Iracema
Iracema
Iracema
IRACEMA
DA OBRA ANALISE
IVAN TEIXEIRA
A POSIO DO ROMANCISTA
Jos de Alencar considerado o fundador da fico nacional, porque foi o nosso primeiro grande romancista. Escreveu 21 romances, dos quais alguns so obras-primas da literatura brasileira. Produziu obras fincadas na realidade brasileira, capazes de fornecer um vasto retrato de nossa vida no sculo XIX. Esse retrato ora mais realista (romances urbanos e regionalistas), ora mais imaginoso (romances indianistas e histricos). Quando mais imaginoso, tende para o smbolo, como Iracema e O Guarani. Quando mais realista, assume configuraes de crtica social, como Lucola e Senhora. Nestas duas obras, mostrou habilidade na construo de complicados caracteres femininos, antecipando modestamente as conquistas de Machado de Assis. Naquelas, inventou alguns dos smbolos dos mais importantes da cultura brasileira. Seguindo indicaes do prprio Alencar no prefcio de Sonhos dOuro, a crtica tem dividido sua obra a partir da observao do cenrio: romance indianista, romance urbano, romance regionalista e romance histrico.
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Numa palavra: o que o crtico chama de universalidade em Iracema, o que enfim no passa de suposio argumentativa, decorre principalmente em sua realizao esttica, em que os domnios da prosa se mesclam com os da poesia, resultando num autntico romance poemtico. Nesse tipo de romance, o enredo cede lugar ao trabalho da frase, orientado no sentido de sugerir e evocar. De fato, atravs de um intenso jogo de luz, sons e cheiro, Alencar conseguiu inventar, no cdigo dos brancos, mitos e lendas da cultura primitiva local, no intuito de promover um diferencial para a arte brasileira com relao europia. Decorreu da um conjunto de smbolos nacionais, de que Iracema um dos mais bem realizados exemplos. De um modo geral, os ndios, nessa simbologia, so belos, hericos e sentimentais. Assim, ao lutar pela particularizao de uma arte nacional, Jos de Alencar conquista um espao de importncia mais ampla, ilustrando o princpio segundo o qual o artista para ser universal deve, primeiro, falar de sua gente.
Enredo
Os ndios potiguaras habitam o litoral do nordeste, na zona do atual Cear. Os tabajaras dominam os campos do Ipu, no interior, alm da serra do Ibiapaba. Essas tribos so inimigas. O guerreiro portugus Martim, cujo nome lembra o deus da guerra entre os latinos, amigo dos potiguaras. Ele perde-se nos campos dos tabajaras. A, encontra a ndia tabajara Iracema, cujo nome quer dizer lbios de mel em tupi. Ela, tomando-o por um fantasma, fere-o no rosto com uma flecha. Nasce da mtua e sbita paixo. Iracema leva Martim para sua taba e anuncia-o como hspede de Tup. Araqum, pai de Iracema e paj dos tabajaras, recebe-o com todos os favores da hospedagem. Iracema era uma espcie de vestal da tribo e preparava o licor da Jurema, alucingeno que punha os ndios em contato com Tup. Por causa dessa funo religiosa, Iracema devia preservar a virgindade de seu corpo. Mas o chefe guerreiro da tribo, Irapu, mel redondo, ama-a desesperadamente. Tomado de cimes, Irapu investe contra o hspede da cabana de Iracema. A virgem protege-o e prepara-lhe a fuga, com o auxlio de seu irmo Caubi, senhor dos caminhos. Antes porm de sua partida, d-lhe a beber do licor da Jurema. Durante a alucinao, Iracema se deixa possuir pelo guerreiro, que interpreta tudo como um sonho. Enquanto isso, Poti, o amigo potiguara de Martim, aproxima-se do campo tabajara para resgat-lo. Iracema acompanha-o at o limite geogrfico das tribos e, a, revela a Martim que traz nas entranhas o filho do seu amor. Sabendo da verdade de seu sonho, Martim leva-a consigo, e ambos fundam uma aldeia, futura Mecejana, terra natal de Alencar.
Em ALENCAR, Jos de. Iracema. Edio do Centenrio. Ensaio introdutrio intitulado Jos de Alencar, esse desconhecido. Rio de Janeiro, MEC Instituto Nacional do Livro, 1965, pp. 42-43.
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Ao se fixar como esposo de Iracema, Martim passa pelo ritual da transformao de guerreiro branco em guerreiro vermelho, sendo pintado com pelos de coati, razo pela qual recebe o nome de Coatiabo, que significa gente pintada. Enquanto Iracema espera o filho, Martim, duplamente guerreiro (branco e vermelho), abandona-a para lutar contra os tabajaras ao lado dos potiguaras. Durante a ausncia de Martim, nasce Moacir, filho da dor. Iracema entrega-se ao cuidado do filho, mas comea a definhar de tristeza, por saber que o esposo luta contra seus irmos. Martim regressa cabana de Iracema, mas ela morre em seguida. Ao morrer, a ndia Tabajara entrega Moacir ao marido, pedindo que seu corpo seja enterrado junto de suas armas ao p de uma palmeira.
IRACEMA E O INDIANISMO
A idia de que o homem um animal naturalmente bom, mas corrompido pela sociedade, vem de Rousseau e pertence ao Pr-romantismo europeu. Jos de Alencar partilha desse conceito, transformando-o em convico arraigada em sua imaginao potica. H uma passagem de O Guarani, referente a Peri, muito reveladora nesse sentido: O filho das matas, voltando ao seio de sua me, recobrava a liberdade, era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando pelo direito da fora e da coragem. Com mais eficcia do que naquele romance, essa idia reaparece dominante em Iracema, em cuja estria e estilo a ndia, mais que uma personagem, confunde-se com a prpria natureza: seu lbio de mel, seu cabelo como a asa da grana, seu hlito de baunilha, seu talhe de palmeira, seu andar de ema etc. Decorrente de livre interpretao da idia rousseauniana, essa fuso do homem com a natureza revela a enorme identidade de Alencar com o Romantismo potico, embora escrevesse em prosa. Hoje, a elaborao de Iracema pode ser entendida como uma espcie de dilogo textual com o romance tala, do escritor francs Chateaubriand, editado em 1801. Em termos tradicionais, pode-se falar em emulao ou imitao literria. Isto , a idia geral de Alencar vem dali, mas a realizao, enquanto inveno plstica e poder de sugesto, assume legitimidade e autonomia esttica em Alencar, embora a leitura correta deva sempre pressupor sua relao com o modelo ou com a srie literria em que se enquadra. Em ambos os casos, subsiste a idia, central no Romantismo, de que a arte deve reaproximar o homem da natureza. Nesse sentido, uma das funes da arte romntica seria a reintegrao simblica do homem ao estado natural, visto que se entendia o dis-
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O poeta Haroldo de Campos escreveu dois notveis ensaios sobre Iracema, ambos de leitura indispensvel.6 Neles, procura demonstrar que certos procedimentos lingsticos do autor antecipam alguns aspectos da poesia de vanguarda no Brasil, idia brilhante, ainda que discutvel do ponto de vista estritamente histrico. No segundo desses ensaios, Haroldo de Campos faz a seguinte observao sobre a associao entre coisas diferentes por meio do smile: O como alencariano a marca, a charneira7 de articulao, do pensamento selvagem (a expresso no ocorre aqui como um decalque retrospectivo de Lvi-Strauss; est na Carta do Dr. Jaguaribe, no passo em que o romancista explica porque prefere contrariar a simplicidade e a naturalidade do portugus em prol da traduo daquilo que chama a beleza da expresso selvagem, donde o seu esforo por preservar, em sua experincia em prosa, a correspondncia com esse pensamento selvagem). O smile alencariano, como reparou Cavalcante Proena em seus penetrantes estudos estilsticos, um modo de captar a visualizao concreta da linguagem primitiva. Outro ensaio recente de grande interesse sobre Iracema devido a Renato Janine Ribeiro, igualmente de leitura indispensvel. Trata-se de Iracema ou a Fundao do Brasil, em que se desenvolve, com inmeras sugestes pessoais, a idia de que, no romance de Alencar, o caso do amor entre Martim e Iracema (aspecto lrico da obra) oculta a metfora da colonizao da Amrica pela Europa (elemento pico da obra). Sintetizando sua proposta, escreve o ensasta: Desloca-se assim o eixo da histria do amor de dois jovens para um quadro mais amplo: o que Martim Soares Moreno efetua , possuindo, desvirginando, engravidando e em ltima anlise levando morte a moa, possuir, desvirginar, engravidar e conquistar sua outra identidade, o continente da Amrica. Fique porm claro, nesta leitura de Iracema, que no pretendo reduzir as riquezas do livro ao papel que cumpre na referida legitimao: basta lembrar a importncia da linguagem, em que Alencar acertada e pioneiramente valoriza fatores de tradio no-europia, como a parataxe, as metforas e figuras de modo geral, ao mesmo tempo que, pelo tema, reala
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Afoita, destemida. Ave marinha. Veloz. Cachorro. Trata-se de Japi, fiel companheiro de Martim e Iracema.
Trata-se de Iracema: uma Arqueografia de Vanguarda e Tpicos (Fragmentrios) Para uma Historiografia do Como, em Metalinguagem e Outras Metas: Ensaios de Crtica e Teoria Literria. 4 - edio, revista e ampliada. So Paulo, Perspectiva, 1992. Ponto de unio, parte fixa de dobradia ou fivela.
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uma identidade igualmente americana, qual dedica pesquisa que no se pode desenhar.8 Ao mencionar, no final do texto citado, a parataxe, Renato Janine pe em destaque um aspecto muito importante da estrutura propriamente literria do romance. Como se sabe, em termos gerais, as lnguas se organizam basicamente por dois processos sintticos: a subordinao, fundada na hierarquia de noes (hipotaxe: perodo composto por uma orao principal e outras que se subordinam a ela); e a coordenao, fundada na justaposio igualitria de noes (parataxe: perodo composto por oraes do mesmo valor sinttico). Alencar julgava que o pensamento selvagem se caracteriza mais pela justaposio do que pela subordinao, o que se reflete no processo aglutinativo do idioma tupi. Tentando reproduzir esse aspecto da cultura americana em seu livro, o romancista deu larga preferncia aos perodos compostos por coordenao, o que resulta no predomnio da frase curta e sinttica, tal como se observa no seguinte fragmento, extrado do captulo V de Iracema: O Galo-da-campina ergue a poupa escarlate fora do ninho. Seu lmpido trinado anuncia a aproximao do dia. Ainda a sombra cobre a terra. J o povo selvagem colhe as redes na grande taba e caminha para o banho.
Trs sis havia que Martim e Iracema estavam nas terras dos pitiguaras, senhores das margens do Camucim e Acaracu. (cap. XX) Quatro luas tinham alumiado o cu depois que Iracema deixara os campos do Ipu; e trs depois que ela habitava nas praias do mar a cabana de seu esposo. (cap. XXII) O Cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Cear, levando no frgil barco o filho e o co fiel. (cap. XXXIII)
PERSONAGENS Iracema
J vimos que Iracema o smbolo da Amrica, do Brasil, e do Cear. Vimos tambm que o nome dessa personagem anagrama de Amrica, que foi destruda pela Europa (Martim). Acrescente-se agora a idia de que o epteto virgem dos lbios de mel, que se tornou extremamente popular no Brasil, descreve a brandura da personagem enquanto mulher e o seu estado de pureza enquanto smbolo de nossas matas. Como todas as personagens desse romance, Iracema no possui densidade psicolgica, pois um smbolo, uma alegoria, no um indivduo. Machado de Assis assim descreve essa personagem encantadora: A beleza moral vem depois, com o andar dos sucessos: a filha do Paj, espcie de Vestal indgena, vigia do segredo da Jurema, um complexo de graas e de paixo, de beleza e de sensibilidade, de casta reserva e de amorosa dedicao. Reala-lhe a beleza nativa a poderosa paixo do amor selvagem, do amor que procede da virgindade da natureza, participa da independncia dos bosques, cresce na solido, alenta-se do ar agreste da montanha.9 Ela mente para o pai, quebra os votos de castidade, luta contra os irmos pelo amor do branco desconhecido. Depois de lhe dar um filho, morre em virtude do abandono e da solido. Em certo sentido, encarna uma viso pessimista do contato entre natureza e cultura, Amrica e Europa. Mas de qualquer forma, foi livre o bastante para se entregar at morte ao amor de seu corao. Nesse sentido, representa a ideologia romntica, que via no ndio e na natureza os ideais de liberdade e de pureza. Diante de tal poder simblico, no se deve exigir jamais de Iracema, sob pena de no se aproveitar nada da leitura do romance, nenhuma verossimilhana realista, do tipo
Em RIBEIRO, Renato Janine. A Sociedade Contra o Social. So Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 46. Mais adiante, ao desenvolver, com coerncia e agudeza, o paralelo proposto por Joaquim Nabuco em 1875 entre a pera Norma, de Bellini, e o romance alencariano, Renato Janine considera: O propsito de Alencar est em encontrar nossas razes, descartando o que delas escapa, mas sem pr em xeque um povo ou outro. Com isso, reduz a parte que se dava aos portugueses (basta ler, no Ps-Escrito segunda edio, as pginas sagazes em que contesta o primado da gramtica e do lxico lusitano), mas sem jamais lhes negar a legitimidade. Buscar as razes , para Alencar, pluralizar a origem, assumindo o elemento amerndio; porm, j pelo projeto, isso implica no repudiar a invaso do continente.
Em ALENCAR, Jos de. Iracema. Edio do Centenrio. Ensaio introdutrio intitulado A Tradio Indgena na Obra de Alencar. Rio de Janeiro, MEC Instituto Nacional do Livro, 1965, p. 19.
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uma ndia no pode ter o hlito puro. Comportar-se assim diante da sua idealidade no entender o mnimo e o necessrio para a interpretao de um mito.
em vez de procur-los. Mel Redondo personagem histrica, tendo se notabilizado no auxlio aos franceses em suas lutas contra os portugueses no Maranho.
Martim
Martim Soares Moreno personagem histrica. Existiu de fato em nosso passado colonial, tendo participado da guerra contra a invaso holandesa. Possui poder simblico, sem ser necessariamente um smbolo como Iracema. , antes, uma metonmia (a parte pelo todo) do colonizador portugus. Amigo de Poti e Jacana, ndios potiguaras, perde-se nos sertes do Ipu, onde encontra a virgem Tabajara. Possui extraordinrio poder sobre a ndia, porque ela quem o possui, durante o sono da jurema. Sua condio de guerreiro vem indicada no prprio nome, que quer dizer filho de Marte, o deus da guerra entre os latinos. O nome de Iracema (lbios de mel) indica, ao contrrio, que ela predestinada ao amor. Assim, no plano da fbula romanesca, um voltado para a guerra, outro para o amor, a unio de ambos jamais poderia resultar duradoura. Mesmo se levarmos em conta que Vnus era, na mitologia latina, esposa de Marte. No romance, Martim vive, depois de saciado o seu amor por Iracema, sonhando com batalhas e combates. Quando ouve o som da inbia de Poti, seu sangue precipita-se nas veias. Arde por lutar, mesmo que os adversrios sejam os irmos de sua mulher. Ele a abandona s vsperas do nascimento do filho para combater, ao lado de Poti, os guerreiros tabajaras.
Caubi
Caubi (senhor dos caminhos) irmo de Iracema e auxilia-a a reconduzir o guerreiro branco ao territrio potiguara. Mas, depois, ela luta com ele. Iracema dispe-se a matar o prprio irmo para defender sua unio com Martim. Mais tarde, quando ela abandonada pelo amante, Caubi a procura para ampar-la. Envergonhada, Iracema recusa o auxlio para ocultar o sofrimento.
Poti
Amigo de Martim, Poti tambm personagem histrica. Se Irapu notabilizou-se por auxiliar os franceses em sua luta contra os portugueses, Poti passou para a histria como capito-mor dos ndios na guerra portuguesa contra os holandeses. Foi batizado como Antnio Filipe Camaro. A aluso ao crustceo em seu nome deve decorrer do fato de que tinha o poder de permanecer longo tempo debaixo dgua, sem respirar. No romance, simboliza a amizade.
Moacir
Moacir no age na estria. apenas um beb. Em tupi quer dizer filho da dor. Quase morreu aps o parto, porque sua me no vertia leite. Foi salvo graas a uns filhotes de cachorro do mato, com os quais, colocando-os a morder os prprios seios, Iracema fez brotar o leite. Simboliza o primeiro cearense. Aps a morte de Iracema, Martim leva Moacir para a Europa. No fim do romance, Alencar insinua uma identificao dessa personagem consigo prprio, que tambm deixou a terra natal na infncia.
Obs. Texto escrito no incio da dcada de 1980 e ligeiramente revisado para esta edio. O Autor.
Araqum
Essa personagem, pai de Iracema, era o paj dos tabajaras, o sacerdote, o lder espiritual dos guerreiros. Conversava com Tup e transmitia aos jovens as mensagens divinas para a ordem diria da tribo. Encarna a prudncia e a sabedoria da velhice. Quando Irapu procura Martim para lhe beber o sangue, Araqum o sossega dizendo que, se o forasteiro tocasse na virgindade de Iracema, ela morreria, mas o guerreiro branco devia ser respeitado porque era hspede de Tup. Araqum simboliza ainda a hospitalidade, que a civilizao teria destrudo nas pessoas do mundo urbano.
Irapu
Irapu (mel redondo) o chefe guerreiro dos tabajaras. Apaixonado por Iracema, v-se rodo de cimes quando pressente seu amor pelo estrangeiro. Programa mat-lo, mas Iracema o defende, oferecendo resistncia fsica ao chefe dos guerreiros de sua tribo. Irapu ameaa golpear a virgem, mas sente a arma pesar em suas mos. Essa personagem simboliza o cime e o valor marcial. Dotado de fora e poder, no possui, entretanto, inteligncia para entender o amor de Iracema por outrem. Ansioso por atacar os potiguaras, Irapu desacata Andira, irmo do paj, que julgava mais prudente esperar o ataque dos inimigos
Alm, muito alm daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lbios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da grana10 e mais longos que seu talhe de palmeira.
As notas aqui apresentadas pertencem ao prprio Jos de Alencar: 10 o pssaro conhecido de cor negra luzidia. Seu nome vem por corrupo de guira pssaro, e uma, abreviao de pixuna preto.
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O favo da jati11 no era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque com seu hlito perfumado. Mais rpida que a ema selvagem, a morena virgem corria o serto e as matas do Ipu12, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nao tabajara13. O p grcil e nu, mal roando, alisava apenas a verde pelcia que vestia a terra com as primeiras guas. Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica14, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da accia silvestre esparziam flores sobre os midos cabelos. Escondidos na folhagem, os pssaros ameigavam o canto. Iracema saiu do banho: o aljfar dgua ainda a roreja, como doce mangaba que corou em manh de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gar15 as flechas de seu arco e concerta com o sabi da mata, pousado no galho prximo, o canto agreste. A graciosa ar16, sua companheira e amiga, brinca junto dela. s vezes, sobe aos ramos da rvore e de l chama a virgem pelo nome; outras, remexe o uru17 de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do craut18, as agulhas da juara19 com que tece a renda e as tintas de que matiza o algodo. Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos que o sol no deslumbra; sua vista perturba-se. Diante dela e todo a contempl-la, est um guerreiro estranho, se guerreiro e no algum mau esprito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das guas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
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Foi rpido como o olhar o gesto de Iracema. A flecha, embebida no arco, partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. De primeiro mpeto, a mo lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moo guerreiro aprendeu na religio de sua me, onde a mulher smbolo de ternura e amor. Sofreu mais dalma que da ferida. O sentimento que ele ps nos olhos e no rosto, no o sei eu. Porm, a virgem lanou de si o arco e a uiraaba e correu para o guerreiro, sentida da mgoa que causara. A mo, que rpida ferira, estancou mais rpida e compassiva o sangue que gotejava. Depois, Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada. O guerreiro falou: Quebras comigo a flecha da paz20? Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu? Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmos j possuram e hoje tm os meus. Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e cabana de Araqum, pai de Iracema. 1. Como classificar este texto no conjunto do romance Iracema? 2. Qual o processo utilizado por Alencar na apresentao da personagem feminina? 3. Qual o recurso estilstico mais usado nos quatro primeiros pargrafos do texto? 4. Observe o seguinte pargrafo do fragmento: Foi rpido como o olhar o gesto de Iracema. A flecha, embebida no arco, partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. Conforme noes expostas no texto terico desta apresentao, a observao mais correta sobre sua estrutura sinttica encontra-se na alternativa: a) Predomnio do perodo destacado, de ritmo sincopado, por fundar-se na hipotaxe ou princpio da coordenao sinttica. b) Predomnio da justaposio de perodos compostos, o que atribui ao texto a idia de subordinao (parataxe) de noes a uma idia central.
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Pequena abelha que fabrica delicioso mel. Chamam ainda hoje no Cear certa qualidade de terra muito frtil, que forma grandes coroas ou ilhas no meio dos tabuleiros e sertes, e de preferncia procurada para a cultura. Da se deriva o nome dessa comarca da provncia. Senhor das Aldeias, de taba aldeia, e jara senhor. Essa nao dominava o interior da provncia, especialmente a Serra de Ibiapaba. rvore frondosa, apreciada pela deliciosa frescura que derrama sua sombra. Ave paludal, muito conhecida pelo nome de guar. Penso eu que esse nome anda corrompido de sua verdadeira origem, que ig gua, e ar arara: arara dgua, assim chamada pela bela cor vermelha. Periquito. Os indgenas como aumentativo usavam repetir a ltima slaba da palavra e s vezes toda a palavra, como murmur. Mur frauta, murmur grande frauta. Arr vinha a ser, pois, o aumentativo de ar, e significaria a espcie maior do gnero. Cestinho que servia de cofre s selvagens para guardar seus objetos de mais preo e estimao. Bromlia vulgar, de que se tiram fibras tanto ou mais finas do que as do linho. Palmeira de grandes espinhos, dos quais servem-se ainda hoje para dividir os fios de renda.
Era entre os indgenas a maneira simblica de estabelecer a paz entre as diversas tribos, ou mesmo entre os guerreiros inimigos. Desde j advertimos que no se estranhe a maneira porque o estrangeiro se exprime falando com os selvagens; ao seu perfeito conhecimento dos usos e lngua dos indgenas e sobretudo a ter-se conformado com eles ao ponto de deixar os trajes europeus e pintar-se, deveu Martim Soares Moreno a influncia que adquiriu entre os ndios do Cear.
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c) Mescla de hipotaxe com a parataxe: pois h harmonia entre o processo de coordenao e o processo de subordinao. d) Predomnio de perodos destacados, com uma s orao, organizados pelo processo da parataxe ou coordenao. e) Predomnio de perodos destacados, com uma s orao, organizados pelo processo da parataxe ou subordinao. 5. Observe os fragmentos e destaque aquele em que no se observa nenhum smile ou comparao explcita por meio de conectivo explcito: a) Foi rpido como o olhar o gesto de Iracema. b) O aljfar dgua ainda a roreja, como doce mangaba que corou em manh de chuva. c) O Paj vibrou o marac e saiu da cabana; porm o estrangeiro no ficou s. d) Abre-se a imensidade dos mares, e a borrasca enverga, como o condor, as foscas asas sobre o abismo. e) A fronte reclinara e a flor do sorriso expandiase como o nenfar ao beijo do sol.
mel. A comparao ou smile ocorre duas vezes, por exemplo, no segundo pargrafo do texto O favo da jati21 no era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hlito perfumado. O processo de comparao entre personagem e natureza implica a antropomorfizao da paisagem ou a transformao da personagem em natureza. 4. C 5. D
EDIES INDICADAS
ALENCAR, Jos de. Iracema. Edio crtica preparada por Manuel Cavalcante Proena, comemorativa do primeiro centenrio de seu lanamento. Contm estudos de vrias ordens, todos de grande valor e utilidade. Rio de Janeiro, Livraria Jos Olympio Editora, 1965. H 2 - edio, com a supresso de alguns estudos: Rio de Janeiro, Livros Tcnicos e Cientficos Editora S.A. / Edusp, 1979. ALENCAR, Jos de. Iracema. Edio crtica supervisionada por Augusto Meyer, comemorativa do primeiro centenrio de seu lanamento. Tambm contm estudos importantes e teis, inclusive um de Machado de Assis, intitulado A tradio indgena na obra de Alencar, que tambm se encontra na edio supracitada. Rio de Janeiro MEC Instituto Nacional do Livro / Companhia Aguilar Editora, 1965. ALENCAR, Jos de. Iracema. Edio didtica preparada por Alba Maria Baldan Fechio. a melhor edio para um primeiro contato com a obra, sobretudo, por causa das notas da organizadora, que se somam s do autor ao prprio texto. So Paulo, Editora Cultrix, 1969. ALENCAR, Jos de. Iracema. Edio didtica prefaciada por Zenir Campos Reis. Boa tambm para um primeiro contato com a obra. So Paulo, Editora tica, 1979.
RESPOSTAS
1. Trata-se da apresentao das personagens centrais, Iracema e Martim, cujas caractersticas bsicas so apresentadas de forma rpida e impressionante. Neste captulo, delineia-se a situao inicial do romance: um encontro casual que desencadeia os acontecimentos da fbula. 2. O processo o da descrio idealizante, prprio do Romantismo, segundo o qual a personagem comparada com elementos maravilhosos da natureza. 3. O recurso estilstico mais utilizado o paralelo entre Iracema e a natureza. Tal paralelo opera-se tanto pela metfora (comparao abreviada) quanto pela comparao explcita. A metfora propriamente dita ocorre, por exemplo, em Virgem dos lbios de mel, que pode ser desdobrada em Virgem cujos lbios eram to doces como o
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