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Percepo Digital: Sinestesia, Hiperestesia, Infosensaes - 09-15-2008

Revista Universitria do Audiovisual - www.rua.ufscar.br

Percepo Digital: Sinestesia, Hiperestesia, Infosensaes


http://www.ufscar.br/rua/site/?p=662 Prof. Dr. Srgio Roclaw Basbaum: TIDD - Programa de Ps-Graduao em Tecnologias da Inteligncia e Desing Digital. Depto. de Cincias da Computao. Faculdade de Matemtica, Fsica e Tecnologia Pontifcia Universidade Catlica - So Paulo (PUC-SP) sergiobasbaum@pucsp.br

Caminhos do pensamento No ano de 1992, quando estudava Cinema na Universidade de So Paulo, iniciei um trabalho de pesquisa envolvendo as relaes entre cores e sons, tendo em vista a composio de msica para cinema. A pesquisa levou-me, claro, questo da sinestesia; mas tambm aos recursos e ambientes de produo digital de imagens e sons, que, naquele incio dos anos 90, j se apresentavam um pouco mais acessveis e certamente promissores. Como resultado, realizei pouco depois meu mestrado focando-me sobre a sinestesia nas artes a partir de questes que emergem da interseo entre arte, tecnologia e percepo. Este se tornou um pequeno livro, (BASBAUM: 2002), em que se apresentaram para mim, de modo irrecusvel, certos vnculos entre as aspiraes poticas de uma possvel histria da sinestesia nas artes e a emergncia dos recursos digitais. A partir destas primeiras intuies, formalizei pela primeira vez - em 2003, no Subtle Technologies em Toronto - um conceito de "percepo digital", a partir do qual propunha pensar a sensibilidade nas sociedades tecnolgicas. Estava ento j envolvido em minha tese de doutoramento, na qual busquei pensar de maneira um pouco mais extensa estas relaes entre arte, tecnologia e percepo e suas implicaes na experincia contempornea (BASBAUM: 2005). Este percurso faz notar - de modo surpreendente at para mim - que j h mais de 15 anos venho trabalhando estes temas. E que, tendo buscado a partir da sinestesia nas artes um caminho de pensamento, outros modos de experiment-la tambm emergem de modo irrecusvel e surpreendente. Pensar as relaes entre a sinestesia e a cultura contempornea implica levar em conta a questo da percepo de modo abrangente; demanda levar em conta no somente o problema da percepo como objeto de estudo da filosofia, da fisiologia, da neurologia ou da psicologia - com suas mltiplas implicaes em termos de conscincia, pensamento e cognio -, mas em suas relaes com o sentido de nossa experincia: suas relaes com a cultura; e, tratando-se de uma cultura mais e mais tecnolgica, a questo da tecnologia. Nesses termos, possvel avanar em relao s posies que propus anteriormente sobre os vnculos - que a esta altura deveriam ser evidentes - entre aquilo que se tem evocado com a palavra "sinestesia" e as manifestaes da cultura e da arte contemporneas, no mbito daquilo que Charlie Gere (2002) chamou de "cultura digital". Aquilo que em mim sente est pensando Fernando Pessoa, o grande poeta portugus, disse certa vez que "aquilo que em mim sente, est pensando". A grande artista brasileira Lygia Clark disse o mesmo, num contexto bastante diverso. O que

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est dito a rene boa parte do esforo filosfico da fenomenologia da percepo de Merleau-Ponty, na medida em que reconhece a unidade entre sensao e pensamento, abolindo a oposio tradicional entre razo e sensao que sustenta boa parte do pensamento ocidental. De fato, perguntou-se a Merleau-Ponty qual era a razo de seu retorno ao mundo percebido, j que superar as iluses da percepo era precisamente a meta de toda a filosofia e cincia; ele respondeu que esse retorno era necessrio para se compreender a gnese da prpria racionalidade, sua natureza e alcance (MERLEAU-PONTY, 1990). Toda a linguagem, toda a cincia, toda a racionalidade e todo o saber partem do mundo percebido. Em primeiro lugar, eu tenho um mundo, cuja origem o encontro entre meu corpo e um horizonte, um "sistema de coisas", operado pela percepo. a partir da que a percepo funda em mim uma noo de "verdade" com a qual, muito posteriormente, filosofia e cincia podero brincar, buscando assegurar as condies dessa "verdade" por meio de uma "lgica" ou de um "mtodo". Mas o mundo que a percepo me d no o chamado "caos das sensaes", que seria ordenado por meio dos julgamentos da razo, por associao e memria. anterior representao, e me d "coisas" abertas e inacabadas - ao invs dos "objetos", idealmente distintos uns dos outros, aos quais a cincia agrega propriedades, igualmente definidas e calculveis. Ainda que o horizonte aberto pela percepo seja instvel, dinmico, tecendo campos de relaes e hierarquias entre coisas e seres que se refazem a cada instante, este mundo pr-objetivo, anterior linguagem e aos desempenhos da razo, j um mundo vestido de sentido, de uma direo. Uma das belas lies que se pode extrair da fenomenologia merleau-pontyana ler a palavra "sentido" em suas mltiplas implicaes: os sentidos (corpo) me lanam no sentido (direo) do mundo e me entregam um mundo j banhado de sentido (significao). sobre essa tese do mundo, dada no perceber, que a razo opera. E nessa percepo, tal qual descrita por Merleau-Ponty, em 1945, "os sentidos traduzem-se uns nos outros sem necessidade de um intrprete" (MERLEAU-PONTY, 1994: 315). Pensamos como sentimos Entretanto, muito embora as descries de Merleau-Ponty tenham retomado de maneira decisiva o papel da percepo na experincia vivida - e mesmo a cincia contempornea tem retomado caminhos abertos pelo fenomenlogo francs (o grupo do falecido Francisco Varela[1], por exemplo) -, a fenomenologia da percepo no foi capaz de perceber que este bero do sentido no desemboca necessariamente na razo: se assim fosse, a razo, tal qual a conhecemos, no seria uma marca distintiva do pensamento ocidental. Desnecessrio lembrar o chauvinismo oitocentista que acompanha qualquer tentativa de afirmar a razo como emblema de uma superioridade do ocidente: a presente realidade global, e mesmo a descoberta de seus prprios limites ao longo do sculo XX, no mais permitem tomar a razo tcnica europia como o ponto mais alto da evoluo humana. Devemos ento pensar, ainda com Merleau-Ponty, que somente aquela admirao primeira com as coisas, de que nasce todo o pensamento, que pode nos recordar incessantemente da inesgotvel riqueza de sentidos do vivido. De tal forma que a razo desce de seu pedestal para entender-se somente como uma das formas de significar o vivido. Poderosa, sem dvida; mas sem qualquer direito ao monoplio do acesso s coisas. Aproximada deste modo, a questo da percepo abre-se multiplicidade das culturas como diferentes modos de celebrar o real. "Pensamos como sentimos", afirma o antroplogo canadense David Howes (2003). Howes, Constance Classen (1993) e outros engajados em investigar a antropologia dos sentidos tm mostrado, com muita clareza, que sentimos e percebemos de modo muito diverso de cultura a cultura, de sociedade a sociedade. Sean Day passou muito perto deste problema quando escreveu seus trabalhos sobre metforas sinestsicas

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nos anos 1990, mostrando diferentes hierarquias de modalidades perceptivas entre as literaturas inglesa e alem (DAY, 1996). Mas a estamos ainda num modo ocidental de apreender o mundo, dominado, sobretudo, por um modo de olhar. So tantos os autores, de tantos campos diferentes que reafirmam a primazia da experincia visual no pensamento e na representao na cultura ocidental[2], que o tema se torna quase tedioso: uma lista breve poderia incluir McLuhan, Heidegger (1977), Freud, Benjamin, Hannah Arendt, Oliver Sacks e mesmo Francis Crick. E at mesmo para o filsofo japons Nishida Kitar, o ponto-de-vista a marca do conhecimento no ocidental. Os mitos gregos falavam no poder do olhar da Medusa; o dramaturgo ingls Samuel Beckett roteirizou um filme em 1965 em que o protagonista procura, a todo custo, esquivar-se a qualquer possibilidade de ser visto, e em que a cmera um instrumento de morte; na mesma direo, em suas Histoire(s) du Cinema, o cineasta Jean-Luc Godard compara o olhar da cmera - que guarda as imagens do mundo em sais de prata fotossensveis - transformao da mulher de Lot em esttua de sal. Man Ray fez, em seu "Motivo perptuo", uma incrvel sntese dessa leitura do ocidente: um olhar que oscila mecanicamente entre um extremo e outro, sem jamais perder a sua proeminncia sobre os demais sentidos no acesso ao real. Entretanto, os demais sentidos tambm podem "fazer mundo", podem significar o vivido. Classen e Howes mostram claramente como outras culturas possuem no um "ponto-de-vista", mas um "ponto de experincia": h culturas constitudas por uma primazia do mundo auditivo, culturas orais; h culturas que significam o mundo e elaboram linguagem a partir de uma primazia ttil, como o caso dos Tzotzil, do Mxico, cujo mundo compreendido em termos de trocas trmicas; e h tambm culturas que vivem segundo uma cosmologia olfativa, como o caso - um de meus favoritos - dos nativos da Ilhas Little Andaman, na Baa de Bengala, que significam seu mundo atravs da troca dinmica e voltil de aromas, e que quando perguntam "como vai voc", na verdade esto perguntando "como vai o seu nariz". (Antes que se diga que trato aqui estes povos como se fossem curiosidades exticas, interessante notar que quando o tsunami devastou a costa da ndia no final de 2004, nas Ilhas Andaman todos se salvaram). H muitos modos de acessar com o mundo vivido, alm daqueles da razo. E h, inclusive, culturas sinestsicas: o caso dos Desana, da Amaznia (Amrica do Sul), cujo modo de significar o mundo se d a partir de experincias e rituais vividos sob o transe de alucingenos - resultando numa cultura marcada por relaes e cruzamentos entre os diferentes sentidos. Diferentes culturas organizam seu mundo sensorial de modo distinto, e nos ajudam a lembrar a infinita riqueza da experincia vivida. (Nesse sentido, a superao abismal da arte moderna e o salto conceitual admirvel levado a cabo pelos artistas brasileiros Hlio Oiticica e Lygia Clark pode ser creditado - o que diria o crtico ingls Guy Brett (1994) - em grande medida, ao fundo multisensorial e sincrtico da cultura brasileira). O imprio do olhar

O olho separa, enquadra, foca. fora da representao visual da linguagem oral - a escrita na qual, segundo McLuhan, trocamos ouvidos pelos olhos - devemos no apenas toda a evoluo do nosso modelo de conhecimento, mas o desenvolvimento da cincia e com ela o desenvolvimento de uma fala tcnica, inequvoca, capaz de fixar na representao essa migrao das "coisas" a "objetos". A linguagem vivida, falada, um universo aberto, que se oferece incessantemente interpretao, que se recria a cada retomada - inclusive, no dizer de McLuhan, uma extenso de todos os sentidos; ao passo que a representao matemtica e os algoritmos so precisos, devem ter uma nica leitura possvel, por uma mquina. Manifestao de uma tradio cultural obcecada pela idia de controle do real, nossa linguagem

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cientfica facilmente se apodera do mundo vivido e o projeta no grande espelho ideal com o qual pretende engendrar o "ponto arquimediano" a partir do qual se poderia mover todas as coisas (ABRANCHES, 2006). fcil, ento, ler o famoso verso do poeta brasileiro Mrio Quintana: "somente a poesia possui as coisas vivas; o resto necrpsia". Mas como se pode pensar os vnculos entre a percepo - entendida aqui como bero do sentido e empreendimento coletivo, o modo da cultura relacionar-se com e significar o vivido - e as tecnologias que emergem do empenho e das conquistas desse modo de conhecimento? Fcil notar as relaes entre as prteses tecnolgicas do olho humano com as quais se fizeram a histria da imagem e da cincia moderna - telescpios, microscpios, perspectiva, cmera escura, fotografia, cinema, e as infoimagens produzidas pelo clculo informacional. A cada uma destas tecnologias corresponde um modelo de conhecimento, um momento da cultura, de que estes diferentes suportes participam, os quais em alguma medida operacionalizam e tambm, em grande medida, exprimem. Ler a histria das tecnologias da imagem em suas relaes com o pensamento moderno tarefa hoje simples: o estabelecimento da noo de ponto-de-vista, sua consolidao num conceito ideal de sujeito, a mecanizao da produo da imagem, o registro objetivo do movimento e da durao, o clculo do real. Mais sutil, entretanto, o modo como intervm nos modos de perceber que fundam a cultura. Que relaes podem ser estabelecidas entre as tecnologias produzidas por um modo de significar o vivido e a percepo que o inaugura? Diversos autores contemporneos escreveram sobre isso, como Paul Virilio ou Fredrich Kittler; mas o primeiro a observar a interferncia decisiva das tecnologias de mediao no modo como percebemos, significamos e experimentamos o mundo foi Walter Benjamin, num artigo dos 1930, hoje clebre. De modo pioneiro, Benjamin (1984) soube notar que a fotografia e o cinema eram, sobretudo, o olhar de uma certa cincia - que criara as condies para a emergncia destes aparatos; e que a relao entre um pintor e um cameraman era comparvel de um curandeiro e um cirurgio: no primeiro caso, entende-se que h algo de inapreensvel, de mgico na vida, com o qual se quer estabelecer uma relao; no segundo, trata-se de perceber as coisas como os objetos da cincia. Richard Cytowic pde notar algo similar quando escreveu que "we no longer observed human physiology directly, but through the lens of technology (...) Patients have been reduced to objects, and physicians to dispassionate feeders of the machines" (CYTOWIC: 2000). Por outro lado, tendo sua imagem potencializada e multiplicada pelo aparelho, o ser humano torna-se mais que humano, espetculo que ressurge nas telas como um super-homem: a cmera realiza, diz Benjamin, um teste - os vencedores so o astro de cinema e o ditador. Desse modo, a onipresena destas imagens tcnicas reinaugurava a experincia, rompendo modos de significao do passado e instalando a iluso de um mundo reinventado - muito similar que alguns apologistas da tecnologia fazem hoje. Mais tarde, j nos anos 60, o canadense Marshall McLuhan (2001) formalizou estas questes extraordinariamente ao dizer que as tecnologias eram "extenses do homem", e que "o meio a mensagem": as tecnologias de mediao intervm decisivamente no modo como percebemos o mundo, como nos relacionamos com o real, pensamos e formalizamos o conhecimento. Que as imagens da fotografia e do cinema tenham nos feito perceber o real nos termos da distino sujeito-objeto de onde emergem, leva a indagar em que medida os aparatos que fazem a mediao nas sociedades informacionais nos fazem perceber e experienciar o real nos termos da ciberntica - algoritmos, bancos de dados, clculo. No mundo contemporneo, todas as instncias do real, dos afetos tecnologia de guerra, so mediadas por dispositivos digitais, e pode-se indagar em que medida as obsesses por corpos perfeitos e eficientes, pelas cirurgias plsticas planejadas em computador, pela produtividade, velocidade, performance e eficincia que constituem atualmente os termos do real so sintomas do impacto da mediao digital - e

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das possibilidades de simulao e clculo que inaugura. Mas o que tudo isso tem a ver com "sinestesia e percepo digital"? Recapitulemos: a percepo o bero do sentido da experincia; e culturalmente constituda, um empreendimento coletivo que opera o modo como certa cultura acessa e significa o vivido. De um modo muito sinttico, a formulao inicial do conceito de "percepo digital" traava uma leitura histrica da percepo no ocidente ao longo da modernidade: suas relaes com um determinado modelo de conhecimento que realiza, no sculo XIX, a separao dos sentidos e que desemboca na arte moderna como empreendimento que almeja a especificidade dos suportes - investigando ao limite as possibilidades semiticas e experienciais de tal dissociao. Dado que a percepo essencialmente uma operao de todos os sentidos, tal separao artificial viria a ser desmontada pela chamada arte contempornea, que rompe progressivamente com a especificidade de suportes e linguagens produzindo inmeras e variadas solues de hibridizao dos sentidos e das linguagens, em conjunto com a emergncia dos suportes digitais. Hibridizao progressiva e sem retorno, de cujo incio participam, por exemplo, Fluxus, John Cage, Yannis Xenakis, John Whitney - com suas primeiras formalizaes de um conceito de "visual-music" - e os j citados Helio Oiticica e Lygia Clark. Segue-se uma verdadeira epidemia de instalaes imersivas que envolvem imagens, sons, por vezes aromas, e muitas vezes sensores de movimento ou interaes tteis, no apenas implodindo completamente qualquer possibilidade de uma contemplao sensorialmente especializada nos termos em que operava o modernismo - mesmo em suas eventuais proposies sinestsicas, como o caso do freqentemente citado Kandinsky -, mas impondo uma intensa carga de estmulos, operacionalizada cada vez mais em termos informacionais ao espectador. Signos extremos do modo como o intercruzamento perceptivo e as intertradues sinestsicas entre diferentes modalidades sensoriais tornaram-se o modo corrente de manifestao e experincia na cultura contempornea esto por toda parte: nas telas do "players", que acompanham msicas com algoritmos geradores de imagens abstratas - verso automtica e esteticamente barata dos trabalhos pioneiros dos irmos Whitney e outros; no fenmeno dos "VJs", que acompanham msica com imagens em "raves" e outros locais de entretenimento, agregando intensidade ao carter imersivo da experincia; ou, curiosamente, o fato de que instalaes de som, msica e imagens abstratas apaream at mesmo em filmes como da popular boneca infantil Polly Pocket.[3] Por toda a parte, infosensaes, produzidas e operacionalizadas pelo clculo digital, constituem o ambiente vivido, onde se inaugura a experincia do real. Num quadro como este, a palavra sinestesia assume um carter fascinante, aparece em diferentes reas do conhecimento. Evoca uma sorte de temas, como se acenasse ao mistrio do sentido contemporneo. Em meio ao vrtex informacional sinestsico. A pergunta que se coloca ento : qual o significado da experincia sinestsica? De que modo a percepo do sinesteta significa o mundo? Aqui aparece o desafio contemporneo do acesso experincia, que tem inspirado muitas pginas em diferentes disciplinas. Alm das dificuldades colocadas a desde o behaviourismo, h ainda outras normalmente desconsideradas, por exemplo, aquelas impostas pelos limites da linguagem - o chamado crculo hermenutico. Assim, depoimentos em primeira pessoa esto duplamente presos: s determinaes de uma ou outra linguagem, bem como aos limites dos prprios sinestetas em trazer linguagem sua prpria experincia. No caso dos artistas e dos filsofos, especialistas no enfrentamento de tais limites. Nas narrativas de suas experincias com o haxixe, Walter Benjamin descreve uma experincia de audio colorida:

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"(...) [vivi ali] minha experincia com a audition colore. Eu no estava acompanhando atentamente o sentido do que E. me dizia, pois o eco em mim de suas palavras se convertia imediatamente na contemplao de coloridas lantejoulas metlicas, as quais se reuniam at formarem padres. Tentei explicar-lhe o fenmeno pela comparao com moldes de trabalhos manuais, aquelas lindas cartelas coloridas que encantaram nossa infncia (...)" (Benjamin, 1984b: 88).

Esse conflito entre o carter imediato e voltil das sensaes e o mundo simblico, que se descola da experincia em nome de uma durao de outra natureza, repete-se em depoimentos famosos de sinestetas como Shereshevski - com Luria (1987) - ou artistas como Kandinsky. E verificamos que, em grande medida, h muita consistncia entre a experincia buscada pelos artistas - que nem sempre so sinestetas stricto-sensu - aquela experienciada seja por sinestetas como Michael Watson (CYTOWIC, 2000) ou por indivduos sob influncia de drogas, como Walter Benjamin ou o cineasta americano dos anos 1950 aos 70, Harry Smith, que descreve experincias de audio colorida ao escutar as performances de Dizzy Gillespie (SITNEY, 1979). Artistas, sinestetas, filsofos, parecem, enfim, referir-se a um mesmo tipo de experincia - o que parece apontar na direo da tese defendida por Merleau-Ponty, Marks (1978), Cytowic, Gray (1997) e outros, de que somos todos, em alguma medida, menos ou mais intensamente, sinestetas e, que se trata de uma condio estrutural de nosso aparato perceptivo. Dentro dos limites deste artigo, gostaria de sintetizar as implicaes da experincia sinestsica derivada destes autores: trata-se de uma experincia pr-verbal do mundo, mais frequentemente encontrada em crianas e, certamente, parte da experincia dos recm nascidos, que ainda no amadureceram as distines das reas cerebrais associadas diferentes sentidos; uma imerso na sensao, oposta experincia analtica e racional do mundo; uma experincia do tempo especfica, de "agoridade", de pura imediaticidade, quase como uma dilao, deslocada do tempo linear e objetivo do relgio, que normatiza a experincia ordinria das sociedades ocidentais. Assim, opondo-se a aspectos decisivos da experincia perceptiva normatizada na cultura, a sinestesia se apresenta como um modo particular de conscincia, uma gestalt especfica, uma construo de mundo que prov uma cognio distinta, inefvel - que o sinesteta experimenta, mas no consegue expressar completamente. Tais qualidades levaram Cytowic a comparar a experincia sinestsica ao xtase espiritual, tal qual descrito por William James em Varieties of Religious Experience. A partir desta leitura da experincia sinestsica como uma maneira de produzir sentido que essencialmente pr-verbal - coerente com a descrio de Merleau-Ponty da unidade dos sentidos - tentador abordarmos o presente dilvio de infosensaes nas sociedades contemporneas inclusive o design cuidadoso dos atributos sensveis das mercadorias, descrito por Howes (2005) como a "hiperestesia" da sociedade de consumo - nos termos daquilo que McLuhan descreveu como o carter sinestsico das culturas orais da Idade Mdia: a fala como uma extenso de todos os sentidos e as pessoas imersas numa espcie de espao acstico, mgico, no qual o efeito fragmentador que vem a reboque da crescente dominncia do olho como consequncia da palavra impressa ainda no consumou a separao especializada dos sentidos na cultura. Exemplo dessa integrao sensorial na Idade Mdia a famosa Catedral de Chartres, na qual as luzes que atravessam vitrais coloridos se misturam reverberao dos coros e aos aromas de incenso, fazendo da presena na catedral uma experincia imersiva ao mesmo tempo religiosa e intensamente sinestsica (RILEY III: 1995), da qual os espetculos de Lanterna Mgica do jesuta Athanasius Kircher no poderiam ser seno uma plida imitao porttil.

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Outro modo de considerar a possibilidade de uma relao perceptiva com o mundo estruturada em termos sinestsicos seria o exemplo dos Desana, da Amaznia, citado anteriormente. Para eles, cada um dos aspectos sensoriais da experincia associado a diferentes significados que codificam valores morais e comportamentos sociais. Cores, sons, aromas, sabores e toques constituem um ambiente sensualmente rico - certamente devedor do intenso emprego ritual de bebidas alucingenas - e papel do paj, precisamente, resguardar e controlar os valores morais, os comportamentos e os pensamentos dos membros da tribo por meio do controle sensorial. Assim, uma vez mais, o controle do campo sensvel o controle sobre o sentido. Entretanto, apesar do regime perceptivo imersivo e sinestsico da Idade Mdia oferecer algumas metforas interessantes para pensarmos a experincia contempornea; e apesar do rico ponto de experincia sinestsico induzido por alucingenos dos Desana tambm oferecer algumas direes interessantes para pensarmos este ambiente contemporneo tecnologicamente saturado de infosensaes e intensamente sinestsico - importante notar o explcito e cuidadoso controle dos Desana sobre o campo sensvel como controle do sentido -, no podemos seno reconhecer que as sociedades tecnolgicas tm esta simples e clara especificidade: so tecnologicamente operacionalizadas. No h maneira pela qual se possa pensar a hiperestesia do capitalismo global nos termos da Natural Magik da Idade Mdia[4], ou das experincias minuciosamente ritualizadas dos povos da Amaznia Colombiana. As tecnologias, como notamos h pouco, tm um impacto que lhes prprio sobre a percepo, e, em conseqncia sobre a maneira como a sociedades significam a experincia. Tal impacto est intimamente relacionado matriz epistemolgica da qual uma tecnologia emerge. No caso da presena pervasiva da mediao digital, no podemos seno considerar a instalao corrente do campo perceptivo em grande medida relacionada ao carter calculador das tecnologias informacionais. Isto significa que estamos criando um ambiente sensvel no qual todo o campo percebido a apresentao de clculos matemticos na forma de sensaes intercambiveis, de modo que o fundamento da experincia vivida se d a partir das interaes com a atualizao destes clculos. Por esse motivo podemos comparar, como j fizemos, a percepo digital a um ambiente sinestesicamente saturado, porm com essa distino: a sinestesia contempornea a sinestesia tecnificada, isto , a instalao do campo percebido como projeo de clculo. So Paulo/Granada/Amsterdam/So Paulo, Maio 2007/Maio-Agosto 2008 REFERNCIAS ABRANCHES, Antonio (1996): O enigma da tcnica. In Item - revista de arte. No 3, tecnologia. Rio de Janeiro. BASBAUM, Srgio (2002): Sinestesia, arte e tecnologia - Fundamentos da Cromossonia.So Paulo: Annablume/FAPESP. ___ (2005): O primado da percepo e suas consequncias nos ambientes miditicos. Tese de doutoramento. So Paulo: PUC-SP. BENJAMIN, Walter (1984): A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica. In COSTA-LIMA, Luiz (org.): Teorias da Cultura de Massa. So Paulo, Brasiliense. ______ (1984b): Haxixe.So Paulo: Brasiliense.

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