BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:______. Magia e
técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 200.
136

surgiam naquele início de século na cidade do Recife, mostrava valores de quem


escrevia e também de quem lia o material.
O folheto As saias calções pode ser tomado como suporte para perceber as
diferentes formas que o poeta encontrava para enfrentar os novos valores e atitudes
disseminados e praticados na cidade. A narrativa está permeada de cobranças e
punições endereçadas àqueles que aderiam às inovações. No início do folheto,
assim como fazia freqüentemente, o poeta relacionava uma série de mudanças que
lhe causavam estranhamento:

O mundo está as avessa,


As cousas não vão de graça,
Homem raspando bigode
E mulher vestindo calça,
Isso é um páo com formiga,
Um banheiro com fumaça. 20 (sic)

Alguns hábitos e comportamentos sofriam alterações, e essas mudanças


causavam incômodo ao autor da poesia, que, sempre de maneira muito bem
humorada, proferia ferrenhas críticas aos seus praticantes. No trecho notamos que o
poeta observava a reviravolta porque passava o mundo, pois sequer conseguia
definir os papéis sexuais dos sujeitos ali presentes, o que lhe causava profunda
indignação.
Leandro de Barros aproveitava a oportunidade para recriminar uma moda
muito difundida na cidade, que se espalhava entre as mulheres, eram as
famigeradas “saias-calção”, um tipo de vestimenta que em seu cumprimento trazia
muito tecido, mas na extremidade de baixo ficava presa aos calcanhares. O poeta
considerava essa inovação “cousas do fim de mundo”, uma “sem-vergonhice”,
adotada por mulheres de “índole” e “moral duvidosa”.
Na tentativa de combater a gravidade de tais inovações femininas, Leandro
de Barros criou uma associação entre a adesão à moda e o afastamento e
descumprimento de atos e práticas religiosas. No folheto As saias calção o autor

20
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, Centro
de Pesquisas, Setor de Filologia, 1983, p .39-40.
137

concebia formas bastante criativas para mostrar aos leitores e ouvintes os diferentes
problemas enfrentados pelos sujeitos que ousavam aderir a tal moda:

Hontem morreu uma velha


E não quis a confissão,
Disse ao filho antes da morte,
Para mim não faça caixão
E quero em vez de mortalha
E’ uma saia calção. 21 (sic)

A personagem do trecho em destaque é um exemplo da oposição entre moda


e religião, sua atitude traz “lições de moral” que deveriam servir como modelo para
outras mulheres. Note que, na lógica do autor, por possuir mais tempo de vida,
experiência e conhecimento acerca das normas e valores em vigor, a “velha” deveria
saber discernir entre o “correto” e “incorreto”, “descente” e “indecente”, contudo não
é isso que ocorre, pedia insistentemente ao filho a vestimenta da moda.
O poeta associa diretamente a adesão ao elemento da moda ao
descumprimento das normas religiosas, observe que, mesmo em seu leito de morte,
a “velha“ não desejava receber o sacramento da confissão, porque só assim poderia
morrer em paz e vestida com sua saia calção. Intencionalmente o narrador afirmava
os perfis duvidosos daqueles que aderiam às inovações, construindo personagens
sem caráter, não confiáveis, e de pouca credibilidade.
Insistimos no sentido de que para advertir seus leitores e ouvintes acerca da
gravidade de condescender-se às inovações dos tempos modernos, o poeta
reforçava seus argumentos recorrendo a valores, comportamentos e práticas
religiosas, imprimindo nos folhetos uma moral que cobrava posturas acertadas e
firmes diante das ofensivas da modernização. É interessante perceber que, além do
rigor das cobranças de posturas firmes aqui na terra, o poeta acenava possibilidades
de cobranças que se estenderiam, inclusive, após a morte, alegando que as
punições não se limitariam às dependências terrenas, mas à chegada e
permanência no céu. Observe o que aconteceu com esta outra velha:

Morreu agora uma velha

21
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo. op. cit., p. 41
138

N’uma cachaça medonha,


As filhas enterraram ela
Vestida em saia pamonha,
Foi ao céo, S. Pedro disse
Já por ali! sem vergonha 22

Novamente outra pessoa é enterrada com as saias da moda. Note que mais
uma vez o poeta insistia em dizer que a personagem era “velha”, o que, novamente,
reforçava sua noção de que caberia principalmente às pessoas mais experientes a
responsabilidade em se posicionarem criticamente diante das práticas e inovações
do seu tempo.
Contudo, dessa vez, o que desabonava a “velha” era o fato de ter morrido
embriagada, o que a inseria num rol de pessoas não muito bem quistas na
sociedade, pois havia uma distinção entre os “amantes da cachaça”, e os
conhecidos “cachaceiros”, sujeitos que bebiam desregradamente prejudicando a si e
aos outros 23 . Nessa campanha, percebemos que, ao associar a “velha” à “saia” e à
cachaça, o poeta reforçava a imagem negativa das pessoas que aderiam a tais
modas. 24
No trecho acima, o poeta não se limita a associar moda e o descontrole no
álcool. No caso da velha “cachaceira”, quem decide enterrá-la com a tal “saia
pamonha“ são suas filhas, indicando que o problema do uso e disseminação da
moda não estava somente entre os mais velhos.
Não obstante, a narrativa indicaria que a anuência a tal inovação não lhe
custaria barato: “Foi ao céo, S. Pedro disse / já por ali! sem vergonha”. Se
pensarmos que, de acordo com a tradição popular, São Pedro é o guardião das
chaves do paraíso, e, segundo a narrativa, a “velha” só conseguiu conversar com

22
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p. 43.
23
De acordo com Hernani de Carvalho em seus estudos sobre a cachaça nos sertões do Brasil “ [...] é
necessário distinguir-se o amante da cachaça do cachaceiro: o primeiro, bebe-a aristocraticamente
[...] ao passo que o último se dá ao uso desregrado da cachaça, prejudicando-se.” CARVALHO,
Hernani de. No mundo maravilhoso do folclore. Rio de Janeiro: Tipografia Batista de Souza, 1966,
p.155-159.
24
O descontrole no consumo de bebida não era raro de ser presenciado entre os sertanejos, o que
ajudava a gerar uma série de ditados e provérbios intimamente relacionados ao consumo da cachaça.
Encontramos alguns exemplos: “acontece desgraça porque não acaba cachaça”, “pinga demais,
tombo na poeira”, “cachaceiro não tem segredo”, “cachaça tira o juízo, mas dá coragem”, “três coisas
espirram um cabra pra fora da cafua: fumaça, goteira e mulher cachaceira”. MOTA, Leonardo.
Adagiário Brasileiro. Fortaleza: edições Universidade Federal do Ceará; Rio de Janeiro: J. Olympio,
1982, passim.
139

esse santo, então chegaremos à conclusão de que ela sequer conseguiu passar das
“portas” do céu, e, através das palavras do próprio santo, teve seu castigo exemplar,
retornando, sem ao menos ser julgada.
Nesse sentido, ressaltamos que o poeta não parecia muito tolerante com as
pessoas que aderiam às inovações, mostrando que tais atitudes eram dignas de
reprovação, tanto na terra, como no céu. A despeito, suas repreensões, que até o
momento foram dirigidas às velhas “sem vergonha”, não se limitariam a elas, uma
vez que, em se tratando de Leandro Gomes de Barros, não tardaria para que os
religiosos também fossem incluídos no rol de pecadores:

Dizia frei Ribingudo,


Hontem, pregando um sermão,
Deus filhos creiam por Deus
Que eu digo de coração,
Só queria ser mulher,
Para botar saia calção.

Dizia na confissão
A freira Chica Bazar,
Eu prefiro até fugir,
Se quizerem me empatar,
Mas, uma saia calção,
Eu não deixo de botar. 25 (sic)

No trecho o poeta faz mais uma irreverente ofensiva contra membros do clero
católico, contudo, dessa vez não crítica a ganância, venalidade nem interesses por
lucros. No caso desse folheto, é bastante sutil e extremamente provocante ao
acenar possibilidades de homossexualismo entre os religiosos.
O frei Ribingudo durante o seu sermão, ao invés de pregar sobre as verdades
cristãs, ou repreender comportamentos desmoralizantes, papel geralmente
assumidos pelos oradores religiosos, “dizia de coração” que queria ser mulher para
colocar as “tais” saias calção. Já a freira Chica Bazar, durante a confissão, momento
de penitência, em que deveria revelar e arrepender-se de seus pecados, apenas
confessa sua vontade de trajar a saia da moda, além de mostrar rebeldia ao
ameaçar uma possível fuga, caso não a deixassem colocar a vestimenta, que era,
até então, indumentária masculina:

25
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p.41-42.
140

Procuro um jeito nellas


De forma nenhuma acho,
São botões como diabos
Desde cima até em baixo,
Estando mulheres e homens
Parece ser tudo macho. 26 (sic)

Diante da observação de que as saias calção eram vestimentas masculinas,


parece-nos que o poeta sugeria uma inversão de sexualidade entre os religiosos: Os
homens revelavam suas vontades secretas de se vestirem como mulheres, e as
mulheres mostravam toda a sua rebeldia ao trajarem roupas que historicamente
haviam pertencido aos homens. No trecho, há uma sugestão de que poeta se
incomodava com essa flexibilização dos papéis de gênero que se acentuava na
sociedade.
Raimundo Nonato da Silva Fonseca, em seu livro “Fazendo fita”:
cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1987-1930, ao tratar da
influência do cinema nos comportamentos sexuais, afirma que a aproximação das
mulheres a comportamentos masculinos, assim como apropriação pelos homens de
trajes e artifícios femininos, causava mal estar nas pessoas que criticavam os novos
hábitos, considerados coisas de “almofadinhas” que “desfilavam pelas ruas
ridicularizando a sociedade brasileira”. 27
A reação com a flexibilização dos papéis sexuais não parece ter sido muito
diferente no Recife. Os próprios folhetos de Leandro Gomes expõem com
indignação o fato de as mulheres estarem não somente se apropriando dos trajes,
mas também de comportamentos, posturas e hábitos historicamente masculinos.
O poeta constatava inflamado que “as cousas estavam mudadas”, pois,
mesmo depois de casadas, as mulheres ganhavam as ruas para trabalhar, deixando
os afazeres de casa por conta de seus maridos:

Agora é que elles estão vendo


Que a cousa está em começo

26
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p.40.
27
FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. “Fazendo fita”: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em
Salvador, 1987-1930. Salvador: EDUFBA; Universidade Federal da Bahia. Centro de estudos
Baianos, 2002, p. 180-181.
141

Tanto que muitos já disseram


Está tudo pelo avêsso.
E inda está em principio
Ainda vai pelo um terço
[...]

Ha homens que hoje vive


Do trabalho da mulher,
Embora que elle só faça
Aquilo que ella quizer,
Há de carregar no quarto
Os filhos que ella tiver 28 (sic)

O mundo não era mais o mesmo, o poeta se indignava porque as mulheres


não se limitavam mais exclusivamente ao espaço doméstico. Elas ganhavam as
ruas, iam para as fábricas fechar cigarros, engomavam roupas, eram amas de leite,
costureiras, professoras, modistas e, até mesmo nos “sertões”, deixavam os maridos
em casa “alcovitando as panelas” e partiam para o trabalho na roça 29
Fossem pertencentes às classes mais abastadas, como parece o caso da
crítica às mulheres que vestem as “saias calção”, ou fizessem parte das classes
populares, como as trabalhadoras supracitadas, o fato é que as mulheres,
definitivamente, não eram mais as mesmas, o que causava grande estranhamento
no autor, que considerava estar “tudo pelo avesso”:

As mulheres que só vivem


A sondar a invenção,
Acharam que estavam bem
Inventando cinturão,
Com pouco mais ellas andam
Com cartucheira e facão.

Além da tal pulseira


Com que vivem algemadas,
Chegaram ás saias pamonhas,
Com essas vivem peiadas,
Agora as saias calções
Chegaram mesmo damnadas
[...]

Hontem vi duas mulheres


Que estavam em discussão,
Sobre a crença do paiz
Fanatismo e corrupção,
Uma perguntou a outra

28
BARROS, Leandro Gomes de. As cousas Mudadas. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -
2.op.cit., p. 284-286.
29
Ibid., p. 284-289.
142

Já vistes saia calção?

E apois minha visinha


Disse a outra admirada,
São cousas de fim do mundo,
Bem disse frei Panellada
Que ainda chegava tempo
De agente viver peiada. 30 (sic)

No fragmento em destaque, é perceptível o incômodo do poeta com o fato de


as mulheres estarem mudando, adquirindo novas posturas e comportamentos, que
durante muito tempo lhes foram estranhos. A princípio, limitava-se a reclamar do uso
do cinturão, acessório da moda naquele momento, e brincava com a possibilidade
de futuramente elas adotarem o uso da cartucheira e facão, três elementos
conhecidos e utilizados como indumentária exclusivamente masculina.
No trecho, é interessante notar as formas utilizadas pelo poeta para travar o
enfrentamento contra as mudanças femininas, pois assume, inegavelmente, seu
lugar de homem sertanejo. Percebamos que não é por acaso que menciona
justamente três elementos que, historicamente, compuseram os trajes e vestimentas
do homem do campo. Acompanhe a descrição feita por Henry Koster acerca da
indumentária desses homens em viagem:

Sua roupa consistia em grandes calções ou polainas de couro taninado mas


não preparado, de cor suja de ferrugem, amarrados da cinta e por baixo
víamos as ceroulas de algodão onde o couro não protegia[...]. Seu chapéu,
de couro, tinha a forma muito baixa e com as abas curtas. [...] Na mão
direita empunhava um longo chicote e, ao lado, uma espada, metida num
boldrié que lhe descia da espádua. No cinto, uma faca, e um cachimbo curto
e sujo na boca. [...] A todo este equipamento, o sertanejo junta ainda uma
pistola, cujo longo cano desce pela coxa esquerda, e tudo seguro 31 (sic)
(grifo nosso)

Evidentemente nem todos os sertanejos que viviam na cidade do Recife se


vestiam de acordo com a descrição de Koster, no entanto, o que ressaltamos é que
o poeta escolheu uma indumentária familiar àqueles que compravam, liam e ouviam
suas narrativas, porque assim eles tomariam a ofensiva feminina também contra si.

30
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p.39-40.
31
KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Nacional, 1942, (Biblioteca
Pedagógica Brasileira. Serie 5ª. Brasiliana; 221), p. 133-134.
143

Talvez não tivesse tanta graça, ao invés de imaginar uma mulher vestida de
cinturão, cartucheira e facão, trajá-la de colete, paletó e croisé, indumentárias de
homens pertencentes a outras classes sociais. A graça estava justamente em buscar
afinidade, aproximação e apoio com o público que, assim como o poeta, estranhava
e não estava familiarizado com “tamanhas” inovações. Além disso, é possível que,
até mesmo por possuir apreço pelo exagero e alegorização, o poeta tivesse buscado
o referencial mais másculo e viril que conhecia para contrapor à ousadia das
mulheres.
Na alegoria feminina criada pelo poeta, as mulheres se aproximavam de
maneira admirável de formas e referenciais masculinos, chegavam a discutir
assuntos que historicamente haviam pertencido ao domínio dos homens: “crença do
paiz, fanatismo e corrupção”. Ou seja, de acordo com Leandro Gomes, algumas
mulheres se masculinizavam de tal forma que temas como religião e política agora
faziam parte do seu rol de discussões.
É interessante notar que a nova conduta feminina incomodava de tal maneira
o poeta que, neste caso, até mesmo os religiosos, freqüentemente chacoteados e
escarnecidos, eram muito sensatos ao anunciar que chegaria o tempo em que as
mulheres viveriam “peiadas”, ou seja, tratadas como éguas, como animais, pois a
peia era uma peça de couro ou corda com a qual se prendia o pé do cavalo, para
que não se afastasse do campo de pastagem 32 .
Com isso o poeta desejava apontar quão absurdos eram os novos trajes
femininos, usados somente por mulheres que se distanciavam dos valores religiosos
e que chegavam a beirar o ridículo ao aderirem à “pouca-vergonha” e “ousadia” das
inovações vindas e oferecidas pela moda.
Nesse sentido, sondamos que o narrador travava um embate com um grupo
específico de mulheres da sociedade recifense do início do século, uma vez que as
saias calções não eram indumentárias abertamente usadas e difundidas entre todas
as mulheres da cidade 33 , na verdade eram peças predominantes no mundo das

32
COSTA, F. A. Pereira da. O couro no vocabulário. Jangada Brasil, Número 14, Out. 1999.
Disponível em: <http://www.jangadabrasil.com.br/outubro14/of14100b.htm>. Acesso em 30 maio
2007.
33
Mário Sette descreve as vestimentas de “uma linda senhora” que trajava uma dessas saias da
moda, vestia espartilho arrochado, anéis em todos os dedos, mitenes, sapatos de saltos a Luis XV. O
memorialista observava a mulher que chegava às compras em sua carruagem, puxada por dois
144

moças e senhoras pertencentes à classe dominante que, além dessa inovação,


aderiam a uma série de outros artifícios, pois acreditavam que somente assim
atingiriam o ideal de modernidade.
No entanto, o desejo de ser moderno não se restringia às mulheres. Seu
comportamento era, na verdade, extensão dos desejos impressos na camada mais
ricas da sociedade recifense, que não diferia do caminho trilhado por cidades
brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, que, através
de reformas, urbanização, higienização, inovações tecnológicas, tentavam a todo
custo se aproximar de ideais de “modernidade” e “civilidade” que passavam
indubitavelmente pelo referencial encontrado na Europa.
A imposição do referencial europeu no funcionamento da cidade era
constante nas atitudes das classes sociais mais ricas, contudo isso não passava
despercebido para os diferentes segmentos da população que resistiam por meio do
combate, crítica e contestação ao anseio que se desejava estabelecer como “oficial”.
Percebemos nos folhetos de Leandro Barros críticas freqüentes com relação à
difusão de valores, normas e práticas importadas do “estrangeiro”.
Assim sendo, a partir de agora acompanharemos os embates presentes nos
folhetos direcionados contra aqueles sujeitos que chegavam à cidade trazendo, além
de experiências, também diferentes valores e crenças, que seriam alvo de duras
críticas difundidas através dos folhetos populares.

3.2. “Ou que lugar desgraçado”: enfrentamentos religiosos contra a


presença estrangeira

Ao analisar materiais referentes às duas primeiras décadas do século XX no


Recife, não é difícil perceber tentativas de modificar a cidade e imprimir, em seus
padrões, hábitos, comportamentos, valores, considerados mais “ajustados” para os
“novos tempos”. Após as reformas urbanas de 1909, é perceptível uma campanha

cavalos brancos, vindo do seu palacete na Madalena. Certamente não era uma mulher de classe
popular. SETTE, 1958, op.cit., p. 107-108.
145

pelos “bons” comportamentos, desejava-se, de diferentes maneiras, “educar” os


moradores no intuito de aproximar a cidade de referenciais de “desenvolvimento”,
“modernização” e “civilidade”, presentes em outras localidades brasileiras e que se
inspiravam, essencialmente, nos padrões Europeus.
O anseio de aproximação com a Europa poderia ser percebido num breve
passeio pelas ruas da cidade, onde, por meio da urbanização, das lojas, dos trajes,
dos comportamentos, as pessoas buscavam constantemente se assemelharem às
características do Velho Mundo.
Raimundo Arrais afirma que a conhecida Rua Nova ou Barão da Victoria se
tornaria famosa por sua elegância, consumo da moda e cultivo da frivolidade. O
autor informa que ali estavam localizadas lojas como a “Maison Chic”, a “Casa
Sloper”, a “Casa Francesa”, a “Porta Larga”, e outras “representantes européias”,
que vendiam todo tipo de material fino e requintado procurado pelas camadas ricas
e abastadas. Na rua encontravam-se calçados chiques para senhoras, costumes de
casimira, pratos chineses, louças, porcelanas, artigos japoneses, espartilhos,
colarinhos, máquinas de escrever, e até mesmo pianos.
Os estudos de Arrais indicam que a maior movimentação da rua se dava no
período da tarde, com estudantes voltando da academia, bondes lotados, muitos
carros, alguns automóveis e jornalistas que registravam pessoas em compras, para
publicarem os “perfis” e “instantâneos”, cujos clichês procediam de afamados ateliês
de Paris. Naquela época, ser objeto desses “perfis” e “instantâneos” soava lisonjeiro
e ser estampado em periódicos que circulavam entre “mãos finas dos altos círculos”
representava um reconhecimento do bom gosto, civilidade e cultura buscados pelas
elites. 34
Mario Sette atentava para as novidades constantes na Rua Nova:

Modas de Paris. “Só faltava se cuspir à francesa”. Caíam as urupemas das


varandas. As meninas botavam as cabeças de fora. E as manguinhas
também. Na rua Nova abria-se uma casa de cabeleireiros parisienses que
vendia chinós, marrafas, crescentes, cachos, pentes de tartaruga e uma
tintura que não manchava a pele... E cortava o cabelo por 320 réis. 35 (sic)

34
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Recife, Culturas e Confrontos: As camadas urbanas na
Campanha Salvacionista de 1911. Natal: EDUFRN, Editora da UFRN, 1998. p. 30-31.
35
SETTE, 1958, op.cit., p. 34.
146

A mudança na cidade, as novidades das lojas, o referencial de “modernidade”


e “civilização” que se adotava ajudavam a delinear o que se desejava fosse novo
‘perfil’ dos cidadãos recifenses. E, sem dúvidas, Paris era um centro de referência,
no modelo que se pretendia tornar universal para a capital pernambucana.
Além do modelo parisiense, os ingleses também possuíam presença
relevante no processo de busca de paradigmas para construir o que se denominava
o “homem moderno”. Rostand Paraíso afirma que os ingleses influíam de modo
marcante nos hábitos do pernambucano, estimulando a prática de esportes,
modificando a maneira de comer e de vestir, e criando conceitos de disciplina,
solidez e pontualidade. Segundo o médico memorialista:

Era chique, então, se proceder como o inglês: vestir-se como ele, tomar
chá-das-cinco à sua maneira, bebericar um conhaque ou gim nas reuniões
sociais, praticar esportes como o tênis ou o golfe, ser pontual nos seus
compromissos, ter modos finos... e havia gente que, para alcançar esses
objetivo, forçava a barra, querendo aparentar o que, na realidade, não era. 36

Através da indicação de Paraíso, percebemos que a tentativa de se


assemelhar e copiar os modelos estrangeiros era inegável e bastante praticada entre
representantes das classes mais ricas da cidade, embora nem sempre o resultado
fosse muito positivo.
Nicolau Sevcenko ajuda a pensar a aspiração em aproximar o Brasil da
Europa, presenciada no Rio de Janeiro, em período muito próximo ao da capital
pernambucana. Aponta, naquela cidade, o processo de substituição de padrões
nacionais por modelos estrangeiros em voga com o advento da República:

[...] ao contrário do período da independência, em que as elites buscavam


uma identificação com os grupos nativos [...] e manifestavam “um desejo de
ser brasileiros”, no período estudado, essa relação se torna de oposição, e
o que é manifestado podemos dizer que é “um desejo de ser estrangeiros”.
O advento da República proclama sonoramente a vitória do cosmopolitismo
[...]. O importante, na área central da cidade, era estar em dia com os
menores detalhes do cotidiano do Velho Mundo. E os navios europeus,
principalmente franceses, não traziam apenas os figurinos, o mobiliário e as
roupas, mas também as notícias sobre as peças e livros mais em voga, as
escolas filosóficas predominantes, o comportamento, o lazer, as estéticas e

36
PARAÍSO, Rostand. Esses Ingleses. 2ª ed. Revista e Ampliada. Recife: Bagaço, 2003, p. 109.
147

até as doenças, tudo enfim que fosse consumível por uma sociedade
altamente urbanizada e sedenta de modelos de prestígio. 37

Observamos que alguns segmentos da sociedade buscavam referências em


modelos estrangeiros, considerados mais apropriados para o período, que ficou
conhecido, justamente, por afirmar a preponderância da cidade sobre o campo, do
urbano sobre o rural, aproximando-se, para isso, de modelos europeus, como
referência para a construção do que deveria ser o novo “padrão brasileiro”.
Embora o desejo de “ser estrangeiros” pudesse ser localizado e mapeado na
capital pernambucana, não podemos afirmar que todos os moradores da cidade
estavam satisfeitos com essas aproximações. Na verdade, existiam aqueles que
observavam as tentativas de assimilações com estranhamento e até mesmo como
algo impraticável, e não somente rejeitavam esses padrões, como também os
enxergavam como invasores e difusores de práticas, valores e crenças que nada
tinham a ver com aquilo que achavam correto e adequado para ser seguido.
Leandro Gomes certamente se enquadrava nesse perfil, uma vez que não
possuía qualquer simpatia pelos modismos, comportamentos, valores, crenças e até
mesmo pessoas vindas do “estrangeiro”. Em seus poemas identificamos uma peleja
constante contra estes cidadãos, tidos e identificados em diferentes contextos, como
mais um dos “culpados pelo atraso da nação”. O poeta embatia e negava
freqüentemente tudo o que vinha deles, e mostrava que não estava satisfeito com a
“influência perniciosa” que exerciam no Brasil.
No folheto As saias calção pudemos observar as formas encontradas pelo
poeta para contrapor a influência da moda e das inovações apropriadas por
mulheres da classe dominante, às práticas, morais e crenças religiosas aceitas e
vivenciadas por muitos segmentos das classes menos favorecidas, aproveitando
para mostrar que os novos padrões afastavam as pessoas “das vontades de Deus”.
Além de ter evidenciado todas essas características com relação às
inovações incorporadas pelas mulheres na cidade, esse mesmo folheto vai além,
porque mostra claramente a opinião do poeta sobre os verdadeiros responsáveis

37
SEVCENKO, Nicolau. A inserção compulsória do Brasil na Belle Époque. In: ______ Literatura
Como Missão. Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. 2ª ed. São Paulo:
Campanhia das Letras, 2003, p. 51.
148

pela difusão de tais inovações que em sua opinião ofendiam não só a moralidade,
mas também a religião:

Um sertanejo já velho
Veio a praça, desta vez
Viu um maniquim vestido,
Disse-lhe um homem não vez?
Aquilo é saia calção,
Se vende a qualquer freguez.

O velho se aproximando
Disse muito admirado:
Este diabo é o cão
Que está todo abotoado,
Credo em cruz, Ave Maria,
Dou-te figa condemnado.
[...]

Disse o velho: eu sou de Deus


E do inimigo fujo,
Valei-me meu padre Cícero
E Maria do Araújo,
Isto aqui é o inferno
Aquelle bicho é o sujo.

A franceza disse a elle,


Entre na loja patrão,
O senhor trará medida
Para fazer saia calção?
O velho pulou de um lado
E puxou pelo facão.
[...]

Foi e disse ao padre Cicero,


Meu padrinho estou assombrado,
Fui agora no Rucife
Ou que lugar desgraçado
Fui ao inferno e lá vi
O diabo abotuado. 38 (sic)

Neste trecho evidenciamos um novo enfrentamento contra as inovações do


início do século. A diferença é que o autor traz a peleja para ser combatida no
interior do campo religioso, utilizando toda sua munição para mostrar o espanto e
estranhamento com a ofensiva das mulheres, principalmente as estrangeiras.
Mais uma vez, o personagem que protagoniza o acontecimento é um velho,
sujeito que possuía mais tempo e experiência de vida, e por isso era considerado o

38
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p. 43-45.
149

maior referencial de honestidade e respeito nos folhetos. Não obstante, dessa vez, o
velho era um sertanejo e, assim como o narrador e as pessoas que compravam e
liam os folhetos, era repositório dos princípios mais rígidos da moral sertaneja e da
tradição católica.
No diálogo inicial, momento em que o sertanejo observa a indumentária pela
primeira vez, o poeta brinca com sua própria restrição em relação à roupa. Mostra
um personagem que explica com “naturalidade” a novidade: “[...]não vez? Aquilo é
saia calção, se vende a qualquer freguez.” O personagem do “homem”, numa
tentativa de se mostrar moderno, acostumado às inovações do seu tempo, ou smart,
como se dizia na época, parece indicar que o uso da indumentária era
absolutamente natural e largamente difundido entre moradores da cidade. No
entanto, o “smartismo” do personagem passa bem longe da reação esboçada pelo
sertanejo, que se mune de todos os seus referenciais religiosos para travar um
combate, duelando e enfrentando seu inimigo, para desmoralizá-lo e indicar quais os
reais propósitos das “tais” inovações.
Ao iniciar a peleja, o sertanejo primeiramente identifica seu opositor e as
“artes” que envolviam suas façanhas: “Este diabo é o cão que está todo abotoado”.
Feito isto, dá início à batalha, e cumpre a primeira etapa da guerra religiosa ao criar
uma armadura com a finalidade de guardá-lo e protegê-lo de todas as maldades de
que o inimigo pudesse dispor. Seguindo as escrituras: “Ademais, fortaleçam-se no
39
Senhor e na força do seu poder” (Efésios, 6:10) , o sertanejo mune-se de palavras
de grande força, ao pronunciar uma espécie de esconjuro, com a finalidade de
afugentar o “Demo” e livrar-se de seus malefícios, além de invocar aqueles que o
protegeriam dos perigos, fechariam o seu corpo, e quebrariam as forças do
oponente: “Credo em cruz, Ave Maria, dou-te figa condemnado”.
Com apenas uma palavra, o sertanejo invocava a oração do credo,
popularmente conhecida por proteger quem o reza, afugentar o diabo e espantar
assombração. Nesse caso, na impossibilidade de fazer toda a oração, ele
simplesmente pronuncia o vocábulo “credo!”, adicionado da palavra “cruz” que, de
acordo com a tradição popular, também possui preponderante influência para afastar

39
BÍBLIA, 1989, op.cit., p. 1507.
150

os males demoníacos 40 . Além disso, ao invocar o amparo da Virgem Maria, ele


consegue a proteção suficiente para esconjurar o perigo.
O uso da expressão “dou-te figa condemnado” pode funcionar no texto de
duas maneiras, pois tanto significa mais um pedido de proteção, pois a figa pode ser
interpretada como uma espécie de amuleto, que protegeria seu usuário do mal,
como também a necessidade do personagem em proferir o nome daquele que se
queria combater. Aliás, nesse trecho nos parece que o grande desejo do poeta era
esclarecer que todas aquelas inovações eram obra e manifestação do Satanás, do
contrário, não insistiria, tão repetidamente, em proferir o nome de quem era
41
enfrentado: “diabo”, “cão”, “dou-te-figa” , “condemnado”, “inimigo”, “bicho”, “sujo”.
Sete denominações para o mesmo ser.
Assim que o sertanejo constata que aquelas obras eram “coisas do demônio”,
não baixa mais a guarda e segue na batalha, deixando claro da parte de quem ele
falava: “eu sou de Deus”, e também quais eram os seus aliados na empreitada:
“Valei-me meu padre Cícero / e Maria do Araújo”, convocando-os para a linha de
frente da batalha.
Ao invocar o nome do padre Cícero Romão Batista, conhecido nos meios
populares por “Padre Santo”, cuja notícia da bondade e caridade se espalhou pelo
sertão nordestino, e também da beata Maria do Araújo, que, de acordo com
indicações, tantas vezes recebeu o corpo de Cristo vertido em sangue das mãos do
Padre de Juazeiro, o poeta Leandro Gomes de Barros mostrava ser partidário de
nuances de uma religiosidade sertaneja, arraigada em princípios bastante rígidos de
conduta e moral tradicionais. De acordo com Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, o
Padre Cícero era considerado:

[...] Repositário dos princípios mais rígidos da moral sertaneja, falava aos
valores mais preciosos de sua gente, enfatizando ao mesmo tempo toda a
tradição católica moldadora daquela civilização. Relacionando os exemplos
cristãos com a vida rotineira do homem, vinculando os princípios de
honradez, coragem, hospitalidade, trabalho, resistência ao sofrimento,

40
NEVES, Guilherme Santos. "Vai-Tiarré” e outros esconjuros. Jangada Brasil, Ano VI, 63 edição,
Fev. 2004. Disponível em: <http://www.jangadabrasil.com.br/revista/fevereiro63/pn63002c.asp>.
Acesso em 02 de junho 2007.
41
No folheto Peleja de Zé caixão com o Diabo encontramos a expressão “Dou-te-figa” como mais uma
denominação para se referir ao Diabo. FILHO, Manoel D’Almeida. Peleja de Zé caixão com o Diabo,
1972, 32 p.
151

respeito aos mais fracos, às próprias palavras do Evangelho, à vida de


Cristo e dos santos, estendia-se com os matutos por horas infinitas. 42

A partir da invocação de padre Cícero e da beata Maria do Araújo, no folheto


As saias calção, percebemos uma aproximação com aspectos significativos da
religiosidade do personagem do “velho sertanejo” e também dos valores de seu
criador, cuja fé parecia não diferir substancialmente da expressa por seu
personagem.
A partir da efetivação e caracterização de quais valores religiosos estavam
em jogo, inicia-se finalmente, no folheto, a investida principal, configurada na contra
ofensiva do inimigo, aqui protagonizado pela personagem da francesa, que se dirige
diretamente ao “sertanejo”, convidando-o a para anuir ao objeto de sua negação:
“Entre na loja patrão, / O senhor trará medida / Para fazer saia calção?”. Ao que o
“velho” responde prontamente, abandonando, por hora, a batalha no campo das
palavras e respondendo diretamente com uma ofensiva corporal: “pulou de um lado /
e puxou pelo facão”, evidenciando que, além de um rico arsenal de devoção,
exposto durante a batalha, ele também poderia partir para o enfrentamento aberto,
defendendo sua honra “no braço”.
Ao final, quando a guerra foi posta, as armas lançadas e o campo de batalha
mapeado, restava-lhe retornar ao interior, e queixar-se ao seu “padrinho” dos
absurdos que presenciou na cidade: “Fui agora no Rucife / ou que lugar
desgraçado”. O sertanejo da narrativa combatia as inovações da urbe, assim como
seu criador, na vida real, não se cansava de apontar o estranhamento direcionado
cotidianamente a esse “mundo às avessas”.
A partir do embate travado com a francesa da narrativa, acreditamos que
Leandro Gomes estava atento à presença e influência estrangeira no Brasil. De
acordo com estudos, desde meados do século XIX, houve campanha para que os
imigrantes escolhessem Pernambuco como local para morar e trabalhar. No entanto,
problemas com a crise na indústria da cana de açúcar e o deslocamento do eixo
produtivo para o sudeste contribuíram para que a campanha não fosse

42
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. O movimento de Juazeiro do Norte Padre Cícero e o
fenômeno do Caldeirão. In: SOUZA, Simone de (Coord). História do Ceará. Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará / Fundação Demócrito Rocha / Stylus Comunicações, 1989, p. 252.
152

significativamente positiva. Mas, ainda assim, muitos estrangeiros terminaram


ficando no estado:

As cifras censitárias comparáveis demonstram, com clareza, o fracasso das


tentativas pernambucanas de atrair imigrantes agrícolas. Em 1872, o
primeiro censo nacional contou 13.444 estrangeiros em Pernambuco; a
metade constituída de portugueses, 40% de africanos escravos e livres. Em
1890, a população estrangeira chegava só a 2.690 indivíduos, o que parece
uma subestimativa mas, ainda assim, bem baixa em comparação com o
verificado nos estados do Centro-Sul. Em 1900 já havia 11 mil estrangeiros,
aproximadamente, dos quais 23% eram portugueses 43

Muitos dos estrangeiros que chegaram ao estado terminaram ficando na


capital pernambucana. Ao pesquisar jornais da época, não é difícil encontrar a
presença de imigrantes franceses, como os da narrativa As saias calção,
trabalhando com moda, roupas e diversos outros apetrechos femininos, vindos
principalmente de Paris. É o caso da revista Chic que divulgava toda sorte de
produtos vindos da capital francesa e destinados à mulher “zelosa” na “perfeição da
sua plastica e da sua elegância”:

ESPARTILHOS de Paris
Cuidadosamente fabricados por Mme J. Torcheboeuf. Os modelos Femina e
Marie Anoinette são os que maior successo tem obtido nesta capital, não só
porque o seu acabamento é irreprehensivel, como tambem pela
commodidade que offerecem a todas as senhoras elegantes que os têm
adquirido. O FEMINA é o dernier bateau da perfeição de contornos, por não
maltratar nem impedir quando vestido nenhuma das funcções organicas. O
FEMINA é o espartilho ideal, vestil-o é um dever de toda a senhora zelosa
da perfeição da sua plastica e da sua elegancia. A venda na MAISON
CHIC 44 (sic)

Notamos que as francesas ditavam a moda do que era tido como “elegante”,
ou não, para ser consumido pelas mulheres. A nota insiste nos cuidados que as
senhoras deveriam possuir para serem “elegantes e zelosas”, além de enfatizar que
a “plástica” passaria pelo referencial da magreza, observe que o trecho insistia na
“perfeição dos contornos”, que somente seriam “bem delineados” com o “conforto”
do produto anunciado.

43
EISENBERG, Peter L. Transição para o trabalho livre. In: ______. Modernização sem mudança: A
indústria açucareira em Pernambuco: 1840/1910. Trad. João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra;
Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 1977, p. 218.
44
Chic, Recife, dez. 1903. Ano 3, Número 4, p. 4.
153

Com relação a essa mudança dos referenciais de beleza, Raimundo Nonato


da Silva observa que no início do século XX o arquétipo do corpo feminino foi
revisto, o referencial da matrona com formas arredondadas e fartas cedeu lugar à
mulher de corpo bem torneado, magro e de formas lânguidas. Ao tempo em que o
corpo do homem também deveria refletir saúde e agilidade, ficando para trás os
corpos gordos, que demonstravam a falta de atividades físicas. De acordo com
Nonato, criava-se uma nova mentalidade em relação ao corpo e ao trabalho. 45
Essas mudanças, na cidade do Recife, em sua grande maioria, vinham inspiradas na
aproximação com referenciais europeus, bem como pela influência de muitos
estrangeiros que interferiam diretamente nos referenciais em voga na cidade.
Embora as francesas estivessem, de certa forma, à frente do processo de
mudança e inovação das características femininas na cidade do Recife, elas não
eram identificadas como as únicas culpadas pelo “excesso” de transformações. Na
verdade, talvez a nacionalidade que mais sofresse críticas por parte dos poetas
populares, acusada da “má” influência nas “coisas do Brasil”, fosse a inglesa,
acusada primeiramente pela maneira como lidava com seus investimentos no Brasil,
e depois pelas diferenças de sua religião.
Nos folhetos de Barros, é possível encontrar diversas caricaturas dos sujeitos
de nacionalidade inglesa que em suas narrativas se mostravam mestres na ofensiva
contra os valores, os costumes e a religião. No capítulo dois já acenamos para a
posição do poeta em relação a esses sujeitos, ao trabalharmos com o folheto O
Dinheiro, que alegorizava a ação de um inglês rico e arrogante que desejava a
qualquer preço realizar o enterro funerário de seu cachorro, mesmo que, para isso,
precisasse passar por cima dos costumes e dogmas da religião católica.
Na verdade, a imagem do inglês rico e arrogante não é exceção na produção
de Leandro Gomes, que se posicionava criticamente com relação à presença desses
estrangeiros na cidade, acusando-os de serem gananciosos e usurários.
Acompanhe alguns trechos da Cançoneta dos morcegos, presente no folheto Os
coletores da Great Western, provavelmente de 1916, e perceba como, em apenas
algumas linhas, o poeta apontava muitos dos defeitos daqueles cidadãos:

45
FONSECA, 2002, op.cit., p. 51-52.
154

Essas linhas de ferro do norte


Estão causando ligeira impressão
O inglez leva o cobre que ha
Não nos deixa ficar um tustão.

E o Brasileiro se banha se não for no


bolço tambem.

Alem disso inda tem outra coiza


O inglez não confia em alguem
Conductor, bagageiro e fiscal
Todos são collectados no trem.

E leva o carimbo da companhia! [...]

Machinista fedendo a fumaça


Com a lenha que vem do sertão
Pois emquanto o trem queima cavaco
O inglez está poupando o carvão.

E o trem correndo e pingando arame...

Guarda-freios com roupas em tiras


As botinas sem salto e sem bico
Assim mesmo o inglez ainda diz
Esse povo da linha está rico.

Mas só tem cebo da roupa...[...]

E o malvado do inglez quando o povo


Vai dizer-lhe que o ganho é mesquinho
Elle diz mim não pode dá mais;
Dá um bolo na mão do visinho!... 46 (sic)

O trecho se refere ao tipo de administração empreendida pelos ingleses,


responsáveis por algumas das linhas de trem do Recife. Nele há uma referência às
diferentes maneiras que aqueles cidadãos encontravam para conseguir lucro no
negócio. O poeta reclamava a transferência da riqueza produzida no Brasil para o
bolso de estrangeiros, enquanto os brasileiros permaneciam na miséria.
Algumas atitudes dos ingleses incomodavam mais expressivamente o poeta,
que criticava a cobrança indeterminada de passagens no interior do veículo; a
economia nos gastos com combustível, através da utilização de madeira barata ao
invés de carvão; bem como a exploração da mão de obra dos trabalhadores das
linhas férreas, que andavam aos farrapos.

46
BARROS, Leandro Gomes de. Os coletores da Great Western / A cançoneta dos Morcegos / Peleja
de José do Braço com Izidro Gavião. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.op.cit., p. 197-198.
155

De diferentes maneiras, o poeta tentava mostrar que a lógica de lucro


pertencente aos ingleses lhe era estranha, pois não conseguia tolerar o fato de,
mesmo sabendo que recebiam muito com o privilégio das linhas de trem, que
“pingavam arame”, ou seja, rendiam muito dinheiro, não eram retos, nem mesmo
com seus funcionários, e, ao serem cobrados para que pagassem preços justos pela
exploração do serviço, mostravam toda a sua avareza e usura ao afirmarem: “mim
não pode dá mais”. Com isso, notamos que o poeta estava atento à presença e
comportamento dos ingleses na cidade, tanto que satirizava não somente sua lógica
de lucro e mesquinharia, mas, inclusive, seu modo diferente de falar.
De acordo com Rostand Paraíso, os ingleses tinham presença significativa
nos negócios da cidade, e administravam não somente as linhas férreas, mas
diversos outros empreendimentos:

No início do século passado, quando o Recife tinha


aproximadamente 200 mil habitantes, a colônia inglesa no Brasil já era
bastante numerosa. Aqui havia uma grande quantidade de firmas inglesas,
atuando no comércio e na indústria, além de bancos e de empresas
concessionárias de serviços públicos. Tínhamos a Western Telegraph
Company, que nos punha, através do Cabo Submarino, em contato com o
mundo [...]; a Pernambuco Tramways and Power Company, que, com seus
bondes elétricos, servia a praticamente todos os subúrbios do Recife,
mesmo àqueles mais distantes, e que levava às casas de seus moradores a
luz elétrica e o gás encanado, fabricado e estocado no Gasômetro; a Great
Western of Brazil Railway Company, que, com os seus trens, interligava o
Recife às cidades mais próximas, não só de Pernambuco mas dos Estados
vizinhos; e, num tempo mais recente, a Telephone Company of
Pernambuco, que trouxe para nós os últimos avanços tecnológicos na área.
47
[...]

Notamos na descrição de Paraíso que, de fato, a atuação inglesa na cidade,


principalmente no setor de prestação de serviços, não foi irrelevante. No entanto,
acreditamos que sua forma de administrar os empreendimentos, sempre pautada no
lucro e na exploração capitalista declarada, não era compreendida nem aceita pelas
muitas pessoas que dependiam e utilizavam os serviços cotidianamente.
Leandro Gomes era um desses usuários que criticava constantemente a
lógica inglesa, às vezes compondo narrativas engraçadas para satirizar suas
diferenças em relação aos brasileiros. O folheto Os coletores da Great Western,

47
PARAÍSO, 2003, op.cit., p. 51-52.
156

provavelmente de 1916, pode ser utilizado para demonstrar esta contestação, pois
nele mais uma vez o autor/ narrador aproveita a oportunidade para mostrar suas
inquietações frente aos novos valores de uma sociedade em processo de
tranformação, na qual a ética capitalista chocava-se com os antigos hábitos e
valores da população, inclusive os religiosos.
Inicialmente Leandro Gomes mostrava que os ingleses estavam dispostos a
lucrar de qualquer maneira com as linhas de trem e, como medida para garantir essa
arrecadação, aumentam o número de fiscais nos vagões, ordenando que cobrassem
dos usuários, independente de quem ali estivesse, fosse militar, civil, deficiente,
idoso ou até mesmo religioso, todos deveriam ser cobrados no trem, sob risco de
punição:

Eu venho com carta branca


O inglez foi quem Passou
Eu como empregado reto,
Faço o que elle me ordenou
Morcego aqui este anno
Foi coiza que caducou

Garanto que neste trem


Só vai quem tiver bilhete,
Ir sem passagem é querer
Ferver água com sorvete
A estrada é estação
O chefe d’ella é cacête.

Se o papa chegar aqui


Tem que comprar a passagem,
Santidade é uma coiza
Que não val nada em viagem
Se não comprar o bilhete
Só vai se for na bagagem.

Santo é lá para a igreja


Milagre aqui não tem preço
E o inglez disse – oh mim
A ningem mais obedeço
Santo que mim não conhece
A esse nada offereço. 48 (sic)

Inicialmente o fiscal faz questão de afirmar que está ali apenas cumprindo a
ordem de seu patrão “inglês”, de retirar do vagão qualquer pessoa que desejasse

48
BARROS, Leandro Gomes de. Os coletores da Great Western / A cançoneta dos Morcegos / Peleja
de José do Braço com Izidro Gavião. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. op.cit., p. 191-192.
157

viajar sem passagem, referindo-se aos famosos “morcegos”, pessoas que pegavam
carona no trem e desciam sem pagar por isso.
Para deixar em evidência as novas ordens, o funcionário chegava a supor
uma situação extrema, afirmando que, até mesmo se o papa desejasse viajar, teria
que comprar a passagem, pois a santidade nada valia ali. Por meio dessas
afirmativas, o poeta cria uma situação limite para deixar evidente que, sob aquela
nova perspectiva, dominada pelos ingleses, os mais altos representantes religiosos
não teriam qualquer legitimidade.
De acordo com o poeta, no novo circuito comercial da cidade haveria uma
hostilidade com relação aos valores e crenças dos brasileiros, pois seus novos
controladores - estrangeiros - eram portadores de uma separação friamente imposta
entre o mundo religioso e o mundo comercial: “Santo é lá para a igreja / Milagre aqui
não tem preço”, o que indicava uma nova ordem de relações na cidade, onde até os
milagres poderiam ser apreçados, embora ali, naquele momento, não tivesse preço
algum.
Observamos que os últimos versos recortados são emblemáticos para
demonstrar que o poeta estava ciente de que os novos cidadãos estrangeiros não
teriam somente diferentes posturas comerciais, mas também religiosas. Percebemos
que o poeta brinca não somente com o modo de falar dos ingleses, mas também
com o conteúdo de suas crenças religiosas: “santo que mim não conhece / a esse
nada offereço”. Nesses versos, o poema dá margem a, pelo menos, duas
interpretações, ambas indicando que os ingleses ali representados provavelmente
eram partidários de crenças diferentes da católica, aproximava-os de referenciais
protestantes.
Uma das interpretações cabíveis para os versos é pensar no poeta afirmando
que já que o “Santo Padre”, o Papa, não reconhecia o protestante como adepto da
sua crença, e nem os protestantes o reconheciam como uma autoridade religiosa a
ser seguida, então o inglês não teria qualquer obrigação de respeitá-lo: “A ningem
mais obedeço”, e da mesma forma a este nada ofereceria.
Também podemos supor uma outra interpretação, pois no início da última
estrofe fica claro que para os administradores das linhas de trem os “santos” eram
coisa “lá para a igreja”, logo o estrangeiro parece sutilmente explanar a oposição
158

entre o culto católico, que possuía forte relação e devoção com os santos, e o
protestante, que, apesar de acreditar que pessoas poderiam desenvolver condutas
santas, somente orava e prestava culto a Deus 49 . Assim fica evidente que a
descrença por parte do inglês nos santos e cultos católicos o desobrigava de
oferecer qualquer coisa a estes.
O trecho recortado é significativo, pois mostra com precisão a relação dos
imigrantes ingleses com o catolicismo, bem como a posição do poeta ao se dirigir
aos ingleses, evidenciando que estes não levavam muito em consideração as
crenças e costumes locais, principalmente no que tangia aos valores religiosos.
No entanto, o narrador não pára por aí, vai além, mostrando que, apesar de
ser ferrenho defensor da crença Católica, nem por isso possuía atrelamento e
filiação à sua estrutura eclesiástica. Então propõe nesse mesmo folheto uma
contenda engraçada, talvez há muito esperada, entre um membro do clero,
acostumado com as regalias de que desfrutava por ser religioso, e um representante
dos ingleses, instruído a colocar as novas normas em prática:

Um frade foi viajar


Porem queria ir no molle
Disse com sigo eu sou frade
Fiscal commigo não bolle
Mas o collector lhe disse
Padre mestre se consolle.

Puche o bilhete ou o cobre


A coisa hoje está feia
Você manda no convento
Mas não na empreza alheia
Escolha das duas uma
Pagar ou ir a cadeia

Dizia o frade São Bento


Me acuda nesta viagem
Disse o homem nem S. Bento
Viaja aqui sem passagem
Veja não pague amanhã
O excesso e a carceragem

Vamos disse o collector


Eu tenho em que me occupar
Talvez os prezos hoje tenham

49
“Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a ele darás culto” (Lucas, 4:8). BIBLIA. Português. A Bíblia
Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2 ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil,
1999. p. 66.
159

Um frade para pregar


O frade meteu os pez
Saltou e não quis pagar. 50 (sic)

O trecho mostra um confronto entre dois sujeitos que, de acordo com o poeta,
representavam, cada um a seu modo, os desvios do seu tempo: os padres, porque
eram acostumados com regalias, viviam em busca de favorecimento e se
aproveitavam de situações para se beneficiarem; e os fiscais, porque representavam
os ingleses e cumpriam à risca as ordens de seus patrões, mesmo que fossem de
encontro às relações e costumes ali estabelecidos.
Inicialmente o fragmento evidencia que o frade tinha quase certeza de que
não seria cobrado pela viagem: “Disse com sigo eu sou frade / Fiscal commigo não
bolle”, o trecho indica que, apesar de estar ciente das cobranças que vinham
acontecendo no trem, o religioso se agarra à sua condição de padre, supondo que
nada lhe aconteceria.
Não obstante, o texto evidencia que o fiscal não se intimida com a posição
religiosa daquele sujeito, pelo contrário, deixa bem claro que nos “novos” tempos as
coisas seriam diferentes: “Puche o bilhete ou o cobre / a coisa hoje está feia”.
Através de uma ordem, o empregado mostrava que não haveria regalias para
determinados indivíduos e, inclusive, uma nova redefinição e demarcação de lugares
sociais deveria ser respeitada: “você manda no convento / Mas não na empreza
alheia”, ou seja, os antigos valores religiosos que transpassavam os templos de
oração não eram mais válidos na era da administração inglesa, que impelia valores
comerciais e de mercado sobre os valores religiosos: “nem S. Bento / viaja aqui sem
passagem”.
Nesse folheto é perceptível que, por mais que o poeta, durante toda a
narrativa, deseje chamar atenção para as mudanças dos “novos” tempos,
principalmente através da crítica às inovações inglesas, de certa forma também
torce para que o padre não se saísse bem, uma vez que, desde o início do trecho,
mostra que estava de olho nas atitudes do religioso, que tentava não ser notado
para não pagar: “queria ir no molle”, ou seja, desejava ser diferente dos demais, e

50
BARROS, Leandro Gomes de. Os coletores da Great Western / A cançoneta dos Morcegos / Peleja
de José do Braço com Izidro Gavião. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. op.cit., p. 195-196.
160

não se submeter às novas regras, principalmente por que teria que desembolçar
algum dinheiro nesse meio tempo.
Logo, por mais que o narrador achasse a ofensiva inglesa descabida, também
parecia não concordar com a atitude “folgada” do padre de não pagar a passagem,
quando todos os outros usuários tinham de se submeter às novas regras. Então
prepara um final ardiloso, no qual o religioso é afrontado e, com muita raiva, desce
do trem, obviamente sem deixar nenhum centavo para o inglês.
O folheto consegue dar conta das inquietações do próprio narrador que, em
determinados momentos, e contra certos sujeitos, termina torcendo pelas novidades.
No entanto, passada a “folga” dos religiosos, ele volta a evidenciar as preocupações
dos menos favorecidos da população em relação às inovações, atitudes e presença
dos estrangeiros na cidade, que nem sempre era encarada como uma possibilidade
concreta de “aproximar o Brasil à Europa”, pretensão de alguns segmentos das
classes mais abastadas.
As pessoas que produziam e consumiam os folhetos pareciam ter uma
posição de desconfiança com relação aos sujeitos de outras pátrias, portadores de
valores e maneiras estranhas à cidade. Percebiam que, a partir da influência desses
indivíduos, a urbe já não era a mesma, suas tradições vinham sendo postas em
questão por estrangeiros que pareciam uma espécie de “representantes oficiais dos
novos tempos”.
Peter L. Eisenberg traz um quadro que aponta alguns números acerca da
chegada dos imigrantes no estado de Permambuco:

Quadro 1 - PRINCIPAIS GRUPOS DE IMIGRANTES EM PERNAMBUCO


a
Ano Sexo Portugueses Italianos Franceses Ingleses Espanhóis Africanos

M 5.637 292 201 179 189 3.065

1872 F 1.009 35 91 38 10 2.349

Total 6.646 327 292 217 199 5.514

M 2.015 397 56 146 124

1900 F 446 163 83 96 38

Total 2.461 560 139 242 162 s / dados


161

a.
Os dados divulgados do censo de 1890 não especificam nacionalidades.
FONTES: Recenseamento da população... 1872, v. XIII, p. 218. Directoria Geral de Estatística,
“Recenseamento da População em 31 de dezembro de 1900”, pp. 142-143 apud EISENBERG, 1977,
op.cit., p. 220.

Com base no quadro 1 - Principais Grupos de Imigrantes em Pernambuco,


podemos inferir que de 1872 a 1900 não houve aumento significativo na população
de estrangeiros no Estado, contudo, mesmo percebendo que os números não
sofreram aumentos significativos, não devemos menosprezar a quantidade de mais
de 11 mil imigrantes vivendo em Permambuco a partir de 1900.
O que salientamos é que, por mais que os números não possuíssem
significativa representatividade, não devemos deixar de levar em consideração a
influência que esses sujeitos exerciam em alguns segmentos da cidade, já que
atuavam em setores expressivos, como a prestação de serviços e o comércio,
imprimindo lógicas e valores do aburguesamento na cidade.
Os folhetos não ignoravam a diversidade de estrangeiros desenvolvendo
atividades no Brasil e, sempre que podiam, alfinetavam ingleses, criticavam
franceses, italianos e outros imigrantes de uma forma geral. De acordo com as
narrativas, pudemos acompanhar que franceses, italianos e ingleses eram as
principais nacionalidades lembradas e criticadas, no entanto, o que incomodava
nesses estrangeiros não era unicamente suas modas, hábitos, e valores
diferenciados dos brasileiros. Um aspecto significativo que trazia muita observação
para os autores dos folhetos, e que era enfatizado com fervorosidade nas narrativas,
eram as práticas religiosas que chegavam e se expandiam com esses sujeitos,
mesmo diante da hostilidade e ofensiva que vinham dos católicos.

3.3. “A nova-ceita é caipora”: ofensiva contra os protestantes

Desde o início do século XIX, chegaram ao Recife diferentes denominações


protestantes que se destacaram no processo de evangelização da cidade:
162

anglicanos, congregacionais, presbiterianos e batistas foram alguns dos principais


grupos que fizeram parte do campo religioso da Capital Pernambucana até início do
século XX.

De acordo com Micheline Reinaux Vasconcelos, os anglicanos começaram a


atuar em Pernambuco a partir de 1812. Devido à presença da comunidade
protestante em Pernabuco, o governador da Capitania demarcou e cedeu ao cônsul
inglês um terreno no qual seria estabelecido o cemitério protestante, que não serviu
somente para membros dessa comunidade religiosa, mas também alemães, suiços,
holandeses, americanos, franceses, dentre outros. A primeira igreja protestante dos
ingleses no Recife foi construída em 1838, e contou com anuência de diferentes
autoridades da cidade, que fizeram uma única exigência com relação ao formato
externo da construção, que não deveria ter aspecto de templo. 51

Com relação a atuação desse grupo religioso, Elizete da Silva afirma que:

[...] a Igreja Anglicana, estabelecida no Brasil, identificava-se


completamente com o protestantismo de imigração: os serviços religiosos
eram feitos em inglês para a colônia britânica; sem nenhuma preocupação
proselitista. Estabelecida por força de um tratado, moveu-se sempre dentro
dos limites das concessões, evitando confrontos, pois estava vedado pregar
ou declamar publicamente contra a religião Católica ou procurar fazer
prosélitos ou conversões. 52

Estabelecida no Recife desde o período imperial, a Igreja Anglicana não fugiu


desse referencial. Antes da construção da Holy Trinity Church, os ingleses se
reuniam em casas particulares e também num prédio na Rua do Hospício para
fazerem seus cultos. 53
Somente na segunda metade do século XIX, em 1868, o primeiro grupo
protestante de caráter proselitista chegou à cidade, ele era composto de membros
da Igreja Congregacional. A partir de 1873, os trabalhos do diácono Manoel José da
Silva Viana e do missionário Robert Kalley ajudaram a coordenar a construção da

51
VASCONCELOS, 2005, op.cit., p 34-35.
52
SILVA, Elizete. Historiografia sobre o Protestantismo Brasileiro: algumas considerações. In:
Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões, 9, 2007, Viçosa. Anais... Viçosa:
Universidade Federal de Viçosa, 2007. p. 14.
53
PARAÍSO, 2003, op.cit., p. 58-62.
163

Igreja Evangélica Pernambucana e, a partir dessa primeira matriz, surgiram outras


congregações em Tegipió, Jaboatão, Vitória, Caruaru, Mogango e Balanço 54 .
Uma terceira denominação também bastante preocupada com o proselitismo
religioso chegou a Pernambuco em 1873, eram os presbiterianos, que tiveram seus
esforços traduzidos no empenho dos missionários estrangeiros em aprender a língua
portuguesa, objetivando um melhor trabalho de evangelização. Suas ações tiveram
início no Recife com a chegada à cidade do reverendo Jonh R. Smith, seguido de
John Boyle e sua esposa. De acordo com Vasconcelos, em 1875, começava a ser
publicado o primeiro jornal protestante do Nordeste do Brasil, intitulado Salvação de
Graça. 55
Um último grupo de atuação e presença significativa no Recife foram os
batistas, em grande parte originários dos Estado Unidos, iniciaram seus trabalhos no
final do século XIX. De acordo Elizete da Silva, essa denominação estabeleceu-se
inicialmente no Sudeste, mas foi no Nordeste do Brasil que iniciou um trabalho mais
efetivo.

Em Santa Bárbara D’Oeste, São Paulo, entre os imigrantes norte-


americanos provenientes do sul dos EUA e dos desdobramentos da Guerra
de Secessão existiram várias famílias batistas. Estas famílias reuniram-se
em 10 de setembro de 1871 e organizaram a Primeira Igreja Batista em
território brasileiro, composta exclusivamente de americanos e para atender
as suas necessidades religiosas. Esse primeiro núcleo batista instalado no
Brasil tinha todas as características de protestantismo de imigração, o
serviço religioso era feito em inglês e não iniciou trabalho missionário entre
os brasileiros. 56

De acordo com Silva, a Igreja de Santa Bárbara D’Oeste resumia-se às


necessidades espirituais dos colonos americanos, e teve vida efêmera. A autora
afirma que o trabalho de evangelização batista teria início após a organização da
Primeira Igreja Batista do Brasil, em Outubro de 1882, na cidade de Salvador, pois
57
representou um típíco “protestantismo missionário”.
No Recife, os batistas experimentaram uma primeira tentativa missionária em
abril de 1886, contudo, sem alcançar os resultados esperados. Suas atividades

54
VASCONCELOS, 2005, op.cit., p. 36.
55
Ibid., p. 36-37
56
SILVA, 2007, op.cit., p. 17.
57
Ibid., p. 18.
164

foram reorganizadas em 1893, sob os cuidados de W. E. Entzminger, que realizou


um trabalho interessante, pois em 1901 a Igreja chegaria a ser composta por 200
membros. 58 Dali em diante haveria uma preocupação considerável com a
intensificação da atuação missionária no interior do Nordeste, tanto que, na virada
de 1900 para 1901, organizaram a Convenção União Batista Leão do Norte, e o
início da publicação do jornal O Missionário. 59
Dessas acepções, podemos inferir que no início do século XX a cidade do
Recife recebia um número considerável de organizações religiosas de caráter
protestante, que realizavam diferentes tipos de trabalhos, marcando lugares no
campo religioso da comunidade. Em 1901, por exemplo, o Jornal evangélico O
Embaixador divulga os trabalhos de algumas dessas instituições através de
propagandas acerca dos cultos e atividades desenvolvidas pelas igrejas:

MEMORANDUM EVANGELICO

EGREJA EVANGELICA PRESBYTERIANA


PASTOR JUVENTINO MARINHO
Escola Dominical aos domingos ás 10 horas da manhã e cultos ás 11 horas
da manhã e as 7 horas da noite e nas quintas-feiras ás mesmas horas [...]
Rua da Concordia n. 39.

EGREJA EVANGELICA BRASILEIRA


Escola dominical à 10 horas da manhã
Cultos nos domingos ás 11 horas da manhã e 7 da noite e nas quintas-
feiras ás 7 horas da noite. Comunhão no quarto domingo do mez. Rua Nova
de Santa Rita n. 63, 1.º andar.

EGREJA ÉVANGELICA RECIFENCE


PASTOR LUIZ JARDIM
Culto aos domingos, ás 11 horas da manhã e nas quartas-feiras ás 7 horas
da noite. Escola Dominical após o culto e communhão no terceiro domingo
de cada mez.
Rua da Concordia n, 31, 1º andar.

EGREJA DE CHRISTO BAPTISTA NACIONAL EM PERNAMBUCO


Culto aos domingos ás 10 ½ horas da manhã e ás 7 horas da noite.
Reunião de Oração nas quintas-feiras ás 7 horas da noite.
RUA AUGUSTA N. 125, 1º ANDAR

EGREJA EVANGELICA BAPTISTA


PASTOR SALOMÃO GINSBURG

58
VASCONCELOS, 2005, op.cit., p. 36.
59
Ibid., p. 40
165

Cultos nos domingos ás 11 horas da manhã, ás 7 da noite e nas quartas-


feiras ás 7 horas da noite. Escola Dominical ás 5 horas da tarde.
Salão Provisório - Rua Formosa n 21

EGREJA EVANGELICA PERNAMBUCANA


PASTOR CHARLES KINGSTON
Ha pregação do Santo Evangelho todos os domingos às 11 horas da manhã
e ás 7 horas da noite. Nas quartas feiras, cultos ás 7 horas da noite.
Communhão, no 1.º domingo da cada mez. Rua da roda n. 62, 1º andar. 60
(sic)

Através da nota no jornal O Embaixador, que se intitulava “órgão mensal de


propaganda evangélica”, observamos que diferentes denominações utilizavam o
veículo de comunicação para divulgação e propaganda de seus cultos religiosos.
Faziam isso, provavelmente, por entenderem que aquele poderia ser um canal de
aproximação entre igreja e fiéis.

Notamos que todos os grupos divulgavam dias e horários das atividades


desenvolvidas, bem como o endereço do templo, ou espaço de congregação,
certamente o faziam no intuíto de informar àqueles que por ventura se
interessassem em participar. Alguns grupos divulgavam o nome de seus pastores,
que à primeira vista se mesclavam entre brasileiros e estrangeiros. Através da nota,
temos uma pequena noção de como estavam localizados os diferentes grupos
religiosos protestantes na cidade.

De posse dessas informações, podemos observar que o processo de chegada


de missionários protestantes no Recife foi bastante gradual, e aconteceu ao longo
de todo o século XIX. A partir do século XX, principalmente com o processo de
urbanização e crescimento da cidade, essas denominações conquistariam cada vez
mais fiéis e se expandiriam para diferentes campos de atuação.

Salientamos, no entanto, que o processo de crescimento das atividades


evangélicas na cidade não passaria sem ser observado por certos grupos de
pessoas que ali habitavam, pois elas acompanhavam com muita desconfiança a
chegada desses sujeitos de crenças, princípios, visões de mundo, e práticas,
completamente diferentes das suas.

60
O Embaixador, Recife, ago. 1901. Ano 1, Número 5, p. 4.
166

Os folhetos da literatura popular são emblemáticos ao evidenciar o embate,


travado entre segmentos mais ligados às tradições e normas católicas e os novos
sujeitos, que chegavam em busca de locais de sobrevivência e também de
expansão de sua crença religiosa. A associação entre protestantismo e
estrangeirismo é inegável nos folhetos, assim como é inegável também a repulsa
aos recém-chegados, na tentativa de valorizar e demarcar lugares sociais,
tradicionalmente estabelecidos.

As narrativas de Leandro Gomes são excelentes para evidenciar os embates


religiosos com os protestantes, assim como os olhares de desprezo que eram
lançados sobre esses sujeitos que, de acordo com o poeta, representavam
justamente os valores e princípios que os folhetos tentavam negar. Denominados
nos folhetos de “nova-seita”, os protestantes geralmente tinham seu fenótipo
aproximado a características européias, “amarello”, “amarello e barbado” ou um
“triste amarello sem cor”, para se referir à tonalidade de sua pele, e sua religião
categorizada como culto ligado ao Diabo.
Nessa parte do texto, trabalharemos, principalmente, com dois folhetos: O
diabo na Nova-Ceita 61 , provavelmente de 1914, e O Diabo confessando um Nova-
Seita” 62 , possivelmente escrito em 1910. As duas narrativas foram selecionadas
porque são expressivas no sentido de indicarem os pontos de vista do autor, os
valores de que era partidário e, principalmente, as formas que encontrava para
reafirmar sua religiosidade em oposição a outras práticas religiosas da cidade.
Leandro Gomes utilizou, em ambos os folhetos, sua criatividade para traduzir
as características da “Religião da Nova-Seita”. Descrevia práticas, gestos e símbolos
que afirmava pertencerem aos membros da “Igreja do Frei bode”, de acordo com as
características descritas, uma alegorização das denominações protestantes que
atuavam na cidade. O narrador enfatizava suas restrições a esses sujeitos, que
adquiriam cada vez mais espaços, e também fiéis, contrapondo-se à religião
católica, até então majoritária no Recife.

61
BARROS, Leandro Gomes de. O Diabo na Nova-Ceita. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3.
Tomo V. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa,
Universidade Federal da Paraíba.1980. p. 75-88.
62
BARROS, Leandro Gomes de. O Diabo confessando um Nova- Seita, História de João da Cruz
(Conclusão). In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo V. op. cit., p. 57-74.
167

Na tentativa de contestar os adeptos da nova religião, o poeta travava um


embate frontal contra seus princípios, caracterizando-os de forma negativa, e
criando separações rígidas entre as novas manifestações religiosas e a crença de
que era partidário, com ênfase à exaltação dos valores de sua religiosidade,
bastante ligada ao catolicismo de origem sertaneja.
O folheto O Diabo na Nova-Ceita tenta ser exemplar ao mostrar as
“imperfeições” de quem aderia à nova religião. A princípio, o poeta tentava
estabelecer um patamar para elucidar o quanto a seita poderia ser “malfazeja”, faz
comparações extravagantes para mostrar a quantidade de problemas que seus
cultos poderiam trazer:

O diabo ficou pobre


Viu que morria no pó
Chamou o pai d’elle e disse:
Eu não me desrgraço só
Ou vou para a nova-ceita
Ou entro no catimbó.

O velho pai d’elle disse:


Rapaz pensas n’isso agora?
O catimbó nada val
A nova-ceita é caipora,
Nasce com o asar dentro
E acha a miseria fora 63 (sic)

No trecho há um diálogo em que o diabo e seu pai debatem acerca das


opções religiosas oferecidas a pessoas que estavam em situação de pobreza,
miséria e “desgraça”, elucidavam as desvantagens de certos cultos religiosos,
tentando escolher o menos pior. Nessa narrativa, o poeta age estrategicamente ao
colocar a religião da “nova-ceita” em pé de igualdade com o “catimbó”: “Ou vou para
a nova-ceita / ou entro no catimbó”, pois sabia que a segunda religião possuía, entre
os seus leitores e moradores da cidade, um estigma negativo e preconceituoso.
De acordo com René Ribeiro, no Recife, durante muito tempo, houve
perseguição aos locais de cultos afro-brasileiros. Afirma que os adeptos desses
cultos localizavam-se por toda parte, preferindo a obscuridade de sua prática
religiosa por força do caráter reprovável que possuía entre diferentes segmentos

63
BARROS, Leandro Gomes de. O diabo na Nova-Ceita. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3.
Tomo V. op cit., p. 77.
168

sociais. O antropólogo afirma que sob essa forma parecem ter resistido as atividades
religiosas do negro, quando muito estabelecendo-se em centros modestos de
influência “sincrética”, chamados pela população de “catimbó”. Acerca da religião, o
autor afirma que:

[...] nunca no Recife atingiu o xango o esplendor do candomblé


bahiano, a regra parecendo ter sido o funcionamento de grupos pequenos
que se esmeravam mais nos rituais privados, só ocasionalmente realizando
cerimônias vistosas e públicas. É bem compreensível que assim fôsse por
necessidade de se esquivarem às represálias policiais, à pressão da Igreja
Católica e à hostilidade da parte da população mais identificada com a
cultura européia. 64

Através das informações emitidas por Ribeiro, entendemos os motivos que


levaram o autor de O Diabo na Nova-Ceita a estabelecer um patamar bastante
próximo entre as denominações, que chegavam à cidade, e o catimbó. Notamos a
marginalização da religião dos orixás pelos moradores do Recife, que a tratavam
com preconceito e hostilidade, logo, supomos que a melhor estratégia para mostrar
o quanto a “nova-seita” poderia ser danosa era estabelecer uma associação direta
entre as duas crenças, pois assim o poeta conseguiria que seus leitores
estabelecessem um grau de julgamento com relação à “nova” religião, pautados em
referências daquela que lhes era familiar, e não aprovada.
Leandro Gomes satirizava ao relacionar os problemas de ambas religiões,
mostrando que nem mesmo o diabo, ao ser interpelado sobre qual delas poderia ser
melhor, conseguia estabelecer distinções significativas, classificado-as:
“desgraçadas”, “pobres”, “miseráveis”, “azarentas” ou “caipora” 65 .
O Diabo na Nova-Ceita traz alegorizações de características do
protestantismo, satiriza seus praticantes, pré-requisitos para ingressar no culto e até
mesmo as consequências de sua prática, tudo no intento de construir para o seu
adepto imagem negativa e diferente daquela que se considerava saudável:

64
RIBEIRO, René. Cultos afrobrasileiros do Recife: Um estudo de ajustamento social. Recife: Boletim
do instituto Joaquim Nabuco, 1952. p. 35-36.
65
Caipora no fragmento citado possui relação com o azar, de acordo com Leonardo Mota: “Caipora é
capim que, quando não chove, não nasce; e, quando nasce, o boi come. (protestam aqueles de quem
se diz que estão sem sorte)” MOTA, 1982, op. cit., p. 86.
169

O nova-ceita já nasce
Triste e, amarello e sem cor,
A vista sempre espantada
Com aspecto aterrador,
Sem alma e sem conciencia
Sem prazer e sem amor. 66 (sic)

No fragmento acima, as características físicas do “nova-ceita” são ressaltadas


de forma pejorativa, é como se possuir pele clara, ou “amarella”, “sem cor”, fosse
motivo de desabono. Nesse trecho, é interessante perceber que, enquanto as
classes mais ricas da cidade, conforme já observamos anteriormente, procuravam,
por meio de aproximações, o padrão europeu de cor e “beleza”, outros segmentos
da população, certamente de pele mais “escurecida”, chacoteavam a “palidez” dos
novos moradores.

Além da cor, as posturas comportamentais assumidas pelos novas seitas


também são alvo de escárnio. Acreditamos que as críticas à sua aparência de “vista
sempre espantada”, “aspecto aterrador”, “sem alma”, “sem prazer” “sem consciência”
e “sem amor” podem ser provenientes da observação das posturas assumidas por
esses indivíduos, que se reservam das coisas mundanas, mantendo viva e
constante a prática do amor ao Pai, em oposição ao mundo 67 . Este referencial
certamente se chocava com os padrões católicos, muito mais festivos e até mesmo
expansivos.

Contudo, a crítica à aparência física e posturas comportamentais dos


protestantes não foram os únicos elementos lembrados em O diabo na nova ceita.
Disposto a procurar briga, seu narrador resolve ressuscitar uma antiga querela entre
católicos e protestantes com relação ao culto à Virgem Maria:

O que você está dizendo.


E’uma pura verdade,
Essa raça nova-ceita
Abusa da divindade,

66
BARROS, Leandro Gomes de. O Diabo na Nova-Ceita, Vingança de um Filho, A Tarde. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo V. op. cit., p. 77.
67
“Não ameis o mundo nem as cousas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai
não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos
e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a
sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente.” (I João, 2:
15-17) BÍBLIA, 1999, op.cit., p. 256.
170

Crêr no filho e nega a mãe


Como é essa novidade? 68 (sic)

Barros se empenha em apontar um dos mais fortes indícios da aproximação


entre “nova-ceita” e os protestantes, abrangendo argumento recorrente entre os
devotos da Santa, que acusam os evangélicos de negarem seu poder, apesar de
crerem em seu filho. Nos folhetos, essa pendência gera muita polêmica entre os
adeptos do catolicismo e do protestantismo, que travam inúmeras discussões e
acusações, geralmente amparados por diferentes leituras da bíblia.
Sobre a contenda em relação ao culto à Maria, é preciso ter presente a
posição dos protestantes com relação à crença dos católicos em imagens,
considerada idolatria. Nesse sentido, Gilmário Moreira Brito aponta que

Aos olhos do protestante, essa cultura religiosa, que se esquiva dos rigores
do poder para “adorar santos”, acrescentando dimensões mágicas e lúdicas
em performances corporais, utilizando-se de ícones tradicionais para
redimensionar símbolos de atividades rotineiras, estabelecendo uma relação
de proximidade entre cotidiano do seu viver ao do santo de sua devoção,
constitui-se em exercício religioso que subverte aspectos e perspectivas de
moral, comportamento e ordenamento hierárquico, vislumbradas pelo
protestante como desviante de uma conduta adequada, sendo por isso
passível de estranhamento. 69

Nessa perspectiva, o culto à Virgem Maria, peculiar por agregar dimensões


mágicas, realizadas por atividades lúdicas articuladas de múltiplas linguagens e
performances 70 , também causa “estranhamento” aos sujeitos advindos das
denominações protestantes, no entanto essa desconfiança dos evangélicos em
relação ao culto da Virgem é, muitas vezes, interpretado como “desvalorização” ou
até mesmo “diminuição” do valor atribuído à Santa.
Nos folhetos de Leandro Gomes, a temática do culto a Maria aparece outras
vezes, indicando que a discussão era valiosa para os fiéis que, na cidade do Recife,
devotavam a Santa que, como acompanhamos em outras discussões, tinha, na

68
BARROS, Leandro Gomes de. O diabo na Nova-Seita. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3.
Tomo V. op cit., p. 78.
69
BRITO, Gilmário Moreira. Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações
escritura, oralidade, gestualidade, visualidade. 2001. 295f. Tese de Doutorado em História Social -
Programa de estudos Pós- Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2001. Orientadora: Antonieta M. Antonacci. p. 205.
70
Ibid., p. 204.
171

representação de Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora da Penha,


manifestações fortes da crença popular.
Após a abordagem das tensões envolvendo católicos e protestantes na
discussão sobre a devoção à Maria, retornamos as discussões que marcavam a
ofensiva contra os protestantes na cidade, não obstante, a partir de agora
trabalharemos com o segundo folheto de Leandro Gomes de Barros, O diabo
confessando um nova-seita, provavelmente escrito em 1910, e que, assim como o
primeiro, está permeado de críticas e ofensivas aos evangélicos que se
estabeleciam no Recife no início do século XX, inclusive quando mais uma vez
retorna à questão da devoção a Maria.
Nesse folheto, a ofensiva contra denominações reformadas se inicia no título
da história: O diabo confessando um nova-seita, emblemático, ao indicar que Lúcifer
era o líder da nova religião, que mesclava em seu culto sacramentos do catolicismo,
uma vez que a história gira em torno das confissões dos pecados cometidos por um
fiel, protestante, recém convertido:

E alli chegando um negro,


Trasendo um livro na mão,
Interrogando ao barbado;
O que deseja irmão?
Disse o velho meu padrasto,
Me ouça de confissão. 71 (sic)

No fragmento em destaque, o fiel da nova seita se dirige a seu líder maior, o


Diabo, representado pelo “negro”, para solicitar a confissão de pecados que havia
cometido após se converter à religião. O pequeno recorte está saturado de
associações da “nova-seita” com o protestantismo e utiliza diferentes elementos para
chacotear os praticantes da religião.
Note que no fragmento o Satanás, mestre da religião, chama seu interlocutor
de “irmão”, tratamento recorrente entre os grupos denominacionais, que consideram
todos os indivíduos irmãos perante Cristo e assumem freqüentemente essa forma de

71
BARROS, Leandro Gomes de. O diabo confessando um Nova-Seita. In: Antologia Leandro Gomes
de Barros -3. Tomo V. op. cit., p. 59.
172

tratamento 72 . Além disso, o fiel, ao se referir a seu líder maior, o Diabo, o chama
“meu padrasto”, tratamento que, propositalmente, dissimula um ditado bastante
comum no Nordeste do Brasil: “Deus é pai e não padrasto”73 . A denominação
dirigida ao “negro” mostra que, em oposição ao Ser Supremo do catolicismo, Deus /
Pai, estava o líder da “Nova seita”, o Diabo / Padrasto.
Além desses elementos, uma terceira alusão ao protestantismo é inserida no
pequeno trecho, note que o Satanás chega “trasendo um livro na mão”, certamente
o livro da “nova seita”, ou as bíblias protestantes, que geraram muita polêmica no
período referido e foram alvo de controvérsias e discussões.
Micheline Vasconcelos afirma que as bíblias protestantes chegavam à cidade
através do porto, e dali eram amplamente distribuídas ou vendidas no intuito de que
acontecesse uma possível conversão pelo simples ato de sua leitura. De acordo com
a autora, houve uma forte reação da Igreja Católica em oposição às denominadas
“bíblias falsas”, geralmente distribuídas pelas sociedades bíblicas, em sua maioria
de origem inglesa e americana. 74 Em 1902, o frei Celestino convidava a população
para assistir à queima das ditas “falsificadas”, “truncadas”, e “adulteradas”,

[...] Era desde cinco longos meses que esse presumpçoso e


improvisado pastor, verdadeiro lobo desfarçado em pelles de ovelhas,
gritava ao bom gritar: “Vinde, pernambucanos, vinde adquirir uma bíblia, a
palavra de Deus, a fonte de todo o bem, de toda a felicidade. Procurae uma
bíblia (protestante): ahi achareis luz, vida e verdade pura, sem mesclas de
sentidos humanos, falsos e enganosos”, etc., etc.
E muitos curiosos [...], lá foram, [...], comprar [...]; [e] leram-n’a. [...] e
nada podendo descortinar de per si do quanto havia-lhes falsamente
garantido o célebre Salomão , forma entregal-a nas mãos dos missionários
Capuchinhos da Penha, os quais irão queimal-a na praça pública ou no adro
do seu esplendor e magestoso templo, domingo próximo, 22, às 8 horas da
manhã, após as religiosas funções da sessão solene da temerosa Liga
contra o Protestantismo. São convidados todos os nova-seitas a
comparecerem (querendo) no logar já indicado, para presenciarem esses
facto e assignarem essa decepção.
São cerca de 200 volumes ou exemplares da biblia protestante (entre
grandes e pequenas) que vão ser entregues às chamas, não por ser bíblia
ou palavra de Deus, mas sim, e tão somente por ser biblia de protestante,
por eles adrede e sacrilegicamente falsificada, truncada, e adulterada, e

72
“Vós, porém, não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre, e vós todos sois
irmãos.” (Mateus, 23:8). BÍBLIA, 1999, op.cit, p. 29.
73
MOTA, 1982, op.cit., p. 105.
74
VASCONCELOS, 2005, op.cit., p. 49.
173

pela suprema autoridade infallivel da verdadeira egreja de Christo


justamente proibida e excommungada. 75

É interessante notar, nesse registro do Frei Celestino, a preocupação dos


religiosos católicos com a disseminação das bíblias protestantes na cidade, bem
como exaltação àqueles fiéis que se mantinham convictos em sua fé católica e
entregavam o material a ser “confiscado” pelos missionários, que, numa tentativa de,
ao menos simbolicamente, extirpar a presença das correntes reformadas na cidade,
reduziam os “livros adulterados” a cinzas.
Nesse sentido, o combate à presença protestante no Recife serve para que
percebamos que nem sempre as relações entre os autores dos folhetos e os
membros do clero eram conflitantes, haja vista que nesse momento ambos tinham
alvo comum, combater o “invasor”, que colocava em risco sua religião. É bem
verdade que, enquanto o clero lutava para garantir uma religião clerical e ligada ao
vaticano, as pessoas comuns lutavam para manter suas práticas religiosas, muitas
vezes sem estreita relação com a Igreja Católica.
O que enfatizamos é que, por mais que os folhetos não deixassem de criticar
os padres por suas atitudes gananciosas e usurárias, havia momentos em que
concordavam e travavam lutas com alvos comuns, embora os objetivos pudessem
ser diferentes. Então, o que deixamos claro é que essas manifestações culturais não
se davam somente no campo das tensões, mas também das relações entre as
diferentes esferas da sociedade.
Dito isto, retornamos ao trecho selecionado do folheto de Leandro Gomes
para indicar que a imagem do “negro” portando um livro na mão não deveria ser
incomum para o período, uma vez que o material publicado pelo frei Celestino indica
a forte relação entre os protestantes e as “bíblias falsas”. Logo, concluímos que a
caricatura do Diabo, portando o livro, provavelmente possuía associação direta com
a imagem dos evangélicos que ganhavam as ruas da cidade, utilizando suas
escrituras como instrumento de evangelização.
Lembramos que, para esses sujeitos, a manifestação de fé através do
cumprimento das escrituras: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda

75
FREI CELESTINO. Amarga decepção salomonica! A província, Recife, Coluna Religiosa, 20 Fev.
1903, p. 01 apud VASCONCELOS, 2005, op.cit., p. 57.
174

76
criatura” (Marcos, 16: 15) era uma forma de desempenharem confessadamente
sua fé e levarem a palavra de Deus a quem não a conhecia, mesmo que isso
causasse incômodo e oposição de certos moradores.
Além da sátira às “bíblias falsas”, outras manifestações de jocosidade foram
direcionadas aos sujeitos praticantes de cultos não católicos na cidade. Destacamos
um último trecho no folheto O diabo confessando um nova seita que possui
passagem singular ao apontar uma possível inadaptação dos fiéis convertidos às
normas e crenças da “nova religião”:

Perguntava o negro ao velho;


O que quer você irmão?
Disse o velho meu padrasto,
Me ouça de confissão
P’ra vêr se por esse meio,
Eu posso ter o perdão.
[...]

Disse o velho meu padrasto:


Uma vez eu fui pregar,
O sermão da nova seita,
Devido a não me lembrar,
Chamei 3 vezes por Deus,
Depois foi que fui chorar.

Que mais perguntou o negro:


Tens feito no mundo tu?
Eu, já enterrei um morto
Já dei de vestir a um nú
Disse o negro antes tivesse;
Dado elle ao urubú.

Só serão esses pecados?


Interroga, o negro então:
Disse o nova seita sim
Uma vez no sermão,
Estava vexado e chamei,
A virgem da Conceição!

O negro se ergueu e disse:


Diga os nomes que quizer;
Faça por não se lembrar,
Do nome dessa mulher,
Eu passo mil leguas longe,
Do lugar que ella estiver. 77 (sic)

76
BÍBLIA, 1999, op.cit., p. 61.
77
BARROS, Leandro Gomes de. O diabo confessando um Nova-Seita. In: Antologia Leandro Gomes
de Barros -3. Tomo V. op cit., p. 60-61.
175

Podemos depreender a indição de Leandro de Barros de que os conversos da


“nova seita” ainda estavam impregnados de hábitos, práticas e costumes católicos, e
por isso cometiam “deslizes”, mostrando suas fraquezas em se adaptarem à nova
religião. Além disso, o poeta enfatizava também a fervorosidade do catolicismo,
presente naqueles que, mesmo desejando se afastar “de Deus”, cometiam atos
falhos, e acabavam retornando às práticas de sua antiga devoção.
Percebemos uma mistura de crenças e práticas emaranhando-se em
estranhamentos e superações, nos quais o fiel, por força do hábito, clamava o nome
de Deus, involuntariamente, mesmo sabendo que o Ser Supremo de sua crença era
Satanás. Além disso, insistia em praticar atos de bondade e caridade ensinados por
Jesus Cristo 78 , quando, em sua religião, só se praticava crueldade e maldade.
No entanto, apesar de confessar que indiretamente não conseguia se
desvencilhar dos valores e práticas católicas, todas as outras declarações
pareceriam irrisórias diante do último “pecado”, praticamente arrancado do fiel: “Só
serão esses pecados?”, perguntava o Diabo, como se quisesse ter certeza de que
não lhe esconderiam nada. E, diante da cobrança, o fiel entrega sua culpa,
mostrando que por um instante quase se esquecera de sua principal falha: “Sim /
uma vez no sermão, / Estava vexado e chamei, / A virgem da Conceição!”. A força
da expressão enfática “Sim” indica justamente uma lembrança quase deixada para
trás, mas que no último instante vem à tona, e traz consigo novamente a querela em
torno do nome da Virgem Maria.
Como afirmado anteriormente, a utilização do debate em torno da devoção à
Maria é recorrente nos folhetos, justamente porque a Santa tornou-se adorada entre
seus fiéis católicos, que se sentiam extremamente ofendidos diante das investidas
protestantes. Nesse caso específico, gostaríamos de lembrar que Nossa Senhora da
Conceição tinha na cidade uma devoção bastante significativa, inclusive sua festa
era uma das mais concorridas e prestigiadas da cidade. De acordo com Mário Sette:

78
“Então, dirá o Rei aos que estiverem à direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino
que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque eu tive fome, e me destes de comer;
tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes;
enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me.” (Mateus, 25: 34-36). BÍBLIA, 1999, op.cit., p. 32-33.
176

Mais pomposa, muito mais mesmo, era a festa do Arco da Conceição. [...] O
comércio em grosso do bairro do Recife, auxiliava os festejos que mereciam
toda a simpatia e prestígio [...]. Havia novenário concorrido. [...]
Dia santificado, dia grande, não faltava gente para aumentar o número já
crescido de fiéis residentes no próprio bairro. Acorriam famílias dos
arrabaldes. Misturavam-se tipos de todas as classes. Desde o açucareiro da
Passagem da Madalena ao catraieiro da Lingueta. Desde a viúva rica
moradora no Caldeireiro à mocinha pobre do Pátio do Terço. Do chefe de
seção do Correio ao aguadeiro do beco das Sete Casas. 79

O trecho recortado do folheto evidencia a forte devoção direcionada à Virgem


da Conceição e, de certa forma, explica o espanto sentido pelo Diabo ao ouvir seu
fiel em momento de “vexação” chamar pelo nome “dessa mulher”. Parece que o
poeta desejava indicar o temor do diabo com relação à Santa: “Eu passo mil leguas
longe, do lugar que ella estiver”, como se sentisse que contra ela nada poderia.
Edilece Souza Couto, em seu trabalho Tempos de festas: Homenagens a
Santa Bárbara, N.S. da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940), encontrou
um relato interessante no material recolhido por Manoel Querino em seu livro A
Bahia de Outrora. O trecho aborda uma passagem em que o Satanás evidenciava
sua querela com relação à Virgem da Conceição. O acontecimento lembra aspectos
do folheto de Leandro Gomes, precisamente porque, assim como em sua narrativa,
nele o Diabo mostrava sua insatisfação quando se proferia o nome da Santa:

Manoel Querino nos conta que numa noite na qual a roda de samba estava
desanimada pela falta de uma viola, alguns homens saíram à procura de um
músico. Numa esquina, encontraram um desconhecido tocando
maravilhosamente o instrumento. O tocador, que se identificou com o
estranho nome de Sassaraneco, deleitava a multidão, fazendo prodígios
com sua “mágica viola”. Os dançarinos bradavam: Viva o senhor
Sassaraneco! Ele respondia: Bravos às mulatas! Mas quando alguém
gritava: Viva Nossa Senhora da Conceição!, o músico dizia baixinho: Com
essa senhora não quero graça. Quando já era alta madrugada, um menino
gritou assustado: Olhem, o senhor Sassaraneco tem o pé redondo.
Imediatamente o homem desapareceu em meio a uma nuvem de fumaça
80
cheirando a enxofre.

Aqui, mais uma vez, ficam claras as reservas do Diabo em relação a Nossa
Senhora da Conceição, o que nos leva a inferir que, tanto na história contada por

79
SETTE, 1958, op.cit., p. 164-169
80
COUTO, Edilece Souza. Tempos de festas: Homenagens a Santa Bárbara, N.S. da Conceição e
Sant’Ana em Salvador (1860-1940). 2004. 215f. Tese de Doutorado em História – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis – SP, 2004. Orientador: Prof.
Dr. Eduardo Basto de Albuquerque. p. 172.
177

Manoel Querino, como na Narrativa de Barros, fica visível a lógica de que a Santa
teria muito poder em relação ao demônio, e que por isso ele desejava a todo custo o
afastamento em relação à mesma. Nesse sentido, ressaltamos que, apesar dos
senões lançados pelos protestantes ao culto de Nossa Senhora, os personagens
presentes nas narrativas dos folhetos tentavam mostrar sua força e poder entre os
fiéis.
No presente tópico, apontamos as diferentes investidas presentes nos
folhetos de Leandro Gomes direcionadas aos protestantes, inicialmente
representados por imigrantes, que chegavam à cidade em busca de posições de
trabalho e local para manifestação de sua crença religiosa. Mostramos como as
narrativas lançavam temas polêmicos no intuito de chacotear e acusar esses
sujeitos, sendo que os elementos que compunham gestos, indumentárias,
comportamentos e até mesmo crenças protestantes eram alvo de escárnio e críticas
dos fiéis católicos, que se sentiam ameaçados por essas novas manifestações
religiosas.
Contudo, parece-nos que ainda falta responder algumas questões acerca dos
valores, normas, princípios, condutas e principalmente tradições pertencentes a
esses grupos de pessoas que se manifestavam tão enfaticamente através dos
folhetos da literatura popular. Quem eram? De onde vinham? Quais eram mesmo as
“tradições” de que eram partidários? Contra quem se rebelavam? Essas e outras
questões são de importância ímpar para compreender os sentidos e significados que
as relações, tensões e enfrentamentos apresentados até agora possuíam para a
vida das pessoas que contestavam, à sua maneira, a ordem vigente na cidade.
Estas e outras questões estarão presentes e norteando o próximo ítem que pretende
melhor delinear essa discussão.

3.4. Esse mundo não é meu: retirantes sertanejos e suas


manifestações religiosas no Recife
178

Ao acompanharmos as relações, tensões e embates religiosos presentes nos


folhetos de Leandro Barros, apreendemos uma constante luta para afirmar e
defender valores, princípios e normas reguladoras de um mundo que o poeta
acreditava ser o mais correto e apropriado, comparado a outras realidades que
vinham sendo colocadas em prática na cidade do Recife no início do século XX.
O que nos parece é que o poeta partia em defesa de tradições religiosas
essencialmente católicas que serviam para si e para seus leitores como uma espécie
da baliza para viver, pensar e entender o mundo. Então, avaliamos que, nessa parte
do texto, seria interessante pensarmos um pouco mais sobre essas tradições
presentes nos folhetos, discorrendo sobre seus contornos, principalmente com
ênfase em seus defensores. Tentaremos responder algumas questões acerca do
lugar social de onde falavam, das crenças de que eram portadores, o que
desejavam combater e, principalmente, por que consideravam que o “mundo estava
às avessas”.
Gostaríamos de fazer essa discussão para deixar mais evidentes os
posicionamentos, convicções, rebeldias e também irreverências de sujeitos que
tentavam marcar seus lugares sociais e se manifestarem mesmo em ambiente
pouco favorável.
Pensamos que a melhor maneira de chegar às pessoas que faziam,
compravam, liam, ouviam e se manifestavam através dos folhetos da literatura
popular aqui estudada seja, mais uma vez, por meio dos indícios deixados por
Leandro Gomes de Barros, poeta que, através de histórias carregadas de sátiras e
bom humor, apresentava, sob diferentes aspectos, a vida na cidade e o mundo
dessas pessoas que ali se instalavam, sobreviviam e marcavam seus lugares.
Conforme afirmado no Capítulo Primeiro, Leandro Gomes, assim como a
maioria dos seus leitores, não era originário da capital pernambucana. Na verdade,
chegou ao Recife como mais um dos milhares de nordestinos que buscavam
alternativas para contornar os problemas decorridos das sucessivas variações
climáticas que assolavam o interior do Nordeste, e também para fugir da crise por
que passava a produção de cana-de-açúcar.
Entre o final do século XIX e primeiros anos do século XX, pelo menos cinco
períodos de extensa estiagem castigaram o Estado de Pernambuco e suas
179

adjacências. Esses tempos de seca contribuíram para que se formassem ondas


migratórias de deslocamento do sertão em direção à capital, causando um inchaço
populacional na cidade, que passaria da soma de 100 mil habitantes em 1872, para
um total de 200 mil em 1910 81 , o que representou a acentuação de problemas
graves como habitação, saúde, saneamento, desemprego e muitos outros.
A seca de 1877 foi sem sombras de dúvidas a mais arrasadora que
Pernambuco presenciou, durou cerca de três anos e atingiu todos os Estados do
Nordeste. Alguns estudos calculam uma estimativa de cerca de 500 mil mortos
durante o período de estiagem. O espectro da fome marcou a vida de muitas
pessoas, que viram de perto o desespero e a morte, e, na tentativa de fugir de uma
situação de catástrofe, buscavam a cidade como possível local de sobrevivência.
Clarisse Nunes Maia afirma que somente esta seca levou cerca de 20 mil migrantes
para o Recife, o que causou muitos problemas de alastramento de doenças
decorrentes das péssimas condições de abrigo dessas pessoas. 82
Aliada às constantes secas, a crise no sistema produtivo do açúcar, que
proporcionou às elites pernambucanas prosperidade incerta ao longo do século XIX,
contribuiu para que cada vez mais pessoas fugissem do campo em direção à cidade:

[...]a instalação de usinas não foi suficiente para salvar economicamente


Pernambuco. O açúcar sofria com intensidade, após 1890, as repercussões
das repetidas crises da economia européia, que se refletiam nas quedas de
preços e progressiva perda dos mercados.[...]. 83

Embora algumas usinas tivessem representado uma diligência


modernizadora, amparadas pelos subsídios do Estado, o açúcar brasileiro terminou
o final do século XIX perdendo os mercados externos e voltando-se, principalmente,
para abastecimento do mercado interno, o que fez Pernambuco perder relevância
econômica no quadro nacional.
Percebemos, então, que tanto as constantes secas que assolavam as regiões
interioranas do Estado, localizadas no que posteriormente viria a ser denominado

81
ARRAIS, 1998, op.cit., p. 43.
82
MAIA, Clarisse Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife,
1865-1915. 2001. 250f. Tese de Doutorado em História - Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001. Orientador Prof. Dr. Marcus Joaquim Maciel de
Carvalho.
83
ARRAIS, 1998, op.cit., p. 41.
180

polígono das secas, quanto a crise existente na indústria da cana-de-açúcar,


contribuíram para que milhares de migrantes buscassem Recife na esperança de
melhores condições de trabalho e moradia.
Uma vez instaladas na cidade, as pessoas que vinham do interior passavam a
conviver diretamente com a dinâmica, crescimento e modificações ali impressas, e
nesse momento mostravam que, além de suas famílias, pertences pessoais e
sonhos de construir uma vida nova, também levavam consigo, no momento de sua
partida, uma série de normas, valores, experiências que seriam tomados como
referencial para ler, entender e criticar esse novo mundo do qual passavam a fazer
parte. Esse posicionamento fica evidente através da leitura da obra do poeta
Leandro Gomes de Barros, que, assim como a maioria dessas pessoas, também
havia adentrado a capital como um retirante, fugindo da crise que tomava conta do
interior.
Por intermédio da obra do poeta, podemos perceber as ações desses novos
moradores do Recife, que se posicionavam mostrando pontos de vista e enfrentando
posturas que não consideravam corretas. Por meio dos folhetos populares,
vislumbramos os principais sujeitos dessa pesquisa, pessoas apontadas como
“retirantes” que, ao chegarem à cidade e ali se instalarem, passavam a fazer parte
da dinâmica que ali estava sendo impressa, fazendo-se e transformando-se
juntamente com o processo.
Nesse sentido, os folhetos da literatura popular são fontes de valor especial
para este trabalho, pois conseguem dar visibilidade à presença dessas pessoas,
além de evidenciarem aspectos de suas vidas cotidianas, mostrando que, para além
de simples números, índices ou porcentagens, esses indivíduos faziam parte dos
acontecimentos e relações ali estabelecidas.
É interessante notar os modos que o poeta encontrava para comunicar-se
com seus leitores, que nos folhetos viravam personagens e emprestavam aspectos
de suas vidas para serem retratados. Barros apresentava uma diversidade de
sujeitos com os quais convivia, dialogava e certamente ria junto. Encontramos
representados em seus folhetos velhos, sertanejos, carregadores, vendedores,
ambulantes, feirantes, empregadas domésticas, fateiras, enroladeiras de fumo, amas
de leite, comerciantes, cobradores, engomadeiras, lavadeiras, condutores, soldados,
181

parteiras, alfaiates, funileiros, ferreiros, sapateiros, carteiros, trapicheiros, e diversos


outros personagens que emprestavam suas histórias para dar vida a personagens
que seriam reconhecidos, aplaudidos ou detestados por muitos.
Apesar desse leque diverso de sujeitos que podiam ser encontrados nas
narrativas, percebemos que os personagens do poeta não eram de todo estranhos
entre si, na verdade, além de trabalhadores que ali estavam para ganhar a vida e
sobreviver, também eram partidários de tradições que podiam ser vislumbradas nos
contornos das narrativas, nas entrelinhas e muitas vezes até mesmo no transcorrer
do texto em formatos mais enfáticos.
Os sujeitos enfocados defendiam tradições de um catolicismo depositário de
princípios rígidos da moral sertaneja, na qual devoção, moral, caridade, fraternidade
e muitas outras características eram essenciais para mostrar o lugar de onde
falavam. Depositários de uma religiosidade essencialmente ligada ao campo,
posicionavam-se contrários a valores e comportamentos em crescimento e difusão
na cidade e travavam embates, relações e tensões que terminavam por enfatizar
para leitores/ouvintes os valores de que eram partidários.
Os folhetos do autor estavam carregados de mensagens religiosas que
objetivavam combater normas e comportamentos tidos como “modernos” e
“universais”. O autor contestava discursos de “higiene”, “civilização”, “aproximação
com a Europa”, que eram propagandeados por sujeitos que representavam
diretamente as campanhas e ações “modernizadoras” e “civilizadoras“ da cidade.
Acerca dessas tendências modernas que circundavam o Recife, Cátia
Lubambo informa que nas últimas décadas do século XIX a transformação da
economia açucareira, o crescimento urbano do Recife e as correntes de
modernização, que circulavam pelo país e Região, começaram a modificar a
fisionomia social do meio ambiente do Nordeste. A autora mostra que a paisagem
rural passava, a partir de então, a ser permeada por “padrões”, “estilos” e “moldes”
tipicamente urbanos, enquanto proprietários de engenhos e trabalhadores do campo
eram forçados a trocar de atividade, ou mudar-se para a capital. 84

84
LUBAMBO, Cátia Wanderley. Bairro do Recife entre o Corpo Santo e o Marco Zero: A reforma
urbana do início do século XX. Recife: CEPE/Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1991. p. 80. p.
54.
182

Nesse mesmo sentido, Nicolau Sevcenko afirma que no Rio de Janeiro,


durante o período de reformas e modernizações, abusou-se da oposição “cidade
industriosa/campo indolente”, registrando-se prontamente, na consciência
intelectual, as idéias do desmembramento da comunidade brasileira em duas
sociedades antagônicas e dessintonizadas, devendo uma inevitavelmente
prevalecer sobre a outra, ou encontrarem um ponto de ajustamento. 85
No Recife, a tendência de opor o urbano ao rural também se manifestou de
maneira acentuada. Percebemos, por meio das fontes da época, que o anseio de
“ser moderno” e “civilizado”, manifestado por grupos dominantes, terminava por
negar outras realidades ali presentes, como era o caso dos retirantes, discriminados
e taxados por serem justamente aquilo que “não se deveria ser”. Em posição ao
“ideal” de ser “urbano”, “moderno”, “civilizado”, “letrado”, encontravam-se sujeitos
taxados justamente por serem o oposto: “sertanejos”, “rurais”, “interioranos”,
“conservadores”, “machistas”, “anti-higiênicos”, “tradicionalistas”, “analfabetos”.
No Recife do início do século XX, estabeleceu-se uma espécie de caçada aos
“maus costumes”, “maus hábitos” e “maus elementos”, que insistiam em contrariar o
ideal de civilidade que tentava ser disseminado pelas classes dominantes. A esses
“maus elementos” respondia-se com dureza, inflexibilidade e até mesmo com o
poder de polícia, agente ativo no cerco à cidade, na contenção da “pobreza
suspeita”, e na perseguição de suas práticas hostis à ordem e ao ideal civilizatório. 86
De diferentes maneiras os grupos reformadores insistiam no pendor das
classes populares à criminalidade, atribuída à “falta de instrução” e “moral”, acirrada
pela miséria, embriaguez, e prostituição 87 . A “incivilidade” ali existente foi
preocupação constante dessas classes dominantes, que empreendiam
enfaticamente discursos e ações contra as classes populares, muitas vezes
consideradas perigosas.
No entanto, as ofensivas aos sujeitos menos favorecidos da cidade nem
sempre foram respondidas com silêncios, conformismos e passividade. Na verdade,
por diferentes momentos, aqueles que eram perseguidos por não se enquadrarem

85
SEVCENKO, 2003, op.cit., p. 45.
86
ARRAIS, 1998, p.75.
87
Ibid., p. 74.
183

nos “ideais de modernidade” e “civilidade” se rebelavam, combatendo quem lhes


pretendia combater.
As manifestações de afirmação de tradições religiosas encontradas nos
folhetos populares são um excelente exemplo de algumas dessas ações insurgentes
contra a ordem vigente, que se pretendia universal. Nos folhetos, acompanhamos as
formas como as pessoas de origem popular se rebelavam para defender suas
culturas tradicionais, mesmo que elas fossem consideradas “antiquadas” ou
“atrasadas”.
Nesse caso, o folheto terminava exercendo papéis diferentes, e ao mesmo
tempo complementares. Além de funcionar como mídia difusora de propostas de
religiosidades ligadas ao sertão nordestino, que muitas vezes contrariava, inclusive
as configurações da Igreja Católica, também trazia em seu conteúdo irreverências e
contestações com relação à ordem vigente e aos valores em profusão.
Através das relações e tensões presentes nas fontes produzidas por Leandro
Gomes, percebemos que as pessoas que viviam na cidade do Recife nos primeiros
anos do século XX tinham consciência de que a propagandeada “modernidade” não
era assim tão boa e democrática, quanto anunciavam seus representantes.
Afirmavam isso não somente porque suas tradições, valores e costumes não tinham
espaço e nem vez no novo “mundo reformulado”, mas principalmente porque
percebiam que uma boa parcela das novidades e benesses dos “tempos modernos”
não lhes era direcionada.
Em detrimento das “deliciosas” novas formas de lazer, automóveis,
velocidade, tecnologia, conforto, salubridade, saneamento e muitos outros lucros
adquiridos por alguns sujeitos da “cidade modernizada”, o que sobrava para a maior
parte da população era, nada menos, que os transtornos, invasões, deslocamentos
para os arrabaldes, problemas com o transporte público, altos impostos, proibições,
exclusões, perseguições, punições e, principalmente, extrema e absoluta negação
do que eles eram e valorizavam.
Talvez por isso os alvos favoritos de críticas presentes nos folhetos fossem
não somente os intelectuais, mas também médicos, padres, estrangeiros, mulheres,
além de suas roupas, costumes, comportamentos, desejos, anseios, religiões e
184

todos os elementos que de alguma forma possuíssem relação com esses sujeitos
que representavam os “novos tempos”.
No entanto, para além das críticas direcionadas à modernidade, não podemos
deixar de perceber as relações que as camadas menos favorecidas estabeleciam
com seus empreendimentos. De outro modo, não teríamos como explicar a
produção e distribuição dos próprios folhetos aqui discutidos e abordados que, por
mais que representassem a cultura sertaneja, produzidos e distribuídos por sujeitos
do interior, só adquiriram formato e se desenvolveram nesse contexto de inovações.
Logo, não podemos deixar de atentar que, embora Leandro Gomes fosse um
dos defensores mais ferrenhos dos valores tradicionais do campo, ao chegar à
cidade, não pode deixar de se vislumbrar e seduzir pela possibilidade de criar algo
novo, mesmo que fosse para defender velhos valores. Isso mostra a natureza
dinâmica das relações, já que, em nenhum momento, as pessoas que chegavam à
cidade conseguiam permanecer absolutamente alheias aos acontecimentos ali
presentes, ou seja, as tradições que traziam consigo eram reinventadas e
reelaboradas no processo de transformação.
E o mais interessante para ser percebido no interior desse processo de
relações e tensões entre diferentes confrontos culturais, com relação à modernidade,
é que, por mais que as produções populares, carregadas de seus valores, crenças,
experiências e modos de vida, quisessem ser negadas no período de
transformações da cidade, esses mesmos processos de inovações transformações e
tecnologias permitiam que a produção referente a esses segmentos da população
crescessem e se destacassem por todo o Brasil.
Esse é o caso dos folhetos populares que, ao terem sua produção
consolidada e definida nos primeiros anos do século XX, conheceram a partir da
década de 1920 aquilo que seria considerado o início do seu período áureo, graças
às possibilidades de profissionalização de determinados setores que se
especializaram exclusivamente na produção dessa mídia. A partir dessa década,
seriam presenciadas mudanças significativas na produção, distribuição e até
consumo dos folhetos, que teriam seu apogeu entre as décadas de 40 e 50,
185

momento em que o público crescia, aumentava o número de poetas escritores e


também editores. 88
Em meados dos anos 20, as configurações em torno do folheto começariam a
mudar, pois, ao contrário do que acontecera em seus primórdios, em que os próprios
poetas recorriam por conta própria a tipografias não especializadas para a
impressão desses materiais, haveria o estabelecimento da atividade editorial, na
qual a produção seria administrada por editores que tinham nos folhetos o centro de
sua produção. 89
Além disso, no período inicial de produção dos folhetos, a venda era realizada
fundamentalmente pelo próprio autor, mas, a partir de meados de 1920, haveria uma
mudança nesse processo. A venda passaria a ser realizada através de “depósitos”
localizados em cidades estratégicas, para dali seguirem tanto pelas mãos dos
representantes, como também pelo correio. Isso contribuía para que outras regiões
do país, até então afastadas desse mercado consumidor, passassem a receber a
produção que agora era realizada em larga escala. 90
Algumas mudanças também aconteceram no formato do próprio folheto, que
inicialmente possuía um número maior de páginas que variavam entre 16 e 32. Este
contingente foi reduzido para 8 páginas, o que barateava ainda mais o custo da
impressão. Aos poucos os folhetos foram ganhando capas mais elaboradas que
substituíam as vinhetas simples e as poucas gravuras dos seus primórdios. Alguns
profissionais se especializaram fundamentalmente na produção das capas que
passavam pelos clichês de zinco, fotografias, cartões postais, fotografias,
xilogravuras, litogravuras e diversos outros tipos de artes. 91
Enfim, percebemos que a partir da década de 20 os folhetos adquirem
diferentes contornos, assumindo características diferenciadas daqueles primeiros
folhetos produzidos na cidade do Recife. Muitos deles teriam, inclusive, sua

88
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Ler e ouvir folhetos em Pernambuco (1930-1950). 2000. 543f.
Tese de Doutorado em Educação – Curso de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000. Orientadora Prof. Dra. Magda Becker Soares. p. 81-84
89
Ibid., p. 82-84
90
Ibid., p. 82.
91
MARANHÃO, Liêdo. O folheto popular: sua capa e seus ilustradores. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco: Massangana, 1981. p. 35.
186

produção deslocada para cidades de menor porte, o que muitas vezes contribuía
para que seu conteúdo estivesse em harmonia com essa nova realidade.
No entanto, essa é uma nova dimensão da produção dos folhetos que, nos
limites desse trabalho, não teremos como explorar, mas não podemos deixar de
ressaltar que, mesmo com produção, distribuição e consumo diferenciados, os
folhetos continuariam marcando lugares sociais por onde quer que fossem lidos ou
ouvidos, deixando sempre viva e presente a aproximação com o sertão.
A proposta presente nesse item foi tentar abordar de forma mais direta os
folhetos da literatura popular como suporte de relações e tensões entre os sujeitos
que eram visibilizados por eles e os lugares sociais de onde falavam.
Ao final, pudemos perceber que as pessoas ali representadas possuíam muita
proximidade com os homens e mulheres do sertão, que recém chegados à cidade se
confrontavam com realidades absolutamente diferentes das suas, e, a partir de
então, em defesa daquilo que acreditavam ser o mais correto, lutavam e deixavam
evidentes suas tradições, sem abaixar a cabeça para aqueles que os apontavam
como a negação do “mundo civilizado”.
Enfim, ao chegar à cidade, as pessoas estranhavam essa realidade nova e
absolutamente diferente daquilo que conheciam e referendavam, talvez, por isso,
não fosse de se estranhar que retornassem, insistentemente, a afirmar que “o
mundo estava às avessas”!
187

Considerações Finais

O passeio pelos primeiros anos do século XX na cidade do Recife, a partir


das narrativas presentes na literatura de folhetos de Leandro Gomes de Barros, teve
como uma de suas principais propostas evidenciar visões de mundo e tradições de
determinados segmentos sociais, muitas vezes não percebidos por outros tipos de
fontes e estudos históricos. Nesse sentido, gostaríamos de iniciar essas últimas
palavras ressaltando e confessando alguns dos temores experimentados ao
construir a proposta de trabalho, e a pesquisa em si.
O desafio inicial dessa pesquisa foi a proposição de um estudo histórico,
utilizando-se primordialmente de fontes literárias, qual seja, a literatura de folhetos. É
presente que alguns historiadores vem se lançando a trabalhos semelhantes,
produzindo materiais de qualidade, que servem como referência para tal
empreendimento, no entanto, nada disso diminuía o receio diante da investida.
No mesmo sentido, acrescentava-se a esse desafio inicial o temor de eleger
um único sujeito como vetor para adentrar a cidade e estudar as relações históricas
ali estabelecidas. Temíamos que, ao utilizar a obra de um único poeta, pudéssemos
cair na armadilha de tomar o discurso e a experiência de um único sujeito, como
padrão para analisar toda uma época.
Além disso, havia ainda a especificidade de ter sido esse poeta um dos
pioneiros na produção e formatação dos folhetos da literatura popular no Brasil, logo
mais uma temeridade que se somava a todas as outras, era o risco de parecer que
desejávamos estudar o início da produção da literatura popular de folhetos, pura e
simplesmente, quando, na verdade, essa era apenas mais uma das peculiaridades
da pesquisa, haja vista que o universo que entremeava essas relações entre
escritura e oralidade era fascinante, contudo nossos objetivos não se encerravam
nele.
Diante de todas essas interrogações e receios, partimos para a pesquisa
histórica, que se encarregou de responder algumas dessas preocupações. De fato,
188

as narrativas dos folhetos se revelaram fonte bastante rica e cheia de sinuosidades


que, ao serem destrinchadas, conseguiam vislumbrar perspectivas dificilmente
alcançadas em outros tipos de materiais da época. A especificidade de poder
traduzir experiências, temores, receios, valores e diversos outros sentimentos
ligados e produzidos pelas populações mais pobres, faz com que o folheto seja uma
fonte ímpar que, contraposta e problematizada com outras fontes, pode mostrar
aspectos singulares acerca dos sujeitos e da dinâmica da cidade.
Soma-se a essas características, a especificidade de que as narrativas,
carregadas de moral, exemplos, experiências e vivências, não dão respostas prontas
e acabadas, mas deixam margem para que seus significados e lições sejam
pensados e vislumbrados em longo prazo. Isso faz com que seus conteúdos,
escritos ou imagéticos, ganhem um valor ainda mais específico e importante, pois
não ecoavam no vazio e faziam parte da vida das pessoas que liam, ouviam,
contavam, e significavam seus conteúdos.
Com base nesses pressupostos, lançamo-nos nos exercícios com as leituras
da produção de Leandro Gomes de Barros, e inicialmente nos deparamos com um
sujeito aparentemente conservador, que defendia posicionamentos e valores de uma
época saudosista, considerada referência para aqueles dias do “ceculo das luzes”.
Iniciamos as discussões acerca da Tradição versus Modernidade e, ao
aprofundarmos as leituras das fontes (narrativas do poeta, materiais produzidos por
folcloristas e memorialistas, jornais, periódicos e relatórios oficiais), aos poucos
vimos emergir não somente posturas exclusivas e individuais de um sujeito
provocador, mas nuances de todo um grupo de sujeitos, que mostrava seus
contornos e sinuosidades a partir de posicionamentos e experiências bastante
semelhantes.
A partir dessas características que saltavam das fontes, foi inevitável atentar
para as relações entre a cidade e o campo, o tradicional e o moderno,
principalmente ao percebermos que estávamos lidando com grupos de retirantes
sertanejos, que possuíam referenciais de vida e religiosidade completamente
diferentes daqueles presentes na cidade. Ao pesquisar diferentes arquivos, e diante
das inúmeras reedições das obras de Barros, sondamos que seus folhetos eram
bastante aceitos, e que, portanto havia o diálogo permanente e dinâmico com os
189

grupos de sertanejos presentes na cidade, em um vigoroso processo de ouvir,


escrever, recitar, ouvir novamente.
Finalmente, pesquisar o início do processo de escritura das narrativas orais
em folhetos populares foi apenas um mote para desvelar a suntuosidade de uma
religiosidade forte, de sujeitos que se mostravam, davam-se a ver, partiam para o
confronto aberto e, através de seus posicionamentos, marcavam lugares sociais e
vivenciavam a experiências religiosas cotidianamente, independente dos novos
valores, em relação com os processos em curso, principalmente em oposição
àqueles que desejavam lhes combater.
Sendo assim, amenizados alguns dos temores inicialmente experimentados
no processo de pesquisa, tentamos cumprir os objetivos propostos, realizando
redefinições e ajustes, a partir do contato com as fontes e também das dificuldades
encontradas para o desenvolvimento da proposta original.
A princípio pretendíamos estudar não somente a produção de práticas
culturais religiosas a partir da literatura de folhetos, mas também sua difusão e
recepção entre grupos culturais do Nordeste brasileiro, no entanto, com o
andamento da pesquisa, optamos por enfatizar primordialmente o universo de sua
produção, pois percebemos que manter a proposta inicial requereria, não somente
ampliar a quantidade, mas também os tipos de fontes utilizadas.
Sendo assim, embora realizada a opção metodológica de trabalhar
principalmente com o universo das produções dos folhetos populares, não perdemos
a dimensão das riquezas e possibilidades presentes num estudo acerca da difusão e
também das leituras realizadas com base nesse material. Dizemos isso
fundamentados em narrativas encontradas, que revelam diálogos suntuosos entre
seus produtores e público consumidor. É salutar o modo como o narrador apreendia
posturas de leitores inquietos, que ao tomarem contato com as histórias, se sentiam
na obrigação de procurá-lo para debater temáticas e expor opiniões, que novamente
retornavam às suas narrativas.
É notável a relevância desses diálogos, em torno da difusão e leituras
apreendidas nos folhetos populares, se configurando em possibilidades de
investigação bastante ricas, mas que demandariam maior tempo de pesquisa, não
disponível em uma dissertação de mestrado.
190

Além desse caminho, abdicado com muito pesar, também vislumbramos


possibilidades de pesquisa, que fugiam dos objetivos aqui propostos, logo, não
puderam ser exploradas, mas servem como indicativos para trabalhos futuros. Não
deixamos de perceber, por exemplo, a especificidade de uma fonte de origem
popular, produzida no período inicial do século XX, que se mostrava salutar em
reunir sentimentos e posturas em defesa de valores e características em torno de
tradições nacionais, e por conseqüência em oposição aos “causadores das
desordens da nação”, ou seja, estrangeiros, considerados invasores que deveriam
ser combatidos, diminuídos. É interessante perceber a relevância desse embate,
levado para o campo religioso, através das críticas à religião do outro, suas
satirizações e tratamentos pejorativos.
O que pensamos que seja importante sugerir é a especificidade das posturas
assumidas por sujeitos de origem popular, que antes mesmo de todas as discussões
e construções acerca de uma suposta “identidade nacional”, produzida por
intelectuais no decorrer desse século, já partiam, à sua maneira, para ações
enfáticas e acentuadas, marcando lugares sociais na defesa de sua “nação”.
Embora estas sejam dimensões e sondagens ainda muito frágeis, elas podem ser
mapeadas nas fontes, e por isso, sugerimos que não sejam negligenciadas ou
desprezadas.
Encerrando essa parte acerca das possibilidades e impossibilidades de
pesquisa, ressaltamos caminhos que, embora tocados pelas investigações aqui
iniciadas, não puderam ser aprofundados de maneira rigorosa, mesmo que se
apresentassem de relevância ímpar para o presente trabalho. Sabemos que diante
da investigação e trabalho com os folhetos tivemos contato com nuances de um
catolicismo peculiar, de tradições religiosas bastante ligadas ao sertão que, talvez,
merecessem maior destaque e atenção. No entanto, justamente por ter surgido em
período bastante avançado de pesquisa não recebeu o tratamento que acreditamos,
fosse relevante para sua abordagem.
Reconhecemos, que alguns caminhos aqui sondados poderiam ser melhor
enfatizados e problematizados, no entanto, novamente ressaltamos o curto período
de tempo para realização desse trabalho, e as opções que inevitavelmente devem
ser realizadas, muitas vezes, em detrimento de ricas possibilidades de pesquisa.
191

Contudo, consideramos que o caminho percorrido foi bastante válido,


principalmente pelo diálogo com fontes ricas, produzidas por elementos
pertencentes às camadas sociais menos favorecidas, portadores de diferentes
percepções, posições e visões de mundo, que, às vezes veladas, outras explícitas,
revelavam-se eminentemente políticas, ajudando-nos a entender posicionamentos e
percepções que se aproximavam e se excluíam num processo contínuo. Tentamos
mostrar que a relação entre essas culturas não é estanque na sociedade, como
blocos separados, mas processual, dinâmica e histórica.
O exercício aqui realizado não pretende colocar um ponto fnal nessa
discussão, pelo contrário, seu objetivo é levantar questões, dúvidas, inquietações
que possam ser futuramente resolvidas no trabalho direto com as fontes e leituras
específicas. Sentimos que há muito a ser trabalhado, e por isso a necessidade de
desvendar melhor as relações e pensar caminhos a seguir.
Sentimos que damos os primeiros passos no sentido de perceber as nuances
de uma religiosidade que emerge aos poucos, de forma viva e bem humorada, a
partir do trabalho de determinados sujeitos, que davam-se a ver a partir de sua obra
e produções.
192

Fontes

Folhetos de Leandro Gomes de Barros

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As Saias Calções / Um Susto de minha sogra, Recife, s.d.
Casamento a prestação / Testamento de <<Cancão de Fogo>>, Recife, s.d.
Como João Leso vendeu o Bispo / Como João Leso tornou a Iludir o Bispo, Recife,
s.d.
Defesa feita pelo Doutor Ibiapina em que livrou da força um rèo já sentenciado.
Recife, 1917; Echos da Pátria / Guerra / Canto da Guerra, Recife, 1917.
Doutores de 60, Recife, s.d.
Festas do Juazeiro no vencimento da guerra, Recife, s.d.
O Cachorro dos mortos (Obra completa). Recife, s.d.;
O cometa / Romano e Ignácio da Catingueira, Recife, 1910.
O Diabo confessando um nova – seita / História de João da Cruz (Conclusão),
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O Diabo na Nova-Ceita / Vingança de um Filho / A Tarde, Recife, s.d.
O dinheiro / Casamento do Sapo / Ultimas palavras dum papa, Recife, 1909.
Os coletores da Great Western / A cançoneta dos Morcegos / Peleja de José do
Braço com Izidro Gavião, Recife, s.d.

Folhetos de outros autores


FILHO, Manoel D’Almeida. Peleja de Zé caixão com o Diabo, 1972.
193

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A luneta.
A província.
Chic.
Diario de Pernambuco.
Jornal do Recife.
Jornal Pequeno.
Lanterna Magica.
O andarilho.
O Embaixador.
O Periquito.

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Lanterna Magica

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