Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu

Estratos do Tempo

2016, Diálogos

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014

Diálogos v. 20 n. 2 (2016), 218-221 Diálogos http://dx.doi.org/10.4025.dialogos.v20n2 ISSN 2177-2940 (Online) A2 ISSN 1415-9945 (Impresso) Estratos do Tempo KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014 http://dx.doi.org/10.4025.dialogos.v20n2.34578 Thiago Reisdorfer Mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina ______________________________________________________________ Em fins da década de 1980 Michel de Certeau afirmava que o tempo era o impensado da História. Sendo o tempo a matéria prima e o próprio meio de produção de nosso conhecimento, o mesmo era pouco problematizado por nós historiadores. A obra aqui resenhada, Estratos do Tempo, de Reinhart Koselleck, carrega de seu título até sua última linha a preocupação em problematizar e pensar operacionalizações e experiências do tempo na história e na historiografia. Kosellek (1923-2003) é um dos mais importantes autores da história dos conceitos, tendo dedicado seus estudos em especial aos séculos XVIII e XIX. Entre suas diversas obras, estão disponíveis em traduções brasileiras apenas Crítica e crise (1999), Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos (2006) e, finalmente, Estratos do tempo: estudos sobre história lançado originalmente em 2000, traduzido e publicado para o português pela Editora Contraponto em 2014. O livro em tela é composto por uma série de textos provenientes de palestras, ensaios e outros estudos produzidos ao longo da carreira Resenha recebida em 02/09/2015. Aprovada em 19/12/2015. do autor. Tem como eixo aglutinador a preocupação em problematizar estruturas da experiência temporal humana, buscando avançar para além da operacionalização teórica do tempo na divisão entre sincronia e diacronia, linearidade e circularidade. Sua problematização do tempo a partir de estratos temporais, metáfora geológica que apreende e ressignifica na e para a narrativa historiográfica, permite pensar a diversidade de tempos, temporalidades e de formações temporais que compõem a experiência humana. Uma mesma experiência pode ser formada e, ao mesmo tempo, ser formadora de diferentes estratos do tempo que impedem sua classificação maniqueísta enquanto sincrônica ou diacrônica. Ao definir essa conceituação, Koselleck afirma: Situo-me no campo das metáforas: a expressão estratos do tempo remete a formações geológicas que remontam a tempos e profundidades diferente, que se transformaram e se diferenciaram umas das outras em velocidades distintas no decurso da chamada história geológica. [...] Sua transposição para a história humana, política ou social, permite separar analiticamente os diversos planos temporais em 219 que as pessoas se movimentam, os acontecimentos se desenrolam e os pressupostos de duração mais longa são investigados (KOSELLECK, 2014, p. 19). Superando a organização do tempo em diacronia e sincronia, estabelece um diálogo com Fernand Braudel a partir de sua proposição de pensar o tempo enquanto longa, média ou curta duração. Koselleck acrescenta a essa divisão a característica antropológica dos estratos do tempo. Esta leitura remete a três estratos básicos do tempo trabalhados a partir do conceito de experiência: como singularidade, como repetibilidade e, por fim, as experiências que transcendem a experiência individual, como a religião, ou a metafísica, que levam séculos para se transformarem. Assim, na longa duração, por exemplo, diferentes estratos do tempo dialogam, se chocam, se relacionam, seja em repetibilidades ou em inovações que permeiam a temporalidade humana. O mesmo ocorre nas outras durações temporais. Koselleck argumenta que apenas a partir da constatação da complexidade e da multiplicidade da experiência temporal, através de sua percepção em estratos, e de suas características, o processo histórico pode ser melhor compreendido. Assim, na linguagem, para utilizar seu debate com Gadamer realizado na primeira parte do livro, a transformação, sua diacronicidade, só é possível porque estruturas de repetibilidade ocorrem na sincronicidade de sua experimentação. Sem a existência de repetibilidades, uma característica sincrônica, a diacronicidade, a processualidade, a transformação da linguagem não seria possível. Apenas por partirmos de estruturas repetíveis e já conhecidas é que a comunicação e as possibilidades de transformação são possíveis. É visando a compreensão desse processo que se estabelece a construção do conceito de estratos do tempo. O texto é organizado em quatro momentos distintos, mas dialógicos. Inicialmente o autor aborda a definição de estratos do tempo, sua origem metafórica e T Reisdorfer. Dialógos, v.20, n.2, 218-221. histórica, bem como sua estreita vinculação com a transformação no conceito de experiência. Aprofundando sua discussão, o autor pensa as transformações etimológicas do conceito de experiência – remontando às preocupações mais centrais de outras obras suas voltadas ao estudo dos conceitos – constituídas a partir do advento da modernidade. É nessa discussão que sedimenta-se o conceito central da obra, pois é na experiência que se processam a repetibilidade, a singularidade e a transcendência dos estratos do tempo. Vale ainda destacar a preocupação do autor em apontar a relação complexa e dialógica entre experiência, enquanto a história vivida, e a ciência da história, que se determinam mutuamente. As discussões de espaço e história e o debate realizado com Gadamer aprofundam essas preocupações do autor. Assim, a partir de uma preocupação que parte da dimensão antropológica da experiência, o autor desvela a dimensão plural e enriquecedora do conceito de estratos do tempo. A segunda parte do livro aborda a questão da aceleração do tempo histórico com o advento da modernidade. Essa abordagem é construída a partir do questionamento sobre a possibilidade de existência de um tempo histórico em aceleração. Koselleck aponta o problema de que o tempo físico não pode ser acelerado, mas, mesmo assim, há, entre os contemporâneos da Revolução Francesa, um sentimento de que estaria ocorrendo uma aceleração do tempo. Esse entendimento se dá na percepção de que o que se acelera é a experiência de transformação da história humana. Assim, o autor argumenta que a sensação de transformação é lida como uma aceleração da história. A dificuldade sentida na transmissão geracional de valores, costumes, ideias enfatiza e potencializa esse sentimento. Visando apresentar historicamente a constituição dessa experiência de aceleração, Koselleck aponta as dimensões da teologia cristã, que permitem tal estrutura de pensamento. Aponta, ainda, o fato de que essa T Reisdorfer. Dialógos, v.20, n.2, 218-221. aceleração da história não ocorre a partir de uma ruptura nos estratos do tempo, ou seja, não há uma ruptura entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas. Afinal, a Revolução Francesa e seus desdobramentos puderam ser, de alguma forma, prognosticados por seus contemporâneos, como em Diderot, por exemplo. Dessa forma, o autor reafirma sua análise dos estratos do tempo, pois sem a característica de repetibilidade da experiência esses prognósticos seriam impossíveis. A hipótese de aceleração do tempo remete a outra preocupação de Koselleck com a ideia de modernidade. Explorando a etimologia da palavra modernidade, novo tempo (neuzeit) na língua alemã, o autor questiona e problematiza a ascensão da concepção de um novo tempo que emerge, principalmente, a partir do século XVI. Essa percepção coloca ao autor a necessidade de pensar a ideia de novo como característica da modernidade. Assim, a inovação, a mudança e o ‘progresso’ seriam característicos deste momento da história. Entretanto, o autor contrapõe essa perspectiva apontando que todo tempo é simultaneamente espaço de inovação e repetibilidade. Mesmo que, retrospectivamente, não as vejamos, toda experiência humana é vivida como algo novo quando pensada de modo individual. É só no nível da racionalização da experiência, ou seja, na ciência histórica, que a repetibilidade pode ser elencada como característica básica de determinada vivência. Para o sujeito que vive, a experiência é sempre, pelo menos potencialmente, nova. Deste modo, a característica de inovação marcante na modernidade é corroída argumentativamente através da concepção de tempo em estratos, gerando uma compreensão mais complexa dessa temporalidade. Na sequência, o autor parte para uma discussão sobre os tempos na historiografia. Tal 220 discussão é feita tanto teoricamente, ao pensar como se articulam tempos historiográficos e tempos na historiografia, quanto a partir da análise de campos como da história social e na relação entre a história, o direito e a justiça. Uma das discussões centrais desse momento do texto é a fraqueza teórica da ciência da história. Denunciando nossa incapacidade de diálogo com outras ciências, o autor aponta a nossa autorreferenciação na discussão de nosso estatuto de cientificidade. Sendo um historiador que construiu boa parte de sua trajetória a partir da problematização histórica de conceitos, norteia suas discussões a partir de uma preocupação teórica em relação ao estatuto do historiador e da ciência da história. O livro é concluído com essa parte e com uma discussão que atravessa outros momentos do texto, a Alemanha do século XX. Essa é uma preocupação que tangência e, em alguns momentos, centraliza as discussões de Koselleck. A experiência alemã do século XX, seja o nazismo ou sua divisão, é problematizada aqui a partir das possibilidades analíticas dos estratos temporais. Por fim cabe destacar a questão que primeiramente nos chamou a atenção à esse texto: suas contribuições para a reflexão sobre história do tempo presente. Tendo um subcapítulo construído especificamente para falar sobre a Zeitgeschichte 1, ou história contemporânea, ou ainda, história do tempo presente, Koselleck problematiza com profundidade e clareza essa dimensão do campo historiográfico. Para tanto, analisa a apreensão do presente enquanto tempo histórico ao longo da história. Assim, remete aos ‘pais fundadores’ da história, Heródoto e Tucídides, e suas análises que tinham por característica o pensar sobre tempos próximos. Para além da historicização do presente, 1 Em nota na página 229 do livro o tradutor aponta sua opção de tradução do termo Zeitgeschichte como história do tempo presente ou história contemporânea, ambas são utilizadas como sinônimos pelo tradutor. Nesta resenha optamos pelo uso da expressão história do tempo presente, pois a mesma se aproxima de maneira mais eficiente ao objetivo de Koselleck no texto e as nossas preocupações. 221 apresentando-o atravessado pela diacronia, duas conclusões as quais ele chega são especialmente importantes: Primeiro apresenta o tempo presente, o nosso inclusive, como um tempo de repetições, como explanado acima. O tempo para além de novidades apresenta repetições, continuidades, apresenta o diacrônico no sincrônico. Em segundo lugar, constrói uma fórmula que pode ser vista como uma eficiente delimitação para o campo da história do tempo presente. Koselleck aponta que a história do tempo presente se refere a uma produção proveniente do espaço de experiência da geração vivente. Dessa forma, a história do tempo presente tem suas balizas formadas dentro do espaço de experiência do contemporâneo do historiador. Tal formulação apresenta um elemento interessante para a historiografia em questão, permitindo a construção de delimitações fluidas e processuais, sem perder a complexidade. O livro em análise certamente é uma importante e enriquecedora contribuição para o campo da história no Brasil. Pode contribuir de maneira especial a historiadores que tenham como preocupação o conceito de experiência, o tempo e, em especial, aqueles preocupados com a produção de história do tempo presente. Composto por ensaios e palestras, a obra chega a ser em alguns momentos, repetitivos. Os exemplos utilizados para trabalhar determinadas questões aparecem de forma semelhante em vários momentos do texto. Isso se deve a característica fragmentada da produção e ao fato de o livro ser composto por textos produzidos desde a década de 1970. Entretanto, a repetibilidade dos exemplos está sempre a serviço da produção de análises interessantes e inovadoras para o campo da historiografia. Sem dúvida, apesar de termos alguns autores já traduzidos no Brasil sobre a temática do tempo na história, como Ricoeur e Hartog, este livro contribui para a complexificação e aprofundamento dessa discussão em nosso meio. T Reisdorfer. Dialógos, v.20, n.2, 218-221. Referências CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 1999. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.