O Mito Da Mãe Preta
O Mito Da Mãe Preta
O Mito Da Mãe Preta
Identificadas porm vida na escravido, algumas dessas pobres creaturas chegaram mesmo
a idolatrar seus algozes; algumas dellas foram
dedicadas em extremo; e, sem poderem erguer
francamente os olhos, bemdiziam aquelles que
lhes davam o po para alimento e o duro trabalho para amenidade de suas vidas. Mi preta foi
uma dessas creaturas; sua vida porm no deve
ficar no olvido, pois que symbolisa a existncia
de umalma dotada de sentimentos extraordinariamente nobres.1
Jos A. C. Jnior
Jnior, Mi preta, p. 167. Decidi manter na citao a ortografia original desse folhetim de
1888. A mesma deciso foi tomada com relao s citaes de outras publicaes do sculo XIX que
aparecero ao longo deste ensaio.
2
Costa, Ordem mdica e norma familiar, p. 123.
3
Apud Giacomini. Mulher e escrava: uma introduo ao estudo histrico da mulher negra no Brasil,
pp. 49-50.
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ticos do passado revela, pois, o compromisso dos autores com a sua classe
de origem; o tom nostlgico de suas memrias anuncia o retorno do filho
casa do Pai, para que possa assumir, depois da insubordinao [ou seja, da
descida ao universo plebeu], o seu lugar, e a volta ao seio da famlia, para
que seja o patriarca11.
Talvez no haja no modernismo brasileiro um exemplo mais claro desse
retorno casa do Pai, ou reapego aos valores da aristocracia rural que a
obra de Jos Lins do Rego, sobretudo seus primeiros romances autobiogrficos que compem a srie denominada pelo prprio autor de ciclo da canade-acar. J em seu primeiro livro da srie, Menino de engenho (1932), o
escritor se prope a revelar para um pblico, em sua maioria urbano e de
classe mdia, a vida de menino nas casas-grandes dos antigos engenhos de
acar do Nordeste agrrio. Menino de engenho narra a infncia do garoto
rfo, Carlos de Melo, no engenho Santa Rosa, do av materno, o coronel
Jos Paulino. Sob a tutela desse av, o personagem Carlos viver como bicho
solto, gozando da liberdade de conviver tanto com os moradores da casa-grande quanto os negros da rua, nome dado senzala do Santa Rosa. desse
convvio com os habitantes da rua, ou seja, as negras e suas crias (os
muleques e as mulecas), que o menino desenvolver ou experimentar o
apego natureza tropical, o estmulo e satisfao de seus (precoces) desejos
sexuais, a imaginao encantada das matas a partir das histrias contadas
pelas negras. Enfim, doses dirias de alegria antdoto necessrio, segundo
o narrador, contra a melancolia comum da casa-grande, a sobriedade das
tias, a quietude do av.
Essa mesma representao idlica, e luxuriosa do engenho, assim como
a harmonia ou proximidade entre a casa-grande e a senzala, cuidadosamente elaborada no livro de memrias, Meus verdes anos, que Jos Lins
do Rego, publicaria em 1956, apenas um ano antes de sua morte um
engenho (o Engenho Corredor) governado pelo coronel Jos Lins, av
legtimo do autor, enobrecido por seu apego telrico regio, sua mansa
autoridade e proteo paternalista dispensada aos empregados, em sua
maioria ex-escravos que, por fidelidade ao coronel, permaneceram no
engenho aps a declarao da abolio. Emblemtico do Velho Nordeste
agrrio, o engenho da infncia de Lins do Rego apresenta traos da tradio
11
Id., p. 32.
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12
Id., ibid.
Id., p. 43.
18
Thurber, The Development of the Mammy Image and Mythology, p. 87.
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No Brasil, o emprego da ama-de-leite foi uma das prticas institucionalizadas pela famlia patriarcal,
embora, segundo o historiador Luis Filipe de Alencastro, famlias menos abastadas tambm pudessem
alugar os servios de uma ama para o aleitamento de seus filhos. Sobre a popularidade desses servios
no Brasil do sculo XIX, consultar seu ensaio Vida privada e ordem privada no Imprio, p. 63.
Consultar tambm Carneiro, Corpos que nutrem: mulheres procuradas e oferecidas para aluguel e
venda na capital federal da Corte Imperial, p. 90. (traduo minha).
20
Carneiro, Corpos que nutrem, p. 97.
21
Id., p. 98.
22
Data da mesma poca (1964) a produo da telenovela brasileira, Direito de nascer, adaptada do melodrama do escritor cubano Flix Caignet, que igualmente inclua em seu enredo uma encarnao da
me-preta, a Mame Dolores, interpretada por Isaura Bruno. Sobre a imagem dos afro-descendentes
na histria da telenovela brasileira, consultar Arajo, A negao do Brasil, p. 142.
23
Seigel e Gomes, Sabina das laranjas: gnero, raa e nao na trajetria de um smbolo popular, 18891930, pp. 171-93.
24
Borges, Como e porque a escravido voltou conscincia nacional na dcada de 30, p. 207.
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Id., p. 210.
Para uma compreenso das imagens da ama-de-leite nos anos da Belle poque, consultar o captulo
Contagion and Control do livro da historiadora Sandra Lauderdale Graham House and Street: The
Domestic World of Servants and Masters in Nineteenth-Century.
27
Borges, op. cit., p. 221.
28
Freyre, Manifesto Regionalista de 1926, p. 48.
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escravos domsticos, em detrimento dos escravos do eito, e, num contexto urbano, os escravos da rua. Alm de oferecer uma verso reduzida do
contingente escravo nos antigos engenhos, Freyre tampouco privou-o de
uma existncia por vezes mitificada. interessante constatar nesse ensaio
de 1925 a incluso dos mitos da me-preta e da mulata cordial, que menos
contriburam para a recuperao da histria dos negros no Brasil, que para
os propsitos do socilogo de traar uma imagem um tanto quanto benigna
da escravido. Imagem esta que ele soube habilmente contrastar com as
condies degradantes em que passaram a viver os trabalhadores sob o jugo
dos usineiros que vieram a substituir os antigos, e benevolentes, patriarcas
do acar.
Ao incluir o mito da me-preta em Vida social no Nordeste, e posteriormente em seu mais importante estudo sobre a contribuio afro-brasileira na
cultura nacional, sua obra-mestra Casa-grande e senzala, Freyre legitimaria
uma figura a ama negra de leite e de criao difamada pela literatura
oitocentista abolicionista e pelas teorias racias propagadas por vrios intelectuais, cientistas, e escritores da Belle poque. Dado, portanto, o desinteresse
histrico, e literrio, de ento, em torno da nobre e higinica me-preta,
provvel que Freyre tenha-se em parte inspirado na construo norte-americana do mito, sobretudo se se considerar suas leituras de, e referncias concretas a estudos sobre a formao familiar na regio sul dos Estados Unidos.
Parece-me igualmente legtima a hiptese de que a centralidade que o mito
da me-preta adquire em sua obra tenha favorecido o seu reaparecimento
no discurso pblico brasileiro a partir da dcada de 1920, como se pode
constatar em diversas obras literrias e artsticas do Modernismo, em canes
populares, assim como na imprensa afro-brasileira. Alm de se configurar um
smbolo de nostalgia senhorial nas memrias de infncia de vrios escritores
modernistas, a me-preta igualmente aparece nas telas de artistas tais como
Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Alfredo Volpi, Di Cavalcanti, assim como
nos poemas de Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Manuel Bandeira, Jorge de
Lima. Como informam Seigel e Gomes, no acima referido ensaio Sabina
das Laranjas, tambm nos anos 1920 que a me-preta homenageada na
revista de estria, Tudo preto, da primeira companhia teatral afro-brasileira,
a Companhia Negra de Revistas. Tal homenagem foi um provvel gesto de
apoio campanha a favor da construo de um monumento Me-Preta
(efetivamente inaugurado em So Paulo, em 1955), que mobilizou a
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Id., p. 70.
Id., p. 73.
45
Verssimo apud Freyre, Aspectos de um sculo de transio no nordeste do Brasil, p. 162. Esse artigo
ser daqui por diante referido como Aspectos.
46
Id., p. 162.
47
Id., p. 163. (itlico meu).
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Franco, Whats in a Name?: Popular Culture Theories and Their Limitations, em Pratt e Newman.
Jean Franco Critical Passions: Selected Essays. Durham; London: Duke University Press, 1999, p. 170.
(traduo minha).
49
Storey, Inventing Popular Culture: from Folcklore to Globalization, p. 2. Segundo as autoras Maria Ins
de Almeida e Snia Queiroz, projetos de integrao nacional promovidos pela poltica imperial de
D. Pedro II teriam estimulado nas ltimas dcadas do sculo XIX as primeiras tentativas no Brasil de
coleta e publicao de contos orais populares e lendas indgenas. Alm da iniciativa de Slvio Romero,
as duas autoras tambm reportam a publicao em 1876 de O selvagem, do general Couto de Magalhes, que reunia 25 Lendas Tupis e se destinava a figurar na biblioteca americana da Exposio
Universal de Filadlfia, comemorativa do Centenrio da Independncia Americana. Cf. Na captura
da voz: as edies da narrativa oral no Brasil, p. 12.
50
Rego, Histrias da Velha Totnia, p. ix.
socilogo, o acesso aos livros de leitura (em seus termos traduces apressadas do francs)51, facilitado pela modernizao dos meios de reproduo
e circulao da matria escrita, teria um impacto negativo na prtica da
narrativa oral no Brasil. E enquanto Walter Benjamin, em The Storyteller, responsabilizaria, alm do romance, a imprensa escrita pelo declnio
da arte de contar histrias52, Freyre mencionaria um fenmeno ainda mais
ameaador no somente para as velhas Totnias, mas para a sua classe de
letrados: a entrada e hegemonia do cinema norte-americano (Hollywood)
em territrio nacional. O cinema americano, escreve Freyre de maneira
ainda mais enftica que em sua crtica literatura infantil (mal) traduzida do
Francs, eis o que hoje se vae plasmando no Brasil inclusive no Nordeste
a imaginao do menino53.
Freyre aludiria em ensaios posteriores, como Assombraes do Recife Velho,
aos obstculos sobrevivncia das histrias populares de assombraes no
sculo da luz eltrica. Material valioso do folclore afro-brasileiro, as histrias
de assombraces foram gradualmente perdendo seu impacto ao deixarem de
ser contadas no luso-fusco das casas grandes e velhos casares iluminados
por velas e candeeiros. A luz mais brilhante, escreve Freyre, [afugentou]
os fantasmas no s das ruas como do interior das casas54. Contudo, na
passagem acima citada, a projeo de luz nas salas escuras do cinema afugentaria os fantasmas (o que Freyre tambm chamaria um mal-assombrado
bom) da vida da criana de uma maneira ainda mais preocupante para o
socilogo. Como ele argumenta, o cinema plasma a imaginao. No se
trata mais de um gnero narrativo (as histrias orais infantis) fecundante
da imaginao de uma pequena audincia tomada pelo medo e prazer, mas
de um veculo comunicativo autoritrio (o cinema americano) plasmador
da imaginao de uma platia numerosa, entorpecida pela velocidade das
aes e imagens: o cinema toma os doces vagares necessrios ao contar de
histrias55.
Sem desmerecer os riscos de violncia simblica ou cultural inerentes
asceno de culturas de massa como o cinema, deve-se contudo reconhecer,
no obstante tais riscos, a vitalidade que tem a cultura popular no Brasil.
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Ao contrrio, como argumenta Jean Franco, em seu j referido artigo Whats in a Name?, como
Gramsci demonstrou, a hegemonia um constante processo de negociao e luta (p. 177). Nesse
sentido, os filmes de Hollywood podem representar tentativas de controle mas eles ao mesmo tempo
tm que satisfazer os desejos verdadeiros e as necessidades do pblico. Acima de tudo, eles devem ter
a capacidade de divertir o pblico.
57
Almeida, Regionalismo e modernismo: as duas faces da renovao cultural dos anos 20, p. 320.
58
Freyre, Aspectos, p. 193.
59
Almeida, op. cit., p. 322.
60
Como escreve o crtico Luciano Trigo, num certo sentido, o prprio romance moderno do Nordeste
teve como motor imediato o pensamento de Gilberto Freyre e o Manifesto Regionalista que saiu do
Congresso de Recife de 1926 (embora s publicado em 1952), pontos de partida da nova gerao de
ficcionistas nordestinos. Trigo, em Engenho e memria: o nordeste do acar na fico de Jos Lins
do Rego, p. 57.
61
Para uma compreenso da narrativa, construda a quatro mos, da rara e profunda amizade entre
Jos Lins do Rego e Gilberto Freyre, consultar o ensaio de Csar Braga-Pinto, Jos Lins do Rego:
sujeito aos ventos de Gilberto Freyre, pp. 183-203.
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sob um falso efeito de visibilidade. Em seu ensaio sobre a bab negra no Brasil,
O dipo brasileiro: a dupla negao de gnero em raa, a antroploga Rita
Laura Segato fala dessa invisibilidade imposta pela representao estereotipada. Para Segato, trata-se de um crime perfeito baudrillardiano, ou nos
termos de Roland Barthes um roubo de linguagem [a language-robbery] 68.
Em outras palavras, como explica Segato, os aspectos exteriores da cena
parecem preservar-se como uma casca ou epitlio, enquanto aspectos determinantes do seu contedo so removidos e substitudos sub-repticiamente
por outros atravs de uma estratgia de verossimilitude69. Mas quem afinal
a me negra de criao brasileira? Para uma aproximao com os aspectos
de sua realidade necessrio desviar os olhos das memrias de infncia
modernistas e busc-los em outros discursos ou exerccios de representao
como a literatura de testemunho, a histria oral, a literatura afro-brasileira,
e novos estudos histricos.
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Seigel, Micol e Gomes, Tiago de Melo. Sabina das laranjas: gnero, raa e
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Trigo, Luciano. Engenho e memria: o nordeste do acar na fico de Jos
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Recebido em maio de 2008.
Aprovado para publicao em junho de 2008.
Sonia Roncador O mito da me preta no imaginrio literrio de raa e mestiagem cultural. Estudos
de Literatura Brasileira Contempornea, n. 31. Braslia, janeiro-junho de 2008, pp. 129-152.