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FIORIN, José Luiz. Interdiscursividade e Intertextualidade in Bakhtin - Outros Conceitos-Chave (Org. Beth Brait) PDF

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I'"ris; Seuil, 1981. Agostinho, em sua bela reflexão sobre o tempo, mostra-nos, ao discutir
a existência do passado e do futuro, que só se pode falar do que é e não
daquilo que não é. Conclui pela existência do passado e do futuro porque
falamos dele. Sunt fllJO et jittura et prae.terita: Essas reflexões agostinianas
vêm bem a fnopósito, gU:llldo se trata de explicar problema da °
interdiscursividade c da intencxtualidade em Bakhtin. Se formos arer-nos

, ti'
Il,\KIl TlN oUtrost'tlnccit"s'c1>nvc .• .. _ .---... - __ ' __. .._.. _.~ lmcrdiscursividndc c imertextunlidadc JOSÉ Lurz FIORIN

ao significante, não temos o que dizer, pois, na obra bakhtiniana, não ocor- Em 1967, Kristeva publica, na Critique, uma longa discussão acerca das
rem os termos interdiscurso, intercexto, interdiscursivo, interdiscursividade, teorias bakhtinianas expostas nas obras Problemas da poética de Dostoiévski e
intercextualidade. No conjunto da obra do autor russo aparece uma única A obra de Français Rabel.ais (Kristeva, 1967, pp. 438-65).3 A preocupação
vez o termo intertextual: "As relações dialógicas intercexcuais e intratextuais. da semjoticista era discutir o texto literário. Segundo ela, para Bakhtin, o
Seu caráter específico (extralingüístico). Diálogo e dialética" (Bakhtin, 1992, discurso literário "não é um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de
p. 331). No entanto, a primeira coisa a verificar diante dessa ocorrência é se superficies textuais, um diálogo de várias escrituras" (Idem, p. 439). Todo
ela se trata de um problema de tradução. Como a tradução brasileira foi texto constrói-se, assim, "como um mosaico de citações, todo texto é absor-
feita a partir do francês, consultou-se primeiro o texto em francês, em que ção e transformação de um outro texto" (Idem, p. 440). Em sua leitura da
a palavra também aparece: "Les rapports dialogiques intertexwels et obra de Bakhtin, Kristeva identifica discurso e texto: "O discurso (o texto)
intratextuels. Leur caractere particulier (extra-linguistique). Dialogique et é um cruzamento de discursos (de textos) em que se lê, pelo menos, um
dialectique" (Bakhtin, 1984, p. 313). Como, no entanto, a tradução fran- outrO discurso (rexto)" (Idem, p. 84). Afirma ainda que, no lugar da noção
cesa cerramente estaria impregnada das ressonâncias da obra de Kristeva, de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade (Idem, p. 441).
que introduziu Bakhtin na França, seria preciso consultar outras traduções Bakhtin opera com a noção de intertextualidade, porque considera que o
feitas a partir do texto russo. Tomando a tradução espanhola. nota-se que "diálogo é a única esfera possível da vida da linguagem" (Idem, p. 443). Por
nela o termo não ocorre: "Las relaciones dialógicas entre Ias textos y dentro isso, ele vê "a escritura como leitura do corpus literário anterior e o texto
de los textos. Su carácter específico (no lingüística). El diálogo y Ia dialécticà' como absorção c réplica a um outro texto" (Idem, p. 444). Está aí elltfOnizada
(Bakhtin, 1985, p. 296). Essa tradução parece mais fiel ao texto russo a noção de intertexcualidade como procedimento real de constituição do
(Bakhtin, 1986, p. 299). Assim, não há nem mesmo o termo intertextuaL na texto. Mais t,lt't!C, Kristcva vai elaborar a proposta teórica de um:! ciência
obra bakhtiniana2 e esse verbete, portanto não teria lugar. No entanto, a do texto, a que denominou Semanálise (Kristeva, 1974).
questão é mais complexa, pois, como nota Sírio Possenti, "sob diversos No entanto, essa intertexrualidade generalizada não pode funcionar se se
nomes - polifonia, dialogismo, heterogeneidade, intertextualidade - cada vê o texto da maneira como tradicionalmente ele foi definido. Por isso, Kristeva
um implicando algum viés espedfico, como se sabe, o interdiscurso reina trata de repensar essa noção. Roland Banhes, em verbete para a edição de
soberano há algum tempo" (Possenti, 2003, p. 253). Assim, a questão é: a) 1973 da Encyclopedia universaLis, explica, de maneira didática, esse conceito
verificar se, sob outro nome, a questão do interdiscurso está presente na redefinido pela semioticista búlgara (Barthes, 1994, pp. 1.677-89). Segundo
obra de Bakhtinj b) examinar se é pO,ssível distinguir, com base nas idéias a opinião corrente, o texto é "a superfície fenomênica da obra literária: é o
bakhtinianas, interdiscursividade e intertextualidade. tecido das palavras utilizadas na obra e organizadas de maneira a impor um
sentido estável e tanto quanto possível Único" (Idem, p. 1.677). Como diz

o APARECIMENTO DO TERMO INTERTEXTUALIDADE Banhes, no hll1do, ele não passa de "um objeto perceptível pelo sentido da
visão" (Idem. ibid.). Corno o texto é "o que está escritO", ele é, na obra,
A palavra intertextuaLidttde foi uma das primeiras, consideradas como o (lU~,~\lSdl:l" g;lfallti" da coi,a e,crita, CtJi"S lilllçõe> de snlvagu:ltda
bakhtinianas, a ganhar prestígio no Ocidcme. Isso se deu graças à obra de dl' l'OIlCl'illr,,, de UI11 lado, n cstabilidndl" n pcrmanê,\cin dn inscri-
J úJia Kristeva. Obteve cidada.nia acadêmica, antes mesmo de termos como çno. deslilllld., a corrigir à fmgilidndc e a imprecisão d., memória; de
Olltro. a It'galidadc da lelra, tr.\ÇOirrcCllsável, indelével, 00 semitlo
dialogismo alcançarem notoriedade na pesquisa lingüística e literária.
quc () aulOr da obra nela imencionalmellte depOSitou, O tex[O é
Rastreemos brevemente a história do aparecimento desse termo.
uma arma contra o tempo. o esquecimento, e contra as velhacarias

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/1t1KII7'lN oUlr"S(;(lIlCCiWs-chayc hll('r(list"\lr~ivic.l"dc C ilHertcxltlulit1:lclc )051: 1.U1Z FIOR/N

da palavm, que, muito r.,cilmcme. volta atrás, ai rem-se, renega-se. A Como se observa, o conceito de texto em Kristeva e Banhes, na medida
noção de rexto csd, portanto, historicamellte ligad~ a todo um con-
em que é pdcica significante, em que desconstrói e reconstrói a língua, em
jUlltO de ins!ituiçóe,ç: direito, Igreja, lireraturn, ensino; o texto é um
que é o lugar de constituição do sujeito, em que seu modo de funciona~
objeto mornl: é o que eMa eserim, enquanto participa do contrnto
social; ele assujeita, exige ser observado e re$pdtado; m:lS em troc.1
mento real é a relação constitutiva com OUtros textos, poderia muitO facil-
confere à linguagem um atributo inestimável (que em sua essência menre recobrir aquilo que entendemos por discurso. Aliás, esse conceito de
eb nao tem): a .'egurnnç.1. (Idem, ibid.) texto apresenta um problema, que é distinguir, de um lado, manifestação
acabada do trabalho com a língua e, de ourro, esse próprio trabalho. Não é
O texto assim concebido, como "depositário da própria material idade
sem raz.'i.oque Kristeva teve de diferença r o fenotexto do genotexto. E Banhes
do signiflcanre" (Idem, p. 1.678), deveria ser mantido em sua exatidão.
faz uma distinção entre o texto e a obra. Esta é um objeto acabado, aquele
Para isso, cria-se a filologia, que se vale da técnica da crítica textual. Essa
é um trabalho, uma produção (Idem, p. 1684). Cabe uma última pergun-
concepção de texto está ligada a uma merafísica, a da verdade. Ora, no final
ta: por que esses autores não utilizaram o termo discurso? Porque, segundo
do século XIX, começa~se a demolir essa metaf{sica. Por isso; também a no-
Barrhes, essc termo estava comprometido semanticamente. A linguagem
ção de texto entra em xeque (Idem, pp. 1.677-80). Citando Kristeva, Barrhes
estava dividida em duas regi6es distintas e heterogêneas para fins de análise:
redeflne o texto: "aparelho translingüístico que redistribui a ordem da lín-
tudo o que era de nível inferior ou igual à frase era do domínio da lingüís-
gua colocando em relação uma palavra comunicativa, que visa à informa-
tica; tudo o que estava no nível superior ao da frase, O discurso, era objeto
ção direta, com diferentes enunciados anteriores ou sincrônicos" (Idem,
de uma ciência normativa, a retórica (Idem, ibid.).
p. 1.680). Atribui a Kristeva a elaboração dos principais conceitos teóricos
Barthes não desqualiflca a lingüística, nem a retórica, nem a semiótica,
implicados nessa noção de texto: práticas significantes, produtividade,
nem a semiologia. Apenas propugna a constituição de uma semanálise, que
significância, fenotexto e genotexto e inrertextualidade. Dizer que o texto é
teria um objeto, o texto, diverso daqueles dos campos do conhecimento
prática significanre quer dizer que "a significação se produz, não no nível
acima eitados. A semiótica, por exemplo, para ele, estudaria o fenotexto.
de uma abstração (a língua), tal como postulara Saussure, mas como uma
Ora, nesse conjunto de níveis e de objeto, ?.q,ue é. exatamente a
operação, um trabalho, em que se investem, ao mesmo tempo e num só
intertexwnlidade? Qualquer referência ao Ourro, tomado como põsiçao
movimenro, o debate do sujeito e do Outro e o contexto social" (1994,
discursiva: paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias, repetiçÕes,
p. 1.681). O texto é uma produtividade, porque é o teatro do trabalho com
reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens, vai-i'antes
:1 língua, que ele desconstrói e reconstrói (Idem, ibid.). É significância,
lingüísticas, lugarcs comuns, cte. O conceito foi sendo üêiliz.ãdCide li-iárieira
porque é um espaço polissêmico, onde se enrrecruzam v,írios sentidos pos-
. muito frouxa, :\0 longo do (Cmpo. É hota, entretanto, de voirar à obi-á' de
síveis, A signiflcância é um processo, em que o sujeito se debate com o
Bakhtin c começar a discutir os problemas enl1nciados na introdução.
sentido e se desconrrói (Idem, p. 1.682). O fenotexto é "o fenômeno verbal
tal como ele se apresenta na estrutura do enunciado concreto". É contin-
gente. Já o genotcxto é () campo da significância, domínio verbal c pulsional, A Ql1IsrAo no INTEIWISCURSO FM BAKIITIN
onde se cstrutura o fenotexto, lugar da constiruição do sujeito da cnunciação
Em Ihkhtin, a qucstão do inrerdiscurso aparece sob o nome de
(Idem, pp. 1.682~3)."Todo texto é um intertexro; outros textos estão pre~
sentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou mcn~~ ~e~o;;fjcdveis" dialogisl11o. É preciso examinar mais detidamente e~se conceito. C~~pre,
no c 11 mn to, iniciaimcn tc, afastar duas lei turas recorrentes da obra
(Idem, p. 1.683). A interrextualidade é a maneira real de construção do
texto (Idem, ibid.). bakhtiniana: a) dialogismo equivale a diálogo, no sentido de ince ração face

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IJAKlfT1N OU\rosconceilOS'chnvc • _ _______ lnterdiscursividadc c intcncxtualidade JOSÉ LU1Z FIORIN

textos, do que es!:! concluído e do que eslá sendo elaborado em


a face; b) há dois tipos de dialogismo: o dialogismo entre interlocutores eo
relação ao primeito. H:l., portamo, enconCro de dois sujeicos, de
dialogismo entre discursos (cf., por exemplo, Authier, 1982, pp. 118-9).
dois autores. (Idem, pp. 332·4).
Essas duas afirmaçóes parecem equivocadas.
Bakhtin, em O problema do texto, afirma; Mas o que é efetivamente dialogismo em Bakbtin? Interessam-nos
dois sentidos: i
o diálogo real (conversa comum. discussão ciemífica, conrrovér-
·1

sia poIrtiCl, ecc.). A relação existente entre as réplicas de tal diálo- / a) é o modo de funcionamento real da linguagem e, portamo, é seu princípio
go oferece o aspecto externo mais evidente e mais simples da rela-
ção dialogica. Não obstame, a telação dialógica não coincide de
modo algum com as relações existentes emre as réplicas de um
',
..
cansei cutivo;

b) é uma forma particular de composição do discurso.4


diálogo real, por ser mais extensa, mais variada e mais complexa.
(Bakhtín, 1992. pp. 353-4)
® Por que o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem?
Os homens não têm acesso direto à realidade, pois nossa relação com
O dialogismo não se confunde com a:intetação face a face (cf. Bakbtin, ela é sempre mediada pela linguagem. Afirma Bakhtin que "não se pode
1998, p. 92). Essa é uma fOrma composicional em que ocorrem relações realmente rer a experiência do dado puro" (Bakhtin, 1993, p. 32), ,Isso quer
dialógicas, que se dão em todos os enunciados no processo de comunica- dizer que o real se apresenta para nós semioticamente, o que impli~~'qtié
ção, tenham eles a dimensão que tiverem. Não se pode, portamo, pensar o nosso discurso não se relaciona diretamente com as coisas, mas com outros
dialogismo como algo que possa reduzir-se aos estudos que faz, por exem- discursos, que semiotizam o mundo. Essa relação entre os discursos é o
plo, a Análise da Conversação. dialogismo. Como se vê, se não tem~s reiação com as coisas, mas com o~
Em segundo lugar, não se pode dizer que haja dois dialogismos: entre discursos que Ibcs diio sentido, o dialogismo é o modo de funcionamento
interlocutores e entre discursos. O dialogismo é sempre entre discursos. O real da linguagem, uma vez que
interlocutor só existe enquanto discurS;'- }-kp~k,'~me~báêe Clea~is dis-
[...) todo discurso concreto (cnuncíaçiio) encomra aquele objeto p.ara
cursos: o do locmor e o do interlocmor, o que significa que o dialogismo se
o qual esd voltado. sempre. por assim dizer, desacreditado, COntes-
dá sempre entre discursos, Isso fica claro quando Bakhtin discute a questão [;Ido, avaliado, cl1volvi<!o I'llt sua névo:t ""lira Oll, pelo conrclrio,
do que chama as "ciências do espírito" e o problema da "compreensâo": iluminado pelos discursos de outrem que já F.1lamrnsobre ele. O
objeto CSlrlamarrado e penetrado por ideias gerais, por pOntOSde
o esprrito (o próprio e o do outro) n50 pode ser dado enqu~mro
vism, por apreciações de OUlros e por entonações. Orientado para o
objeto (objeto diretamente obsetvável nas ciências naturnis), mas
sell objeto. o discurso penetra ncste meio dialogic:unente perturba-
somente na expressão que lhe datá o signo, na realiZ<lçãoque lhe
do e lenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações.
dará o texto - em se tracando de si mesmo e do outro. [... } O gc.,ro
Ele se entrelaça com eles em inremçóe.'i complexas, fundindo-se com
natural na representação do atar que adquire valor de signo (a
uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros: e tudo isso pode
lítulo de gesto deliberado, representado, submetido aO desrgnio
IOrlnar sulmandalmelllc o discurso, penetrnr em todos os seus es-
do papel). [... 1 () estellograma do pensamento humano é sempre
Ir;Hos "'1I1:1nlic"",,IOrnar cOlllplcxa a suo express50, influenciar todo
o estcoogralna tle um dirllogo dc tilH) especial: a c01l\plexa
o Srtl '\SPl'CIO "slilfstico. (Bakhtill. 1,),)8, 1" R6)
inrerdcpendência entre o /(:</0 (objeto de anrllise e de renexão) e o
cOl/re)."/o que o elabora e o envolvc (comexto inrerrogativo, Como não existe objeto que não seja cercado, envolto, embebido em
COl1le.'lat,'>rio,etc.) alt:tv"s dll <]ual se reali?l ,) pellsamento do '"-
discurso, rodo discurso dialoga com outros disctlrso.~, toda palavra é cerca~
jeilO que pratica () :\lo tI:t wgniçiío c do juíw. 1-\;\ encolltH) de dois
da de outras palavras (Bakhtin. 1992, p. 319).

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IlAKHTlN "lIlro~r(lI1ceiln';-ch:lVe rl1lcr(lj5~:ursividadec imerrcKtualidade JOSÉ I.UlZ FIOR1N

Bakhtin, ao contrário do que faz crer cena leitura eivada de marxismo o cnullciado dcvc ~er considerado acima de tudo como uma res-

vulgar, não nega a existência do sistema da Ilngua, já que, "por trás de todo pil.~I'1n cl1l1r\t"iad". allleriorl's dClIlrtl de unln dada esfcra (a palavr;t
"resposta" está cmpl'egada aqui no scntido laro): rcfuta-os, confir-
texto, encontra-se o sistema da língua" (Idem, p. 331).) Não condena seu
ma-mo complcra-os. supõe-nos cOllhecido~ e, de um modo ou de
estudo; ao contrário, considera-o necessário para estudar as unidades da
ourro. conta com elcs. Niio se pode esquecer que o enunciado
língua (Idem, pp. 357-8). No entanto, mostra que ele não dá conta do ocupa uma posiç50 defillida numa dada esfera da comunicação
modo de funcionamento real da linguagem (Idem, pp. 346-7). Por isso, verbal relariva a um dado problema. a uma dada questiio. etc, Não
propõe uma Outra disciplina, a translingüística,G que teria por objeto o exa- podemos dcterminar nossa posição sem correlacioná-Ia a OUtra.~

me das relações dialógicas entre os enunciados, seu modo de constituição posiçól'., (Idem, p. 3 J 6)

real (Bakhtin, 1970, p. 239; 1992, p. 342).


A relação dial6gica é uma relação (de sentido) que se estabelece entre
As palavras e as orações são as unidades da Ilngua, enquanto os enun-
enunciados na comunicação verbal. Dois enunciados quaisquer, se justa~
ciados são as unidades reais de comunicação. As primeiras são repetíveis,
postos no plano do sentido (não como objeto ou exemplo IingUístico), en-
os segundos, irrepetíveis, são sempre acontecimentos únicos (Idem, pp.
tabularão uma relação dialógica (Idem, pp. 345~6).
334-5; p. 287; pp. 295-7; p. 332). Bakhtin, diante da irrcprodutibilidade
A primeira caractcrística de um enunciado é ter um autor, ao passo
do enunciado, pergunta-se se a ciência pode tratar de uma individualida-
que as unidades da língua não pertencem a ninguém. Os enunciados re-
de tão irrepetível, que estaria fora do domínio do conhecimento científi-
velam sempre uma posição de autoria (Bakhtin, 1963, pp. 240-1 j 1992,
co - que deve tender à generalização. Responde que, em seu pOnto de
p. 308). É por isso que as relações dialógicas não são relações lógicas ou
partida, a ciência trabalha com singularidades. Depois, faz generalizações
semânticas, mns rebções entre distintas posições (Bakhtin, 1963, pp. 24-
sobre a forma específica e a função dessas singularidades, o que significa,
241). O enunciado, sendo como que uma réplica de um diálogo, possui
no caso da translingüística, estudar os aspectos e as formas da relação
um acabamento específico (Bakhtin, 1992, p. 299). Por isso, ele constitui
dialógica que se estabelece entre os enunciados e entre suas formas
um todo de sentido (Idem, p. 351) e, por conseguInte, permite uma res-
tipol6gicas (Idem, p. 335).
posta. As unidades da língua não têm acabamento, não constituem um
Não é a dimensão que determina o que é um enunciado: ele pode set
todo quc possibilita uma resposta (Idem, p. 299). As unidades da língua
desde uma réplica monolexemátÍca até um romance em vários tomos (Idem,
são completas, mas não tem acabamento. A completude é característica
p. 305). O que delimita sua fronteira é a aJternância dos sujeitos falantes.
do elemento, o acabamentO é o que singulariza o todo (Idem, p. 307). A
Isso significa que o enunciado é uma réplica de um diálogo que se estabele-
palnvra fogo é completa, mas não suscita nenhuma resposta. S6 quando
ce entre todos eles (Idem, p. 298). Nesse caso, o dialogismo é constiwtÍvo
adquirc uma autoria e ganha um acabamento, rransforma~se em enunci-
do enunciado, ele não existe fora do dialogismo:
ado, (IUC denuncia uma situação de perigo e permite ser objeto de uma
Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação ver- resposta. Sendo réplicas de um diálogo, os enunciados têm um destinatá-
hal de urna dada c~fcm. As rrunleirns desse cnuuciado <lctcrmi- rio, enquanto as unidades da língua não são dirigidas a ninguém (Idem,
o.
Ilau,",~e pela alll'rn~llcia <10,\sujeitos f:\lantes. clluuciado. nijo p. 3')3). As llnidadl's da língua silo neutras, os enullciados contêm neces-
são imlircrenres uns :1O.~ otltros nem aUla-suficientes; conhecem-
sariamcnte emoçõcs, juízos de valor, expressões (Idem, pp. 308-12),7 As
se uns aos outros, refletem-se mutuamente. $50 precisamente cs-
unidades da língua, puramente potenciais, têm significação, que se deter-
scs reflexos recfproco .• que Ihcs determinam o caráter. O enuncia-
do eslá replcto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aOS mina na relação com outras palavras da mesma língua ou de outra l1ngua
'1uais esliÍ vinculado numn e.,fera Ctllnllm <..Iacomunicaçâo verbal. (Idem, p. 346). Os enunciados não têm significação, mas sentido (Idem,

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IJAKHTlN ourros conceitos-chave ,__.__ -.• _ .-.--- .. lnrerdiscursividade e Inrerrexrualidade JOSÉ LU/i: FIOR/N

diver~o~ c~libres, uns com Iibré, ourros sem c1~; vejo galas. vejo
p. 355). Se eles são constitutivamente dialógicos, seu sentido é de ordem
jóias. vejo baixela~: as paredes vejo-as cobertas de ricos rapius;
dia lógica (Idem, p. 342 e p. 355). O sentido concreto (distinto da signifi-
das janelas vejo ao peno jardins, e ao longe quintas; enfim, vejo
cação) é o conteúdo do enunciado (Idem, p. 310) e sua natureza é dialógica rodo o palácio e também o oratória; mas não vejo a fé. E por que
(Idem, pp. 310, 335 e 326). Como se vê, o conceito de enunciado em não aparece a fé nesta c~s~? Eu o direi ao dono dela, Se os vossos

Bakhtin recobre o que chamamos habitualmente discurso. Adiante, apre- cavalos comem à cusra do lavrador, e os freios que mastigam, as
sentaremos algumas precisões a mais sobre essas correspondências. ferradura.~ que pisam e as rodas e o coche que arrastam são dos
pobres oficiais. que andam arrastados sem poder cobrar um real,
Quando se diz que o dialogismo é constitutivo do enunciado, está-se
como se há de vcr a fé na vos,~acavalariça? Se o que vestem os
afirmando que, mesmo que, em Sua estrutura composicional, as diferentes
lacaios r os pajens. e os socorros do olltro exúcito doméstico
vozes não se manifestem, o enunciado é dialógico. Toda réplica, considera- [J\a~cllli'10 e feminino dependem do mereador que vos assistc, e
da em si mesma, é monológica, enquanto lOdo monólogo é dialógico (Idem, tio principio do ano lhe pagais com esperanças e no fim com
pp. 345 e 317-8). Todo enunciado possui uma dimensão dupla, pois revela desr~perações. a risco de quebrar. eomo se há de ver a fé na vossa

duas posições: a sua e a do outro. fitrn/lia? Se as galas, as jói3s e as baixelas, ou no Reino, ou fora
dele foram ~dqllirid~s com tanta injustiça ou crueldade, que o
Como noca Faraco, um dos significados da palavra diálogo é o que
ouro e a prnrn derretidos, e as sed~s se se espremeram. haviam de
remete à "solução de conflitos", "entendimenro", "promoção de consen-
Vt'rtcr sangue, como se há de ver a fé ncss~ Falsa riqueza? Se as
so"; no entanto, o dialogismo é tantO convergência, quanto divergência; é voss~.' parede,~ estão vestidas de preciosas tapcçarias, e os m iserá·
tantO acordo, quanto desacordo; é tanto adesão, quanto recusa; é tanto veis a quem despisres para as vestir a elas, estão nus ou morrendo
complemento, quanto embate (Faraco, 2003, p. 66). Prossegue ainda de frio, como se há de ver a fé, nem pintada nas vossaS paredes?

Faraco, mostrando que, na verdade, "o Círculo de Bakhtin entende as Se a Primavera está rindo nos j:lrdins e nM quintas, e as fontC5
estão nos olhos da triste viúva c órfãOs, a quem nem por obriga-
relações dialógicas como espaços de tensão entre os enunciados", pois,
çno. ncm por esmola sarísf:1zcis. ou agradcceis o quc seus pais vos
"mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao dizer ~ervirilm. C01ll0 se há dc ver :I fé nes.las Acres c alamcda,,? Se as
de outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com OLltros dizeres (Oll- pcdms da me~I1l:lC:lS:lem que vivcls, d"de os telhados ~té os ali-
tras vozes sociais)" (Idem, p. 67). Isso significa que, do pauto de vista l'erres t'SIão dlOveml" os "umes dos ;"rnalcirn.~, a quem nnO Glzfcis
consCÍtutivo, o dialogismo "deve ser entendido como um espaço de luta a {«ria. c, se q~lerial11ir busc:lr a vida a outra parte, os prcndlcis e
enrre as vozes sociais" (Idem, ibid.). Assim, pode-se dizer que, obrig:íveis por força, C0l110 se há de ver a fé. nem sombra dela na
vossa casa1 (Vieira. 1959. vai, 11, como 4, pp. 203-4)
constiturivamenre, a relação dialógic~ é contraditória.
Exemplifiquemos esse caráter constiturivo do dialogismo. Para isso, to- Nesse sermão, Vieira fala do que é a fé e resolve mostrá-Ia no palácio
memos um fragmento do sermão do quinto domingo da Quaresma, de Vieira: (alguma casa grande) de um nobre (dos grandes). Simula estar entrando,
Como cstamos na corre, onde das casos dos pequenos não se faz juntamente com os ouvintes por ele convidados, em um palácio de fidalgos
caso, nem têm nome de casas, busquemos c~ra fé em alguma casa muito ricos cujo escudo no alto da portada exibe os signos heráldicos (qui-
grnnde e dos grandes, Deus me guie. nas, Iises, águias, leões e castelos) da "fé cristã, católica e cristianlssima" da
O escudo desra port~da em um quartel tem as quin:ls, em outro
família. Vai, enrão, fazendo ver, de um lado, as riquezas da casa, os objetos
as lises, em outro as águias, leões e castelos; sem dúvida esre deve
de luxo, os cavalos e coches, a multidão de criados, as belezas dos jardins e
ser (")palácio em que mor:! a Fé crisrã, c:ltólica e crisrlanf,Isima.
Enrremos c vamos examinando (l q~le virmO.I, pane por 1':1 rt c'.
das quintas, ctCi de outro, os seres humanos explorados para que essa rique-
l'rimciro que tudo vejo cav;llo.', lileiras e cnches; wi" cri'ldns dt, Z:lpossa existir: os pcqucnos proprietários de terra, a quem não se paga o

170 171
IJI1KI JTlN (llllrflHOncdlnS-dlllVC Il1Icrdiscursivid~dc C intcrtcxtualidadc JOSÉ I.UlZ I'IORIN

que os cavalos comem; os artesãos, a quem não se pagam os objeros (freios, No "simpósio universal" (Ba.khtin, 1989, p. 293), que poderíamos in-
ferraduras, rodas e coches) que fizeràJll; os mercadores, a quem não se pa~ terpretar como uma formação social específica, definida pelo presente de
gam as mercadorias que forneceram; os criados, a quem não se pagam os seus múltiplos enunciados contraditórios, pelo passado discutsivo, a tradi-
salários; os diaristas (jornaleiros), a quem não se paga a féria (a diária); as ção de que é depositária, e pelo futuro discursivo, suas utopias e seus obje-
viúvas e os órfãos de criados, a quem se deixa no abandono. tivos, atuam {orças centrípetas e centrífugas. Aquelas buscam impor uma
Vieira nota, então, que não pode haver fé, sem que se leve uma vida em centralização enunciativa no plurilingüismo da realidade; estas procuram
conformidade com ela, ou seja, deixa claro que não há fé sem as obras minar, principalmente, por intermédio da derrisão e do riso, essa tendência
correspondentes. A fé cristã, segundo o pregador, exige a justiça com os que centraJizadora (Bakhtin, 1988, pp. 80~3). As ditaduras são centrípetas; as
trabalham, implica que o trabalho seja remunerado, que a riqueza não se democracias centrífugas. Ali ditaduras têm um forre componente nardsico.
construa sobre a exploração do outro. O sermão de Vieira constitui-se em Com cfeito, poderíamos fazer uma leitura dos mitos de Narciso e Eco, à luz
oposição ao discurso feudal, que defendia os privilégios da nobreza e as do princfpio do dialogismo. Esses dois mitos aparecem sempre juntos: em
relações servis de trabalho, em que os servos tinham obrigação de prestar Eco existe a negação radical da identidade, já que ela foi condenada por
serviços ao senhor e não podiam I11udar de trabalho, pois estavam presos a Juno a jamais ter a iniciativa da palavra; em Narciso ocorre uma recusa tOtal
uma propriedade ("se queriam buscar" vida a outra parte, os prendícis e da "lteridade, pois de se apaixona pela pr6pria imagem refletida llO espelho
obrigáveis pela força"). Em oposição ao discurso que defendia os privilégios das águas de lima falHe. Eco e Narciso são a própria negação do dialogismo.
da nobreza, dados por seu nascimento, Vieira tem o ponto de vista da socie~ As ditaduras, em seu afã ccntrípeto, apresentam um forte componente
dade mercantil, que valoriza o trabalho dos operários e dos burgueses (mer- narcísico, tentando negar a alteridade, impondo sua identidade e exigindo
cadores, eec.); que condena as relações servis de trabalho c dcfende o que os ouU·os a ecoem. No CIH:lnto, essa mesma identidade é consriru(da
assalariamento, em que o operário tem a liberdade de fazer contrato de dialogicalllcnre (Idem, p. 81).
trabalho com quem quiser; que preconiza que o valor de cada homem não COIno observa Faraco, Bakhtín, com os conceitos de forças centr(petas
é dado por seu nascimento, mas por sua ação no mundo. Condena yiva- e forças centrífugas, "aponta para a existência de jogos de poder enrre as
mente os que dizem ter fé, mas que não praticam as obras correspondetHes. vozes que drculam socialmente" (Faraco, 2003, p. 67). Isso significa que,
O sermão de Vieira faz parte da esfera do discurso religioso, é um discurso para o autor russo, não há uma neutralidade na circulação de vozes. Ao
jesufdco, pregando que o ser humano se define por sua ação no mundo. contrário, e1<l tem uma dimensão polfrka. As vozes não circulam fora do
Opõe-se ao discurso jansenista, segundo o qual a fé basta para salvar o
homem, mesmo que desacompanhada das obras. O discurso religioso de \2)
,~xercícioAlém do poder;
desse não se diz
dialogismo o que
.que nãosesequer, quando
e~ibe no fiosedo
quer, como se
disc.urso, háquer.
u:n
Vieira manifesra uma voz ativista e pragmática, que se constirui numa rela-
outro, que nele se mosrra. E quando as dlferentes vozes são lllcorpor~~.as l-~+·
ção polêmica com o que foi chamado o quietismo, que sustenta que a per- 110 interior do discurso. Dizemos que, nesse caso, o dialogismo é uma
feição consiste na anulação da vontade, na indiferença toral em relação aos forma composicional. É aquilo a que Bakhrin chamará "concepção ~si:;ei-
acontecimentos e na união contempladva com Deus. ta do diaJogislJ1o" ou "formas exrernas, yis{veis", do dialogjsmo (Bakhrin,
Observe~se que mesmo que cssas vozes todas não sejam mostradas no 1992, p. 350). Cabe aqui um esclarecimento. O autor russo não as con-
enunciado, elas constituem o enunciado de Vieira, pois ele se constrói em sidera menos imporrântes. Quando afirma que reduzir o dialogismo a
oposição a elas, em comradição com elas. É dessa forma flue Bakhtin expli- elas é ter uma visão estreita desse fenômeno, quer dizer que o diaJogismo
ca a produção da estatuária grotesca, que se constitui em oposição à estatuária vai muito além dessas formas em que as vozes entram na composição do
clássica (Bakhtin, 1970a, pp. 33-6). enunciado, pois ele é o próprio modo de funcionamento real do enuncia-

17) 173
U.llK/ J 7JN ()Ull'o:-; cUllú'itüs·chavc"
Jlllel'dí~llrsivi<i;ltI,· c il\I"rlexllluliclntle )051" I.U/Z F/ORIN

do, o próprio modo de sua constituição. No entanto, essas formas de CriSto diz que o Badsta em Etias, como diz ° mesmo Batista que
I
incorporação do discurso do Outro são a própria maneira de tornar visível não era Elias? Nem o Badsta podia enganar, nem Cristo podia
enganar-se: como se hão de concotdar logo estes textos? Muito
esse princípio de funcionamento das unidades reais de comunicação, os
facilmente. O Batism era Elias, e não era Elías; não era Elias,
enunciados. São modos pelos quais o princípio real de funcionamento da
porque as pessoas de Elías e do Batista eram diversas: era Elias.
linguagem é enunciado. porque as ações de Elias e do Batista eram as mesmas. A modés-
Há duas maneiras básicas de incorporar distintas vozes no enunciado: tia do Barism disse que não era Elias, pela diversidade das pesso-
a) aquela em que o discurso do outro é "abertamente citado e nitidamen- as; a verdade de Cristo afirmou que era Elias, pela uniformidade
te separado" (Idem, p. 318); b) aquela em que o enunciado é bivocal, ou das ações, Era Folias,porque fazia ações de Elias. Quem f.11. ações

seja, internamente dialogizado (Idem, p. 348 e pp. 337-8; 1970, pp. 248- dc Elias li F.lias; quem fizer ações de Batista será Batista; e quem
as fizer de Judas será Judas. Cada um é as suas ações, e não é
58). Na primeira categoria, entram formas composidonais como o dis-
outra causa, Oh que grande doutrina esta pata o lugar em que
curso direto e o discurso indireto (Bakhtin, 1979, pp. 141-59), as aspas escamas! Quando vos pcrgull[arem quem sois, oão vades revol-
(Bakhtin, 1992, p. 349), a negação (Bakhtin, 1970, pp.240-1); na se- ver o Ilobilidrio de VO.'iSOS avó.'. ide vera maHicuL1 de vossas ações.
gunda, aparecem formas composicionais como a paródia, a estilização, a O que fazds, isso soi.', nada mais. Quando ao Batista lhe per-
polêmica velada ou clara (Idem, pp. 259-60); o discurso indireto livre gulltaram quem em. não disse que se chamava João, nem que er:l

(Bakhtin, 1979, pp. 160-82). filho de Zncarias; não se definiu pelos pais. nem pelo apelido, Só
de suas :tções formou a sua definição: Ego vox c/AmIl7ltÍJ. (Vieira.
Observemos um exemplo de cada um desses procedimentos
1959, vai I, torno I. pp. 211-3)
composicionais. Para o primeiro, tomaremos um caso de negação.
No Sermão da Térceira Dominga do Advento, a que esse trecho pertence,
Cansados, finalmente. os embaixadores de lhcs responder o Batis-
ta que não era Messias. nem Elias, nem profeta pediram-lhe, fi-
Vieira parte do episódio bíblico Uoão, 1, 19~34), que narra a ida a João
nalmenre, que, pois ele.' nao acenavam a perguntar, Ihes dis,es.,e Batista de uma embaixada de sacerdotes e levitas de Jerusalém, a fim de
ele quem era. A esta insrância não pôde deixar de deferir o lhlista. perguntar-lhe quem era, e sua resposta de que era a voz que clama no
E ° que vos parece que responderia? Ego mln vox c/Al1It1ntiJ i1/ deserto. Com base nessa resposta, Vieira tece uma argumentação, para
deJato: Eu sou uma que clama I1UdcscrlO, Verd,,,kir:IIl1<'ll1l'
V01.
mostrar que cada UI11 sc ddllll' por aquilo que f:1z, pelo seu trabalho. O que
não entendo esta resposta. Se os emhaixadores pergul1\ar;Ull ;lu
importa aqui é analisar a negação que aparece no seguinte trecho: "Quando
Batista o que fazia. então estava bem respondido com a voz que
clamava no deserto. porque o que.o Badsta fazia no deserto era dar
vos perguntarem quem sais, não vades revolver o nobiliário de vossos avós,
vozes e damar; mas se os embaixadores perguntavam au [latl'ln ide vcr a matrícula de vossas ações", Vieira nega o pOnto de vista social que
quem era, como lhes responde ele o que fazia? Respondeu afirma que a posição de uma pessoa na sociedade é dada pela família em
discretissimamente. Quando lhe petguntavam quem era, respon- que nasceu, pelo sangue. Ao contrário, assevera que o que define o ser
deu o que fazia: porque Clda um é o que faz, e não é ourrn cousa. humano é sua ação no mundo. Mais adiante, em outro trecho desse ser-
As eClUSaS
definem-se pela essência: o Bacista definiu-se pelas ações;
mão, negará que a fidalguia, a nobreza, seja uma herança familiar, afirman-
porque as ações de Clda um são a Sua essência. Definiu-se pelo que
fazia, para declarar o que em,
do que pertence à esfera da ação, do trabalho. Diz que ela não é qualidade
Daqui se entenderá uma grande dúvida, que deixamos atrás de nem sangue, mas ação. Esse sermão opõe-se à posição aristocrática de que a
pondemr, O Batista, perguntado se era Elias, respondeu que não nobreza é algo onrológico, um valor herdado pelo nascimento. A essa pers-
era Elias: NOIl S1II1I. E Cristo no capfwlo onze de S. Mateus disse pectiva Vieira contrasta a idéia de que a nobreza é uma virtude conquistada
que o Balista era Elias: JOI1/1I1(J Bt1/tisttl ipu tst E/il1s. Pois .'e no trabalho, de que não há uma ordem social natural. Poderíamos dizer

174 175
TlAKIITlN OllllOseoneeilOS·chave .._.. . ... .- .. _.- - .... o. _ •• Interdiscursividadc c intertextuaHdade JosE LUIZ FIORIN

que à maneira de ver da aristocracia feudal Vieira contrapõe o modo bur- Cabe perguntar agora se o dialogismo é um fenômeno social ou indivi-
guês de considerar o mundo. A negação, ao receber um autor, mostra os dual. Em Olltr;)s palavr;)s, as vOzes que estão em re\;tção dia lógica são indi-
dois pontos de vista distintos. viduais ou sociais? A teoria formulada por Bakhtin leva em conra tanto o
Para o segundo procedimento, tomemos um caso de discurso indireto livte: que é de ordem individual, quanto o que é do domínio social:

Olhou áS cédulas arrumadas na palma, os n(queis e as prams, sus- o locutor l1~o é um Adno. c por isso ° objeto de seu discurso se
pirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. [nma, incvitavelmcllle, o pomo onde se cncommm as opiniões de
Baixava a crista. Se nno baixa.lse, desocuparia a terra, largar-se-ia illlerloclltores imediatos (numa conversa ou numa discussão acerca
com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Par.1 onde? Hem? de qualqucr aconcccilllCI1l0 da vida cotidiana) ou então as visócs de
linha par.1 onde levar a mulher e 05 meninos? TInha nada! {... ] Illundo, as tendências, as lcorias. etc. (na esfera da comunicaç5o
Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Apa- culmral). fi visfio dc mundo. a tendência, o ponto de vista, a opi-
rentemente resignado. sentia um 6dio imenso a qllalquer coisa "ifio têm scmpre slIa eXl'res.~áoverbal. (Bakhtin, 1992. pp. 319-20)
que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrno, os soldados
c os agentes da prefeitura. Tudo na -verdade era con tra ele. Es- Ao levar em conta o individual e o social, Bakhtin pretende considerar
tava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes arre- não só ;)s polêmicas políticas, culrurais, econômicas, que refletem visões de
liava. Nno havia paciência que supormssc tanra coisa. (Ralllos, mundo Jivers;1s, maS também fenômenos como a fala - que se vai moldan-
1971. PI), 138-9)
do pela opinião do locuror imediato ou a reprodução da fala alheia com
No discurso indireto livre, misruram-se duas vozes, a do narrador e a <.Ia uma CI1tOIl:1çãozombeteira, dubitariva, admirativa, indignada, <lprovadora,
personagem (em nosso texto, Fabiano). No entanto, faltam elementos reprovadora, etc. (Idem, pp. 337-8; cf. 1988, pp. 91-3) É toda uma gama
lingüísticas, como os dois ponros e o travessão 110 discurso direto ou a de fcn6nK'llos que c.~tiíopresentes na cOl11unicaçií.o real. No entanto, a rela-

conjunção integrante que no indireto, que determinem a fronteira entre as ção entre o individual e o social não é simples nem estanque em Bakhtin.
duas. Há dois tOns diferentes, que permitem perceber essas duas vozes: o De um lado, Bakhtin mostra que a maioria das opiniões dos indivíduos é
tom mais ou menos neutro da narração e o tom entre colérico e resignado social. Todo enunciado, além de um destinatário imediato, que é percebido
da personagem. Há frases claramente do narraoor ("Olhou as cédul;)s arru- com mnÍor ou menOr consciência, dirige-se a um superdestinatário, cuja
madas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços"); ou- compreensão respol1siva, idealmemc correta, é determinante em sua pro-
tras que, sem dúvida nenhuma, pertencem à personagem ("Para onde? Hem? dução. Esse superdestinatário assume uma identidade que varia de época
Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada!"). Outtas, no para época, de formação social para formação social, de grupo social para
entanto, poderiam ser de um ou de outro ("Se pudesse mudar-se, gritaria grupo social: a Igreja, a "correção polftica", o partido, a ciência, ctc. (Bakhtin,
bem alto que o roubavam" poderia ser dita tanto pelo narrado r quanto pela 1992, pp, 356-7). Na medida em que mesmo uma réplica individual numa
personagem). Essa impossibilidade de separação nítida entre a voz do conversação cotidiana se dirige ao superdesrinatário, os enunciados são, na
narrado r e a da personagem, faz do enunciado em discurso indireto livre maior parte das vez.es, sociais. De outro, não preconiza um sujeito absolu-
um enunciado bivoca!. Ao misturar Sua voz à da personagem, o narrador tamenre assujcitado, o que seria a própria negação da heteroglossia e do
revela uma "profunda simpatia" por esse homem submetido a condições
dialogismo. Como observa Faraco, a utopia bakhtiniana é "a resistência a I ~
"pré-capiraJistas" de trabalho, a esse homem espoliado e degradado. É como qualquer processo centrípeto, centralizado r" (Faraco, 2003, p. 72); o
se o narrador assumisse como sua a indignação da personagem diante da dialogismo incessanre é ":1 lll1ica f(ltllla de preservar a liberdade do ser hu-
exploração a que estava sujeira, mano c do seu inacabamento; uma relação, portamo, em que o OUtro nun-
ca é rei ficado; em que os sujeitos não se fundem, mas cada um preserva sua

176 177
IJ,IKIITlN ounoscOnccilOs'chavc _ -----~_ ..~._~_. -- IJlIl'f,j;sc.:ursivid"dc c illlertexwalídade JOSÉ LUlZ T'IOR1N

própria posiçã~ de extra-espacialidad~ ~ e.x~e~~().de_yisão e a compreensão orientado para o pensamen to, o sentido, o significado do outro, que se manifes-
daí advindà' (Idem, p. 73-74). A singularidade do sujeito ~corre na "inceração tam e se apresentam ao pesquisador somente em forma de textos. Quaisquer
viva das vozes sociais" e, por isso, ele é social e singular (Idem, p. 83). que sejam os objedvos de um estudo, o ponto de partida só pode ser O texto"
Normalmente, quando se fala. em dialogismo, pensa-se em relações com (Idem, p. 330). O texto, em Bakhtin, é wna unidade da manifestação: manifes-
enunciados já constituídos e, portanto, enunciados anteriores, passados. ta o pensamento, a emoção, o sentido, o significado.
No entanto, o enunciado está relacionado não só aos que o precedem, mas Cada texto tem atrás de si um sistema compreensível para todos (con-
também aos que lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal. Com efei- vencional, dentro de uma dada comunidade) - uma língua, "ainda que seja
to, na medida em que um enunciado é elaborado em função de uma res- a língua da arte" (Idem, p. 331). Não há texto que não pressuponha uma
posta, está ligado a essa resposta, que ainda não existe. O locmor sempre língua. Se não há lima língua atrás de um texto, temos um fenômeno natu-
espera uma compreensão responsiva ativa e o enunciado se constimi para ral e não um texto: por exemplo, uma sucessão de gritos e gemidos (Idem,
essa resposta esperada (Bakhtin, 1992, p. 320). ibid.), Tudo o que no texto é repetitivo e reproduzível é da ordem da lín-
gua, pois o texto é único, individual e irreproduzível (Idem, ibid.). Mesmo
INTERDlSCURSIVIDADE E INTERTEXTUALIDADE
quando o texto é reproduzido por um sujeito (excetuada evidentemente a
reprodução mecânica. como. por exemplo, a reimpressão), "é um aconteci-
Notam Beth Brait e Rosineide de Meio que, mento novo, irreproduzível na vida do texto, é um novo elo na cadeia
histórica da reprodução verbal" (Idem, p. 332). Todo texto tem um autor e,
como (...] é próprio do pensamento bakhriniano, a concepção de
por isso, o texto enquanto entidade "não se vincula aos elementos
enunciado/enunciaçiio não se cncomm pronm e acabada numa derer-
reproduzíveis de um sistema da língua (dos signos) e sim aos outros textos
minada obT<l,num determinado tCXW:o sentido e as particularidades
v50 sendo construIdos ao longo do conjunto das obr:ls,
(irreproduzíveis) numa relação específica, dia[ógica" (Idem, ibid.). "O acon-
indissociavdmente implicados em outras noções paulatinamente tecimento na vida do texto, seu ser autêntico, sempre sucede na fronteira
construídns. [...] O enunciado concreto, visto dessa perspectiva tcóri- de duas consciências, de dois sujeitos" (Idem, p. 333). Temos, pois, num
C:I poder.\, ao longo de outros obras (e em diferentes tradllçóes) [... 1 texto, dois pólos: o que é reproduzível e o que é irrepetível.
~cr~ubstitllldo "li fundido l1a idéia de r,davra, de teXLO,dt, disnlfw «-

aré mcsmo de enúndação concreta). (Brait, 2005, p. 65 e 67). As Ciências Humanas si[Uam-se entre esses dois pólos:

Pelas razões apontadas por Bralt e Melo, há uma dificuldade em distin- Pode-se tendcr paT<lo primeiro pólo. isto é, para a lfngua - a lín-
guir os conceiros de texto, enunciado e discurso na obra de Bakhtin. Ora eles gua de UI1l aUWf, a IIn[!.llade um gênero, de um movimcnto litcrá-
rio, a língua natural (o procedimcl1to da Lingülstica) - c. por fim,
se equivalem; ora se distinguem. Para nossos propósitos, tomaremos o traba-
para a língua potencial (o procedimento do esrrururalismo, da
lho O problema do texto,8 em que Bakhtin tratou, de maneira específica, da
glossemáricaJ. Pode-se tcnder para o segundo pólo, para o acontc-
questão do texto. Nele, os termos texto, enunciado e discurso não se recobrem. çimenro irreproduz(vcl do tcxto (Idem, ibid.).
O texto "representa uma realidade imediata (do pensamento e da emo~o)"
(Bakhtin, 1992, p. 329). Sendo o texto "um conjwlto coerente de signos", ele Se o texto tem um autor, é irrepetível e só ganha sentido na relação
não é uma enddade exclusivamente verbal. Na verdade, ele é uma categoria dialógica, texto não é, na verdade, sinônimo de enunciado? É preciso ler
presente em todas as linguagens, em todas as semióticas (Idem, ibid.). A dife- cuidadosamente o trabalho de Bakhtin, juntando indícios colocados ao longo
rença fundamental cntre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais, embora de seu texto:

sua separação n5,,' ., rígida, reside no fato de que, naquelas, "o pensamento é

\78 179
IJIlKIITIN outro~tonteílo~-chave ""'"__ o -" I1lfNdiSl'ursividmlc c inlCrreX1Unlidadc JOSt: I.UlZ FIOR1N

Pode-se estabelecer um pdndpio de identidade corre ti Jlngua e o


"O texto enquanto emmcÍltdo (Idem, p. 330).
discurso, porque no discurso se apagam os limites dialógicos do
Dois fatores determinam um texto c o tornam um enunciadn: scu
ellul1ei~do, m~s jamais se pode confundir IIngua e comunicação
projero (a intenção) e a execução desse projeto (Idem, p. 332).
verbal (entendida como comunicação dialógica efetuada mediante
Fora dessa relação (a relação dia16gica), o enunciado não tem rea-
ellunciados). (Idem. p. 335).
lidade (a não ser como texfO) (Idem, p. 351).
A Lingüística lida com o texto, não com a obra, [...] Pode-se dizcr, o discurso deve ser entendido como uma abstração: uma posição so-
simplificando, que a abordagem puramcnte linglHstica (ou seja, o
cial considerada fora das relações dialógicas, vista corno uma identidade.
objeto li~gülstico) encara a relação do signo com o signo e COIll os
Poder-se-ia então acusar Bakhtin de considerar as relações dialógicas como
signos dentro dos limitcs do sL~tema de uma llngua ou dc um
texto (relações com o interior de um sistema ou relações lineares
exteriores ao discurso. Não, pelo contrário, o enunciado (inrerdiscurso)
entre os signos). A relação de um enunciado com a realidade exis- não é um conjunto de relações entre intradiscursos (discurso, em Bakhtin).
teme, com o sujeito /iJ.lante real e com os outros enunciados renis O inrerdiscurso é interior ao intradiscurso. é constiturivo dele. Na comu-
(relação que faz que um enunciado seja o primeiro li articular o nicação verbal real, o que existem são enunciados, que são constitu~
verdadeiro Oll o falso, o belo, ete.). esta relação não poderia [Or-
tivamentc dialógicos. O discurso é apenas a realidade aparente (mas rea-
!lar-se obJeto da Lingtífstica. Os signos tomados isolndnml'nll', O
lidade) de quc os f.1lamcs concebem seu discurso autonomamente, dão a
sistema de IIIll:l IIngua (lU o texto (enquanto Unidade de Siglll")
de uma idcntidade essencial. Entretanto, no seu funcionamento real, a
lliío podem ser verdadeiros, nem falsos, nem bclm", (Idem. PI',
352-353). linguagem é dialógica.
Com base em tUdo o que foi dito, é poss(vel distinguir interdiscursividade
Na medida em que o texto se torna um enunciado, de é distinto deste. e inrcrtcxwalidade. \Á:llrcmos a Bakhtin: "O texto como mônada específica
O texto pode ser visto como enunciado, mas pode não o ser, pois, quando que refrata (no limite) todos os textos de uma dada esfera. Interdependência
o enunciado é considerado fora da relação dialógica, ele só tem realidade do sentido (na medida em que se realiza através do enunciado)" (Bakhtin,
como texto. Pode-se ter uma Lingü(stica que estuda o texto, mas o faz 1992, p. 331).
como uma entidade em si, fora das relações dialógicas, já que essas não Há claramente uma distinção entre as relações dialógicas entre enuncia-
podem ser objeto da Lingüística. dos e aquelas que se dão emre textos. Por isso, chamaremos qualquer rela-
Se o texro é distinto do enunciado e este é um todo de sentido (Idem, ção dialógica, na medida em que é uma relação de sentido, inrerdiscursiva.
p. 351) - marcado pelo acabamento (a obra) (Idem, p. 345), dado pela O termo intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que a
possibilidade de admi tir uma réplica~, cuja natureza específica é dial ógica, relação discursiva é marerializada em textos. Isso significa que a
o texro é a manifestação do enunciado, que é uma "postura de sentido" interrextualidade pressupõe scmpre uma inrerdiscursividade, mas que o
(Idem, p. 352). Por isso, ele é uma realidade imediata, dotada de uma contrário não é verdadeiro. Por exemplo, quando a relação dialógica não se
manifesta 110 texto, temos interdiscursividade, mas não interrextualidade.
materialidade, que advém do fato de ser um "conjunto de signos". O
enunciado é da ordem do sentido; o texto é do domínio da manifestação. No cnlan to, é preciso vcrificar que nem todas aS relações dialógicas mostra-
das no tcxto devcm scr consideradas ifl[crtexruais. Bakhtin fala em "rela-
O sentido não pode consrruir"se senão nas relações dialógicas.'J Sua mani-
festação é o texto e este pode ser considerado como uma entidade em si. ções Jialógicas interrexruais e intratexruais" (Idem, ibid.). Como já mostra-
Há ainda um elemento curioso nesse texto: é que Bakhtin diferencia mos, seria mais fiel ao texto russo falar em relaçóes dialógicas entre textos e
enunciado e discurso. Diz ele: dentro do texto. As relaçõcs dentro do cexto ocorrem quando as duas vozes
se acham no interior dc Ulll mesmo texto: no caso do exemplo de Vidas

180 181
IJAKIITlN outros conceitos-chave Imerdlscursividade e intcrtextualidade JOSÉ LUIZ FIORIN

secas, temos uma relação dialógica dentro do texto, pois as vozes do narrador Nas linhas de 1 a 6, o poeta constrói uma figura da lua, situando-a num
e de Fabiano se encontram no interior de um texto, não estão constituídas fim de tarde, num céu pltí.mbeo, atribuindo-lhe a qualidade de baça e dizen-
num outro texto fora do texto em análise. A mesma coisa acontece no do que ela paira muito cosmografieamente. Como cosmografia é a astrono-
exemplo da negação em Vieira. No entanto, pode-se ter também relações mia descritiva, principalmente referente ao sistema solar, o que o poeta
entre textos, quando um texto se relaciona dialogicamente com outro texto quer dizer com paira muito cosmograficamente é que a lua está no alto pura
jJ constituído. Há no texto que se relaciona com elc um encontro de dois c simplcs1llcI1tccomo um astro. Ele sintetiza essa imagem numa palavra:
textos. É o que acontece, por exemplo, na negação que aparece em Satélite, Satélite. Com essa figura, pretende enfatizar o conceito "puro" de lua, des-
de Manuel Bandeira: pojado de qualquer tipo de associação paralela, sem as impressões senti-
mentais que ele evoca.
SATÉLITE O uso reiterado do prefixo des, que indica ação contrária (desmetajorizada,
desmitificaJa, despojada), e a afirmação de que a lua não é agora o astro dos
loucos e dos enamorados pressupõe que, no passado, ela foi metaforizada,
Fim de tarde.
mitificada, considerada como o depósito do velho segredo de melancolia,
No céu plúmbeo
A Lua baça
como um golfão de cismas, como o astro dos loucos e enamorados. A nega-
Paira ção, tanto a indicada pelo prefixo des, quanto a feita pelo advérbio não,
implica a presença de duas vozes, dois pontos de vista a respeito da lua: um
Muito eosmograf1Clmente
que a vê como uma fonte e um repositório de sentimentos, de mitos e de
Satélite.
metáforas; outro que a considera em sua realidade nua indicada pela pala~
Desmeta rori7.ada, vra satélite.
Desmitificada.
Apesar de essas duas perspectivas estarem delimitadas pela negação, pre-
Despojada do velho segredo de melancolia.
cisamos ainda de nosso conhecimento dos texros literários, para entender
Não é agora o goirão de cismas, bem o que o poera está refutando. As expressões "golfão de cismas" e "astros
O astro dos loucos e enamorados, dos loucos e enamorados" remetem-nos a uma estrofe do poema P!enilttnio,
Mas tão-somente de Raimundo Correia:
Satélite.
Há tantOS al10s olhos nela arroubados,
Ah Lua deste fim de rarde,
No magnetismo do seu fulgor!
Dcmissionária de atribuições romântiCls: l.ua dos tristes e enamorados,
Sem show para as disponibilidades sentimentais! Golfão de cismas rascil1ador.

(Correia, 1976, p. 65)


Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti, assim:
Ao opor-se a lima concepção a respeito da lua, atribuída a um literato
Coisa em si,
- Sarélite.
do passado, podemos concluir não que o poeta esteja lamentando o fim dos
--- bons tempos românticos e criticando a frieza do mundo moderno, mas que
(Ihmldra, 1'>7), p. 2.~2) é avesso aos exageros sentimentais de uma certa literatura em torno da lua.
(2uando de diz s{'m S/;II1(i pllm as disporúbifidtTdes sentimentttis, quer dizer

lR2 183
/l/1KJ ITlN ollfrns"(1I1ttiws'ch"\'~ .. Inlcrdi5<:urslvidade C itllcrtcxtu"lidade JOSÉ LU12 F10R1N

que a lu'a à qual dirige seus versos não está mais a exibir-se para pessoas prolixos habitantes - não sois conhecidas por "iC'lmiabas", voz es-
púria, sinno que pelo :1.peladvo de Amazonas; e de Vós se afirma
predispostas a vê-Ia de maneira sentimental. Se levarmos em conta que a
cavalgardes bellgeros ginctcs c virdes da Hél"de c1ássiC'l;e assim
mais-valia se define como a diferença entre o custo da força de trabalho e o
sois chamadas. Muito nos pesou a n6s, Imperamr vosso, tais dislates
valor do produro produzido pelo trabalhador, ao dizer fatigado de mais·
de erudição, porém hds de convir conosco que, assim, ficais mais
valia, o poeta manifesta sua aversão aos exageros próprios de literatos de heróicas e mais conspfcuas, mcadas por essa pátína respeidvel d"
épocas passadas, que consistem em explorar a lua, roubando dela significa- tradição e da pUrC7.:1.
antiga.
dos que ela não comporta. O poeta expõe sua predileção pela concepção Mas não devemos espcrdiçarmos vosso tempo fero, e muito me.
moderna (Gosto de ti assim: / Coisa em si, I Satélite). 1I0S coruurbarnl0s vosso entendimento. com noticias de mau cali.
bre: pas.lemos. pois. de imediato. ao relato de nossos feitos por cá.
Por meio das negações, e da negação de um texto poético, o poeta cir-
Nem einco sóis eram passados que de vós nos panlramos, qU:lndo
cunscreVe no texto dois pontOS de vista a respeito da poesia. Contesta uma
a mais temerosa desdita pesou sobre nós, Por uma beh noite dos
poesia que idealiza a realidade, assume como sua uma concepção de poética idos de maio do nno tr"nslnto, pcrdlamos a muiraquitã; que outrém
como busca da essência da realidade.
grafara muraquitâ. e, "Iguns doutos, ciosos de etirnoJogias
Só pode ser considerada Ínterrextualidade a negação explícita dos versos esdníxulas. ortografam muyrakitam e até mesmo muraqué-itã, não

de Raimundo Correia. As outras negações são da ordem da sorriais! H"vcis de saber que este vocábulo. tão f.,mili"r a vossas
troll1i'"S de Eusd'1uio. é quasi dc.'conhecido por aqui. Por estas
inrerdiscursividade. No poema de Bandeira, encontram-se dois textos: o de
I'"ragens mui civis. os guerreiros ch~mam-se policias, grilos, guar·
Bandeira e o de Raimundo Correia. O texto de Raimundo Correia tem
das-cívicas. hoxislil.l. legaJisras. mazorqueiros. ere.; sendo que aJo
uma existência como texto fora do texto de Bandeira. É só nesses casos que guns desses termos são neologismos ab,lUrdos - bagaço nefando
se deve falar em inrertextualidade. Ela é o processo da relação dialógica não com que os desleixados e petimeues conspurcam o bom falar lusi.
somente entre duas "posturas de sentido", mas também entre duas tano. M"s não nos sobra já vagar para discretearmos "sub tegmine

materialidades lingüísticas. f.1gi", sobre a Jrngua portuguesa. também chamada lusitana. O


que vos interessará. por Sem dúvíd:l. é saberdes que os guerreiros
A concepção que, com base na obra de Bakhtin, adotamos de
de cá não buscam mavórdcas damas para o enlace epital:imieo.
intertextualidade é bastante restrita - nada tem a ver com o uso frouxo que
I11~S antes a.s preferem dóceis e facilmente tratáveis por voláteis
se,vem fazendo dela. No entanto, ela pode ser um pouco alargada. folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro, o "curriculum
Como os estilos são manifestados por "elementos de ordem material", vitae" da civiliZàÇão a que boje fazemos pOnto de honra em per-
"quando existe uma vontade consciente de representar uma variedade de tencermos, (Andrade. 1978, pp. 71-2)

estilos, estabelece-se sempre LI ma relação dialógica encre eles" (Bak1ltin, 1992,


Esse texto, logo à primeirn vista, parece ter sido escrito num período
pp. 339; cf. pp. 345, 347 e 349). Por ter uma materialiJade, os estilos de
al~terior ao modernismo, em que se cultivava uma forma "clássica" de es-
autores, de movimentos literários, de grupos sociais, quando são estilizados
crever. Os traços que permitem afirmar isso são:
OtLparodiados, mantêm também relações inrertcxruais.
Mário de Andrade faz, no texto a seguir, urna parôd ia de estilo. :I) uso da segunda pcs,oa do p1ur,11 pata tratamento;

Senhoras: b) l"Illprt'gll sislt'm.'Íli(l) do p/uml majr.:stádco;

Não ruuco vos surpreell,!cd, por certo, CJ ell(lercç<' e a liter:ltllra c) utilização do objeto indirero pleonástico, em Muito nos pesorl ti nós;
delta 1l1issiva. Cumpre.nos, clltrClanto. Inici"r estas linhas de
salldadc e {lIuil<>amor nllll desagrad,ívd nova, r. bem vcnlade <jlle d) uso de um léxico prcciosista c até de sabor arcaizante (voz por "palavra",
na boa cidade de São 1'aul" - a maior do universo no di?cr de Sl'US missi/ltfS por "canas". Hél.ttde por "Grécia", beflgeros ginetes por "cavalos de

184 185
. ~- Inlerdiscursividadc c intcrtcxtualidnde JOSE LVIZ F10RIN
liA K//TIN outros conceilos-chnvc ------~-----------------------~-

guerra", distates por "asneiras", conspfcUllS por" ilustres", "respeitáveis", pátina neologismos absurdos, bagaço nefando, com que se conspurca a língua
por "envelhecimento" ,firo por "feroz", idos de maio por "dia 15 de maio"; portuguesa, satiriza os puristas. Ridiculariza uma certa norma do português,
translato por "passado", petimetre por "homem que se veste com apuro o que era tido por "português castiço" no período. lroniza uma forma de
exagerado", discretear por "discorrer calmamente", enlace epitalâmico por escrever, em que, sem o menor prop6sito, cita-se a literatura clássica. Ê um
"casamento", vulgo por "povo", mavórticas - adjetivo derivado de Mavorte, caso de paródia de estilo, pois o narrado r desqualifica o estilo imitado no
forma epentética de Marte - por "guerreiras"); próprio movimento de imitação,
e) utilização de perífrases que chegam aO ridículo, para falar de coisas bastante Trata-se de um caSo de intertextualidade, pois é a rnaterialidade
banais (trompas de Eustáquio por "ouvidos"); lingüística-textual do escilo do pré-modernismo que se encontra presente
no texto de Manuel Bandeira. Entretanto, nem tudo o que diz respeito a
f) emprego de formas da sintaxe clássica, como, por exemplo, oração reduzida
estilo será do domínio da inrertextualidade. O estilo, sendo um fato do
de infinidvo em casoS em que no português moderno se utiliza uma
oração desenvolvida (de vós se afirma caval'{.ardes be!fgeros ginetes e virdes funcionamento real da linguagem, constitui-se dialogicamenre. Nesse caso,
da Hélade clássica); não se encontra num texto a materialidade lingüística-textual de dois esti-
los. Temos, então, um fato de interdiscursividade e não de incertextualidade,
g) uso do inflnitivo fIexionado em locuções verbais ou juntO de auxiliares
pois é da ordem do dialogismo constitudvo.
causadvos (não devemos esperdiçarmos;fazemos ponto de honra pertencermos);
A poesia da terceira geração romântica brasileira é uma poesia libertária.
h) emprego das normas portuguesas andgas de acentuação (sm'aiade em lugar Por isso, posicionou-se contra a escravidão e a favor do progresso. É escri-
de saudade, epitaldmico em vez de epitat.ímico);
ta numa linguagem grandiosa, cheia de hipérboles e antíteses. Toma à
i) citação de dois versoS de Os Lwíadas, com que se inicia o célebre episódio natureza, à divindade e à história o material para metáforas e compara-
do Gigante Adamastor. ções. Nela, a natureza significa e revela. Os símiles são construídos com

Porém já cinco sóis eram p:lssados


os aspectos da natureza que sugerem a imensidão e a infinitude: os astros,
Que dali nos parrframos cortando (v, 37, 1-2). o oceano, as procelas, os tufões, os alcantis, o Himalaia, os Andes. a águia,
.. o condor. É urna pocsia indignada (a "ira condoreira"), plena de vocativos,
j) citação de um trecho do primeiro verso das BlICÓÜCtlS, de Virgflio: mb dc ap<Ístl'Ofcs, de imprccações coIltra a divil1lbdc, de convocação da natu-
tegmine jàgi. reza e dos heróis do passado. 'lem um tom oratória e, por isso, apresenta
a oralidade do discurso exaltado da praça pública. Esse tom declamatório
O texto surpreende no contexto do romance, porque o narrado r rompe
é marcado por reticências, que indicam as pausas dramáticas; por traves~
com a modalidade espontânea de linguagem que vinha utilizando até então
sées, que assinalam as pausas de e1ocução; por pontos de exclamação, que
e adota um registro marcadamente formal. Ao optar por um léxico e uma
modulam a ênfase. Há um grande subjetivismo no trato dos temas, pois
sintaxe já desusados, muito a gosto dos parnasianos e pré-modernistas (como
Rui Barbosa, Coelho Neto, Bi/ac) , o narrador imita o estilo desses autores, se pane do princípio de que os sentimentos e as emoções têm papel cen-
tral na História. Aos ideais de liberdade expostos no plano do conteúdo
para ridicularizar a literatura brasileira do período anterior ao modernismo
correspondc lima grande liberdade de versificação, de ritmos e de rimas
e, por conseguinte, toda a cultura brasileira dessa época - já que esse estilo
(Bosi, 1975, pp. 132-6). Tomemos, para exemplificar, um fragmentO de
correspondia ao gosto da moda. Ao satirizar o caráter anacrônico e formal
Navio negreiro, de Castro Alvcs, sem dúvida nenhuma o maior represen~
da linguagem d;l época, escarnece do caráter ultrapassado e solene de nossa
tal1le dessa geração.
cultuf:i urbana em geral. Imniza as Jiscllssócs crimológ'lcls, l11uito aprccia-
das então. Ao dizer que as palavras da gíria ou da linguagem familiar são

187
186
1lt\I<HTJN OltlrOs,'oncciros-chnvc ._ _._ ..__._.
l"lcrcli>ClIrsil'id~cle c inrertcxlunlidade .I0Sf: I.U/7. r-IOR1N

Existe um povo quc a bandeira empresta


Pra cobrir rama inf:imi:t e coOOrdia!... [... ]
A esse desejo de consrruir um objero imarcesdvel correspondem os usos de
uma língua clássica, de uma sintaxe plena de inversões e s{nquises, de for-
Auriverde pcndão da minha tcrm,
mas tradicionais de metro, de rima e de ritmo, de um léxico preciosisra. A
Que a brisa do Brasil bcij~ e b~lança,
poética parnasiana acaba com o que era considerado a frouxidão e a incorM
E.çtandane que a luz do sol encerra
reção dos românticos (Idem, pp. 246-56). Sirva de exemplo para essa poéM
E as promessas divinas de esperança",
tica, o soneto Vaso grego. de Alberto de Oliveira:
Tu que. da liberdade após a guerra,
POHe hasteada dos heróis na lança, bla d~ áureo relevos. trabalhada
Antes te houvessem roco na batalha.
De Jivns mãos. brilhante copa, um dia.
Que servires a um povo de mortalha! ... Já de aos deuses servir como cansada

VinJa do Olimpo, a um novo deus servia.


Fatalidade atroz que a mente esmaga!.,.
Extingue nesta hora o brigue imundo
Em o púcta Tens que a suspendia
O [filho que Colombo ahriu lia vaga,'
Enl.io, (\ om rcpk'ra ora cnv:'{:çada,
Como um lris no pélago prorundo!'" A Inça amiga :l()~ dcdos .~t:ustini:!,
.,. Ma" ê inf?1mia de mais ... Da elérea plaga 'I"da de roxas l,éta1a" colmad:1.
uvantai-vos. hcróis do Novo Mundo ...
Andrada! arranca csre pendão dos ares! D"l1ois ... Ma.' o lavor da taça admira,
Colombo! recha a porra de teus mares! loca-a. e do ouvido aproximando as bDrd:l.~
Finas hás-de lhe ollvir. canora e doce.
(Alves, 1972, pp. 183-4)

Em oposição ao tom grandiloqüente da poesia da cerceira geração ro' Ignota V07., qual se da amiga lira

mântica, o parnasianismo representou uma descida de tom. Constrói uma Fos,c a encanmda música das cordas,
Qual se e,,~a V07, de Anacrcomc rosse.
poesia inenfática, que faz um esforço para aproximar-se impessoalmente
das coisas, dos objetos. Há um culto à forma, um ideal da arte pela arte. O (n:1rIJosa, 1997, p. (42)

supremo cuidado estilístico não é senão a manifestação do desejo de criar


um objeto imperecível, longe dos embates da história. A religião da forma O estilo parnasiano se constitui numa relação dialógica com o da tercei-
cem origem no pessimismo que subjaz à ideologia do determinismo (Bosi, ra geração romântica. Temos aqui um caso de interdiscursividade, mas não

1975, p. 187). No parnasianismo, há um efeito de objetividade no trato de intcrrcxwalidade, pois não se encontram, no mesmo texto, duas
dos temas. Não se trara de remas sociais; ao contrário, há um fetichismo materialidades textuais distintas, como se vê, por exemplo, na "Carta pras
icamiabas", de Mário de Andrade.
dos objetos: "0 parnasiano típico acabará deleitando-se na nomeação de
alfaias, vasos e leques chineses, flautas gregas, taças de coral, ídolos de gesso Olnvo Bílac tinha consciência da constitutividade dialógica do estilo e
em túmulos de mdrmore ... e exaurindo-se na sensação de um detalhe ou na expôs isso em SlI" Profissão de fi.

memória de um fragmento narrativo" (Idem, p. 248). Por isso, o N,io '111~m(l /.""S CapilO!illO.

parnasianismo tem um gosto particular pela descrição nítida (a "mlmese Herclíle(l c hdo.
'l:lIhar 110 In:[rl1lC>r('
divi"o
pela mímese"), rrata-se de uma poética descritiva. do quadro, da cena, do
(~nll1 o 'ç;Lnl.1rtdo.
retrato. Seu compromisso não é intervir na História, mas operar a mímese.

188
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___ ._. . ~ Inlcrdiscursividadc c intcrtcxtualidadc JOSÉ LUlZ F10R1N
EJAKHTlN oUlrosconceitos'ch~vo ---~------~~----------------

Que outro - não eul - a pedra corte Bi/ac afirma que não quer fazer o que faz o escultor, mas que seu traba-
Par.l, brutal, lho é semelhante ao do ourives. O escultor é a figura do poeta da terceira
Erguer de Athene o altivo porre geração romântica com sua grandiloqüência, sua grandiosidade, sua
Descomunal.
monumentalidade, com sua imersão na realidade, com suas hipérboles, com
Mais do que esse vulto eXtraordinário, seu gosto pronunciado pelo narrativo, com sua liberdade formal; o ourives
Que assombra a vista, é o poeta parnasiano, com sua leveza, sua sutileza, seu requinte. com seu
Sedu7.-me unI leve relidrio
afastamento da realidade, com sua busca pela perfeição, com seu tom
De fino artista.
inenfático, com seu culto ao descritivo, com sua rigidez formal.
Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo CONCLUSÃO
Faz de urna flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara Se em Bakhtin há uma distinção entre texto e enunciado e este pode ser
A pedra Firo; aproximado ao que se entende por interdiscurso - já que se constitui nas
O ;tIvo cristal, a pedra rara, relações dialógicas, enquanto aquele é a manifestação do enunciado -, a
O ônix prefiro. realidade imediata dada ao leitor, pode~se fazer uma diferença entre
Por isso, corre, por servir-me, interdiscursividade e intertextualidade. Aquela é qualquer relação dialógica
Sobre o papel entre enunciados; esta é um tipo particular de interdiscursividade, aquela
A pena, corno em prata firme
em que se encontram num texto duas materialidades textuais distintas. Cabe
Corre o cinzel.
entender que, por materialidade textual, pode-se entender um texto em
Corre; desenha, enfeita a imagem.
sentido estrito ou um conjunto de fatos lingüísticos, que configura um
A idéia veste:
estilo, um jargão, uma variante lingüística, etc. O caráter fundamental~
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
A2ul-eclcste. mente dialógico de todo enunciado do discurso impossibilita dissociar do
funcionamento discursivo a relação do discurso com seu outro.
Torce, aprimora, altcia, lima
A frase; e, enfim, O discurso em Bakhtin é lingüística e histórico. No entanto, o autor
No verso de ouro engasta a rima, . russo não apreende essa historicidade discursÍva por meio de "anedotas"
Como um mbim. acerca da produção de um determinado discurso. Com o conceito de
Quero que a estrofe cristalina dialogismo, capta-a no próprio movimento lingüística de sua constituição.
Dobrada ao jeitO É na relação com o discurso do Outro, que se apreende a história que
Do ourives, saia da oficina perpassa o discurso. Essa relação está inscrita na própria interioridade do
Sem um defeito:
discurso, constitutiva ou mostradameme. Com a concepção dialógica da
E que o bvor do verso, acaso, linguagem, a análise histórica de um texto deixa de ser a descrição da época
Por tão sutil,
em que o texto foi produzido e passa a ser uma fina e sutil análise semânti-
Possa o lavor lembrar de um vaso
ca, que leva em conta confrontos sêmicos, deslizarnentos de sentido, apaga-
Ik lkcerri1.
Il1Clj().~ de signifIcados, illtt'l'illCOlllprccnsócs, ete. Em sfntcse, em Bakhtin.
(Bibc, 1942, pp. S-7)

191
lq0
/J/lKIITIN OUtroscollccitos'ch~"c _. _ • , .•• _ .••••••. ._ 'w •• _~
l"lcrdi~ursividadc c ITllerlcxlUalidade JO.~(;I.li/? I'/ORIN

a História não é algo exterior ao discurso, mas é interior a ele, pois o sentido Á\rrJ 111"1, j. Hétt'rogénéilé Illomréc Cl hélérogénéilé constilutive: élémcnts pour une ::tpprúchc dc
l'aUlre dans le discours. DRI.AV, 26, 1982. pp. 91.151.
é histórico. Por isso, para petceber o sentido, é preciso situar o enunciado
BilKliTIN, Mikhail. I.n pottiqt/~ de DOSfOié/Jski.Paris: Seuil, 1970.
no diálogo com outros enunciados e apreender os confrontos sêmicos que
___ L'omvre de Françóis Rnbelnis et Ia lllltlm popt/lnirt ai, moym áge el soU!In wldissnnce. Paris:
o

geram os sentidos. Enfim, é preciso captar o dialogismo que o permeia. Gallimard, 1970a.

___ o &thtti'l"e de In cdnrion verbnte. Paris: Gallimard, 1984.


&tlricn de In crmcíóll verbal. 2. ed. México: Siglo Veintiuno Edirorcs, 1985.
NOTAS ___ o

___ o &wikn slovell/ogo tvorc/;nt11n. Moscou: IskusSlVO. 1986.

I Com efeiro. aqueles CJuepreviram as coisas futuras onde as Viram, se e13Snão existem ainda? Não ___ lov"ard a Rewolking of rhe Dosroiévsky Book. 1n: Probkms o/ lhe DO!toevslyi pow;(S.
o

se pode prever o que não é. E aqueles que narram as coisas passadas. de toda maneira não Minneapolis: Univen;ity of Minnesota Press. 1989. pp. 283-302.
narrariam coisas verdadeiras, se não as apreendessem pela imaginação: porque se das não fossem ___ o Estéticn dn crinçiío verbal. São Paulo: Manins Fontes, 1992.
nada, náo poderiam de modo algum ser apreendidas. ___ o To'lJord n Philosopby o/ t/;e Ae/. Auslin: Universiry ofTexas Press, 1993.
1 A quesrão das relações dial6gicas entre textos e delllro dos lextos será discutida mais adiame. ___ o QlléStões de li/emt/lTII e de estética: a reoria do romance. São Paulo: Hudlec, 1998.
J Posteriormellle, esse texto constituiu o capitulo 4 do livro lmroduçiío li Semnndliu. ___ o (Voloshillov). Mdrxismo efi/mofin do lingl/ngem. São Paulo: Hucirec, 1979.
4 Poder-se-ia dizer que há ainda um terceiro sentido. mais geral: é um prindpio de constituição BANDUlvl.Manue1. &'rct-r drr vida illtâTII. 4. ed. Rio de Janeiro: J. 01ympl0, 1973.
dos seres humanos; é o modo de agir e de estar no mundo.
B,\RLH)."\.Fr~J('ri'n (org.). Clnssicos dll pnr,;n bmsiMm. São Paulo: KJick. 1997.
I Observe-se ainda: "Cada texrO pressupõe um sisrema compreens(vel pará lodos (convencional,
BAR1111~'. Rohtnd. 'Irxt~ (lhéurie du). 111: Omvm complrw. Torne 11 (1966-1973). ~dirioll érablie
delllro de uma dada coletividade) - uma !fngun (ainda que seja a lIngua da anel. Se por trás do
rt I'réselllér par Eric Many. Pnris: Seuil, 1994. 1'1'. 1.677.89.
texro não há uma IIngua, já não se tr.'Ila de um rexro, mas de um fenômeno natural (não perten-
BII.i\C,Olavo. Pocsirrs.19. ed. Rio de Janeiro: Francisco A1ves, 1942.
ceme à csfera do signo); por exemplo, uma combinação de grilOS e de gemidos. desprovida da
reprodutibilidade lingüística (própria do signo)" (Bakhrin, 1992, p. 331). Bos!. Alfredo. Histórin COllriJ!1
do /itmrtrmt/múileim. São Paulo: Cultrix. 1975.
(, O termo proposto por Bakhtin é Mero{ingiilstiea. Prc!erimos, no enranro, chamar essa ciência. à 3MIT. Belh (org.). Bn~·bli/l: cOllceiros-ch.1Ve. São Pau 10: Conrexro. 2005.
maneira dos franceses, trnnslingüfslica, por causa dos valores semii.micos que envolvem a palavra OmltL'.!A. Raimund ••. !'ncJin, 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1976.
Muo!ingiils/ica. Esse problema de denominação é uma prova da correçao das teses bakhtinian:>s
FARAC{),Car!os Alberlo. Lingl/ngem c ditflogo: as idéias tingli!stÍC:1sdo Circulo de Bakhtin. Curitiba:
sobre o problema da distinção entre as unidades porenciais do sistema (objero da Lingüística) e Crinr Ediçóes. 2003.
as unidades reais de comuniC:1ção (objelo .1, lranslingülsríca). Do ponro de vista do sistema,
meta (prefixo grego) e trdtÚ (prefixo latin',: nJ equivalenres; no entanto, eles são completameme KRISTEI'A,julia. Bakhtine. le mor, le dialogue er Je romano Critique. Revue génlmk de pl/b/icntions.
distintos no funcionamemo discursiv,\_ ! --L ,[ualquer forma. o que Bakhtin pretendia em consti· Paris, v. 29, fascículo 239. ::tbr. 1967. pp. 438.65).
luir uma ciência que fosse além da Lingüfstica puis rrararia de analisar o funcionamenro real da ___ o hlirodl/p'io li SWlflnrl{úc. São Pnulo: Perspectiva, 1974.
linguagem e não apenas o sistema virtual 'I"': possibilita esse funcionamento. !'OSSENTI.Slrio. Ohservnçóes .\ohre o interdiscurso. ReIJisrnLetras. Curitiba, Editora da UFPR, 61.
7 Essa tCSCbakhriniana mosrr:1.o equIvoco d . ~hamada linguagem politicamente correra, que pre- 2003, pp. 253.69.
tende dar às palavras da lI"I',ua um sentidu imrínseco. O campo de batalha ideológico não são as RAMos, Graciliano. VidttJ srerrs.29. ,d. São Paulo: Martilis, 1971.
unidades da lIngua, m", ", enunci~,Jos.
VrELIV\,Àl1lbJlio. Si-rmíicf. Porro: Lello. 1959.
, Esse rextO é um manuscri:o, não toralmeme acabado. que deve rer sido produúdo por volta do
inicio da década de 1960.

? Viu-.,e amerl()rmente que Bakhtin distingue signifiC:1ç.~oe senrido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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