Abaeté, Rede de Antropologia Simétrica
Entrevista com Márcio Goldman e
Eduardo Viveiros de Castro
ARISTÓTELES BARCELOS NETO, DANILO RAMOS, MAÍRA
SANTI BÜHLER, RENATO SZTUTMAN, STELIO MARRAS E VALÉRIA MACEDO
entrevistadores
No �nal de 2004, dois professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional (UFRJ), Marcio Goldman
e Eduardo Viveiros de Castro, idealizaram a
Rede Abaeté de Antropologia Simétrica visando
reunir pesquisadores de diferentes áreas e instituições e promover discussões antropológicas
para além do ambiente de especialização que
caracteriza o cenário acadêmico das ciências
humanas na atualidade.
A melhor maneira de fazer funcionar essa
rede, que embora esteja adensada no Museu
Nacional não pretende ter uma sede �xa, foi a
criação de uma página wiki, na qual é possível
desenrolar discussões e produzir textos coletivos,
(no sistema wiki, toda pessoa que acessa a página pode mudar o conteúdo do que lê, e todas
as outras pessoas que acessam podem ver essas
modi�cações). O wiki Abaeté (http://abaete.
wikia.com) seguiu, nesse sentido, o exemplo do
wiki Amazone (http://amazone.wikia.com), do
Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI),
coordenado por Viveiros de Castro. No wiki
Amazone, Viveiros de Castro disponibilizou
partes de um livro seu em preparação sob a forma de um texto-piloto, “A onça e a diferença”.
Seu objetivo era substituir o mar de citações, do
qual é composto um texto, por um processo de
autoria coletiva capaz de dar margem a uma
obra aberta.
A conexão entre campos semânticos – e também etnográ�cos – heterogêneos é justamente
o alvo da rede Abaeté, e não surpreende que os
campos evocados no Manifesto Abaeté1 digam respeito ao histórico de pesquisa dos idealizadores em
questão. Viveiros de Castro é o que se pode chamar de “etnólogo”. Pesquisou entre os Araweté,
grupo de língua tupi-guarani no sudeste do
Pará, e já há mais de uma década se dedica ao
estudo do que ele cunhou como “perspectivismo
ameríndio”, modo de pensar que rejeita dualismos típicos do pensamento ocidental-moderno. Já Marcio Goldman voltou-se à chamada
“antropologia das sociedades complexas”. Além
de ter se debruçado sobre capítulos da história
da antropologia, desenvolve suas pesquisas na
cidade de Ilhéus (sul da Bahia), tratando de
temas como participação política, movimentos
culturais e religiões afro-brasileiras.
Ao apostar na conectividade, Goldman e
Viveiros de Castro buscam diluir as fronteiras
estabelecidas entre a “etnologia indígena” e a “antropologia das sociedades complexas”. Nesse sentido, eles atentam contra os “grandes divisores”, estes
1.
cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
Disponível em http://abaete.wikia.com
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que separam em mundos incomunicáveis “nós” e
os “outros”, produzindo não raro assimetrias do
tipo “nós sabemos, eles crêem”, “nós temos antropologia e �loso�a, eles possuem crenças e visões de
mundo”. Em vez des “grandes divisores”, é preciso,
eles alertam, pensar em “pequenas multiplicidades”. Em outras palavras, não se trata de abolir
as diferenças entre os mundos, mas, a partir de
conexões transversais, capturar formas singulares
de pensar e agir que podem ser traduzidas umas
nas outras por meio de uma imaginação conceitual mais apurada.
A “antropologia simétrica”, expressão cunhada
por Bruno Latour, é então eleita como antídoto a
esses “grandes divisores” na medida em que permite o estabelecimento de um diálogo não apenas
entre áreas do conhecimento, mas entre mundos,
por exemplo, o mundo ameríndio e o da ciência
moderna. A�nal, se todos somos nativos, todos somos, de um ponto de vista reverso, antropólogos,
como propôs Roy Wagner. Nessa dupla condição
comum, e nessa possibilidade de transitar entre
esses pontos de vista, é que se estabelece uma re�exividade propriamente antropológica, como
sustentou Marilyn Strathern. Wagner, Strathern
e Latour são considerados inspiradores da Rede
Abaeté de Antropologia Simétrica. Seguindo os
seus atalhos, fortemente críticos a uma antropologia standard, torna-se possível aproximar os estudos sobre os “outros” e sobre “nós mesmos” de modo
a desestabilizar os modelos teóricos dominantes e
enfatizar que o conhecimento antropológico não
é jamais re�exo de um ponto de vista neutro ou
total e só pode ser construído na interlocução com
aqueles entre os quais se estuda.
A idéia de que o conhecimento antropológico
é construído em rede ressoa, en�m, na experiência de diluição da autoria. Como frisam Goldman e Viveiros de Castro, na entrevista que se
segue e na qual as falas de ambos se encontram
propositalmente fundidas, a internet e o wiki
servem como instrumentos para a produção de
um texto que é fruto de uma multiplicidade au-
toral. O autor deixa de ser Viveiros de Castro
ou Goldman, individualmente ou em parceria,
ou mesmo o conjunto de intervenções realizadas
por outros autores nos textos disponibilizados. O
autor passa a ser, então, a própria Abaeté, um
“coletivo” ou “rede de associações”. Nesse sentido, como consta no texto-piloto, “Simetria, reversibilidade e re�exividade”, Abaeté adquire o
estatuto de um parlimpsesto, ela é um “objeto
discursivo em situação de interpolação, enunciado por uma multiplicidade autoral antes que
por autores múltiplos”.
Idéias
A idéia da Rede Abaeté veio de uma experiência anterior feita por um de nós (Eduardo
Viveiros de Castro): a tentativa de elaboração de
um texto “coletivo” por meio da Internet. Tratase do Projeto AmaZone, que permanece ativo na
rede, no endereço http://amazone.wikia.com/
wiki/Projeto_AmaZone. Esta página é ligada ao
NuTI (Núcleo de Transformações Indígenas),
que reúne pesquisadores da área de etnologia
indígena. Em função disso, aconteceram alguns
encontros no Museu, em princípio para que esses pesquisadores apresentassem seus trabalhos.
Mas aí aconteceu algo de relativamente inédito,
ao menos no Museu Nacional: muita gente que
não trabalha especi�camente com etnologia se
interessou pelos encontros e pelas discussões.
Imaginamos então, inicialmente, criar uma página parecida com a AmaZone, e, depois, tentar
estabelecer uma rede, a Abaeté.
Desconexões, reconexões
A rede busca uma nova forma de conexão
entre pessoas mais interessadas em pensar e discutir o que os antropólogos estão efetivamente fazendo hoje do que aquilo se ensina como
antropologia na universidade. Como observou
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Tim Ingold, a distância entre essas duas antropologias parece aumentar a cada dia. A forma
rede é importante. Buscamos maneiras de criar
conexões que não se assemelhem ao modelo
das associações pro�ssionais, ou do grupo de
pesquisadores que se juntam para fazer um
projeto, obter um �nanciamento etc. Esses
modelos são perfeitamente normais e admiráveis, claro, mas será que não temos criatividade
su�ciente para usar o tipo de experiência que a
antropologia suscita e promover outras formas
de associação? Vários planos estão em jogo: as
formas de associação, os modos de transmissão
do saber e das experiências de cada um, o cruzamento de divisões internas, e assim por diante. Nesse sentido, a fronteira entre as chamadas
“etnologia indígena” e “antropologia das sociedades complexas” é particularmente perniciosa,
porque tende a barrar esse tipo de conexão.
Outras formas de associação: Wiki
A Rede Abaeté pode ser tomada como uma
espécie de “sujeito” distribuído, que teria por objeto ou objetivo algo como a elaboração de uma
antropologia simétrica, tendo no wiki seu, digamos, método. As três coisas mantêm uma relação importante. O wiki Abaeté não é uma lista
de discussão clássica da internet, em que tudo o
que se tem a dizer é “sou contra” ou “sou a favor”
disso ou daquilo. É preciso entrar no texto para
modi�cá-lo. O resultado desse processo coletivo
não é da mesma natureza de um trabalho individual, ou mesmo de um com vários autores
identi�cados, onde o(s) autor(es) controla(m) o
que vai ser publicado. A ferramenta wiki é para
ser usada de uma maneira aberta a todo leitor.
A enciclopédia Wikipedia (www.wikipedia.org)
é o maior exemplo do sistema: uma enciclopédia em que todos podem entrar, escrevendo ou
corrigindo o que quiserem. No caso da Rede
Abaeté e do AmaZone, qualquer um que souber o endereço também pode entrar e modi�car,
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mas a idéia é reunir pessoas interessadas (e, se
possível, também interessantes), antropólogos
ou congêneres. A nossa idéia é de fato borrar as
fronteiras entre os autores, produzir uma certa
multiplicidade autoral, mudar um pouco o regime de enunciação da produção antropológica,
que é um regime clássico do autor individual
(singular ou plural, pouco importa) que escreve
um artigo ou livro e publica citando outros, os
quais entram em seu texto unicamente através
das aspas. A Rede Abaeté e o AmaZone buscam
outras formas de conectar pessoas dentro de um
mesmo discurso que não seja a forma das aspas,
mas que envolva o outro na produção de um
texto que não é mais individual. O que não quer
dizer que é de todos, já que a diferença entre esse
autor múltiplo e o mundo é grande. O texto não
resulta de/em um consenso, pois a idéia é emitir
proposições radicais mas que não estejam assinadas por um autor e que nem caiam no regime do
“ele disse e eu não concordo”, mas que produza
uma multiplicidade autoral, como resultado do
trabalho de várias pessoas ao mesmo tempo. Se
alguém �zer uma modi�cação imbecil — um palavrão ou alguma coisa desse tipo — alguém entra
e ao tira. Se alguém introduzir algo que traga uma
contradição teórica, qualquer um pode enviar uma
mensagem para a página de discussão dizendo que
a inserção tem de ser compatibilizada porque está
a�rmando o contrário da proposição anterior, e
assim por diante. O que fazer nesse caso? Uma
nota dizendo que esta é uma posição especí�ca de
fulano, ou uma correção? A questão em si é parte
do projeto. En�m, há mil formas, mas o problema não é deixar aparecer contradições ou muito
menos escamoteá-las, e sim fazer sentido. A Abaeté tem um texto-piloto, Simetria, Reversibilidade
e Re�exividade, inicialmente um manifesto que
acabamos deslocando para uma página especial
que não pode ser alterada, a �m de que ele permanecesse justamente como um manifesto, ou seja,
uma referência. Ao mesmo tempo, expandimos o
manifesto, tornando-o um texto-piloto que dia-
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loga com todas as outras coisas penduradas nesse
wiki, coisas paralelas, ligadas, desdobradas a partir
dele. É esse texto-piloto que deveria ser coletivamente modi�cado e elaborado
Em rede
Se o wiki é um instrumento de trabalho
em rede, lembremos que a noção de antropologia simétrica surgiu num contexto teórico
que também valoriza a noção de rede. De certo
modo, foi Bruno Latour quem “inventou” a
ambas ou, pelo menos, deu uma interpretação
que nos interessa para a noção de rede e para
a idéia de uma antropologia de nós mesmos.
Existe assim uma consubstancialidade primeira entre o Abaeté-wiki e a Abaeté-rede, e entre
eles e o tema da antropologia simétrica. Esta,
ao contrário de muitos mal-entendidos em circulação, opera, em parte, estabelecendo uma
espécie de homologia formal entre os objetos
que estuda e seu próprio modo de operação. O
que corresponde, nesse sentido especí�co, a tomar esses objetos como redes de conexão entre
humanos e não-humanos ou, em uma linguagem mais diretamente latouriana, em rede�nir
objetos que não podem mais ser de�nidos sob
o modo da entidade, do sujeito ou do objeto
puri�cados, da natureza ou da cultura puri�cadas, e assim por diante. Nessa perspectiva, os
“objetos” são sempre articulações entre dimensões, facetas, momentos diferentes, que nesse
sentido, são múltiplos, ou melhor, são multiplicidades, quer dizer, são como a própria rede:
nem um nem todos, mas todos menos um, n1, isto é, a multiplicidade enquanto tal.
Nem periférico nem central
Por de�nição, a noção de rede é completamente refratária a qualquer diferença entre central e periférico. Uma rede não tem nem centro
nem periferia, só pontos de adensamento. Por
ora, o/a Abaeté é um/a wiki-rede em português,
ou melhor, em brasileiro. Mas isso não tem nada
a ver com ser uma rede periférica, que, eventualmente seria capaz de se estender para o centro,
uma rede que ou está dominada pelo centro,
ou vai dominar este centro… Porque esta não
é a questão! Lembremos a frase de Duchamp:
“não há solução porque não há problema”. A
existência da rede impede que esse problema se
coloque enquanto tal. No caso da antropologia brasileira, a impressão que temos é que há
uma densidade su�ciente para se fazer um experimento desses: se nenhuma outra pessoa do
planeta entrar na Abaeté — e não é esse o caso
—, essa densidade já seria su�ciente para que as
coisas funcionassem. A distinção entre antropologia central e periférica é um fantasma que foi
criado de propósito, e que serve para uma série
de coisas. A Associação Brasileira de Antropologia, por exemplo, usa a distinção para obter
algumas compensações de associações mais
“centrais”; alguns departamentos ou programas
usam a distinção para indicar nomes ou organizar congressos (“agora o congresso tem que ser
aqui porque somos a periferia e sempre somos
discriminados…”); alguns criticam outros porque, supostamente, falam como se estivessem
no centro quando estão na periferia; ao mesmo
tempo, os mesmos críticos se angustiam perguntando se seremos ouvidos por pessoas fora
daqui, como fazer para que eles nos leiam, e assim por diante. É preciso escapar desses falsos
constrangimentos e colocar a verdadeira questão: somos capazes de produzir idéias e de fazer
algo novo com essas idéias? Do nosso ponto de
vista, um dos problemas que enfrentamos atualmente é que as questões organizacionais e de
política institucional estão dadas de antemão,
subordinando as questões intelectuais substantivas (como vai se falar e não o quê ou sobre o
quê vai se falar). Quando esse tipo de operação
é praticada, já se assassinou o que há de mais
interessante no nosso trabalho.
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Pequenas Multiplicidades
Para nós, foi curioso e, até certo ponto,
surpreendente observar algumas reações ao
que estamos tentando fazer. Alguns chegaram
a dizer que pretendemos destruir a antropologia; outros (às vezes os mesmos) dizem que não
há nada de novo nisso tudo; outros admitem
que há algo de novo, mas ressaltam que não é
a única coisa nova que existe na antropologia.
Bem, claro que concordamos com essa última
observação, mas achamos curioso que alguém
considere necessário fazê-la; concordamos até
com a idéia de que não estamos propondo
nada de novo, uma vez que se alguém quiser
procurar, certamente encontrará “precursores”
e “in�uências” à vontade (só não entendemos
muito bem por que alguém pode se interessar
por isso); quanto à destruição da antropologia,
tudo depende do que se entende por esse termo: se é de suas formas atuais de organização,
poderia até ser; mas se é da antropologia enquanto aventura intelectual que se trata, e se
quiséssemos ser pretensiosos, diríamos até que
o que desejamos é tirá-la da estagnação em que,
ao menos no Brasil, ela se encontra há alguns
anos; mas é claro que não temos essa pretensão
toda… O que parece particularmente irritante aos nossos críticos, se bem os entendemos
(não fazemos questão absoluta disso, sejamos
francos), é justamente a nossa tentativa de
(re)aproximar a “etnologia indígena” da “antropologia das sociedades complexas”, e nossa única hipótese sobre as raízes de tal irritação é que
ela não respeita os feudos institucionalmente
estabelecidos (outro dia ouvimos alguém falar,
com aprovação, da necessidade de pagamento
das “corvéias acadêmicas”…).
É preciso, pois, ressaltar que, em certo sentido, os textos que estão aparecendo nas páginas da
Abaeté devem ser encarados a partir dos propósitos especí�cos ao qual se destinam. Não são textos
publicáveis do jeito que estão em outro lugar. Por
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exemplo, a relação que estabelecemos entre Roy
Wagner, Marilyn Strathern e Bruno Latour serviu aos propósitos de um manifesto. Se fôssemos
escrever um artigo, essa relação seria elaborada de
outra maneira, mas o texto-manifesto está elaborado desse jeito porque sua idéia foi aparecendo
no cruzamento de várias coisas. A idéia de antropologia simétrica, de Latour, surgiu como o emblema mais óbvio de uma operação que buscava
romper a separação entre os campos da etnologia
indígena e o das chamadas sociedades complexas,
sem negar suas singularidades. A questão que Latour coloca é o que signi�ca fazer antropologia na
nossa própria sociedade, questão que ricocheteia
sobre o modo de fazer antropologia em outras sociedades. Como fazer uma antropologia simétrica? Ou como simetrizar a antropologia? A noção
de antropologia simétrica é alvo de todo tipo de
mal-entendido porque a palavra simetria quer dizer muitas coisas diferentes. Quando Latour diz
“simétrica”, o que ele propõe é a dissolução de
assimetrias constitutivas do pensamento antropológico, pensamento cuja forma emblemática é a
assimetria entre o discurso do sujeito e o do objeto. Assim, é contra essa assimetria que a noção
de simetria é proposta. Ninguém está propondo
um mundo onde tudo seria harmônico e igual!
O oposto do grande divisor não é a unidade e
a noção de simetria não vai restaurar nenhuma
unidade perdida. O que se contrapõe aos grandes
divisores são as pequenas multiplicidades. A noção de multiplicidade é a chave: o problema não é
ser dois, mas ser só dois; e a solução para isso não
é voltar ao um.
Igualmente diferentes
É evidente que as sociedades ou os coletivos
não têm todos o mesmo poder, e o desa�o da
antropologia é posicionar os discursos da sociedade de que faz parte o antropólogo e aquela
que ele estuda como igualmente diferentes, evitando a introjeção das relações de poder em seu
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discurso. A simetria está nessas duas palavras,
no igualmente e no diferente, ou seja, simetrizar não signi�ca passar por cima do fato de que
há uma diferença enorme entre as sociedades,
mas, ao contrário, converter justamente esse
fato no problema e fazer com que a sociedade
ou o grupo de onde vem a antropologia seja
tão antropologizável quanto os demais. Mas é
preciso fazer isso sem tirar o antropólogo da
jogada, porque é muito fácil exotizar os ocidentais, os brancos, o que for, desde que não
seja exatamente onde você está. A insistência
do Latour na antropologia da ciência — não
simplesmente na antropologia do discurso ocidental o�cial, da razão ocidental dominante
como um todo, mas da ciência especi�camente
— se justi�ca porque é aí que se enraíza a assimetria fundamental. Todo mundo é objeto,
menos o sujeito. Eu sempre posso desobjetivar
a mim mesmo, e o que nós estamos propondo é a possibilidade de bloquear essa clarabóia
por onde o antropólogo desaparece. Assim, se é
possível pensar a antropologia moderna a partir da relação entre sujeito e objeto, e a pós-moderna a partir da relação entre sujeito e sujeito,
uma antropologia que propomos denominar
pós-social poderia talvez ser pensada segundo
uma relação em que todos são sujeitos e objetos simultaneamente (como nos ensinam, aliás, tanto o perspectivismo nietzscheano quanto
aquele de vários povos indígenas).
Latour e a descolonização da antropologia
É de se observar que Latour quase não se
refere aos antropólogos pro�ssionais. Fala de
alguns, claro, mas ressalta que o que sempre o
interessou na antropologia teria sido seu método, não seus conceitos, nem, muito menos,
suas teorias. Não é difícil compreender essa
posição de Latour se lembrarmos que uma das
características da chamada antropologia das so-
ciedades complexas sempre foi tomar conceitos
tidos como tradicionais na antropologia das
outras sociedades e aplicá-los à nossa. O problema é que um dos efeitos dessa operação (que
poderíamos denominar falsa simetrização) costuma ser um enfraquecimento generalizado do
que se está dizendo sobre nossa própria sociedade, uma banalização tanto do discurso antropológico quanto do objeto ao que ele está
sendo aplicado. Latour, ao contrário, mais interessado em uma antropologia da ciência do
que do cientista, é capaz de colocar sua ênfase
nas práticas e não apenas nos discursos, ou melhor, em todos os tipos de práticas, discursivas
e não-discursivas. O que signi�ca que, na verdade, ele aplica o mesmo método que os antropólogos empregam para estudar casamentos,
rituais, possessões etc. Descreve o que está efetivamente acontecendo quando alguém está fazendo ciência. Nesse sentido, se a antropologia
sempre foi concebida como ciência de segunda
classe, podemos ler o que Latour está propondo como uma descolonização da antropologia
pela ciência.
Wagner, Strathern e a desbanalização
dos conceitos
Por outro lado, nos últimos 25 ou 30
anos, no que �cou conhecido como pós-estruturalismo, foram aparecendo, no interior
da própria antropologia, uma série de noções
e de críticas a noções mais antigas que podem
problematizar a opção latouriana pelo método antropológico em detrimento de seus
conceitos e teorias. Essas transformações já
permitem, cremos, uma apropriação de noções da etnologia pela antropologia de nossa
própria sociedade capaz de produzir efeitos
de conhecimento, e não necessariamente de
enfraquecimento ou de banalização, daquilo
que se está dizendo e sobre aquilo de que se
está falando. Por exemplo, a maneira como
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Wagner trata a noção de cultura como invenção2, ou a crítica de Strathern à noção de
sociedade em favor da de socialidade. Essas
duas noções, cultura e sociedade, se tornaram
uma espécie de emblema da banalização em
antropologia. Assim, quando Wagner reconceitualiza a cultura como uma operação de
invenção (em sentido completamente diverso do da “invenção da tradição”, anote-se),
a idéia de cultura começa a se complexi�car
e a perder sua banalidade, porque a cultura
só se constitui num certo ponto de contato,
ela não “está lá”. Da mesma maneira, a noção
stratherniana de socialidade só se constitui no
funcionamento efetivo das coisas (humanos,
animais, objetos, espíritos…), ela tampouco
“está lá”. Em certo sentido, seria possível dizer que ao etnografar como os cientistas se
relacionam para fazer ciência, Latour descreve seus modos de socialidade, assim como as
invenções que são obrigados a fazer para estabelecer relações.
Comunicabilidade das formulações
No caso especí�co de Marilyn Strathern,
talvez pudéssemos dizer que sua hipótese ou sua
questão fundamental seja a da comunicabilidade das formulações. Por exemplo, seu livro mais
conhecido, �e gender of the gift3, tem duas partes, e ela procede como se jogasse uma contra a
outra. De um lado, o discurso da antropologia
feminista, de outro, o que os melanésios têm a
dizer sobre aquilo que os antropólogos chamariam de gênero na Melanésia. O primeiro problema é: com que categorias podemos exprimir
as categorias dos melanésios, quando, como diz
a própria Strathern, por de�nição só temos à
2. WAGNER, Roy. 1981. �e invention of culture. Chicago: University of Chicago Press.
3. STRATHERN, Marilyn. 1988. �e Gender of the
gift: problems with womem and problems with society in
Melanesia. Berkeley: University of California Press.
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disposição nossas próprias categorias? Parecenos que uma das inovações introduzidas por essa
antropóloga é reconhecer que “nossas próprias
categorias” é um objeto um pouco mais complicado do que parece. O problema levantado por
Marilyn Strathern, diga-se de passagem, não
signi�ca nem que estamos fatalmente condenados ao etnocentrismo, nem a promessa de um
ponto de vista e de um vocabulário “cientí�cos”
que ultrapassem, ao mesmo tempo, o nosso vocabulário e o deles melanésios. Pois, ao mesmo
tempo em que o discurso radical do feminismo
é, sem dúvida, um discurso da nossa sociedade,
parece claro que não podemos dizer que ele seja
o discurso dominante da nossa sociedade. Assim, em vez de simplesmente colocar em relação duas sociedades ou duas culturas, de acordo
com o antigo método comparativo, Strathern
coloca em conexão uma certa multiplicidade de
práticas discursivas, o que permite que aquilo
que se encontra entre os melanésios possa ser
expresso de uma forma que certamente é “nossa”, mas que não é “nossa” no sentido de que é
de todo mundo, que é apenas uma parte do que
fazemos, uma parte que poderíamos denominar
minoritária.
Pessoas e coisas
É preciso escapar das alternativas do tipo
tudo ou nada, ou do que Isabelle Stengers e
Philippe Pignarre chamam de “alternativas infernais”. Podemos, por exemplo, partir de uma
oposição muito simples: ali há uma sociedade
de pessoas, aqui uma de bens ou coisas. Às vezes
esses divisores podem ser bons pontos de partida… O chato é quando também são os pontos
de chegada! Porque na chegada a questão não
é constituir pessoas e coisas, mas perceber que
pessoas e coisas, ou palavras e coisas, são apenas objeti�cações de certas relações, de certas
tramas — e isso, claro tanto num caso quanto
no outro. Dar voz às coisas não quer dizer que
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as coisas sejam iguais às pessoas, mas que elas
são iguais apenas na medida em que são resultantes de processos de objeti�cação, processos
que, não obstante, são heterogêneos e têm de
ser descritos enquanto tais. Em Art and agency4,
por exemplo, Alfred Gell procura de�nir os objetos como “agentes de segundo grau”. Nesse
sentido, continua separando humanos e nãohumanos, dessa vez como agentes de primeira e segunda classe. Gell, de certo modo, foi o
autor que levou a antropologia social britânica
a seu limite; é nesse limite que se pode situar a
obra de Gell dentro de um projeto de antropologia simétrica pós-social. Sua idéia de que
o objeto é, sobretudo, o índice de uma agência
supõe no fundo uma distinção entre agência
primária e secundária, isto é, uma distinção
entre um sujeito vicário e um sujeito legítimo,
já que é apenas na vizinhança deste que aquele pode adquirir agência. Haveria, assim, uma
“ontologia dos agentes de verdade”, ou primários, e uma dos “agentes secundários”, que só
são agentes quando colocados nas vizinhanças
de um agente primário. Gell permanece, desse ponto de vista, dentro da visão naturalista
cara à London School of Economics, supondo a existência de uma distinção natural entre
agentes e coisas que, em seguida, é recoberta
por uma (in)distinção social. Existiria uma
diferença entre pessoas e coisas, ainda que em
seguida as coisas possam ser trocadas como
pessoas ou vice-versa. As pessoas são coisas secundariamente, e as coisas são pessoas secundariamente. O que, na verdade, não é muito
diferente da distinção clássica em nosso direito
entre pessoa física e pessoa jurídica. A pessoa
jurídica é uma �cção legal, no sentido próprio
do termo, porque a pessoa jurídica só é uma
pessoa na vizinhança da pessoa física. É preciso
que uma pessoa física responda pela jurídica, e,
em última análise, não é possível arrastar para o
4. GELL, Alfred. 1998. Art and agency: an anthropological theory. Oxford, New York: Clarendon Press.
tribunal uma pessoa jurídica independente de
uma pessoa física. Ou seja, tudo é pessoa, mas
algumas pessoas são mais pessoas que as outras.
Lembranças de Radcli�e-Brown. Ora, basta
um segundo para perceber que “pessoa física”
é uma categoria jurídica, tão jurídica quanto a
de pessoa jurídica. Não há “pessoas físicas” fora
do direito. E aí?
Instaurar uma multiplicidade
No que diz respeito a Latour, um mal-entendido de que já falamos rapidamente é supor
que, ao acusar e recusar os dualismos, seu projeto consistiria na restauração de uma unidade
do humano. O mundo dos híbridos, aquele que
prova que ninguém jamais foi moderno, não
seria o que uniria todos os homens, não seria
o dado para todos os homens? O ponto é que
separar vem sempre depois, é sempre a posteriori,
não a priori. A puri�cação sempre vem depois,
como a oposição entre natureza e cultura, à qual
se chega mediante um processo laborioso de
puri�cação, separação, destilação. Mas o que é
dado é esse mundo do meio, da prática, anterior
à distinção entre teoria e prática. Uma pergunta
que, sim, poderia ser feita é se não seria impossível não puri�car. E, nesse caso, como seria possível puri�car de uma maneira não dualista, não
polarizada? Ora, vencer (não se trata de ultrapassar) o dualismo não consiste em restaurar uma
unidade perdida, mas em instaurar uma certa
multiplicidade. O campo do meio — ou império do meio, como o chama Latour — é um
campo de multiplicidade, disponível para toda a
humanidade. No fundo o monismo mais radical
sempre se encontra com a multiplicidade mais
radical. Latour opera, cremos, em um registro
mais contemporâneo que o dessas velhas questões sobre unidade, dualidade etc. Continua a
se repetir nas salas de aula de antropologia que
o que de�ne a disciplina é trabalhar com o problema da relação entre a unidade biológica do
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homem e sua diversidade sociocultural. É isso
que as pessoas ainda estão aprendendo quando
começam a estudar antropologia. Mas o que isso
tem a ver com o que os antropólogos estão efetivamente fazendo hoje?
Alternância entre o dado e o construído
Há uma passagem em que Lévi-Strauss fala
do sexo dos caracóis, que são hermafroditas. Se
um caracol encontra outro caracol, quem vai
ser o macho e a fêmea depende de uma série de
circunstâncias, eles não são machos ou fêmeas
a priori ou em si. Lévi-Strauss a�rma que a distinção entre sentido literal e metafórico é como
o sexo dos caracóis: se você olha daqui para lá,
aquilo é letra e isso metáfora; se olha de lá para
cá, é o contrário. Não existe metáfora em si, literalidade em si, signi�cante em si, signi�cado
em si. Não são distinções essenciais, absolutas.
É provável que algo próximo se dê na oposição
entre o dado e o construído na semiótica de
Roy Wagner: o dado é o que é pressuposto em
função do que se usa como controle. Isso não
quer dizer que, em outra circunstância, não se
possa tomar o que se tomava como construído
como dado e vice-versa. Ou que seja necessário
dispor primeiro de um dado para que depois se
tenha um construído: eles são simultâneos, estão em implicação ou pressuposição recíprocas.
O que constitui uma espécie muito singular de
dualismo, se quisermos manter o termo. Deleuze distingue, um tanto ironicamente, dois
tipos de dualismo: um dualismo “verdadeiro”
(de tipo cartesiano, onde se pode passar a vida
inteira tentando conciliar o corpo e a alma ou
coisas parecidas) e um dualismo que ele chama de “provisório”, porque serve apenas como
ponto de partida ou de apoio para outra operação, mais importante. Neste caso, há duas
possibilidades representadas, para Deleuze,
respectivamente por Spinoza e Nietzsche: de
| ���
um lado, um monismo absoluto, de outro, um
pluralismo absoluto. Apesar das aparências, isso
não constitui um novo dualismo porque, como
sustenta Deleuze, o que isso revela é a identidade profunda entre Spinoza e Nietzsche, dois
�lósofos que todos achavam absolutamente
opostos. E o que os identi�ca é o fato de tanto
a unidade spinozista quanto a pluralidade nietzscheana serem da ordem da multiplicidade
— conceito que abole os dualismos e todas os
debates em torno do um e do múltiplo.
Dualismos provisórios
O ponto crucial é que o dualismo é mais um
modo de tratamento das coisas do que uma maneira de distribuição “real” das coisas. Por isso,
quando se diz, por exemplo, que as sociedades Jê
são dualistas, é preciso ter cuidado para não cair
nem na hipótese de que o dualismo é, no fundo,
uma propriedade do espírito humano que os Jê
(mas também Descartes e todo mundo) apenas
exprimem a seu modo, nem na de que ele seria
um traço substantivamente característico dos Jê,
aquilo que os “identi�caria” (em oposição aos
Tupi, a nós mesmos etc.). Porque existe toda
a diferença do mundo entre operar com dualismos substanciais e utilizar dualidades como
pontos de passagem para se fazer outra coisa.
O dualismo é uma forma de se administrar o
Um (mesmo supondo o Múltiplo) ou um modo
de sair da questão Um-Múltiplo para instaurar
uma multiplicidade? Depende. Mesmo a separação entre corpo e alma pode ser usada para �ns
não dualistas. O que, em geral, provoca aquelas críticas muito fáceis e algo irritantes: “você
está sendo dualista!”. Pior: “você é etnocêntrico!
Você apenas projetou e/ou reencontrou o corpo e a alma dos cristãos!”. Críticas não apenas
simplistas como limitadoras, paralisantes. Pois o
problema (“técnico”, como diz a autora) é aquele enunciado por Strathern: “como criar uma
consciência de mundos sociais diferentes quan-
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do tudo o que se tem à disposição são termos
que pertencem ao nosso”? Essa é a questão. Isso
signi�ca, cremos, que em Strathern nos deparamos sempre com esse tipo de dualismo provisório de que falávamos, já que suas análises em
geral partem de distinções usuais para com elas
fazer outras coisas.
Como fazer os conceitos de corpo e alma
funcionarem de outra maneira? Se utilizarmos
a noção de corpo e alma como um refúgio no
qual se faz uma leitura cartesiana das noções
indígenas, a crítica é totalmente legítima. Mas
se tomarmos as palavras corpo e alma como
tradução provisória dos conceitos indígenas
e, em seguida, usarmos os conceitos indígenas
para sabotar os conceitos ocidentais de corpo e
de alma, essa homonímia se faz estratégica e a
coisa se torna interessante. Traduzimos as palavras, mas preservarmos a dinâmica conceitual
nativa e assim, quem sabe, conseguimos perturbar nossas próprias categorias, mostrando
que alma e corpo são capazes de outras coisas.
Toda discussão de Strathern sobre o feminismo tem a ver com isso. Ao contrário de muitos
antropólogos, Strathern foi realmente afetada,
no bom sentido do termo, pela crítica pósmoderna, ou seja, em vez de perder seu tempo
acusando os equívocos ou as bobagens dos pósmodernos, ela concentrou seu foco em uma
questão que eles levantaram mas com a qual
não souberam lidar muito bem: como falar dos
outros sem que se esteja falando de si mesmo.
A reposta de Strathern é que mesmo que essa
proeza seja impossível, isso não signi�ca o silêncio — bem ao contrário do que supunham
os próprios pós-modernos. Se, ao falar dos melanésios, necessariamente usamos categorias
que são nossas, é preciso proceder de um modo
em que os melanésios nos ajudem a nos distanciarmos dessas nossas categorias. E este é o
sentido, mais alargado que o de Latour talvez,
que gostaríamos de dar à idéia de antropologia
simétrica. Não se trata simplesmente de incluir
na análise a ciência e a política ocidentais e
proceder como os antropólogos que analisam
as sociedades não-ocidentais. O desa�o maior
é tratar nossos conceitos com a mesma dureza
com que tratamos os conceitos dos outros — e
com a ajuda dos conceitos dos outros! Aquilo
que os nossos conceitos faziam com os dos outros, agora eles também vão sofrer a partir dos
conceitos dos outros.
Comparar o incomensurável
Pode-se argumentar, claro, que esse novo
método comparativo não está comparando
coisas comparáveis, mas bananas e laranjas,
segundo a velha metáfora até hoje empregada
nos cursos de introdução à antropologia. Mas,
por que comparar o comparável? Para isso basta
chamar um contador… O interessante é medir
o incomensurável, comparar o incomparável,
como disse Marcel Detienne (em um livro justamente chamado Comparer l’incomparable5).
O que quer dizer isso, o incomensurável? Ora,
o que não tem uma medida comum. A noção
de comensurabilidade supõe que o que comensura duas coisas está fora delas. Duas coisas são
comensuráveis em função de uma terceira, que
é supostamente a natureza em si. Esta funciona
como o referente que legisla de que modo A
está ligado a B em função de uma terceira coisa
que é independente dela. Achamos que uma
das coisas que a antropologia mostra é que a
comensurabilidade é um processo interno, não
externo. O metro padrão, para usar uma linguagem latouriana, deu muito trabalho para
ser elaborado. Com que metro você mede o
metro padrão? Como é que você vai saber que
existe um metro, o metro padrão? Se existe alguma coisa incomensurável é precisamente o
metro padrão, porque ele é a medida de todas
as coisas. Pensando de novo em �e invention of
5. DETIENNE, Marcel. 2000. Comparer l’incomparable. Paris: Seuil.
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culture, de Roy Wagner, poderíamos dizer que
a noção de cultura é problemática sempre que
se pretende que ela funcione como um metro
padrão. Por outro lado, ela pode ser reinventada se se admite que ela é apenas um meio de
comparar o incomensurável.
Relação versus identidade
Vale a pena observar que Wagner utiliza muito
a palavra relatividade, mas, salvo engano, nunca
relativismo. De fato, é preciso ativar essa pequena
dicotomia porque, de certo modo, o relativismo
já é uma maneira de domesticar a relatividade.
Como diria Deleuze, o relativismo é a idéia de
que a realidade é relativa, e a relatividade é a idéia
de que o relativo é que é verdadeiro. Que a verdade do relativo é a relação. O que signi�ca que
não há não-relação nesse sentido especí�co. Isso
de algum modo conecta esses três autores, Latour,
Strathern, Wagner (além de Deleuze, Guattari e
outros de quem gostamos). Eles estão todos na
contramão de uma visão identitária da relação,
essa visão que os cientistas sociais apresentam todos os dias no jornal e na televisão. Porque, dizem
eles, essas são idéias “perigosas”: ao enfatizar as diferenças, temos a guerra, a destruição, porque se
está. E, de fato, quando se supõe que só existam
identidades que se relacionam, as únicas formas
de relação passam a ser a assimilação ou a destruição. Uma teoria verdadeiramente relacional, que
não suponha identidades existindo a priori ou em
si, não tem nada a ver com isso. O que se vende
por aí são teorias identitárias da relação (identidade contrastiva, etnicidade - Barth, em suma).
É como se a relação existisse para a identidade.
Antigamente se imaginava que primeiro existiam
as identidades e então as relações; agora se diz
que “as identidades são relacionais”, como se as
relações existissem para produzir as identidades.
Não se progrediu muito, pois tudo continua existindo apenas para terminar em uma identidade.
Ou, como dizia Mallarmé: o mundo existe para
| ���
terminar num livro. Triste destino da relação. É
claro que as relações produzem, entre outras coisas, identidades. Mas não devemos imaginar que
as relações existam para produzir identidades,
que é esse seu telos, seu objetivo, sua �nalidade.
(Como se toda diferença quisesse “no fundo” ser
uma identidade). Esse é o problema. A impressão que se tem é que essas noções de identidade,
como as que derivam das abordagens das “relações raciais” ou das “relações interétnicas”, agem
como uma máquina de repressão contra qualquer
outra coisa que se deseje pensar. É como se todos
soubessem a resposta de antemão. Seria preciso,
antes de mais nada, saber o que se quer dizer com
a palavra identidade. Ou melhor ainda, o que se
pretende não dizer, ou o que não se deseja que se
diga, ao empregar essa noção.
Alteridade e alienação
Se identidade existe, ela é secundária em
relação à alteridade. Mas é também preciso
cuidado para não transformar a alteridade em
outra identidade. A alteridade hoje em dia costuma aparecer como meio para a a�rmação da
identidade. Uma boa alternativa vocabular, mas
que infelizmente já foi usada para �ns completamente opostos, seria a palavra alienação,
nome, a rigor de uma ação e não de um estado,
como “alteridade”. Mas a palavra foi destruída
pelo uso inverso ao que buscamos: alienação é
perda de identidade. Observemos de passagem
que identi�cação, sim, também é um processo,
e um processo bem interessante, uma vez que
existe uma imensa quantidade de dispositivos
sociopolíticos de identi�cação — por exemplo,
vários conceitos antropológicos…
A perversão identitária
Todas as etnogra�as bem elaboradas, nos
mais diversos campos, mostram que, além de
extremamente so�sticadas, as teorias locais são
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hábeis e �exíveis. E que o discurso da identidade
aparece sempre que o Estado entra em cena, para
o bem ou para o mal, se podemos nos exprimir
dessa forma. Como não pretendemos fazer parte do aparelho de Estado em nenhuma de suas
múltiplas formas, perguntamos de que lado está
o antropólogo nessa história. Do lado do Estado,
para dialogar com ele ou em nome dele? Ou a
tarefa mais interessante da antropologia não seria
justamente encontrar um modo de se conectar
com essas outras formas, mais instáveis, de articular as relações? Essa é uma aposta política e teórica. Na antiga teoria da luta de classes, em que
os campos são determinados pela posição que os
atores ocupam nas relações de produção, proletário era proletário e burguês era burguês (se abstrairmos, claro, essas coisas meio estranhas que
eram a pequena burguesia, a classe média etc.).
Mais tarde, começaram a aparecer os movimentos identitários, porque a classe como categoria
objetiva desapareceu, ou se tornou complicada
porque as relações de produção se tornaram incrivelmente complexas, e a noção de classe foi
�cando cada vez mais difícil de ser determinada.
Então, no lugar da luta de classes, passamos para
a reivindicação de identidades.
Uma das coisas curiosas sobre a noção de
identidade é que é muito diferente se identi�car
e ser identi�cado. Normalmente achamos que é
a mesma coisa, como na de�nição clássica adotada pelo Estatuto do Índio: “índio é aquele que
se identi�ca e é identi�cado como tal”. Nesse
pequeno “e” reside toda a confusão. Ao mesmo
tempo é identi�cado? Ou alternativamente é
identi�cado? Por quem é identi�cado? Quando?
Em que circunstâncias? O que acontece quando alguém se identi�ca e não é identi�cado, ou
quando é identi�cado e não se identi�ca? Quando te identi�cam, é uma objetivação, para o
bem ou para o mal: “você é brasileiro”, te identi�ca alguém, o que imediatamente retira de você
tudo o que interessa. Ou, “você é judeu”, “você
é gay”, qualquer coisa. Quando alguém come-
ça a dizer “sim, sou negro e me orgulho disso”
ou “sim, sou gay, exijo tais direitos”, “sim, sou
brasileiro”, alguma coisa sutil começa a acontecer. Normalmente, quando alguém começa a
se identi�car com aquilo que por meio do qual
o identi�cam, ele passa a identi�car alguém no
seu lugar. Ele vai inventar o palestino, no caso
do judeu; vai inventar um argentino, no caso do
brasileiro (brincadeira…). Ou seja, vai inventar
alguma coisa “pior” do que ele. Parece, assim,
que a identidade possui a perversa capacidade de
produzir esses efeitos em que o sujeito começa a
aprisionar a si mesmo e aos outros. “Assumir”
sua identidade é apenas o primeiro capítulo de
um processo que aparece como “luta de libertação”: “sim, sou isso e me orgulho disso”. Mas,
logo depois, começa a crescer o germe microfascista que já estava lá, e se eu me orgulho disso,
alguém tem que se envergonhar: quem é que vai
se envergonhar no meu lugar? Quem é que eu
vou identi�car agora?
Paradoxos da indianidade
Esse movimento de identi�cação é curioso
porque ele nunca vai até o �m, ao menos da
forma em que começa: em algum momento
ele tem que parar ou ser detido. Vejamos, por
exemplo, o caso clássico do Nordeste, dos índios “emergentes” do Nordeste. Trata-se de um
paradoxo do ponto de vista conceitual: os índios do Nordeste são “mestiços”, eles são a encarnação viva da anti-idéia de índio puro, com
tudo o que há nela de racista, essencialista, culturalista etc. Desse modo, o índio do Nordeste
é um índio bom, no sentido metafísico da palavra, pois estaria encarnando a essência da não
essencialidade, a essência do não-culturalismo.
O que acontece quando os índios do Nordeste são reconhecidos como índios pelo Estado?
Eles poderiam tentar fazer valer diretamente
a legitimidade da mestiçagem como condição, mas o que ocorre é, antes, o contrário.
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Eles começam a distinguir quem é índio puro
e quem não é, dizendo: “você não pode �car
aqui porque você não é índio puro”. Um índio
diz para outro índio: “nós somos os verdadeiros
Pancararu, vocês são mestiços”; “índio mesmo
somos nós aqui”; “olha, o Estado reconheceu
a comunidade Pancararu, você não é Pancararu, você é mestiço, tem que ir embora”. E aí o
próprio Estado — e mesmo alguns defensores
não-governamentais dos índios — dizem que
é preciso fechar a lista de quem é índio (ou
quilombola ou o que quer que seja) para evitar
uma confusão generalizada. Ou seja, o Estado
e seus congêneres impõem o congelamento do
processo que eles mesmos haviam gerado.
Identidade, isso pega?
Uma das sessões de debates que organizamos na Abaeté tinha esse título: “identidade,
isso pega?”. Chegamos à conclusão de que pega.
Como é possível abrir mão da noção de identidade quando se estrutura toda a ação em torno
dela? Os militantes do movimento indígena ou
do movimento negro adotariam, então, o que se
convencionou denominar “essencialismo estratégico”. Noção cínica e paternalista, que “perdoa”
os oprimidos por seus erros teóricos. Mas não é
esse o problema. O problema é o preço político
que se paga por esse uso abusivo e quase monoideístico da noção de identidade. Por que imaginar
que todas formas de luta passam necessariamente
pela noção de identidade? Obviamente há outras.
O que tem que ser enunciado é uma coisa muito
elementar: por que alguém que habita um lugar
há centenas ou milhares de anos só tem direito
de viver em paz aí se for índio ou se for negro?
Por que é preciso passar por processos de reconhecimento como índio ou quilombola para que
se tenha o direito de viver do jeito que se quer?
É assim que a identidade pega! Ninguém adere
por “conscientização” e nós sabemos, histórica e
etnogra�camente, como é que a identidade pega:
| ���
ela é aceita e incorporada por falta de opção!
Criando entidades
Toda identidade supõe uma entidade, toda
identidade engendra uma entidade que vai administrá-la segundo o modo de constituição
e funcionamento do Estado. Porque uma das
maiores e mais pér�das habilidades do Estado
é sua capacidade de convencer todo mundo de
que a única maneira de enfrentá-lo é assumindo sua forma (com outro conteúdo, claro, mas
quem se importa?). No que diz respeito aos
antropólogos, nossa questão não é só conceitual, ela também é política. Estamos fabricando
idéias, fabricando conceitos que se vinculam a
esse tipo de operação. É curioso comparar um
laudo de reconhecimento de uma terra de quilombo ou indígena e, por exemplo, à tese que
o autor desse hipotético (mas é claro) laudo
escreveu sobre o mesmo lugar. Na tese, o autor é sempre um desconstrucionista ou, mais
precisamente, um crítico que vai desnaturalizar
e desestabilizar todas as falsas certezas. Mas, no
laudo, o autor vai essencializar, assumindo para
si a operação do essencialismo estratégico. É
um enigma como alguém consegue fazer essas
duas coisas ao mesmo tempo. Como é possível
pintar, com a mesma tinta, um retrato de desessencialização e outro de objeti�cação? É possível sim, porque no fundo trata-se da mesma
operação, apesar de parecerem duas operações
diferentes. Assim, vive-se no melhor dos mundos, ganhando algum dinheiro para identi�car
gente e, ao mesmo tempo, conseguindo títulos
acadêmicos ao desindenti�car a mesma gente.
Isso só vai se complicar quando os advogados
de madeireiras, mineradoras e congêneres começarem a usar as teses para refutar os laudos
(como, aliás, já acontece em outros países).
Texto e autor híbridos
Todos sabemos que a antropologia não pode
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se de�nir por um objeto. As questões de pesquisa
devem ser propriamente intelectuais e não �car
à mercê das ondas e políticas de �nanciamento. Se é importante estar atento à sociologia da
produção intelectual, coisa que evidentemente
existe e que todo mundo sofre na pele, mais importante é saber que tem gente que não acredita
que isso seja a coisa mais importante do mundo. A pesquisa não pode ser escolhida e orientada apenas por “demandas de balcão”, nome
técnico desse tipo de coisa. De que alternativas
dispomos? Acreditamos que uma possibilidade
é a criação o mais livre possível de territórios e
espaços onde se possa pensar com mais prazer.
Assim, a idéia da Abaeté tem esse componente
associativo-institucional, ou melhor, contra-associativo e contra-institucional. Tem uma dimensão teórica, que é a questão da antropologia
simétrica. E tem uma dimensão técnica, que é
a questão inovadora, quer dizer, a tentativa de
usar o instrumento wiki para efetuar uma comunicação subordinada a uma produção inovadora e livre. Ou seja, não se trata apenas de
circulação de idéias, mas de produção de idéias.
Como utilizar esse sistema de circulação — que
não obedece ao modelo clássico dos seminários
e dos artigos autorais (que são ótimos e vão continuar existindo) — para abrir um novo espaço
de produção de textos híbridos, múltiplos, de
vários autores? Nesse espaço, quem escreve não
deve mais ser a questão. Trata-se de deslocá-la
para o que se escreve, de modo que o quem se
torna progressivamente menos importante ou
importante em contextos especí�cos. Sabemos
que isso não é fácil, inclusive porque suspende
antigos referenciais, como todo o complexo em
torno da autoria. Sabemos que não são raros aí
os bloqueios pessoais, o que exige primeiro, e
evidentemente, uma escolha e, depois, muita
autodisciplina. Como isso começou há pouco
tempo e, de certa forma, de modo meio espontâneo, não sabemos ainda muito bem aonde é
que esse negócio pode chegar — nem mesmo se
ele vai chegar em algum lugar.
Saída transversal pela esquerda
De toda forma, o que pretendemos é desenvolver conexões transversais. “Transversalidade” é uma noção que Guattari desenvolveu
e que se opõe tanto a verticalidade quanto a
horizontalidade. No primeiro caso porque é
preciso escapar dessa relação mestre-discípulo,
que é uma relação basicamente vertical. No segundo, porque não se deve supor que é possível
ligar qualquer coisa com qualquer coisa, pois
há coe�cientes de transversalidade. Às vezes a
conexão funciona, às vezes não funciona, é uma
questão de experimentação. Essa idéia permite,
também, conectar diferentes teorias. O uso
que alguns antropólogos fazem, por exemplo,
da obra de alguns �lósofos (como os próprios
Deleuze e Guattari) implica essa transversalidade. Há sempre uma certa aspereza, há sempre
transformações a introduzir, mas essas diferenças não são, em princípio, obstáculos para as
conexões que se pretende estabelecer. As relações transversais são as únicas capazes de gerar
e sustentar um “grupo-sujeito”, capaz de não se
submeter passivamente nem às determinações
exteriores, nem à sua própria lei interna. Esta
é, parece-nos, a única saída pela esquerda para
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