Frédéric GROS. Michel Foucault
Frédéric GROS. Michel Foucault
Frédéric GROS. Michel Foucault
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27.
O ponto cego de nosso Ocidente racional talvez, pois, a excluso da loucura, o que quer
dizer ainda que se somente sua recusa inaugural pode nos definir, ela est no centro de
nossa identidade.
2. A historia da loucura.
onde se havia recludo o mal: grandes espaos vazios, ainda assombrados pelo medo,
mas que uma prtica imemorial havia suscitado: excluir para curar. Contudo, no se
trata ainda, nessa primeira evocao que faz Foucault dos leprosrios abandonados,
loucura (p. 13-16). Para a Renascena, a loucura no algo que se esconde: ela o que
circula. O grande lugar simblico da loucura: a Nau dos Loucos (composio literria e
pictrica referente a uma prtica real)1, onde o louco dado imaginao como ser de
passagem (p. 18-24). Mas essa existncia errante do louco no signo de uma simples
medos que pudera suscitar a figura da morte na Idade Mdia. Foucault avalia os poderes
1
. Ocorria que em algumas localidades, para se desembaraar dos loucos que erravam pelas cidades,
eles eram confiados a barqueiros.
2
Compreende-se o que ento ela pode representar: a angstia do crepsculo dos mundos,
obsesso imaginria: o louco fala sempre desses alhures de pesadelo de onde ele
csmica da loucura, que ser depois muito tempo ocultada, at seu revolvimento pelos
estivesse sufocada por um outro mundo de presena da loucura: a que ela toma nas
Montaigne, a loucura no mais dada em uma relao com o mundo em que se imagina
metamorfoses fabulosas, mas numa relao com a razo. A loucura no mais tomada
seno nos termos do debate do homem com ele mesmo. A lio de sabedoria se situa a:
perdeu muito de seu prestgio imaginrio, mas a loucura fica colocada num debate
2
. N. do T. : experincia trgica.
3
. N. do T. : p. 22-26.
4
. N. do T. : p. 45-49.
3
dvida radical (levado pela esperana de encontrar enfim dum verdade primeira e muito
compartilhar seu destino com o da loucura. Sinal de outra idade e de outra experincia:
de 1656 a estrutura mais visvel na expeir6encia clssica da loucura (p. 59)6.O sculo
poder das autoridades pblicas ser interrogada por Foucault no nvel da sensibilidade
que ela exige (cap. A grande internao). A exigncia de internao indica, primeiro,
sagrado, que dava sentido a sua presena (o pobre como personalidade crstica), mas a
sociais que ele podia representar. Mas esses lugares de internao eram tambm lugares
submisso forada pelas leis do Bem nas prises de ordem moral (p. 89). A loucura,
5
. N. do T. : p. 48.
6
. N. do T. : p. 49.
7
. N. do T. : p. 67-69.
4
cidade burguesa, to uniforme para uma percepo clssica pois ele (esse mundo) se
obscuros, e toma pouco a pouco essa identidade consistente, a partir da qual ela
sido muito tempo percebidas como atentados contra o sagrado, e por isso mesmo eram
distinguido no mais do que por uma percepo moral: a loucura causa escndalo, ela
perturba a ordem pblica, ela a vergonha da famlia, ela compe texto com uma
5
percepo de um louco responsvel pela sua loucura comunica secretamente, com ela
No nvel das prticas, preciso notar que, para Foucault, o tratamento social da loucura
Htel-Dieu reserva um certo nmero de vagas para os loucos. Mas essa percepo
loucura na sua verdade de doena mental. Ela deriva (alm da influncia da cultura
rabe) de uma velha tradio inscrita no direito cannico (e j no direito romano), para
8
. Foucault entende por Desrazo o que a conscincia moral do sculo XII rejeita como contrria a
seus valores. O que designamos hoje como doena mental faz parte, mas entre muitos outros
defeitos estimatizados.
9
. P. 155 e sgtes (cap. Os insensatos ).
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matria de direito) justape-se, na idade clssica, a essa nova conscincia social que
tentam estabelecer a natureza da loucura. preciso notar que, para Foucault, essa
apreenso terica da loucura se justape srie de gestos sociais que cercam os loucos.
no curso desse segundo estudo que se vai revelar em toda a sua profundidade a
em seus preconceitos, do verdadeiro ser da loucura. Mas Foucault quis ver, na fraqueza
das descries e hesitaes perptuas das definies, algo diferente do efeito negativo
que a se exprime.
alteraes cerebrais, mas as causas distantes podem abranger tudo, desde o menor
causas concorrem para o desregramento nico das paixes. Mas essas ltimas no so,
para a loucura, mais que uma forma de expresso primeira: uma paixo mais ou menos
delrio que a idade clssica ir crer ter encontrado o prprio segredo da loucura.
verdadeiramente louco, no h a seno uma falsa crena que pode aparecer nos sonhos
do homem mais so; mas aquele que, porque se cr morto, recusa-se a comer e, para se
justificar, organiza longos discursos sobre o fato de que os mortos no comem, esse a,
sim, bem louco. O que, portanto, fixa a loucura uma estrutura de linguagem, pois o
luminosas da linguagem conjugam-se com as imagens provindas das noites mais negras
nada se v). Mas se a loucura, para os clssicos, no diz mais que o nada verificado do
Ser, compreende-se que toda as definies tericas que pretendem cerc-la s podem
10
. P. 232 a 233 (cap. A transcendncia do delrio ).
8
ser como que aspiradas pelo apelo desse vazio central: valsa imensa e revoluteante das
sua natureza, escapar aos tericos, no porque eles no sabem suficientemente o que
ela , que eles respondem secretamente a injuno de sua poca, que lhes repete que a
loucura no nada11.
D) A loucura no asilo. Essa experincia ontolgica da loucura ser logo enterrada e vai-
se, ento, compreender mal o que pudera significar para todo o sculo clssico a
problemas e objeto de uma percepo essencialmente moral, sem nada haver que
fantasma de miasmas ptridos que logo invadiriam a cidade)13 que exige a sua presena
mdico no se fez sob a presso de uma solicitude, mas na urgncia do terror: o mdico
no foi convocado para cuidar do louco, mas para proteger os outros. A loucura
11
. P. 249.
12
. O segundo sentido de Desrazo , pois, o do vazio, ausncia de razo.
13
. P. 353 a 354.
9
reencontra ento seus velhos prestgio imaginrios, mas alguma coisa mudou: a loucura
no mais sonhada como perigo de um outro mundo, mas como liberao de instintos,
verdadeira natureza. Enquanto o sculo XVII estava prestes a ver no louco a marca de
histria que exila o homem de sua verdade imediata (p. 392-400). No h, ainda, a,
aqueles debochados, aqueles miserveis com quem ele havia at ento partilhado o
destino de Desrazo. Eis, pois, o signo maior dessa diferenciao: a abertura, nos
meados do sculo XVIII, de toda uma srie de casas destinadas receber exclusivamente
os insensatos (p. 404)16. Esse isolamento tem valor poltico: nos filhos prdigos, os
libertinos e outros livre pensadores, no se quer ver seno vtimas de uma ordem
los assimilados a pobres loucos, que sero logo postos parte pois sua presena era
14
. P. 370 e sgtes.
15
. P. 357, ltimo pargrafo.
16
. P. 382 (ler tambm a anterior), cap. A nova diviso .
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decididamente muito humilhante para os outros. De outro lado, toda uma reflexo
de seus laos com os mundos da misria e do crime moral, o louco se encontra, no final
do sculo XVIII, enfim, liberado para uma nova percepo. A Revoluo francesa logo
ultrapassado. Essas medidas no iro concernir os loucos, para os quais busca-se dispor
um espao especfico. a partir das estruturas dessa recomposio que uma nova
experincia, estudada por Foucault (cap. Do bom uso da liberdade), vai logo
polticos dos anos 1790 sugere uma concluso nica: embora a psiquiatria continue a
dar-se como data de nascimento o momento em que Pinel percorre as antigas prises
medicalizou, o que significa que a confinou numa definio mdica, unvoca, na qual a
loucura no encontra mais verdade seno pelo olhar objetivador do Outro (o mdico).
filantropos, de que a loucura tinha como verdade o fato de ser uma doena 18. A loucura,
mas de ser enfim cuidada nos espaos preparados para ela. Para o autor, toda a histria
17
. P. 396 e sgtes.
18
. P. 417 a 424.
11
numa identidade mdica que lhe imposta, ela permanece internada e somente o
sentido de internamento que mudou (no se confina mais para corrigir, mas para
ento, nas narrativas de cura dos princpios do sculo XIX 19. Toda a operao
teraputica dos primeiros asilos (o que se vai nomear tratamento moral das paixes,
entre o louco e si mesmo. O louco no ser mais o exilado, aquele que se empurra para
as margens de nossas cidades, mas aquele que se torna estranha a si mesmo ao ser
culpabilizado de ser aquilo que ele . O louco dever acabar por sentir a sua prpria
dvida entre as suas mais belas e, tambm, suas mais enigmticas. No momento de
esboar o destino da loucura para o sculo XIX, Foucault constata ter, no final das
contas, escrito a histria do que tornou possvel a prpria apario de uma psicologia
19
. P.459 e sgtes (sobretudo a narrativa da libertao dos loucos por Pinel .
20
. P. 489 segtes (ler p. 502-3)
12
(p. 548)21. esse ponto que seria preciso compreender agora: como o nascimento da
tampouco o trao vazio de uma Razo desaparecida (idade clssica), mas torna-se
uso normal da palavra, disfunes do sentido temporal, espacial, etc.). Mas, no se trata
apenas de dizer que a loucura tomou enfim feies humanas (era a tese de Foucault em
preciso ir mais longe e enfrentar um difcil problema. Foucault tenta dizer-nos que essa
precisamente se exprime a perda das verdades humanas. Estranha lio, e mais difcil
ainda que a aquela que encerra Histria da loucura. Trata-se de mostrar a dependncia
21
. Ver p. 518.
22
. P. 509
23
. P. 518
13
pois, a cincia psicolgica que poderia explicar a loucura, expor o seu sentido ltimo,
imediatamente como crtica: pois, como uma cincia poderia pretender enunciar
verdades positivas sobre o homem, uma vez que ela no retira a sua clareza mais do que
da noite da loucura, na qual toda verdade se perde? De que valem ento essas verdades
positivas sobre o homem, se no tomam seu sentido ltimo seno a partir de uma
24
. P. 521