Psicopatologia Da Infância e Da Adolescência Livro 02
Psicopatologia Da Infância e Da Adolescência Livro 02
Psicopatologia Da Infância e Da Adolescência Livro 02
Resumo
O presente artigo constitui-se em
UM PERCURSO PELA
um estudo conceitual que tem
por objetivo traçar um percurso
PSIQUIATRIA INFANTIL:
histórico do saber psiquiátrico
sobre a criança, assinalando
DOS ANTECEDENTES
o modo como a conceituação
de autismo infantil origina-se
HISTÓRICOS À ORIGEM
dentro desse panorama. Para tal,
dividimos este trabalho em três
DO CONCEITO DE
momentos: o primeiro, dedicado
à discussão da noção de retar-
AUTISMO
damento mental, seguido pela
problematização das primeiras
reflexões acerca das psicoses da
infância e o nascimento da clínica Anahi Canguçu Marfinati
pedopsiquiátrica e a conceituação Jorge Luís Ferreira Abrão
de autismo pela Psiquiatria.
Assim, buscamos compreender
o sentido e a origem das práticas
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i2p244-262
atuais, analisando criticamente
os manuais psiquiátricos e sua
repercussão na psicopatologia
infantil.
Descritores: autismo; psi-
quiatria infantil; história; psi-
copatologia infantil.
245
e aparentemente surdo foi encontra- defende a ideia de que o menino
do nu por um grupo de caçadores: poderia ser educado e (re)integrado à
“Não fazia mais do que emitir gru- sociedade. Em 1801, Itard narra seus
nhidos e sons estranhos, não reagia esforços junto a Victor em sua genial
às interpelações nem a fortes ruídos, “Mémoire sur les premiers développements de
cheirava tudo o que levava às mãos. Victor de l´Aveyron”: “A Mémoire lança,
Sua locomoção era mais próxima do pois, e vigorosamente, fundamentos
galope, andando também de quatro, da teoria da avaliação e da didática
quando alcançava grande velocidade” atuais na área da deficiência mental”
(Banks-Leite & Galvão, 2000, p. 12). (Pessotti, 1984, p. 41).
Em um primeiro momento, o me- Victor de Aveyron é mantido no
nino, que recebeu o nome de Victor, Instituto de Surdos-Mudos por dez
foi transferido para uma instituição anos e, diante do estágio estacionário
destinada a indigentes e, posterior- de seus progressos, do esmorecimen-
mente, em agosto de 1800, por ordem to de Itard e dos inconvenientes trazi-
do ministro do interior, é levado a dos à instituição, o menino é entregue
Paris onde é conduzido ao Instituto definitivamente a Madame Guérin,
Nacional de Surdos-Mudos, sendo governanta que auxiliou nos cuidados
avaliado, entre outros intelectuais, de Victor no Instituto (Banks-Leite &
por Philippe Pinel: “Embora outros Galvão, 2000).
membros da Comissão tenham escrito De acordo com Alexander e
a respeito do garoto, o relatório de Selesnick (1968), Itard acreditava que
Pinel, lido em sessão pública da Socie- o menino parecia deficiente por não
dade, em novembro de 1800, foi o que ter sido civilizado, passando cinco
teve maior repercussão” (Banks-Leite anos tentando educá-lo por méto-
& Galvão, 2000, p. 14). dos humanos. Para Itard o caso de
Em seu relatório, Pinel conclui Victor era puramente médico, cujo
que não há nenhuma esperança no tratamento pertencia ao campo da
âmbito da possível educabilidade do então denominada medicina moral,
selvagem de Aveyron: “O diagnóstico entendida por Isaías Pessoti (1984)
de Pinel é desolador: Victor não é como uma designação genérica para
um indivíduo desprovido de recursos as atividades da psicologia clínica e da
intelectuais por efeito de sua existên- psiquiatria, as quais se organizariam
cia peculiar, mas um idiota essencial como profissões muito mais tarde.
como os demais idiotas que conhece A história de Victor é impor-
no asilo de Bicêtre” (Pessotti, 1984, tante, pois, com ele, o selvagem e o
p. 36). idiota desaparecem por detrás de sua
Contudo, o menino passa a ser condição humana e é exatamente sua
tratado pelo jovem médico Jean-Marc- humanidade que torna possível um
Gaspard Itard, ex-aluno de Pinel, que tratamento moral continuado durante
247
Lembra que o singular constitui, em matéria educativa, a categoria decisiva.
(Gardou & Develay, 2005, p. 37)
249
Infelizmente as idéias de Emminghaus foram ignoradas; e posterior-
mente influentes manuais de psiquiatria de Kraepelin e Bleuler omitem
toda referência a perturbações mentais infantis em si próprias. A tendência
da literatura psiquiátrica estava firmada: as crianças deviam ser consideradas
como adultos em miniatura e portanto não tinham direito a um método
distintivo. (Alexander & Selesnick, 1968, pp. 479-480)
No vasto campo da idiotia – que, até quase final o final do século XIX, era
considerado o único problema mental infantil – a distinção entre as formas
congênitas e as formas adquiridas nos primeiros anos de vida conduziu à
nomeação das demências infantis. (Cirino, 2001, p. 81)
Tratava-se do aparecimento, a
partir dos 3-4 anos, em crianças que,
até então, haviam tido um desen-
volvimento normal, de um estado
de morosidade e indiferença, com
negativismo, oposição, transtornos
afetivos (cólera, ansiedade), seguidos
de uma desagregação da linguagem e de
diversos transtornos motores bastante
característicos: agitação, estereotipias,
maneirismos, catatonia, impulsões.
(Bercherie, 2001, p. 135)
251
duzida em um sistema de classificação psiquiátrica. Foi incluída
sob a categoria abrangente de TID, pois a perda das habilidades
sociais e comunicativas era muito proeminente” (Mercadante,
Gaag & Schwartzman, 2006, p. 14).
Em 1921, Zappert (citado por Alexander & Selesnick,
1968) publicou observações semelhantes a essas. As crianças
que contavam com a idade de três/quatro anos não possuíam
antecedentes patológicos e evoluíram rapidamente até um aba-
timento demencial.
Ainda nessa época, o quadro de demência precoce de
Kraepelin foi revisado por Chaslin e Stransky e, posteriormen-
te, em 1911, por Bleuler, cujo trabalho assinalou que não se
tratava tanto de um “colapso insano global e irreversível, mas
de uma desintegração da personalidade, cunhando o termo
esquizofrenia e indicando a aparência, pelo menos contingen-
te, de sintomas de demência” (Póstel & Quétel, 1987, p. 521,
tradução nossa). Assim, E. Bleuler por não concordar com
a evolução inexorável para a demência, renomeia o quadro
indicado por Kraepelin, propondo um novo conceito: a es-
quizofrenia, originado do entrecruzamento da psiquiatria com
a psicanálise (Cirino, 2001). Dessa maneira, de acordo com
esse modelo, a demência precoce e a demência precocíssima
foram renomeadas de esquizofrenia infantil.
De acordo com Póstel e Quétel (1987), apesar de todos
estes trabalhos, há de se reconhecer que foi com J. L. Des-
pert que se deu a primeira grande descrição de esquizofrenia
infantil. Despert apoiou-se em uma observação de 29 casos
no Instituto Psiquiátrico de Nova York (1930-1937), nos
quais as características das crianças aí observadas são as
mesmas que, futuramente, o psiquiatra Kanner irá conceituar
como autismo infantil precoce. Dessa forma, Despert se
preocupou em traçar um quadro com diferentes variedades
sintomáticas, as quais incidem muito precocemente na vida
da criança.
Assim, podemos dizer que o termo autismo foi usado,
inicialmente, em 1911, pelo psiquiatra suíço Eugen Bleu-
ler, para delinear mais um dos sintomas da esquizofrenia.
Contudo, foi só a partir do fim da Segunda Guerra Mundial
que o autismo começou a ser tratado como uma patologia
diferenciada.
253
(1950 -1866), de onde provêm os
conceitos que estruturam o imenso
campo recentemente conquistado pela
clínica pedo-psiquiátrica: a noção da
patologia das grandes funções, com sua
expressão nos transtornos de conduta.
(p. 89, grifos do autor)
255
Tudo o que atrapalha seu isolamento Na síndrome de Asperger, verificou-
e sua estabilidade acarreta um senti- se que o DSM IV considerou não haver
um prejuízo significativo nas áreas da
mento de angústia torturante (Batista
linguagem e cognição. No entanto, há
& Bosa, 2002). menção de que algumas dificuldades na
Nesse mesmo estudo, Kanner comunicação social são verificadas, tais
(1943) comenta que a combinação de como: a incapacidade de reconhecer as
diversas sintomatologias, tais como regras convencionais da conversação
o extremo autismo, a estereotipia e a que regem as interações sociais e o uso
restrito de múltiplos sinais não verbais,
ecolalia remetem ao quadro de esqui-
como contato visual, expressões facial e
zofrenia, contudo, assinala que no caso corporal. (2008, p. 298)
das crianças autistas estudadas há uma
extrema solidão desde uma tenra idade, Como vimos, a problemática do
não sendo precedida de mudanças no conceito de autismo em relação a sua
comportamento. distinção com a psicose e a esquizofre-
É válido pontuar que, apesar de Leo nia infantil é bastante controversa ao
Kanner ter sido o pioneiro na publica- longo de sua história, e também está
ção do termo autismo como uma pa- presente nos manuais psiquiátricos:
tologia, outro psiquiatra, agora de Vie-
na, chamado Hans Asperger (1944), As primeiras edições da CID não
expôs quadros clínicos semelhantes fazem qualquer menção ao autismo. A
oitava edição o traz como uma forma de
ao autismo, como por exemplo, no
esquizofrenia, e a nona agrupa-o como
que se refere à perturbação existente psicose infantil. A partir da década de
no contato afetivo. Sua obra, porém, 80, assiste-se a uma verdadeira revolução
não teve muita repercussão na época, paradigmática no conceito, sendo o au-
visto que sua publicação ocorreu em tismo retirado da categoria de psicose no
língua alemã e ao término da Segunda DSM-III e no DSM-III-R, bem como
na CID-10, passando a fazer parte dos
Guerra Mundial.
transtornos globais do desenvolvimento.
Em suma, a Síndrome de Asperger (Bosa, 2002, p. 28)
ou Psicopatia Autística se manifesta
por volta dos quatro/cinco anos de Hoje em dia, portanto, de acordo
idade, contrariando os aproximados 36 com os manuais psiquiátricos DSM-IV
meses da síndrome definida por Kan- (American Psychiatric Association,
ner. Ademais, conforme apontam Ana 2002) e CID-10 (Classificação estatística
Carina Tamanaha, Jacy Perissinoto e internacional de doenças, 2004) o autismo
Brasília Maria Chiari, do Departamen- é considerado, respectivamente, como
to de Fonoaudiologia da Universidade Transtorno Invasivo do Desenvolvi-
Federal de São Paulo (UNIFESP), a mento e como Transtorno Global do
diferenciação entre os dois quadros Desenvolvimento.
centralizou-se na área da comunicação, Em linhas gerais, pode-se dizer que
cujo prejuízo é notável no autismo: muitas das características diagnostica-
257
De acordo com Cirino (2001, p. 92), com os diagnósticos descritivos, consi-
derados como totalmente verificáveis, tal como o DSM-IV e CID-10, almeja-se
“preencher a ausência de signos patognomônicos e a carência de exames de
laboratório em psiquiatria”. E continua, afirmando que o caminho é o da “medi-
calização da psiquiatria, a fim de afastá-la de vez das influências filosóficas (Jaspers,
fenomenologia, existencialismo, marxismo) e psicanalíticas (em especial, Lacan)”.
Finalmente, para o autor, de acordo com essa lógica, os psiquiatras infantis
voltam a se aproximar da maioria dos psiquiatras da segunda metade do século
XIX, em que o único agente de transformação era o recurso aos psicofármacos
integrados ao condicionamento do comportamento e do pensamento, posição
essa que exclui a responsabilidade do sujeito pelos seus sintomas.
Para finalizar, apresentamos um quadro demonstrativo com a cronologia
dos principais acontecimentos históricos que marcam a evolução da psiquiatria
infantil desde o século XVIII até o aparecimento do conceito de autismo.
Considerações finais
259
Ademais, buscamos apontar
criticamente o surgimento dos diag-
nósticos psiquiátricos a respeito do
autismo, cujas descrições embora
objetivem favorecer a troca entre os
profissionais da área, não fornecem
uma real compreensão desses qua-
dros, motivo pelo qual notamos, na
atualidade, uma pluralidade de en-
tendimentos e concepções acerca do
autismo em diversos campos do saber.
Finalmente, ao refletirmos acerca
do percurso histórico da psiquiatria
da infância com ênfase na descrição
do conceito de autismo, pode-se
inferir que há duas tendências que
coexistem, ainda que apresentem
posicionamentos antagônicos, com
relação às concepções de infância
e de psicopatologia. Por um lado,
prevalece uma tendência hegemônica
que aborda essa disciplina a partir de
uma perspectiva puramente orgânica,
excluindo posições filosóficas e psica-
nalistas e destacando como forma de
tratamento os recursos psicofárma-
cos, firmando, desde muito cedo, um
destino psiquiátrico à criança. Em ou-
tra direção, autores influenciados pelo
pensamento psicanalítico têm agre-
gado contribuições que possibilitam
pensar a psicopatologia infantil e o
conceito de autismo de forma menos
determinista e organicista, levando
em consideração fatores ambientais
no desenvolvimento dos sintomas e
possibilitando o surgimento de ou-
tras formas de tratamento além dos
psicofármacos. Entende-se que a coe�-
xistência desses modelos, por vezes
261
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NOTAS
1. Este artigo apresenta um esboço histórico que discute o surgimento do conceito de autismo,
abordando a tendência hegemônica presente na psiquiatria infantil durante o século XX, sem,
contudo, desconsiderar outras abordagens e influências que tiveram repercussão no âmbito da
psiquiatria, contribuindo para o desenvolvimento do conceito de autismo.
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Recebido em outubro/2012.
Aceito em maio/2013.