Os Limites ao Poder Intervencionista da CVM
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Os Limites ao Poder Intervencionista da CVM - Muriel Waksman
I. SOBRE O TEMA A SER DESENVOLVIDO
O título do presente livro é Os Limites ao Poder Intervencionista da CVM
. O tema a ser tratado envolve o desenvolvimento do mercado de valores mobiliários brasileiro e o poder da CVM em intervir nas ações e decisões das companhias, com base em suas influências e sua história.
O desenvolvimento do mercado de valores mobiliários brasileiro nos últimos anos envolve, necessariamente, o aumento da amplitude de atuação da CVM no seu dia-a-dia, no âmbito de suas atividades fiscalizadoras e reguladoras. Neste sentido, reparou-se que a atuação da autarquia, foi, com o passar dos anos, cada vez mais proativa, em função da importância dada ao mercado de valores mobiliários e da necessidade de proteção dos seus investidores.
O tema de pesquisa possui, como pontos principais, a análise da competência da CVM sob a perspectiva da regulação econômica e da influência do mercado de capitais norte-americano. Neste sentido, pretende-se analisar a estrutura de poderes do mercado mobiliário brasileiro, com base no poder intervencionista da CVM nas empresas, assim como a história da agência reguladora que lhe deu origem, a SEC.
Em vista do tema proposto, a pesquisa será realizada sobre três panos de fundo: (1) as formas de regulação e intervenção do Estado na economia dos países; (2) a atuação das agências reguladoras em estudo no presente trabalho, quais sejam, a CVM e a SEC; e (3) o estudo dos principais motivos pelos quais se percebe que há diversas diferenças entre os mercados de capitais brasileiro e norte-americano, desde a diferença histórica (Common Law e Civil Law) até os transplantes jurídicos.
O primeiro capítulo desenvolvido para o presente trabalho envolve o estudo e a confirmação dos termos intervencionismo
e poder intervencionista
e a sua relação com o presente trabalho, na medida em que um dos focos, aqui, será a presença do Estado na economia (regulação).
O segundo capítulo foi desenvolvido de forma a analisar-se as formas de interpretação (hermenêutica jurídica) disponíveis para que possamos partir ao exame dos sistemas regulatórios dos mercados de capitais brasileiro e norte-americano. Desta forma, ao definir-se a maneira de se interpretar os diferentes sistemas jurídicos, pode-se partir à análise específica de cada um deles.
O terceiro capítulo envolve uma breve comparação da base de referidos sistemas jurídicos – a forma de utilização das fontes do Direito e o consequente funcionamento de cada sistema separadamente. Neste sentido, far-se-á breves comentários das principais diferenças entre os sistemas de Common Law e Civil Law, adotados nos EUA e no Brasil, respectivamente, para que se possa começar a entender as principais dificuldades das influências do primeiro no mercado de capitais do último.
O quarto capítulo pretende dissecar a forma de intervenção do governo nas economias e nos mercados de capitais ao redor do mundo, por meio do estudo da regulação. Neste sentido, far-se-á considerações a respeito do surgimento dos sistemas regulatórios, o seu histórico nos EUA, as razões de implementação de um sistema regulatório (falhas de mercado), o papel da regulação no dia-a-dia dos indivíduos (num sentido econômico), as principais teorias que envolvem a regulação econômica e suas alternativas.
O quinto capítulo analisa de forma pontual os pontos históricos e as principais mudanças políticas e socioeconômicas ocorridas no mercado de capitais norte-americano. Neste capítulo, não se pretende esgotar todos os aspectos do mercado de valores mobiliários dos EUA, mas, sim, faz-se uma análise dos principais pontos de diferença com relação ao mercado brasileiro.
O sexto capítulo é marcado pelo estudo do mercado de capitais do Brasil, suas origens, principais características e evolução ao longo dos anos. Neste sentido, pretende-se, ao final de referido capítulo, realizar uma análise das maiores diferenças encontradas entre os mercados de valores mobiliários brasileiro e norte-americano.
Por fim, o sétimo e último capítulo envolve o estudo pontual dos transplantes legais que tanto influenciam os sistemas jurídicos ao redor do mundo. Desta forma, almeja-se concluir o presente trabalho, tendo-se em vista as justificativas dadas anteriormente à dificuldade da implantação de um sistema jurídico como o da SEC no Brasil (transplante jurídico).
II. INTERVENCIONISMO
Como ponto de partida do presente trabalho, foi sugerida a digressão a respeito do significado e sentido da palavra intervencionismo
, quando aqui se fala em poder intervencionista da CVM. Intervenção, por si, é um alvará emitido separada e individualmente por uma autoridade pública que represente o poder estatal, tendo referida autorização ou ordem a consequência de obrigar e vincular as pessoas físicas e jurídicas de um sistema legal de determinada forma. A ordem emitida pelo agente intervencionista advém necessariamente de uma fonte governamental, ou de entidade que tenha autorização governamental para prosseguir desta ou daquela maneira (como se a ordem tivesse sido realizada pelo próprio governo em favor de prática já aprovada no país).
Neste sentido, o agente intervencionista é um representante do governo, o qual, perante determinada transgressão gerada dentro de um meio socioeconômico, possui o poder de intervir na sequência dos eventos, de forma a influenciar a produção de um resultado diferente do que seria produzido (e não esperado com base na transgressão original). ² Isto quer dizer que o agente intervencionista, cujos poderes de atuação lhes foram delegados por algum ente governamental, possui a prerrogativa de atuar contra alguns fatos e atos jurídicos que estejam em contraste com o sistema jurídico, de forma a reforçar a proteção deste.
Não se faz necessária a constatação de um excesso quando da intervenção estatal (ou seja, a intervenção não ocorre apenas quando há algum abuso por parte de pessoas físicas ou jurídicas em uma sociedade), sendo que a intervenção pode ocorrer simplesmente para estabelecer regras de convivência dentro de uma sociedade e, ainda, evitar transgressões. Todavia, a intervenção e a atividade intervencionista do Estado estão geralmente associadas a uma atuação positiva governamental que tem efeitos negativos com relação aos súditos
– os quais são obrigados e vinculados a determinadas regras.
Desta forma, intervir em um setor da economia, como o mercado de capitais, é uma ferramenta através da qual se obriga o acionista, o empresário, o administrador, etc., a empregar os meios de produção disponíveis no mercado da forma determinada pelo Estado. Consequentemente, o intervencionismo é o instrumento por meio do qual o governo interfere no próprio funcionamento do mercado por meio de ações isoladas, emitindo ordens e proibições
³.
A ideia de intervenção (e, portanto, de regulação) envolvem a concepção de que o ser humano possui uma tendência ao abuso do poder – mais ainda, o homem está sempre tentado a abusar do poder. Desta forma, para frear abusos mais graves e maiores, é necessário que haja um freio implementado por um poder, ou seja, constituição e leis para impedir a concretização da tendência humana.⁴
Entretanto, os próprios conceitos de mercado e intervenção (autoridade) parecem ser, em uma análise superficial, dúbios e contraditórios. Isto, por que a ideia (simplista) de mercado advém de algo que enseja liberdade a seus agentes, os quais buscam a liberdade de atuação de forma a possibilitar uma estrutura de competição mais desenfreada, com menores limitações; diferentemente, a intervenção sugeriria justamente o oposto – os agentes governamentais atuam de forma a impor limitações aos atos praticados no âmbito dos mercados, de forma prevenir distúrbios econômicos e tentar tornar o ambiente mais justo
. Novamente, esta ideia trata-se de uma visão simplista dos fatos, pois, conforme veremos na sequência, a existência de um mercado saudável envolve, necessariamente, algum tipo de grau de intervenção.
Para Ludwig von Mises, dentre outros, o intervencionismo seria um obstáculo ao sistema econômico – constituiria uma medida de exploração das pessoas, por meio da qual poucos obtém privilégios e a maioria mantém seu status limitado, só tendo a perder com a intervenção⁵. Os sistemas de liberdades naturais
e o mercantilismo propostos por Adam Smith, por exemplo, demonstram cenários em que a maior intervenção estatal na economia poderia resultar em prejuízos ao mercado e à sociedade. Da mesma forma, economistas mais antigos, como o francês Jean-Baptiste Say, em suas respectivas teorias, encontramos uma crítica ao intervencionismo do Estado na economia. Em uma linha de pensamento parecida, a teoria de Marx poderia ser analisada sob a perspectiva de que a mera intervenção estatal na economia e no mercado não seria suficiente para melhorar a vida das pessoas – a reformulação do Estado em si seria o cenário mais ideal e propenso ao desenvolvimento social.
Diferentemente do acima disposto, outros doutrinadores, como Ronald Coase⁶, acolheram mais facilmente a ideia do intervencionismo governamental na economia. A teoria apresentada por Coase envolve a presença de intervenção estatal (fraca, mas existente) como um fator viabilizador do mercado e de seu desenvolvimento, sendo que a presença do Estado existiria para corrigir externalidades negativas mercadológicas⁷. Desta forma, o intervencionismo do governo serviria, mesmo que de forma secundária, como uma maneira de limitação aos custos de transação desproporcionais envolvidos na existência das externalidades negativas que afetam a eficiência econômica (o Teorema de Coase é discutido em maiores detalhes no Capítulo VIII).
A disciplina de Law and Economics, neste sentido, mostra que há necessidade de o governo e suas instituições compreenderem o contexto da economia de mercado e seu desenvolvimento para melhor gerir seu funcionamento e suas normas. Com a globalização, o Estado passa a intervir na economia de mercado em função da organização da vida econômica, social e política, sendo que o intervencionismo passa a ser um aspecto determinante da própria dimensão do Estado e do limite de seus poderes⁸.
Portanto, a análise de Law and Economics resulta na reformulação da estrutura governamental, baseada em um modelo de Estado regulador que deixa de ter como seu foco principal o monopólio estatal e a intervenção direta na economia dos países para adotar um modelo de regulação focado na eficiência do mercado e de seus agentes.
O termo Estado regulador
pode ser entendido como sinônimo de Estado social ou de Estado intervencionista – neste sentido, adota-se um conceito mais amplo de Estado regulador e regulação de mercado⁹. No presente trabalho, a intervenção do Estado no mercado de capitais brasileiro é realizada pela CVM, sendo que, nos EUA, referido intervencionismo é realizado pela SEC, órgão federal especializado, conforme veremos mais adiante.
O intervencionismo influenciou o surgimento do Estado regulador, o qual deixa de atuar de forma direta e extravagante no mercado, passando a utilizar-se das conhecidas agências reguladoras como forma de manutenção de seu poder, ainda que de forma indireta, na economia. Desta forma, o poder intervencionista de uma agência reguladora envolve, necessariamente, o poder indiretamente exercido pelo governo. E, assim como todos os poderes, há limites estabelecidos a cada tipo de atividade reguladora.
2 Intervening Agency. To render an original wrong a remote cause, an ‘intervening agency’ must be independent of such wrong, adequate to produce the injury, so interrupting the natural sequence of events as to produce a result different from what would have been produced, and one that could not have been reasonably expected from the original wrong
In BLACK, Henry Campbell. Black’s Law Dictionary. Saint Paul: Editorial Staff, 1933. P. 1519.
3 MISES, Ludwig von. Intervencionismo: uma Análise Econômica. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. Pp. 28 e 29.
4 Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer. (...) A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem.
In MONTESQUIEU.O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. 166.
5 MISES, Ludwig von. Op. cit. P. 101.
6 COASE, Ronald H. The New Institutional Economics In Source: The American Economic Review, Vol. 88, No. 2, Papers and Proceedings of the Hundred and Tenth Annual Meeting of the American Economic Association (1998).
7 ZYLBERSZTAJN, Decio. SZTAJN, Rachel (Org.). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2005. P. 97.
8 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros, ٢٠١٢. Pp. ١٨٥ e ١٨٦.
9 MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador do Brasil, Eficiência e Legitimidade. São Paulo: Singular, 2006. P. 41.
III. LIMITES DE INTERPRETAÇÃO: HERMENÊUTICA
Antes de dar-se início à análise das diferenças entre os sistemas jurídicos adotados no Brasil e nos EUA, assim como repassar os formatos de regulação dos respectivos mercados de capitais, é importante repassarmos alguns aspectos importantes as formas de expressão e interpretação do Direito, para facilitar a melhor compreensão das principais e mais latentes diferenças entre as regulações de referidos países.
3.1 Conceito de Hermenêutica
A hermenêutica possui, como objetivo, disciplinar e sistematizar os processos do Direito, de forma a melhor explicar o seu sentido e os limites envolvidos em seus postulados¹⁰. É uma parte da ciência jurídica que estuda os processos para a realização da melhor e mais clara forma de interpretação do Direito (compreensão de determinada relação jurídica, por meio da percepção da norma estabelecida pelo legislador). Desta forma, a interpretação jurídica por meio do processo hermenêutico não é necessariamente restrita aos termos da lei, pois é limitada à expressão e aos procedimentos em gerais do Direito.¹¹
Teoricamente, o significado de um enunciado jurídico pode ser compreendido com base no seu conteúdo conceitual, desde que seja pressuposta a existência de um significado intrínseco, independentemente de sua interpretação. Ou seja, quando os postulados apresentam o respectivo conteúdo de forma direta e clara, o papel da hermenêutica pode ser desnecessário. Todavia, esse cenário acaba por funcionar apenas na teoria, pois, diversas vezes, o significado dos enunciados legais não é necessária e obrigatoriamente intrínseco e incorporado ao conteúdo das palavras, dependendo do seu uso e de sua interpretação pela comunidade jurídica.
Exemplificativamente: a complexidade envolvida em um processo legislativo é grande, em vista da submissão dos projetos a um conjunto de indivíduos, e não apenas a um único legislador – portanto, a intenção do legislador
(mencionado de forma usual no singular) não pode ser claramente fundada no texto. A interpretação de uma lei é um passo obrigatório de continuidade do processo legislativo: um texto legal não existe por si só, sendo necessário a interpretação legal para, muitas vezes, esclarecer a decisão tomada pelo legislador para determinadas situações. ¹²
Interpretar quer dizer construir e, até mesmo, reconstruir, a partir de algum conceito predefinido através da manipulação da linguagem; a função do intérprete, muitas vezes, não é meramente discricionária (descrever significados), mas envolve também a reconstrução dos sentidos, por meio da realização de conexões sintáticas e semânticas às circunstâncias do caso a ser julgado¹³. Portanto, a mera releitura ou repasse do texto não é suficiente no que se refere à hermenêutica jurídica.
Os intérpretes da lei podem ter maior ou menor liberdade quando analisam determinada norma – depende do sistema interpretativo utilizado em cada caso. Neste sentido, há três conjuntos distintos de regras interpretativas: (i) regras legais, que, quando forem mais claras, não precisam ser interpretadas, ou, ainda, que são omissas ou, até mesmo, defeituosas, devendo-se utilizar analogias, costumes e princípios gerais de direito para interpretação do que não é acertado¹⁴; (ii) regras científicas, as quais são utilizadas pela doutrina e acatadas como máximas não questionadas¹⁵; e (iii) regras da jurisprudência, formadas a partir da análise casuística da legislação.
O processo de interpretação como um todo envolve diversos passos a serem seguidos pelo intérprete. De acordo com Dworkin, a interpretação construtiva precisa ser apurada, transformada em um instrumento apropriado ao estudo do direito enquanto prática social. Haveria três etapas de interpretação – a primeira, a pré interpretativa, na qual se identifica as regras e os padrões gerais que determinam e definem os atos praticados pelos indivíduos. Nesta etapa, há necessidade de se ter um alto grau de consenso, de forma que a atividade interpretativa dê frutos, ou seja: que os padrões interpretativos fiquem esclarecidos a todos, de forma que as regras possam ser posteriormente aplicadas à prática. A segunda etapa, propriamente dita, interpretativa, é a fase em que o intérprete se concentra em uma justificativa geral para os principais elementos da prática identificada na etapa pré interpretativa – a partir disso, o intérprete será alguém que compreende a prática estabelecida, não um inventor de uma nova prática. Por fim, a terceira etapa, pós interpretativa ou reformuladora, é a fase em que se ajusta a ideia daquilo que a prática de fato requer para melhor servir à justificativa aceita na etapa interpretativa.¹⁶
Em vista do acima disposto, a hermenêutica envolve a interpretação e a criação de normas jurídicas. O conceito de norma é um dos conceitos fundamentais da Ciência do Direito, de uso corrente e coloquial, assim como os demais termos a ele relacionados