Pêcheux - Remontemos de Foucault A Espinoza
Pêcheux - Remontemos de Foucault A Espinoza
Pêcheux - Remontemos de Foucault A Espinoza
Lngua, ideologia e discurso: nem Marx, nem Lnin, nem nenhum desses que se
costuma chamar de os clssicos do marxismo produziu qualquer estudo politicamente
organizado sobre esse assunto. De fato, os pensadores polticos do marxismo-leninismo
detiveram-se, nessa questo, em apontamentos de ordem muito geral (por exemplo,
naquilo que podemos encontrar em Gramsci), de sorte que, depois de Voloshnov at os
nossos dias, pode-se dizer que essa questo foi, e permanece sendo, essencialmente,
objeto dos universitrios progressistas (poucos lingistas, e, sobretudo, dos
historiadores e dos filsofos). o caso hoje, na Frana, onde se tem falado de uma
escola francesa de anlise do discurso, como um novo domnio de pesquisa
universitria.
Para mim, toda a questo se concentra, aqui, sobre a relao entre prtica poltica e
prtica universitria: o momento de perceber que o termo universidade tem tudo a
ver com o termo universalidade, no sentido de generalidade abstrata inutilizvel. Eu
coloco essa questo, sem me excluir daqueles a quem me dirijo: estamos certos de que,
com a anlise do discurso, ns no estamos, uma vez mais, na presena de alguma
coisa que, sobre o terreno particular da linguagem, assemelha-se a uma dialtica
universal que tem a propriedade, particularmente universitria, de produzir sua prpria
matria?
Portanto, as questes abordadas situam-se constantemente no nvel prtico: restringe-se
a pensar no que se passa no trabalho poltico sobre os textos (atravs da sua redao, sua
leitura, sua discusso, etc.): no se v imediatamente aparecerem as interrogaes sobre
o sentido daquilo que dito ou escrito, subjacente s proposies de retificao,
(1)
de propsito da
(3)
NOTA DA TRADUTORA: M. Pcheux refere-se ao seu livro Les Vrits de La Palice (Semntica e
Discurso). No mesmo ano em que escreveu Remontemos... , Pcheux volta a esta questo das correntes da
lingstica no artigo escrito em coautoria com F. Gadet, cujo ttulo H uma via para a lingstica fora
do logicismo e do sociologismo?. Escritos 3. LABEURB, UNICAMP, 1999.
(4)
NOTA DA TRADUTORA: Pcheux usa aqui a palavra feinte, que tanto pode significar esgrima
como fingimento, mscara.
afrontamento dialgico, que autoriza, por sua vez, uma teoria conflitual da
histria como duelo-dual (duel) e uma dissoluo da histria no dueto-dual
(duo)(6).
O materialismo histrico a base da cincia das relaes sociais, essncia concreta do homem. (L.
Sve, Marxismo e teoria da personalidade. Paris: Ed. Sociales, 1969, p. 174).
(6)
NOTA DA TRADUTORA: Pcheux faz um jogo de palavras com duel (que significa tanto duelo
quanto dual) e duo (que significa dueto ou dual): une thorie de lhistoire comme duel et une
dissolution de lhistoire dans le duo (1990, p. 248).
sobre esse ponto que eu gostaria de propor algumas reflexes, sem pretender que elas
realizem a mudana de terreno em questo: j me darei por satisfeito se elas
contriburem para mostrar a sua possibilidade e precisar algumas de suas condies.
Para isso, farei um novo percurso em torno do marxismo, para interrogar aquilo que
podemos chamar o trabalho das origens a propsito da questo que nos ocupa: essa
trajetria passa por dois filsofos no-marxistas, mas nos quais o no-marxismo um
pouco diferente, j que a teoria marxista estava nos limbos da histria no caso do
primeiro, desculpa que no existe no caso do segundo. Trata-se de dois espritos fortes,
apaixonados pela luta material entre as idias, dois herticos obstinados, em que o
primeiro terminou proscrito, banido pelos dirigentes de sua comunidade que no haviam
entendido muito bem aonde ele queria chegar; quanto ao segundo, que no pra de
(7)
Para os reformistas (mesmo que eles se declarem marxistas), no a luta de classes que est no
primeiro plano: so as classes... as classes existem antes da luta de classes, independentemente da luta
de classes e a luta de classes existe somente depois. (L. Althusser. Resposta a John Lewis. Paris:
Maspero, 1973, p. 28-29). Althusser acrescenta: A tese marxista-leninista, ao contrrio, coloca a luta de
classes no primeiro plano. Filosoficamente, isso significa: ela afirma o primado da contradio sobre os
contrrios que se afrontam, que se opem. (idem).
O primeiro ponto concerne relao com a lingstica ou aquilo que h em seu lugar.
No Tratado, Spinoza aborda a questo da interpretao dos textos sagrados e procura
determinar as condies sob as quais eles foram, ou no, desviados de seu sentido
primitivo, desviados ou no de sua funo primeira pelo aparelho religioso. Isso o
conduz a distinguir lngua e discurso, na terminologia de seu tempo (captulo XII, Da
interpretao das escrituras):
A pessoa no tem jamais proveito em mudar o sentido de uma palavra, ao passo que
tem freqentemente proveito ao mudar o sentido de um texto.
Spinoza expe as razes pelas quais a primeira operao , para ele, dificilmente
realizvel: todos os autores que empregaram tal palavra em tal sentido seguiram seu
natural e seu pensamento; ele acrescenta que, como o tesouro da lngua propriedade
tanto do povo quanto dos eruditos, pouco provvel que os sbios mudem (isto ,
corrompam) a significao das palavras; ao contrrio, eles mudam o sentido de certos
textos. Spinoza conclui:
(8)
NOTA DA TRADUTORA: Pcheux utiliza a palavra rver, que significa, tambm, delirar.
Por todas essas razes ns nos convencemos de que uma pessoa no corrompe uma
lngua, ao passo que possvel corromper o pensamento de um escritor, mudando o
texto ou o interpretando mal.
De sua parte, Michel Foucault comenta a relao entre o estudo lingstico e o trabalho
arqueolgico sobre os conjuntos de textos, afirmando:
Mesmo que ela tenha desaparecido h muito tempo, mesmo que ningum fale mais e
que tenha sido restaurada a partir de raros fragmentos, uma lngua constitui sempre
um sistema para enunciados possveis um conjunto finito de regras que autoriza um
nmero infinito de desempenhos. O campo dos acontecimentos discursivos, em
compensao, o conjunto sempre finito e efetivamente limitado das nicas seqncias
lingsticas que tenham sido formuladas; elas bem podem ser inumerveis e podem, por
sua massa, ultrapassar toda capacidade de registro, de memria ou de leitura; elas
constituem, entretanto, um conjunto finito. Eis a questo que a anlise da lngua coloca
a propsito de qualquer fato de discurso: segundo que regras um enunciado foi
construdo e, conseqentemente, segundo que regras outros enunciados semelhantes
poderiam ser construdos? A descrio de acontecimentos do discurso coloca uma
outra questo bem diferente: como pareceu um determinado enunciado, e no outro em
seu lugar?(9)
FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1986, pg. 30-31.
que Moiss, em muitas passagens, ensina muito claramente que Deus no tem nenhuma
semelhana com as coisas visveis que habitam o cu, a terra e a gua, ns devemos
concluir que essa fala em particular ou todas aquelas do mesmo gnero devem ser
compreendidas como metforas; e, se ele descarta, assim, a possibilidade do sentido
literal, necessrio pesquisar se essa fala em particular - Deus um fogo- admite
um sentido outro que o sentido literal, isto , se a palavra fogo significa outra coisa
que o sentido literal.
Como a palavra fogo se toma tambm por clera e por cime, inveja, fcil de
conciliar entre elas as frases de Moiss e ns chegaremos legitimamente concluso de
que essas duas proposies Deus fogo e Deus invejoso so uma e s
enunciao.
conceitos, as escolhas temticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, uma
correlao, posies e funcionamentos, transformaes) diremos, por conveno, que
se trata de uma formao discursiva. (1990, p. 43)
Um indivduo, um s e mesmo indivduo, pode ocupar, a cada vez, em uma mesma srie
de enunciados, diferentes posies e desempenhar o papel de diferentes sujeitos.
Quarto e ltimo ponto, sobre aquilo que se pode chamar de regime de materialidade
do imaginrio. Spinoza explica que narrativas muito semelhantes podem aparecer em
livros diferentes, sob formas desfiguradas e irreconhecveis. Sobre a questo do discurso
proftico, ele indica (cap. II, Os profetas):
Em outros termos, Deus no tem um estilo prprio: pela boca dos profetas, ele fala
diferentemente a mesma coisa; ele pode tambm designar coisas diferentes por meio das
mesmas palavras.
De sua parte, Foucault aborda essa questo da identidade e da diviso do sentido, por
um caminho completamente diferente:
A dupla leitura, muito brusca(10), que eu venho efetuando, pode levar a pensar (e isso
ser justo) que, no fundo, Spinoza e Foucault procedem, diante dos textos, da mesma
maneira, a despeito das diferenas terminolgicas e dos meios tcnicos
evidentemente, e tambm tendo em conta aquilo que se pode chamar as aderncias
antropolgicas de Spinoza (sobre o sentido literal das palavras, sobre o autor, etc) que
constituem, para o pensamento materialista atual, espcies de ingenuidades.
Mas as ingenuidades de um homem como Spinoza so paradoxais: pois pode-se dizer
que com os meios tericos de seu tempo, Spinoza avana l onde Foucault permanece,
hoje em dia, um pouco bloqueado(11): para alm
(10)
NOTA DA TRADUTORA: Pcheux usa a palavra cavalire, que tem dois sentidos: brusca ou
cavalheira. H ironia, tanto que D. Maldidier (Re-ler...) utiliza essa mesma expresso quando comenta
essa leitura que Pcheux faz de Foucault.
(11)
Eu assinalo sobre esse ponto o excelente estudo crtico de Dominique Lecourt sobre a Arqueologia do
Saber, publicado em La Pense, em agosto de 1970, n 152, p. 69-87, republicado em Pour une critique
Em um entrevista recente, Foucault desvela parcialmente essa ligao, ao propor uma lgica que se
libertar dos constituintes esterilizantes da dialtica: Para pensar o liame o social, o pensamento poltico
burgus do sc. XVIII estabelece a forma jurdica do contrato. Para pensar a luta, o pensamento
revolucionrio do sc. XIX estabelece a forma lgica da contradio: e aqui, sem dvida, no se faz
melhor do que l. Em conseqncia, os grandes estados do sc. XIX estabelecem um pensamento
estratgico, por isso as lutas revolucionrias pensaram sua estratgia de um maneira muito conjuntural, e
ensaiam hoje inscreverem-se sobre o horizonte da contradio. E Foucault prossegue um pouco mais:
Parece-me que toda essa intimidao que visa ao medo da reforma est ligada insuficincia de uma
anlise estratgica prpria luta poltica luta no campo do poder poltico. Este me parece ser,
justamente, o papel da teoria hoje: no de reformular a sistematicidade global que coloca tudo em causa;
mas analisar a especificidade dos mecanismos de poder, descobrir as ligaes, as extenses, edificando,
Vejamos o que significa o fato de nem todos os crticos acolherem Foucault como um
universitrio crtico. Isso no ofusca o imenso interesse de seus trabalhos, nos quais o
marxismo-leninismo pode encontrar surpreendentes objetos de reflexo: pela sua
maneira de fazer falarem os textos. Foucault descortina a possibilidade de uma anlise
desses regimes de materialidade do imaginrio de que j falei anteriormente; ele est
muito prximo dos interesses do marxismo-leninismo e nisso constitui, justamente, a
contradio prpria de Foucault, invisvel e sem dvida insupervel para ele.
No se trata, portanto, de se desembaraar de Foucault, acentuando a pecha reformista
qual ele parece conduzir; trata-se mais de desenvolver a categoria marxista-leninista de
contradio no sentido da apropriao, para a teoria e a prtica do Movimento operrio,
daquilo que o trabalho de Foucault contm de materialista e de revolucionrio.
Eu posso apenas (nos limites do tempo que aqui possuo) avanar algumas hipteses
nessa perspectiva.
O ponto decisivo me parece ser o de tornar capaz de pensar a unidade dividida das duas
teses seguintes:
1. Em todo modo de produo regido pela luta de classes, a ideologia dominante
(ideologia da classe dominante) domina as duas classes antagonistas;
2. A luta de classes o motor da histria, e produz a histria da luta ideolgica das
classes
pouco a pouco, um saber estratgico. (Poderes e estratgias. Entrevista com Michel Foucault. Revista
Revoltes Logiques, n 4, p. 96-97, 1977, Paris.)
(13)
Este ponto est desenvolvido em um recente texto de Althusser intitulado Soutenance dAmiens,
publicado na coletnea Positions. Paris: Editions Sociales, 1976, particularmente nas pg. 148-149.
15
a primeira interveno de MP na Amrica Latina. Depois, ele foi vrias vezes ao Mxico e ao Brasil,
onde seus trabalhos sobre o discurso so muito conhecidos. Seu modelo de anlise do discurso continua a
inspirar muitas pesquisas no Brasil, no Mxico e na Argentina. Tradues de suas obras tm sido feitas
em espanhol e em portugus.
16
Michel Plon, menos ligado anlise do discurso no sentido disciplinar da expresso do que teoria da
poltica, apresentou um comunicao centrada sobre a questo da contradio. Entre os franceses, o
socilogo Pierre Ansart estava, igualmente, presente.
17
Uma histria da anlise do discurso dita francesa sublinhar o lugar, tomado dentro do campo, pelos
historiadores marxistas. Rgine Robin (abrindo uma problemtica do discurso no terreno da histria) tem
papel essencial. Ver a obra coletiva dirigida e prefaciada por Robin: Guilhaumau, Maldidier, Prost,
Robin. Langage et idologies: le discours comme object de lhistoire. Les ditions ouvrires, 1974. Para
uma descrio das configuraes da anlise do discurso na Frana, pode-se reportar ao artigo que eu
escrevi com Guilhaumou: Courte critique pour une longue histoire. Lanalyse du discours ou les (mal)
leurres de lanalogie. Dialectiques, 26, 1979.
esse termo, a filosofia espontnea de uma das tendncias que, segundo MP,
trabalhavam na lingstica. Ele denominou de tendncia histrica em Les Vrits... e
de sociologismo no texto elaborado com Francoise Gadet. Ela designada, aqui,
como corrente da mudana social na histria. Sem dvida, quem est sendo visado,
no Mxico, so os marxistas que pensam a anlise do discurso dentro da
sociolingstica(18). A referncia ao filsofo marxista Lucien Sve e a seu livro
Marxismo e teoria da personalidade sustenta o ataque contra o reformismo. Ele se
coloca aqui sob a invocao de um althusserianismo implacvel.
Mesmo estando fechado ainda dentro de uma carapaa dogmtica que nada parece
poder transpor, Rmontmonos..., do interior mesmo do marxismo, abre pistas novas
para a teoria do discurso, por meio da reflexo sobre a categoria marxista de
contradio.
ela que governa o texto, e compreende, vamos ver, a singular retomada de Foucault
a Spinoza. Volta, dentro do marxismo, para interrogar aquilo que se pode denominar
as origens diz MP que, como vimos, ama os volteios filosficos. Althusser abriu a
via de uma leitura marxista de Spinoza. Isto est no pano-de-fundo da teorizao do
efeito Munchausen e Les Verits... sublinha a dvida ao filsofo para a retomada da
expresso spinozista cause de soi. A novidade, aqui, seu interesse tambm, o face-aface textual organizado entre Spinoza e Foucault. A colocao, em paralelo, de citaes
do Tratado das autoridades teolgicas e polticas e da Arqueologia do Saber se
inscreve, para mim, na ordem do jbilo intelectual. Mas essa leitura cavalheira
como afirmou o prprio MP s adquire sentido na sua concluso: Spinoza avana l
onde Foucault permanece hoje um pouco bloqueado. Em seu tempo, o primeiro props
o esboo de uma teoria materialista das ideologias; o segundo, apesar do imenso
interesse de seus trabalhos, est condenado a elidir a questo da ideologia porque
ignora a contradio. um Foucault bem maltratado que encontramos aqui! Uma
expresso utilizada por Dominique Lecourt em 1970, a propsito da Arqueologia do
Saber(19) forneceu a frmula que toma o lugar de demonstrao. Foucault acusado de
ter um discurso paralelo, compreendamos, um discurso paralelo quele do
18
Pode-se ter uma idia da polmica reportando-se s atas do simpsio do Mxico: El discurso poltico.
Encontra-se l a comunicao de Marcellesi (A contribuio da sociolingistica ao estudo do discurso
poltico) e seu texto de resposta a MP: Anlise do discurso na Frana: oposies ou contradies?. O
essencial das posies de Marcellesi est j definido no seu artigo Analyse de discours entre lexicale,
Langages, 41, 1976.
meio
de
um
percurso
freqentemente
irritante,
Remontemonos...