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13 o Mundo Esta As Avessas Relacoes Tensoes e Enfrentamentos Religiosos Nos Folhetos de Leandro Gomes de Barros - Recife 1900-1920
13 o Mundo Esta As Avessas Relacoes Tensoes e Enfrentamentos Religiosos Nos Folhetos de Leandro Gomes de Barros - Recife 1900-1920
13 o Mundo Esta As Avessas Relacoes Tensoes e Enfrentamentos Religiosos Nos Folhetos de Leandro Gomes de Barros - Recife 1900-1920
Salvador
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - UFBA
2007
2
Salvador
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - UFBA
2007
3
_________________________________________
Profª Drª Edilece Souza Couto -UFBA
A Jason Bittencourt
5
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais Dona Neide e Seu Zé do Doce, que no ano de 2007 decidiram terminar um noivado
que já durava trinta e um anos, e finalmente, vão se casar!! (rs!);
A minhas irmãs Rose, Vania, Aurea e Alexandra, mulheres fortes e decididas, que me servem de
exemplo, me protegem e me cuidam, mesmo à distância. A meus irmãos Maycon e Ronildo, que
tentam ter alguma voz em meio a tantas mulheres...
Ao meu amigo Everaldo Santos Oliveira por me ouvir, aconselhar e amar (isso é por minha conta!).
Agradeço seu carinho, que se iniciou antes mesmo desse ir e vir (SSA – SP) e se fortaleceu, mesmo
em meio aos nossos encontros e despedidas;
As pessoas das instituições e acervos que, gentilmente, me acolheram: Fundação Joaquim Nabuco,
Biblioteca Pública de Pernambuco, Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (PE); Instituto de
Estudos Brasileiros (USP), Biblioteca Central Mario de Andrade (SP); Museu Casa do Sertão (UEFS);
Biblioteca Pública dos Barris. Um agradecimento carinhoso à Miguel Teles, pessoa gentil e solícita,
que me cedeu ricos materiais, e me manteve sempre próxima aos “causos” do sertão (Miguel é de
Pedrão, por merecimento!);
A professora Gabriela Sampaio por ter me acompanhado desde o projeto inicial, por suas
intervenções pontuais e fundamentais para os resultados que apresento;
Ao professor Onildo Reis David pela atenção e dedicação que me acompanham desde a graduação,
e que agora tive o prazer de novamente receber. Agradeço imensamente a leitura atenta e crítica de
um dos meus primeiros leitores, bem como seu afeto, que certamente é (muito) recíproco;
Aos companheiros de casa Agrimária Matos e Igor José Trabuco, por aceitarem com paciência as
“redefinições” dos espaços durante o período de escrita da dissertação, e por tornarem esse tempo
agradável e divertido. A Igor agradeço a boa vontade, disposição e incentivo nos momentos de
impaciência, desespero e falta de dinheiro! A Guiu agradeço as incontáveis horas de audição e
discussão em que precisou interromper seu café, seu sono, seu estudo, seu merecido ócio. A Igor
agradeço por ter feito silêncio, e a Guiu, por ter feito Igor fazer silêncio! (rs!)
6
A Tito Casal que “riniticamente” (palavras dele) me cedeu alguns dias de suas férias como
pesquisador nos arquivos do Recife;
A Igor Gomes pela atenção e disposição em ler, discutir e fazer proposições, principalmente no
período inicial da pesquisa;
A Tatiana Farias, Fabrício Mota e João Lucas Mota (meu afilhado) pelos momentos agradáveis de
descontração, pela preocupação e suporte a mim dispensados desde o primeiro dia na cidade de
Salvador. Agradeço as visitas, os bate-papos gostosos, as discussões teóricas, e principalmente a
alegria de pertencer a essa família;
A amiga Ana Clara Farias pela presença, e apoio em todos os momentos da pesquisa, principalmente
pela disposição em se deslocar ao Recife para me ajudar na coleta de fontes. Agradeço suas
propostas convidativas e divertidas, que certamente me ajudaram a manter a serenidade, durante
todo esse processo;
A Bia, Ângela e Umberto por me hospedarem no Recife e serem tão prestativos e gentis em território
tão próximo, e ao mesmo tempo tão distante...
A Luango e Júlio Braga pelos momentos de descontração e risadas que passamos juntos. A
Luanguinho pela companhia firme e divertida no banco de trás, pelos abraços e beijinhos roubados
quando seu pai não estava olhando (rs!). A Júlio por todas as consultas prestadas, empréstimo de
obras fundamentais de sua biblioteca, e principalmente solicitude e atenção sempre a mim
dispensadas;
A amiga Iris Verena pela preocupação que sempre dirige a mim. Agradeço por me devolver o chão
quando me falta, dar um norte nos momentos de desespero, ser firme nas inseguranças, e
principalmente pela certeza de que não estou só. Agradeço pelas palavras duras nos momentos de
precisão, e também pelas perguntinhas retóricas em momentos pontuais, e que (sempre) já sabe a
resposta!
Ao professor Gilmário Moreira Brito com quem aprendo a muitos anos os meandros do ofício do
historiador. Mesmo que desejasse não conseguiria agradecê-lo como merece, porque foram
incontáveis discussões, correções, orientações e leituras feitas com rigor e firmeza. Sou grata pelos
bons momentos que passamos juntos, seu bom humor, as engraçadas histórias de São Paulo, Vitória
da Conquista, do carro roubado, do mutetão, dos abacates numerados e tantas outras (rs!). Não teria
palavras para descrever o empenho, boa vontade e carinho de uma pessoa extremamente
observadora, que percebeu, inclusive, que eu cantarolava enquanto escrevia. Pensei que como seria
impossível lhe agradecer por tudo, ao menos lhe dedicaria todas as canções que embalaram essa
dissertação!!! (rs!)
A FAPESB que, através de seu programa de bolsas possibilitou um ambiente mais tranqüilo para a
realização deste trabalho.
7
RESUMO
RÉSUMÉ
Les feuillets populaires ont été imprimés et divulgués depuis la fin du 19ème
siècle, en devenant un support de relations sociales et un important moyen de
communication diffusé dans le Nord-Est brésilien. Dans ses narratives, il est possible
de dévoiler des tensions culturelles issues des différents sujets qui, originaires des
traditions orales, non lettrées, manifestaient et enregistraient des positions, des
valeurs, des affrontements et des traditions à travers les poésies ici présentes. Dans
ce travail, nous examinons le processus de formation et de diffusion des pratiques
culturelles religieuses dans les deux premières décennies du 20ème siècle, à Recife,
surtout à partir des affrontements entrepris par le poète issu de Paraiba, Leandro
Gomes de Barros, un des plus grands auteurs de la littérature de feuillets du Nord-
Est, probablement le premier à unir l’avènement des imprimeries à l’impression des
narratives. Il est, sans aucun doute, sujet d’importance impaire pour le présent
travail, car à partir de sa production nous retirons des matériaux essentiels pour
comprendre des aspects de la ville et de la religiosité ici présents. A partir des
positionnements contondants et incisifs de ce poète, nous passons à d’autres
sources et nous avons dévoilé des traditions, des relations et des tensions établies
entre des sujets de différentes positions sociales, donnant vue sur des aspects de la
production d’un segment de la population plusieurs fois exclu et occulté par
l'historiographie.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1:
“MUNDO VELHO DESGRAÇADO TEU POVO PRECISA DE FREIO”:
O poeta e as transformações da cidade................................................................ 20
1.1. Leandro Gomes de Barros: mais um retirante na Capital......................... 27
1.2. Recife e o novo século: inovações e olhares de protesto ........................ 38
CAPÍTULO 2:
PELEJA ENTRE FOLCLORISTAS E POETAS: LEITURAS ACERCA DE
POSTURAS E COMPORTAMENTOS DO CLERO.................................................. 69
2.1. Poesia e Religiosidade nas Letras dos Folcloristas ................................. 71
2.1.1. O folclore e a busca do “popular”: registros de fontes escassas.............. 72
2.1.2. “Ninguém me fale de padre, seja lá o que for” - Em busca da fé
do outro: religiosidade na construção do folclorista.................................. 89
2.2. Poesia e Religiosidade em Folhetos Populares: observações
acerca do Clero Católico......................................................................... 105
CAPÍTULO 3:
“POVO INCRÉDULO E DESCRENTE”: EM DEFESA DE UMA MORAL
RELIGIOSA PARA O RECIFE ............................................................................... 121
3.1. “As cousas não vão de graça”: religiosidade nos folhetos
populares em oposição a valores e práticas em profusão na cidade..... 123
3.2. “Ou que lugar desgraçado”: enfrentamentos religiosos
contra a presença estrangeira................................................................. 144
3.3. “A nova-ceita é caipora”: ofensiva contra os protestantes...................... 161
3.4. Esse mundo não é meu: retirantes sertanejos e suas manifestações
religiosas no Recife................................................................................. 177
Introdução
1
BARROS, Leandro Gomes de. Casamento a prestação / Testamento de Cancão de Fogo. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. Tomo III. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura,
Fundação Casa de Rui Barbosa, Universidade Federal da Paraíba, 1977.
13
3
BRITO, Gilmário Moreira. Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações
escritura, oralidade, gestualidade, visualidade. 2001. 295f. Tese de Doutorado em História Social -
Programa de estudos Pós- Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2001. Orientadora: Antonieta M. Antonacci. p. 20.
4
ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado das Letras: Associação de
Leitura do Brasil, 1999. p. 91.
15
5
Nessa perspectiva, ver principalmente BRITO, 2001, op.cit.
16
6
Sobre essas discussões ver: BURKE, Peter. Cultura Popular na idade Moderna. São Paulo: Cia das
letras, 1989; El FAR, Alessandra. Páginas de Sensação: Literatura popular e pornográfica no Rio de
Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004;
7
Ver CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Tradução Álvaro Lorencini.
São Paulo: Editora UNESP, 2004.
8
GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1987, p. 27.
17
9
CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (orgs). A História Contada: capítulos de
História Social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 7.
18
contextos de produção, utilizando como fonte, não somente as coletas, mas inclusive
os posicionamentos de seus estudiosos.
Vale ressaltar que outro material fundamental para a pesquisa foram as
crônicas e outros escritos deixados pelos memorialistas que viviam na cidade no
momento da produção dos folhetos. Esses registros, carregados de saudosismos e
minuciosidades foram capitais para percebermos o cotidiano da cidade, bem como
suas atividades, festejos, curiosidades e manifestações. Tentamos perceber os
posicionamentos desses sujeitos que registravam com detalhes os acontecimentos
ali vivenciados, sem deixarem de emitir opiniões e posicionamentos, que revelavam
os lugares sociais de onde falavam.
Por fim, trabalhamos também com jornais, periódicos, relatórios e outras
produções do período que nos auxiliaram na percepção de elementos da história da
cidade, bem como posições assumidas por sujeitos que ali viviam e se
manifestavam.
Dividimos o texto em três capítulos. No primeiro, localizamos o narrador dos
folhetos, Leandro Gomes de Barros, evidenciando o lugar social de onde falava, sua
origem, atividades que desenvolvia, e sua chegada na capital, como mais um
retirante que fugia da seca e buscava ali alternativas de sobrevivência. Em seguida
trabalhamos o contexto de transformações e modernizações da cidade nas duas
primeiras décadas do século XX. Fizemos isso a partir de indicações presentes nos
folhetos de Barros, tentando acompanhar as críticas do poeta em relação às
mudanças físicas, infra-estruturais e de valores ali presentes.
No segundo capítulo, analisamos os enfrentamentos em relação às
transformações religiosas vividas na urbe, principalmente através das críticas a
posturas e comportamentos do clero católico. Localizamos os enfrentamentos
travados pelo poeta, bem como coletas e posicionamentos empreendidos por
folcloristas que, apesar de se dizerem próximos às tradições populares e aos
sujeitos de origem sertaneja, muitas vezes tinham visões destoantes daquilo que se
podia encontrar nos folhetos.
No terceiro capítulo enfatizamos outros enfrentamentos religiosos perpetrados
nos folhetos de Barros. Tentamos enfatizar os modos que o poeta assumia para
levar para o campo religioso o combate dirigido às inovações, tradições, valores e
19
Primeiro Capítulo:
“Mundo velho desgraçado teu povo precisa de freio”: o
poeta e as transformações da cidade
1
BARROS, Leandro Gomes de. Casamento a prestação / Testamento de Cancão de Fogo. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. Tomo III. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura,
Fundação Casa de Rui Barbosa, Universidade Federal da Paraíba, 1977, p. 136.
21
E aqui em Pernambuco
Progrediu esta envenção
Hoje é plaxe de negocio,
Da capital ao sertão
Ja temos visto até noivo
2
Não é difícil encontrar a denominação “século das luzes” nos jornais da época, o Diário de
Pernambuco, por exemplo, faz uso da expressão em reportagem sobre os avanços da ciência em
remédio para homens. “OS VELHOS teem a palavra”. Diário de Pernambuco, Recife, 04 mar. 1917. p.
7.
22
Os do tempo do atraso
Tinham carater e ação
Criavam bem as familias
Davam bôa criação
Alguns do ceculo das luzes
Vendem filhas a prestação
3
BARROS, Leandro Gomes de. Casamento a prestação/ Testamento de Cancão de Fogo. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. op.cit., p. 136.
4
Ibid., p. 137.
23
5
MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: Poesia e Linguagem do Sertão Nordestino. 3º edição.
Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962. p. 181-215.
6
“Honre seu pai e sua mãe: desse modo, você prolongará sua vida, na terra que Javé seu Deus dá a
você” (Êxodo, 20:12). BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada - Edição Pastoral. São Paulo: Edições
Paulinas, 1990. p. 92.
7
“Eu farei de você um grande povo, e o abençoarei; tornarei famoso o seu nome, de modo que se
torne uma bênção. Abençoarei os que abençoarem você e amaldiçoarei aqueles que o
amaldiçoarem. Em você, todas as famílias da terra serão abençoadas”. (Gênesis, 12: 2-3) BÍBLIA,
1990, op.cit., p. 25.
8
“Desejem o bem aos que os amaldiçoam, e rezem por aqueles que caluniam vocês.”. (Lucas, 6: 28).
BÍBLIA, 1990, op.cit., p. 1319.
25
9
“Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção, o partiu, distribuiu aos
discípulos, e disse: «Tomem e comam, isto é o meu corpo.»“ (Mateus, 26: 26). BÍBLIA, 1990, op.cit.,
p. 1275.
26
Apresentaremos alguns aspectos da vida e obra desse poeta, para muitos um dos
maiores autores da literatura de folhetos nordestina, possivelmente o primeiro a
combinar o advento das gráficas com a impressão de narrativas, para nós, sujeito de
importância singular, pois, partindo da sua produção, colhemos informações
essenciais para entender certos aspectos da cidade e da religiosidade ali praticada.
Por intermédio da obra desse poeta e de seus folhetos, podemos esboçar
alguns valores, sentimentos e experiências de certos segmentos da população, que
viveram naquele início de século na cidade do Recife, pois é necessário reconhecer
que, mesmo lidando com uma fonte literária, não podemos prescindir das críticas,
tensões, modos de ver o mundo presentes nos folhetos. Estes podem contribuir para
identificar e caracterizar pessoas comuns que escreviam, compravam, liam, sentiam,
assimilavam e recontavam histórias carregadas de humor e tensões sociais.
A narrativa poética do autor permite que nos aproximemos daqueles dias,
episódios e principalmente sujeitos que, em meio aos acontecimentos e
transformações, viviam, resistiam e, eventualmente, diferenciavam-se, registrando e
difundindo suas idéias e valores. Por essa razão, buscamos entender de onde,
como, por que e para quem falava essa figura inquieta, que não se intimidava com
as novas perspectivas abertas pela modernização da cidade e, sobretudo, pelejava
com diversos sujeitos, autoridades e instituições, mantendo opiniões firmes e
contundentes.
Ao problematizar as relações, tensões de práticas culturais religiosas vividas
e difundidas principalmente através da produção literária de folhetos nas duas
primeiras décadas do século XX, é necessário investigar os acontecimentos
ocorridos no Recife à época, para compreender o contexto no qual vivia e produzia
Leandro Gomes de Barros, cuja produção poética tomamos como ponto de partida
para apreender aspectos da religiosidade vivenciados e difundidos naquela cidade.
A apresentação das tensões e relações acerca das inovações que chegavam à
cidade será realizada na segunda parte do capítulo.
No presente texto, tentamos apreender histórias que, menos humoradas, às
vezes são igualmente relatadas em fontes oficiais e acadêmicas, mas estas últimas
nem sempre expressam integralmente as opiniões de segmentos populares que
viviam e se manifestavam naquela cidade em transformação. Assim posto,
27
10
Frase utilizada por Leandro Gomes de Barros para indicar que os costumes se “afrouxavam” na
cidade do Recife. LESSA, Orígenes. Nota Introdutória. In:______; SILVA, Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, Centro
de Pesquisas, Setor de Filologia, 1983. p. 1.
11
SLATER, Candace. A vida no Barbante: A literatura de cordel no Brasil. Tradução de Octávio Alves
Velho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 29.
28
Todavia, segundo Márcia Abreu, o mais antigo folheto de Leandro que se tem
notícia data de 1893. 13
A maioria dos autores também afirma que Leandro faleceu no dia 4 de março
de 1918, ele teria deixado sua produção literária para seu genro, o escritor Pedro
Batista, que publicou suas histórias em Guarabira, Paraíba, até por volta de 1920,
período em que a viúva do poeta, D. Venustiniana Aleixo de Barros, 14 vendeu parte
dos direitos autorais ao poeta João Martins de Atayde. Algumas dessas histórias são
publicadas atualmente pelas filhas de José Bernardo da Silva, no Ceará, mas nem
sempre mencionam o nome do poeta. 15
Essas são as informações encontradas nas diversas fontes sobre o início da
produção de folhetos populares no Brasil. Dizem pouco sobre os modos de ser e ver
o mundo de um dos maiores poetas populares dessa época, homem de posturas e
opiniões contundentes, expressas nas histórias que contava em suas narrativas, por
isso sentimos necessidade de ir um pouco além, e tentar encontrar mais
informações sobre a vida pessoal, posição social, relações, conflitos, que
permeavam a vivência do poeta e inflluenciavam em seu modo de se posicionar, ver
e criticar o mundo, levando-o a travar pelejas contra empreendimentos modernos,
censurando valores, posturas e sujeitos que causavam modificações nas vivências e
tradições que considerava corretas.
Diante da escassez das fontes, procuramos sanar a deficiência do material a
partir do inter-cruzamento entre produções sobre a vida a e obra do poeta,
informações contidas em seus próprios folhetos, bem como documentos produzidos
sobre a cidade de Recife, no contexto em que o narrador ali habitava.
12
PROENÇA, Manoel Cavalcanti. Antologia Literatura Popular em Verso. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986,
p. 575; CURRAN, Mark J. História do Brasil em Cordel. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1998, p. 43.
13
ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado das Letras: Associação de
Leitura do Brasil, 1999. p. 92.
14
Em alguns materiais referentes à vida do poeta, encontramos diferenças com relação ao nome de
sua esposa, conhecida também como Venustiniana Eulália de Souza. TERRA, Ruth Brito Lemos.
Memória de Lutas - Literatura de Folhetos no Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983, p. 40.
15
LOPES, José Ribamar. Literatura de Cordel; Antologia. Fortaleza. BNB. 1982, p.19; PROENÇA,
1986, op. cit., p. 577.
29
16
VIANA, Antônio Klévisson. Leandro Gomes de Barros: O pioneiro de literatura de Cordel. Fortaleza:
Tupynanquim editora, 2005.
17
LINHARES, Francisco e BATISTA, Octacílio. Antologia Ilustrada dos Cantadores. Fortaleza:
Edições UFC, 1982, p. 338.
30
18
SLATER, 1984, op.cit., p. 25.
31
19
BARROS, Leandro Gomes de. O cometa / Romano e Ignácio da catingueira. In: Antologia Leandro
Gomes de Barros – 2, op. cit., p. 210-211.
20
WIKIPEDIA, Cometa Halley. Disponível em <http://gl.wikipedia.org/wiki/Cometa_Halley> Acesso
em: 12 nov. 2006.
32
O Recife não recebia apenas os filhos das elites decaídas: a cidade tornou-
se desaguadouro do movimento populacional que o processo de instalação
das usinas havia desencadeado. Massas humanas liberadas pelas
mudanças que a usina introduziu no campo – concentrando propriedades,
arruinando produtores de subsistência e liberando braços – se dirigiam ao
centro mais atrativo da região. O Recife não apenas exercia dominação
sobre uma região que recobria outros estados, como concentrava, em
relação a seu território, a maior parte do comércio, das indústrias, serviços e
instituições. 22
21
As principais secas que atingiram o Nordeste do Brasil no final do XIX e primeiros anos do século
XX foram: 1877- 1879; 1888-1889; 1898; 1900; 1903-1904. SOUZA, Itamar; MEDEIROS FILHO,
João. Os degredados filhos da seca: uma análise sócio-política das secas no Nordeste. 2.ed.
Petrópolis: Vozes, 1983, p. 38-39.
22 ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Recife, Culturas e Confrontos: As camadas urbanas na
Campanha Salvacionista de 1911. Natal: EDUFRN, Editora da UFRN, 1998, p. 42.
23
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. O pântano e o Riacho: A formação do espaço público no
Recife do século XIX. 2001. Tese de Doutorado em História Social - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Orientador Prof. Dr. Marcos
Antônio da Silva, p.180; ARRAIS, 1998, op.cit., p. 45-46.
34
24
ARRAIS, 1998, p. 43.
25
Informações obtidas nos seguintes folhetos: O cometa / Romano e Ignácio da Catingueira, Recife,
1910; O Cachorro dos mortos (Obra completa), Recife, s.d.; Festas do Juazeiro no vencimento da
guerra, Recife, 1914; A crise actual e o augmento do sello / A urucubaca / O antigo e o moderno,
35
endereços revelam que Leandro de Barros era mais um dos moradores dos
arrabaldes da cidade, inclusive em alguns momentos morava de aluguel, haja vista
as constantes mudanças de endereço, às vezes para casas localizadas na mesma
rua, e que certamente passava pelos mesmos problemas de diversos outros
moradores, como o desemprego, as péssimas condições de saneamento básico, os
altos impostos, a falta de iluminação e transporte público, dentre outros.
Além disso, seus locais de habitação indicam que o poeta não era homem de
muitas posses, mas certamente sabia improvisar a sobrevivência, uma vez que,
segundo as fontes, a sua renda era proveniente exclusivamente da produção e
venda de folhetos, que discorriam sobre temas e personagens cotidianos, facilmente
reconhecidos pelo seu público consumidor, formado por gente simples, exilada,
exposta aos rigores da sobrevivência, mas também uma gente que sabia rir da
própria condição e buscava nos folhetos, além de informação, um mote para a
diversão.
Recife, 1915; A defesa feita pelo doutor Ibiapina em que livrou da força um réo já sentenciado, Recife,
1917; Echos da Pátria / Guerra / Canto da Guerra, Recife, 1917.
26
CASCUDO, Luís da C. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,1968, p. 264.
36
27
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François
Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1993, p. 144.
28
MONTEIRO, Manoel. Leandro Gomes: o rei do cordel. Campina Grande:Projeto Paraíba, sim
senhor!, 2005.
37
Não parece haver evidências que confirmem essa última versão, pois
segundo o estudo de Geraldo Maia, a influenza chegou ao Brasil em setembro de
1918 32 , enquanto o poeta teria morrido em março do mesmo ano. Versões
controversas à parte, é forçoso reconhecer ter sido a morte de Leandro Gomes
permeada por mito, que também serviu de mote à criação literária de outros poetas.
29
TERRA, 1983, op.cit, p. 41.
30
MONTEIRO, 2005, op. cit., p. 16.
31
LOPES, 1982, op.cit., p. 19.
32
MAIA, Geraldo. A influenza espanhola. O Mossoroense. Mossoró: 28 jun. 2005. Nossa História.
Disponível em: < http://www2.uol.com.br/omossoroense/mudanca/nhistoria.htm>. Acessado em: 20
jun. 2006.
33
Pesquisamos nos jornais A província, Diario de Pernambuco, Jornal do Recife e Jornal Pequeno.
38
poeta fosse representativo apenas no segmento popular do qual fazia parte, sendo
desconhecido ou desprezado no ambiente da elite letrada. No entanto, embora haja
esse espaço nas produções de sua época, é inegável a contribuição desse autor
para a poesia e produção literária popular, sua afirmação e difusão, com ênfase à
visibilidade alcançada por segmentos da população, nem sempre privilegiados por
outros tipos de fontes.
A proposta desse tópico é fazer uma imersão sobre a cidade do Recife nas
duas primeiras décadas do século XX. Desejamos perceber as relações ali
estabelecidas, as mudanças, a injunção de valores que se pretendiam universais, as
39
da região fica bastante evidente. O poeta marca sua posição contestante desde as
primeiras linhas da narrativa:
O atraso do Brazil
É esta desunião
Cinema jogo de bichos
Automoveis e balão
Esses Seguros de vida
E negocio a prestação 34 (sic)
34
BARROS, Leandro Gomes de. Casamento a prestação / Testamento de Cancão de Fogo. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. Tomo III, op. cit., p. 136.
35
ARRAIS, 1998, op.cit, p. 50-51.
41
36
Quase sempre os jornais do período dedicavam uma página inteira à programação a ser exibida nos
cinemas da cidade ou faziam colunas para falar sobre suas acomodações. Ver principalmente A
provincia, Diario de Pernambuco, Jornal do Recife, Jornal Pequeno, O andarilho.
37
SETTE, Mário. Maxambombas e Maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante Brasileiro,
1958, p. 136.
38
SETTE, 1958, op.cit., p.139.
42
- Está visto! Que dirá aqui, hein, seu Marcolino? Numa terra destas!
- A mais infeliz do mundo. Com esse govêrno...
- E temos lá gente para ir ao cinema todo dia?
- Maluquices dos Guedes Pereiras.
- Fogo de Palha... 39 (sic)
39
SETTE, 1958, op.cit., p. 139.
40
O andarilho, Recife, 07 nov. 1913, p. 3.
43
41
BARROS, Leandro Gomes de. As cousas mudadas / História de João da Cruz. In: Antologia
Leandro Gomes de Barros - 2.op.cit., p. 284.
42
Mário Sette informa sobre os atraentes filmes da Ambrósio, Gaumont, Éclair, Nordisque, fábricas
francesas, italianas e dinamarquesas que produziram grandes sucessos cinematográficos, que,
reproduzidos no Recife ajudavam a inventar comportamentos e modas, como o beijo tipo zepelin:
compridos e amarrando à torre dos lábios para demorar. SETTE, 1958, op.cit., p. 140.
44
indícios e as curiosidades que foram emergindo sobre sua relação com a cidade,
insistimos em seguir a pista, rastreando o jogo nos folhetos de Leandro Gomes.
Adiantamos que essa temática é bastante sugestiva para a pesquisa, não somente
por que ampliou as possibilidades de análise sobre as transformações citadinas,
mas particularmente por que descortinou uma teia de confrontos entre saber popular
e outros saberes, bastante evidente nas brochuras do poeta.
Presente no Brasil desde os primeiros anos da República, o jogo do bicho
possuía no Recife caráter informal e constituiu-se fonte de criminalidade. De acordo
com Raimundo Arrais, algumas autoridades policiais tentavam controlar essa
contravenção, mas tal intenção resultava ineficaz, pois, como era sabido, até as
autoridades policiais de várias patentes jogavam. 43
Pesquisando jornais dos primeiros anos do século XX no Recife, não é raro
encontrarmos colunas como essa:
43
ARRAIS, 1998, op. cit, p. 73.
45
44
O Periquito. Recife , 24 Jan. 1902, p. 8.
45
MOTA, Mauro.O jogo do bicho. Jangada Brasil: e o Bicho vai pegar. Ano VIII, edição especial, No
88, Mar de 2006. Disponível em: <http://www.jangadabrasil.com.br/revista/marco88/especial26.asp>
20 mar. 2007.
46
CAMPOS, Renato Carneiro. Ideologia dos Poetas Populares do Nordeste. Recife: MEC-INEP –
Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife, 1959, p. 33.
46
47
O andarilho, Recife, 29 Dez. 1913. p 2
47
Com efeito, ainda que a capa fizesse alusão ao jogo do bicho, o conteúdo se
mostrava bastante crítico já que relacionava de maneira contundente o gasto com a
aposta a um dinheiro desperdiçado, “jogado no lixo”. Constatamos assim que a
posição do autor se mantinha negativa em relação a essa modalidade de jogo,
mesmo quando ‘brincava’ com as dezenas do animal na capa de seu folheto.
Assim, a narrativa do folheto Doutores de 60 não é importante apenas por
demonstrar a posição do poeta em relação ao jogo do bicho, considerado como mais
um “causador do atraso da nação”. O folheto é também singular por inserir em sua
abordagem uma discussão sobre elementos significativos para as transformações da
capital pernambucana. Referimo-nos especificamente às transformações médicas e
48
BARROS, Leandro Gomes de. Doutores de 60. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo
V. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Universidade
Federal da Paraíba,1980, p. 149.
49
49
Barros, Leandro Gomes de. Doutores de 60. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3.op. cit., p.
141-142.
50
50
LORENZI, H., ABREU, M.F.J. Plantas Medicinais no Brasil: Nativas e Exóticas. São Paulo: Instituto
Plantarum, 2002.
51
Não obstante, o poeta vai além de nomear o seu opositor com o nome de
erva daninha, pois, durante o diálogo efetuado com o burro, percebemos as formas
que encontrava para privilegiar o animal com respostas prontamente aptas a
desqualificar o “doutor”. Um exemplo dessa afirmação se refere ao momento em que
o burro cumprimenta o médico e este se ofende, enfatizando a irracionalidade do
animal. Notamos que, durante a réplica, o burro em momento algum nega sua
irracionalidade, mas afirma que em matéria de saber eram iguais, ou seja, ambos
irracionais. Evidenciamos por meio da sinuosidade dos diálogos as intenções do
poeta em diminuir o doutor, fazendo-o perder uma discussão até mesmo para um
burro, que insiste em afirmar que, mesmo com sua estupidez ou irracionalidade,
ainda assim valia mais que o médico.
Nesse trecho o poeta expõe de forma pontual o enfrentamento aberto entre o
saber popular e o saber acadêmico, evidenciando que não estava desatento às
redes de transformações por que passava a cidade, que se apoiava muitas vezes
nos discursos dos médicos para legitimar as mudanças que eram impostas à
população. O poeta assume o lugar daqueles que muitas vezes eram negados
durante esse processo de “limpeza” urbana que, respaldada pelo discurso da
higienização, varria essas pessoas do centro, impunha-lhes sanções e regras que se
opunham a tudo aquilo que elas consideravam correto.
Esse confronto declarado direcionado ao médico nos faz indagar os motivos
que levariam esse poeta, ligado aos problemas e vivências da população, a escrever
uma narrativa que em seu conjunto fazia duras críticas à formação dos médicos e ao
modo como exerciam a profissão. Até aqui é possível perceber que o poeta não
estava muito contente com a atuação desses profissionais. Mas por que os
considerava ‘invasores’, e os comparava a uma erva daninha? Por que sentia que os
médicos se alastravam? Que acontecimentos da cidade o instigavam a assumir essa
batalha declarada aos médicos através desse mote para compor essa narrativa
poética? Quais teriam sido as causas que levariam o poeta a caracterizá-los como
irracionais, ignorantes, e questionar através de sátiras os conhecimentos e
tratamentos que ministravam?
Diante desses questionamentos, decorridos de uma leitura atenta do folheto
Doutores de 60, vemos a necessidade de investigar a presença e atuação dos
52
51
Diario de Pernambuco, Recife, 04 mar. 1918, passim.
53
cabeça, coração, rins, bexiga, estômago, coração, olhos, garganta, nariz e ouvidos,
erysipela, febre typhoide”, dentre muitas outras. 52
Considerando-se o número de profissionais que ofereciam os seus serviços,
receitavam e assinavam os medicamentos, bem como o amplo espaço dedicado aos
aspectos de saúde no jornal, vemos que em 1918 o número de profissionais da área
médica na cidade crescia rapidamente. Talvez, por isso, não fosse por acaso a
comparação, nos folhetos de Leandro Gomes de Barros, com a “berduega”, planta
que crescia ligeiramente e se alastrava sem controle algum.
Embora beirando a chegada dos anos 1920 fosse tão fácil encontrar e
mapear os serviços oferecidos pelos médicos através dos jornais de grande
circulação, é importante salientar que os médicos nem sempre foram categoria
numericamente representativa na região. Na verdade, durante todo o século XIX, a
cidade do Recife não tinha tantos desses profissionais, possuindo, ao longo de todo
o período, pouco mais de 102 doutores. 53
No entanto, com a formação e retorno de muitos profissionais que estudaram
nas escolas de medicina do Rio de Janeiro e de Salvador, o número de clínicos foi
ampliado gradativamente. Isso se deu, principalmente, a partir dos primeiros anos do
século XX, quando retornavam à cidade e atuavam juntamente com seus colegas de
profissão em diferentes esferas da saúde pública.
A presença desses profissionais de saúde contribuiu de forma cada vez mais
intensa para controlar os hábitos da população, principalmente porque nesse
período as questões de higiene pública estavam na pauta das discussões sobre os
problemas da cidade e os médicos exerciam um trabalho incisivo e marcante na
disciplinarização da população.
É importante notar que, desde meados do século XIX, a capital de
Pernambuco era constantemente assolada por epidemias, chegadas através do
porto. Embora trouxesse benefícios comerciais para a cidade, as docas também
52
Diario de Pernambuco, Recife, 04 mar. 1918, passim
53
LOPES, Maria Aparecida Vasconcelos. Cidade Sã, corpo São: Urbanização e saber médico no
Recife (Final do século XIX, início de século XX). 99f . 1996. Dissertação de Mestrado em História -
Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1996.
54
eram portas de entrada para inúmeros surtos de diferentes doenças, como varíola,
febre amarela, sarampo, coqueluche, influenza, dentre outras. 54 .
Os altos números de mortalidade causada pelas doenças faziam com que o
55
Recife fosse apelidado de “cidade bombainizada” ou “cidade da morte”. Assim, o
médico sanitarista Octávio de Freitas, desde o século XIX, muito se destacou na
atuação junto à higiene pública e apresentava indicações que ajudavam a entender
alguns problemas sanitários da cidade. Segundo esse médico, a situação higiênica
da capital era agravada pela sua situação geográfica, quase ao nível do mar; pelas
galerias de esgotos mal construídas; péssimo serviço de limpeza e remoção dos
dejetos domésticos; ruas estreitas e mal traçadas; condições precárias dos pobres
que habitavam mocambos e cortiços. 56
As preocupações com a higiene eram expostas por certos segmentos sociais
que durante algum tempo se manifestavam nos jornais do período através de sátiras
como esta publicada no periódico Lanterna Mágica de 1903. 57
54
LOPES, 1996, op.cit, p. 48-50.
55
Ibid., p. 50.
56
FREITAS, Octavio de. Do registro sanitário das habitações. Memória apresentada ao Congresso
Médico Pernambucano. Recife. Imprensa Industrial, 1909 apud LOPES, 1996, op. cit., p. 39.
57
Lanterna Magica., Recife, 10 Jul. 1903. Ano XXII, Número 736, p 4.
55
58
Sobre os processos de urbanização e Higienização adotados em outros estados, principalmente no
Rio de Janeiro, ver principalmente CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte
imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; SEVCENKO, Nicolau. A revolta da Vacina: mentes
insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984. Na Bahia, ver FONSECA, Raimundo
Nonato da Silva. “Fazendo fita”: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1987-1930.
Salvador: EDUFBA; Universidade Federal da Bahia. Centro de estudos Baianos, 2002; LEITE, R. C. E
a Bahia Civiliza-se...: em um contexto de modernização urbana Salvador 1912-1916. 139 f.
Dissertação de Mestrado em História Social - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996;
ALBUQUERQUE, Wlamira R. de. Algazarra nas Ruas. Comemorações da Independência na Bahia
(1889-1923). Campinas, Editora da Unicamp, 1999.
56
[...] Rosa e Silva era tido como um autocrata rico e cosmopolita que
governava Pernambuco à distância, do Rio de Janeiro, ou o fazia do Porto,
a bordo dos navios em que ia para a Europa ou voltava da Europa para a
sua casa, na Capital Federal. Evitava vir a Pernambuco e desprezava o
Nordeste por considerar pouco civilizado. 61
59
LUBAMBO, Cátia Wanderley. Bairro do Recife entre o Corpo Santo e o Marco Zero: A reforma
urbana do início do século XX. Recife: CEPE/Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1991. p. 80.
60
CHALHOUB, 1984, op.cit., p. 35.
61
LUBAMBO, 1991, op. cit., p. 103.
57
62
LUBAMBO, 1991, op. cit., p. 98-99.
63
Ibid., p. 105.
58
fossem demolidas, mesmo estando fora dos limites físicos aprovados para
desapropriações. 64
No lugar dos prédios demolidos surgiam novas e caras construções e seus
antigos moradores invariavelmente tinham que se mudar para os arrabaldes da
cidade, juntamente com grande parte da população que chegava fugindo das crises
e secas do interior do estado. Essa população pobre, que possuía representantes
como o poeta Leandro Gomes de Barros, tinha que enfrentar, além da especulação
imobiliária, crescente com a urbanização, também uma ofensiva contra seus hábitos
e costumes, que se tornaram alvo constante dos reformadores.
Nos relatórios de saneamento da cidade do Recife, produzidos pelo
engenheiro sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de Brito (1864-1929), que
empreendeu obras de reformas sanitárias na cidade a partir de 1910, havia
reclamação constante contra o que chamavam de “má vontade” e “antipatia injusta”
da população. 65 O sanitarista e aqueles que trabalhavam nas reformas não mediam
esforços para cumprirem suas proposições, mesmo que tivessem que impor à força
os referenciais a serem seguidos.
No entanto, a ofensiva médico-sanitária era contestada pelos segmentos mais
pobres que se sentiam invadidos e mostravam sua indignação diante das medidas
de higienização,
67
Sobre a contaminação da população por chumbo ver principalmente PARAÍSO, Rostand. Esses
Ingleses. 2ª ed. Revista e Ampliada. Recife: Bagaço, 2003, p. 164 e LOPES, 1996, op. cit., p. 28.
60
- Eu também acho. Então, aqui neste Recife. Isto é um lugar que não
dá mais nada... Daqui para a trás vocês vão ver. Já se foi o tempo das
vacas gordas. Me enforquem neste lampião se alguém comprar outro...
70
[...] (sic)
73
Rostand Paraíso informa que o gerente da Brazilian Street Railway, um inglês chamado Fletcher
era uma pedra de gelo diante das inúmeras reclamações, queixas e protestos, contra as
maxambombas. Impassível, sem tomar qualquer providência, ele se limitava a dizer: “Passageira não
estar satisfeita vai a pé...”. PARAÍSO, 2003, op.cit., p. 133.
64
Júlio Burlay levantar vôo no seu balão até certa altura e fazer acrobacias no ar preso
a uma corda pendurada na barquinha. 74
Anos depois, em 1905, a cidade recebeu a visita do capitão português
Antônio da Costa Bernardes, o famoso Ferramenta, que chegou disposto a
demonstrar sua coragem e também a funcionalidade de seu aeróstato. De acordo
com Mário Sette, a presença desse português deu muito que falar, pois o público
comparecia em peso às suas apresentações. Muitos se decepcionaram, pois nos
dois primeiros dias as tentativas de Ferramenta foram frustradas e ele não decolou,
dando mote para alguns expectadores mais criativos comentarem com ironia:
O pau rolou,caiu,
Seu Ferramenta não subiu. 75 (sic)
74
SETTE, 1958, op.cit., p. 291.
75
Ibid., p. 292.
76
WANDERLEY, Eustórgio.Tipos Populares do Recife Antigo. 2ª série, 2ª edição. Recife: Colégio
Moderno, 1953-1954, p. 213-218.
77
SETTE, 1958, op.cit., p. 293.
65
78
SETTE, 1958, op. cit., p. 293.
79
Ibid., p. 294.
80
Lanterna Magica. Recife, 1903. Ano XXII, Número 744. p 4.
66
naquele período constituía-se algo pouco comum, pois a fotografia com finalidade
jornalística era usada há muito pouco tempo. 81 Deduzimos, portanto, que a presença
do aviador, somada à significativa cobertura jornalística e fotográfica indicavam
sinais do progresso!
Com isso percebemos que a necessidade de se mostrar próximos e íntimos
aos avanços tecnológicos e infra-estruturais é patente ao pesquisar as fontes do
Recife no início do século XX. Havia um desejo acentuado nas classes dominantes
da capital pernambucana em estar sintonizada com as mudanças que ocorriam nas
grandes cidades do mundo. Fosse promovendo reformas urbanas e sanitárias,
incorporando de novos locais de lazer e entretenimento, ou mesmo através da
implementação da tecnologia aeronáutica ou automobilística, o que valia eram as
tentativas de se inserir nos tempos modernos.
No entanto, é necessário lembrar que, de acordo com os grupos dominantes,
para se tornar “civilizado” não bastariam as inovações físicas ou tecnológicas,
concomitante a ela havia também a necessidade de reformar costumes, hábitos,
comportamentos e valores dos moradores da cidade. Essas investidas às vezes
eram sutis, divulgadas pelos veículos de comunicação através de lançamentos da
moda, anúncios, propagandas; outras vezes, truculentas, coercitivas, repressivas,
aplicadas pela polícia, impostas aos grupos menos favorecidos de cima para baixo.
Não obstante, essas ofensivas nem sempre foram respondidas com silêncios
ou consentimentos explícitos, ao contrário, alguns segmentos da população se
mostravam profundamente invadidos com tais pretensões das classes mais
abastadas e respondiam suas investidas com estranhamento, traduzido em
satirizações, zombarias e diminuição dos valores que tentavam ser impostos. De
diferentes maneiras esses segmentos sociais buscavam mostrar que suas tradições
e valores eram outros e que estavam muito distantes daquilo que se queria anunciar
como universal e homogêneo.
O poeta Leandro Gomes era um desses sujeitos que, através de seus
folhetos, marcavam lugares sociais de grupos que consideravam absurdas as
81
Kubrusly informa que em 1897, faltando apenas quatro anos para terminar o século, o New York
Tribune do dia 21 de Janeiro publicava a primeira imagem impressa sem “auxílio da mão do artista”.
De acordo com o autor a reprodução gráfica transformou definitivamente a fotografia num produto de
massa. KUBRUSLY, Cláudio A. O que é fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 72.
68
Segundo Capítulo:
Peleja entre folcloristas e poetas: leituras acerca de
posturas e comportamentos do clero
1
CERTEAU, Michel de. A beleza do morto In: A cultura no plural. Tradução Enid Abreu Dobránszky.
Campinas, SP: Papirus, 1993.
71
No final do século XIX, o Brasil foi marcado por produções acadêmicas que
privilegiavam correntes de pensamento vindas da Europa como o cientificismo e
positivismo, utilizadas para explicar a sociedade. Estas correntes levaram vários
intelectuais a se preocuparem com o caráter da sociedade brasileira, que, formada
por uma mistura de raças, e localizada numa região tropical, não reunia as
condições propícias para o desenvolvimento e, uma vez comprovada a veracidade
das teorias raciais, a sociedade estaria fadada ao fracasso.
Levando em consideração as peculiaridades da composição racial da
população brasileira, que não se encaixava nas teorias científicas da época, partiu
das inquietações de alguns intelectuais o interesse pela “construção” de uma
identidade nacional, baseada no resgate das origens do país, no intuito de buscar
novos caminhos para repensar a História e, a partir disso, compreender a sociedade
brasileira e seu devir 2 .
Nesse contexto de mudança de século, o país passava por transformações
políticas, econômicas, estéticas, culturais, dentre outras, produzidas no curso das
lutas desencadeadas pelos movimentos republicano e abolicionista. Como
acompanhamos no capítulo 1, no Recife essas transformações eram visíveis desde
os últimos anos do século XIX através de aceleradas mudanças que imprimiam uma
evolução urbana à cidade.
A partir das alterações materiais, vitais para as atividades econômicas e
satisfação das crescentes necessidades de conforto da aglomeração urbana, houve
melhoramento do porto sobre o qual se haviam concentrado as expectativas de
amplos setores urbanos, dado que essa realização representava o fortalecimento
dos vínculos econômicos locais com o mercado mundial e inseria a cidade num
círculo cultural que tinha Paris como centro.
2
DA MATTA, R. Digressão: A fábula das três Raças, ou o problema do racismo à brasileira. In:
Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981.
73
3
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. O pântano e o Riacho: A formação do espaço público no
Recife do século XIX. 2001. Tese de Doutorado em História Social - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Orientador Prof. Dr. Marcos
Antônio da Silva, p. 36.
4
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira: Contribuições e estudos gerais para o exato
conhecimento da literatura brasileira. Primeiro Tomo – 3º Edição aumentada. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1943, p. 135.
74
5
ROMERO, 1943, op.cit., p. 132.
6
ROMERO, Sílvio. O Brasil Social. In: O Brasil Social e outros estudos sociológicos. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2001, p. 89.
75
7
ROMERO, 2001, op. cit., p. 90.
8
CERTEAU, 1993, op.cit., p. 56.
76
9
ARINOS, Affonso. Lendas e tradições brasileiras. São Paulo: Typographia Levi, 1917, p. 4.
10
ALMEIDA, Renato. Manual de Coleta Folclórica. Rio de Janeiro, Oficinas Gráfica Olímpica Editôra
Luiz Franco, 1965, p. 34.
77
11
THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organizadores: Antônio Luigi
Negro e Sérgio Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 231.
12
Ibid., p. 234.
13
LIRA, Mariza. Migalhas Folklóricas. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Ltda, 1951.
78
Ainda de colo, ouve os versos das cantigas de ninar, mais tarde aprende os
das cantigas de roda, na idade adulta, sabe versos para cantar nas festas
profanas, nas cerimônias religiosas e até mesmo ouvindo as ladainhas e
orações conforme a nossa tradição mística. 14 (grifo da autora)
15
MAGALHÃES, Basílio de. O Folk-Lore no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Quaresma, 1928.
80
16
MAGALHÃES, 1928, op. cit., p. 13.
81
no interior dos estudos sobre cultura popular. Dois autores em especial, os franceses
Robert Mandrou e Geneviève Bollème, debateram em seus estudos sobre a
biblioteca “azul” de Troyes. Possuíam o mesmo objeto de estudo: a literatura de
cordel, mas abordado de maneira diferente.
Robert Mandrou, nos livros De la culture populaire aux XVIIe et XVIIIe e La
bibliothèque bleue de Troyes (1964 e 1975), propôs-se a estudar não a cultura
produzida pelas classes populares, mas a cultura imposta às classes populares e
concluiu que essa literatura teria alimentado por séculos uma visão de mundo
banhada de fatalismo e determinismo, de maravilhoso e misterioso, impedindo que
seus leitores tomassem consciência da própria condição social e política,
desempenhando uma função reacionária.
Ao contrário de Mandrou, Geneviève Bollème, no livro La Bibliotèque bleue de
Troyes (1975), apesar de não contestar a origem erudita dessa literatura, que fora
buscada nos acervos antigos da imprensa de Troyes, por impressores que
“exumaram” uma cultura própria da aristocracia medieval, considerou essa biblioteca
“popular” por ter conquistado o grande público, e por possuir uma pobreza particular
de escrita e de leitura. Considerou-a expressão espontânea de uma cultura popular
original e autônoma, sem mistificação ou alienação, voltada para o real. 17
A discussão sobre a polarização ou não da matriz primordial das composições
tidas como populares teve melhor direcionamento e abordagem na obra do crítico
literário russo Mikhail Bakhtin Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento 18 .
Seu trabalho sugeriu mudanças abissais nos modelos comumente adotados para o
estudo da cultura popular, que tendiam a fazer polarizações estanques entre as
culturas, como foi o caso dos trabalhos de Mandrou e Bollème.
De acordo com Peter Burke, a definição de Bakhtin de carnaval e do
carnavalesco, pela oposição não às elites, mas à cultura oficial, assinala uma
17
Essa discussão pode ser acompanhada em DOSSE, François. A antropologia Histórica. In: A
história em migalhas: dos Annales à nova História. Tradução Dulce Oliveira Amarante dos Santos.
Bauru, São Paulo: EDUSC, 2003.
18
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François
Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo, HUCITEC; Brasília, Editora da Universidade
de Brasília, 1993.
82
mudança de ênfase que chega quase a redefinir o popular como “o rebelde que
existe em todos nós”, e não propriedade de algum grupo social. 19
Ao estudar as relações estabelecidas entre Rabelais e a cultura popular de
seu tempo, Bakhtin ressalta que a principal qualidade desse autor era manter uma
profunda e estreita ligação às fontes populares que determinaram em seu conjunto
um sistema de imagens, assim como sua concepção artística. Para Bakhtin,
Rabelais é a chave para compreender os “esplêndidos santuários” da obra cômica
popular, que permaneceu quase incompreendida e pouco explorada durante muito
tempo. Em seu estudo destaca a importância de perceber a diferença capital entre
os dois cânones grotesco e clássico:
19
BURKE, Peter. Cultura Popular na idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 21.
20
BAKHTIN, 1993, op. cit., p. 27.
21
Ibid., p. 45.
22
GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1987, p. 20-21.
83
conhecido por Menocchio, que foi condenado pela Inquisição. Através dessa
documentação, consegue perceber leituras e discussões, pensamentos e
sentimentos, dando novo enfoque ao processo de circularidade entre a cultura
subalterna e cultura hegemônica, que se movia tanto de “baixo para cima”, como de
“cima para baixo”. 23
Ao propor esta discussão, Ginzburg se mostra bastante inquieto com a
ambigüidade do conceito de “cultura popular”, exposto até aquele momento, pois
alguns estudos ora atribuíam à cultura popular uma passiva adequação aos
produtos sub-culturais, distribuídos com generosidade pelas classes dominantes; ora
propunham uma tácita proposta de valores, ao menos em parte autônomos em
relação à cultura destas classes; ora possuíam um estranhamento absoluto que se
colocava até mesmo para além ou aquém da “cultura”.
Acompanhando algumas sugestões, e apesar das críticas, elogia a hipótese
formulada por Bakhtin de uma influência recíproca entre a cultura das classes
subalternas e a cultura dominante, contudo, ressalta ser necessário precisar os
modos e os tempos dessa influência, e que tal posicionamento significa enfrentar o
problema posto pela documentação que, no caso do popular, quase sempre é
indireta. Ao concluir suas reflexões, afirma que, embora o conceito de “cultura
popular” seja pouco satisfatório, faz sempre a opção por uma análise de classes.
Outro interessante estudo que traz questões para pensar a discussão acerca
da cultura popular é o texto de Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna 24 . O
autor alarga as visões e problemas em torno desse debate, promove uma discussão
pormenorizada e com muitos exemplos localizados na Europa durante a idade
Moderna. Chama atenção para a falsa impressão de homogeneidade presente
nesse conceito, alertando que talvez melhor fosse utilizá-lo no plural, ou substituí-lo
por uma expressão como “a cultura das classes populares”.
Burke critica duramente o “modelo de duas camadas” de cultura de “elite” e
“popular”, ressaltando que a fronteira entre as várias culturas do “povo” e as culturas
das “elites” é vaga e, por isso, a atenção dos estudiosos deveria concentrar-se na
interação e não na divisão entre elas.
23
GINZBURG , 1987, op.cit., 13.
24
BURKE, 1989, op.cit.
84
25
BURKE, 1989, op. cit., p. 24.
26
CHARTIER, Roger. “Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 8, nº 16, p. 184, 1993.
85
(...) Esta pode sugerir, numa inflexão antropológica influente no âmbito dos
historiadores sociais, uma perspectiva ultraconsensual dessa cultura,
entendida como “sistema de atitudes”, valores e significados
compartilhados, e as formas simbólicas (desempenhos e artefatos) em que
se acham partilhados. Mas uma cultura é também um conjunto de diferentes
recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante
e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos
conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa (...) assume forma de
sistema. E na verdade o próprio termo “cultura”, como sua invocação
confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições
sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto 28
27
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. Revisão
técnica Antônio Negro e Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
28
Ibid., p. 17.
86
(...) nos ativemos à estrutura poética, narrativa e melódica (...) nos folhetos
religiosos que apresentam uma linguagem erudita e rebuscada, própria de
quem se expressa a partir de uma cultura letrada. Porém, a estrutura do
folheto, (...) os procedimentos empregados no processo de classificação por
estudiosos dessa literatura, o caráter pedagógico, e, principalmente, os
esforços na produção de linguagens próximas a de grupos sociais que
viviam em localidades mais ou menos distantes da presença de igrejas e
padres, indicam que podem ser tomados enquanto fontes, pois permitem
estudar formas de veiculação de tradições católicas e processos de
construção de culturas religiosas de grupos “populares do Nordeste” 32
31
BRITO, Gilmário Moreira. Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações
escritura, oralidade, gestualidade, visualidade. 2001. 295f. Tese de Doutorado em História Social -
Programa de estudos Pós- Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2001. Orientadora: Antonieta M. Antonacci.
32
Ibid., p. 103.
88
33
MAGALHÃES, 1928, op. cit., p.12.
89
34
CASCUDO. Luis da Câmara. Apresentação. In: MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem
do sertão cearense. 3º edição. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961, p. 10.
35
MAGALHÃES, 1928, op.cit., p. 8-9.
90
cultura popular, principalmente por perceber diferenças significativas entre o que ele
coletava e aquilo que pudemos localizar na literatura de folhetos.
Acreditamos que as tensões existentes entre os folhetos e as coletas de Mota
aconteciam fundamentalmente devido à posição social ocupada pelo folclorista que,
muitas vezes, buscava a cultura popular como algo estanque e localizado, atribuindo
às histórias que coletava um certo grau de ingenuidade. Talvez seu grande
problema fosse tentar encontrar uma cultura popular “idílica”, “estagnada” e “pura”
no campo, quando há muito tempo ela já estava presente, transformando-se e
dinamizando-se na cidade.
Observamos que a tendência à visão estagnada, presente na obra de Mota, é
decorrente dos métodos e concepções que muitos folcloristas do século XIX
desenvolviam em relação ao estudo das culturas, buscando-as com a finalidade de
compará-las, mesmo que os parâmetros não fossem os mesmos. Nesse sentido,
Herman Lima - escritor pré-modernista, médico, romancista, poeta - atenta para o
lado “aventureiro” de Leonardo Mota, que “jamais se jactava a metodologia dos
estudos comparativos de folclorista de gabinete”, e, por isso, passou anos de sua
vida se dedicando às literaturas mais “exóticas”, percorrendo através de difíceis
caminhos rastros etnográficos ou antropológicos para estabelecer uma analogia, de
que se servia, “para ligar o fula da Guiné portuguesa ao sarará do Seridó, o lapão da
Groenlândia ao dolicocéfalo ariano da Alta Germânia”. 36
Por meio das palavras de Lima, notamos que a “analogia” de Leonardo Mota
não fugia do caminho trilhado por diversos folcloristas do século XIX, que saíam a
campo para conhecer a realidade, e estabelecer categorias para cada elemento que
encontravam. O grande problema desse método era que seus estudiosos
terminavam por estabelecer relações atemporais e hierarquizantes entre os
elementos que encontravam, ligavam “o fula da Guiné portuguesa ao sarará do
Seridó”, ignorando a espacialidade, a relação do homem com o meio ambiente e sua
história.
Acerca das aproximações entre culturas longínquas, Edward Thompson
lembra os problemas decorrentes nesse período, conhecido pelo
36
LIMA, Herman. Apresentação. In: MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do
sertão nordestino. 3º edição. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962, p.10.
91
37
THOMPSON, 2001, op. cit., p. 232.
38
LIMA, 1962, op. cit., p. 10.
39
Ibid., p. 9.
92
40
MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do sertão nordestino. 3º edição.
Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.
41
Ibid., p. 181.
93
O folclorista utiliza estes versos para afirmar o que tenta construir no decorrer
do seu texto, quando sucessivamente mostra narrativas e opiniões que tentam
evidenciar a imagem do padre como uma figura respeitada e presente na vida dos
fiéis. Esta perspectiva, enfatizada por Leonardo Mota, é constante em seu texto.
Enterrado a mulher,
Depois que se viu sózinho
Correu dentro de uma mata,
Depois saiu num caminho
E viu que atrás vinha um homem
Amontado num burrinho.
42
MOTA, 1962, op.cit. p. 181.
43
Ibid., p. 181.
96
44
MOTA, 1962, op.cit. p. 197.
45
“Então Jesus enviou dois discípulos, dizendo: ‘Vão até o povoado, que está na frente de vocês. E
logo vão encontrar uma jumenta amarrada, e um jumentinho com ela. Desamarrem e tragam os dois
para mim. Se alguém lhes falar alguma coisa, vocês dirão: ‘O Senhor precisa deles, mas logo os
mandará de volta’. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelo profeta: ‘Digam à filha de Sião:
eis que o seu rei está chegando até você. Ele é manso e está montado num jumento, num
jumentinho, cria de um animal de carga’”. (Mateus, 21: 1-5). BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada -
Edição Pastoral. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 1266-1267.
97
46
MOTA, 1962, op. cit., p. 182.
47
Essa narrativa presente em diversos folhetos populares foi adaptada e incluída na peça “O auto da
Compadecida” de Ariano Suassuna.
48
MOTA, 1962, op. cit., p. 213-214.
98
49
Com relação à presença dos ingleses no Recife, Raimundo Pereira Alencar Arrais afirma que
através do capital estrangeiro, notadamente inglês, o Recife recebe, depois de meados do século
XIX, uma seqüência de equipamentos modernos: água canalizada, trecho Recife-Cabo da Estrada de
Ferro Recife – São Francisco, Estrada de Recife-Olinda-Beberibe, serviços de bonde de tração
animal, serviço telegráfico, serviço telefônico manual, de tal forma que em 1900, sob certos aspectos
o Recife já podia ser chamado de “cidade moderna”. Abordaremos mais detidamente a presença e
enfrentamentos direcionados aos ingleses no capítulo 3. ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Recife,
Culturas e Confrontos: As camadas urbanas na Campanha Salvacionista de 1911. Natal: EDUFRN,
Editora da UFRN, 1998, p. 43.
99
50
PROENÇA, Manoel Cavalcanti. Antologia Literatura Popular em Verso. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; [Rio de Janeiro]: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1986, p. 576; BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro. Antologia Leandro Gomes de Barros -3.
Tomo V. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa,
Universidade Federal da Paraíba, 1980.
100
51
BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo V, op.
cit., p. 90-91.
101
52
BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo V. op.
cit. p. 95-96.
102
53
MOTA, 1962, op. cit. p. 186.
104
54
Ver trabalho de BRITO, 2001, op. cit., o autor evidencia como a Igreja Católica, tendo em vista
manter sua hegemonia no interior do Nordeste brasileiro, utiliza clérigos e leigos católicos para
disseminar mensagens bíblicas, exercícios, normas e valores de uma pedagogia severa e moralista
através de folhetos religiosos.
55
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. O movimento de Juazeiro do Norte Padre Cícero e o
fenômeno do Caldeirão. In: SOUZA, Simone de (Coord). História do Ceará. Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará / Fundação Demócrito Rocha / Stylus Comunicações, 1989, p. 250-251.
56
Barros, Leandro Gomes de. Festas do Juazeiro no vencimento da guerra. In: Antologia Leandro
Gomes de Barros - 3. Tomo V. op cit., p. 209-226.
57
A figura do Padre Cícero de Juazeiro é recorrente em muitos folhetos de Leandro Barros, no
entanto não encontramos nesses materiais referências ao seu envolvimento com as oligarquias e
107
política local, seu posicionamento de senhor de terras e dinheiro, exportador de matéria prima e rico
proprietário. O que notamos nas narrativas é uma profunda admiração e respeito a um homem
considerado referencial de justiça e santidade. Ruth Terra informa que no folheto O princípio das
coisas, Barros aborda com certa desconfiança da relação do padre com seus “fanáticos”, no entanto ,
nos folhetos posteriores, volta a exaltar o padre. TERRA, Ruth Brito Lemos. Memória de Lutas -
Literatura de Folhetos no Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983, p. 123-124.
58
Esta data é aludida a partir do endereço: Rua do Motocolombó, n. 28, Afogados, residência do
autor em 1917.
59
BARROS, Leandro Gomes de. Como João Leso vendeu o Bispo. In: Antologia Leandro Gomes de
Barros - 2. Tomo III. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa,
Universidade Federal da Paraíba, 1977, p. 245-262.
108
Meteu-se no seminário
E foi muito bem aceito
Fez dous presentes ao papa
Esse ficou satisfeito
O papa o chamou nas folhas
Alumno justo e direito 60 (sic)
60
Ibid., p . 247-248.
109
61
BARROS, Leandro Gomes de. Como João Leso vendeu o Bispo. In: Antologia Leandro Gomes de
Barros - 2. Tomo III. op. cit., p. 250.
62
ARRAIS, 2001, op. cit., p. 218.
63
Ibid., 2001, loc.cit.
110
64
ARRAIS, 2001, op. cit., p. 221.
65
Ibid., p. 206.
111
66
BARROS, Leandro Gomes de. A cura da quebradeira. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III. op. cit., p. 324.
112
E’ um remédio excelente
Cura até para o futuro
Mas para se tomar elle
Só n’um lugar muito escuro
Calçar sapato de banho,
Que possa pular um muro
(...)
Através das “dicas” para a “cura da quebradeira”, o “doente” deveria ser muito
cauteloso, pois o “remmédio” possuía uma posologia delicada, a ser ministrada com
o máximo de atenção, ou perderia a eficácia. Assim como anteriormente o poeta não
diz claramente o que seria a tal “quebradeira”, também, agora, não afirma com todas
as letras a sua cura. Contudo, pelos apontamentos presentes na narrativa, podemos
aproximá-la da subtração de bens alheios, ou o mais popularmente conhecido
roubo.
Por ser algo ilícito, proibido, condenável, reforça que o caminho para a “cura
do mal” deveria ser realizado com cautela, pois assim garantiria, inclusive, o futuro
de seu autor. Para tanto, recomenda sua aplicação à noite, ou seja, no escuro, com
o máximo de cuidado para não fazer barulho, trajando vestimentas adequadas, para
uma possível fuga, até mesmo com transposição de muros, caso fosse necessário.
A escolha de um local de ruas estreitas, pouco iluminadas, bem como o cuidado com
autoridades policiais, como o subdelegado, ou autoridades locais, como o inspetor
67
BARROS, Leandro Gomes de.A cura da quebradeira. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III. op. cit., p. 326-327
113
Logo no início da história, o poeta aponta que não foi qualquer pessoa, mas
um “quego”, ou melhor o “mestre dos quengos”, ou seja, homem superior e de muito
saber; perito em esperteza, astuto, ardiloso, que descobriu “a cura da quebradeira”.
E, dentre tantos lugares possíveis para “meditar” sobre esta “cura”, encerrou-se
justamente num convento, local utilizado pelos religiosos para melhor servir e amar a
Deus. Isolado do mundo, num local reservado para ordens monásticas de vida ativa,
estudou “de tal maneira” que conseguiu descobrir o remédio para a cura da
“doença”.
É interessante perceber a idéia presente no folheto acerca das atividades que
consumiam o tempo dos religiosos dentro no convento, já que supomos, não fosse à
toa, que o local escolhido pelo poeta para pensar e criar algo ilícito e desonesto
como o roubo fosse justamente o convento, como se houvesse a indicação de uma
ociosidade por parte dos religiosos, que, em claustro, ao invés de praticarem atos
relacionados à sua religião, ficassem unicamente pensando e praticando pecados
mundanos.
Com relação à curiosidade das pessoas sobre o que se praticava no interior
dos conventos e monastérios, Alessandra El Far, em seu livro Páginas de Sensação:
Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro, mostra como este cenário era
instigante para a imaginação do brasileiro, tanto que alguns autores da literatura
68
BARROS, Leandro Gomes de. A cura da quebradeira. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III, op. cit., p. 320.
114
69
El Far, 2004, op. cit., p. 220-221.
115
Consultaram ao cardeal
Diz elle: a obra é completa
Um arcebispo estudou
Como há de ser a diéta.
70
BARROS, Leandro Gomes de. A cura da quebradeira. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III. op. cit., 325-326.
116
71
LOPES, Maria Aparecida Vasconcelos. Cidade Sã, corpo São: Urbanização e saber médico no
Recife (Final do século XIX, início de século XX). 99f. 1996. Dissertação de Mestrado em História -
Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1996.
72
ARRAIS, 2001, op. cit., p. 218; LUBAMBO, Cátia Wanderley. Bairro do Recife entre o Corpo Santo
e o Marco Zero: A reforma urbana do início do século XX. Recife: CEPE/Fundação de Cultura Cidade
do Recife, 1991, p. 133.
117
73
“Cura – Ato ou efeito de curar; tratamento. Figurado: sacerdote que pastoreia um pequeno povo;
coadjutor de párocho. FIGUEIREDO, Cândido. Novo Diccionario da lingua portugueza. Lisboa: ed.
Tavares, 1899. vol1. p.370, col.2.
118
74
PEREIRA, Nilo. Dom Vital e a Questão religiosa no Brasil. Recife: Imprensa universitária, 1966. p.
19.
75
FREYRE, Gilberto. Dona sinhá e o filho Padre. 2º edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
editora/ Instituto Nacional do livro, 1971.
119
76
ARRAIS, 2001, op.cit., p. 216-217.
120
Terceiro Capítulo:
“Povo incrédulo e descrente”: em defesa de uma
moral religiosa para o Recife
1
BARROS, Leandro Gomes de. As cousas mudadas. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.
Tomo III. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa,
Universidade Federal da Paraíba, 1977. p. 284.
123
O arcebispo já disse
Se a cousa não melhorar
Eu vou trocar o cajado
Por um ansol vou pescar
Até ver si inda apparece
O que se possa ganhar.
[...]
3
“Então Jesus se aproximou, e falou: << Toda a autoridade foi dada a mim no céu e sobre a terra.
Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do
Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês. Eis que
eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo>>” (Mateus, 28: 18-20). BÍBLIA. Português.
Bíblia Sagrada - Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990, p. 1279.
4
O periódico jornalístico O Diabo a Quatro, publicado durante os últimos anos do século XIX, é um
exemplo do que foi afirmado. Nele é comum encontrar caricaturas de padres gordos e preguiçosos,
pouco adeptos ao trabalho.
126
5
“Enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo atravessou as regiões mais altas e chegou a Éfeso.
Encontrou aí alguns discípulos, e perguntou-lhes: << Quando vocês abraçaram a fé receberam o
Espírito Santo?>> Eles responderam: <<Nós nem sequer ouvimos falar que existe um Espírito
Santo.>> Paulo perguntou: << Que batismo vocês receberam?>> Eles responderam: << O batismo
de João.>> Então Paulo explicou: <<João batizava como sinal de arrependimento e pedia que o povo
acreditasse naquele que devia vir depois dele, isto é, em Jesus.>> Ao ouvir isso, eles se fizeram
batizar em nome do senhor Jesus. Logo que Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo desceu
sobre eles, e começaram a falar em línguas e a profetizar.” (Atos dos Apóstolos, 19:1-6, grifo nosso).
BÍBLIA, 1990, op.cit., p. 1421.
127
práticas que, ao seu modo de ver, afastavam-se dos referenciais por ele
considerados corretos e, por isso, eram apontados com estranhamento em suas
narrativas.
Notemos, por exemplo, a capacidade de criação do poeta ao falar da ação
dos fiscais durante o aumento da cobrança dos impostos. Para isso, adotava
situações inusitadas, que tinham como pano de fundo uma ferrenha crítica à
monetarização das relações:
fiscalizadas e taxadas por autoridades civis, que lhes atribuíam novos e diferentes
valores. O trecho se desenvolve como se o autor desejasse evidenciar que, nesse
novo contexto, nada escaparia de ser transformado em mercadoria, mesmo que se
tratasse do casamento, vínculo estabelecido segundo as regras de uma religião, um
dos sacramentos da Igreja Católica, que deveria ser cumprido e vivido em sua
normalidade, para que o fiel se mantivesse próximo à vontade de Deus 7 .
Ao criar uma situação onde ficava evidente o afrontamento entre as coisas de
Deus e os valores do “mercado”, com ênfase à imposição do segundo sobre o
primeiro, o poeta inevitavelmente mostrava o lugar de onde falava, e a convicção de
algumas tantas pessoas, que, assim como ele, possuíam fortes crenças religiosas e
se manifestavam para que, diante das investidas dos novos tempos, os valores
religiosos fossem respeitados.
No trecho selecionado, percebemos que muitos personagens eram partidários
da convicção do poeta: “Vi uma velha chorando/ Dizendo meu Deus que sina!” A
senhora se chocava e mostrava seu desespero diante da transformação religiosa e
também econômica por que passava a cidade. Sua indignação era tamanha que,
diante da falta de justiça dos homens, clamava à justiça divina, pois, de acordo com
os próprios conhecimentos populares, “tarda, mas não falha”.
Essa ciência, acerca da punição dos pecadores, fica evidente na própria
narrativa. Observemos o que ocorre a um dos fiscais, responsável pela proliferação
dos selos:
7
“Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só
carne. Esse mistério é grande: eu me refiro a Cristo e à Igreja. Portanto, cada um de vocês ame a sua
mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido.” (Efésios, 5: 31-33). BÍBLIA, 1990, op.cit.,
p. 1506.
129
8
BARROS, Leandro Gomes de. A crise actual e o augmento do sello. In: Antologia Leandro Gomes
de Barros - 2.op.cit., p. 314-315.
9
“Não se iludam, pois com Deus não se brinca: cada um colherá aquilo que tiver semeado. Quem
semeia nos instintos egoístas, dos instintos egoístas colherá corrupção; quem semeia no Espírito, do
Espírito colherá a vida eterna. Não nos cansemos de fazer o bem, se não desanimarmos, quando
chegar o tempo, colheremos.” (Gálatas, 6: 7-9). BÍBLIA, 1990, op.cit., p.1500.
130
10
BÍBLIA, 1989, op.cit., p. 540.
131
11
MOTA, Leonardo. Cantadores. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 3ª ed., 1961. p. 96.
12
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. O pântano e o Riacho: A formação do espaço público no
Recife do século XIX. 2001. Tese de Doutorado em História Social - Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Orientador Prof. Dr. Marcos
Antônio da Silva, p. 225.
132
Sou católico por que tenho a felicidade de ser devoto Daquela que, 700
anos antes do seu nascimento, já os profetas se preocupavam com seu
santo e privilegiado nome, que é MARIA SANTÍSSIMA...
Maria Santíssima a Virgem e Imaculada por excelência; o tesouro venerável
do universo, a coroa da Virgindade o centro da doutrina verdadeira, o
templo indestrutível no qual enserrou-se Aquele que nenhum espaço pôde o
conter.
Maria Santíssima por quem os anjos se alegram, por que os demônios são
afugentados, por quem as criaturas decaídas readquirem a felicidade
eterna, por quem a Santíssima Trindade é exaltada no céu e na terra.
Maria Santíssima o manancial das fontes eternas, de graças, de virtude e
santidade; Maria Santíssima por quem sobe-se as mais radiosas esferas da
suprema felicidade eterna. 14 (sic)
13
ARRAIS, 2001, op.cit., p. 224 - 229.
14
SANTOS, Manoel Camilo dos. Vou dizer por Qual motivo Nunca Serei Protestante apud
VASCONCELOS, Micheline Reinaux. Os Nova-Seitas: a presença protestante na perspectiva da
literatura de cordel - Pernambuco e Paraíba (1893-1936). 116f. 2005. Dissertação de Mestrado em
História - Programa de Estudos Pós-Graduados em História na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2005.
133
15
SETTE, Mário. Maxambombas e Maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante Brasileiro,
1958.
16
Ibid.
134
o jantar, uma vez que, quando tudo findava, a noite já havia caído, as ruas estavam
cada vez mais vazias e escuras. 17
Em função dessas informações, apreendemos a gravidade do ato cometido
pelo “malvado” fiscal, que, de acordo com o poeta, atreveu-se a interferir no
funcionamento de uma das cerimônias mais solenes e tradicionais da cidade, e em
um ato de subversão colocou a “demorada” procissão para “correr”. Certamente, os
três feitos cometidos por esse “abusado” sujeito na narrativa, principalmente contra
os valores, obras e rituais religiosos, contribuíram para o castigo que lhe foi
atribuído:
17
SETTE, 1958, op.cit.
18
BARROS, Leandro Gomes de. A crise actual e o augmento do sello. In: Antologia Leandro Gomes
de Barros - 2.op.cit., p. 315.
135
19
BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:______. Magia e
técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 200.
136
20
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, Centro
de Pesquisas, Setor de Filologia, 1983, p .39-40.
137
concebia formas bastante criativas para mostrar aos leitores e ouvintes os diferentes
problemas enfrentados pelos sujeitos que ousavam aderir a tal moda:
21
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo. op. cit., p. 41
138
Novamente outra pessoa é enterrada com as saias da moda. Note que mais
uma vez o poeta insistia em dizer que a personagem era “velha”, o que, novamente,
reforçava sua noção de que caberia principalmente às pessoas mais experientes a
responsabilidade em se posicionarem criticamente diante das práticas e inovações
do seu tempo.
Contudo, dessa vez, o que desabonava a “velha” era o fato de ter morrido
embriagada, o que a inseria num rol de pessoas não muito bem quistas na
sociedade, pois havia uma distinção entre os “amantes da cachaça”, e os
conhecidos “cachaceiros”, sujeitos que bebiam desregradamente prejudicando a si e
aos outros 23 . Nessa campanha, percebemos que, ao associar a “velha” à “saia” e à
cachaça, o poeta reforçava a imagem negativa das pessoas que aderiam a tais
modas. 24
No trecho acima, o poeta não se limita a associar moda e o descontrole no
álcool. No caso da velha “cachaceira”, quem decide enterrá-la com a tal “saia
pamonha“ são suas filhas, indicando que o problema do uso e disseminação da
moda não estava somente entre os mais velhos.
Não obstante, a narrativa indicaria que a anuência a tal inovação não lhe
custaria barato: “Foi ao céo, S. Pedro disse / já por ali! sem vergonha”. Se
pensarmos que, de acordo com a tradição popular, São Pedro é o guardião das
chaves do paraíso, e, segundo a narrativa, a “velha” só conseguiu conversar com
22
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p. 43.
23
De acordo com Hernani de Carvalho em seus estudos sobre a cachaça nos sertões do Brasil “ [...] é
necessário distinguir-se o amante da cachaça do cachaceiro: o primeiro, bebe-a aristocraticamente
[...] ao passo que o último se dá ao uso desregrado da cachaça, prejudicando-se.” CARVALHO,
Hernani de. No mundo maravilhoso do folclore. Rio de Janeiro: Tipografia Batista de Souza, 1966,
p.155-159.
24
O descontrole no consumo de bebida não era raro de ser presenciado entre os sertanejos, o que
ajudava a gerar uma série de ditados e provérbios intimamente relacionados ao consumo da cachaça.
Encontramos alguns exemplos: “acontece desgraça porque não acaba cachaça”, “pinga demais,
tombo na poeira”, “cachaceiro não tem segredo”, “cachaça tira o juízo, mas dá coragem”, “três coisas
espirram um cabra pra fora da cafua: fumaça, goteira e mulher cachaceira”. MOTA, Leonardo.
Adagiário Brasileiro. Fortaleza: edições Universidade Federal do Ceará; Rio de Janeiro: J. Olympio,
1982, passim.
139
esse santo, então chegaremos à conclusão de que ela sequer conseguiu passar das
“portas” do céu, e, através das palavras do próprio santo, teve seu castigo exemplar,
retornando, sem ao menos ser julgada.
Nesse sentido, ressaltamos que o poeta não parecia muito tolerante com as
pessoas que aderiam às inovações, mostrando que tais atitudes eram dignas de
reprovação, tanto na terra, como no céu. A despeito, suas repreensões, que até o
momento foram dirigidas às velhas “sem vergonha”, não se limitariam a elas, uma
vez que, em se tratando de Leandro Gomes de Barros, não tardaria para que os
religiosos também fossem incluídos no rol de pecadores:
Dizia na confissão
A freira Chica Bazar,
Eu prefiro até fugir,
Se quizerem me empatar,
Mas, uma saia calção,
Eu não deixo de botar. 25 (sic)
No trecho o poeta faz mais uma irreverente ofensiva contra membros do clero
católico, contudo, dessa vez não crítica a ganância, venalidade nem interesses por
lucros. No caso desse folheto, é bastante sutil e extremamente provocante ao
acenar possibilidades de homossexualismo entre os religiosos.
O frei Ribingudo durante o seu sermão, ao invés de pregar sobre as verdades
cristãs, ou repreender comportamentos desmoralizantes, papel geralmente
assumidos pelos oradores religiosos, “dizia de coração” que queria ser mulher para
colocar as “tais” saias calção. Já a freira Chica Bazar, durante a confissão, momento
de penitência, em que deveria revelar e arrepender-se de seus pecados, apenas
confessa sua vontade de trajar a saia da moda, além de mostrar rebeldia ao
ameaçar uma possível fuga, caso não a deixassem colocar a vestimenta, que era,
até então, indumentária masculina:
25
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p.41-42.
140
26
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p.40.
27
FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. “Fazendo fita”: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em
Salvador, 1987-1930. Salvador: EDUFBA; Universidade Federal da Bahia. Centro de estudos
Baianos, 2002, p. 180-181.
141
28
BARROS, Leandro Gomes de. As cousas Mudadas. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -
2.op.cit., p. 284-286.
29
Ibid., p. 284-289.
142
30
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p.39-40.
31
KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Nacional, 1942, (Biblioteca
Pedagógica Brasileira. Serie 5ª. Brasiliana; 221), p. 133-134.
143
Talvez não tivesse tanta graça, ao invés de imaginar uma mulher vestida de
cinturão, cartucheira e facão, trajá-la de colete, paletó e croisé, indumentárias de
homens pertencentes a outras classes sociais. A graça estava justamente em buscar
afinidade, aproximação e apoio com o público que, assim como o poeta, estranhava
e não estava familiarizado com “tamanhas” inovações. Além disso, é possível que,
até mesmo por possuir apreço pelo exagero e alegorização, o poeta tivesse buscado
o referencial mais másculo e viril que conhecia para contrapor à ousadia das
mulheres.
Na alegoria feminina criada pelo poeta, as mulheres se aproximavam de
maneira admirável de formas e referenciais masculinos, chegavam a discutir
assuntos que historicamente haviam pertencido ao domínio dos homens: “crença do
paiz, fanatismo e corrupção”. Ou seja, de acordo com Leandro Gomes, algumas
mulheres se masculinizavam de tal forma que temas como religião e política agora
faziam parte do seu rol de discussões.
É interessante notar que a nova conduta feminina incomodava de tal maneira
o poeta que, neste caso, até mesmo os religiosos, freqüentemente chacoteados e
escarnecidos, eram muito sensatos ao anunciar que chegaria o tempo em que as
mulheres viveriam “peiadas”, ou seja, tratadas como éguas, como animais, pois a
peia era uma peça de couro ou corda com a qual se prendia o pé do cavalo, para
que não se afastasse do campo de pastagem 32 .
Com isso o poeta desejava apontar quão absurdos eram os novos trajes
femininos, usados somente por mulheres que se distanciavam dos valores religiosos
e que chegavam a beirar o ridículo ao aderirem à “pouca-vergonha” e “ousadia” das
inovações vindas e oferecidas pela moda.
Nesse sentido, sondamos que o narrador travava um embate com um grupo
específico de mulheres da sociedade recifense do início do século, uma vez que as
saias calções não eram indumentárias abertamente usadas e difundidas entre todas
as mulheres da cidade 33 , na verdade eram peças predominantes no mundo das
32
COSTA, F. A. Pereira da. O couro no vocabulário. Jangada Brasil, Número 14, Out. 1999.
Disponível em: <http://www.jangadabrasil.com.br/outubro14/of14100b.htm>. Acesso em 30 maio
2007.
33
Mário Sette descreve as vestimentas de “uma linda senhora” que trajava uma dessas saias da
moda, vestia espartilho arrochado, anéis em todos os dedos, mitenes, sapatos de saltos a Luis XV. O
memorialista observava a mulher que chegava às compras em sua carruagem, puxada por dois
144
cavalos brancos, vindo do seu palacete na Madalena. Certamente não era uma mulher de classe
popular. SETTE, 1958, op.cit., p. 107-108.
145
34
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Recife, Culturas e Confrontos: As camadas urbanas na
Campanha Salvacionista de 1911. Natal: EDUFRN, Editora da UFRN, 1998. p. 30-31.
35
SETTE, 1958, op.cit., p. 34.
146
Era chique, então, se proceder como o inglês: vestir-se como ele, tomar
chá-das-cinco à sua maneira, bebericar um conhaque ou gim nas reuniões
sociais, praticar esportes como o tênis ou o golfe, ser pontual nos seus
compromissos, ter modos finos... e havia gente que, para alcançar esses
objetivo, forçava a barra, querendo aparentar o que, na realidade, não era. 36
36
PARAÍSO, Rostand. Esses Ingleses. 2ª ed. Revista e Ampliada. Recife: Bagaço, 2003, p. 109.
147
até as doenças, tudo enfim que fosse consumível por uma sociedade
altamente urbanizada e sedenta de modelos de prestígio. 37
37
SEVCENKO, Nicolau. A inserção compulsória do Brasil na Belle Époque. In: ______ Literatura
Como Missão. Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. 2ª ed. São Paulo:
Campanhia das Letras, 2003, p. 51.
148
pela difusão de tais inovações que em sua opinião ofendiam não só a moralidade,
mas também a religião:
Um sertanejo já velho
Veio a praça, desta vez
Viu um maniquim vestido,
Disse-lhe um homem não vez?
Aquilo é saia calção,
Se vende a qualquer freguez.
O velho se aproximando
Disse muito admirado:
Este diabo é o cão
Que está todo abotoado,
Credo em cruz, Ave Maria,
Dou-te figa condemnado.
[...]
38
BARROS, Leandro Gomes de. As Saias Calções. In: LESSA, Orígenes; Vera Lúcia de Luna e
(Orgs). O cordel e os desmantelos do Mundo, op. cit., p. 43-45.
149
maior referencial de honestidade e respeito nos folhetos. Não obstante, dessa vez, o
velho era um sertanejo e, assim como o narrador e as pessoas que compravam e
liam os folhetos, era repositório dos princípios mais rígidos da moral sertaneja e da
tradição católica.
No diálogo inicial, momento em que o sertanejo observa a indumentária pela
primeira vez, o poeta brinca com sua própria restrição em relação à roupa. Mostra
um personagem que explica com “naturalidade” a novidade: “[...]não vez? Aquilo é
saia calção, se vende a qualquer freguez.” O personagem do “homem”, numa
tentativa de se mostrar moderno, acostumado às inovações do seu tempo, ou smart,
como se dizia na época, parece indicar que o uso da indumentária era
absolutamente natural e largamente difundido entre moradores da cidade. No
entanto, o “smartismo” do personagem passa bem longe da reação esboçada pelo
sertanejo, que se mune de todos os seus referenciais religiosos para travar um
combate, duelando e enfrentando seu inimigo, para desmoralizá-lo e indicar quais os
reais propósitos das “tais” inovações.
Ao iniciar a peleja, o sertanejo primeiramente identifica seu opositor e as
“artes” que envolviam suas façanhas: “Este diabo é o cão que está todo abotoado”.
Feito isto, dá início à batalha, e cumpre a primeira etapa da guerra religiosa ao criar
uma armadura com a finalidade de guardá-lo e protegê-lo de todas as maldades de
que o inimigo pudesse dispor. Seguindo as escrituras: “Ademais, fortaleçam-se no
39
Senhor e na força do seu poder” (Efésios, 6:10) , o sertanejo mune-se de palavras
de grande força, ao pronunciar uma espécie de esconjuro, com a finalidade de
afugentar o “Demo” e livrar-se de seus malefícios, além de invocar aqueles que o
protegeriam dos perigos, fechariam o seu corpo, e quebrariam as forças do
oponente: “Credo em cruz, Ave Maria, dou-te figa condemnado”.
Com apenas uma palavra, o sertanejo invocava a oração do credo,
popularmente conhecida por proteger quem o reza, afugentar o diabo e espantar
assombração. Nesse caso, na impossibilidade de fazer toda a oração, ele
simplesmente pronuncia o vocábulo “credo!”, adicionado da palavra “cruz” que, de
acordo com a tradição popular, também possui preponderante influência para afastar
39
BÍBLIA, 1989, op.cit., p. 1507.
150
[...] Repositário dos princípios mais rígidos da moral sertaneja, falava aos
valores mais preciosos de sua gente, enfatizando ao mesmo tempo toda a
tradição católica moldadora daquela civilização. Relacionando os exemplos
cristãos com a vida rotineira do homem, vinculando os princípios de
honradez, coragem, hospitalidade, trabalho, resistência ao sofrimento,
40
NEVES, Guilherme Santos. "Vai-Tiarré” e outros esconjuros. Jangada Brasil, Ano VI, 63 edição,
Fev. 2004. Disponível em: <http://www.jangadabrasil.com.br/revista/fevereiro63/pn63002c.asp>.
Acesso em 02 de junho 2007.
41
No folheto Peleja de Zé caixão com o Diabo encontramos a expressão “Dou-te-figa” como mais uma
denominação para se referir ao Diabo. FILHO, Manoel D’Almeida. Peleja de Zé caixão com o Diabo,
1972, 32 p.
151
42
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. O movimento de Juazeiro do Norte Padre Cícero e o
fenômeno do Caldeirão. In: SOUZA, Simone de (Coord). História do Ceará. Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará / Fundação Demócrito Rocha / Stylus Comunicações, 1989, p. 252.
152
ESPARTILHOS de Paris
Cuidadosamente fabricados por Mme J. Torcheboeuf. Os modelos Femina e
Marie Anoinette são os que maior successo tem obtido nesta capital, não só
porque o seu acabamento é irreprehensivel, como tambem pela
commodidade que offerecem a todas as senhoras elegantes que os têm
adquirido. O FEMINA é o dernier bateau da perfeição de contornos, por não
maltratar nem impedir quando vestido nenhuma das funcções organicas. O
FEMINA é o espartilho ideal, vestil-o é um dever de toda a senhora zelosa
da perfeição da sua plastica e da sua elegancia. A venda na MAISON
CHIC 44 (sic)
Notamos que as francesas ditavam a moda do que era tido como “elegante”,
ou não, para ser consumido pelas mulheres. A nota insiste nos cuidados que as
senhoras deveriam possuir para serem “elegantes e zelosas”, além de enfatizar que
a “plástica” passaria pelo referencial da magreza, observe que o trecho insistia na
“perfeição dos contornos”, que somente seriam “bem delineados” com o “conforto”
do produto anunciado.
43
EISENBERG, Peter L. Transição para o trabalho livre. In: ______. Modernização sem mudança: A
indústria açucareira em Pernambuco: 1840/1910. Trad. João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra;
Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 1977, p. 218.
44
Chic, Recife, dez. 1903. Ano 3, Número 4, p. 4.
153
45
FONSECA, 2002, op.cit., p. 51-52.
154
46
BARROS, Leandro Gomes de. Os coletores da Great Western / A cançoneta dos Morcegos / Peleja
de José do Braço com Izidro Gavião. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2.op.cit., p. 197-198.
155
47
PARAÍSO, 2003, op.cit., p. 51-52.
156
provavelmente de 1916, pode ser utilizado para demonstrar esta contestação, pois
nele mais uma vez o autor/ narrador aproveita a oportunidade para mostrar suas
inquietações frente aos novos valores de uma sociedade em processo de
tranformação, na qual a ética capitalista chocava-se com os antigos hábitos e
valores da população, inclusive os religiosos.
Inicialmente Leandro Gomes mostrava que os ingleses estavam dispostos a
lucrar de qualquer maneira com as linhas de trem e, como medida para garantir essa
arrecadação, aumentam o número de fiscais nos vagões, ordenando que cobrassem
dos usuários, independente de quem ali estivesse, fosse militar, civil, deficiente,
idoso ou até mesmo religioso, todos deveriam ser cobrados no trem, sob risco de
punição:
Inicialmente o fiscal faz questão de afirmar que está ali apenas cumprindo a
ordem de seu patrão “inglês”, de retirar do vagão qualquer pessoa que desejasse
48
BARROS, Leandro Gomes de. Os coletores da Great Western / A cançoneta dos Morcegos / Peleja
de José do Braço com Izidro Gavião. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. op.cit., p. 191-192.
157
viajar sem passagem, referindo-se aos famosos “morcegos”, pessoas que pegavam
carona no trem e desciam sem pagar por isso.
Para deixar em evidência as novas ordens, o funcionário chegava a supor
uma situação extrema, afirmando que, até mesmo se o papa desejasse viajar, teria
que comprar a passagem, pois a santidade nada valia ali. Por meio dessas
afirmativas, o poeta cria uma situação limite para deixar evidente que, sob aquela
nova perspectiva, dominada pelos ingleses, os mais altos representantes religiosos
não teriam qualquer legitimidade.
De acordo com o poeta, no novo circuito comercial da cidade haveria uma
hostilidade com relação aos valores e crenças dos brasileiros, pois seus novos
controladores - estrangeiros - eram portadores de uma separação friamente imposta
entre o mundo religioso e o mundo comercial: “Santo é lá para a igreja / Milagre aqui
não tem preço”, o que indicava uma nova ordem de relações na cidade, onde até os
milagres poderiam ser apreçados, embora ali, naquele momento, não tivesse preço
algum.
Observamos que os últimos versos recortados são emblemáticos para
demonstrar que o poeta estava ciente de que os novos cidadãos estrangeiros não
teriam somente diferentes posturas comerciais, mas também religiosas. Percebemos
que o poeta brinca não somente com o modo de falar dos ingleses, mas também
com o conteúdo de suas crenças religiosas: “santo que mim não conhece / a esse
nada offereço”. Nesses versos, o poema dá margem a, pelo menos, duas
interpretações, ambas indicando que os ingleses ali representados provavelmente
eram partidários de crenças diferentes da católica, aproximava-os de referenciais
protestantes.
Uma das interpretações cabíveis para os versos é pensar no poeta afirmando
que já que o “Santo Padre”, o Papa, não reconhecia o protestante como adepto da
sua crença, e nem os protestantes o reconheciam como uma autoridade religiosa a
ser seguida, então o inglês não teria qualquer obrigação de respeitá-lo: “A ningem
mais obedeço”, e da mesma forma a este nada ofereceria.
Também podemos supor uma outra interpretação, pois no início da última
estrofe fica claro que para os administradores das linhas de trem os “santos” eram
coisa “lá para a igreja”, logo o estrangeiro parece sutilmente explanar a oposição
158
entre o culto católico, que possuía forte relação e devoção com os santos, e o
protestante, que, apesar de acreditar que pessoas poderiam desenvolver condutas
santas, somente orava e prestava culto a Deus 49 . Assim fica evidente que a
descrença por parte do inglês nos santos e cultos católicos o desobrigava de
oferecer qualquer coisa a estes.
O trecho recortado é significativo, pois mostra com precisão a relação dos
imigrantes ingleses com o catolicismo, bem como a posição do poeta ao se dirigir
aos ingleses, evidenciando que estes não levavam muito em consideração as
crenças e costumes locais, principalmente no que tangia aos valores religiosos.
No entanto, o narrador não pára por aí, vai além, mostrando que, apesar de
ser ferrenho defensor da crença Católica, nem por isso possuía atrelamento e
filiação à sua estrutura eclesiástica. Então propõe nesse mesmo folheto uma
contenda engraçada, talvez há muito esperada, entre um membro do clero,
acostumado com as regalias de que desfrutava por ser religioso, e um representante
dos ingleses, instruído a colocar as novas normas em prática:
49
“Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a ele darás culto” (Lucas, 4:8). BIBLIA. Português. A Bíblia
Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2 ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil,
1999. p. 66.
159
O trecho mostra um confronto entre dois sujeitos que, de acordo com o poeta,
representavam, cada um a seu modo, os desvios do seu tempo: os padres, porque
eram acostumados com regalias, viviam em busca de favorecimento e se
aproveitavam de situações para se beneficiarem; e os fiscais, porque representavam
os ingleses e cumpriam à risca as ordens de seus patrões, mesmo que fossem de
encontro às relações e costumes ali estabelecidos.
Inicialmente o fragmento evidencia que o frade tinha quase certeza de que
não seria cobrado pela viagem: “Disse com sigo eu sou frade / Fiscal commigo não
bolle”, o trecho indica que, apesar de estar ciente das cobranças que vinham
acontecendo no trem, o religioso se agarra à sua condição de padre, supondo que
nada lhe aconteceria.
Não obstante, o texto evidencia que o fiscal não se intimida com a posição
religiosa daquele sujeito, pelo contrário, deixa bem claro que nos “novos” tempos as
coisas seriam diferentes: “Puche o bilhete ou o cobre / a coisa hoje está feia”.
Através de uma ordem, o empregado mostrava que não haveria regalias para
determinados indivíduos e, inclusive, uma nova redefinição e demarcação de lugares
sociais deveria ser respeitada: “você manda no convento / Mas não na empreza
alheia”, ou seja, os antigos valores religiosos que transpassavam os templos de
oração não eram mais válidos na era da administração inglesa, que impelia valores
comerciais e de mercado sobre os valores religiosos: “nem S. Bento / viaja aqui sem
passagem”.
Nesse folheto é perceptível que, por mais que o poeta, durante toda a
narrativa, deseje chamar atenção para as mudanças dos “novos” tempos,
principalmente através da crítica às inovações inglesas, de certa forma também
torce para que o padre não se saísse bem, uma vez que, desde o início do trecho,
mostra que estava de olho nas atitudes do religioso, que tentava não ser notado
para não pagar: “queria ir no molle”, ou seja, desejava ser diferente dos demais, e
50
BARROS, Leandro Gomes de. Os coletores da Great Western / A cançoneta dos Morcegos / Peleja
de José do Braço com Izidro Gavião. In: Antologia Leandro Gomes de Barros - 2. op.cit., p. 195-196.
160
não se submeter às novas regras, principalmente por que teria que desembolçar
algum dinheiro nesse meio tempo.
Logo, por mais que o narrador achasse a ofensiva inglesa descabida, também
parecia não concordar com a atitude “folgada” do padre de não pagar a passagem,
quando todos os outros usuários tinham de se submeter às novas regras. Então
prepara um final ardiloso, no qual o religioso é afrontado e, com muita raiva, desce
do trem, obviamente sem deixar nenhum centavo para o inglês.
O folheto consegue dar conta das inquietações do próprio narrador que, em
determinados momentos, e contra certos sujeitos, termina torcendo pelas novidades.
No entanto, passada a “folga” dos religiosos, ele volta a evidenciar as preocupações
dos menos favorecidos da população em relação às inovações, atitudes e presença
dos estrangeiros na cidade, que nem sempre era encarada como uma possibilidade
concreta de “aproximar o Brasil à Europa”, pretensão de alguns segmentos das
classes mais abastadas.
As pessoas que produziam e consumiam os folhetos pareciam ter uma
posição de desconfiança com relação aos sujeitos de outras pátrias, portadores de
valores e maneiras estranhas à cidade. Percebiam que, a partir da influência desses
indivíduos, a urbe já não era a mesma, suas tradições vinham sendo postas em
questão por estrangeiros que pareciam uma espécie de “representantes oficiais dos
novos tempos”.
Peter L. Eisenberg traz um quadro que aponta alguns números acerca da
chegada dos imigrantes no estado de Permambuco:
a.
Os dados divulgados do censo de 1890 não especificam nacionalidades.
FONTES: Recenseamento da população... 1872, v. XIII, p. 218. Directoria Geral de Estatística,
“Recenseamento da População em 31 de dezembro de 1900”, pp. 142-143 apud EISENBERG, 1977,
op.cit., p. 220.
Com relação a atuação desse grupo religioso, Elizete da Silva afirma que:
51
VASCONCELOS, 2005, op.cit., p 34-35.
52
SILVA, Elizete. Historiografia sobre o Protestantismo Brasileiro: algumas considerações. In:
Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões, 9, 2007, Viçosa. Anais... Viçosa:
Universidade Federal de Viçosa, 2007. p. 14.
53
PARAÍSO, 2003, op.cit., p. 58-62.
163
54
VASCONCELOS, 2005, op.cit., p. 36.
55
Ibid., p. 36-37
56
SILVA, 2007, op.cit., p. 17.
57
Ibid., p. 18.
164
MEMORANDUM EVANGELICO
58
VASCONCELOS, 2005, op.cit., p. 36.
59
Ibid., p. 40
165
60
O Embaixador, Recife, ago. 1901. Ano 1, Número 5, p. 4.
166
61
BARROS, Leandro Gomes de. O Diabo na Nova-Ceita. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3.
Tomo V. João Pessoa: Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa,
Universidade Federal da Paraíba.1980. p. 75-88.
62
BARROS, Leandro Gomes de. O Diabo confessando um Nova- Seita, História de João da Cruz
(Conclusão). In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo V. op. cit., p. 57-74.
167
63
BARROS, Leandro Gomes de. O diabo na Nova-Ceita. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3.
Tomo V. op cit., p. 77.
168
sociais. O antropólogo afirma que sob essa forma parecem ter resistido as atividades
religiosas do negro, quando muito estabelecendo-se em centros modestos de
influência “sincrética”, chamados pela população de “catimbó”. Acerca da religião, o
autor afirma que:
64
RIBEIRO, René. Cultos afrobrasileiros do Recife: Um estudo de ajustamento social. Recife: Boletim
do instituto Joaquim Nabuco, 1952. p. 35-36.
65
Caipora no fragmento citado possui relação com o azar, de acordo com Leonardo Mota: “Caipora é
capim que, quando não chove, não nasce; e, quando nasce, o boi come. (protestam aqueles de quem
se diz que estão sem sorte)” MOTA, 1982, op. cit., p. 86.
169
O nova-ceita já nasce
Triste e, amarello e sem cor,
A vista sempre espantada
Com aspecto aterrador,
Sem alma e sem conciencia
Sem prazer e sem amor. 66 (sic)
66
BARROS, Leandro Gomes de. O Diabo na Nova-Ceita, Vingança de um Filho, A Tarde. In:
Antologia Leandro Gomes de Barros -3. Tomo V. op. cit., p. 77.
67
“Não ameis o mundo nem as cousas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai
não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos
e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a
sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente.” (I João, 2:
15-17) BÍBLIA, 1999, op.cit., p. 256.
170
Aos olhos do protestante, essa cultura religiosa, que se esquiva dos rigores
do poder para “adorar santos”, acrescentando dimensões mágicas e lúdicas
em performances corporais, utilizando-se de ícones tradicionais para
redimensionar símbolos de atividades rotineiras, estabelecendo uma relação
de proximidade entre cotidiano do seu viver ao do santo de sua devoção,
constitui-se em exercício religioso que subverte aspectos e perspectivas de
moral, comportamento e ordenamento hierárquico, vislumbradas pelo
protestante como desviante de uma conduta adequada, sendo por isso
passível de estranhamento. 69
68
BARROS, Leandro Gomes de. O diabo na Nova-Seita. In: Antologia Leandro Gomes de Barros -3.
Tomo V. op cit., p. 78.
69
BRITO, Gilmário Moreira. Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações
escritura, oralidade, gestualidade, visualidade. 2001. 295f. Tese de Doutorado em História Social -
Programa de estudos Pós- Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2001. Orientadora: Antonieta M. Antonacci. p. 205.
70
Ibid., p. 204.
171
71
BARROS, Leandro Gomes de. O diabo confessando um Nova-Seita. In: Antologia Leandro Gomes
de Barros -3. Tomo V. op. cit., p. 59.
172
tratamento 72 . Além disso, o fiel, ao se referir a seu líder maior, o Diabo, o chama
“meu padrasto”, tratamento que, propositalmente, dissimula um ditado bastante
comum no Nordeste do Brasil: “Deus é pai e não padrasto”73 . A denominação
dirigida ao “negro” mostra que, em oposição ao Ser Supremo do catolicismo, Deus /
Pai, estava o líder da “Nova seita”, o Diabo / Padrasto.
Além desses elementos, uma terceira alusão ao protestantismo é inserida no
pequeno trecho, note que o Satanás chega “trasendo um livro na mão”, certamente
o livro da “nova seita”, ou as bíblias protestantes, que geraram muita polêmica no
período referido e foram alvo de controvérsias e discussões.
Micheline Vasconcelos afirma que as bíblias protestantes chegavam à cidade
através do porto, e dali eram amplamente distribuídas ou vendidas no intuito de que
acontecesse uma possível conversão pelo simples ato de sua leitura. De acordo com
a autora, houve uma forte reação da Igreja Católica em oposição às denominadas
“bíblias falsas”, geralmente distribuídas pelas sociedades bíblicas, em sua maioria
de origem inglesa e americana. 74 Em 1902, o frei Celestino convidava a população
para assistir à queima das ditas “falsificadas”, “truncadas”, e “adulteradas”,
72
“Vós, porém, não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre, e vós todos sois
irmãos.” (Mateus, 23:8). BÍBLIA, 1999, op.cit, p. 29.
73
MOTA, 1982, op.cit., p. 105.
74
VASCONCELOS, 2005, op.cit., p. 49.
173
75
FREI CELESTINO. Amarga decepção salomonica! A província, Recife, Coluna Religiosa, 20 Fev.
1903, p. 01 apud VASCONCELOS, 2005, op.cit., p. 57.
174
76
criatura” (Marcos, 16: 15) era uma forma de desempenharem confessadamente
sua fé e levarem a palavra de Deus a quem não a conhecia, mesmo que isso
causasse incômodo e oposição de certos moradores.
Além da sátira às “bíblias falsas”, outras manifestações de jocosidade foram
direcionadas aos sujeitos praticantes de cultos não católicos na cidade. Destacamos
um último trecho no folheto O diabo confessando um nova seita que possui
passagem singular ao apontar uma possível inadaptação dos fiéis convertidos às
normas e crenças da “nova religião”:
76
BÍBLIA, 1999, op.cit., p. 61.
77
BARROS, Leandro Gomes de. O diabo confessando um Nova-Seita. In: Antologia Leandro Gomes
de Barros -3. Tomo V. op cit., p. 60-61.
175
78
“Então, dirá o Rei aos que estiverem à direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino
que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque eu tive fome, e me destes de comer;
tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes;
enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me.” (Mateus, 25: 34-36). BÍBLIA, 1999, op.cit., p. 32-33.
176
Mais pomposa, muito mais mesmo, era a festa do Arco da Conceição. [...] O
comércio em grosso do bairro do Recife, auxiliava os festejos que mereciam
toda a simpatia e prestígio [...]. Havia novenário concorrido. [...]
Dia santificado, dia grande, não faltava gente para aumentar o número já
crescido de fiéis residentes no próprio bairro. Acorriam famílias dos
arrabaldes. Misturavam-se tipos de todas as classes. Desde o açucareiro da
Passagem da Madalena ao catraieiro da Lingueta. Desde a viúva rica
moradora no Caldeireiro à mocinha pobre do Pátio do Terço. Do chefe de
seção do Correio ao aguadeiro do beco das Sete Casas. 79
Manoel Querino nos conta que numa noite na qual a roda de samba estava
desanimada pela falta de uma viola, alguns homens saíram à procura de um
músico. Numa esquina, encontraram um desconhecido tocando
maravilhosamente o instrumento. O tocador, que se identificou com o
estranho nome de Sassaraneco, deleitava a multidão, fazendo prodígios
com sua “mágica viola”. Os dançarinos bradavam: Viva o senhor
Sassaraneco! Ele respondia: Bravos às mulatas! Mas quando alguém
gritava: Viva Nossa Senhora da Conceição!, o músico dizia baixinho: Com
essa senhora não quero graça. Quando já era alta madrugada, um menino
gritou assustado: Olhem, o senhor Sassaraneco tem o pé redondo.
Imediatamente o homem desapareceu em meio a uma nuvem de fumaça
80
cheirando a enxofre.
Aqui, mais uma vez, ficam claras as reservas do Diabo em relação a Nossa
Senhora da Conceição, o que nos leva a inferir que, tanto na história contada por
79
SETTE, 1958, op.cit., p. 164-169
80
COUTO, Edilece Souza. Tempos de festas: Homenagens a Santa Bárbara, N.S. da Conceição e
Sant’Ana em Salvador (1860-1940). 2004. 215f. Tese de Doutorado em História – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis – SP, 2004. Orientador: Prof.
Dr. Eduardo Basto de Albuquerque. p. 172.
177
Manoel Querino, como na Narrativa de Barros, fica visível a lógica de que a Santa
teria muito poder em relação ao demônio, e que por isso ele desejava a todo custo o
afastamento em relação à mesma. Nesse sentido, ressaltamos que, apesar dos
senões lançados pelos protestantes ao culto de Nossa Senhora, os personagens
presentes nas narrativas dos folhetos tentavam mostrar sua força e poder entre os
fiéis.
No presente tópico, apontamos as diferentes investidas presentes nos
folhetos de Leandro Gomes direcionadas aos protestantes, inicialmente
representados por imigrantes, que chegavam à cidade em busca de posições de
trabalho e local para manifestação de sua crença religiosa. Mostramos como as
narrativas lançavam temas polêmicos no intuito de chacotear e acusar esses
sujeitos, sendo que os elementos que compunham gestos, indumentárias,
comportamentos e até mesmo crenças protestantes eram alvo de escárnio e críticas
dos fiéis católicos, que se sentiam ameaçados por essas novas manifestações
religiosas.
Contudo, parece-nos que ainda falta responder algumas questões acerca dos
valores, normas, princípios, condutas e principalmente tradições pertencentes a
esses grupos de pessoas que se manifestavam tão enfaticamente através dos
folhetos da literatura popular. Quem eram? De onde vinham? Quais eram mesmo as
“tradições” de que eram partidários? Contra quem se rebelavam? Essas e outras
questões são de importância ímpar para compreender os sentidos e significados que
as relações, tensões e enfrentamentos apresentados até agora possuíam para a
vida das pessoas que contestavam, à sua maneira, a ordem vigente na cidade.
Estas e outras questões estarão presentes e norteando o próximo ítem que pretende
melhor delinear essa discussão.
81
ARRAIS, 1998, op.cit., p. 43.
82
MAIA, Clarisse Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife,
1865-1915. 2001. 250f. Tese de Doutorado em História - Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001. Orientador Prof. Dr. Marcus Joaquim Maciel de
Carvalho.
83
ARRAIS, 1998, op.cit., p. 41.
180
84
LUBAMBO, Cátia Wanderley. Bairro do Recife entre o Corpo Santo e o Marco Zero: A reforma
urbana do início do século XX. Recife: CEPE/Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1991. p. 80. p.
54.
182
85
SEVCENKO, 2003, op.cit., p. 45.
86
ARRAIS, 1998, p.75.
87
Ibid., p. 74.
183
todos os elementos que de alguma forma possuíssem relação com esses sujeitos
que representavam os “novos tempos”.
No entanto, para além das críticas direcionadas à modernidade, não podemos
deixar de perceber as relações que as camadas menos favorecidas estabeleciam
com seus empreendimentos. De outro modo, não teríamos como explicar a
produção e distribuição dos próprios folhetos aqui discutidos e abordados que, por
mais que representassem a cultura sertaneja, produzidos e distribuídos por sujeitos
do interior, só adquiriram formato e se desenvolveram nesse contexto de inovações.
Logo, não podemos deixar de atentar que, embora Leandro Gomes fosse um
dos defensores mais ferrenhos dos valores tradicionais do campo, ao chegar à
cidade, não pode deixar de se vislumbrar e seduzir pela possibilidade de criar algo
novo, mesmo que fosse para defender velhos valores. Isso mostra a natureza
dinâmica das relações, já que, em nenhum momento, as pessoas que chegavam à
cidade conseguiam permanecer absolutamente alheias aos acontecimentos ali
presentes, ou seja, as tradições que traziam consigo eram reinventadas e
reelaboradas no processo de transformação.
E o mais interessante para ser percebido no interior desse processo de
relações e tensões entre diferentes confrontos culturais, com relação à modernidade,
é que, por mais que as produções populares, carregadas de seus valores, crenças,
experiências e modos de vida, quisessem ser negadas no período de
transformações da cidade, esses mesmos processos de inovações transformações e
tecnologias permitiam que a produção referente a esses segmentos da população
crescessem e se destacassem por todo o Brasil.
Esse é o caso dos folhetos populares que, ao terem sua produção
consolidada e definida nos primeiros anos do século XX, conheceram a partir da
década de 1920 aquilo que seria considerado o início do seu período áureo, graças
às possibilidades de profissionalização de determinados setores que se
especializaram exclusivamente na produção dessa mídia. A partir dessa década,
seriam presenciadas mudanças significativas na produção, distribuição e até
consumo dos folhetos, que teriam seu apogeu entre as décadas de 40 e 50,
185
88
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Ler e ouvir folhetos em Pernambuco (1930-1950). 2000. 543f.
Tese de Doutorado em Educação – Curso de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000. Orientadora Prof. Dra. Magda Becker Soares. p. 81-84
89
Ibid., p. 82-84
90
Ibid., p. 82.
91
MARANHÃO, Liêdo. O folheto popular: sua capa e seus ilustradores. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco: Massangana, 1981. p. 35.
186
produção deslocada para cidades de menor porte, o que muitas vezes contribuía
para que seu conteúdo estivesse em harmonia com essa nova realidade.
No entanto, essa é uma nova dimensão da produção dos folhetos que, nos
limites desse trabalho, não teremos como explorar, mas não podemos deixar de
ressaltar que, mesmo com produção, distribuição e consumo diferenciados, os
folhetos continuariam marcando lugares sociais por onde quer que fossem lidos ou
ouvidos, deixando sempre viva e presente a aproximação com o sertão.
A proposta presente nesse item foi tentar abordar de forma mais direta os
folhetos da literatura popular como suporte de relações e tensões entre os sujeitos
que eram visibilizados por eles e os lugares sociais de onde falavam.
Ao final, pudemos perceber que as pessoas ali representadas possuíam muita
proximidade com os homens e mulheres do sertão, que recém chegados à cidade se
confrontavam com realidades absolutamente diferentes das suas, e, a partir de
então, em defesa daquilo que acreditavam ser o mais correto, lutavam e deixavam
evidentes suas tradições, sem abaixar a cabeça para aqueles que os apontavam
como a negação do “mundo civilizado”.
Enfim, ao chegar à cidade, as pessoas estranhavam essa realidade nova e
absolutamente diferente daquilo que conheciam e referendavam, talvez, por isso,
não fosse de se estranhar que retornassem, insistentemente, a afirmar que “o
mundo estava às avessas”!
187
Considerações Finais
Fontes
Jornais e Periódicos
A luneta.
A província.
Chic.
Diario de Pernambuco.
Jornal do Recife.
Jornal Pequeno.
Lanterna Magica.
O andarilho.
O Embaixador.
O Periquito.
Lanterna Magica
O Diabo a Quatro.
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1990.
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