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A História Do Precedente Vinculante Na Inglaterra: Um Olhar Sobre A Função Do Stare Decisis

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DOI: 10.12818/P.0304-2340.

2015v67p295

A HISTRIA DO PRECEDENTE VINCULANTE


NA INGLATERRA: UM OLHAR SOBRE A
FUNO DO STARE DECISIS
THE BINDING PRECEDENTS HISTORY IN ENGLAND:
A GLANCE ON THE ROLE OF STARE DECISIS

Guilherme Bacelar Patrcio de Assis*

RESUMO ABSTRACT
O presente trabalho, de cunho predominan- This work, predominantly historical and
temente histrico-descritivo, aborda o surgi- descriptive, addresses the emergence and
mento e o desenvolvimento da doutrina do development of the stare decisis doctrine in
stare decisis na Inglaterra, bero do sistema England, the birthplace of the legal system of
jurdico de common law, com especial enfoque common law, with special focus on the role
para o papel cometido a um sistema de prece- committed to a binding precedent system,
dentes vinculantes, qual seja, na necessidade namely, the need to promote the values linked

de promover os valores ligados aos princpios to the principles of legal certainty - such as
da segurana jurdica tais como a integrida- integrity, unity , coherence, knowledgeability,
de, a unidade, a coerncia, a cognoscibilidade, the predictability of the legal system - and
a previsibilidade do sistema jurdico e da equality. In order to better understand the
igualdade. A fim de melhor compreender os main points of this essay, initially will be
pontos centrais deste ensaio, inicialmente discussed the historical origins of the common
discorrer-se- sobre as origens histricas do law, dealing, in a second stage, with some
common law, tratando-se, em um segundo important general features of this legal system.
momento, de algumas importantes caracte-
rsticas gerais desse sistema jurdico. KEYWORDS: Stare decisis. Binding precedent.
Common Law history. Distinguishing.
PALAVRAS-CHAVE: Stare decisis. Precedente Overruling.
obrigatrio. Histria do Common Law.
Distinguishing. Overruling.

I. ORIGENS HISTRICAS DO COMMON LAW


O surgimento do sistema jurdico do common law ocorreu
na Inglaterra, tendo ulteriormente se espraiado, com algumas
poucas excees, por todos os pases de colonizao inglesa. Pode-
se reconhecer quatro importantes perodos no desenvolvimento

* Aluno do Curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Direito da UFMG.


Juiz Federal.
Email: gbacelarpa@yahoo.com.br

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 295 - 316, jul./dez. 2015 295
A HISTRIA DO PRECEDENTE VINCULANTE NA INGLATERRA

histrico do direito ingls.1 O primeiro deles o perodo anglo-


saxo, que perdura at a conquista normanda da Inglaterra em
1066. O segundo, que compreende o interregno entre 1066, com
a ascenso de Guilherme I ao trono ingls, at o incio da Dinastia
Tudor, em 1485, retrata o surgimento e o desenvolvimento do
common law. O terceiro, que se inicia em 1485 e perdura at
1832, marcado pelo desenvolvimento do sistema da equity, de
cunho complementar common law. Finalmente, o quarto o
perodo moderno, que comea em 1832 e vai at os dias atuais,
caracterizado pelo desenvolvimento sem precedentes da lei, pela
interveno da Administrao Pblica na sociedade2 e, ainda, a
partir da segunda metade do sculo XX, aps o fim da segunda
guerra mundial, pela consagrao dos direitos humanos no plano
domstico e internacional.
No perodo anglo-saxo, caracterizado pela ocupao da
Inglaterra por tribos de origem germnica, tais como os anglos, os
saxes e os dinamarqueses, o direito era fundado basicamente nos
costumes locais, sendo os textos legais brbaros escritos bastante
escassos.
importante, porm, registrar que, at o incio do sculo V
d.C., a Inglaterra foi dominada pelo Imprio Romano do Ocidente,
tendo sido submetida aos influxos do regime jurdico romano
durante a ocupao.
Mesmo aps o trmino da dominao romana, at o incio
do sculo XI coexistiram, no territrio britnico, normas de origem
germnica, ligadas tambm dominao dinamarquesa, e de direito
romano e cannico, introduzidas no momento da cristianizao (664
d.C.). A esses modelos legais de base romano-germnica e cannica,
bem ainda aos diferentes usos locais existentes na Inglaterra, se
sobreps, em 1066, o direito introduzido pela conquista normanda.3

1 DAVID, Ren. Os grandes sistemas do Direito Contemporneo. Traduo Hermnio


A. Carvalho. 4 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 356.
2 DAVID, Ren. Ibidem.
3 LOSANO, Mrio G. Os grandes sistemas jurdicos: introduo aos sistemas jurdicos
europeus e extra-europeus. Traduo Marcela Varejo. So Paulo: Martins Fontes,

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Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

Por vrios sculos aps a decadncia do Imprio Romano


do Ocidente, conforme destaca JOS ROGRIO CRUZ E TUCCI,
no existiu diferena substancial entre os regimes jurdicos em vigor
na Europa continental e no Reino Unido. Predominava um sistema
de regras no escritas, fundado em prticas negociais rudimentares
e em decises dos tribunais locais. A ruptura desta nota comum
comeou a surgir com o estudo, na Europa continental, entre os
sculos XII e XIII, dos Corpus Iuris Civilis, que suplantou a velha
ordem jurdica em grande parte do continente europeu.4
No ano de 1.066, com a ascenso ao trono ingls de
Guilherme I, ento Duke da Normandia, que se considerava herdeiro
dos reis saxes, o cenrio jurdico comeou a mudar. A conquista
normanda significou um acontecimento capital na histria do direito
ingls, porque trouxe para a Inglaterra um poder forte, centralizado
e com vasta experincia administrativa, experimentada no ducado
da Normandia. Com a conquista pelos normandos, encerra-se a era
tribal e o feudalismo instala-se na Inglaterra.5
Os conquistadores normandos gradualmente estabeleceram
trs tribunais reais de justia, quais sejam, a Court of Exchequer, a
Court of Kings Bench e a Court of Commons Pleas, denominados
Tribunais de Westminster, em substituio s County Courts ou
Hundred Courts, rgos que somente aplicavam os costumes locais.
Neste processo de centralizao da justia, os juzes desenvolveram
novos procedimentos e remdios e um novo corpo de direitos
substantivos que seriam aplicados a todos os cidados ingleses,
o que explica a designao deste sistema legal como common
law, entendido como direito comum a todos, em oposio aos
costumes locais.6

2007, p. 323-324.
4 CRUZ E TUCCI, Jos Rogrio. O precedente judicial como fonte do direito. So
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 150.
5 DAVID, Ren. Op. cit., p. 358.
6 BARBOZA, Estefnia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e segurana jurdica:
fundamentos e possibilidades para a jurisdio constitucional brasileira. So Paulo:
Saraiva, 2014, p. 41.

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Portanto, a unidade poltica implementada por Guilherme


I, o Conquistador, resultou tambm na unificao do direito ingls,
que passou, ao longo dos anos, a ser predominantemente elaborado
pelas cortes reais, por meio de seus precedentes.
Por isso, REN DAVID afirma que o direito ingls no
um direito consuetudinrio, posto que nunca houvera um costume
geral imemorial do reino aplicvel a todos, mas sim vrios costumes
locais dos quais o common law apenas retirou algumas de suas
regras. O processo de constituio do common law consistiu, em
essncia, em elaborar um sistema de direito jurisprudencial, criado
pelos tribunais com base na razo em substituio aos costumes
anglo-saxes, estes sim fundados nos costumes.7 8
Contudo, a implementao de uma jurisdio real unificada
em todo o reino foi algo conturbado. A histria da Inglaterra, como
se ver, desenvolveu-se em torno da luta pela conteno dos poderes
do monarca. Os bares enxergavam a expanso dos poderes do
rei, por meio da jurisdio dos tribunais reais, como uma ameaa
aos seus domnios. Por isso, para conter tal avano, o Estatuto
de Westminster II, de 1285, estabeleceu que os tribunais reais s
poderiam conceder writs em hipteses em que j houvesse casos
semelhantes decididos, ou seja, desde que j existissem precedentes
em tal sentido, vedando-se, assim, a criao de novas aes.9

7 DAVID, Ren. Ob. cit., p. 437.


8 Mais adiante, o autor novamente categrico: devemos abandonar a idia to
corrente de que o direito ingls um direito consuetudinrio. Esta idia advm para
muitos juristas do continente europeu da admisso da alternativa: ou o direito um
direito escrito, fundado sobre os cdigos, ou no um direito escrito e, por conseguinte,
consuetudinrio; um direito jurisprudencial. A common law teve por efeito fazer
desaparecer o direito consuetudinrio da Inglaterra, existente nos costumes locais.
(DAVID, Ren, Ob. cit. p. 441). MRIO G. LOSANO enxerga o common law como
um direito consuetudinrio, mas analisando-o sob uma outra tica, de um costume
jurisprudencial: Ao redor da curia regis logo se condensou uma classe profissional
forense muito homognea, da qual saiam os juzes que, com suas sentenas, acabaram
criando o Common Law. Esse , portanto, um direito consuetudinrio, mas num
sentido especial: o costume que fonte desse direito no nasce do comportamento
popular, e sim do comportamento dos juzes. (Ob. cit., p. 325).
9 MELLO, Patrcia Perrone Campos. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito
no constitucionalismo contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 17.

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Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

Os writs eram aes judiciais que consistiam em uma ordem


dada pelo Rei s autoridades para processar e julgar dados litgios.
Possuam frmulas rgidas, de sorte que deveria haver um remdio
apropriado e especfico para cada tipo de litgio. Se no houvesse
um writ previamente determinado para cada situao controvertida,
no haveria possibilidade de resolv-la judicialmente.
Com isso, constantemente, deparava-se com um injusto e
insustentvel quadro de denegao da prestao jurisdicional e, por
conseguinte, de ausncia de soluo do litgio. Por isso, por muito
tempo, o processo foi considerado mais importante do que o direito
substantivo controvertido, donde surgiu o brocardo remedies
precede rights.
Com o passar do tempo, os writs previstos no common
law, excessivamente formalistas e bastante limitados pelo Estatuto
de Westminster II, tornaram-se insuficientes para atender s novas
demandas por justia.10
Neste contexto, tem incio a terceira fase da evoluo do
direito ingls, com o surgimento do modelo da equity, que um
sistema paralelo e complementar ao common law. A equity foi,
portanto, concebida para instrumentalizar a realizao concreta da
justia, especialmente diante das insuficincias do direito pretoriano
ou das excessivas restries processuais inerentes aos writs.
De sorte que, a partir do sculo XVI, em carter excepcional,
os sditos que no tivessem, a seu prprio juzo, obtido decises
justas perante os Tribunais de Westminster ou que no se
conformassem com as suas decises, poderiam dirigir-se ao rei,
clamando por justia. Em razo do aumento destas peties dirigidas
ao rei, a funo de julgar os recursos fundados na equity fora
transferida pelo monarca a um conselheiro do rei o Chancellor, o
que ulteriormente culminou na criao do Tribunal da Chancelaria
(Court of Chancery). As suas decises eram proferidas com base na
equidade, de forma diversa das exaradas pelas tradicionais cortes
de common law, cujos princpios substantivos advinham do direito
romano e cannico e na qual o processo era escrito e secreto.

10 MELLO, Patrcia Perrone Campos. Op. cit., p. 17.

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A HISTRIA DO PRECEDENTE VINCULANTE NA INGLATERRA

Contudo, com o passar do tempo, as decises da equity,


inicialmente tomadas com base na equidade do caso particular,
tornam-se cada vez mais sistemticas, levando ao surgimento de
doutrinas equitativas, que funcionavam como acrscimos ou
corretivos aos princpios jurdicos aplicados pelos Tribunais Reais
atravs dos precedentes.11
O direito ingls, a partir de ento, estrutura-se sob um regime
jurdico dualista, no qual coexistem duas espcies de jurisdio: a
de common law, de natureza ordinria, exercida pelos Tribunais
de Westminster, a partir do direito jurisprudencial, e a da equity,
de matiz especial, aplicada exclusivamente pelo Tribunal da
Chancelaria, a partir de princpios de equidade.
Finalmente, a quarta e atual fase do desenvolvimento do
direito ingls, o perodo moderno, compreende a segunda metade
do sculo XIX, passando pelo sculo XX, at adentrar com vigor
no sculo XXI.
No final do sculo XIX a estrutura organizacional do Poder
Judicirio britnico profundamente modificada pelos Judicature
Acts, editados entre os anos de 1873 e 1875, por meio dos quais
as jurisdies de commun law e da equity foram unificadas. Com
isso, todos os tribunais do reino passaram a deter competncia para
proferir decises fundadas tanto no common law quanto na equity.12
Alm disso, o triunfo das ideias democrticas, a expanso
vigorosa da atividade legislativa pelo Parliament e, ainda, o
aumento do papel do Estado ingls nas esferas econmica e social
alavancaram decisivamente o curso da evoluo do common law.
A interveno estatal na economia e a adoo da doutrina
do welfare state exigiram uma postura mais proativa do Estado
visando a criao e a implementao de direitos sociais, tais como
educao, sade e previdncia social. O volume de leis editadas
aumentou de forma jamais vista no Reino Unido at ento.

11 DAVID, Ren. Ob. cit., p. 372.


12 Ambos os sistemas foram mantidos com as referidas reformas e esto em vigor at
hoje. Houve apenas a unificao orgnica da competncia dos tribunais para aplic-
los.

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Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

A adeso do Reino Unido Conveno Europeia de


Direito Humanos de 1950, seguida de sua voluntria submisso
jurisdio da Corte Europeia de Direitos Humanos instituda em
1959, o seu ingresso na Unio Europeia curvando-se s regras
do direito comunitrio , e, mais recentemente, a edio do Civil
Procedure Rules (o Cdigo de Processo Civil ingls), do Human
Rights Act, ambos em 1998, e, por fim, do Constitutional Reform
Act, de 2005, que criou a Supreme Court of the United Kingdom,
tambm trouxeram expressivos impactos na doutrina clssica do
common law, transformando-o radicalmente e aproximando-o
substancialmente dos sistemas europeus de civil law.13
O Human Rights Act, que entrou em vigor no ano 2.000,
ratificou a Conveno Europeia de Direitos Humanos e estabeleceu,
em sua Seo 4, a necessidade de as normas do direito ingls serem
interpretadas de acordo com esta Conveno.
Alm disso, o Human Rights Act possibilitou que os
tribunais locais declarassem a incompatibilidade de uma lei
contrria a Conveno Europeia de Direitos Humanos por meio
de uma espcie de controle de convencionalidade das leis, cabendo
ao Governo adotar as medidas cabveis para retificar as disposies
legais incompatveis.14
Portanto, as leis inglesas (statutory law), antes somente
limitadas pelos princpios e regras inerentes tradio do common
law, passaram a ser interpretadas pelos tribunais ingleses de acordo
com as regras de direitos humanos estatudas pela Conveno
Europeia de Direitos Humanos, devendo, se necessrio, ser negada
aplicao regras locais que forem contrrias aos direitos humanos.
Os juzes ingleses passam, assim, a exercer uma forma de judicial

13 Por todos, cf. BARBOZA, Estefnia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e


segurana jurdica: fundamentos e possibilidades para a jurisdio constitucional
brasileira. So Paulo: Saraiva, 2014. Nesta obra a autora explora de forma bastante
detalhada estes novos aspectos do sistema de common law ingls.
14 ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de
resoluo de conflitos na Inglaterra. Reviso de traduo Teresa Arruda Alvim
Wambier. 2 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 281.

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review, mitigando ainda mais o postulado da supremacy of the


English Parliament.
Por outro lado, as decises da Corte Europeia de Direitos
Humanos tm funcionado como precedentes para as cortes dos
Estados-membros, incluindo as cortes constitucionais, exigindo
em alguns casos a no aplicao das leis advindas dos parlamentos
locais, bem como alterando a jurisprudncia antes consolidada
dessas cortes nacionais.15
A House of Lords, adequando-se a esta nova realidade,
imposta especialmente pelo direito internacional dos direitos
humanos, adotou a Conveno Europeia de Direitos Humanos
como parmetro material para o judicial review.
No caso A v. Secretary of State for the Home Department,
julgado em 2005, a House of Lords decidiu que as disposies do
Anti-terrorism, Crime and Security Act de 2001, que conferiu ao
Secretrio de Estado para Assuntos Internos autoridade poder para
prender cidados estrangeiros suspeitos de terrorismo, mesmo sem
acusao ou julgamento, eram incompatveis com a Conveno
Europeia de Direitos Humanos e com o Human Rights Act. Coube,
ento, ao Governo adotar as medidas para retificar as disposies
legais incompatveis com a Conveno.16
No caso Bellinger v. Bellinger, a House of Lords declarou a
incompatibilidade do Matrimonial Causes Act de 1973, que previa
o casamento apenas entre o homem e a mulher, com a Conveno.
A House ampliou o significado da palavra spouse para abranger
tambm o parceiro do mesmo sexo, o que levou o Parlamento a
editar, em 2004, o Gender Recognition Act, que passou a dar status
legal s pessoas que mudaram de sexo.
Por derradeiro, vale frisar que, no sculo XXI, conforme
informa NEIL ANDREWS, apesar de estar fortemente influenciado
por leis escritas e por regulamentos europeus que tm fora igual
legislao primria, o sistema de precedentes ainda continua

15 BARBOZA, Estefnia Maria de Queiroz. Op. cit., p. 116.


16 ANDREW, Neil. Op. cit., p. 281.

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Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

sendo a base do direito ingls.17

II. CARACTERSTICAS GERAIS DO COMMON LAW INGLS

O common law, como visto, um sistema jurdico


paulatinamente construdo na Inglaterra ao longo dos ltimos
1000 anos, alicerado, sobretudo porm no exclusivamente
nas decises judiciais, cuja autoridade do direito nelas estipulado
repousa em suas origens e em sua geral aceitabilidade por sucessivas
geraes, diferentemente do que ocorre no civil law, onde a
autoridade do direito leia-se, da lei justifica-se pela autoridade
de quem a promulgou. 18
O common law um modelo jurdico forjado historicamente
sem revolues ou rupturas com o passado, diversamente do
que ocorrera na Frana, bero da codificao moderna, com a
revoluo de 1789. Traduz-se em um sistema de feio aberta,
no sentido de nele ser possvel encontrar a resposta jurdica mais
adequada resoluo do caso a posteriori, uma vez que as suas
normas e princpios gerais so constantemente reinterpretados pelos
tribunais. No civil law, ao contrrio, o sistema pode, a princpio, ser
considerado fechado, eis que, em teoria, dada a sua pretenso de
completude, clareza e objetividade, para cada situao j h uma
regra aplicvel, previamente criada por um supostamente oniciente
legislador.
Na tradio do common law a fonte primria do direito
so os precedentes judiciais. Os juzes sempre gozaram do judge-
made law, ou seja, do poder de criar o direito, o qual se encontra
precipuamente nas regras e princpios gerais extrados dos
precedentes.
Classicamente, as leis (statutory law) eram consideradas
fontes secundrias do direito ingls, cuja funo cingia-se, no mais
das vezes, a complementar ou corrigir, pontualmente, o direito criado

17 ANDREWS, Neil. Op. cit., p. 96-97.


18 STRAUSS, David. The living constitution. New York: Oxford University Press, 2010,
p. 37-38.

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pelos tribunais. Sublinhe-se, porm, que Poder Judicirio tinha o


dever de aplicar as leis existentes.
Nada obstante, no se pode olvidar que a lei era tida como
uma pea estranha no sistema jurdico ingls.19 A norma contida
na lei s era definitivamente revelada e plenamente incorporada no
direito ingls aps sua interpretao e aplicao pelos tribunais,
momento em que se tornava efetivamente cognoscvel. Mas to logo
fosse possvel, somente eram citadas as decises que aplicaram a
lei, ao invs do prprio texto dessa lei.20
A Revoluo Gloriosa de 1688, que culminou com a
afirmao solene da Supremacy of the Parliament, no mudou
o papel de primazia da common law na Inglaterra, pois essa
supremacia no significou onipotncia da lei ou a transferncia do
absolutismo real para o parlamento.21 Nesse sentido, adverte LUIZ
GUILHERME MARINONI que
O parlamento, com a Revoluo Gloriosa, venceu longa luta contra
o absolutismo do rei. Diante da preocupao em conter os arbtrios
do monarca, os juzes sempre estiveram ao lado do Parlamento,
chegando a com ele se misturar. Assim, no houve qualquer
necessidade de afirmar a prevalncia da lei como produto do
Parliament sobre os magistrados, mas a fora do direito comum
diante do poder real. (...) Mais do que lei, foi necessrio dar
destaque ao common law ou ao direito da histria e das tradies
do povo ingls para conter o poder real. De modo que a ideia de
supremacy of the English parliament no significou, simplesmente,
a submisso do poder real norma produzida pelo legislativo, mas
a submisso do rei ao direito ingls, na sua inteireza. Este direito
submetia o monarca, contendo os seus excessos, mas tambm
determinava o contedo da produo legislativa, que, sem qualquer
dvida, no podia ser desconforme ao common law.22

19 DAVID, Ren, Ob. cit., p. 434.


20 DAVID, Ren, Ibidem.
21 O poder do monarca, a partir da Revoluo Gloriosa foi limitado pelos direitos e
liberdades do povo ingls. Tanto assim que, j em 1689, foi editado o Bill of Rights
estatuindo sobre a proteo da pessoa e da propriedade individual e, bem ainda, sobre
a submisso do rei common law.
22 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatrios. 2 ed. So Paulo: Revista
dos Tribunais, 2011, p. 46.

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Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

O direito do common law essencialmente prtico,


pragmtico e casustico. As regras e os princpios que nortearo a
soluo dos conflitos so conhecidos e solucionados caso a caso,
partindo-se das decises do passado para que se construa a soluo
do presente (reasoning case by case). Nunca houve uma preocupao
do common law em antever e ditar a possvel soluo de conflitos
vindouros.
Dito de outra maneira, quando um sistema jurdico, tal
como o common law, desenvolvido mediante o abarcamento de
novas realidades, h um processo de formao paulatina, gradual e
lgica do direito. A soluo de uma questo conexa a um precedente
resulta em novo passo que no pode negar o que foi anteriormente
definido. H uma relao de continuidade entre a soluo da nova
questo e o precedente, conferindo atividade judicial um modo
de pensar que vai se desenvolvendo aos poucos.23
A forte influncia da histria na consolidao do common
law, aliada ao mtodo de anlise e construo casustico e prtico
das decises, explicam a inexistncia de um direito dogmtico e
cientfico ministrado nas universidades inglesas, posto que o sistema
ingls estruturou-se com base na prtica cotidiana do direito, e no
a partir da doutrina ou da cincia do direito como sucedeu com o
civil law.24
Neste contexto, dada a proeminncia histrica das decises
judiciais como fontes primrias do direito da common law, no
houve necessidade de edio formal, sintetizada em um documento
nico, de uma constituio escrita na Inglaterra. Constituio, para
os ingleses, o conjunto de regras de origem jurisprudencial ou
legislativa que garantem as liberdades e os direitos fundamentais e
estabelecem limites s autoridades.25

23 MARINONI, Luiz Guilherme. A tica dos precedentes: justificativa do novo CPC.


So Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 104.
24 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de.
Introduo teoria e filosofia do direito. 2 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,
2014, p. 306.
25 BARBOZA, Estefnia Maria de Queiroz. Op. cit., p. 45-46.

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A HISTRIA DO PRECEDENTE VINCULANTE NA INGLATERRA

III. A DOUTRINA DO PRECEDENTE OBRIGATRIO: O


STARE DECISIS NA INGLATERRA

No modelo jurdico de common law ingls, onde os


precedentes so, por excelncia, a fonte primria do direito e que
defere aos magistrados o judge-made law, at natural e esperado
que seja outorgada fora vinculante (binding effect) s decises
judiciais, a fim de conferir unidade, coerncia e previsibilidade ao
sistema.
Todavia, common law e stare decisis no se confundem. O
primeiro, como j assinalado, consiste no direito comum do reino
estabelecido pelos tribunais por meio de suas decises, e que surgiu e
consolidou-se entre os anos de 1066 e 1485, muito antes do segundo,
cujo reconhecimento formal pela House of Lords somente ocorreu
na segunda metade do sculo XIX.26
Alm disso, o stare decisis no um princpio jurdico
exclusivo ou inerente ao common law. Ele existe tambm sistema da
equity e existiu, v.g., no Direito Romano, tendo sido expressamente
previsto no Cdigo de Justiniano a obrigatoriedade de os juzes,
em casos futuros, seguirem a deciso tomada pelo imperador aps
examinar a causa.27
O instituto do stare decisis et non quieta movere, que, na
literalidade, significa mantenha-se a deciso e no se mexa no que
est quieto, prescreve que as regras e princpios jurdicos emanados
dos precedentes judiciais exarados pelos tribunais (ratio decidendi)
vinculam o prprio tribunal e os demais rgos jurisdicionais
inferiores, que devem aplic-lo a casos iguais ou substancialmente
semelhantes. Em termos mais singelos, a doutrina do stare decisis
simplesmente preconiza ser dever dos juzes e dos tribunais seguir
os precedentes, aderir ao direito j posto.28

26 Registre-se que o desenvolvimento da doutrina dos precedentes tambm ocorreu


posteriormente ao surgimento e consolidao do common law na Inglaterra.
27 CHAMBERLAIN, Daniel Henry. The doctrine of stare decisis: its reasons and its
extent. New York: Baker, Voorhis & CO Publishers, 1885, p. 22.
28 CHAMBERLAIN, Daniel Henry. Op. cit., p. 6.

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Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

A doutrina do stare decisis traduz-se, em uma nota, na ideia


de respeito aos precedentes. A fora vinculante do precedente, por
seu turno, repousa em sua ratio decidendi, que consiste na regra ou
princpio reconhecido na deciso e que se torna fonte do direito.29
O stare decisis funda-se na necessidade de garantir, a um s
tempo, a integridade, a unidade, a coerncia, a cognoscibilidade e
a previsibilidade do sistema jurdico, e, bem ainda, de promover o
princpio da igualdade, conferindo tratamento igual a casos iguais
(treating like cases alike). Julgamentos contraditrios entre si abalam
seriamente todos os valores acima mencionados, provocando
enorme insegurana jurdica para a sociedade em geral e causando
injustia aos particulares, individualmente considerados, em
posies virtualmente idnticas.
O stare decisis foi concebido como uma importante
ferramenta de limitao da discricionariedade judicial e, por
conseguinte, do papel poltico do Poder Judicirio no contexto da
doutrina da separao das funes estatais.
A propsito, FRANCISCO ROSITO pondera que

Ao analisar as razes determinantes de sua instituio, constata-


se que o objetivo do stare decisis foi limitar a discricionariedade
judicial, evitando-se incerteza, obscuridade, confuso e dificuldade
na prestao jurisdicional, a fim de buscar maior segurana jurdica
na aplicao do direito. Inegavelmente, o princpio do vnculo ao
precedente (stare decisis) representa limite criao judiciria e
promove a estabilidade do direito. Era o que ambicionava, de um
modo geral, o positivismo jurdico, que predominava no pensamento
jurdico do Estado Liberal. Almejava-se, dessa forma, alcanar maior
legitimidade na atividade estatal, utilizando-se os precedentes como
critrios neutros na aplicao do direito. A preocupao residia no
fato de que o juiz concentrava ilimitadamente duas funes: criao
e aplicao do direito. Com a instituio do carter vinculante
dos precedentes, tornou-se possvel limitar o papel poltico da
atividade judicial. Mesmo assim, preciso ter presente que a
atividade jurisprudencial, na tradio anglo-saxnica, ainda confere
maior poder ao juiz, que aplica o direito como argumento no caso

29 MacCORMICK, Neil. Why cases have rationes and what these are. In Precedent in
Law. Edited by Laurence Goldstein. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 156.

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A HISTRIA DO PRECEDENTE VINCULANTE NA INGLATERRA

concreto. Desse modo, a doutrina do stare decisis objetivou que o


case law adquirisse satus de cincia, capaz de prever os resultados
das controvrsias judiciais, conferindo aos jurisdicionados certeza,
uniformidade e segurana dos direitos.30

A preocupao em evitar decises conflituosas entre os


rgos judicirios emergiu bem antes do reconhecimento formal
do stare decisis pelos tribunais ingleses. Jos ROGRIO CRUZ E
TUCCI assinala que os primeiros comentadores do common law
j manifestavam preocupao com o problema dos julgamentos
contraditrios, ressaltando que Bracton comeara a delinear a
importncia de ater-se, na deciso de casos similares, queles que
j tinham sido antes decididos, tendo-se chegado ao ponto de
suscitar-se a questo da certeza do direito, quando colocada em
perigo pelos juzes que decidiam desprezando o direito elaborado
nos vetera iudicia.31
No havia ainda regra jurdica que impusesse o efeito
vinculante ao precedente. Nada obstante, os juzes frequentemente
ressaltavam a importncia dos julgados e a exigncia de que
as decises anteriores fossem seguidas para conferir certeza e
continuidade ao sistema.32
No sculo XVII, a Cmara de Exchequer (Exchequer
Chamber) definiu que as suas decises seriam precedentes
vinculantes, defendendo que uma deciso colegiada de uma Corte
tinha quase a mesma hierarquia de uma lei promulgada pelo
Parlamento. Neste perodo, apenas as decises da Exchequer
produziam efeito vinculante, nem mesmo as decises da House of
Lords tinham esta autoridade.33

30 ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: Racionalidade da tutela


jurisdicional. Curitiba: Juru, 2012, p. 85.
31 CRUZ E TUCCI. Op. cit., p. 153.
32 Ibidem. Op. cit., p. 154.
33 PLUCKNETT, Theodore. A concise history of the common law. 5 ed. New Jersey:
The Lawbook Exchange, 2001, p. 347-348.

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Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

Contudo, a sistematizao da doutrina dos precedentes e,


por consequncia, do instituto do stare decisis somente ocorreu no
sculo XIX, visto que, antes disso, segundo informa a doutrina,
a ausncia de consolidao da aludida doutrina no ocorreu em
virtude da inexistncia de fonte confivel de reproduo das decises
judiciais.34
No mbito da House of Lords, o primeiro precedente
a reconhecer a eficcia vinculante de suas decises para seus
membros e para os demais tribunais inferiores, foi o caso Beamish
v. Beamish35, de 1861, onde o tribunal analisou um caso relacionado
validade de um casamento.
O reverendo Samuel Swayne Beamish pretendia se casar com
Isabella Frazer, os quais eram membros da Igreja Unida da Inglaterra
e Irlanda. Como Beamish no obteve autorizao do pai de Isabella
para com ela se casar, ele decidiu, por conta prpria, celebrar o
seu casamento de forma clandestina em 1831. Aps o falecimento
de Samuel Beamish, em 1844, iniciou-se uma disputa pelos seus
bens entre seu filho mais velho, Henry Beamish, e seu segundo
filho, Benjamim Beamish, eis que a validade ou no do casamento
do reverendo interiria diretamente na sucesso patrimonial.36 O
tribunal irlands houvera considerado vlido o casamento.
A House of Lordes, por sua vez, invocou o seu precedente
formado no caso The Queen v. Millis, de 1844 no qual houvera
decidido que o casamento s seria vlido se celebrado por um clrigo
e que se o prprio noivo for um clrigo, isso no valida o casamento,
de sorte que, quanto forma da celebrao, no h diferena entre
o casamento de um noivo clrigo e de um noivo leigo , e reformou

34 LUNDMARK, Thomas. Soft stare decisis: the common law doctrine retooled for
Europe. Tbingen: Mohr Siebeck, 2003, n. IV, p. 166, apud ABBOUD, Georges;
CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introduo teoria e
filosofia do direito. Op. cit. p. 307.
35 Disponvel em: <http://www.uniset.ca/other/ths/11ER735.html>. Acesso em 19 de
novembro de 2014.
36 NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e
brasileiro. 2 ed. Salvador: Jus Podivm, p. 132.

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A HISTRIA DO PRECEDENTE VINCULANTE NA INGLATERRA

a deciso do tribunal irlands. A House of Lordes aplicou, no caso


Beamish, a ratio decidendi de seu precedente anterior, qual seja, o
casamento s vlido se celebrado por um clrigo e estabeleceu
que as suas decises so vinculantes para ela prpria e para os
demais tribunais inferiores.
Quase quarenta anos depois, no julgamento do emblemtico
caso London Tramways Co. v. London Counti Council (1898), a
House of Lords reafirmou a necessidade de vincular-se aos seus
prprios precedentes e patenteou sua eficcia externa em relao
as demais cortes inferiores37, porm f-lo de forma mais radical,
na medida em que estabeleceu a absoluta indiscutibilidade de sua
deciso pretrita, a qual no poderia, em hiptese alguma, ser revista
por ela prpria, ainda que o tribunal ulteriormente considere-a
equivocada ou mal decidida.
O stare decisis, como se observa, possui uma acepo
horizontal e outra vertical. A primeira, o stare decisis horizontal,
preconiza a vinculao do tribunal s suas prprias decises
(autoprecedente), cujo fundamento repousa na manuteno da
integridade do sistema jurdico. Uma corte que, sobre uma mesma
questo, mudasse de opinio com frequncia teria bem escasso
respeito e aviltaria o princpio da igualdade dos cidados perante
a lei, o que justifica o reconhecimento de um grau elevado de fora
do autoprecedente ou, at mesmo, de um vnculo formal da corte
para seguir os seus prprios precedentes.38
O stare decisis vertical, por seu turno, estatui a necessidade
dos tribunais e juzes aplicarem os precedentes das cortes que lhes
so hierarquicamente superiores, e se pauta na ideia de unidade
institucional e na hierarquia do Poder Judicirio e, ainda, na
autoridade e no respeito do rgo jurisdicional prolator da deciso,
os quais se relacionam posio hierrquica do rgo: quanto mais
elevado o grau da corte que emite o precedente, mais respeitveis
so as suas decises.39

37 CRUZ E TUCCI. Op. cit., p.161.


38 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudncia. Revista de Processo. So Paulo, vol.
199, set/2011, p. 203.
39 TARUFFO, Michele. Ibidem.

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Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

A coercibilidade extrema interna dos precedentes da House


of Lords (stare decisis horizontal) somente foi atenuada em 1966,
com a edio do Practice Statement40, que foi um importante
pronunciamento feito pela House, verbis:
Judgment - Judicial decision as authority - Stare decisis - House of
Lords - Freedom of House of Lords to depart from their previous
decisions where right to do so - Doctrine of precedent nevertheless
an indispensable foundation of decisions of law.
Before judgments were given in the House of Lords on July 26,
1966, LORD GARDINER, L.C., made the following statement on
behalf of himself and the Lords of Appeal in Ordinary:
Their Lordships regard the use of precedent as an indispensable
foundation upon which to decide what is the law and its application
to individual cases. It provides at least some degree of certainty upon
which individuals can rely in the conduct of their affairs, as well as
a basis for orderly development of legal rules.
Their Lordships nevertheless recognise that too rigid adherence to
precedent may lead to injustice in a particular case and also unduly
restrict the proper development of the law. They propose therefore to
modify their present practice and, while treating former decisions of
this House as normally binding, to depart from a previous decision
when it appears right to do so.
In this connection they will bear in mind the danger of disturbing
retrospectively the basis on which contracts, settlements of property
and fiscal arrangements have been entered into and also the especial
need for certainty as to the criminal law.
This announcement is not intended to affect the use of precedent
elsewhere than in this House.
Como se v, a flexibilizao da fora absolutamente vincu-
lante, ou da aderncia muito rgida, ao precedente ingls deu-se com
o escopo primrio de evitar a realizao de injustias e de permitir
o desenvolvimento do direito. Preservou-se, contudo, no direito
ingls, com boa dose de rigidez, a ideia de respeito aos precedentes,
ainda que sua ratio no seja aprovada pelos juzes da corte que
o prolatou e pelos demais tribunais inferiores, porque a regra do
stare decisis no pode ser aplicada apenas em relao s decises

40 Disponvel em: <http://www.lawteacher.net/PDF/Practice%20Statement%20


%5B1966%5D.pdf>. Acesso em 20 de novembro de 2014.

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 295 - 316, jul./dez. 2015 311
A HISTRIA DO PRECEDENTE VINCULANTE NA INGLATERRA

boas ou justas, pois, se assim fosse, no teria qualquer valor


ou significado.41 como a ideia de aplicar a lei na civil law, mesmo
que nem sempre o juiz concorde com ela.42
O common law ingls se desenvolveu, portanto, a partir
de precedentes vinculantes (binding precedents), que devem ser
obrigatoriamente seguidos por todas as cortes inferiores, muito
embora sejam passveis de modificao pela House of Lords.
O funcionamento de tal sistema ocorre da seguinte maneira:
quando um ponto de direito fixado pelo tribunal em um caso
concreto, ele se converte, de imediato, em uma norma que deve
ser compulsoriamente acatada em demandas semelhantes pelas
cortes inferiores e pelo rgo que proclamou, salvo em hiptese de
revogao por esse ltimo. Assim, em um novo litgio judicial, o
magistrado dever, primeiramente, identificar os fatos relevantes e a
questo legal a ser enfrentada. Em seguida, buscar um precedente
que trate do mesmo problema jurdico e no qual se constate que a
discusso se baseou em uma situao de fato semelhante, hiptese
em que o precedente e a nova causa sero considerados anlogos e,
por conseguinte, em que ser obrigatria a aplicao da concluso
do julgado anterior.43
Neste diapaso, pode-se dizer, com CAIO MRCIO
GUTTERRES TARANTO, que o stare decisis consubstancia uma
doutrina que sistematiza os precedentes no centro da common
law atravs da extrao da ratio decidendi e das obter dicta para a
incidncia indedutiva em casos posteriores; despoja os precedentes
de carter absoluto e consagra um gnero de mtodos de deciso
voltados para a alterao das orientaes jurisprudenciais em um
contexto de produo judicial do direito (judge make-law), como
o distinguishing, o overruling e o reversal, denominados judicial
departures.44

41 BARBOZA, Estefnia Maria de Queiroz. Op. cit., p. 207.


42 Ibidem.
43 MELLO, Patrcia Perrone Campos. Op. cit., p. 23.
44 TARANTO, Caio Mrcio Gutteres. Precedente judicial: autoridade e aplicao na
jurisdio constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 144-145.

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Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

Os judicial departures so casos especiais de afastamento


de uma regra ou de um princpio inscrito em uma deciso pretrita,
desenvolvidos dentro da teoria dos precedentes e que so plenamente
compatveis com a doutrina do stare decisis.
O overruling consiste em uma tcnica de deciso judicial
adotada em carter excepcional no common law ingls, por meio
da qual o tribunal promove a revogao da regra ou princpio geral
contido no precedente anterior, em razo da elaborao de um
juzo negativo sobre a sua ratio decidendi.45 O precedente anterior,
por sua vez, estar em condies de ser superado quando deixar
de corresponder aos padres de congruncia social (quando passa
a negar as proposies morais, polticas e de experincia) ou de
consistncia sistmica (quando ele no guarda coerncia com outras
decises).46
O distinguishing uma tcnica de deciso por meio da qual
o tribunal demonstra a inaplicabilidade do precedente anterior
invocado, supostamente aplicvel ao caso apreciado, por vislumbrar
a existncia de peculiaridades fticas ou jurdicas de justificam a
aplicao da regra jurisprudencial prevista em outro law-case ou a
criao de uma nova tese jurdica (ratio decidendi) mais apropriada
soluo do caso ante as suas especificidades.
Em poucas palavras, o que diferencia o distinguishing do
overruling que, no primeiro, o afastamento do precedente no
implica seu abandono ou seja, sua validade como norma universal
no e infirmada -, mas apenas sua no aplicao em determinado
caso concreto, seja por meio da criao de uma exceo norma
adscrita estabelecida na deciso judicial ou de um interpretao
restritiva desta norma, com o objetivo de excluir suas consequncias
para quaisquer outros fatos no expressamente compreendidos em
sua hiptese de incidncia.47

45 ROSITO, Francisco. Op. cit., p. 304.


46 EINSENBERG, Melvin. The nature of the common law. Cambridge: Harvard
University Press, 1988, p. 104-105.
47 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificao e
a aplicao de regras jurisprudenciais. So Paulo: Noeses, 2012, p. 470.

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A HISTRIA DO PRECEDENTE VINCULANTE NA INGLATERRA

IV. CONSIDERAES FINAIS

O precedente judicial um valor em si, sendo algo


indispensvel para que se assegure a unidade do direito e uma
ordem jurdica coerente, requisitos essenciais para a racionalidade
do sistema.48 A unidade do direito , pois, resultado de um sistema
de precedentes obrigatrios que reflete a coerncia da ordem jurdica
e viabiliza a previsibilidade das respostas jurdicas e o tratamento
uniforme de casos similares.
Na dogmtica da teoria dos precedentes, o instituto do stare
decisis foi e ainda fundamental para a manuteno da integridade,
da unidade, da coerncia e da previsibilidade do sistema jurdico
ingls49, o que, inclusive, tornou desnecessria a edio solene de
uma constituio escrita, nos moldes em que sucedeu inicialmente
nos Estados Unidos e, depois, em praticamente todos os pases do
Ocidente, notadamente aqueles de tradio da famlia do civil law.
Como demonstrado, a doutrina do stare decisis crucial,
em verdade, para a concretizao do prprio Estado de Direito,
porquanto promove, em ltima anlise, os valores supremos da
justia e da segurana jurdica e, ainda, funciona como um importante
e indispensvel instrumento de conteno da discricionariedade e,
eventualmente, do arbtrio judicial, contribuindo, assim, para a
harmonizao entre os poderes estatais.
Alm disso, o stare decisis convive harmoniosamente com as
tcnicas do distinguishing e do overruling, cuja aplicao essencial
para o desenvolvimento do direito e para a adoo de solues
justas para os case-law, de acordo com suas eventuais peculiaridades
ftico-jurdicas.

48 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 32.


49 E, porque no dizer, de todos os sistemas jurdicos existentes em um Estados de Direito.

314 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 295 - 316, jul./dez. 2015
Guilherme Bacelar Patrcio de Assis

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Recebido em 15/04/2015.

Aprovado em 03/09/2015.

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