Foucault, Sade e As Luzes
Foucault, Sade e As Luzes
Foucault, Sade e As Luzes
Resumo: Este artigo dedicado aos usos que Foucault prope da obra de Sade
(desde Histria da Loucura at A vontade de Saber), ou seja, de que forma estes
usos so suscetveis de despertar um esclarecimento indireto sobre o status
equivocado que recebem as Luzes no pensamento foucaultiano. Aqui, encontramse explicitamente opostas figura literria de um Sade transgressivo que se associa
escrita e ao pensamento do exterior, e aquela de um Sade sargento do sexo,
provedor de um erotismo disciplinar que acompanha o desdobramento de uma
racionalidade instrumental.
Palavras-chave: disciplina; erotismos; Foucault; Sade; transgresso.
Introduo1
Se, em um de seus ltimos textos, Foucault
pde identificar completamente o projeto das
Luzes na figura de Kant e no pensamento
crtico, reelaborado em funo da ontologia
histrica de ns mesmo, e nas condies que,
finalmente, permanecem discutveis; no se
pode dizer, de imediato, que a Aufklrung2
tenha tomado em sua obra, a forma e o valor
de um acontecimento discursivo identificvel
como tal, com a mesma carga de novidade e
de radicalidade, daquela que lhe conferida
em 1984. Foucault, arquelogo, se dedicou,
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do
saber:
um
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conduzindo
irresistivelmente
cada
personagem abolio soberana de si
mesmo. Sade est ento num sentido
contemporneo das grandes construes
filosficas das Luzes, de toda esta
verborragia sobre o homem e a natureza16,
que possui integramente a partilha clssica da
razo e da desrazo, e que, de maneira irnica
e excessiva, pe em cena em seus romances;
seu discurso iluminado-obscuro, sua razo
atravessada por uma lacuna [...] uma falta,
uma loucura testemunha tambm, e de
maneira exemplar, deste pensamento
externo, que, na margem das Luzes, abre o
campo de uma experincia literria indita
que associa a descoberta da sexualidade a um
certo apagamento do sujeito que deseja na
exterioridade da linguagem. Sade nosso
contemporneo (nosso prximo no dizer de
Klossowski17), seja contemporneo de
Bataille e de Blanchot, no sentido em que por
meio de seus livros transmitem uma certa
maneira uma contra herana das Luzes, o
princpio oculto, e ocultado, deste que
permanece na desrazo uma vez livre do
esquema dialtico da alienao e rendido a
seu vigor trgico e explosivo:
menos arriscado supor que a primeira
brecha por onde o pensamento do exterior
se revelou para ns est, paradoxalmente,
no monlogo repetitivo de Sade. Na poca
de Kant e Hegel, no momento em que, sem
dvida, a interiorizao da lei da histria e
do mundo jamais foi mais imperiosamente
requisitada pela conscincia ocidental, Sade
s deixa falar, como lei sem lei do mundo, a
mudez do desejo. Foi na mesma poca em
que na poesia de Hlderlin se manifestava
na ausncia cintilante dos deuses e se
enunciava como uma nova lei a obrigao
de se esperar, perpetuamente, sem dvida, a
ajuda enigmtica que vem da ausncia de
Deus. Poderamos dizer sem exagero que,
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nossa
interioridade, durante todo o tempo em que
se formulou, da maneira mais imperiosa, a
exigncia de interiorizar o mundo, apagar
as alienaes, superar o momento falacioso
da Entasserung, de humanizar a natureza,
naturalizar o homem e recuperar na terra os
tesouros que tinham sido gastos nos cus
(FOUCAULT, 2001, p. 222-223).
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tambm
sua
modernidade, sua funo crtica no presente,
de um Kant, que acaba por retornar o gesto
crtico do sujeito autnomo (ou de um Hegel
que recapitula o percurso reflexivo do
Esprito o sujeito absoluto interiorizando
dialeticamente o mundo e a histria). Assim,
desenha-se, pela demonstrao narrativa dos
excessos escandalosos de uma sexualidade
desnaturalizada, plenamente absorvida no
interior da linguagem, a figura paradoxal de
Sade Aufklrer que ilumina os limites deste
pensamento
moderno,
dialetizado
e
totalizante, que a literatura contempornea
percorre em sua volta, acolhendo finalmente a
herana da razo de Sade (com Bataille,
Blanchot, Klossowski, o Novo Romance).
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transgresso.
In:________. Esttica: literatura e pintura,
msica e cinema (Ditos e Escritos III).
Organizao e seleo de texto Manoel Barros
da Motta; traduo de Ins Autran Dourado
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