UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
SAMUEL DOUGLAS FARIAS COSTA
Nos caminhos da cultura e dos dons:
Os Guarani e instituições no norte do Paraná
São Carlos
2016
0
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Nos caminhos da cultura e dos dons:
Os Guarani e instituições no norte do Paraná
Samuel Douglas Farias Costa
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa
de
Pós-Graduação
em
Antropologia Social da Universidade
Federal de São Carlos, sob orientação da
Profa. Dra. Anna Catarina Morawska
Vianna, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.
Banca examinadora:
Profa. Dra. Anna Catarina Morawska Vianna (orientadora – UFSCar)
Prof. Dr. Edmundo Antonio Peggion (UNESP)
Profa. Dra. Valéria Mendonça de Macedo (UNIFESP)
Suplentes:
Profa. Dra. Clarice Cohn (UFSCar)
Prof. Dr. Uirá Felippe Garcia (UNIFESP)
São Carlos
2016
1
Aos meus pais, Janete e Osnei.
2
Agradecimentos
Esta etnografia não teria sido possível sem o apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que possibilitou
dedicação exclusiva à pesquisa (processo nº 2014/13320-6). Também
agradeço ao(à) parecerista designado por esta instituição, cujos comentários e
sugestões em muito contribuíram com o desenvolvimento deste trabalho.
Agradeço imensamente à minha orientadora, Catarina Morawska
Vianna, por ter acreditado nesta pesquisa, estimulado ideias e estado presente
nos momentos de descobertas e conflitos acadêmicos. Catarina é uma
inspiração intelectual e amiga inestimável, agradeço por todo o acolhimento e
apoio ao longo dessa jornada.
Aos professores e demais funcionários do Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos
(PPGAS/UFSCar). Em especial a Clarice Cohn, Marina Cardoso, Luiz Henrique
de Toledo, Igor José de Renó Machado e Felipe Vander Velden, pelos diálogos
dentro e fora de sala de aula.
Aos colegas do PPGAS e amigos que descobri em São Carlos. A
Ariane, Gustavo, Chimba, Zinho, Ion, Gi, Marcio, Rafael, Aysha, Bila, Thaís,
Jacque, Marina e Clarissa, pelas trocas intelectuais, pelo acolhimento e pelos
bons momentos que marcaram a minha chegada e estadia na cidade. Um
agradecimento especial a Josimar e Rainer. Com ambos não apenas dividi
moradia, mas pude dividir momentos de descontração, debates políticos e
acadêmicos e construir uma sincera relação de companheirismo e amizade.
Os
diálogos
no
âmbito
do
Laboratório
de
Experimentações
Etnográficas (Le-e/UFSCar) foram imprescindíveis para os rumos desta
pesquisa. Agradeço a todos os integrantes, em especial a Catarina Morawska
Viana, pelo estímulo à produção de experimentações que não sobrecodifiquem
a realidade, mas que sejam criativas, parciais e jamais definitivas.
Agradeço aos pesquisadores do Laboratório de Pesquisa em
Antropologia
(LAPA)
da
Universidade
Estadual
de
Maringá
(UEM),
3
especialmente a Eliane Sebeika Rapchan, Rose Dalmaso e Fagner Carniel,
com quem pude dividir leituras e debates instigantes paralelos à pesquisa de
campo.
A Clarice Cohn, Edmundo Peggion e Marta Azevedo pelo diálogo em
dois eventos nos quais apresentei trabalhos ligados a esta pesquisa. Aos dois
primeiros, pelas trocas intelectuais no III Seminário de Antropologia da
UFSCar, em 2014. E a última, pelos comentários nas Jornadas de Antropologia
John Monteiro, em 2015. Em ambos os eventos recebi sugestões que foram
valiosas para a escrita desta etnografia. A Amanda Danaga, que leu um dos
primeiros textos que escrevi ao longo do mestrado e que me presenteou com
apontamentos pertinentes.
Agradeço a Valéria Macedo e Edmundo Peggion, por terem participado
do exame de qualificação e da banca de defesa desta dissertação. Ambos
contribuíram de modo singular e valioso para esta pesquisa. Sou imensamente
grato pela oportunidade deste profícuo diálogo.
Aos professores e professoras que tive ao longo do ensino médio e
graduação e que contribuíram com uma profunda transformação em meu modo
de perceber a vida. A Daliana Antônio, que me apresentou ao universo das
ciências sociais, a Marlene Novaes, que despertou meu encanto pela
antropologia, a Valéria Assis, que primeiro me apresentou à etnologia indígena
e aos Guarani, a Simone Dourado da Costa, que me encorajou a pensar no
poder da reflexão antropológica, a Eva Scheliga, que me atentou para uma
leitura refinada dos textos etnográficos, a Fagner Carniel, que sempre me
provocou a desestabilizar os dogmas da academia. A Zuleika Bueno, Antonio
Ozaí da Silva, Fábio Viana Ribeiro, Marivânia Araujo, Carla Almeida e Walter
Praxedes, por terem me afetado de diferentes maneiras.
Agradeço a Associação Indigenista – ASSINDI – Maringá, pela
oportunidade de desenvolver parte da pesquisa em suas mediações e em
eventos organizados e/ou promovidos pela instituição. Um agradecimento
especial a Darcy Souza e Driéli Vieira. Esta última me abriu portas para muitos
dos caminhos que foram percorridos ao longo desta pesquisa. Agradeço
também a Isabel Rodrigues, professora e historiadora na UEM que se pôs
sempre aberta ao diálogo a respeito da presença indígena na universidade.
4
Sou incomensuravelmente grato a todos os meus interlocutores em
Maringá e na Terra Indígena (TI) Pinhalzinho. Devo um agradecimento especial
aos Guarani universitários na UEM e/ou residentes na ASSINDI, em Maringá.
Foi com eles que meu trabalho de campo deu os primeiros passos. Agradeço
pela receptividade, confiança, ensinamentos e bons momentos que passamos
juntos ao longo de 2015 e início de 2016. Destaco a importância do diálogo
com Adriane, Clemilsom, David, Edinaldo, Eli Eder, Géssica, Josielly, Ronaldo
e Welison para o desenvolvimento desta pesquisa. Um agradecimento especial
também aos Guarani da Terra Indígena Pinhalzinho, em Tomazina, que me
receberam e gentilmente colaboraram com este trabalho. As conversas e
experiências com Sr. Sebastião, D. Maria, Sr. José, D. Denise, Sr. Sérgio, D.
Vicentina, D. Cleusa, Reginaldo, Tanaka, Jeffeerson, Silvana, Andréia, Laíres,
Izane, Suzana, Adriano, Marcinho, Nego, Dê e muitos outros, me afetaram e
me transformaram para a vida.
A todos meus amigos e amigas de longa data e aos que conheci
durante a realização desta pesquisa. A Leila e Jhonny, que me providenciaram
o equipamento fotográfico e são amigos sempre presentes e solidários. A
Stéfany, Rafa, Edu, Gabe e Alisson, que leram partes desta dissertação com
carinho e atenção, e me presentearam com belas sugestões, críticas e
comentários. A Jé, Aline Portílio, Nilza, Delmo, Aleh, Ed, Bi, Malu, Renatta,
Mario, Jade, Kél, Ray, Carol, Pam, Deili, Aline Hora, Fer, Jaque, Aline Sabino,
Carlos, Ceh, Yoh, Léo, Deborah, Camila e Camilinha, que, fisicamente perto ou
longe, são companheiros afetuosos e queridos. Sou grato por termos nos
encontrado e nos escolhido para andarmos juntos nesta caminhada que é a
vida. A vocês meus amigos, amigas e colegas, muito obrigado por fazerem
desta caminhada uma experiência mais suave e prazerosa.
Ao Sandro, que conheci durante esta pesquisa e que acompanhou de
perto o último ano dessa experiência acadêmica. Com afeto e compreensão,
ouviu minhas indagações, foi meu interlocutor constante, me acolheu e
acalentou nos momentos de angústia, e comemorou quando eu comemorava.
Agradeço pelo amor, confiança, carinho e companheirismo. Ao seu lado, a vida
é muito mais bonita.
5
Aos parentes das famílias Farias e Costa, que me mostraram que
família pode ser amizade e união. Um agradecimento especial as minhas avós
Joana e Wilma, e a minha bisavó Laurinda (in memoriam), mulheres guerreiras,
fortes e sábias, que me afetaram com saberes importantes que não estão nas
páginas dos livros.
A minha irmã e meu irmão, Samille e Gabriel. A primeira, pelo amor
incondicional,
mesmo
quando
discordamos
nos
apoiamos
e
somos
companheiros. Ao segundo, por ser a pessoa mais bela e sensível que já
conheci neste mundo. Para além de irmãos, Sami e Gabica são grandes
amigos que eu amo muito.
Um agradecimento mais que especial a minha mãe e meu pai, Janete e
Osnei, que apoiam minhas escolhas e desde que vim ao mundo me estimulam
a amar, respeitar, estudar e caminhar em busca de minhas realizações
profissionais e pessoais. Sem o estímulo e suporte afetivo de vocês, estes
caminhos não teriam sido trilhados da maneira como foram. Sem conhecer o
universo da antropologia, vocês foram os primeiros a despertar em mim a
sensibilidade que considero fundamental ao fazer de um antropólogo. A vocês,
que tanto amo, meu sincero e profundo obrigado!
6
Resumo
Terra Indígena (TI) Pinhalzinho, em Tomazina, e cidade de Maringá. Dois
locais no norte do Paraná separados por aproximadamente 250 km e
conectados por um complexo relacional que envolve os Guarani e algumas
instituições, entre elas a Associação Indigenista – ASSINDI – Maringá e a
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Na aldeia, os Guarani praticam a
reza, desenvolvem lideranças, caçam, pescam, produzem artesanato, entre
outras ações que se relacionam aos enunciados de cultura e a vivência dos
dons. Cultura e dons emergem também em Maringá, cidade que não comporta
aldeias indígenas, mas que é espaço da mobilidade e presença de pessoas
Guarani. Dois são os pontos de referência para pensar a presença indígena no
município: a ASSINDI e a UEM. Em Pinhalzinho, por sua vez, também existem
instituições, como a escola indígena e o posto de saúde, além de uma
diversidade de projetos. Esta etnografia buscou acompanhar os caminhos da
enunciada cultura e dos dons nesse complexo relacional entre a aldeia e
cidade e pensar em que medida as perspectivas guarani contrastam ou se
compõem com as perspectivas institucionais. Para isso, foi realizado um
experimento etnográfico que, privilegiando as perspectivas dos Guarani,
organiza descritivamente este compósito de relações a partir de quatro pontos
de referências que articulam cultura, dons, vida na aldeia, vida na cidade e
relações com instituições.
Palavras- chave: Guarani, instituições, indígenas na cidade, etnografia
7
Abstract
Indigenous Land Pinhalzinho, in Tomazina, and the city of Maringá. Two places
in north of Paraná separated by about 250 km and connected by a relational
complex that involves Guarani people and some institutions, including the
Associação Indigenista – ASSINDI – Maringá and the Universidade Estadual de
Maringá (UEM). In the village, the Guarani practice praying, develop leaders,
hunting, fishing, produce crafts, among other actions related to the enunciations
of culture and the experience of the gifts. Culture and gifts emerge also in
Maringá, a city that does not contain indigenous villages, but still a space for
mobility and presence of Guarani people. Two are the reference points to think
the indigenous presence in the city: the ASSINDI and UEM. In Pinhalzinho, in
turn, there are also institutions such as the indigenous school and the health
center, as well as a diversity of projects. This ethnography sought to follow the
paths of the enunciated culture and the gifts in this relational complex between
the village and the town and think the extent to which the Guarani’s
perspectives contrast or make up with institutional perspectives. For this, it was
conducted an ethnographic experiment that, giving priority for the Guarani’s
perspectives, descriptively organizes this composite of relations from four points
of references that articulate culture, gifts, life in the village, life in the city and
relationships with institutions.
Keywords: Guarani, institutions, indigenous in the city, ethnography
8
Nota ao leitor
Aparecem em itálico as expressões operacionalizadas pelos meus
interlocutores, sejam elas em língua portuguesa ou guarani, com exceção de
etnônimos, autodenominações, nomes de pessoas e aldeias.
Categorias a serem relativizadas, termos atribuídos a outros autores,
citações bibliográficas ou enunciados dos meus interlocutores (orais ou
escritos) aparecem entre aspas duplas no corpo do texto.
Citações bibliográficas ou de meus interlocutores maiores que quatro
linhas aparecem com recuo em um novo parágrafo.
Categorias mobilizadas pelos interlocutores de outras pesquisas,
presentes em outros trabalhos, aparecem em itálico e entre aspas duplas.
A tradução das palavras em guarani e as opções de grafia seguem as
recomendações dos meus interlocutores de pesquisa que defendem as
especificidades de uma língua guarani nhandewa.
As palavras em guarani são seguidas por uma tradução aproximada
entre parênteses.
Fica excluído do vocabulário guarani nhandewa as letras C, F, L, Q, V
e Z, e o único acento utilizado é o ~ (til), que possui o efeito de nasalar a
palavra por inteiro.
Para garantir o anonimato dos meus interlocutores frente a um público
mais amplo, mobilizo nomes fictícios, salvo no caso de pessoas jurídicas e
quando é necessário conferir créditos de autoria.
9
Lista de Figuras
Figura 1. Momento da reza na oy gwatsu ........................................................ 41
Figura 2. Localização das principais divindades guarani nos cosmos celestes 49
Figura 3. Espaço interno da oy gwatsu ............................................................ 50
Figura 4. Espaço próximo à casa do cacique. .................................................. 58
Figura 5. Incursão de pesca em Pinhalzinho.................................................... 61
Figura 6. Rede suspensa deixada por algum Guarani caçador........................ 62
Figura 7. Crianças retirando penas de galinhas ............................................... 63
Figura 8. Preparação da fibra da bananeira para a produção de artesanato ... 69
Figura 9. Rodovia BR-376 e entrada da ASSINDI............................................ 88
Figura 10. Entrada da ASSINDI ....................................................................... 89
Figura 11. Reza realizada na ASSINDI ............................................................ 93
Figura 12. Extração de wyra pire na ASSINDI ................................................. 96
Figura 13. Casas e Centro Social Infantil Indígena na ASSINDI ...................... 97
Figura 14. Filtro dos sonhos confeccionado por um Guarani em Maringá ..... 100
Figura 15. Peças de artesanato à venda em evento em Maringá .................. 127
Figura 16. Atividade em oficina de bioescultura em Maringá ......................... 131
Figura 17. Membros da ASSINDI, da UEM e família Guarani em Maringá .... 133
Figura 18. Cartaz da ASSINDI em evento em Maringá .................................. 135
Figura 19. Apresentação de dança dos Guarani e Kaingang em Maringá. .... 137
Figura 20. Espaço externo do Museu Kre Porã na ASSINDI ......................... 139
Figura 21. Espaço interno do Museu Kre Porã............................................... 140
Figura 22. Homem guarani sentado com a filha na entrada da ASSINDI ...... 144
Figura 23. Estrada que leva até a cidade mais próxima de Pinhalzinho ........ 167
Figura 24. Cartaz do XV Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná ............ 169
Figura 25. Marco de resistência em Pinhalzinho ............................................ 178
Figura 26. Crianças guarani em atividade escolar ......................................... 189
Figura 27. Crianças guarani em atividade escolar ......................................... 190
Figura 28. Cartazes na casa do cacique de Pinhalzinho ................................ 191
Figura 29. Atividade do grupo de canto de dança Kuringwe Mbaraete .......... 196
Figura 30. Mulher Guarani em projeto da ONU .............................................. 203
10
Lista de abreviaturas e siglas
AIS – Agente Indígena de Saúde
Arpin Sul – Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul
ASSINDI – Associação Indigenista/Maringá
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEC – Centro de Excelência em Atendimento à Comunidade
CEP – Conselho de Ensino e Pesquisa
CNEEI – Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena
CNUDS – Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável
CPF – Cadastro de Pessoas Físicas
CUIA – Comissão Universidade para Índios
DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos
EMATER – Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural
ENCONTTRA – Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
GPS – Sistema de Posicionamento Global
GRE – Gabinete da Reitoria
GT – Grupo de Trabalho
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFPR – Instituto Federal do Paraná
ISA – Instituto Socioambiental
ITCG – Instituto de Terras, Cartografia e Geociências
LAEE – Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história
LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros
NHII – Núcleo de História Indígena e do Indigenismo
ONG – Organização Não Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
PBA – Projeto Básico Ambiental
PIAEI – Plano Individual de Acompanhamento do Estudante Indígena
PIBID – Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
SAF – Sistema Agroflorestal
SASC – Secretaria de Assistência Social e Cidadania
11
SEAE – Secretaria Especial para Assuntos Estratégicos do Paraná
SEED – Secretaria de Estado da Educação
SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena
SETI – Secretaria de Estudo Ciência Tecnologia e Ensino Superior
SFA – Seção de Fomento Agrícola
SMDH – Secretaria Municipal de Direitos Humanos
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
SUS – Sistema Único de Saúde
TCC – Trabalho de Conclusão de Curso
TI – Terra Indígena
TIP – Terra Indígena Pinhalzinho
UEL – Universidade Estadual de Londrina
UEM – Universidade Estadual de Maringá
UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná
UFPR – Universidade Federal do Paraná
UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
UHE – Usina Hidrelétrica
UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná
USP – Universidade de São Paulo
12
Sumário
Trilhando caminhos ....................................................................................... 15
A cidade de Maringá e a TI Pinhalzinho........................................................ 17
A artesania etnográfica ................................................................................. 21
Organização do texto .................................................................................... 24
1. Capítulo I – Cultura e dom guarani: reflexões a partir da aldeia
Pinhalzinho ..................................................................................................... 27
1.1. A cultura dos antigos, os mais velhos e a revitalização: breves
apontamentos sobre história e a mobilização de um etnônimo .................... 30
1.2.
Cultura e espiritualidade guarani ......................................................... 35
1.2.1.
Mborai e porai: a reza e o canto guarani ...................................... 37
1.2.2.
Nimungarai: a crisma/batismo e o nome guarani.......................... 42
1.2.3.
Os seres celestes, espíritos e outras entidades ........................... 48
1.3.
Lideranças em Pinhalzinho ou aulas de como ser um líder ................ 52
1.4.
Animais comestíveis: relações que produzem outras relações ........... 60
1.5.
Artesanato: o experimentalismo guarani ............................................. 65
1.6.
Considerações parciais I ..................................................................... 69
2. Capítulo II – Mobilidade e extensões da cultura: os Guarani na cidade
de Maringá ...................................................................................................... 71
2.1.
Mobilidade guarani: caminhos da aldeia para a cidade....................... 75
2.1.1. Eu não me considero fixo apenas de uma aldeia: caminhos
anteriores a Maringá .................................................................................. 77
2.1.2.
2.2.
Uma ideia que vai amadurecendo: sobre ir para a cidade............ 84
Aldeinha: uma ONG indigenista como espaço para a cultura ............. 88
2.2.1.
Espiritualidade guarani na cidade de Maringá .............................. 90
2.2.2. Parentes, produção de artesanato e outras extensões da
cultura...... .................................................................................................. 97
2.3.
Considerações parciais II .................................................................. 101
3. Capítulo III – Estudantes indígenas, a ASSINDI e a UEM: perspectivas
guarani e institucionais em Maringá .......................................................... 103
3.1.
A ASSINDI e a UEM: adentrando os aparatos institucionais ............ 106
3.1.1.
Sobre a mobilização de etnônimos e autodenominações........... 110
13
3.1.2.
A vida universitária ..................................................................... 117
3.1.3.
Eventos institucionais ................................................................. 125
3.2. A minha vida ficou lá quando eu vim pra cá: contrastes entre a vida nas
aldeias e na cidade e as expectativas de retorno para as comunidades .... 143
3.3.
Considerações parciais III ................................................................. 151
4. Capítulo VI – Cidades, instituições e a vida na aldeia: relações guarani
e institucionais em Pinhalzinho .................................................................. 152
4.1. A vida na aldeia e fora dela: andanças, cidades e indígenas
universitários ............................................................................................... 153
4.2.
A comunidade e as instituições ......................................................... 167
4.2.1. Algumas extensões das Instituições de Ensino Superior em
Pinhalzinho .............................................................................................. 169
4.2.2. Instituições dentro da aldeia, projetos e práticas de objetificação
guarani.. ................................................................................................... 178
4.2.3. Posições e compromissos: relações comunitárias e
extracomunitárias .................................................................................... 198
4.3.
Considerações parciais IV ................................................................. 203
Considerações e reflexões finais ................................................................ 205
Referências bibliográficas ........................................................................... 209
14
Trilhando caminhos
Foi no ano de 2010 que estive em uma aldeia guarani pela primeira
vez. Estava no segundo ano de graduação em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM) e participava de um projeto1 de
extensão que propunha a produção de um livro, um CD e um DVD, com
registros de algumas práticas de canto e dança dos moradores da aldeia Tekoa
Porã em Guaíra, no oeste do Paraná. Ainda muito inexperiente com o ambiente
acadêmico, não tinha muita perceptividade dos agentes que estavam
envolvidos na produção daquele projeto. Ao longo do seu desenvolvimento,
questões foram surgindo e me acompanharam durante da graduação.
O projeto em questão havia surgido a partir de uma demanda dos
Guarani para comporem um grupo de canto e de dança e registrarem algumas
dessas práticas. O contato com a universidade se deu por meio de um
estudante guarani que morava em Tekoa Porã e cursava Medicina na UEM
naquela época. A aldeia não era demarcada e ficava localizada à beira de uma
fazenda, uma estrada e um bairro residencial. Tekoa Porã era o que hoje é
comumente chamado de “aldeia urbana”. Uma das justificativas dos Guarani
para o empreendimento do projeto era que a produção de bens objetificados da
cultura poderia ajudar na transmissão de saberes para às crianças, que viviam
em constante contato com a cidade. Saberes guarani concorriam com saberes
dos não indígenas, segundo o cacique da aldeia.
A participação neste projeto me estimulou uma série de questões
relacionadas às conexões entre indígenas e cidades, indígenas e organizações
– como as universidades –, indígenas e o ensino superior, entre outras que não
pude
trabalhar naquele momento.
No decorrer da
graduação
tomei
conhecimento do processo específico de ingresso de indígenas nas
universidades públicas do Paraná, o Vestibular dos Povos Indígenas do
Paraná, instituído pela Lei Estadual nº 13.134/2001. Também descobri que em
Maringá havia uma organização não governamental (ONG) que desenvolvia
1
Uso o termo projeto em itálico ao longo deste trabalho por ser mobilizado por diferentes
interlocutores – guarani e instituições – em diferentes situações. Assim, o tomo como uma categoria
que emerge em campo e que deve ser entendida em seu contexto de enunciação.
15
um projeto voltado aos estudantes indígenas universitários. Refiro-me à
Associação Indigenista – ASSINDI – Maringá2, que foi fundada em 2000 e
desde 2003 oferece moradia para estudantes indígenas – a depender da
disponibilidade de vagas – enquanto fazem seu curso de graduação. Percebi
que mesmo não havendo Terras Indígenas (TIs) em Maringá, havia um circuito
de relações entre indígenas, a ASSINDI e a UEM. Assim, novos caminhos se
abriram para a reflexão acerca das questões que começaram a ser suscitadas
pelo projeto em Guaíra. Foi assim que, dando continuidade a leituras que eu já
tinha acerca da etnologia Guarani, propus uma pesquisa sobre a relação entre
os Guarani, a cidade de Maringá e organizações permeadas por saberes
técnico-burocráticos – especificamente a ASSINDI e a UEM. Qual as
percepções dos Guarani acerca da cidade? Como ocorre o encontro entre
saberes guarani e institucionais? Quais os efeitos criativos destes encontros?
Eram algumas de minhas questões.
Iniciado o primeiro contato com os Guarani em campo em 2014, e com
período mais prolongado e contínuo em Maringá em 2015 – de fevereiro a julho
–, acompanhei meus interlocutores pela ASSINDI, UEM e outros espaços da
cidade. Em nossas conversas, muito do que eles falavam se referia à vida nas
aldeias. Eu tinha muitas informações sobre as comunidades3, mas nunca tinha
pisado em nenhuma das aldeias às quais eles se referiam4. Foi assim que o
campo me levou para a TI Pinhalzinho, a aproximadamente 250 km de
Maringá. Aproveitei que meus interlocutores entraram de férias e acompanhei o
movimento daqueles que foram para Pinhalzinho. Fiquei por volta três semanas
contínuas na aldeia no final de 2015 e início de 2016. Quando os Guarani que
moravam em Maringá voltaram para a cidade, eu voltei também, e percebi
como a minha pesquisa havia se transformado. Questões antigas se
complexificaram e novas questões surgiram. Semelhanças e discrepâncias
entre a vida na aldeia e na cidade me estimularam a pensar esse complexo
2
Essa maneira de apresentação escrita do nome da instituição, com a sigla entre traços seguida do
nome da cidade, corresponde à forma utilizada pela própria organização. Daqui pra frente utilizarei
apenas a sigla ASSINDI.
3
Este é o modo que meus interlocutores se referem ao conjunto de pessoas que vivem em uma mesma
aldeia.
4
Os Guarani em Maringá vêm de várias aldeias do estado do Paraná e, geralmente, já viveram em
diversas aldeias e cidades, inclusive de outros estados, como apresento ao longo da dissertação,
principalmente no Capítulo II.
16
relacional que conecta os Guarani, a cidade de Maringá, a aldeia de
Pinhalzinho e uma série de instituições que, assim como as relações Guarani,
se estendem na cidade, na aldeia e além.
Desse modo, esta dissertação trata do devir Guarani nesse complexo
relacional específico entre Guarani e instituições no norte do Paraná –
particularmente em Pinhalzinho e Maringá.
Como os Guarani mobilizam a
categoria cultura? Qual a relação entre dons e a construção da pessoa
Guarani? Quais os contrastes e associações entre a vida nas aldeias e nas
cidades? E entre as perspectivas guarani e institucionais? Como os Guarani
empreendem práticas de registros? Qual a diferença entre cultura e
nhandereko (nosso jeito de ser)? Estas são algumas questões que surgiram
em campo e no momento de organização do texto. O que eu fiz foi devolvê-las
em direção ao meu material de modo que orientassem minhas reflexões ao
longo da escrita desta etnografia.
A cidade de Maringá e a TI Pinhalzinho
Atualmente o Paraná conta com 26 TIs demarcadas ou em processo
de demarcação, das quais 15 são habitadas por povos Guarani ou coabitadas
com outros povos – especificamente os Kaingang e Xetá (FUNAI)5. Há também
algumas aldeias que ainda não são reconhecidas como TIs e não se
encontram nessa contagem oficial. Em Maringá, que fica localizada no norte
central no estado, não há aldeias ou TIs, porém, segundo informações da
Assessoria para Assuntos Indígenas da Secretaria Especial para Assuntos
Estratégicos do Paraná (SEAE, 2008), foram identificadas no município o que
classificaram como “famílias [indígenas] dispersas ou agrupadas”6. Ainda, de
acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2010, 391 pessoas dos 357.077
habitantes do município se autoidentificam como indígenas.
Porém, é preciso considerar que os meus interlocutores Guarani em
Maringá, em sua grande maioria, são estudantes universitários vinculados à
5
Informações disponíveis na página online da FUNAI: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-nobrasil/terras-indigenas. Acesso em 19 de setembro de 2016.
6
Estas informações estão no mapa elaborado pelo Instituto de Terras, Cartografia e Geociências (ITCG),
disponível
em:
http://www.uel.br/prograd/divisao-politicasgraduacao/cuia/documentos/presenca_indigena_parana.pdf. Acesso em 19 de setembro de 2016.
17
UEM, vêm de diferentes aldeias do Paraná e estão temporariamente na cidade
por conta do curso de graduação. Isto implica que há muitos outros indígenas
que vivem ou estão de passagem em Maringá e que se encontram em diversas
outras situações específicas que este trabalho não propõe abordar. A proposta
aqui é pensar especificamente as percepções guarani acerca da cidade de
Maringá e suas relações com instituições permeadas por lógicas técnicoburocráticas – como a ASSINDI e a UEM. Ao percorrer os caminhos guarani
até a TI Pinhalzinho, propõe-se também pensar as continuidades e rupturas
entre a vida na aldeia e a vida na cidade, os contrastes percebidos entre
ambas e as relações dos Guarani com instituições na aldeia.
A TI Pinhalzinho, demarcada em 1985, fica localizada no município de
Tomazina, no chamado norte pioneiro do Paraná. Conta com aproximadamente
593 ha, 34 famílias e 116 moradores, de acordo com um relatório antropológico
de 20107. Atualmente, segundo uma liderança de Pinhalzinho, este número de
moradores pode ser maior, devido à constante mobilidade de pessoas entre
aldeias e cidades. Também há em Pinhalzinho uma presença notável de
Guarani graduados ou que estão se formando em algum curso de nível
superior, além de uma série de outras relações com instituições que tornaram a
reflexão acerca das conexões entre cidade e aldeia pertinentes.
Existem
poucos
trabalhos
acadêmicos,
sobretudo
etnográficos,
desenvolvidos com os Guarani em Pinhalzinho e/ou com indígenas em
Maringá, mas alguns trabalhos podem ser pontuados. Acerca dos Guarani em
Pinhalzinho, um trabalho que merece destaque é de Dominguês (2010), que é
Guarani morador de Pinhalzinho e realizou uma análise histórica pautada tanto
em textos acadêmicos quanto em narrativas guarani. Seu trabalho é muito
interessante por empreender ao mesmo tempo uma perspectiva acadêmica a
uma perspectiva guarani acerca da história da comunidade. Assim, seu
7
Este relatório é de responsabilidade técnica de Paulo Roberto Homem de Góes, e foi desenvolvido em
atendimento a uma recomendação do Ministério Público para investigar os possíveis impactos da
construção da Usina Hidrelétrica (UHE) Mauá, no Rio Tibagi, inaugurada em 2012, e a necessidade de
ações compensatórias com relação às TIs Pinhalzinho, Laranjinha e Ywy Porã (comumente chamada de
Posto Velho). Atualmente, após os estudos empreendidos pelo Consórcio Energético Cruzeiro do Sul –
responsável pelo empreendimento –, oito comunidades indígenas no Paraná são alvo de ações
compensatória pela construção da UHE, inclusive Pinhalzinho. Para mais informações sobre a usina e o
consórcio,
como
meus
interlocutores
comumente
o
mencionam,
cf.
http://www.consorciocruzeirodosul.com.br/comunidades-indigenas. Acesso em 09 de setembro de
2016.
18
trabalho será enfatizado no Capítulo I, quando são introduzidas as relações
guarani em Pinhalzinho.
Dentre outras pesquisas que discorrem sobre Pinhalzinho, encontra-se
a etnografia de Valéria Barros (2011), que aborda história, cosmologia,
mitologia, parentesco e política entre comunidades Guarani que vivem na bacia
do Rio Paranapanema. A autora privilegia uma perspectiva de escala regional
em detrimento das especificidades de uma comunidade, o que difere do
trabalho aqui empreendido. Também destaca-se a pesquisa da antropóloga
Gláucia B. de Melo (2015), que resultou em um livro sobre oito comunidades
indígenas no Paraná. A autora apresenta registros de aspectos gerais de cada
uma dessas aldeias que foram realizados para o Programa de Educação
Patrimonial da UHE Mauá. Assim, como parte das ações compensatórias
empreendidas pelo consórcio, a pesquisa de Melo não é direcionada
especificamente para um público acadêmico, mas segundo um técnico do
consórcio: “[...] serve não apenas para a revitalização e preservação da cultura
indígena, mas também para que os não índios entendam melhor as tradições
indígenas e as respeitem”8. Mais do que uma referência bibliográfica, tal
trabalho aponta para uma conexão entre Guarani e instituições, que é assunto
nesta pesquisa.
Há também alguns trabalhos em Pinhalzinho em outras áreas de
conhecimento, como agroecologia (Almeida, 2012), educação (Faustino, 2012)
e linguística (Kondo, 2013). Todos relacionados a assuntos que os Guarani
consideram importantes, como as práticas agrícolas, no caso do primeiro, e a
escola e língua guarani, do segundo e terceiro. Assuntos relacionados a estas
questões, como o desejo dos Guarani de fortalecer a escola, a língua guarani e
de resgatar e desenvolver técnicas de plantio, aparecem principalmente no
Capítulo IV.
Já com relação à pesquisa com indígenas em Maringá, são raras as
publicações. Uma delas é da antropóloga Driéli Vieira (2012), apresentada em
um seminário de Ciências Sociais. Seu texto trata da presença de crianças
8
Confira no site do Consórcio Energético Cruzeiro do Sul uma matéria que divulga o trabalho da
antropóloga
e
que
contém
a
fala
do
técnico
citado:
http://www.consorciocruzeirodosul.com.br/noticia/81/usina-maua-lanca-material-didatico-paracomunidades-indigenas-do-pr. Acesso em 19 de setembro de 2016.
19
indígenas em cidades e especificamente das crianças em Maringá que são
atendidas pela ASSINDI. Outro trabalho, especificamente acerca dos
estudantes universitários, é o artigo da antropóloga Valéria Assis (2006a), que
faz uma avaliação da educação diferenciada para os estudantes indígenas da
UEM.
Encontra-se uma maior quantidade de pesquisas sobre as políticas de
ingresso de indígenas no ensino superior no Paraná que, em alguns
momentos, mencionam algumas especificidades de Maringá, como os
trabalhos de Rodrigues e Wawzyniak (2006), Novak (2007), Paulino (2008) e
Amaral (2010) – o primeiro de uma historiadora e um antropólogo e os outros
de especialistas da educação. Há de se destacar também a etnografia de Ana
C. Goulart (2014), que trata das políticas de ingresso dos indígenas nas
universidades públicas paranaenses e especificamente dos estudantes da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Apesar de sua pesquisa ser focada
em Londrina, suas reflexões trazem questões interessantes para o trabalho
aqui empreendido que serão apontadas ao longo do texto.
Essa bibliografia citada é conectada com o texto em circunstâncias
pontuais, dependendo das pertinências reflexivas e dos efeitos que possam ser
criados pelos caminhos desta etnografia. Com relação a temas com maior
produção bibliográfica, como a etnologia entre povos Guarani e pesquisas
acerca das relações entre indígenas e cidades, entre outras, as bibliografias
são acionadas ao longo do texto dependendo também da pertinência
etnográfica. A mobilidade Guarani e as relações entre indígenas e cidades, por
exemplo, são dois destes campos bibliográficos e que são tratados no Capítulo
II.
Sobre essa relação entre bibliografia e a pesquisa de campo, destaco
que este trabalho, como qualquer outro, seguiu por certos caminhos em
detrimento de muitos outros. O que encontrei nestes caminhos foi uma
complexa composição de relações guarani que se estendem em diversas
direções, envolvendo parentes, brancos9, outros indígenas (principalmente os
9
O termo brancos é comumente usado pelos meus interlocutores guarani para se referir aos não
indígenas. Com este mesmo sentido, também ouvi expressões em Pinhalzinho como djurua, que eles
traduzem como o aàg a de ,àywypory,à ueàse iaà i hoàdaàte a , e karai. Este último termo também
20
Kaingang), organizações, entidades espirituais, bichos, plantas, objetos,
pesquisador e outros diversos agentes que, quando se encontram, estimulam
efeitos complexos. Em consonância com esta complexidade, a proposta
metodológica neste trabalho não busca apresentar uma simplificação
explicativa das relações aqui descritas, mas sim um exercício etnográfico que
cria uma composição relacional objetivada10 por meio do texto. Esclareço a
abordagem com algumas considerações metodológicas.
A artesania etnográfica
Ao chegar em campo e buscar se conectar no emaranhado de
relações guarani com organizações na cidade e na aldeia, não é difícil que o
pesquisador se encontre, como diz Roy Wagner ([1975] 2012), “desorientado e
aturdido” (p. 44). O etnógrafo é mais um agente nessas relações. Não é difícil
também de se identificar com metáforas como a de Bruno Latour ([2005] 2012),
segundo o qual o pesquisador, ligado a certa sociologia11, se arrasta como uma
formiga carregando seu pesado equipamento para gerar até os menores
vínculos e conexões.
Após o campo, pode-se dizer que essa sensação não é superada, no
momento da escrita. Colocações como a de Gregory Bateson ([1936] 2008),
sobre sua pesquisa entre os Iatmul, soam muito honestas e relevantes para
pensar o trabalho do antropólogo. O autor enfatiza que em seu trabalho de
campo não buscou o material que fosse se enquadrar em suas teorias. A
é utilizado para se referir a uma entidade celeste responsável pela saúde dos seres. Um interlocutor me
apresentou uma hipótese, formulada por ele próprio, para esse duplo sentido da palavra karai. Ele
pensa que na época em que os Guarani tiveram os primeiros contatos com os jesuítas e outros brancos,
que diziam ou aparentavam querer uida dos indígenas, eles podem ter feito uma analogia entre as
responsabilidades da entidade Karai com o ato de cuidar vindo de não indígenas. Emprego o termo
brancos ao longo da dissertação devido ao seu uso recorrente entre os Guarani tanto em Pinhalzinho
quanto em Maringá.
10
E à di logoà o à ‘o à Wag e à
,à eà efi oà aà u aà o jetividadeà elativa .à Pa aà esteà auto ,à Oà
estudo da cultura é cultura, e uma antropologia que almeje ser consciente e desenvolver seu senso de
objetividade relativa precisa se avir com esse fato. O estudo da cultura é na verdade nossa cultura:
opera por meio das nossas formas, cria em nossos termos, toma emprestados nossas palavras e
o eitosàpa aàela o a àsig ifi adosàeà osà e iaà edia teà ossosàesfo ços à p.à .à
11
Aqui, Latour ([2005] 2012) se refere à teoria ator-rede (ANT – actor network theory) em oposição ao
que chama de sociologia do social e sociologia crítica. Esta pesquisa, apesar de se conectar com a
abordagem de Latour, não pretende se adequar à teoria ator-rede. Aqui, não há pretensões de
eag ega àu àso ial,àdes o i àouà o st ui àu aà ede .àP ete de-se sim seguir as linhas, os rastros,
conexões parciais-criativas dos meus interlocutores e criar conexões parciais-criativas-etnográficas.
21
escolha do que iria compor sua etnografia só se daria depois, quando já de
volta à Inglaterra. O material não era linear, mas sim “uma massa de material
extremamente diverso e desconexo” (p.293). Assim, ele aponta que a
organização de sua escrita se dava mais pelo pensamento Iatmul do que pelo
pensamento “científico”. Tais considerações são relevantes para pensar que
nossas orientações, conhecimentos prévios e bagagens teóricas não são (e
não devem ser) automaticamente aplicáveis ao campo. A organização de uma
linha de raciocínio etnográfica não está pré-pronta nem em nossas teorias e
nem entre nossos interlocutores, mas sim no encontro entre ambos que é
possibilitado pelo exercício etnográfico. Como apontado por Strathern ([1999]
2014), o processo de escrita pode ser pensado como um segundo trabalho de
campo, no qual esse encontro é realizado.
Nesse sentido, a produção escrita, a “invenção” do antropólogo, para
usar um termo de Wagner ([1975] 2012), não é uma irrealidade ou algo falso,
mas sim o que Strathern ([1988] 2006) chama de “ficção controlada”. Esta ideia
de “controle” é inspirada na noção de “cultura” de Wagner, segundo a qual
produzimos significados a partir de uma dialética sem síntese entre
convenção/controle e invenção. Nessa perspectiva, as criações das pessoas
no mundo são “extensões criativas” ligadas a certas convenções. Assim,
nossas etnografias, que também são criações de pessoas no mundo, não
estão fora dessa lógica de produção de significados. A criação deste texto,
portanto, baseia-se em convenções éticas e no compromisso com meus
interlocutores Guarani, na vivência que tive com eles na aldeia Pinhalzinho e
em vários espaços da cidade de Maringá, sobretudo na ASSINDI e na UEM,
assim como em certas reflexões antropológicas teórico-metodológicas.
Aliado a Strathern (1991) e Latour ([2005] 2012), considera-se aqui a
produção do texto como um trabalho de criação de “conexões”. Este último
autor, de acordo com seu projeto de uma sociologia das associações
(associologia), recomenda ao pesquisador que siga os atores e rastreie as
“conexões sociais”. Estas “não significa ‘conexões feitas de social’, mas novas
associações entre elementos não sociais” (p. 341), ou seja, o social não é
entendido como uma substância, mas como a própria relação. Esta abordagem
de Latour estimula a pensar as conexões entre atores no mundo, porém, é
22
Strathern (1991) quem estimula a reflexão sobre as conexões que nós
etnógrafos criamos textualmente na construção de etnografias. Nessa
abordagem, “conexões parciais”, como anuncia o título de um dos livros da
autora, são criadas pelos antropólogos no momento de organização do material
etnográfico. A escrita aparece aqui como um processo criativo e de múltiplas
possibilidades. Não há presunção de falar sobre um “todo”, mas de criar
caminhos textuais que conectem elementos eleitos do material obtido em
campo, bibliografias e outros possíveis materiais, que formam uma composição
parcial e criativa, uma “ficção controlada”.
Esta linguagem pautada em “conexões”, “ficções controladas” e
“extensões criativas”, aparecem aqui como alianças metodológicas, e não
como categorias explicativas para qualquer evento do mundo que seja. O
esforço aqui empreendido é de evitar qualquer abordagem “sobrecodificadora”,
ancorada em um “decalque”, um modelo reprodutível e explicativo (Deleuze e
Guattari, [1980] 1995). Se a conexão com os materiais de campo são parciais,
com os autores, seus conceitos e teorias também o são. Isso não implica em
uma leitura rasa dos mesmos, mas sim em um comprometimento com as
especificidades, diferenciações e criação, que não devem ser suprimidas por
categorias genéricas e abrangentes.
No esforço de um exercício experimental, proponho nesta etnografia
uma escrita que engendre quatro perspectivas etnográficas a respeito das
relações guarani que se estendem neste complexo por mim acompanhado
entre Maringá e a aldeia de Pinhalzinho12. Se o interesse central é o devir
Guarani nesse complexo que se estende entre a aldeia e a cidade (e suas
instituições), a divisão do material e do texto mostram pontos de vistas que
descrevem este devir a partir de posições diferentes. Este jogo textual inspirase na ideia de Strathern (1991) de que “o efeito relativizante de múltiplas
perspectivas fará tudo parecer parcial; a recorrência de proposições similares e
pedaços de informações fará tudo parecer conectado” (p. xx, minha tradução).
Destaco que nas perspectivas guarani, os conteúdos dos quatro capítulos
aparecem de maneira entrelaçada e que aqui faço artificialmente um esforço de
12
Como indica Deleuze e Guattari ([1980] 1995), as linhas relacionais vazam, e na medida em que essas
fugas forem pertinentes para o argumento aqui empreendido, elementos além dos limites
arbitrariamente enunciados hão de aparecer no texto.
23
separação para que reflexões sejam produzidas a partir de contrastes,
extensões, analogias e afins.
Organização do texto
Como foi apresentado, o meu movimento em campo se iniciou em
Maringá e depois partiu em direção para a aldeia, para depois voltar a Maringá
novamente. No entanto, aqui faço uma organização descritiva no movimento
contrário. Como parte de uma proposta de experimento etnográfico, procuro
organizar o texto seguindo o movimento que os meus interlocutores Guarani de
Maringá me apresentaram, ou seja, da aldeia para a cidade e da cidade para a
aldeia. O efeito esperado é que as conexões etnográficas apareçam.
O Capítulo I discorre sobre as relações guarani na aldeia de
Pinhalzinho e apresenta conceitos importantes que aparecerão ao longo de
todos os capítulos, como dom e cultura guarani. Entre os Guarani com quem
convivi, é comum que as pessoas se especializem em determinados tipos de
atividades que estão relacionadas a um dom, como por exemplo, ser um bom
líder, bom artesão, bom caçador, ter a espiritualidade aguçada, conhecer
muitas plantas, saber fazer remédios, entre outros. O dom é o modo como
alguns dos meus interlocutores denominam as capacidades e habilidades
pessoais que são recebidas por vias espirituais e desenvolvidas ao longo da
vida, no engajamento no mundo terreno. Já o conceito de cultura guarani se
refere a diversos elementos e relações, especialmente a saberes e práticas
ligadas ao passado (como os mitos, a língua, a reza, etc.), processos de
atualização e produção de especificidades (diferenciações), formas de
socialidade guarani e a vida nas aldeias. Tanto a ideia de cultura quanto de
dom são apresentadas no primeiro capítulo, mas suas diferentes extensões
são abordadas ao longo de todo o trabalho.
No Capítulo II serão descritas narrativas de caminhos guarani das
aldeias para a cidade de Maringá. Questões como a mobilidade vêm pra
primeiro plano. Quais aspectos da enunciada cultura e dos dons comuns à vida
na aldeia se estendem até a cidade? Aliado às perspectivas Guarani, neste
capítulo exploro alguns dos aspectos que levaram meus interlocutores a saírem
24
das comunidades rumo à Maringá e as possibilidades de manutenção na
cidade de certas práticas que são comuns nas aldeias (como a reza, a
produção de artesanato, relações com os parentes, entre outras). Por fim, foco
na experiência dos Guarani na ASSINDI, que apesar de ser uma organização
coordenada por não indígenas, pode ser entendida, como me disse uma
interlocutora Guarani, como uma aldeinha. O esforço neste capítulo é de
obliterar as perspectivas das instituições com as quais os Guarani estão em
relação em Maringá, para privilegiar as perspectivas guarani com relação às
suas trajetórias e à vida na ASSINDI.
No Capítulo III, continuo a reflexão sobre as relações guarani em
Maringá, mas agora com o esforço de tornar aparente as perspectivas das
organizações em composição com as perspectivas guarani. Como eles se
relacionam com os saberes e as lógicas das instituições? Aqui apresento de
maneira mais detalhada os trabalhos da ASSINDI e da UEM com os indígenas
em Maringá, descrevo eventos institucionais e algumas experiências em sala
de aula. As reflexões empreendidas apontam para uma tendência à reificação
que é característica ao modo de operar dessas organizações e para a
relevância dos dons nas experiências universitárias dos Guarani. Nota-se que
as organizações também mobilizam noções como cultura guarani, embora de
maneira diferente dos indígenas. O intuito não é purificar a perspectiva
institucional para torná-la visível, mas tentar pensar como os Guarani e as
instituições compõem juntos novas relações na cidade de Maringá. Ambas as
perspectivas se contrastam, mas também se associam parcialmente. Também
aparece neste capítulo comparações entre a vida nas aldeias e a vida na
cidade, o que leva a finalizá-lo com reflexões acerca dos desejos dos
estudantes universitários de retornarem para as comunidades.
No Capítulo IV continuo com a reflexão sobre as conexões entre os
saberes/práticas Guarani e os saberes/práticas institucionais, assim como as
extensões entre aldeia e cidade e as composições criativas que surgem destas.
No entanto, não mais o faço a partir de Maringá, mas sim a partir da aldeia
Pinhalzinho novamente. Na comunidade, os Guarani também fazem suas
comparações entre a vida na aldeia e na cidade. Se no capítulo anterior
apresento o desejo dos Guarani de retornar para as aldeias, aqui apresento
25
como a saída e retorno dos indígenas universitários é visto e entendido por
aqueles que estão na aldeia. Também aparece a visão daqueles que já
retornaram e atualmente atuam em prol da chamada cultura e da comunidade.
Existem algumas extensões e relações entre instituições e os Guarani, e aqui é
o momento de pensá-las a partir de Pinhalzinho. Assim, elementos como a
escola, o posto de saúde, projetos, as práticas de objetificação guarani e os
cargos de trabalho e liderança são trazidos para a discussão. Assim, busco
pensar a respeito dessas composições e em que medida as relações
institucionais dos Guarani se assemelham ou se diferenciam das práticas
institucionais de organizações como a ASSINDI e a UEM.
Se nos dois primeiros capítulos faço um esforço de privilegiar as
perspectivas Guarani na aldeia e na cidade, nos dois seguintes privilegio
conexões entre as perspectivas Guarani e institucionais na cidade e na aldeia.
Logo, cada capítulo expõe as reflexões a partir de posições e perspectivas
etnográficas distintas, porém interconectadas. Em síntese, a partir de ângulos
diferentes, cada capítulo discorre acerca do devir Guarani nesse complexo
relacional específico entre os Guarani e instituições no Norte do Paraná.
26
1. Capítulo I – Cultura e dom guarani: reflexões a partir da
aldeia Pinhalzinho
Como já é amplamente conhecido pelos cientistas sociais, a noção de
“cultura” é recorrente nas narrativas antropológicas e possui infindáveis
definições ao longo da história da disciplina13. Trabalhos contemporâneos vêm
mostrando como esta noção também tem se tornado corrente entre os nossos
interlocutores de pesquisa14. Isto ocorre entre os Guarani interlocutores desta
pesquisa que vivem na TI Pinhalzinho (PR), localizada na cidade de Tomazina,
no norte do Paraná. Na perspectiva destes sujeitos, a cultura se refere a uma
série de elementos e relações que são introduzidas neste capítulo.
Inspirado em Wagner ([1975] 2012), o esforço aqui é suspender as
noções analítico-antropológicas de “cultura” para tornar visível a noção dos
próprios Guarani. Assim, a cultura é acionada para falar de saberes e práticas
ligadas ao passado (como os mitos, a língua, a reza, etc.), processos criativos
de invenção de novas especificidades (como os grupos de canto e dança, o
experimento em produção de artesanatos, a inclusão de saberes guarani dos
antigos dentro da escola, entre outras15) e também de um tipo de socialidade
específica, pois dizer que as relações na aldeia são distintas das relações na
cidade, na perspectiva guarani, significa que existem culturas diferentes, mais
especificamente, formas distintas de ser e se relacionar.
É importante destacar e problematizar o fato de que no passado,
segundo meus interlocutores, os Guarani que viviam na região norte do Paraná
eram proibidos por chefes de postos indígenas de conversar em guarani16. De
acordo com os Guarani, falar na linguagem era entendido como um ato de
desobediência e resistência a uma visão assimilacionista do Estado. Assim,
13
Ver Kroeber e Kluckhohn (1952). Geertz ([1973] 2014), Wagner ([1975] 2012), Wolf ([1984] 2003),
entre outros.
14
Ver Carneiro da Cunha (2009) com relação aos povos indígenas em geral e Macedo (2009), Mainardi
(2010) e Danaga (2012) com relação a povos Guarani.
15
O grupo de canto e dança e a escola serão temas do quarto capítulo.
16
Os chefes de postos indígenas são representantes do órgão indigenista oficial do país, no caso, o
Serviço de Proteção ao Índio (SPI) entre 1910 até 1967 e Fundação Nacional do índio (FUNAI) desde o
final de 1967. Na pesquisa de Valéria Macedo (2009) também aparecem relatos de chefes que proibiam
os Guarani de falaram em sua própria língua.
27
destacam que muitos foram ameaçados e perseguidos. Uma consequência
disto é que atualmente poucos dos meus interlocutores falam alguma variação
da língua guarani17. Certa vez, perguntei a uma liderança se ele conhecia
alguma palavra em guarani que significasse cultura ou cultura guarani. Ele me
respondeu com a palavra nhandereko, que significa “nosso jeito de ser”.
Percebe-se ao longo da pesquisa que o nhandereko diz respeito a uma
multiplicidade de singularidades e modos de devir Guarani. Assim, minha
proposta aqui é de não apenas substituir a categoria cultura por nhandereko, e
vice-versa, mas de assumir ambas como categorias guarani. O desafio,
portanto, é de percorrer os sentidos e enunciados específicos de cultura e não
simplesmente descartá-la como um termo exógeno.
Se considerarmos que o contexto pós Constituição de 1988 é um
cenário de proliferação da palavra “cultura” entre povos indígenas, como
apontam Carneiro da Cunha (2009) e Macedo (2009), verifica-se que grande
parte dos meus interlocutores cresceu em um momento no qual a “cultura”
tornava-se uma categoria comum aos indígenas. Muitos incorporaram os usos
do termo cultura guarani enquanto cresciam e não pressuponho que
distinguiam se a categoria era exógena ou não. Assim, o que destaco em
minha abordagem é que a cultura faz parte das relações guarani e é mobilizada
tanto entre eles quanto nas relações com os brancos.
Diferentes saberes guarani, elementos muitas vezes classificados
como cultura, estão ligados ao conceito de dom. Não me refiro à clássica
noção antropológica de “dom” presente na teoria da dádiva de Marcel Mauss
([1925] 2003), mas sim a uma noção que os guarani usam para se referir as
habilidades desenvolvidas a partir de experiências pessoais, geralmente
relacionadas à potências que se ganha de entidades espirituais18e capacidades
desenvolvidas ao longo da vida. Uma Guarani pode dizer, por exemplo, que
tem o dom para porai (canto), seja ele desenvolvido ou não ao longo da vida,
17
Destaco duas considerações com relação a esta questão. A primeira é que ter a língua portuguesa
como idioma corrente é uma particularidade de algumas comunidades guarani, como em Pinhalzinho,
mas não é uma realidade em grande parte das aldeias guarani no Brasil. A segunda é que apesar de
poucas pessoas falarem na linguagem em Pinhalzinho, categorias em guarani são constantemente
mobilizadas e valorizadas pelos meus interlocutores, como fica explícito ao longo da escrita desta
dissertação.
18
Um uso semelhante desse termo aparece na pesquisa de Jan-Arthur Eckart (2014) entre os Guarani
Mbya na aldeia Tenonde Porã no estado de São Paulo.
28
devido a uma potência dada por Nhanderu (nosso pai)19 ou algum yraidja
(guias/ajudantes do plano espiritual). Outro Guarani pode dizer que é um bom
caçador, porque quando era criança lhe passaram banha de tamanduá nas
juntas, o que o fez ser hábil e rápido na mata. Ainda, outro Guarani pode dizer
que tem o dom para ensinar e ser professor, sem saber exatamente de onde
vem essa predisposição, interesse e/ou facilidade para o mesmo.
Na bibliografia etnológica guarani, a discussão sobre o “nhe’e”,
traduzido por Leon Cadogan (1959) como “alma-palavra”, pode ser um ponto
de diálogo com a noção de dom. Estes trabalhos20, desenvolvidos
principalmente com povos Mbya, mostram como esta “alma” ligada ao “nome”
recebido no nimumgarai (ritual de nominação) é essencial na existência da
pessoa guarani. Entre os meus interlocutores os nomes são enviados por
Nhanderu e estão relacionados a certas habilidades ou características que a
pessoa pode vir a desenvolver ao longo da vida. Se a pessoa recebe o nome
Kunhã Takwa Mirĩ (mulher taquara pequena), por exemplo, pode ser que no
decorrer da vida ela seja alguém fortemente relacionada ao mborai (reza
guarani) e porai (canto), práticas que estão associadas à espiritualidade
guarani e ao uso pelas mulheres de um instrumento musical feito de taquara
chamado takwapu (taquara “pu”)21.
Neste capítulo, gostaria de estender a discussão sobre a “almapalavra”. Se em alguns contextos Guarani, sobretudo Mbya, o “nhe’e”, essa
composição indissociável de alma e palavra, é central para pensar o devir
Guarani, aqui o que se destaca não é a palavra (o nome), mas sim os dons, as
potencialidades que são desenvolvidas ao longo da vida e que podem estar
vinculadas a origens espirituais. Colocar os dons como figura e a “almapalavra” como fundo é, além de uma estratégia metodológica de comparação,
um caminho apontado pelos próprios Guarani em campo. Assim, percorrendo
19
O termo Nhanderu (nhande: meu/ru: pai) possui outras variações entre meus interlocutores, como
Txeru (meu pai), Nhanderu Wutsu (nosso pai maior/nosso pai todo poderoso), Nha deru Mba’e Kwaa
(nosso pai sábio), entre outras. Cada uma dessas variações possui uma tradução literal ou aproximada,
mas muitas vezes, sobretudo nas relações com os brancos, ao invés dessas categorias os Guarani usam
apenas a palavra Deus.
20
Existem vários trabalhos clássicos acerca desta potência guarani (cf. Cadogan [1959] e Clastres [{1974}
1990]) e também contemporâneos (cf. Pissolato [2007], Macedo [2010; 2013], Pierri [2013]).
21
Esse instrumento utilizado pelas mulheres no mborai é batido contra o chão, por isso sua terminação
à pu ,àpoisàaàpalav aà àaàju ç oàdeàtakwa (taquara) mais o som da sílaba pu, que seria o som da batida
contra o chão.
29
diversos aspectos da vida em Pinhalzinho, este capítulo trata da cultura e dos
dons guarani.
1.1.
A cultura dos antigos, os mais velhos e a revitalização: breves
apontamentos sobre história e a mobilização de um etnônimo
A categoria cultura é mobilizada pelos meus interlocutores Guarani no
presente, mas é atravessada por sentidos que se conectam ao passado. Falar
da cultura dos antigos, dos mais velhos e dos Guarani atualmente, não diz
respeito necessariamente à mesma gama de elementos. Estes três tipos de
enunciações são conectados por extensões de significados, mas se relacionam
com reflexões distintas acerca do passado e do presente. Deste modo, é
relevante trazermos para o diálogo o trabalho de Dominguês (2010), que é
historiador, Guarani e morador de Pinhalzinho. O autor apresenta três
momentos ao longo da história da comunidade e nos permite pensar a história
de uma perspectiva guarani, assim como a relação desta com os enunciados
de cultura.
Uma das primeiras reflexões empreendidas por Dominguês em seu
referido trabalho é o questionamento da ideia de que o norte paranaense era
desabitado de povos indígenas até os primeiros anos do século XX. Sobre este
assunto, Mota (1994) – um dos autores retomados por Dominguês – afirma que
a presença das populações no norte do estado do Paraná foi negligenciada ao
longo da construção da história oficial sobre a região. Segundo o autor,
geógrafos, historiadores, sociólogos, entre outros acadêmicos ao longo do
século XX criaram a ideia de que, antes da década de 1930, o norte
paranaense correspondia ao que denominavam de “terras devolutas, sertão,
mata virgem”, entre outras expressões que criaram o que o ele chama de “mito
do vazio demográfico”. Para questionar essa “ideologia”, Mota apresenta
alguns resultados de pesquisas arqueológicas que apontam para a presença
indígena nos territórios em questão desde a pré-história. Ainda, por meio de
relatos de viagens, ofícios, literatura etnológica, entre outros documentos, o
autor defende que as populações indígenas estiveram presentes nessa região
ao longo dos séculos XVII, XVIII, XIX, XX e que, atualmente, continuam
presentes e ativamente participantes.
30
Interessante que Dominguês (2010) traz para este debate um clássico
da etnologia guarani, Curt Nimuendajú ([1954] 2013), que em um trabalho
publicado originalmente em 1954 e datado de 1908, escreve apontamentos
diversos sobre povos Guarani e, em determinada parte do texto, discorre sobre
os Guarani no Rio Verde e no Rio do Cinza na segunda metade do século XIX.
A TI Pinhalzinho fica a margem do Rio do Cinza e o local é mencionado por
Nimuendajú como aldeia da Barra Grande. Segundo Dominguês, as narrativas
dos Guarani mais velhos de Pinhalzinho convergem com o relato de
Nimuendajú
acerca
desta
nominação22.
O
autor
apresenta
também
informações que indicam que as terras onde hoje está Pinhalzinho teriam sido
doadas aos indígenas no início do século XX, homologadas em 1916 e revistas
em 1917 pelo SPI. Assim, ele caracteriza o período de 1850 até 1920 como
uma “era gloriosa” para os Guarani.
Já de 1930 até a década de 1960, Dominguês (2010) demarca como
um período de “desmoronamento”. O autor questiona os motivos de haver
poucas informações acerca dos indígenas que viviam na região e aponta para
três catástrofes que teriam reduzido o número de habitantes no local. A
primeira catástrofe que o autor destaca corresponde a epidemias de gripe e
febre amarela, que teriam causado a morte de muitos indígenas na região. A
segunda se refere a um incêndio, “um fogo”, que em um momento de estiagem
haveria se alastrado da direção de uma fazenda até dentro da aldeia, causando
destruição da vegetação e morte de indígenas. A terceira catástrofe diz
respeito ao que alguns interlocutores chamam de fomento (1956-1967/68).
Este termo se refere à Seção de Fomento Agrícola (SFA), empresa para a qual
o SPI teria arrendado as terras dos Guarani para o cultivo de arroz após as
duas primeiras catástrofes. Apesar de todas as calamidades ocorridas neste
período, Dominguês encontra em outros trabalhos e nas narrativas dos Guarani
informações que sustentam que alguns indígenas continuaram vivendo na
região de Pinhalzinho, mesmo que em quantidade reduzida.
Um terceiro período abordado pelo autor é de 1976 até 1985, ano da
demarcação da TI pela FUNAI. Esse período é caracterizado por Dominguês
22
Atualmente, Barra Grande é o nome de um ribeirão ligado ao Rio do Cinza que passa por Pinhalzinho
e é local comum de pesca dos Guarani.
31
como um momento de “revitalização”, pois, após as catástrofes, as famílias
Guarani que aviam deixado o local por conta das dificuldades do período
anterior, haveriam retornando e se juntado aos que lá permaneceram para
fortalecerem novamente os laços comunitários e a luta pelo território, que
estava tomado por posseiros.
Estes breves apontamentos históricos aqui apresentados, sustentados
pelo trabalho de Dominguês, nos possibilita pensar como o conceito de cultura
mobilizado pelos Guarani se relaciona com estes momentos do passado. É
comum que meus interlocutores se refiram a uma cultura dos antigos, um modo
de viver que era possível em um contexto distinto do atual. Este se refere ao
período destacado como “era gloriosa” por Dominguês, no qual os Guarani
podiam viver das matas, da pesca e da caça, falar na linguagem e praticar a
espiritualidade sem grandes interferências dos brancos – o que não quer dizer
que não existiam em alguma medida. Quando meus interlocutores falam dos
mais velhos, geralmente se referem aqueles que ainda estão vivos e
presenciaram um período de muito sofrimento, que é o período de
“desmoronamento”. Este foi caracterizado pelas catástrofes, perda do território,
o fomento e as imposições por parte dos brancos, como a proibição de se falar
e ensinar a língua guarani e a difusão da agricultura de monocultura nas terras
em que viviam.
Os mais velhos, apesar de terem vivido as catástrofes, são atualmente
reconhecidos por carregarem saberes que eram comuns nos tempos antigos,
aprendidos com seus parentes e mais velhos de sua época. No período de
“desmoronamento”, haveriam persistido traços da chamada cultura dos antigos,
como a espiritualidade, pesca, caça e a língua, ainda que as condições fossem
adversas. Muitos destes mais velhos foram viver em outras localidades no
período das catástrofes, próximos de parentes e outros Guarani, o que teria
auxiliado na manutenção desses traços de cultura dos antigos.
Já o período pós-catástrofes teria sido um momento para reconquistar
o território e “revitalizar” os laços da comunidade naquele local. Assim, a
cultura no momento presente é marcada pela inventividade, pautada em
narrativas sobre o modo de viver dos antigos e os saberes dos mais velhos,
mas aberta a criação na produção de diferenças – característica que ficará
32
explícita ao longo da dissertação.
Assim, os enunciados de cultura são
produzidos no presente, mas estão conectados a modos de devir com saberes,
acontecimentos e pessoas do passado.
Vale destacar aqui também alguns aspectos sobre a reivindicação de
um etnônimo que se dá no momento presente. Existe certa convenção na
etnologia de que os Guarani que vivem no norte do Paraná são ligados a um
“subgrupo” Nhandewa. Esta classificação é inspirada, sobretudo, na divisão
estabelecida por Schaden ([1954] 1974) de três “subgrupos” guarani que
habitariam o território brasileiro: os Mbya, os Kaiowa e os Nhandewa 23. Em
geral, os meus interlocutores em Pinhalzinho reivindicam a categoria
Nhandewa como um modo de autodenominação. No entanto, é interessante
perceber que nem sempre foi assim e que tal categoria não é determinante no
devir Guarani nessa região. Muitos dos meus interlocutores, sobretudo os mais
velhos, afirmam que antigamente eles se denominavam apenas como Guarani,
e só recentemente é que se reconhecem como Nhandewa. Segundo o citado
trabalho de Schaden, a tradução deste termo é “os que somos nós, os que são
dos nossos” (p. 2) e de acordo Fernando, uma das lideranças em Pinhalzinho
que reivindica a categoria, o significado é “índios de verdade” ou “nós somos
gente”. Ele afirma:
Eu vejo muito os mais velhos falar desse jeito assim, que não tinha como
determinar o quê que era aquele povo, então falava-se muito por apelido.
Então, os brancos chegavam e viam uma tribo lá e diziam “Vocês
conhecem aquele povo lá?”, por exemplo, os Nambikwara, “Aqueles lá são
os que têm orelha furada” [...], “Aqueles lá são os Mbya”, quer dizer, muita
gente, [...] “Aqueles lá são os Kaiowa”, quer dizer, só vivem no mato, só na
floresta, aí vem o etnocentrismo. [...] Nós somos Nhandewa, nós somos
índios de verdade. [...] Tinha também os apelidos nossos, que é os
Apapocuva, índios que usam os arcos cumpridos.
Sobre este mesmo assunto, Joaquim, um morador de Pinhalzinho de
65 anos, afirma “Eu tenho certeza que nós somos do Guarani Nhandewa, tanto
23
Segundo Assis e Garlet (2004), não há um consenso sobre como é feita essa classificação, sabe-se que
todos são Guarani, mas há dúvidas ao defini-losà o oà su g upos ,à et ias ,à pa ialidades ,à et . Há
também algumas tentativas contemporâneas de evitar categorias delimitadoras reificadas o oà t i o ,à
et ia ,à so iedade ,àet . Um exemplo é a noção de edesàgua a i , proposta por Macedo (2009), para
pensar conexões entre pessoas e significados em uma tessitura relacional em aberto. Esta perspectiva
está e à o so
iaà o à asà o ie taç esà daà pes uisaà te ti aà Redes ameríndias: geração e
transformação de relações nas terras baixas sul-americanas ,à oo de adaàpo àDominique Tilkin Gallois e
desenvolvida pela equipe do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo
(NHII/USP).
33
é que uns parentes por parte de pai, que tinha primo dele, eles não sabiam
qual Guarani que eles eram, mas conforme eles falaram os dialetos aí, a gente
descobriu que eles são Nhandewa mesmo”. Porém, ele também diz que
antigamente os seus parentes não se denominavam de tal maneira, ele diz que
naquele tempo “nunca ninguém escutou isso aí, era Guarani. Depois de uma
altura em diante que começaram a falar ‘Ah, você é Nhandewa, fulano é
Mbya...’”. Entre outros povos Guarani, como os Mbya e Tupi Guarani no estado
de São Paulo, que são interlocutores nas pesquisas de Macedo (2009),
Mainardi (2010), Almeida (2011) e Danaga (2012; 2016), o termo “nhandewa” é
utilizado por eles próprios para se referir a todos os Guarani ou ainda a todos
os indígenas, pois a palavra diz respeito a um pronome na primeira pessoa do
plural. Entre estes povos, “nhandewa” não é assumido como um etnônimo que
diferencia um povo Guarani do outro, mas sim como uma categoria do
vocabulário guarani que engloba todos. De acordo com Viveiros de Castro
(1996):
[...] as categorias indígenas de identidade coletiva têm aquela enorme
variabilidade contextual de escopo característica dos pronomes, marcando
contrastivamente desde a parentela imediata de um Ego até todos os
humanos, ou mesmo todos os seres dotados de consciência; sua
coagulação como “etnônimo” parece ser, em larga medida, um artefato
produzido no contexto da interação com o etnógrafo. Não é tampouco por
acaso que a maioria dos etnônimos ameríndios que passaram à literatura
não são autodesignações, mas nomes (freqüentemente pejorativos)
conferidos por outros povos: a objetivação etnonímica incide
primordialmente sobre os outros, não sobre quem está em posição de
sujeito. Os etnônimos são nomes de terceiros, pertencem à categoria do
“eles”, não à categoria do “nós” (p. 125-126, grifos do autor).
Retomando a fala de Fernando e diante destas considerações de
Viveiro de Castro, parece-me que é justamente pela categoria Nhandewa ser
um pronome e não um apelido etnocêntrico, como colocou meu interlocutor
Guarani, que em Pinhalzinho esta denominação é assumida para se diferenciar
como povo em detrimento de outras categorias com sentido pejorativo, como
Apapocuva. Assim, entre meus interlocutores, Nhandewa aparece como um
pronome eleito para ser um etnônimo. No entanto, sua mobilização não é
absoluta entre meus interlocutores e deve ser entendida nas relações
específicas em que são enunciadas. Recorrentemente, o termo é reivindicado
para se referir às especificidades linguísticas, mas no dia a dia não é tão
acionado como a categoria Guarani. Ainda, há casos de pessoas, sobretudo
34
mais velhas, mas não somente, que se identificam apenas como Guarani. Ao
longo do texto, vou mobilizar a categoria Guarani para me referir aos meus
interlocutores24, e acionar outros modos de autodenominação em momentos
pontuais. Como veremos, esta é uma discussão muito mais complexa e
interessante que será aprofundada no Capítulo III.
Assim, passemos a refletir mais detidamente nos diversos elementos e
relações que são caracterizados pelos meus interlocutores como cultura
guarani e que se relacionam com os diferentes momentos do passado
mencionados anteriormente, com o presente e também com o reconhecimento
de uma diferenciação frente a outros povos Guarani, indígenas em geral e não
indígenas.
1.2.
Cultura e espiritualidade guarani
A aldeia de Pinhalzinho é dividida em três colônias. Estas são ligadas
por estradas de terra e ficam a poucos quilômetros de distância umas das
outras. Os critérios que dividem o conjunto de pessoas para cada colônia é
baseado, sobretudo, em relações de parentesco e religiosas. Na colônia sede
reside o cacique, o txamõi (líder espiritual)25 e encontram-se as duas oy gwatsu
(casa de reza) da aldeia. As outras duas colônias são a do meio e a de baixo,
esta conhecida também como do Cinza, por ficar próxima às margens do Rio
do Cinza. Nestas duas outras colônias, de acordo com meus interlocutores,
poucos sujeitos praticam a reza guarani, já que a maioria está vinculada a
religiões cristãs, principalmente evangélicas. Entre os meus interlocutores na
colônia sede, contudo, as práticas ligadas à reza guarani são predominantes
em relação às religiões cristãs26.
Uso o adjetivo religioso em itálico porque em algumas situações tal
categoria é acionada por meus interlocutores para se referir às práticas
24
A escolha por mobilizar a categoria Guarani ao longo do texto vem de reflexões e problematizações
que os meus próprios interlocutores realizam sobre as autodenominações. Pode-se dizer que a
categoria Guarani é mais convencionada entre eles próprios do que outros termos como Nhandewa.
25
U aàt aduç oà aisàlite alàse iaà av àouà ossosà aisàvelhos ,à oàe ta toàoàte oà àutilizadoàpa aà
denominar os líderes espirituais ho e sàeà ulhe es à o u e teà ha adosàdeà a s à aàlite atu aà
etnológica.
26
Para um trabalho que aborda o cristianismo entre os Guarani em uma aldeia no Paraná, ver Barros
(2003).
35
espirituais dos Guarani (ligadas ao mborai/reza, porai, nimungarai, etc.). No
entanto, a ideia de “religiões indígenas” é bastante controversa na antropologia,
na medida em que a religião seria caracterizada por uma institucionalidade
ocidental. Frente a esse dilema, os meus interlocutores Guarani oferecem um
caminho. A ideia de uma religião guarani é acionada em momentos de
tradução para os brancos das práticas ligadas a relações com seres espirituais.
Quando fazem essa tradução, o fazem comparando estas práticas com outras
religiões para que os brancos tenham algum entendimento aproximado do que
seja a espiritualidade Guarani, que certamente está longe de ser uma
instituição religiosa nos moldes do pensamento ocidental.
Portanto, mobilizo aqui a ideia de uma espiritualidade guarani e não
uma religião. Primeiro, porque é comum que os Guarani falem em diversas
situações: “os txamõi tem uma espiritualidade muito forte”, “eu estou falando de
um ser espiritual”, “sonhos podem ser revelações espirituais”, “a pessoa estava
com uma doença espiritual”. Em segundo lugar, ainda que seja possível
questionar a categoria espiritual afirmando que também seja um esforço de
tradução dos Guarani, trata-se de um termo menos carregado de pressupostos
reificantes em comparação com a categoria religião. Em ultima instância, o que
importa não é abandonar ou não o termo religião, mas saber em que situações
específicas os Guarani o mobilizam.
A espiritualidade guarani está relacionada a um tipo específico de
socialidade que envolve relações com humanos, espíritos (bons e ruins),
plantas, animais, alimentos, objetos, entre outros elementos. Também está
associada a práticas que eram realizadas pelos antigos que permanecem ainda
hoje e que são alvo de um esforço de manutenção criativa. Assim, a
espiritualidade
é
uma
das
características
associadas
ao
que
meus
interlocutores enunciam como cultura guarani, na medida em que é
caracterizada por uma socialidade específica, está relacionada aos Guarani do
passado e se mantém como uma característica diferenciadora no presente.
36
1.2.1. Mborai e porai: a reza e o canto guarani
Ao longo de todo o período que estive em Pinhalzinho fiquei a maior
parte do tempo apenas na expectativa para participar da reza, mborai em
guarani27. Devido ao verão chuvoso, o txamõi Awa Djemõwytsu28 – o mais
conhecido, senão o único, txamõi da região norte do Paraná – não iniciou o
mborai enquanto as chuvas não deram trégua. Antes de iniciar a reza, o txamõi
deve passar por uma preparação alimentar para purificar o seu corpo – não
consumir sal e alimentos industrializados são as principais premissas – e após
iniciada, a mesma deve acontecer por pelo menos três dias seguidos no
período da noite29. Eu já havia ouvido muito sobre a reza. Contavam-me
histórias, explicavam-me como era, falavam-me dos mitos de origem do mundo
e até da controversa existência de ywy nhemimbyre (terra escondida, também
conhecida na bibliografia como “yvy marã’ey” ou “Terra sem Mal”). Também já
havia conhecido as duas oy gwatsu, tirado foto de sua arquitetura e estética e
também de vários objetos utilizados na reza. Foi apenas nos últimos três dias
em Pinhalzinho que pude participar e conhecer de perto como que acontecia o
mborai na aldeia.
Era final de tarde em uma terça-feira. Peguei minha bolsa, máquina
fotográfica, água, cadernos e canetas e parti para a casa do txamõi. Fiquei por
algum tempo conversando com ele, sua esposa Cleide e alguns dos seus
filhos, filhas e genros. Todos aguardavam o jantar, que nessa noite foi
mandioca e cabeça de porco cozidas, ambos sem sal.
Logo após jantarmos, a noite foi chegando e o txamõi começou a
preparar os objetos para o mborai. Primeiro ele preparou duas iraity, uma vela
27
Em alguns outros trabalhos com populações Guarani o termo mborai aparece como tradução de
a to .à E t eà eusà i te lo uto esà estaà atego iaà à o ilizadaà o oà uma tradução para reza, mas é
associada também aos cantos que compõe a reza. Os cantos, por sua vez, são comumente chamados de
porai.
28
Nome guarani do txamõi, Awa Djemõwytsu, sig ifi aà ho e àdoàve to .àOàtxamõi me pediu que eu o
identificasse com o seu nome Guarani na escrita do meu texto. Todos meus interlocutores Guarani
possuem um nome guarani e um nome de registro oficial que é o que utilizam no dia a dia.
29
O txamõi me disse que o correto é fazer o mborai durante, pelo menos, três noites seguidas. No
entanto, caso aconteça algo que interrompa essa sequencia, como uma forte tempestade, é possível
fazer uma pausa e, por exemplo, postergar o mborai uma ou duas noites para depois retomar. O
importante é que ao se iniciar o mborai, no mínimo três noites, de acordo com as exigências dos seres
celestes, devem ser dedicadas ao evento.
37
feita da cera da abelha djetei30 com tecido de algodão. A fumaça da iraity age
sobre os corpos levando consigo o que é prejudicial, purificando e fortalecendo.
Depois ele pegou o seu kangwaa, o djetsa’a e o mbaraka mirĩ e seguiu rumo à
oy gwatsu, que fica próximo à sua casa. Kangwaa significa “coisa que usa na
cabeça”, é próprio à composição dos corpos masculinos e mais conhecido
entre os brancos como “cocar”. O djetsa’a consiste em fios com sementes e
plumas que os homens carregam cruzados sobre o peito. O mbaraka mirĩ é um
instrumento musical, uma espécie de chocalho feito com um cabo de madeira e
uma cabaça/poronga contendo sementes, geralmente exibe grafismos e
plumas penduradas, e também é próprio de ser empunhado apenas pelos
homens. É comum que cada homem guarani seja associado a um kangwaa,
djetsa’a e mbaraka mirĩ pessoais, e cada mulher a um takwapu. Porém, na oy
gwatsu há vários mbaraka mirĩ e takwapu para aqueles que não têm esse
vinculo com objetos próprios, como algumas crianças e visitantes. É importante
destacar que tais objetos não são apenas coisas materiais, adornos ou
acessórios, são antes agentes que se conectam aos Guarani para juntos se
conectarem a seres espirituais. Tais objetos se compõem à reza para evocar
Nhanderu e os yraidja.
Logo que o txamõi foi para a oy gwatsu, os outros Guarani também
começaram a ir. Ao chegar, percebi que caminhavam em círculo em frente aos
kurutsu do lado de fora da oy gwatsu. Os kurutsu são uma espécie de altar feito
com três cruzes31 e a caminhada em círculo chama-se nimbodjere. Fiz como os
Guarani, caminhei em círculo três vezes em frente aos kurutsu e me sentei em
um dos bancos que ficavam em frente a oy gwatsu esperando a reza começar.
Enquanto todos conversavam do lado de fora da oy gwatsu, sem anunciar, o
txamõi ascendeu uma iraity, começou a passar a fumaça nos kurutsu e depois
em cada uma das pessoas que lá estavam. Cada homem munido com seu
mbaraka mirĩ e cada mulher com seu takwapu, nos posicionamos em duas
30
Entre os brancos esta abelha é comumente conhecida como jataí.
No clássico livro de Curt Nimuendajú ([1914] 1987) sobre os Guarani, o autor menciona o uso de
uzesà dia te,àde t oàeàe à i aàdaà asaàdeàda ça,àeà o àf e u iaàta
àso eàosàtú ulos à p. ,à
no entanto ele afirma que esta era uma estratégia guarani para se preservar dos ataques dos cristãos às
suas práticas espirituais.à Ni ue dajúà afi aà ueà osà Gua a ià fazia à u aà esp ieà deà istia is oà
si ulado àpa aàutiliza à o oàes udo.à
31
38
linhas, uma de homens à esquerda do txamõi e uma de mulheres à direita –
homens virados de frente para as mulheres e vice-versa.
A princípio, para escolher um mbaraka mirĩ, adotei um critério estético,
porém, um dos filhos do txamõi me alertou que eu deveria escolher um
barulhento e não meramente pela aparência. Na reza, os sons são muito
importantes, o barulho do mbaraka e do takwapu é como a fala dos humanos
tentando alcançar Nhanderu e os yraidja32. Percebe-se uma associação, um
trabalho conjunto entre humanos e objetos para evocar e se comunicar com os
seres espirituais. Essa analogia entre os sons emitidos por humanos e não
humanos não se restringe aos objetos. Os Guarani me relataram que outros
seres, especificamente animais, como o pássaro tangará e as abelhas djetei,
também fazem reza33. De acordo com um dos meus interlocutores, os animais
se comunicam, nós humanos é que não entendemos.
Após o posicionamento inicial na reza, o txamõi enunciava em alto tom
palavras em guarani junto aos sons e movimento de seu mbaraka. Alguns
homens o seguiam e agitavam seus mbaraka também. Os ritmos eram
variados e logo se iniciou o porai e os movimentos corporais. Segundo uma
interlocutora, porai é “cantar naquelas alturas”. Neste momento da reza, era
como se as palavras do txamõi e os sons dos mbaraka tivessem evocado o
porai. O txamõi começava a cantar e logo todos os presentes o acompanhava
entoando sons vocais sem formação de palavras. A diferença entre pessoas
humanas e objetos diminuía, pois essa sonoridade vocal sem formação de
palavras é, segundo um dos meus interlocutores, incompreensível aos
humanos, mas compreendida por Nhanderu e os yraidja, assim como é o som
dos instrumentos e, em outras situações, os sons emitidos por animais.
Homens e mulheres moviam seus corpos junto aos sons de suas vozes
e dos instrumentos em um ritmo parcialmente semelhante, mas cheio de
variações. Assim, seguiram-se momentos de pausa e de porai, e a cada novo
porai uma nova entoação vocal e ritmos diferentes. No final do mborai, fizemos
novamente o nimbodjere e o txamõi passou mais uma vez a fumaça de iraity
32
Para trabalhos que se debruçam especificamente sobre a questão sonora entre povos Guarani, ver
Montardo (1996; 2002), Coelho (1999) e Stein (2009).
33
Tive a oportunidade de ouvir a reza dos tangará e das abelhas djetei. No entanto, meus ouvidos não
eram treinados ao mesmo tipo de compreensão que os Guarani têm ao identificar tal manifestação.
39
nas pessoas. Destaco como os elementos sonoros, visuais, odoríficos, entre
outros dispositivos sensoriais ligados aos sons dos objetos, das vozes, ao ritmo
dos corpos, a fumaça da iraity, etc., indicam um compartilhamento sensorial
que possibilita atingir o efeito que uma interlocutora chamou de “descer a reza”.
Estes elementos sensoriais conectam agentes terrenos com agentes
celestes34. Portanto, o mborai/reza é composto por esses elementos humanos
e extra-humanos e é um momento propício para a aproximação entre seres de
“naturezas” 35 e mundos distintos.
Nos dois dias seguintes, a reza prosseguiu, em muitos sentidos
semelhantes, em outros bastante distintos. Não existe uma prescrição rígida de
como deve ser a reza. Como disseram meus interlocutores, quem faz a reza
não é o txamõi, mas sim o próprio Nhanderu e os yraidja. O txamõi apenas se
comunica com estes seres e/ou os incorpora. Dona Vilma, uma Guarani de 78
anos, disse-me que o mborai “é uma reza que vem de cima” e que o txamõi
“não faz a reza... ele desce a reza nele, é onde ele vai dançar e rezar”. O
próprio txamõi Awa Djemõwytsu certa vez me falou que depois da reza ele
volta a ser um homem como qualquer outro. Portanto, a reza segue uma
dinâmica que não compete à vontade humana, mas sim a entidades como
Nhanderu.
É importante considerar também que o mborai conduzido por um
txamõi é diferente do conduzido por outro. Isto porque cada um tem
proximidades com entidades distintas e, portanto, atuam com especialidades
diferentes de acordo com as especialidades das próprias entidades. Por
exemplo, o txamõi de Pinhalzinho tem um amplo conhecimento de remédios
(principalmente plantas) e práticas de cura, já outra txamõi muito conhecida
naquela região e que mora na aldeia Nimuendajú (TI Araribá, Avaí/SP), é
bastante reconhecida pela sua relação com as dinâmicas climatológicas. Ela
tem uma maior facilidade para prever tempestades e afastá-las, trazer ou
cessar chuva. Essas especificidades estão intimamente relacionadas à ideia
dos dons guarani.
34
Dos quais falarei mais adiante.
á ui,àoàte oà atu eza àseà efe eàaàfo asàdisti tasàdeà o po ifi aç oà po àe e plo,àoà o poàdeàu à
humano e de um mbaraka) e se fazer presente/percebido (por exemplo, os seres espirituais, que podem
ser percebidos em manifestações como a chuva ou um trovão [Tupã]).
35
40
A vivência da espiritualidade mostra como os dons guarani são sempre
parciais36. Não é qualquer pessoa guarani que é um sábio acerca do mborai,
assim como não é qualquer pessoa que é apta a ser txamõi. Por vezes eu
perguntava para alguns interlocutores sobre o mborai e eles respondiam “isso
aí você tem que perguntar pro txamõi”. Isso não quer dizer que meus
interlocutores sejam ignorantes acerca do que nomeiam de cultura guarani,
mas sim que entre os Guarani a parcialidade do conhecimento é assumida.
Ninguém pressupõe saber ou conhecer o todo. Assim, para ser txamõi não
basta querer, é preciso ter certo devir espiritual. Cada txamõi terá relações e
conhecimentos específicos (parciais) de acordo com a proximidade com
diferentes seres extra-humanos.
Figura 1. Txamõi passando a fumaça e o calor da iraity nas kurutsu ao lado de fora da oy gwatsu. Foto
tirada pelo autor, 2016.
36
Há aqui uma inspiração em leituras como Haraway ([1985] 2000) e Strathern (1991).
41
1.2.2. Nimungarai: a crisma/batismo e o nome guarani
No primeiro dia de reza descrito no tópico anterior, ao caminhar por
mim, o txamõi passou a fumaça da iraity próximo ao meu rosto, proferiu
algumas palavras em guarani e depois disse em português que se eu fosse
crismado, ou seja, passasse pelo nimungarai, meu nome seria Awa Arakwaa
Porã37. E assim ocorreu, foram três dias de reza e no último, não por minha
vontade,
mas
pela
iniciativa
do
próprio
txamõi
e
seus
guias,
fui
crismado/batizado com este nome.
O nimungarai é comumente traduzido e chamado de crisma ou batismo
pelos Guarani. Consiste em um ritual de nominação conduzido pelo txamõi no
qual a pessoa guarani recebe o seu nome enviado dos cosmos celestes38. De
acordo com Tadeu, filho do txamõi39, algumas pessoas já vêm com o nome e
só é preciso descobrir qual é. Já outras, o nome precisa ser trazido em um
intenso trabalho do txamõi em diálogo com seres celestes. Geralmente, os
nimumgarai acontecem em grandes eventos que reúnem pessoas de diferentes
aldeias. Várias pessoas, principalmente crianças, são crismadas em uma
mesma noite. O ritual que ocorre na oy gwatsu inclui canto e dança, como na
reza, e é finalizado com as crismas que acontecem madrugada adentro, já que
todos devem ser crismados antes do nascer do sol.
A minha crisma não ocorreu em um destes grandes eventos
específicos para a realização do nimungarai. No final do terceiro dia de reza, o
txamõi molhava as suas mãos em uma infusão de wyra pire (casca de cedro)
dentro de um apyka (cuia utilizada na reza) carregado por um ywyraidja
(ajudantes/guias na terra)40, passava sobre a cabeça de cada um dos
presentes e proferia algumas palavras em guarani. No meu caso, entre estas
palavras estava o meu nome recém atribuído: Awa Arakwaa Porã. Esta prática
que envolve molhar a cabeça da pessoa com a infusão de wyra pire é central
no nimumgarai, pois é neste momento que o nome fixa no corpo do sujeito.
“egu doàalgu sài te lo uto esàaàt aduç oàap o i adaà à ho e às io .à
Não apenas pessoas humanas recebem nome. Em Pinhalzinho fala-se também das crismas das oy
gwatsu, ou seja, as casas de reza também são dotadas de um nome. Na bibliografia também é comum
encontrar descrições de nimungarai do milho (awati).
39
Tadeu está treinando para ser txamõi também.
40
São pessoas que auxiliam o txamõi durante o mborai e o nimumgarai, por exemplo, segurando
objetos, ascendendo velas e afins.
37
38
42
Estes nomes não são apenas palavras, mas são potências espirituais
amplamente descritas na bibliografia como “alma”, “alma-palavra”, “palavrahabitante”, “nhe’e”, “ayvu”, entre outros termos.
Em pesquisas com os Guarani Mbya é comum encontrarmos o termo
“nhe’e” para se referir a esta “alma”. Autores como Cadogan (1959), Clastres
([1974] 1990), Assis (2006b), Pissolato (2007), Macedo (2009), entre outros,
destacam em seus trabalhos a característica de que o “nhe’e” sai das moradas
celestes, onde habitam as divindades, para habitar um corpo guarani, fazendo
deste uma pessoa. O “nhe’e”, traduzido como “alma-palavra” por Cadogan e
“palavra-habitante”
por
Clastres,
conecta
humanos
e
divindades
por
compartilharem a capacidade da linguagem. Para estes autores, o “nhe’e” está
intrinsicamente atrelada a uma proveniência divina da condição de humano.
Macedo e Sztutman (2014) sintetizam essa noção da seguinte maneira:
Como amplamente abordado na literatura etnológica voltada para essas
populações, o nhe’ẽ constitui um nexo fundamental entre
humanos/Guarani e aqueles traduzidos como deuses. De proveniência
celeste/divina, um nhe’ẽ é enviado a cada Guarani que está sendo
gestado, e posteriormente passa a habitar seu corpo, investindo-o de
atributos de pessoa, com capacidades singulares de comunicação,
compreensão e agência (p. 291, grifos dos autores).
Esta noção de “alma” como uma modulação divina, recorrente na
literatura específica, está atrelada também à ideia de um dualismo espiritual
guarani. No clássico trabalho de Nimuendajú ([1914] 1987) sobre os
Apapocúva-Guarani, a alma é descrita como composta por “ayvucué”, que “[...]
significaria algo como ‘o sopro brotado (da boca)’” (p.29) e carrega as
disposições boas e brandas da pessoa, e pelo “acyiguá”, “[...] um particípio de
acý, que significa como substantivo ‘dor’, e como adjetivo e advérbio ‘vivaz,
violento, vigoroso’” (p.33, grifos do autor) e que estaria ligado a atributos maus
e violentos da pessoa. Ainda, enquanto o primeiro componente da alma estaria
relacionado à ideia de palavra/língua e o nome recebido no nimungarai, o
segundo se refere a uma alma animal cujas características seriam
determinantes no temperamento da pessoa em questão. Se a pessoa, por
exemplo, tivesse um “acyiguá” de borboleta, tenderia a ser tranquila e calma,
mas se tivesse de jaguar, tenderia a um temperamento agressivo. Aqui temos
uma teoria de uma alma composta por duas almas.
43
Outro teórico clássico na etnologia guarani, Egon Schaden ([1954]
1974), menciona que, em geral, os líderes espirituais guarani com quem
trabalhou assumiam a pluralidade da alma humana41. Assim, Schaden teoriza
que as almas seriam compostas de duas ou mais unidades que pertenciam a
duas categorias básicas: por um lado, as tendências espirituais e, por outro, as
vitais e instintivas. Eduardo Viveiro de Castro (1996), em um importante
trabalho com os Araweté, realiza a seguinte síntese sobre a teoria da pessoa e
da alma entre os Guarani:
É a etnografia dos Guarani atuais que mostra a maior elaboração de uma
teoria da pessoa e das almas, desenvolvendo maximamente a distinção
entre princípios celeste e terrestre do ser humano; ali também se encontra
a
mais
completa
operação
de
uma
matriz
triádica,
Natureza/Cultura/Sobrenatureza. É onde, por fim, a posição de xamã
conhece maior destaque e menor ambigüidade – e onde a ambigüidade
caracteriza inequivocamente o estado cultural [...].
Os Guarani distinguem, grosso modo, uma alma de origem e destino
divinos, ligada ao nome pessoal e às rezas individuais, à palavra e à
respiração, e uma alma de destino terrestre, de conotação animal, ligada
ao temperamento individual e a alimentação, à sombra e ao corpocadáver. A primeira á dada, e pronta, e manifesta a presença dos deuses,
a história do cosmos; a segunda cresce com a pessoa, e encarna sua
historicidade (p. 638).
Percebe-se como as teorias sobre a pessoa Guarani são marcadas por
um dualismo entre o polo do celeste/divino e o do terreno/animal. A condição
humana se situaria entre ambos os polos, marcando uma situação de
ambuiguidade e transitoriedade.
Etnografias contemporâneas com povos Guarani têm prolongado esta
discussão. Evaldo Silva (2007) realizou trabalho de campo em diversas aldeias
na tríplice fronteira do Brasil, Paraguai e Argentina, e acompanhou os
deslocamentos dos Mbya e Nhandewa nesta região. Em seu trabalho ele
distingue o “nhe’e”, que seria o princípio vital de origem e destino celeste que
anima a pessoa, e “ã”, a “sombra” que após a morte do sujeito se transforma
“ãgue” (“fantasma”, “espectro”) e fica nesta terra. Pissolato (2007), por sua vez,
trabalhou principalmente com os Guarani Mbya no litoral do Rio de Janeiro e
afirma que entre os Mbya não há uma teoria acerca da dualidade da alma
como há entre os Nhandewa (fazendo referência aos trabalhos de Nimuendajú
41
Com exceção de dois líderes Nhandewa que insistiam que o humano tem apenas uma alma que ficaria
localizada no peito.
44
e Schaden), mas reconhece que haveria uma dualidade entre o “nhe’e” e o “ã”,
mencionados também por Silva. No caso de Macedo (2009), que realizou
pesquisa com os Guarani Mbya e Nhandewa (Tupi-Guarani) na TI Ribeirão
Silveira, seus interlocutores falam em mais de um “nhe’e” e utilizam as
expressões “nhe’e porã” e “nhe’e vai” para distinguirem, respectivamente,
aquele que provém e retorna aos cosmos celestes e o que tem seu itinerário
terrestre e converte-se em espectro após a morte. Alguns autores apontam
para caminhos que extrapolam o dualismo recorrente na literatura, como Daniel
Pierri (2013), que realizou pesquisa de campo com os Mbya em várias aldeias
no sul e sudeste do Brasil e afirma o seguinte acerca do “nhe’e”:
[...] em contraste com a dualidade simples entre uma alma-palavra ou
princípio vital (com destino) celeste, e um espectro corporal (com destino)
terrestre, comumente apresentada na literatura sobre os Guarani, ouvi
observações de que a pessoa seria formada por outros elementos.
Disseram-me que além da nhe’ẽ porã, que provém da (e retorna no postmortem para) sua morada celeste, existem mais duas outras almas ditas
nhe’ẽ mbyte [alma do meio]. Enquanto a primeira assenta-se mais
estavelmente no corpo, e localiza-se entre a nuca e a parte posterior da
cabeça (nhanderapyte), os nhe’ẽ mbyte ficariam fora do corpo, como
duplos deles, e afastariam-se com facilidade, seriam “mais sensíveis”. A
ausência prolongada de algum dos nhe’ẽ mbyte levaria os outros nhe’ẽ,
inclusive o nhe’ẽ porã, a abandonar o corpo causando a morte (p. 181,
grifos do autor).
Percebe-se que as descrições acerca destas potências relacionadas
aos nomes guarani e a ideia de “alma” entre estas populações são extensas e
variam de acordo com as escolhas etnográficas e as comunidades guarani com
as quais os etnógrafos trabalham.
Entre os meus interlocutores, a grande maioria possui um nome
guarani – inclusive os que se denominam evangélicos. De maneira geral, a
potência espiritual atrelada ao nome não se apresenta como algo fragmentado
em suas narrativas. Quando o assunto é o nome e suas potências, eles
enfatizam menos a “dualidade espiritual” ou a “origem divina”, e mais os efeitos
dos nomes nas vivências das pessoas, expressos pelos dons – os “atributos de
pessoa” mencionados anteriormente por Macedo e Sztutman (2014).
Independente do nome se referir a um animal, objeto, fenômeno natural,
adjetivos, etc., o que meus interlocutores evidenciam é como os nomes guarani
estão atrelados a suas experiências de vida. É comum que uma pessoa
desenvolva características, traços de personalidade e habilidades que estão
45
relacionados aos seus nomes. Meus interlocutores veem isso como
potencias/tendências de origem divina. Alguns dos nomes dos meus
interlocutores são bastante explícitos nesse sentido, como Kunhã Tsy (mulher
mãe), Awa Diwaka (homem vaidoso) e Awa Mbaraete (homem forte). Um
morador de Pinhalzinho cujo nome de crisma é Awa Nimboadju, disse-me o
seguinte:
[Nimboadju] não tem uma tradução, assim, literal... ela não tem. Tem um
significado mais ou menos que eles falam que o meu nome veio porque eu
tinha que amadurecer, que eu não conseguia crescer, né, ficava muito
doente. Daí fui na nimungarai daí eles trocaram meu nome e colocaram
Nimboadju, porque eu tinha que amadurecer. Eu tinha outro nome, não
lembro, mas tinha... não estava dando certo (meu grifo).
É possível que um nome e o corpo que o recebe não estejam em
sinergia, o que pode gerar problemas como doenças. Assim, pode ser
necessária a troca de nome, como no caso deste Guarani. De acordo com ele,
o significado de seu nome (Awa Nimboadju) está relacionado ao processo de
desenvolvimento do seu corpo que se encontrava doente. No entanto, pode
estar relacionado também ao seu amadurecimento como pessoa em um
sentido amplo. Destaca-se que o amadurecimento, no caso deste Guarani, é
uma potência atrelada ao nome. A palavra e seus significados são intrínsecos à
vivência e desenvolvimento da pessoa no mundo.
Destaco que entre meus interlocutores em Pinhalzinho, o que os
Guarani evidenciam com relação aos nomes não é tanto o que a bibliografia
descreve como a “proveniência divina da condição humana”, mas sim os
efeitos que estas potências constituem nas vivências do dia a dia. Assim, em
concordância com meus interlocutores, o foco aqui não está no princípio geral,
no sistema ou cosmologia guarani, mas sim na múltipla variação de
singularidades acerca da qual os próprios Guarani teorizam.
Ao pensar a questão da corporalidade, Pierri (2013), por exemplo,
afirma que a produção do corpo não finaliza com o assentamento do “nhe’e”,
pois esta seria “uma tarefa que preenche toda a existência das pessoas
guarani, justamente porque é através dela que se produzem pessoas com
potencialidades distintas” (p. 181, meus grifos). Macedo e Sztutman (2014)
afirmam o seguinte acerca desta mesma questão:
46
[...] sua definição como “alma-palavra” [...] poderia ter como tradução
alternativa “linguagem-afeto” (ou afeto-linguagem), por constituir uma
modulação de força que circula e vincula os homens e os habitantes
imortais dos domínios celestes. Longe de concebê-la como construção
convencionalizada, portanto, a linguagem entre os Guarani diz respeito a
um potencial afectivo que adquire modulações específicas a partir de sua
proveniência, itinerários e assentamentos. Os nomes dão corpo a tais
modulações, remetendo à proveniência celeste do nhe’ẽ que assentou no
sujeito, maximizando naquele corpo sua potência de agir (p. 291, meus
grifos).
Em minha experiência em campo, essas potencialidades distintas
aparecem nos dons pessoais e estes podem estar ligados a essas agências
divinas intrínsecas aos nomes guarani. O termo dom atrelado a essa
proveniência divina aparece no trabalho de Jan-Arthur Eckart (2014), realizado
entre os Mbya da aldeia Tenonde Porã, na cidade de São Paulo. De acordo
com o autor:
Afirmam meus interlocutores Mbya que todos nascem com um dom, isto é,
com determinadas capacidades potenciais para realizar ou desenvolver
determinadas funções. Um dom pode ser entendido como algo que a
pessoa gosta e é capaz de fazer com esmero e dedicação. Entretanto, não
basta nascer com o dom, ele é antes de tudo uma potência que deve
ser desenvolvida e aprimorada ao longo da vida. Ainda assim há uma
compreensão de que cada pessoa nasce como que predestinada a
aprimorar e desenvolver determinadas atividades e funções dentro dos
coletivos (p. 44, meus grifos).
Entre os meus interlocutores em Pinhalzinho, o que é mais evidente
não é a provniência divina dos Guarani, mas sim as vivências atreladas a
certas habilidades e características pessoais que podem ter origem divina em
seus nomes. Assim, ao longo desta dissertação, me deterei em pensar mais
essa característica do desenvolvimento e aprimoramento dos dons ao longo da
vida, destacado no trecho de Eckart, do que o aspecto divino ou de
predestinação. O foco nesta questão se dá, como já sinalizado, devido à
centralidade que os meus interlocutores conferem aos dons e à maneira como
teorizam sobre os nomes guarani. Ao dar maior ênfase à questão dos dons
espera-se provocar o efeito, tão bem apontado por Strathern (2006; 2011), de
criar uma curva, uma bifurcação, com relação às discussões predominantes
sobre a origem divina, o que pode ser profícuo como exercício de reflexão
etnográfica.
47
1.2.3. Os seres celestes, espíritos e outras entidades
Nos dois tópicos anteriores menciono a relação dos Guarani com seres
espirituais sem especificar ou descrever de maneira mais consistente que
seres são estes. Portanto, neste tópico me detenho em apresentar um pouco
mais a fundo estas entidades espirituais que habitam o céu e a terra. Alguns
dos seres celestes são descritos na literatura etnológica guarani como
“divindades”. Mobilizarei o mesmo termo para cinco destes seres os quais
alguns dos meus interlocutores traduzem como deuses42.
Nhanderu Wutsu (nosso pai maior/nosso pai todo poderoso), Nhanderu
Mba’e Kwaa (nosso pai sábio) ou simplesmente Nhanderu (nosso pai) é
considerado a principal divindade em Pinhalzinho e muitas vezes é chamado
apenas de Deus. Nhanderu é a divindade que pré-existiu a tudo, o criador e pai
de todos os seres. Ele habita o céu junto com outras quatro principais
divindades. Nhanderu é a divindade mais referenciada no dia a dia Guarani, já
as outras quatro são mencionadas com maior frequência em situações
específicas, provavelmente porque estão relacionadas a habilidades e
responsabilidades singulares. Estas outras divindades são: Tupã, que é
responsável pelas águas e tempestades; Djakaira, responsável pelas plantas e
vegetações; Nhamandu, divindade do sol responsável pela luz e sabedoria; e
Karai, responsável pela saúde.
Durante muitos meses de minha pesquisa de campo, que começou
com os Guarani em Maringá, havia ouvido menções a estas quatro divindades,
mas nenhuma explicação mais consistente acerca de seus papéis na
espiritualidade guarani. Tomei maior conhecimento acerca dessas entidades a
partir do momento que conversei com um Guarani em Pinhalzinho sobre a
construção da oy gwatsu. Esta tarefa deve seguir uma série de procedimentos,
alguns dos quais relacionados à localização destas divindades no céu. O
principal eixo de sustentação, que fica ao centro da oy gwatsu, deve ser o
primeiro a ser colocado no processo de construção, pois ele está relacionado a
Nhanderu, que habita o centro do céu. Na sequência, coloca-se os outros
quatro eixos de sustentação que correspondem às outras quatro divindades:
42
Esta categoria deve ser entendida em seu contexto de enunciação específico, pois, quando falam
Deus, no singular, provavelmente estão se referindo à Nhanderu.
48
um eixo a oeste, que está relacionado à Tupã43; um ao norte, que está
relacionado à Djakaira; um ao leste, que está relacionado à Nhamandu; e um
ao sul, que está relacionado à Karai. Seguindo as coordenadas de dois
interlocutores e consultando o txamõi da aldeia, construí a seguinte imagem:
Figura 2. Localização das principais divindades guarani nos cosmos celestes. Desenhado pelo autor
com a orientação de interlocutores guarani, 2016.
Esta imagem corresponde ao mesmo tempo aos eixos de sustentação
na arquitetura da oy gwatsu e à localização destas divindades no cosmos
celeste. Cada txamõi, como já sinalizado anteriormente, possui relações mais
próximas com alguma(s) destas divindades. Os Guarani dizem que cada
txamõi possui os seus guias, também chamados de yraidja44. Se o guia de um
txamõi é Tupã, por exemplo, é provável que ele tenha maior facilidade de lidar
com mudanças climáticas, pedir para chover ou para que a chuva cesse,
prever e afastar tempestades, etc. Assim, ouve-se relatos em Pinhalzinho dos
tempos dos antigos e dos mais velhos nos quais haviam vários txamõi em uma
mesma reza. Cada um fazia a sua reza, um depois do outro, e cada reza era
diferente, pois os guias de cada txamõi que baixavam durante o mborai não
eram os mesmos.
43
Um dos meus interlocutores, ao me explicar sobre a localização das divindades no céu, me disse que
as chuvas e tempestades geralmente vêm do oeste e raramente de outras direções, devido a localização
de Tupã no cosmos celeste.
44
Os ywyraidja, mencionados anteriormente, são os ajudantes/auxiliares na terra, já os yraidja (ou
guias) são ajudantes/auxiliares do céu.
49
Figura 3. Txamõi e D. Cleide no espaço interno da oy gwatsu. Foto tirada pelo autor, 2016.
Há relatos em Pinhalzinho de que não é apenas o txamõi que possui
guias. Algumas pessoas com espiritualidade aguçada, como aqueles que
auxiliam o txamõi durante a reza, os ywyraidja, também podem ter guias com
os quais eles se relacionam e que podem baixar durante uma reza. Há indícios
também de que os guias podem ir além das cinco divindades mencionadas.
Três Guarani mais velhos e respeitados em Pinhalzinho me falaram de um guia
que pode ter o formato de um passarinho. Quem tem este guia pode enviá-lo
para fazer tarefas à distância.
Quando perguntei para o cacique se nessas práticas espirituais guarani
é possível que alguém queira fazer coisas ruins para outras pessoas, ele me
contou que antigamente acontecia de se roubar os dons de outras pessoas por
meio de um passarinho do plano espiritual. Se houvesse, por exemplo, um
chefe muito poderoso em uma aldeia e outra pessoa quisesse aquele poder,
esta poderia pedir para alguém enviar um passarinho para comer o miolo
(cérebro) do sujeito alvo da cobiça45. O passarinho invisível aos olhos comuns
45
A própria pessoa poderia enviar caso ela tivesse esse dom
50
comia o miolo do sujeito pela orelha e o levava até quem o havia enviado. Este
pegava o miolo, que não era material, mas espiritual, e colocava no meio da
comida daquele que solicitou o dom alheio. A pessoa que teve seu miolo
comido ficava com dor de cabeça, passava mal e aquela sabedoria que lhe
fazia bem sucedido passava para o sujeito que comeu o miolo, tornando-o uma
pessoa poderosa. O cacique disse que “nos livros está escrito que nós Guarani
comíamos cérebro, mas era um ‘comer espiritual’. Comer cérebro de gente não
dá poder pra ninguém!”46.
O cacique também contou de outro pássaro chamado apuari. Este se
refere a um grande pássaro espiritual que era solicitado quando alguém sentia
saudade. Se você tivesse uma pessoa distante e a quisesse de volta, era só
enviar este pássaro para buscá-la que muito rápido a pessoa aparecia. Se ela
estivesse em uma situação de dificuldade, como por exemplo, sem recursos
financeiros para voltar, ela poderia até vender tudo o que tinha e de tanta
saudade voltaria para aquele que enviou o apuari.
Um dos seres espirituais mais presentes na bibliografia guarani são os
angwery. Estes geralmente são descritos pelos pesquisadores com relação à
temática das “almas”, pois corresponderia à parte da alma que fica na terra
após a morte da pessoa47. Entre os meus interlocutores não se menciona essa
divisão entre uma alma que volta para o cosmo celeste e outra que se
transforma em angwery, mas afirma-se que algumas pessoas ficam na terra e
vagam como espécies de almas penadas. Também se afirma que algumas
fazem o mal e outras não. Geralmente fazem o mal aquelas que já eram
pessoas muito ruins ou perturbadas durante a vida. Perguntei para D. Vilma,
uma das senhoras mais velhas da aldeia, se existia angwery bondosos, e ela
respondeu:
Você não vê nós, que às vezes tem um que é bom demais, nossa, só falta
arrancar a roupa e dar praquela pessoa, né... só isso que falta. Esses um
sempre tem o cantinho deles aí, que fica aí... não vai pro céu, mas tem o
46
O cacique foi uma das pessoas com quem mais convivi na aldeia. Conversávamos muito todos os dias
e nenhum de nossos diálogos foram gravados em aparelhos eletrônicos. Neste sentido, esta fala
transcrita foi registrada apenas em meu caderno de campo e, portanto, sofre dos efeitos do tempo e da
memória, mas não perde em conteúdo enquanto potência etnográfica.
47
Ver Nimuendajú ([1914] 1987), Schaden ([1954] 1974), H. Clastres ([1975] 1978), Pissolato (2007),
Silva (2009), Macedo (2009), entre outros.
51
cantinho que eles podem ficar, né. Porque ele não vai ficar vagando
assim...
Ela explica que só fica vagando e fazendo o mal aqueles que já são
pessoas más em vida, estes vão “fuçar com a vida de um e de outro [...] não
deixam ninguém em paz” . D. Vilma também falou de outro ser que é temido
entre os Guarani, chamado atsyia e mais conhecido como saci: “dizem que é
um menino baixinho preto que é muito arteiro”. D. Vilma diz que nunca viu e
nem quer ver, mas já ouviu várias vezes o assovio dele. Ainda entre os seres
temidos, outro muito recorrente na literatura e que é mencionado por meus
interlocutores é anhã. D. Vilma disse que este ser é do mato e muitos dos
Guarani traduzem como diabo. Há narrativas de casos de pessoas possuídas
pelo diabo que precisam ser levadas até um txamõi para que este possa
expulsar o mesmo com a ajuda de seus guias/yraidja e ywyraidja.
Não busco aqui uma descrição que pressuponha descrever um “todo”
acerca das possibilidades de relações entre os Guarani e espíritos, divindades
e outros seres extra-humanos que possam compor as experiências guarani.
Porém, quero dar ênfase a este tipo de socialidade que não se restringe aos
seres humanos. Essas relações transversais entre humanos e não humanos,
descritas ao longo destes tópicos acerca da espiritualidade Guarani, são
características do que eles chamam de cultura guarani. Quando comparam
essas relações com as formas de viver dos brancos, comumente dizem que
são culturas diferentes.
1.3.
Lideranças em Pinhalzinho ou aulas de como ser um líder
Parte da literatura etnográfica indica uma relação entre o que
comumente é chamado de domínio “político” e “religioso” entre populações
Guarani. Nimuendajú ([1914] 1987), por exemplo, fala em lideranças que eram
ao mesmo tempo “chefes e profetas” que conduziam movimentos migratórios
em busca da Terra sem Mal. Schaden ([1954] 1974), por sua vez, afirma que,
Segundo os padrões tradicionais, a chefia política do grupo coincide com a
liderança carismática do sacerdote ou rezador. Esta pode ou não coincidir
com a autoridade do chefe de família-grande, reunidos em conselho,
formam uma espécie de senado informal, de função consultiva e
deliberativa, sem que lhe inira, entre os atuais Guaraní do Brasil, grande
autoridade com base em alguma instituição. Nos grupos mais sujeitos à
52
influência do mundo civilizado o poder político se concentra, pelo menos
formalmente, nas mãos do capitão de aldeia, nomeado pelo Serviço de
Proteção aos Índios. Em virtude de pouco relevo dado ao exercício do
poder, enquanto fator essencialmente político, não há em geral razões
para conflitos de competência (p. 95).
Schaden reitera a relações entre a chefia política e liderança espiritual
e destaca o desapego dos Guarani pela política estatal. No caso dos chefes
definidos pelo SPI como representantes da comunidade perante o Estado,
aparentemente não eram líderes com grande reconhecimento e autoridade
entre os próprios Guarani.
Pierre ([1974a] 1990; [1974] 2003) e Hélène Clastres ([1975] 1978) são
duas grandes referências neste assunto. Um dos argumentos centrais de
Pierre Clastres ([1974] 2003) em um famoso ensaio de antropologia política é
de que em certas sociedades ameríndias operam um ativo movimento de
recusa contra o Estado que não permite a construção do poder como um
domínio à parte das relações. Hélène Clastres ([1975] 1978), por sua vez,
afirma que haveria uma distinção entre as figuras de chefes de guerra e líderes
religiosos (xamãs-profetas chamados “Caraí”) entre povos Tupi de antes da
“conquista” europeia. Estes xamãs-profetas teriam liderado grandes migrações
de pessoas em busca da Terra sem Mal, um lugar alcançável em vida, livre das
normas sociais, da precariedade e imperfeição que caracterizam esta terra
habitada pelos humanos. Ao longo do tempo estes líderes religiosos teriam se
convertido em líderes políticos, o que teria acarretado no fracasso das
migrações proféticas. De acordo com Sztutman (2009),
[...] Hélène atinou para um ponto delicado na obra de Pierre Clastres, qual
seja, a relação entre o que costumamos chamar de o "político" e o
"religioso" e, mais especificamente, a maneira como esta se estabelece
entre certas populações de língua tupi-guarani que, ao longo dos séculos
XV e XVI, parecem ter se deparado com a ameaça de irrupção de uma
espécie de poder político separado, e, atualmente, parecem elaborar uma
séria reflexão sobre a possibilidade de seu próprio desaparecimento. A
terra sem mal constitui uma análise aprofundada de como uma religião
pode se converter num mecanismo de resistência ao mesmo tempo
ontológica e política, combater um ideal de transcendência aderindo a um
projeto de imanência (p. 130).
Para Hélène Clastres ([1975] 1978), esse anseio pela Terra sem Mal e
pela superação da condição humana permaneceria entre os atuais povos
Guarani, não mais por meio das grandes migrações lideradas por xamãsprofetas, mas sim por condutas ascéticas ligadas, sobretudo, à vida ritual. Este
53
ascetismo aparece atrelado a certo fatalismo frente às condições atuais dos
povos Guarani, como o confinamento em pequenos territórios. Porém, esta
negação da condição humana pode ser problematizada com pesquisas como a
de Pissolato (2007) com povos Mbya, que aponta para aspectos da vivência
das práticas xamânicas – o que meus interlocutores chamam de espiritualidade
– que não dizem respeito a um desejo de superação da condição humana, mas
sim ao desenvolvimento de saberes e capacidades para a vida nesta terra 48.
Destaco esta visão positiva com relação ao mundo terreno por ser um
elemento que aparece recorrentemente entre meus interlocutores.
Em Pinhalzinho podemos ver semelhanças e discrepâncias com
relação a este cenário presente na bibliografia. Por um lado, existe certa
distinção entre os papéis políticos e espirituais, não como domínios separados
da vida, mas como posições que exigem distintas capacidades (dons). Por
outro, em certas situações, o txamõi e os mais velhos, justamente pelos seus
saberes e especialidades, podem ser considerados lideranças também, o que
implica na possibilidade de interferir em decisões da comunidade e enunciar
por ela fora da aldeia. O termo liderança deve ser entendido dentro de
situações específicas, pois pode se referir aos especialistas em diversos
saberes da vida em geral, à todos os membros que compõem a disposição
política instituída na comunidade e especificamente aos integrantes do
conjunto de moradores que auxiliam o cacique o vice-cacique na organização e
manutenção da vida política da aldeia.
A organização política instituída em Pinhalzinho contém diferentes
papéis e uma dinâmica própria que inclui, mantém e exclui pessoas de suas
posições ao longo do tempo. A principal liderança é o cacique, seguido pelo
vice-cacique e pelas lideranças. O cacique é ao mesmo tempo a principal
liderança interna e também representante da comunidade perante a política
dos brancos. As lideranças (conjunto de pessoas que auxiliam o cacique e
vice-cacique) se aproximam do que Schaden chama de “chefes de famíliasgrandes”. Estes possuem um papel consultivo e deliberativo em reuniões que
ocorrem acerca de diversas questões. Segundo o cacique, é como se ele
48
Esta questão será abordada novamente no Capítulo II com relação ao tema da mobilidade entre os
Guarani.
54
próprio fosse um prefeito, o vice-cacique um vice-prefeito e as lideranças os
vereadores. Mas como a própria analogia do cacique aponta, esta é a
organização formal destes papéis. Na prática existe uma dinâmica interna à
comunidade que orienta como esses fluxos de autoridade se movimentam.
A eleição de um cacique é sempre coletiva, a comunidade sempre
precisa estar de acordo com quem ocupa esta posição. Caso ele não
corresponda às expectativas da comunidade, logo é tirado do cargo. O vicecacique e as outras lideranças são escolhidas pelo cacique, também de acordo
com as expectativas da própria comunidade. Mesmo nestes cargos nos quais
os líderes são definidos pelo cacique, tais posições não são definitivas. Se os
moradores da aldeia não se sentirem satisfeitos com seus líderes,
provavelmente eles serão trocados. As posições de líderes envolvem uma
constante sintonia coletiva, sendo que não é qualquer pessoa que é apta para
ocupar tais posições. Em Pinhalzinho, para atender as expectativas da
coletividade, o cacique busca manter nos cargos de lideranças pessoas de
diferentes famílias moradoras das três colônias. Uma das diferenças com
relação ao contexto descrito por Schaden é que aqui as lideranças, em geral,
são legitimadas tanto da perspectiva guarani (interna) quanto do Estado
(externa)49.
No caso daqueles que podem assumir a figura de liderança em
situações específicas fora da organização formal da política na comunidade,
como o txamõi e os mais velhos, destaca-se que geralmente assumem tais
posições por possuírem variados tipos de conhecimentos como a língua
guarani, mitos, histórias, usos de plantas com agência de cura, técnicas de
artesanato, etc. Em geral, são considerados autoridades nesses saberes que
eles relacionam ao que denominam de cultura guarani.
Uma importante característica das posições de lideranças em
Pinhalzinho é a possibilidade conferida a uma pessoa de enunciar em nome da
comunidade. Essa é uma dimensão destacada por Sztutman (2005) como
49
O representante oficial da comunidade perante o Estado é o cacique, em caso de sua ausência é o
vice-cacique. No entanto, algumas das lideranças, que tem um maior desempenho nas decisões internas
da comunidade, também podem representá-la em eventos externos. Isso ocorre frequentemente em
Pinhalzinho. Como o cacique é um senhor com mais de 60 anos, geralmente ele envia o vice-cacique ou
alguma liderança para representar Pinhalzinho em diferentes encontros que envolvem questões que são
de interesse da comunidade.
55
diacrítica nos papéis de chefia ameríndia. Aliado a autores como P. Clastres
([1974] 2003) e Wagner ([1991] 2011), Sztutman afirma que essa enunciação
por um coletivo diz respeito à necessidade de criar uma aparente unidade que
eclipsa a multiplicidade sem anulá-la. Entre meus interlocutores tal efeito pode
ser percebido, sobretudo nas relações das lideranças com não indígenas e
pessoas de fora da comunidade50.
O atual cacique de Pinhalzinho, um senhor de 62 anos, é líder há
aproximadamente quarenta anos, com alguns intervalos. Foi líder pela primeira
vez muito jovem quando morava na TI Laranjinha (Santa Amélia, PR). Desde
então foi líder diversas vezes, participou da retomada das terras de Pinhalzinho
nos anos 1980, integrou manifestações em âmbito nacional relacionadas à
questão dos direitos indígenas, viveu na cidade de Jacarezinho (PR) onde teve
uma reconhecida loja de ervas no início da década de 1990, entre outros
marcos que emergem de suas narrativas de vida. Sempre conversávamos
muito sobre a questão da liderança, encontros que eram verdadeiras aulas de
como ser um líder.
Entre os muitos ensinamentos do cacique, ele destaca que um bom
líder não é quem sabe mandar, mas sim aquele que sabe observar e falar por
último. Quando duas pessoas estão em conflito ou lhe trazem um problema, ele
diz que nunca toma um lado ou outro como certo. O que ele faz é conversar
particularmente com ambas as partes e assumir a culpa para si próprio: “eu
devia ter te avisado sobre isso antes, a culpa é minha”, “se eu tivesse te
ensinado antes, isso não teria acontecido, portanto a culpa é minha”. O cacique
diz que esta é a melhor forma de resolver problemas e evitar conflitos dentro da
comunidade. Um dos seus maiores orgulhos é que depois que entrou como
cacique pela última vez aboliu a cadeia dentro da aldeia. Esta era uma
pequena construção (um banheiro) que funcionava como prisão para quem
causasse problemas dentro da comunidade. O cacique diz que mandou demolir
a construção e desde então não precisou recorrer a este método.
A sua ampla experiência como líder, militante e sábio das plantas com
efeitos curativos, tornou-o uma espécie de referência e professor para as novas
gerações. É comum que o cacique reúna as crianças da comunidade para
50
A questão das relações extra-comunitárias será trabalhada no Capítulo IV.
56
ensiná-las sobre plantas, mitos e o papel de um líder. O cacique diz que uma
das maneiras de ensinar as crianças sobre plantas com efeitos de cura é por
meio de brincadeiras. Ele reúne as crianças em um espaço com bancos e
árvores perto de sua casa e escolhe uma delas para simular que está com uma
doença específica. Outras duas crianças são escolhidas para procurar as
substâncias necessárias e fazer o remédio que curaria a doença simulada caso
estivessem em uma situação real. Se estas duas falham, outras duas são
escolhidas para a tarefa, até que alguém acerte. O cacique diz que não ensina
como se produz a cura no mesmo dia da brincadeira, ele vai ensinando no dia
a dia. Segundo ele, esta é uma forma de ensinar que deveria ser mais
valorizada pelos Guarani e que foge às dinâmicas da escola que há dentro da
aldeia51.
Com base em suas experiências com as crianças, o cacique me
explica que um novo líder nasce desde pequeno. Ele diz que observa as
crianças atentando para quem não é “mandão” e não humilha os demais. Há
crianças que observam as coisas e depois vão lhe perguntar se aquilo estava
certo ou errado, não julgam de antemão. Ele diz que estes são líderes em
potencial, ou seja, têm o dom para a liderança. O cacique destaca dois destes
entre as crianças na aldeia, mas, apesar de observar e estimular essas
potencialidades nas crianças, ele afirma que quem elege é a comunidade. No
futuro quando essas crianças crescerem, elas conhecerão umas às outras e
saberão escolher o melhor líder entre si, afirma o cacique.
A maior parte dessas relações próximas entre o cacique a as crianças
da aldeia ocorrem no espaço em frente à casa do cacique, uma espécie de
terreiro entre algumas árvores, com balanço e bancos de madeira. É nesse
local que são encenadas histórias e realizadas diversas brincadeiras (figura 4).
Este espaço (junto com a escola) é um dos principais locais para a educação
das crianças em Pinhalzinho. É um espaço para festas, brincadeiras e também
para a extensão criativa de conhecimentos os quais os Guarani chamam de
cultura guarani. O ensinamento desta cultura nesse espaço não ocorre por
mecanismos formais institucionais, como na escola, mas se aproxima do que
Tim Ingold (2000) nomeia como “educação da atenção”. Para este autor,
51
Da qual falarei mais detidamente no Capítulo IV.
57
quando alguém mostra algo a alguém, está propondo que aquilo seja
sensorialmente experienciado por outra pessoa. Esta, por sua vez, apreende a
partir de sua própria percepção do elemento experienciado. O que o autor
chama de “educação da atenção” é essa tarefa de mostrar e chamar a atenção
das novas gerações e outros principiantes52 para certos aspectos da vida
considerados importantes.
Figura 4. Espaço próximo à casa do cacique. Foto tirada pelo autor, 2015.
No dia a dia, quando o cacique ensina às crianças aos pouquinhos
sobre as plantas com poder de cura e quando conta uma história e depois
“brincam” de encená-la, o que ele está fazendo é chamando a atenção das
crianças para estes elementos da cultura. As crianças vão encorporando53
52
Como os etnógrafos, que desenvolvem suas percepções particulares daquilo que os interlocutores
lhes mostram.
53
áà ideiaà deà e o po ado à embodiment [t aduzidoà o oà o po eidade à e à algu asà pu li aç esà
brasileiras]) aqui empreendida remete a uma abordagem em que corpo e mente não são instâncias
separadas. A referência clássica para esta discussão na antropologia é Thomas Csordas (1990), que
sustenta que o corpo não é um objeto para ser estudado em relação à cultura, mas é sujeito da cultura.
Ao dialogar com esta noção, Tim Ingold (20 àafi aà ueà pa aà o solida àosàga hosàte i osàt azidosà
pelo paradigma do encorporamento/corporeidade [embodiment], um passo final ainda precisa ser dado:
que é reconhecer que o corpo é o organismo humano, e que o processo de encorporamento é um e o
es oà ueàoàdese volvi e toàdoào ga is oàe àseuàa ie te à p.à
,à i haàt aduç o .à
58
saberes a partir de suas experiências com os elementos para os quais o
cacique chama atenção. O dom para ser líder também se desenvolve dessa
forma. O cacique observa as crianças, chama a atenção e procura preparar as
condições para que lideranças em potencial cresçam54.
No próprio caso do cacique de Pinhalzinho, que é um líder querido e
respeitado pela comunidade, percebe-se que seu dom e sucesso como
liderança vêm sendo construídos ao longo de muitos anos no próprio
engajamento na vida política. Ainda, a ideia de que este dom possa ter origem
divina não é anulada, uma vez que as potencialidades de origem divina se
compõem às experiências vividas, saberes e habilidades desenvolvidas na vida
terrena. O divino e o terreno não são vivenciados pelos Guarani em
Pinhalzinho a partir de uma lógica dual (ou um ou outro), mas sim no processo
múltiplo e contínuo da vida.
Alguns trabalhos etnográficos sobre a liderança entre os Guarani
apontam para uma relação entre o que é tido como esfera “religiosa” e
“política”. O que destaco a partir das minhas experiências em Pinhalzinho é
que entre as práticas e saberes atribuídos à figura de um líder está presente
certo elemento pedagógico, que se expressa tanto no engajamento/experiência
na vida política da comunidade e nas práticas da reza, quanto em métodos
educativos voltados para saberes e relações da cultura55. Como bem aponta
Ingold (2000) com a ideia de “educação da atenção”, estes métodos educativos
não dizem respeito à transmissão e recepção de conhecimento, mas sim ao
desenvolvimento de saberes. Entre os Guarani estes saberes estão
54
Ainda que as crianças não sejam o foco deste trabalho, destaco que elas são entendidas aqui como
sujeitos ativos nas relações guarani. Quando encorporam e desenvolvem saberes e dons, o fazem como
atores que compõem a vida coletiva na comunidade. Entre as etnografias brasileiras, vale ressaltar a
importância dos trabalhos de Clarice Cohn (2000a; 2000b) para pensar as crianças como atores sociais
ativos e produtores de cultura, assim como o seu diálogo com Christina Toren (1990; 1993; 1999), que
defende uma abordagem na qual as crianças são sujeitos que fazem história e significam sua situação no
mundo.
55
Valeà desta a à ue,à e à u à dosà te tosà o side adosà pio ei os à oà a poà daà a t opologiaà daà
educação no Brasil, Schaden (1945) defende a possibilidade de outras formas de educação além daquela
aseadaà aà es ita,à o u à à edu aç oà es ola .à Eleà a alisaà oà papelà edu ativoà dasà e i
iasà deà
i i iaç o àdeàt a s iti àpa aàasà ovasàge aç esàu àpat i
ioà ultu alà o st uídoàe àu àlo goàpe íodoà
de vida coletiva. Para revisão desta e outras abordagens pioneiras e propostas contemporâneas em
antropologia da educação e antropologia da criança no Brasil ver Cohn (2000a; 2000b; 2000c; 2005;
2013) e Tassinari (2001; 2007; 2008).
59
intimamente ligados às singularidades, habilidades e capacidades para a vida,
ou seja, os dons.
1.4.
Animais comestíveis: relações que produzem outras relações
A comida, sobretudo os animais comestíveis, permitem pensar diversas
relações na aldeia de Pinhalzinho. Além da comensalidade, as relações com os
animais comestíveis produzem artesanato, espiritualidade, relações lúdicas e
educativas, dons, etc. Carne de pesca ou caça, de criação ou comprada na
cidade, cada uma com suas especificidades, seu valor, seus lugares. Neste
tópico falarei dessas três formas de obtenção de carne, o seu prestígio, como
esses animais potencializam outras relações – como a pesca, caça, criação de
animais e produção de artesanato – e como isto se relaciona com a cultura e
os dons guarani.
Muitas falas dos mais velhos destacam que no passado a caça e a
pesca eram as principais formas de obtenção de carne. Atualmente são menos
recorrentes e, geralmente, ligadas a ocasiões especiais. Tive oportunidade de
sair para pescar com quatro Guarani, dois destes moravam na cidade de
Maringá e estavam na aldeia para passar as férias. Saímos da casa do txamõi
por volta das quatro horas da tarde. Cinco homens, cerca de seis cachorros,
uma foice, duas redes de tarrafa e um saco para colocar os peixes.
Caminhamos por alguns minutos por campo aberto e depois por uma mata até
chegarmos ao ribeirão Barra Grande. Os Guarani entraram no ribeirão e eu fiz
o mesmo. A água era cor de barro e quase chegava à altura do peito – a
profundidade da água variava ao longo do percurso. Eles continuaram a andar
ribeirão adentro e caminhamos correnteza acima por volta de três horas em
busca de peixes. Íamos subindo o ribeirão e jogando as tarrafas. Os cachorros
nos acompanhavam pelas bordas. Revezando os papéis, dois homens
jogavam a rede e um terceiro levava a foice e o saco com peixes.
Após uma jornada desgastante, voltamos já depois de anoitecer, por
volta das oito da noite. Ainda que a minha inabilidade na pesca seja uma
imagem invertida da habilidade guarani, é importante ressaltar que alguns
Guarani são considerados melhores pescadores do que outros. Aqueles que
60
encorporam e desenvolvem melhor as técnicas da pesca são dotados de dons
que os diferenciam como bons pescadores56.
Figura 5. Homens Guarani em Pinhalzinho em incursão de pesca. Foto tirada pelo autor, 2015.
A caça é menos frequente e geralmente está ligada a algumas
personalidades na aldeia que são consideradas bons caçadores. Tadeu, filho
do txamõi, sobrinho e genro do cacique e atual vice-cacique, é uma dessas
figuras. Dizem que ele é muito hábil e por isso é um bom caçador. De acordo
com sua mãe, D. Cleide, ele é rápido e hábil porque quando era criança
passaram banha de tamanduá nas juntas do menino. Assim, ele ganhou esse
dom, ficou hábil como um tamanduá, um animal que parece calmo na frente
dos humanos, mas que é rápido e habilidoso nas matas, segundo D. Cleide.
Em uma incursão pela mata com alguns Guarani, encontramos restos
materiais que sinalizam que alguém esteve caçando naquele local. Vimos dois
tipos de estruturas sobre árvores – uma espécie de rede e uma pequena
56
Além da pesca com tarrafa, os Guarani me falaram de outra técnica que é a pesca em loca. A borda do
rio contém buracos onde alguns peixes entram e se alocam. Quando o nível do rio abaixa esses peixes
continuam lá e não conseguem sair dos buracos, chamados de locas. Os Guarani pescadores vão até
essas locas, enfiam o braço e pegam os peixes com as próprias mãos. Segundo eles esta é uma técnica
muito utilizada, mas que depende de condições específicas dos rios.
61
plataforma de madeira – que, segundo o cacique, eram pontos onde algum
Guarani caçador se manteve suspenso à espera que a caça aparecesse no
chão abaixo, onde havia alimento para o mesmo. Nesse dia, havia restos de
espigas de milho, provavelmente para a caça de porcos do mato.
Também é comum ouvir histórias de pessoas que estavam
caminhando e encontraram algum animal que mataram para comer. Durante
esta incursão pela mata para conhecer alguns pontos considerados bonitos e
importantes para os Guarani, um jovem que ia à frente disse “estou sentindo
cheiro de tatu...”. Logo o bicho saiu correndo de um tronco velho caído no
caminho. O rapaz e vários cachorros que nos acompanhavam correram atrás
do tatu, que escapou. Foi tão rápido que mal percebi o que havia acontecido.
Só entendi que eles corriam atrás de um tatu depois que a perseguição já tinha
terminado, o que indica que há certas habilidades sensoriais – as quais
obviamente eu não tinha – que fazem um bom caçador. Dentre estes animais
de caça ou que os Guarani acabam encontrando e matando para comer, estão
os catetos, queixadas, javalis, tatus, capivaras, lagartos e tamanduás.
Figura 6. Rede suspensa deixada por algum Guarani caçador. Foto tirada pelo autor, 2016.
Tanto na caça quanto na pesca são exigidas técnicas e sensibilidades
sensoriais específicas. Sentir os cheiros dos animais, caminhar pela mata sem
62
ser notado, ter a habilidade de desviar rapidamente de galhos e cipós, de se
equilibrar caminhando contra correnteza e empunhar uma tarrafa, etc. Não é
qualquer pessoa Guarani que domina essas técnicas, pois isso está
relacionado às experiências e saberes desenvolvidos por cada pessoa. São
dons, como venho argumentando, que podem ser recebidos em relações com
seres espirituais e são desenvolvidos em experiências pessoais de vida – que
incluem processos educativos, no sentido do que Ingold chama de educação
da atenção.
Outra forma de obtenção de carne para consumo é por meio de
criações. As mais comuns são galinhas, porcos, patos, gansos e bois. Mas
também é possível encontrar quem crie porcos do mato e misturas deste com
porcos comuns, animais muito apreciados para consumo. Não é todo dia que
se come animais de criação. Como estive em Pinhalzinho no final do ano,
presenciei comemorações no natal e no ano novo, situações nas quais
algumas pessoas Guarani reuniram seus parentes da aldeia e de outras
localidades para momentos de comensalidade. Nessas situações especiais,
animais de criação são sacrificados para se tornar comida.
Figura 7. Crianças retirando penas de galinhas para a produção de artesanato. Foto tirada pelo autor,
2015.
63
Tanto com relação aos animais de caça quanto aos de criação, quando
o animal morre, se aproveita não apenas a carne. O couro, ossos e penas são
bem vindos para a produção de artesanato. Na véspera de natal a família do
cacique matou seis galinhas para receber parentes no almoço do dia seguinte.
As galinhas tinham os pescoços destroncados e depois eram penduradas pelas
patas em árvores de baixa altura, nas quais esperavam até serem depenadas.
As mulheres e as crianças arrancavam as penas mais bonitas e guardavam
para depois produzirem artesanatos, como brincos e enfeites de cabelo. As
crianças corriam em direção aos corpos de galinhas pendurados nas árvores e
puxavam suas penas numa íntima relação lúdica (figura 7).
Ainda acerca das criações, algumas delas não são para consumo,
como cachorros, gatos, papagaio e outros animais com as quais se pega
afeição (como o caso do ganso Pelé). Mas mesmo estes animais, quando
morrem, podem se tornar material para artesanato. Douglas, um dos principais
artesãos da aldeia, sempre guarda carcaças de animais para produzir
artesanato posteriormente. Eu o encontrei em Maringá no começo do meu
campo, no início de 2015, e depois na aldeia, no começo de 2016. Em ambas
as ocasiões ele usava seu colar feito de dentes de cachorro.
A carne de consumo diária é a carne comprada na cidade. A aldeia fica
apenas a sete quilômetros do centro de Guapirama (PR)57, o que torna fácil o
acesso ao comércio da cidade. Apesar de ser a carne que se come no dia a
dia, ela não é tão apreciada como a carne de caça e a carne de criação. Assim,
não é todo dia que se come carne. Na casa do cacique, por exemplo, que foi
onde fiz minhas refeições diárias, eles consomem bastante arroz, feijão,
macarrão e vegetais comprados ou obtidos nas próprias plantações dentro da
aldeia58.
A caça, a pesca e a criação de animais são práticas relacionadas ao
que os Guarani chamam de cultura guarani. A compra de carne nos
supermercados, por sua vez, não aparece nesses enunciados. Destaca-se que
57
Apesar de estar localizada no munícipio de Tomazina, o centro urbano mais próximo da TI Pinhalzinho
é o da cidade de Guapirama.
58
Há de se destacar também que os Guarani são ótimos agricultores e alguns mantém roças coletivas
próximas as suas casas, geralmente dividas com os familiares. No Capítulo IV tratarei de assuntos
relativos à agricultura na aldeia.
64
a compra de carne não exige habilidades e saberes por eles valorizados. As
práticas de caça, pesca e criação são valorizadas e implicam em saberes
específicos encorporados59. As pessoas que se destacam nessas práticas,
aqueles que têm o dom para as mesmas, são reconhecidas e destacadas pelas
outras pessoas da comunidade.
1.5.
Artesanato: o experimentalismo guarani
Ao vermos um mbaraka ou takwapu, utilizados nas rezas, poderíamos
precipitadamente designá-los por artesanato. No entanto, entre os Guarani em
Pinhalzinho, os artesanatos são tipos específicos de bens manufaturados que
podem ser trocados e, principalmente, vendidos. Assim, o takwapu de Cleide
ou o mbaraka do txamõi, não são chamados de artesanato, pois foram
produzidos especificamente para relações espirituais e não comerciais.
Na bibliografia etnológica sobre os povos Guarani existem poucos
trabalhos cujo foco seja a produção de artesanato. A pesquisa de Valéria Assis
(2006b) com povos Mbya no Rio Grande do Sul debruça-se sobre aspectos da
“cultura material” mbya. De acordo com a autora, o artesanato é dotado da
dupla faceta de ser ao mesmo tempo um bem produzido para ser
comercializado/mercantilizado com os brancos e um marcador da singularidade
mbya. Em Pinhalzinho, o artesanato, geralmente, consiste em objetos
produzidos para serem vendidos, mas implicam também em conhecimentos,
técnicas e certos elementos estéticos que caracterizam singularidades dos
Guarani que ali se encontram. Assim, não foco aqui nessa ambiguidade das
relações endógenas e exógenas que caracterizariam o artesanato, mas sim
nas múltiplas singularidades que permeiam os trabalhos dos Guarani artesãos.
A produção de artesanato em Pinhalzinho é bastante variada e
experimental. Variada porque existem trabalhos feitos com técnicas e materiais
diversos, e experimental porque as técnicas, na maioria dos casos, não são
simplesmente ensinadas pelos mais velhos, mas sim desenvolvidas a partir de
experimentos pessoais dos artesãos. Organizo esta descrição a partir dos tipos
de materiais utilizados para a produção desses artesanatos.
59
Incluo aqui também a pratica de plantar e manter uma roça.
65
Alguns dos trabalhos mais valorizados, tanto em prestígio pela
dificuldade de produção quanto comercialmente, são os artesanatos feitos em
madeira. Douglas é um dos Guarani especialista nesse tipo de produção. Ele é
mais conhecido pela feitura dos petỹ gwa (cachimbos) e das esculturas de
animais em miniatura (como tatus, onças, jacarés, pássaros, entre outros). Em
suas caminhadas, sempre que encontra troncos caídos ou pedaços de
madeiras ele as recolhe para suas produções. Alguns tipos de madeiras são
mais raros, resistentes e duráveis do que outros, assim, Douglas procura fazer
um estoque das mesmas.
O caso do uso dos petỹ gwa em Pinhalzinho é bastante interessante.
Algumas pessoas, principalmente as crianças, fumam o cachimbo no dia a dia.
No entanto, o mesmo não é usado nas práticas da reza e de cura, como em
algumas outras comunidades Guarani, especialmente entre os Mbya 60. Os
mais velhos em Pinhalzinho afirmam que antigamente eles não fumavam petỹ
gwa e que este hábito, assim como a produção do objeto para venda, foi
recentemente desenvolvido por eles a partir de uma troca de saberes com os
Mbya. Neste caso, o petỹ gwa não tem a ver com aquela faceta da cultura
relacionada à reflexão acerca do passado e dos antigos, mas sim com a
contínua produção de diferenças, ou seja, a atualização criativa da cultura nas
relações com os outros povos indígenas e não indígenas.
Além do petỹ gwa e das pequenas esculturas de animais, outros
trabalhos produzidos em madeira em Pinhalzinho são as lanças, alguns outros
tipos de esculturas – como espécies de barcas e nha’e (vasilhas) – e objetos
diversos feitos com bambu. As lanças, geralmente cobertas por grafismos e
desenhos gravados por meio de pirografia, são especialidade do casal Juliana
e Ismael, filha e genro do cacique. As esculturas de grande porte, como mesas,
cadeiras, bancos, entre outras, são especialidade de Elton, sobrinho do
cacique. O gramado ao lado da sua casa é repleto de grandes galhos e
pedaços de madeira com os quais ele busca experimentar e criar objetos que
possam ser vendidos, segundo ele, para “complementar a renda”.
D. Vilma e o cacique, que são irmãos, trabalham muito bem com
bambu. A primeira faz trabalhos mais convencionados, inspirada em saberes e
60
Ver Assis (2006b), Pissolato (2007), Macedo (2009), entre outros.
66
técnicas que aprendeu com seus parentes mais velhos. Em sua cozinha ela me
mostrou os seus rumpe, também chamados de apa, que são espécies de
peneiras feitas com trançado de taquara e servem para escolher feijão e arroz,
dependendo da espessura dos furos que ficam no trançado. Logo que ela me
mostrou tais objetos, perguntou se eu tinha interesse em comprar algum, o que
respondi afirmativamente. Já o cacique tem trabalhado em um objeto criado por
ele recentemente que é uma espécie de “pegador” para comida feito de
taquara. Ele utiliza o mesmo em sua casa no dia a dia, mas não deixa de
vendê-los quando tem oportunidade. Ele me deu um para que eu levasse e
entregasse na ASSINDI como um presente da comunidade e também como
amostra do que eles têm criado recentemente. Com taquara Douglas também
faz arcos e flechas com pontas feitas de ossos de animais ou pedaços de
metais. O jovem vem treinando arco e flecha como um esporte.
D. Laurinda e Célia, esposa e filha do cacique, trabalham com uma
grande diversidade de materiais, como fibras do tronco da bananeira, palha de
milho, sementes, contas, penas, pedaços pequenos de madeira, missangas,
fios, tintas, entre outros. Com estes materiais elas criam pequenas cestas,
enfeites e presilhas para cabelo, colares, brincos, etc. Em sua fala, D. Laurinda
reivindica a sua criatividade ao fazer do tronco da bananeira uma fibra que
pode ser usada para trançados diversos (figura 8). Ela vem estudando e
desenvolvendo uma técnica de extração e produção de artesanato com este
material. Segundo ela, o primeiro passo é cortar o tronco inteiro da bananeira –
aquelas que já não produzem mais –, depois é preciso cortá-lo na vertical de
forma que seja possível separar o tronco em várias camadas de fibras. Estas
devem ser cortadas em tiras das quais se descarta a parte mole e macia,
deixando apenas a parte resistente que lembra uma espécie de plástico. Estas
tiras devem ficar de molho na água com sabão por aproximadamente um dia e
depois devem secar na sombra em um varal ou bambu na horizontal por três
ou quatro dias.
O couro e os ossos dos animais também são materiais bastante
utilizados. Como já mencionado, carcaças de animais mortos ou daqueles que
são abatidos para alimentação são sempre aproveitadas. O colar de dentes de
cachorro feito por Douglas está sempre em seu pescoço. Em Pinhalzinho, o
67
artesanato geralmente é definido pela sua trocabilidade, mas em muitos casos
também são objetos utilizados no dia a dia, como no caso deste colar, dos
rumpé de D. Vilma, os pegadores de comida do cacique, os brincos e enfeites
de D. Laurinda e Célia, entre outros. O que não é artesanato são os objetos
feitos para eventos como a reza e o nimumgarai, ou seja, aqueles que
compõem as práticas espirituais e agem na conexão de humanos com
divindades. Um mbaraka que compõe a reza é dotado de uma agência naquele
complexo relacional da qual um artesanato não é. Ainda, alguns mbaraka
podem ser artesanato, mas não todos. Um mbaraka, um kangwaa ou outros
objetos que são característicos da reza, podem ser artesanato na medida em
que são feito para venda e não para a composição de uma reza.
Na questão da venda, os Guarani em Pinhalzinho não se engajam na
prática de sair vendendo artesanato pelas ruas, como acontece com muitos
outros povos indígenas que vivem próximo de cidades. Geralmente eles
vendem em encontros, mostras culturais e outros eventos, como por exemplo,
quando ocorre o Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná61. Eles também
fazem artesanato por encomenda. Segundo Dona Laurinda, a filha da
presidenta da ASSINDI, por exemplo, é uma grande compradora de seus
trabalhos e uma das pessoas que lhe pede encomendas em grande
quantidade.
Termino este tópico destacando que a produção de artesanato é
elencada pelos Guarani como um produtor de diferenças. Fazer artesanato é
parte do que chamam de cultura. As técnicas e materiais são diversos,
envolvem
saberes
convencionados,
mas
principalmente
produções
experimentais. Assim, esta variedade atrelada à prática da artesania traz a tona
diferentes dons que estão em contínuo desenvolvimento criativo.
61
Este será apresentado no Capítulo III.
68
Figura 8. D. Laurinda preparando a fibra da bananeira para a produção de artesanato. Foto tirada
pelo autor, 2016.
1.6.
Considerações parciais I
Relações com seres espirituais, associações com objetos, nomes,
modos de educar e devir líder, técnicas de caça, pesca, criação de animais e
artesania. Pedaços de informações ao mesmo tempo distintas e conectadas
que tornam visíveis os dons e aspectos da enunciada cultura guarani entre os
moradores de Pinhalzinho. O “nosso jeito de ser”, o nhandereko, compõe uma
paisagem particular na qual emerge uma multiplicidade de singularidades e
modos de devir guarani. O que sobressai são as diferenças, que se conectam
umas às outras, mas jamais formam um todo.
A cultura é uma tradução aproximada de nhandereko, sobretudo
quando se refere a uma forma particular de ser e se relacionar. No entanto, não
é uma tradução exata. A cultura é enunciada para falar de uma série de
especificidades que permeiam a vida dos Guarani: o conhecimento da língua,
dos mitos e histórias da região, as técnicas de construção de uma oy gwatsu,
as práticas de caça, pesca e criação de animais, as práticas da reza, a
69
produção de artesanato, entre muitos outros elementos. Assim, a cultura pode
se referir a uma série das singularidades guarani que se expressam na múltipla
paisagem do nhandereko. Cultura também pode se referir a modos de ser e se
relacionar, como os modos como viviam os antigos, os mais velhos e como os
Guarani vivem hoje em Pinhalzinho. Assim, nesse sentido cultura se conecta
com nhandereko. No entanto, há uma característica importante da enunciada
cultura que a diferencia do nhandereko, que é o potencial de objetificação. A
cultura pode ser parcialmente registrada, descrita e classificada em textos,
vídeos, fotografias e afins. O nhandereko, como múltiplos devires guarani, tem
uma tendência maior a vazar a essas formas de objetificação. Esta questão é
aqui anunciada, mas será desenvolvida no Capítulo IV da dissertação.
No complexo de relações que envolvem pessoas humanas, seres
espirituais (que habitam o cosmo e que habitam a terra), objetos, animais não
humanos, entre outros seres, percorrem e desenvolvem-se os dons: txamõi,
ywyraidja, artesãos, caçadores, pescadores, líderes e assim por diante.
Quando se é crismado pelo txamõi, a pessoa é dotada de certas
potencialidades
particulares.
A
vivência
dessas
potencialidades,
o
desenvolvimento das mesmas e de muitas outras são os dons guarani.
Tanto cultura quanto os dons aparecem nas relações guarani em
Pinhalzinho. Quando olhamos para os caminhos destas relações em suas
extensões para outras localidades, percebemos também como a cultura e os
dons se desdobram, se estendem e se transformam. Este é um assunto do
próximo capítulo. As extensões da cultura e dos dons na cidade de Maringá,
que fica a mais de 250 km da aldeia Pinhalzinho.
70
2. Capítulo II – Mobilidade e extensões da cultura: os Guarani
na cidade de Maringá
A movimentação de pessoas entre aldeias no norte do Paraná é
bastante comum entre meus interlocutores Guarani. Não são exclusivamente
as aldeias que fazem parte destes caminhos, mas também as cidades. Alguns
dos meus interlocutores Guarani em Pinhalzinho também foram meus
interlocutores na cidade de Maringá, onde iniciei meu trabalho de campo. Ao
chegar na aldeia, encontrei dois tipos de conhecidos: aqueles que moravam em
Pinhalzinho, mas que eu já havia visto em algum evento ou visita que faziam a
parentes na cidade de Maringá, e aqueles que moravam em Maringá e
estavam na aldeia para visitar algum parente. É notável que há uma
movimentação de pessoas e relações que conectam a aldeia de Pinhalzinho e
a cidade de Maringá. Ainda, ao atentar para as narrativas Guarani, percebe-se
que os caminhos e conexões se estendem para muitas outras aldeias e
cidades. Assim, a proposta neste capítulo é pensar esses caminhos guarani e
as extensões de dons e cultura a partir de um ponto de referência que é a
cidade de Maringá, um lugar que não tem aldeias ou TIs, mas que conta com
uma notável presença indígena.
As movimentações e extensões das relações guarani é um dos
assuntos clássicos na literatura etnológica específica. Ao longo do século XX a
principal categoria interpretativa para esta movimentação espacial dos povos
Guarani foi a “migração”. Em 1914, na clássica obra de Nimuendajú ([1914]
1987) sobre os mitos de criação dos Apapocúva-Guarani, o autor afirma a
hipótese de que os Guarani migravam em direção ao mar em busca de um
lugar livre da maldade que existe nesta terra em que vivemos, que seria
caracterizada como efêmera, frágil e instável. O lugar almejado é amplamente
conhecido na literatura como Terra Sem Mal (Yvy Marã’ey) e foi um dos
assuntos mais recorrentes nas pesquisas posteriores com povos Guarani.
Métraux (1927), por exemplo, sob essa mesma chave interpretativa, baseou-se
em relatos de missionários e viajantes do século XVI e XVII para analisar as
migrações de diversos povos Tupi e Guarani do passado. Melià (1990), afirma
71
que Métraux fez da hipótese de Nimuendajú uma “prova histórica” ao realizar
uma leitura na “chave Apapocúva” ou “chave Nimuendajú” sobre outros
indígenas de matriz Tupi-Guarani.
Na segunda metade do século XX, os trabalhos de Schaden ([1954]
1974), Pierre ([1974]1990) e Hélène Clastres ([1975] 1978), também trazem a
imagem de “migrações” motivadas pela “religião”, e já no final deste século, a
pesquisa de Ladeira ([2014] 1992) com os Guarani Mbya do litoral também teve
destaque com uma abordagem neste mesmo sentido. Ainda no final do século
XX surgiram algumas críticas e propostas alternativas a essa interpretação via
“religião”. Para Melià (1990), por exemplo, a questão da busca da Terra Sem
Mal estaria associada à manutenção do “tekoha”, um “modo se ser”
caracterizado pela manutenção de uma economia de reciprocidade e não
apenas por um impulso profético. Segundo o autor, “o tekoha significa e produz
ao mesmo tempo relações econômicas, relações sociais e organização políticoreligiosa essenciais para a vida guarani [...]” (apud Melià, 1990, p. 36).
Outra proposta de leitura vem de Garlet (1997) que realizou um estudo
étno-histórico com os Guarani Mbya no Rio Grande do Sul e trabalhou com a
ideia de “mobilidade” ao invés de “migração”. O autor afirma que o
deslocamento dos Mbya estaria associado a um processo de expansão de um
território original localizado no Paraguai Oriental. Porém, as frentes de
expansão colonialistas rumo aos territórios indígenas teria acarretado em um
processo de “desterritorialização” e “reterritorialização” que caracterizaria as
dinâmicas da mobilidade mbya na história recente do Rio Grande do Sul.
Valéria Assis (2009), que acompanhou de perto o trabalho de Garlet, em um
texto publicado após a morte do autor, afirma que o mesmo,
[...] apresentou dois conceitos importantes para compreender a dinâmica
socioespacial Mbyá, o de desterritorialização e reterritorialização [inspirado
em Deleuze e Guattari, {1980} 1995], posteriormente os reviu, sem,
contudo, ter tido tempo de publicá-los. Essa revisão consiste na
substituição de desterritorialização por desespacialização. A alteração se
deve ao fato de que a desterritorialização sugere que uma dada região ou
local ocupado no passado é abandonado, deixando de pertencer ao
conjunto espacial entendido como seu território. Garlet rebatizou o termo
para desespacialização porque, embora muitos desses lugares não sejam
mais ocupados pelos Mbyá do presente e, para alguns não haja o desejo
de um dia voltar a ocupá-los fisicamente, tais lugares continuam a fazer
parte do território Mbyá ao se manter em sua memória coletiva [...].
72
O conceito de reterritorialização se manteve para compor a compreensão
dessa dinâmica. A reterritorialização vem a ser a ação contínua do grupo
de incorporar novos espaços ao seu território. E essa reterritorialização
acontece na maior parte das vezes em reação aos processos de
desespacialização. Assim, levando em consideração essas premissas é
que se entende os movimentos seguintes da história recente dos Mbyá no
Rio Grande do Sul (p. 95-96, grifos da autora).
Assim, a noção de território mbya para Garlet seria de um espaço
descontínuo e fragmentado ligado não apenas a um ideal de profetismo, mas
principalmente ao potencial ecológico do ambiente. A abertura para a
incorporação de novos espaços é uma das características diacríticas da
mobilidade dentro desta abordagem.
Entre as pesquisas com este tema publicadas após os anos 2000, o
trabalho de Pissolato (2007) ganha destaque. Esta trabalhou, principalmente,
com os Guarani Mbya no litoral do Rio de Janeiro e enfatiza uma visão crítica
às análises pautadas na ideia de uma “ética religiosa” e “modo de ser” guarani
como categorias essencialistas. Para a autora, a mobilidade mbya está
relacionada a uma cosmologia sobre a duração da pessoa. Cada Mbya recebe
o “nhe’e” quando criança, o princípio vital de origem celeste que a autora
conecta a uma sabedoria xamânica essencial a condição de humano. A vida
humana seria entendida como imperfeita e, nesse sentido, os Mbya estariam
continuamente em busca das melhores condições de durabilidade na condição
de vivente, por exemplo, expandindo relações em várias localidades numa
dinâmica de fabricação e atualização de parentesco. Assim, nessa abordagem,
múltiplos caminhos e experiências pessoais em busca de saberes e
capacidades para a vida compõem a dinâmica da mobilidade. Estas
experiências seriam intrínsecas a uma cosmologia acerca da condição
ambígua de humano – de ascendência divina, porém vivida no mundo terreno
imperfeito.
No caso dos meus interlocutores, que se autodenominam com maior
frequência como Guarani e/ou, em algumas situações, como Guarani
Nhandewa, a questão da mobilidade também emerge como algo relevante. Em
Pinhalzinho ouvi muitas narrativas acerca das mudanças de aldeias, viagens e
outras andanças. Em uma conversa com D. Vilma e sua filha Isabel, por
exemplo, ambas me contaram de suas trajetórias por aldeias e cidades.
73
Quando lhes perguntei sobre a possibilidade de relação entre essas andanças
e algum tipo de anseio espiritual ou busca por um lugar livre de imperfeições,
elas me responderam que “não sabiam disso não” e afirmavam que os índios
andavam porque era uma tradição.
A mobilidade entre meus interlocutores parece estar vinculada a uma
forma de se relacionar e experienciar o mundo que caracteriza o que eles
chamam de cultura, tanto no sentido de algo que os Guarani realizavam no
passado, quanto como um modo de socialidade específica. Esta mobilidade
evidencia uma contínua busca pessoal por saberes e capacidades que é
semelhante às descrições de Pissolato (2007) em sua pesquisa, com a
diferença de que entre meus interlocutores não é evidente um pano de fundo
cosmológico ligado à ambiguidade da condição humana. Em Pinhalzinho e
Maringá, a mobilidade guarani aparece em relação aos dons pessoais, se
estende por múltiplas conexões terrenas e celestes e só existe na própria
experiência prática do movimento.
Assim, a mobilidade está relacionada tanto a uma forma de socialidade
guarani, que pode ser chamada de cultura em alguns momentos, quanto às
experiências e habilidades pessoais, os dons. Não é toda pessoa Guarani que
tem o dom de viver na cidade ou ir para a universidade. Experiências e
relações específicas conectam pessoas a lugares específicos. Entre meus
interlocutores que vivem na cidade de Maringá, os principais elementos que
mantêm estas relações entre os Guarani e a cidade são duas instituições,
especificamente a ASSINDI e a UEM. A proposta neste capítulo é pensar
essas relações a partir da perspectiva dos Guarani.
Neste sentido, com base na experiência com os Guarani em Maringá,
que vieram de diferentes aldeias, e tomando a experiência em Pinhalzinho
como material para conexões, neste capítulo proponho pensar esses
movimentos e relações que se estendem entre aldeias e cidades a partir da
própria perspectiva dos Guarani. Atento a este movimento, tornam-se vivível as
extensões da cultura e os dons guarani no contexto maringaense.
74
2.1.
Mobilidade guarani: caminhos da aldeia para a cidade
Em Maringá há pessoas Guarani que já viveram em diferentes aldeias
localizadas no Norte do Paraná e no centro-oeste paulista. Também há aqueles
que já viveram em outras cidades, principalmente nas proximidades das
aldeias. Quando ampliamos para as narrativas sobre os lugares onde vivem
seus parentes, percebemos como as relações guarani se estendem por
múltiplos lugares. Uma das questões que emerge ao se fazer pesquisa com
indígenas em contextos urbanos diz respeito ao tipo de olhar etnográfico que é
exigido do antropólogo. Olhando para a literatura, percebe-se que alguns
esforços vêm sendo feitos nesta direção.
A presença de indígenas nas cidades brasileiras não é um fenômeno
recente e há uma crescente produção bibliográfica que busca, de forma ainda
incipiente, formular um campo de debates sobre estas situações em
particular62. Um dos pesquisadores pioneiros neste debate foi Cardoso de
Oliveira (1968), que propôs uma abordagem focada no “contato interétnico” ao
trabalhar com os Terena “citadinos”. O autor é conhecido por desenvolver o
conceito de “fricção interétnica” e foi um expoente na crítica à noção de
“assimilação” e ao conceito de “aculturação”. Em suas principais obras sobre
“relações interétnicas”, Cardoso de Oliveira defendia que os indígenas se
“integravam” à sociedade envolvente, sem perder a sua “identidade étnica”
específica (cf. 1968, 1976a, 1976b, 1996). Esta abordagem influenciou
pesquisas como as de Marcos Lazarin (1981), Leonardo Fígoli (1982) e Jorge
Romano (1982), que, apesar das especificidades de seus trabalhos, segundo
Melo (2009), convergiam na ideia de que a situação do “índio citadino” era
marcada pelas relações assimétricas entre indígenas e não indígenas, o que
era reproduzido na vida social, política, econômica e ideológica, e corroborava
com a marginalização do indígena.
62
Muito dos debates recentes foram estimulados pelos dados do Censo Demográfico de 2010 do IBGE,
segundo o qual das 896.900 pessoas autoidentificadas como indígenas que vivem no Brasil, 315.180
residem em áreas urbanas, ou seja, 36,2%. Não apenas a quantidade, mas a perspectiva de um
espalhamento das populações indígenas por áreas urbanas chamou atenção de especialistas. Na região
sul, por exemplo, estima-se que em 1991 residia pelo menos um indígena autodeclarado em 39,3% dos
municípios, esse número cresceu para 59,6% em 2000 e 75,8% em 2010 (IBGE, 2012). Este assunto
repercutiu em publicações como Osà i dígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações
o à aseà oà uesitoà o àouà aça à IBGE,
àeà oàsi p sioà Osài díge asà oàCe soà
:àp i ei asà
a lisesà eà de ates ,à oo de adoà po à Jo oà Pa he oà deà Olivei aà UF‘J à aà ªà ‘eu i oà B asilei aà deà
Antropologia, ocorrida na cidade de São Paulo (SP) entre os dias 2 e 5 de julho de 2012.
75
Seguindo por outros caminhos que não a da “fricção interétnica”, outra
abordagem
que
vem
ganhando
espaço
na
antropologia
brasileira
contemporânea é a da “etnologia urbana” (Andrade, 2010; 2012; Andrade e
Magnani, 2013). Em um dos primeiros trabalhos nessa linha, José A. Andrade
(2012), utiliza a noção de “indigenização da modernidade”, de Sahlins (1997a,
1997b), e a perspectiva etnográfica “de perto e de dentro”, proposta por
Magnani (2012), sobretudo, o conceito de “circuito”, para pesquisar a vida
urbana dos Sateré-Mawé, em Manaus. Esta é uma abordagem que propõe
aproximações teórico-etnográficas entre os campos da etnologia indígena e da
antropologia urbana.
Ainda, alguns pesquisadores percorrem caminhos que não constituem
uma proposta de abordagem específica para pensar indígenas na cidade,
como Lasmar (2005) e Andrello (2006). A primeira, investiga o deslocamento
de populações indígenas para a cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM) e
mobiliza um arcabouço teórico, inspirado principalmente em Gow (1991) e
Viveiros de Castro (2002), que lhe permite explorar a perspectiva dos índios do
Uaupés sobre a relação de contato e a ida para o mundo dos brancos.
Andrello (2006), por sua vez, realiza uma pesquisa particularmente
interessante por abordar um povoado indígena multiétnico (Iauaretê) em vias
de urbanização. Neste caso, os indígenas não precisaram sair de seu povoado
para terem contato com a vida urbana. Atento à perspectiva indígena sobre a
ideia de “civilização”, o autor questiona o pressuposto de que o mundo dos
brancos – urbanização, monetarização, economia de mercado, etc. – seja
necessariamente um desestabilizador dos laços internos dos grupos indígenas.
Com outra perspectiva sobre a questão, ele mostra como os indígenas se
apropriam do mundo dos brancos dentro de uma lógica própria.
Tanto Lasmar quanto Andrello não propõem uma abordagem
específica para pensar indígenas em contextos urbanos, mas se comprometem
com uma tarefa de privilegiar as perspectivas indígenas63. Busquei trazer este
63
É importante destacar que, após os anos 2000, vêm crescendo na antropologia o interesse em pensar
as relações entre indígenas e as cidades. Para conferir outros trabalhos, ver Mota (2000), Silva (2001),
Paladino (2006), Melo (2009), Ponte (2009), Athias e Lima (2010), Nunes (2010), Espíndola (2013),
Rosado e Fagundes (2013), Sertã, Tambucci e Chiqueto (2013).
76
comprometimento em minha abordagem no primeiro capítulo desta dissertação
e proponho mantê-lo neste segundo. No entanto, agora, privilegio não mais as
perspectivas do Guarani em Pinhalzinho, mas sim as dos Guarani na cidade de
Maringá.
Assim, nos dois tópicos seguintes proponho seguir alguns dos múltiplos
caminhos e extensões guarani a partir de narrativas de vida enunciadas em um
ponto específico dessas relações: a cidade de Maringá. Os Guarani me
descrevem seus caminhos anteriores à Maringá e suas experiências ao longo
destes trajetos.
2.1.1. Eu não me considero fixo apenas de uma aldeia: caminhos
anteriores a Maringá
Como já foi mencionado, Maringá não tem TIs ou aldeias. A maioria
dos meus interlocutores Guarani vivem na cidade há poucos anos e vieram de
aldeias do norte do Paraná ou interior de São Paulo. Alguns conheciam
Maringá apenas por nome, outros já haviam visitado a cidade antes de morar.
Este é o caso de Eliane, uma das primeiras Guarani com quem conversei em
minha pesquisa de campo.
Eliane tem 24 anos, é moradora da ASSINDI e estudante do curso de
Letras (Português) na UEM. Ela chegou a Maringá com Rodrigo, seu esposo, e
dois filhos no início de 2014. Sobre sua trajetória anterior a Maringá ela conta
que nasceu na aldeia de São Jerônimo (TI São Jerônimo da Serra, São
Jerônimo da Serra/PR), onde viveu com sua mãe até por volta dos dois anos
de idade. Depois, ambas se mudaram para a aldeia de Laranjinha (TI
Laranjinha, Santa Amélia/PR), onde passou a maior parte de sua vida. Aos 16
anos, ela morou em Pinhalzinho, mas logo se mudou para a aldeia
Nimuendajú, onde ela se casou com Rodrigo. Tempo depois, retornou para
Pinhalzinho com o marido e Jean, o primeiro filho do casal. A família
permaneceu nesta aldeia durante oito meses até que se mudaram para a
cidade de Maringá. Perguntei para ela o motivo pelo qual ela havia se mudado
tantas vezes ao longo de sua vida. Ela diz:
77
Eu vejo que tem bastante disso de ficar mudando, sabe? Às vezes não
está bom num lugar, acha que vai ser melhor em outro. Então tem muito
disso dos indígenas ficarem mudando de aldeia. Eles escolhem aquelas
que são da mesma etnia. A gente é Guarani então a gente procura uma
aldeia guarani. Já tem mais dificuldade pra ir pra uma aldeia que não é da
mesma etnia, porque às vezes não dá muito certo [...]. E pra minha mãe foi
assim, a minha mãe nasceu no Laranjinha, viveu muito tempo ali. Aí eu
não sei o que foi o motivo dela ter ido pra essa aldeia [...] que é ali perto de
São Jerônimo. Então a gente viveu ali, mas era muito difícil também.
Naquele tempo era muito difícil pra estudar, aí tinha meus irmãos, era
muito difícil pra trabalhar, a minha mãe criou a gente sempre sozinha. Ela
tinha que tratar meu irmão também, que nasceu com problema, daí ficava
mais perto em Santa Amélia, era mais fácil pra cuidar do problema dele.
Então ela voltou pra Laranjinha e a gente ficou por ali mesmo.
Pergunto se ela tem irmãos e onde estão. Ela responde:
Eu tenho nove. Nove irmãos. Comigo é dez [...]. Agora está tudo
espalhado, porque cresceram, cada um tem a sua vida. Já, praticamente,
todos casados. Então, aí já separou um pouco, [...] é tudo em aldeia que
mora, só tem uma que mora no estado de São Paulo [Laranjal Paulista]
que é fora da aldeia.
Em seguida pergunto se seus irmãos que moram em aldeias vivem no
estado do Paraná, ela diz que sim, mas logo se lembra que um deles se mudou
para Araribá há pouco tempo. A fala de Eliane traz uma série de elementos
interessantes para pensar este complexo de relações guarani. Ela destaca que
estas mudanças entre lugares são comuns entre os Guarani, mas não aponta
uma causa ou explicação última para as mesmas. Afirma também que
geralmente muda-se para aldeias da mesma etnia, o que indica uma
manutenção e produção de certa diferenciação com relação a outros povos
indígenas64. Ao mencionar os seus irmãos e atentando para as narrativas
acerca dos lugares onde viveu, percebe-se que Eliane possui relações de
parentesco estendida por múltiplos lugares, algo que é comum a outros
interlocutores.
Eliane está em Maringá porque foi aprovada no vestibular específico
para indígenas do Paraná e escolheu a UEM para realizar a sua graduação.
Essa escolha não foi aleatória, pois ela já conhecia e cidade e sabia da
existência da ONG indigenista que poderia oferecer algum apoio ao longo de
sua formação. Uma de suas irmãs, Carmem, foi a primeira indígena a se
64
Essa diferenciação não impede relações e associações com outros povos, inclusive casamentos e
produções de novas formas de autodenominações, como veremos no Capítulo III.
78
graduar na UEM, se formou em Pedagogia e recebeu o diploma em 2008. Ela
foi moradora da ASSINDI e recebeu a visita de Eliane antes que esta se
tornasse universitária. Depois de formada Carmem conseguiu um emprego na
escola da aldeia Barão de Antonina (TI Barão de Antonina, São Jerônimo da
Serra/PR), onde vive atualmente com seu marido.
Carmem estimulou outros Guarani além de Eliane a seguir a carreira
universitária. No ano de 2008, quando ainda estava em Maringá, seu filho Luís,
com 17 anos na época, mudou-se para a cidade para fazer o ensino médio
perto da mãe. Hoje, aos 24 anos, o jovem é estudante do curso de Direito na
UEM e mora na ASSINDI, bem ao lado da casa de sua tia Eliane. Certa tarde
na casa de Luís, pergunto de que aldeia ele veio, ele ri e responde:
Então, é complicado hein [risos]. Porque assim, eu nasci mesmo [...] em
São Paulo, na mesma aldeia que o Rodrigo [Nimuendajú, TI Araribá]. Daí
como lá na reserva não tinha hospital, eu nasci na cidade, em Duartina. Eu
só nasci lá. Nessa época, a minha família, a minha avó, eles moravam no
Barão de Antonina, onde minha mãe mora mesmo. Só que eu já morei no
Pinhalzinho... e assim, em todas as aldeias que eu morei, eu fiquei meio
que data igual. Cinco anos em uma, cinco anos de outra. Por causa que
minha mãe, até antes dela se formar, como ela já tinha magistério, [...] ela
trabalhava em escola, porque há dez anos atrás, não tinha professores
[indígenas] formados como tem agora, que o pessoal indígena está se
formando na área na educação e outros setores também. Então, por ela
estar sempre trabalhando, daí a gente ficava muito naquela: conforme
oferecia um serviço aqui, acabava aqui, oferecia outro... Então eu sempre
fui de andar muito. Então no geral assim... eu não sei, eu não me
considero fixo apenas de uma aldeia, eu poderia falar que eu sou do
Laranjinha, porque a minha mãe veio de lá, mas eu não me considero
somente de lá. Eu já morei no Pinhalzinho, Barão [de Antonina],
Laranjinha, Pinhalzinho, Apucaraninha... Então, assim, eu gosto de todas
por igual... (meus grifos).
Luís não se considera fixo. Ao assumir tão proposição, o jovem não
apenas evidencia o movimento entre aldeias, mas identifica-se com a
mobilidade em si. Tal enunciação corrobora pensarmos a mobilidade como
uma característica particular da socialidade guarani. Luís nasceu em Durtina,
morou em Araribá, mudou-se para Barão de Antonina, Apucaraninha65 (TI
Apucarana, Tamarana/PR), Laranjinha, Pinhalzinho e atualmente está em
Maringá. O jovem universitário destaca ter boas relações em todas essas
65
As TIs Barão de Antonina e Apucarana, ou Apucaraninha como é mais conhecida, são habitadas
majoritariamente por pessoas Kaingang. O pai de Luís é Kaingang, motivo pelo qual ele mantém relações
de parentesco com os moradores dessas aldeias.
79
aldeias, o que o motiva a não se definir como de uma ou de outra. Sua tia
Eliane, por outro lado, apesar de ter vivido em várias aldeias, se considera de
Laranjinha por ter vivido lá por mais tempo, mesmo não sendo a última na qual
viveu antes de ir para Maringá.
Nas narrativas dos primos Rodrigo e Pedro emergem a perspectiva de
um movimento de relações entre as aldeias do norte do Paraná e Araribá, no
interior de São Paulo. Rodrigo é estudante do curso de Direito, tem 23 anos e
viveu na aldeia Nimuendajú a maior parte de sua vida (até por volta de 2013).
De Araribá, mudou-se com Eliane, sua esposa, para Pinhalzinho, onde ficaram
por volta de oito meses antes de irem para Maringá. Atualmente, como já
mencionado antes, eles moram juntos com os dois filhos na ASSINDI. Já
Pedro, de 25 anos, é estudante do curso de Enfermagem na UEM e mora em
uma casa alugada, embora já tenha morado na ASSINDI durante o período
aproximado de um ano. Assim como Rodrigo, também morava na aldeia
Nimuendajú quando nasceu. Viveu lá até os 10 anos de idade e mudou-se com
os pais para Pinhalzinho. Três anos depois foram para Laranjinha, onde sua
família se encontra até hoje.
Em direção oposta a esta última mudança da família de Pedro,
Marlene, filha do txamõi Awa Djemõwytsu e D. Cleide, nasceu em Laranjinha e
ainda muito jovem se mudou com o pai e a mãe para Pinhalzinho. No início de
2015, com 29 anos, a jovem Guarani era estudante do curso de Letras
(Português e Inglês), moradora da ASSINDI e detentora de um histórico
bastante interessante dos lugares em que viveu antes de Maringá. Por volta
dos 11 e 12 anos voltou a morar em Laranjinha e, em seguida, foi para
Pinhalzinho mais uma vez. Paralela a essas mudanças ela trabalhou e morou
em cidades com várias famílias de brancos desde os oito anos de idade. Em
uma tarde, sentados na área de sua casa junto ao seu marido Fábio e com os
filhos e a filhas correndo e brincando entre nós, Marlene me contou como era
“morar dentro e fora da aldeia”:
Em Santa Amélia, quando eu fui pra lá, eu já fui morar com uma família,
pra mim trabalhar, aí eu morava ao mesmo tempo [...]. Aí eu cuidava de
velhinho, cuidava de bebê, passava roupa dos outros, sabe? Menos
cozinhar, porque eles falavam que eu era muito pequena pra cozinhar
[risos]. Tinha família que eu morava dois, três anos, tinha família que eu
80
morava cinco, seis anos... E até eu crescer. Comecei desde os oito anos
acho. [...] Eles falavam assim “ai, eu conheço uma menina, moro com ela,
não sei o que lá, sabe lá, quero levar ela comigo”. Daí minha mãe falava
“ah, conversa com ela...”. Aí, a última vez que eu fui morar com uma
família eu fui mais longe da aldeia, eu não morei tão perto assim da minha
mãe. Eu morei lá, acho que três anos com essa família. Eu morei em
Siqueira Campos. [...] Mas antes disso eu já morava com uma família em
Guapirama. Seis anos que eu morei com essa família.
Pergunto se ia pra aldeia com frequência durante esse tempo em que
morava e trabalhava para essas famílias nas cidades, ela diz que não.
Não, esse tempo não. [...] Eu estudava e trabalhava. E eu levava dinheiro
pra minha mãe, família, queria ajudar meus irmãos. E eu vivia assim.
Minha mãe fala que eu cresci mais com os outros do que com ela. Porque
assim, eu ia visitar eles no domingo de manhã e a noite já voltava. Agora,
essa ultima família com quem eu morei três anos, eu fui [visitar minha
família] uma vez no natal e de vez em quando eu ia no final de semana,
que eles me levavam pra eu ver meu pai e minha mãe. Eles falavam assim
“Marlene, você tem que se desligar do seu pai e da sua mãe”. “Não...” eu
falava assim, “eu tenho que ir no natal”. [...] Eles perguntaram assim
“Marlene, você quer ir ver sua família?”, eu falei “eu quero”. Só que não
deixaram eu ir ver minha família. Daí eles falaram “amanhã nós te
levamos”. Eu falei “eles estão me enrolando pra eu não ir ver minha
família”. Daí no dia eu peguei e falei assim “eu vou lá ver eles, porque a
gente já tinha combinado”. Eles falaram assim “Então vai então”. [...] Eu fui
com meu dinheiro.
No caso de Marlene, a circulação entre aldeias é marcada também
pela circulação pelas cidades próximas das TIs onde sua família morava. Em
uma entrevista concedida a uma professora da UEM para um livro institucional
da ASSINDI, Marlene conta que viveu dos oito aos dezoito anos na cidade e foi
criada por pais adotivos brancos. Na ocasião ela diz que preferia viver na
cidade, mas atualmente, de acordo com as conversas que tivemos, Marlene
planeja voltar para Pinhalzinho junto com seus filhos e marido66.
Em algumas outras narrativas a mobilidade parece não estar tão
presente, mas ainda assim existe uma perspectiva de mover-se. Fábio, marido
de Marlene, tem 29 anos, é estudante do curso de Direito na UEM e mora na
ASSINDI. Viveu na aldeia de Laranjinha desde quando nasceu até se mudar
para Maringá em 2004. É um dos meus interlocutores Guarani que está há
mais tempo na cidade. O caso de seu irmão Marcos, jovem de 25 anos,
66
Quando fui para Pinhalzinho, a família de Marlene estava entre as pessoas conhecidas que lá
encontrei. Ela, seu marido, seus filhos e filhas estavam presentes no mborai que participei e estão entre
os principais Guarani que agenciam as práticas de reza na cidade de Maringá.
81
também morador na ASSINDI e estudante do curso de Pedagogia na UEM, é
parecido. Este também morou apenas em Laranjinha antes de se mudar para
Maringá, em 2009. No entanto, ambos os jovens não pretendem ficar em
Maringá ou voltar para a aldeia de onde vieram. Devido ao casamento com
suas primas que também vivem em Maringá, respectivamente Marlene e Laura,
e as relações com a espiritualidade guarani que cultivam com o sogro, o txamõi
Awa Djemõwytsu, eles planejam morar em Pinhalzinho depois de terminarem
seus cursos de graduação.
Em todas essas narrativas a mobilidade aparece como um elemento
comum. Cada Guarani em seus caminhos pessoais e conectando-se uns aos
outros, como na perspectiva dos dons e do nhandereko, que se compõem de
múltiplas singularidades guarani. Essas diversas experiências de trajetórias
narradas pelos Guarani apontam para uma mobilidade entre aldeias e cidades
que é construída por vivências múltiplas e diversas. Estes movimentos
possuem diferentes intensidades de fluxos dispersos por caminhos que estão
sempre sendo desenhados. Alguns caminharam mais, outros menos. Depende
da experiência pessoal de cada Guarani.
Atenta às experiências pessoais, Pissolato (2007), também chegou em
uma dinâmica de relações guarani, sobretudo de parentesco, estendidas por
diversas
localidades.
Ela
nominou
este
complexo
de
relações
de
“multilocalidade mbya” e propõe compreender no plano estrutural os resultados
das orientações pessoais na vivência do parentesco, em outros termos, os
aspectos
estruturais
da
multilocalidade.
Aqui,
por
outro
lado,
essa
“multilocalidade” é entendida no próprio plano das experiências pessoais. É na
vivência e percepção da não fixidez, como disse Luís, que a mobilidade se
torna visível.
A ideia de relações estendidas por múltiplos lugares é percebida e
enunciada por meus interlocutores, mesmo quando eles próprios não
vivenciaram certos deslocamentos. Quando perguntei para Marcos e sua
esposa Laura, jovem com 23 anos e estudante do curso Pedagogia na UEM,
se eles tinham parentes em alguma aldeia em São Paulo, eles responderam
que deviam ter, mas não tinham certeza. Essa percepção de relações de
82
parentescos dispersas em diferentes locais que eles próprios não vivenciaram
também se refere a algo experienciado – seja num engajamento prático no
mundo material, ou a partir de histórias que se ouve, por exemplo, sobre
parentes que moram longe. Considero aqui as reflexões de Ingold (2012) ao
questionar a oposição entre o real e o imaginado, pois histórias e narrativas
também proporcionam experiências e constroem realidades. Assim, as
percepções de relações estendidas por vários locais e de não fixidez entre os
Guarani são sempre apreendidas na experiência.
Ainda, é importante destacar que esse movimento e extensões por
múltiplos locais não se refere a uma abstração sem limites. Costumava
perguntar para meus interlocutores se eles tinham parentes ou qualquer outro
tipo de relação com os Guarani da região de Guaíra e Terra Roxa, no oeste do
Paraná – local onde realizei pesquisa no período da graduação. Nunca recebi
uma resposta afirmativa. Entre os Guarani que conheci em Maringá, as
andanças e relações se estendem principalmente entre as aldeias Nimuendajú,
Pinhalzinho, Laranjinha e Posto Velho (TI Yvyporã Laranjinha)67, a primeira no
estado de São Paulo e as outras no Paraná. Outras aldeias como São
Jerônimo, Apucaraninha e Barão de Antonina, também são pontos relevantes
neste compósito de relações guarani, embora apareçam menos nas narrativas
de trajetórias dos meus interlocutores68. Portanto, essas relações por mim
pesquisadas possuem certos comprimentos, alcançam certos lugares e outros
não. Mas os limites desses alcances nunca cristalizam, pois estão sempre em
contínuo fazer.
67
A TI Yvyporã Laranjinha (Cornélio Procópio, Abatia, Ribeirão do Pinhal/PR), embora não tenha sido
mencionada ainda, é uma aldeia, conhecida como Posto Velho, que está em processo de demarcação.
De acordo com um dos meus interlocutores, a ocupação definitiva da área ocorreu após uma divisão
política interna na aldeia de Laranjinha. É uma aldeia reconhecida por serem fortes na cultura. Alguns
dos meus interlocutores em Pinhalzinho já moraram no local, mas nenhum dos que vivem em Maringá.
Ainda assim, grande parte dos meus interlocutores em geral tem parentes e costuma visitar o local. A TI
Yvyporã Laranjinha já foi declarada e aguarda o processo de homologação, cf.
http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas. Acesso em 19 de setembro de
2016.
68
Em Pinhalzinho conheci também pessoas que haviam morado em outras aldeias e/ou mantinham
relações de parentesco em outros lugares que não estes citados, como na aldeia Rio das Cobras (Espigão
Alto do Iguaçu e Nova Laranjeiras /PR) e Ilha da Cotinga (Paranaguá/PR).
83
2.1.2. Uma ideia que vai amadurecendo: sobre ir para a cidade
Em geral, meus interlocutores Guarani, tanto em Maringá quanto em
Pinhalzinho, afirmam preferirem a vida nas aldeias ao invés das cidades. Eles
dizem que na aldeia eles podem viver na cultura. No entanto, ainda que a vida
nas cidades seja preterida, há um constante fluxo de pessoas Guarani em
direção à Maringá que conecta a cidade a diversas aldeias.
Na pesquisa de Pissolato (2007), a autora aponta a “busca por
satisfação pessoal” como o motivo que leva os Mbya a se deslocarem:
Seja para dar fim a uma situação de vida que não esteja trazendo
contentamento ou para buscar algo de melhor que possa vir pela frente, os
deslocamentos são sempre traduzidos em termos da satisfação pessoal
dos envolvidos. Esta é uma marca das narrativas sobre o deixar e buscar
lugares. E, quanto a isto, se as condutas diferem bastante entre indivíduos,
com tendências distintas e conforme suas fases de vida, há contudo um
consenso: a legitimidade desta busca de satisfação em novas situações.
[...] Minha impressão é que este é um ponto absolutamente central, o da
experiência a se viver (p. 134, grifos da autora).
Silva (2007), por sua vez, ao acompanhar o movimento de caminhar
entre aldeias e cidades dos Guarani na tríplice fronteira do Brasil, Argentina e
Paraguai, afirma que não encontrou nos seus acompanhantes nenhuma razão
orientadora para os deslocamentos que não seja “as razões pessoais
apresentadas por cada indivíduo, [...] como ir ao banco, visitar um parente,
fazer compras na cidade, trabalhar, dentre muitas outras [...]” (p. 147).
Entre meus interlocutores em Maringá, as motivações também são
sempre pessoais, mas algumas narrativas trazem elementos que se conectam
uns com os outros. Num final de tarde na UEM, sentados em um dos bancos
da universidade sob algumas árvores, Pedro se lembra de quando trabalhava
em lavouras para fazendeiros.
No ensino médio eu comecei a estudar à noite, porque eu trabalhava na
lavoura. [Fazia] de tudo um pouco. Colhia café, colhia algodão, rancava
feijão, tudo manual... alfafa né, tudo serviço pesado. Na época [pagavam]
20, 25 reais por dia. Bem pouco. [...] Trabalhei bastante na roça. Daí à
noite a gente ia pra escola.
Na época ele estudava em uma escola fora da aldeia. Junto com
aproximadamente outros quinze estudantes guarani, voltava da escola de
ônibus e chegava na aldeia já tarde da noite. No dia seguinte, acordava às
84
cinco e meia da manhã para trabalhar. Atualmente, como estudante
universitário na UEM, Pedro diz que prefere os estudos do que a antiga rotina
de trabalho, “estudar bastante!”.
Marcos também teve experiências com trabalho na lavoura antes de se
mudar para Maringá. Ele diz que trabalhava com outros Guarani nas roças
dentro da aldeia, mas o que conseguiam plantar e colher não era suficiente
para se manterem. Assim, ele acabava saindo para trabalhar nas fazendas das
redondezas. Por isso, ele diz que seu pai sempre o incentivava a sair da aldeia
para fazer um curso universitário. Quando assim o fez, escolheu Maringá,
dentre outros motivos, porque Fábio, seu irmão, já morava na cidade.
Eliene me conta que sempre quis estudar e que as condições de vida
na aldeia estavam difíceis. Ela diz que muitos Guarani buscam trabalho
assalariado na aldeia ou nas cidades próximas, mas afirma que não haviam
muitas oportunidades: “pra mim e pro meu marido estava difícil, a gente tem
dois filhos né...”. Quando perguntei ao seu esposo, Rodrigo, o motivo de eles
estarem em Maringá, ele diz que “a gente veio apostando no vestibular
mesmo...”. Rodrigo, que estuda Direito, me fala do sentimento de injustiça que
o levou a sair da aldeia para fazer o curso. Ele diz que:
Desde novo eu já tinha essa ideia, se não fosse servir o exército, ia
procurar alguma dessas áreas mesmo, mais do Direito ou mais polícia...
alguma coisa dessas áreas. Aí [a ideia] amadureceu quando aconteceu na
família uma tragédia que ficou impune. Aí jogava na mão da FUNAI e a
FUNAI também não resolvia, por causa que era muito grande pra ela a
causa. Então, até mesmo pelos parentes na reserva... Na parte de
demarcação, fica muito difícil pela FUNAI, porque os fazendeiros
compravam muito eles, daí eles iam mexendo até uma parte e daí de lá
não sei o que acontecia que eles sumiam. Então aí eu vim pensando
nessas partes e veio amadurecendo por essa causa que aconteceu na
família também, aí eu me interessei mais ainda. [...] O meu tio foi
assassinado por policiais, foi inocente, aí não teve julgamento e não
aconteceu nada, então ficou impune isso. Aí chocou muito a família. Teve
perdas na família através disso. [...] Depressão, morte... [...] Foi dentro da
reserva que aconteceu isso, mas aí o tempo foi passando, não teve
resultado não. Foi arquivado o processo e não deu em nada (meus grifos).
Rodrigo conta sua história pessoal e fala do sentimento de injustiça que
o impulsionou a fazer o curso de Direito. De acordo com sua fala, sair da aldeia
é um processo que vai amadurecendo a partir de experiências vivenciadas. O
processo de amadurecimento
é composto por experiências pessoais
85
vivenciadas, mas também pelas projeções e expectativas que se cria acerca do
lugar para onde se vai. Em Maringá, em geral, os Guarani já conheciam ou
haviam ouvido falar da cidade antes de irem morar no local. Em alguns casos,
esse conhecimento se baseia em breves visitas e passagem pela cidade.
Eliane, por exemplo, já havia visitado a ASSINDI quando sua irmã Carmem
morava no local, portanto, ela e o marido sabiam da existência de um lugar no
qual eles possivelmente poderiam morar. Pedro, por sua vez, diz que quando
tinha 14 anos foi para Maringá fazer uma apresentação de dança na ASSINDI
– do grupo de canto e dança da aldeia de Laranjinha. Depois disso, pensou
consigo, “Quem sabe um dia não venho morar aqui?”. E assim o fez. Anos
depois retornou a Maringá para estudar.
O caso de Pedro é interessante. A partir de uma experiência aos 14
anos de idade, passou anos mantendo a expectativa de voltar para Maringá.
Ele diz que tinha conhecidos que moravam na ASSINDI e, provavelmente,
ouvia notícias e relatos sobre a cidade, a universidade e a ONG. Atualmente,
ele faz Enfermagem, mas antes, já conhecia indígenas que faziam o mesmo
curso. Esses elementos juntos com sua rotina de trabalho na lavoura, o estudo
à noite e a falta de tempo para dormir, ou seja, as expectativas e ressonâncias
da cidade e da universidade mais a condição difícil na qual se encontrava,
foram compondo/encorporando uma experiência que o estimulou ir para
Maringá.
Neste ponto, não é difícil de encontrar mais semelhanças entre as
perspectivas dos Guarani e algumas formulações de Ingold (2000; 2012; [2011]
2015). De acordo com o autor, experiências de engajamento prático no “mundo
dos materiais” não se opõem a experiências daquilo que ouvimos, das
narrativas que ressoam até nós, das nossas lembranças e imaginações. Ainda
pensando em relação ao autor, todos esses elementos experienciados estão
conectados ao corpo e movimento, pois os sujeitos encorporam e agem no
mundo numa dinâmica que não pressupõe um precedente lógico. Encorporar e
se mover é análogo a amadurecer e não ser fixo. Amadurecer, por sua vez, é
intrínseco aos processos de desenvolvimento dos dons pessoais.
86
Considerando que alguns Guarani em Maringá vieram do estado de
São Paulo, pergunto a eles: por que o Paraná? Rodrigo explica que no estado
de São Paulo não há uma política estadual de ingresso de indígenas nas
universidades com auxílio, como há no Paraná69. E quando a pergunta é “Por
que Maringá?”, há uma grande concordância entre meus interlocutores de que
o trabalho indigenista da ASSINDI é um diferencial importante que existe na
cidade. Assim, as narrativas de meus interlocutores evidenciam que a
universidade estadual e a ASSINDI ressoam até as aldeias, inclusive em
Nimuendajú, no estado de São Paulo, e são dois elementos importantes em
Maringá, junto com as experiências pessoais de cada Guarani, que mobilizam
a ida para a cidade.
A seguinte fala de Fábio traz vários elementos que foram mencionados
por outros interlocutores e destaca o quê a cultura tem a ver com estes
deslocamentos para Maringá:
[...] Hoje não tem como, dentro da aldeia, os índios quererem se manter
naquela cultura que seus bisavós, que seus avós eram. [...] A mata já está
escassa, porque não tem o passarinho, não tem a caça, entendeu? O rio
[...] até a água mesmo já não é uma água de qualidade boa pra beber. O
peixe já não existe mais, a gente vai lá pescar e acha peixinho tudo
pequenininho, diferente daquela época em que nossos avós iam pescar e
traziam peixe, dois, três quilos pra casa. Hoje dentro da aldeia não existe.
Não dá pra se manter assim. A gente vai vivendo conforme os anos, o
tempo vai passando, entendeu? É essa que eu acho que é a função de
nós estarmos na universidade. O porquê é muito importante, entendeu? A
gente poder retornar pra lá e ao invés de ter que cada vez perder um
pouco mais de nossa cultura, a gente tenta unir um pouco desse
conhecimento que a gente tem aqui fora em prol da comunidade indígena.
Fábio aponta que na aldeia é difícil de manter e viver naquela cultura
dos antigos Guarani. Sair da aldeia e buscar a universidade, portanto, é
importante para produzir uma extensão criativa da própria cultura. Em uma das
idas do txamõi Awa Djemõwytsu para Maringá ele disse que o crescimento das
cidades, associado aos brancos, causou a destruição de matas, poluição dos
rios e a diminuição dos animais que habitavam estes lugares. A fala de Fábio
começa trazendo estes elementos colocados pelo txamõi e apresenta para nós
69
Vale ressaltar que o Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná, que será apresentado no capítulo
seguinte, é exclusivo para indígenas que vivem em aldeias no território paranaense – com exceção
daqueles que se inscrevem para a Universidade Federal do Paraná (UFPR) –, porém alguns dos meus
interlocutores estão no Paraná há pouco tempo e viveram na TI Araribá antes de se mudarem para
alguma aldeia no estado.
87
um paradoxo. A cidade é ao mesmo tempo parte do processo de destruição
das condições da cultura dos antigos e é onde atualmente se busca
conhecimentos e métodos para a extensão da cultura – que não significa um
retorno ao passado, mas um fazer criativo da cultura guarani.
A questão acima será desenvolvida ao longo dos próximos capítulos da
dissertação. Por ora, vale pensar mais a fundo o papel da ASSINDI em relação
à chamada cultura. A ONG, com o seu trabalho de apoio aos indígenas em
Maringá, tem um papel fundamental para a vida dos indígenas na cidade. O
ponto crucial é que a instituição possibilita extensões na cidade do que os
Guarani enunciam como cultura. Certa vez, Eliene me disse que a ASSINDI é
como uma aldeinha e é sobre este assunto que trata o tópico seguinte.
2.2.
Aldeinha: uma ONG indigenista como espaço para a cultura
Figura 9. À esquerda, rodovia BR-376, à direita, entrada da ASSINDI. Foto tirada pelo autor, 2015.
A ASSINDI é uma ONG indigenista que fica localizada em uma rodovia
federal em uma das extremidades geográficas da cidade de Maringá. O
ambiente ao redor pode ser descrito como caracteristicamente “beira de
88
estrada”: posto de gasolina, fábricas, motel, cheiro de pneu e asfalto, o som do
tráfego de automóveis, sobretudo veículos de grande porte, e o visualmente
marcante viaduto que fica em uma das pontas do Contorno Norte na BR-376.
Para quem entra na ASSINDI, o ambiente é contrastante. Os cheiros, os sons,
as cores e até a temperatura são outras, apesar de, pela proximidade, conter
resquícios do ambiente “beira de estrada”. Uma pequena mata verde, um
caminho de terra e pedras, gramado, um parquinho para crianças à sombra de
várias árvores, uma construção grande à beira da qual indígenas artesãos
(Kaingang) trançam cestos, um campo de futebol sem marcações definidas
entre algumas pequenas construções de alvenaria, uma grande casa em
formato circular.
Figura 10. Entrada da ASSINDI. Foto tirada pelo autor, 2015.
Em Maringá, os indígenas universitários apontam a ASSINDI como o
elemento decisivo na eleição da cidade para realizar o curso de graduação.
Isso porque o Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná é válido também para
outras universidades públicas do estado, mas a ASSINDI só atua na região de
Maringá, o que confere um apoio diferencial para os estudantes que escolhem
89
a UEM. Mas não é apenas a oportunidade de moradia que atrai os Guarani
para Maringá. É importante pensar o que é a ASSINDI no dia a dia desses
estudantes indígenas.
Cristiane Lasmar (2005; 2008) que pesquisou as experiências urbanas
de indígenas na cidade de São Gabriel da Cachoeira na região do Alto Rio
Negro, principalmente das mulheres indígenas, afirma que existem formas
distintas de se viver na cidade e na comunidade que dizem respeito às
diferenças dos modos de se viver dos indígenas e dos brancos. Porém, ela
destaca também que “para os índios de São Gabriel haveria formas distintas de
estar na cidade: há aquelas mais próximas do modo branco de viver e outras
mais próximas do modo indígena (i.e. mais próximas da vida na comunidade).”
(2008, p. 12). Em Maringá, apesar de estar geograficamente distante das
aldeias, a vida na ASSINDI parece ser umas dessas formas mais próximas do
que Lasmar chama de “modo indígena” de estar na cidade.
Quando eu estava na aldeia Pinhalzinho muitos Guarani me disseram
que é comum que os indígenas universitários que vão morar nas cidades não
mantenham os vínculos uns com os outros e muitas vezes nem mesmo com a
comunidade. No entanto, em Maringá isso não ocorreria, segundo eles, porque
a ASSINDI propicia um ponto de encontro para esses sujeitos, no qual eles
podem manter certos vínculos e permanecer na cultura. A comparação da
instituição com uma aldeinha aparece, assim, como uma analogia interessante.
2.2.1. Espiritualidade guarani na cidade de Maringá
Kunhã Reroydju, Kunhã Mandawidju, Kunhã Djidjou, Awa Ratã, Awa
Djewydju, Awa Nimbarete, Awa Djadjokõ, Awa Tape Mirĩ, Awa Rerokadju, Awa
Djerokydju e Awa Ywy Mirĩ70, são alguns dos nomes de meus interlocutores em
Maringá. Os Guarani fazem questão de enunciar seus nomes quando precisam
falar em público em algum tipo de evento ou quando alguém lhes pergunta.
Entre as várias extensões da espiritualidade entre aldeias e cidade, o nome
70
Nem todos os meus interlocutores da cidade conhecem o significado do seu nome guarani, por isso
optei por não apresentar os significados dos nomes nesta parte do texto. Com relação à grafia, busquei
seguir as orientações que recebi de alguns Guarani especialistas na língua. Vale lembrar que em Maringá
vivem Guarani de diversas aldeias e que podem ocorrer variações linguísticas que implicam em
diferenças de vocabulário e escrita. No entanto, erros de grafia são de minha responsabilidade.
90
guarani talvez seja a mais evidente. Os nomes, diacríticos na composição da
pessoa guarani, tornam-se visíveis recorrentemente nas falas dos meus
interlocutores.
Há algumas práticas relacionadas à espiritualidade guarani em Maringá
que, geralmente, se concentram nas mediações da ASSINDI. No evento em
que conheci o txamõi Awa Djemõwytsu e sua esposa Cleide, foi realizado uma
reza – a primeira que presenciei antes mesmo da pesquisa de campo ter me
levado até a aldeia Pinhalzinho. Na sequência, descrevo parcialmente o
evento, e a reza em específico, para fins de comparação com as descrições
acerca do mborai no primeiro capítulo.
O evento em questão foi uma oficina de bioescultura71 que fez parte do
projeto Veio da terra, de autoria de uma professora de artes visuais da UEM. O
mesmo foi realizado em dois dias em lugares diferentes com a mesma
programação. No sábado, no Centro de Excelência em Atendimento à
Comunidade (CEC) da UEM e, no domingo, na ASSINDI. A oficina foi
conduzida por André, um arquiteto especialista em construções cuja matéria
prima principal é a terra, e contou com a participação de convidados indígenas
Guarani e Kaingang.
No segundo dia do evento participei da reza na ASSINDI. Foi no final
da tarde do domingo e a maioria dos participantes da oficina já havia ido
embora. Participaram da reza aproximadamente dez pessoas Guarani, três
Kaingang e dez brancos. A disposição dos integrantes, a indumentária dos
Guarani e os objetos presentes eram muito semelhantes aos elementos que
encontrei posteriormente na reza na aldeia – descrita no primeiro capítulo. O
txamõi usava um kangwaa na cabeça e empunhava um mbaraka mirĩ
emprestado de seu genro Marcos72, que mora na ASSINDI. Cada um dos
outros homens Guarani também segurava um mbaraka mirĩ. Dois deles, Fábio
e Marcos, usavam também um djatsa’a. O primeiro segurava um apyka feito de
Oàte oà ioes ultu a àseà efe eàp oduç oàdeàes ultu asà o à ate iaisào g i os.
Este mbaraka irĩ de Marcos, de acordo com ele, foi feito por sua esposa, Laura, para a ocasião do
casamento espiritual de ambos, realizado na aldeia Pinhalzinho. Em contrapartida, Marcos lhe fez um
tawapu, que é o elemento sonoro usualmente associado às mulheres nas práticas de reza na oy gwatsu.
A troca destes objetos ocorre nos rituais de casamento, conduzidos pelos txamõi, e significa uma aliança
espiritual entre o homem e a mulher. Caso um casal venha a se separar é necessário um ritual
conduzido pelo txamõi em diálogo com os guias para a separação desse elo espiritual.
71
72
91
cabaça/poronga com uma infusão de wyra pire. O segundo carregava um
kangwaa feito com sementes na altura da testa. Cleide atuou como principal
auxiliar do txamõi, ou seja, ywyraidja, e segurou a iraity que permaneceu acesa
durante toda a reza. Douglas, o jovem especialista na produção de pequenas
esculturas em madeira e que usava o colar com dentes de cachorros, era o
único a fumar petỹ gwa.
Homens e mulheres guarani formaram duas filas paralelas uma de
frente para a outra. O txamõi transitava entre as duas e proferia palavras em
guarani. Os mbaraka mirĩ faziam constante movimento e enunciavam seus
sons. Os Guarani dançavam para frente e para trás e cantavam com variações
de entonações vocais que se abstinham de formar palavras da mesma forma
que presenciei na aldeia posteriormente. Em alguns momentos as filas saiam
de suas posições iniciais, faziam movimentos circulares e depois voltavam.
A princípio, nós outros (brancos e Kaingang) assistíamos em pé
formando um semicírculo próximo. Logo, sem a necessidade de palavras de
ordem, os corpos de brancos e Kaingang começaram e se movimentar e entoar
o canto guarani. Assim permanecemos durante um bom tempo. A vibração de
sons, composições visuais de fumaça, movimentos corporais e outros
elementos que agiam naquele momento evocavam a presença de seres
espirituais que se comunicavam eminentemente com o txamõi.
Em certo momento, Cleide e o txamõi iniciaram uma espécie de crisma
nos homens e mulheres guarani. Fábio segurava o apyka com a infusão de
wyra pire e Cleide colocava suas mãos dentro do recipiente e passava sobre o
rosto de cada Guarani. Na sequência, o txamõi movimentava a iraity próximo
ao rosto da pessoa. Enquanto a fumaça percorria a cabeça do sujeito ele
pronunciava palavras em guarani ao mesmo tempo em que o mbaraka mirĩ
proferia o seu som. Os últimos Guarani a serem crismados foram Fábio e
Cleide. Após, os brancos e Kaingang foram crismados também. Quando
chegou minha vez, Cleide se aproximou, e foi a primeira vez que vi o líquido
avermelhado dentro do apyka. Fechei meus olhos e senti as mãos molhadas
de Cleide se moverem sobre minha face e meu pescoço. Logo em seguida,
senti o calor da iraity e o cheiro intenso de sua fumaça. Nessa situação, a
crisma tinha o efeito de um benzimento, como os próprios Guarani que moram
92
na ASSINDI me explicaram depois. A ação da crisma naquele momento era de
proteger e purificar os corpos. Foi apenas na aldeia que conheci outras
potências da crisma, especificamente aquelas descritas no Capítulo I acerca do
assentamento dos nomes nos corpos, comumente chamados de batismo.
Há alguns metros do local da reza, pessoas Kaingang, que não
estavam participando, apenas observavam. Aos poucos, alguns foram se
aproximando, principalmente mulheres e crianças. Uma dessas mulheres
chegou perto do txamõi com uma criança no colo, que foi recebida e crismada.
Outra Kaingang fez o mesmo que a primeira e se aproximou com um bebê em
seus braços. O txamõi ficou um tempo interagindo com os Kaingang que até
então não estavam participando da reza. Depois, voltamos a dançar e entoar
os porai. Corpos em movimentos, pés descalços na grama, os mbaraka soando
junto aos vocais, um cachorro que vive na ONG corria e pulava em nossas
pernas. Mais uma vez o txamõi passou por cada um de nós com a iraity.
Figura 11. Reza realizada na ASSINDI ao final do evento de bioescultura. Foto de Tabajara Marques,
201573.
73
Disponível em: http://tabajaramarques.blogspot.com.br/2015/05/visita-assindi-paje-da-aldeia.html.
Acesso em 07 de outubro de 2016.
93
Ao final da reza, o txamõi chamou o arquiteto e a professora autora do
projeto para próximo dele e fez um agradecimento direcionado às pessoas da
cidade que acolhem os indígenas. Eram pessoas que lutavam, pessoas boas,
seus parentes de coração, afirmou. Os três mais Fábio, que segurava o apyka,
crismaram a terra74 derramando a infusão de wyra pire sobre o solo.
Conduzidos pelo txamõi, continuaram a crisma da terra por diferentes pontos
da ASSINDI. Alguns dos que estavam presentes seguiram o txamõi, outros
ficaram no local da reza ou se retiraram. Segui o caminho da crisma, que foi
realizada na estrada por onde os carros sobem ao prédio da administração, em
uma escultura de barro inspirada na arquitetura de uma casa de joão-debarro75, no Museu Kre Porã76, na bioescultura de tamanduá77 e, por último, a
pedido da professora coordenadora do projeto, no Centro Social Infantil
Indígena Mitangue-Nhiri78. Após a crisma da terra me despedi e fui embora. Os
Guarani visitantes continuaram na ASSINDI.
Percebe-se que, como na reza que participei em Pinhalzinho, não
imperava ali grandes prescrições de como o mborai deveria ou não acontecer.
Havia sim uma composição relacional complexa, que neste caso incluía os
Guarani, objetos, seres espirituais, brancos, Kaingang e, principalmente, um
movimento que conectava esses elementos. Um tipo de composição que
comumente ocorre nas oy gwatsu havia acabado de ocorrer na ASSINDI
também – com diferenças e especificidades relativas às condições distintas da
oy gwatsu. Algo assim dificilmente aconteceria em outros espaços da cidade de
Maringá.
Nos dias que se seguiram após a reza, voltei a ASSINDI interessado
em compreender um pouco melhor o que havia acontecido. Termos como
mborai, crisma, apyka, iraity, kangwaa, djatsa’a, entre outros, ainda me eram
estranhos. Os Guarani que moram na ASSINDI me explicaram alguns, outros
74
Nesse caso, a terra corresponde ao solo sobre o qual a ASSINDI se localiza.
Uma das esculturas que foram feitas pelos participantes da oficina de bioescultura.
76
Um museu com um pequeno acervo de artesanatos Guarani e Kaingang que fica junto ao prédio da
administração. Kre sig ifi aà alaio àe àkai ga gàeàporã se refere ao que é belo/bom em guarani.
77
Uma grande escultura que foi construída coletivamente pelos participantes da oficina de bioescultura
e que foi inspirada num mito kaingang centrado na figura de um tamanduá.
78
Um centro social que recebe e cuida das crianças indígenas enquanto seus pais estão ocupados na
universidade ou vendendo artesanato pela cidade. Mitangue e nhiri sig ifi a à
ia ça ,à
respectivamente, em guarani e kaingang.
75
94
só fui conhecer quando fui para Pinhalzinho conversar diretamente com o
txamõi e outros mais velhos, como a D. Vilma e o cacique da aldeia. Foi em
Maringá que este universo da espiritualidade guarani se apresentou a mim,
mas foi em Pinhalzinho que pude fazer as conexões e perceber as extensões
da espiritualidade.
Os Guarani que moram na ASSINDI me afirmaram que o espaço da
ONG não era apropriado para a reza. O txamõi teve de negociar com seus
guias espirituais a permissão para realizar o mborai naquele local, fora da oy
gwatsu, onde não havia os kurutsu e a terra ainda não era crismada. Dos
moradores da ASSINDI, Marcos, Fábio, Marlene e Laura são os mais ligados
às práticas espirituais guarani e me disseram que a reza era necessária
naquele local justamente porque os Guarani na aldeia se preocupam com seus
parentes na cidade. Por isso, o txamõi negociou com seus guias, conduziu a
reza e a crisma daquela terra. Estes Guarani que moram na ONG me disseram
que existem presenças espirituais ruins que habitam as mediações da
instituição. São angwery, espíritos de pessoas que já morreram, mas que não
deixaram o mundo terreno. Eles afirmam sentir a presença dessas entidades
em Maringá. Fábio, inclusive, diz que já viu um desses na cozinha de sua casa.
O txamõi, em uma visita anterior à ASSINDI, já havia percebido essas
presenças e avisado seus parentes. Por isso, a reza e a crisma foram
importantes, mesmo que não tenham sido realizadas nas condições mais
apropriadas.
A realização desta reza foi um acontecimento extraordinário em
Maringá, mas a espiritualidade guarani está presente no dia a dia dos
moradores da ASSINDI. O terreno da ONG mantém uma pequena mata onde
os Guarani encontram árvores de wyra pire e pau-d’álho, dois tipos de
madeiras que os Guarani utilizam para fazer infusões para banhar-se ou
derramar em locais que precisam de proteção e/ou purificação – como por
exemplo, suas casas. Também há famílias Guarani que mantêm em suas
residências uma ou mais iraity, que são acesas sempre que necessário. Esses
elementos são importantes para manter a saúde pessoal e a tranquilidade da
vida cotidiana dos Guarani, afastar os angwery ruins e outras entidades mais
95
perigosas, como anhã. Essa conexão com a reza também é importante para o
fortalecimento dos dons pessoais.
Figura 2. Marcos extraindo wyra pire na ASSINDI. Foto tirada pelo autor, 2015.
Outras duas medidas de precaução contra estes maus espíritos são
manter as casas fechadas após anoitecer e, durante o dia, nunca deixar
apenas uma única entrada/saída da casa aberta – porta ou janela. A primeira
medida se dá porque os espíritos ruins são propícios à vida noturna. Já a
segunda é porque se um espírito entra em uma casa que só tem uma
entrada/saída aberta, o mesmo não consegue sair. Assim, o ideal é manter a
casa fechada ou duas entradas/saídas livres, para que se um espírito entrar
por uma ele possa sair por outra.
As práticas da reza e os cuidados que procuram manter para o
fortalecimento de seus dons e afastar os maus espíritos são comumente
enunciados como elementos da cultura. Aqui, a cultura se refere a uma
socialidade específica que é comum nas aldeias. É neste sentido de cultura
que o termo se assemelha à nhandereko. Assim, a cultura e o nhandereko,
como se pode ver, vaza aos limites das aldeias.
96
2.2.2. Parentes, produção de artesanato e outras extensões da cultura
A ideia de que a ASSINDI é como uma aldeinha, como afirma Eliene,
não se restringe às extensões espirituais. Outras semelhanças podem ser
percebidas. Uma delas é a forma como se dá a organização espacial das
casas. Na aldeia Pinhalzinho, como descrito no Capítulo I, as moradias são
organizadas por relações de parentescos e vínculos “religiosos”79. Existem três
colônias nas quais, em cada uma delas, parentes vivem em casas próximas
umas das outras. Na ASSINDI, que contém cinco casas para abrigar
estudantes indígenas, a organização é similar, apesar da menor escala. Essas
moradias são distribuídas próximas umas das outras ao longo de um amplo
espaço gramado. Das cinco casas, quatro são ocupadas por famílias Guarani e
uma por uma família Kaingang.
Figura 13. À esquerda, duas casas nas quais residem Guarani universitários, à direita, Centro Social
Infantil Indígena Mitangue-Nhiri. Foto tirada pelo autor, 2015.
79
Lembremos que esta categoria é utilizada quando os Guarani se referem às religiões cristãs e às
práticas de reza quando são colocadas em comparação analógica com as primeiras.
97
Todos estes Guarani que vivem na ASSINDI, apesar de terem
trajetórias de vida diversas, estão ligados uns aos outros por relações de
parentesco. Primos e primas, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas, casamentos
entre primos e afins. Na primeira conversa que tive com Luís, comecei
perguntando se ele tinha parentes morando em Maringá, ele disse:
Tenho. Aqui todo mundo é... é bem dizer, faz parte da minha família. Tem
aqui o Rodrigo e a Eliane [indica a casa ao lado da sua] que são meus tios.
O Fábio, não sei se você conhece, o Fábio também, ele e a Marlene
também são meus tios. O Marcos aqui e a Laura também [aponta para o
outro lado da sua casa]... Então, todo mundo. Acho que o único que não é
meu parente assim é o Sandro aqui, que é Kaingang, mas é meu amigo
também.
Luís, neto do txamõi Awa Djemõwytsu, foi pra Maringá porque sua mãe
era acadêmica na UEM e residente na ASSINDI. Atualmente, mesmo longe das
aldeias, está próximo de seus parentes. Estas relações de parentesco na
cidade aparecem em conversas com outros Guarani e é um ponto forte para
que os indígenas escolham Maringá como cidade para estudar 80. Quando
Fábio foi pra Maringá, ele tinha um primo que morava na ASSINDI. Marcos, por
sua vez, tinha seu irmão Fábio. Eliene já conhecia a ASSINDI porque sua irmã
Carmem, mãe de Luís, havia morado no local. No decorrer da pesquisa,
percebi como histórias e trajetórias se conectavam.
É comum que os Guarani na ASSINDI se reúnam para diversas
atividades, seja elas ligadas à ONG e aos estudos81 ou não. Todas as famílias,
e isso inclui a Kaingang, possuem filhos, e é comum que uns ajudem a cuidar
dos filhos uns dos outros, por exemplo, buscando e levando na escola. As
crianças costumam correr e brincar juntas, como acontece na aldeia
Pinhalzinho no espaço ao lado da casa do cacique.
Em geral, meus interlocutores afirmam que na cidade uma das
principais dificuldades quando chegam é ter que lidar sozinhos com os
problemas do dia a dia, mas na ASSINDI existem extensões da socialidade
coletiva que é comum nas aldeias. Mesmo aqueles indígenas que não moram
na ASSINDI, como os Guarani Pedro e Henrique, vão com frequência para a
80
Essa proximidade entre parentes e o apego à família são questões que aparecem nos trabalhos de
Goulart (2014), com os Guarani e Kaingang universitários na UEL, e Amaral (2010), sobre trajetórias e
permanências de indígenas no ensino superior público no Paraná.
81
Como para limpeza dos espaços comuns na ASSINDI, eventos universitários, encontros relacionados
ao ensino superior indígena e outras questões acerca da presença indígena em Maringá, etc.
98
ONG para ver seus parentes, jogar futebol, participar de eventos e afins.
Quando parentes da aldeia vão visitar aqueles que vivem na cidade, é comum
também que fiquem na ASSINDI, como aconteceu quando o txamõi Awa
Djemõwytsu, sua esposa Cleide e Douglas foram para Maringá no evento
mencionado anteriormente. Portanto, casas e parentes estão em relação,
assim como pude perceber na aldeia Pinhalzinho.
Quando fui convidado pela primeira vez a entrar na casa de um dos
meus interlocutores Guarani na ASSINDI, uma das características que mais me
chamou atenção foram as paredes cobertas de artesanato. A produção de
artesanato é algo que os Guarani em Maringá, em maior ou menor grau,
investem bastante, ainda que com dificuldades. O ambiente é propício para a
venda dos produtos, mas ao mesmo tempo, os Guarani têm dificuldades para
conseguir materiais para a artesania das peças.
Rodrigo é um dos Guarani especialista em produção de artesanato em
Maringá. Em uma de nossas conversas ele confirma a visão de que a ASSINDI
é como uma aldeinha. Ele diz que o espaço da ONG “é similar a uma reserva,
mais afastado da cidade, do centro, assim... do movimento”. Condição que ele
vê como favorável para viver em Maringá. Com relação ao seu trabalho como
artesão, essa característica da associação o possibilita ter acesso a alguns
materiais no próprio espaço da ONG. Perguntei se ele trazia materiais da
aldeia, como faz outros Guarani, ele respondeu:
Rodrigo: Não eu tiro tudo daqui mesmo.
Pesquisador: Mas daí você pega onde as matérias, os materiais...?
R: As sementes eu pego por aqui mesmo na ASSINDI, daí o bambu eu
busco numa vila lá pra baixo perto do [bairro] Laranjeiras.
P: Sei, o Parque Laranjeiras, né?
R: Isso.
P: Mas é um lugar público [...] aberto?
R: Ah... não sei, eu pego beirando o rio [risos].
No decorrer da conversa ele se lembra que o único material que ele
traz das aldeias são as cabaças para a produção de mbaraka mirĩ. As penas de
aves sintéticas para produção de brincos ele diz que compra em lojas, já as
naturais ele tira de galinhas também compradas por ele. Quando perguntei os
tipos de sementes que ele usava ele respondeu “[...] ah, semente de leucena...
e... ah, o que tem né, é de época, o que tiver na época eu procuro usar... e a
criatividade” (meus grifos). Se na aldeia, onde a obtenção de materiais é mais
99
acessível,
a
produção
de
artesanato
é
um
trabalho
marcado
pelo
experimentalismo, na cidade não é diferente. Rodrigo produz e vende mbaraka
mirĩ, brincos, colares, palitos para prender cabelo, arcos e flechas de
brinquedo, kangwaa e está sempre procurando aprender novas técnicas para
desenvolver novos objetos. Um em específico que me chamou atenção na
parede de sua casa foi um grande filtro dos sonhos (figura 14) que ele disse
que estava aprendendo a fazer com um artesão da cidade.
Figura 14. Filtro dos sonhos confeccionado por Rodrigo. Foto tirada pelo autor, 2015.
Outros sujeitos como Marcos e Fábio também produzem artesanatos e
os vendem, na maior parte das vezes, em diversos eventos que acontecem na
ASSINDI. Ambos trabalham mais com sementes, produzindo colares e brincos.
Percebe-se aqui que cada Guarani na cidade também possui os seus dons e
100
especializações pessoais. Rodrigo, Marcos e Fábio são bons artesãos. No
entanto, por um lado, o primeiro tem saberes mais amplos em termos de
técnicas e variedade de objetos. Por outro, Marcos e Fábio conhecem muito
mais da espiritualidade Guarani – um deles, inclusive, tentou se tornar txamõi
mesmo morando na cidade.
Com Rodrigo conversei muito mais sobre as peças de artesanato do
que com Marcos e Fábio, que me ensinaram muito sobre a reza, a crisma e
outros elementos da espiritualidade. Destaco que, seja nas aldeias ou nas
cidades, as extensões do que os Guarani chamam de cultura – geralmente, os
saberes dos mais velhos, uma forma específica de ser e se relacionar e a
contínua produção de diferença – estão intimamente conectadas às vivências e
criatividade, ao amadurecimento e aos dons de cada pessoa Guarani.
2.3.
Considerações parciais II
O movimento dos Guarani entre aldeias e cidades são narrados e
descritos de modo a tornar visível uma série de conexões entre lugares e
pessoas. Esses caminhos e relações são as próprias vivências guarani se
estendendo por múltiplos locais. Cada pessoas vivencia seus dons,
amadurece e constróis seus caminhos. Esta mobilidade, quando enunciada, é
compreendida pelos Guarani como uma caraterística da cultura, uma forma de
socialidade que foi traduzida como tradição por uma das minhas interlocutoras.
É neste ponto que cultura se conecta com nhandereko, um modo de ser e se
relacionar composto por múltiplas singularidades guarani, diversos caminhos,
dons e experiências. É onde a cultura se conecta com a não fixidez.
Aqui, não se trata de descobrir as causas últimas dos movimentos e
enquadrá-los em categorias explicativas, seja com categorias analíticas,
estruturas sociais ou cosmológicas, mas sim de perceber que a mobilidade, a
não fixidez, o amadurecimento e os dons, são processos de produção de
saberes e conhecimentos múltiplos. Também se trata de perceber que estes
caminhos diversos não se estendem aleatoriamente para qualquer lugar, mas
se sintonizam com as vivências e critérios dos Guarani – como parentescos e
lugares onde se possa viver na cultura.
101
Em Maringá, é notável que a ASSINDI, que é como uma aldeinha, é
um espaço onde se pode viver de maneira próxima do “modo indígena”, como
diz Lasmar (2008) com relação a sua pesquisa. A ASSINDI possibilita
extensões da cultura guarani que são dificultadas em meios urbanos, como a
obtenção de wyra pire e pau d’alho para práticas espirituais, a manutenção de
relações próximas com parentes, formas coletivas de se relacionar, a vivência
dos dons em artesanato, entre outras. Em síntese, a ONG possibilita certas
relações guarani que se aproxima da socialidade comum nas aldeias.
Até o momento procurei evidenciar as perspectivas Guarani, as
extensões dos dons e da cultura, e obliterar as perspectivas das próprias
instituições e as implicações relacionadas ao encontro entre ambas as
perspectivas. A ASSINDI, apesar de ser como uma aldeinha, opera numa
lógica institucional muito distinta das formas de vivência e do pensamento
guarani. É sobre estes encontros entre lógicas guarani e institucionais na
cidade de Maringá que trata o capítulo seguinte.
102
3. Capítulo III – Estudantes indígenas, a ASSINDI e a UEM:
perspectivas guarani e institucionais em Maringá
Na cidade de Maringá, os Guarani produzem artesanato, praticam e
falam sobre a espiritualidade, vivem próximos dos seus parentes. Da
perspectiva Guarani, entende-se esta forma de estar na cidade como um modo
específico de viver na cultura. A ASSINDI e a UEM, por sua vez, promovem
eventos, lidam com leis e documentos, falam sobre as culturas indígenas, da
cultura guarani, etc. Saberes guarani, acadêmicos e lógicas técnicoburocráticas se encontram. Este capítulo trata destes encontros entre as
perspectivas
guarani e
institucionais, suas
aproximações, diálogos
e
distanciamentos.
Ao incluir as instituições nesta discussão, cabe aqui algumas
considerações. As pesquisas que voltam sua atenção para organizações,
seguimentos do Estado, burocracia, etc., não constituem um campo coeso na
antropologia. Os trabalhos produzidos com estes temas assumem diversas
perspectivas e abordagens sob diferentes nomes como “antropologia da
administração”,
organizações”,
“antropologia
“antropologia
da
das
governança”82,
instituições”83,
etc.
“antropologia
Independente
das
de
vinculações com estes segmentos disciplinares, destaco que a proposta aqui,
como já mencionado, é continuar fiel às perspectivas dos meus interlocutores,
que agora inclui os Guarani e instituições, especificamente a ASSINDI e a
UEM.
Apesar das diferenças entre a ASSINDI e a UEM – uma ONG e uma
universidade pública – elas compartilham traços importantes para a reflexão
aqui empreendida. Neste caminho, destaco que este trabalho não trata de
instituições no sentido amplo do termo, como proposto por Mary Douglas
([1986] 1998), que usa a expressão,
[...] no sentido de um agrupamento social legitimado. A instituição em
questão pode ser uma família, um jogo ou uma cerimônia. A autoridade
82
Para uma densa revisão bibliográfica no campo da antropologia da administração e antropologia da
governança produzidas no Brasil, ver Teixeira e Souza Lima (2010).
83
Para uma revisão bibliográfica de propostas de antropologias em instituições e organizações, ver
Morawska Vianna (2014).
103
legitimadora pode ser pessoal, tal como um pai, um médico, um juiz, um
árbitro ou um maftre d’hôtel. Ou então pode ser difusa, baseada na
concordância comum em torno de algum princípio fundante (p. 58).
Ainda que a definição de Douglas possa incluir instituições como
universidades e ONGs, as instituições aqui referidas dizem respeito a
organizações reconhecidas e legitimadas como tal perante o Estado. Trata-se
de organizações permeadas por saberes técnico-burocráticos (Morawska
Vianna, 2010; 2014) e pautadas em convenções jurídico-estatais.
Nota-se, assim, que tanto a ASSINDI quanto a UEM, para existirem e
funcionarem legalmente como instituições, são permeadas por convenções
jurídico-estatais – que são parte de saberes técnico-burocráticos. Isso implica
que mesmo a ASSINDI, que não é uma instituição estatal, é atravessada por
traços do Estado e está em constante diálogo com setores públicos em
Maringá – seja em parcerias84 ou reivindicações por maior atenção à “questão
indígena” na cidade. Isso não significa assumir o Estado como uma entidade
abstrata e reificada localizada em lugar nenhum e em todo lugar. Como nos
sugere Herzfeld ([1997] 2008), o Estado é melhor entendido como “um
complexo instável de gente e de funções” (p. 20) e, portanto, corresponde à
diferentes dinâmicas e expressões em diferentes contextos. Podemos entender
não apenas os setores do Estado desta forma, mas também instituições não
governamentais, como a própria ASSINDI.
Catarina Morawska Vianna (2010; 2014), em sua pesquisa etnográfica
de uma relação transnacional entre ONGs, entende que a mobilização de
saberes técnico-burocráticos é um elemento central para a produção e
manutenção das conexões entre as instituições alvo de sua reflexão. Ainda,
afirma que encarar tais instituições como “entes técnico-burocráticos” significa
não apenas equipará-las entre si, como também quaisquer outras organizações
marcadas por procedimentos burocratizados, o que inclui ONGs, órgãos do
Estado e até mesmo empresas privadas. Tal equiparação não significa negar
as diferenças gritantes que existem em cada organização em particular,
ressalta a autora. Como bem aponta Herzfeld ([1992] 2016) acerca da
burocracia,
84
Da perspectiva da ONG, parceiros são instituições ou pessoas consideradas aliadas da instituição, seja
um órgão público, uma instituição religiosa, um doador ou um etnógrafo.
104
A despeito de seus apelos a uma racionalidade universal, os seus
significados são culturalmente específicos, e a sua operação é limitada
pelos modos através dos quais os seus operadores e clientes interpretam
as suas ações. A sua gestão da identidade pessoal e coletiva não pode
romper livremente com a experiência social (p. 52).
Assim, ao mesmo tempo em que a UEM, uma instituição pública de
caráter autônomo, e a ASSINDI, uma organização não governamental
indigenista, possuem dimensões e desempenhos muito distintos, ambas se
equiparam com relação à mobilização de saberes técnico-burocráticos, cujos
efeitos na relação com os Guarani são alvo de reflexão neste capítulo.
Ao assumir que as conexões entre instituições em diferentes locais se
concretizam por meio da mobilização de saberes técnico-burocráticos,
Morawska Vianna (2010; 2014) entende as organizações como centros de
ressonâncias e estabilização de saberes. Ainda que o enfoque na pesquisa
aqui empreendida não seja as conexões entre organizações, ambas as
características destacadas pela autora são visíveis na relação da ASSINDI e a
da UEM com os Guarani.
A questão da ressonância, mais especificamente as extensões das
referidas organizações até as aldeias, será melhor trabalhada no próximo
capítulo. No entanto, com relação ao que já foi apresentado no segundo
capítulo, percebe-se que os Guarani experienciam tais instituições antes
mesmo de partirem para Maringá. Eles escutam sobre a ASSINDI e a UEM,
ouvem notícias, relatos de conhecidos que são universitários ou parentes que
moram na ONG. Assim, expectativas e projeções acerca de Maringá se
compõem a partir de experiências vividas a certa distância.
A segunda característica destacada por Morawska Vianna, a
estabilização de saberes, é um dos assuntos centrais deste capítulo. Percebese que o modo de operar da ASSINDI e da UEM produz um contínuo efeito de
objetificar certos elementos na relação com os estudantes indígenas, como por
exemplo, na mobilização de etnônimos e da noção de cultura. Propõe-se aqui
refletir sobre esses modos institucionais de estabilização de saberes e pensar
em que medida perspectivas institucionais e guarani se arranjam. Em síntese,
a proposta neste capítulo é refletir de que modo as perspectivas Guarani e
institucionais contrastam, se conectam, associam, transformam e compõem um
105
modo específico de interação entre organizações e indígenas na cidade de
Maringá.
3.1.
A ASSINDI e a UEM: adentrando os aparatos institucionais
A ASSINDI85 é uma ONG considerada referência em assistência e
parceria86 nas lutas pelos direitos dos indígenas que vivem hoje em Maringá. A
entidade, que funciona desde 2000 sob a coordenação de não indígenas,
surgiu com o objetivo de oferecer abrigo temporário para indígenas –
particularmente aos Kaingang da TI Ivaí (Manoel Ribas/PR) – que se
deslocavam para o município para a comercialização de cestarias. Antes da
fundação da ONG, estes indígenas não tinham onde se alojar, e,
frequentemente, dormiam nas ruas ou rodoviárias de Maringá e cidades
vizinhas, como Sarandi e Marialva87.
Este atendimento aos Kaingang artesãos constitui o projeto88 mais
antigo da instituição. Para isso, a ONG possui o Abrigo Venkan-Nhá Fá, que na
língua kaingang significa lugar de descanso. O mesmo possui também um
nome em guarani, que é Oy Nhandewa (casa nhandewa), e foi construído com
recursos do Ministério do Meio Ambiente. Além de oferecer abrigo aos
Kaingang, a ONG também lhes proporciona alimento, vestimentas e busca
encaminhá-los para outros serviços, como por exemplo, atendimentos de
saúde. Para a realização deste projeto a instituição realiza regularmente
arrecadação de roupas da população maringaense e conta com a parceria da
Secretaria de Assistência Social e Cidadania (SASC) – recebendo recursos por
meio de Edital de Inexigibilidade – e da Igreja Nossa Senhora da Glória
(Catedral) – da qual recebem 60 cestas básicas mensais. De acordo com a
85
As informações seguintes sobre a ASSINDI foram obtidas no site da instituição
(http://www.assindi.org.br/), Vieira (2012), Souza (2013) e também nas conversas e convivência que
tive com funcionários da ONG.
86
O termo parceria, como já mencionado, é usado pela instituição para se referir aos doadores e
apoiadores do trabalho da ONG. Porém, também é usado por parte dos indígenas para se referirem ao
apoio da instituição, e é neste sentido que o termo aparece aqui.
87
Destaco que a ASSINDI não tem estrutura física para receber todos os Kaingang que vão para Maringá,
assim, muitos ainda dormem nas ruas, rodoviárias, terrenos vazios, entre outros espaços da cidade.
Atualmente, uma das principais lutas da instituição é que a prefeitura maringaense crie algum tipo de
política de acolhimento específica para os indígenas que se encontram nessa condição.
88
A instituição chama de projetos as suas quatro frentes de atuação.
106
ONG estas parcerias representam 50% do orçamento gasto com o atendimento
aos Kaingang.
No ano de 2003, a ASSINDI ampliou o seu atendimento e passou a
receber também os estudantes indígenas, geralmente alunos da UEM
aprovados no vestibular específico. Este corresponde a um segundo projeto da
instituição. Os indígenas universitários e seus familiares podem residir na ONG
durante o tempo de duração de seus cursos acadêmicos de acordo com a
disponibilidade de vagas nas cinco casas destinadas para esta finalidade. Cada
construção na ASSINDI contém uma placa de metal com o nome da mesma,
ano de construção e origem dos recursos para a obra. Com relação às casas
destinadas aos estudantes, os nomes e origem do recurso são: Casa
Kaingang, construída com recurso da Campanha da Fraternidade (Por uma
Terra Sem Males); Casa Guarani, construída com recurso do Fundo Canadá;
Casa Haida, construída com recurso do Fundo Canadá; Casa São Francisco,
construída com recurso da Ordem Franciscana na Itália; e Casa Xetá,
construída com recurso da comunidade brasileira em Hamamatsu no Japão e o
Movimento Ecumênico de Maringá. Durante a pesquisa, dos vinte e dois
moradores indígenas da ONG, dezessete eram Guarani – dez adultos e sete
crianças. Como já mencionado anteriormente, quatro das casas eram
habitadas por famílias guarani e uma por uma família kaingang89.
Uma terceira frente de atuação da ONG corresponde ao atendimento às
crianças e adolescentes indígenas no Centro Social Infantil Indígena MitangueNhiri, construído com recursos da instituição católica alemã Kindermissionswer
e implantado em 2012. Os pais e mães que vão vender artesanato na cidade
ou realizar suas atividades acadêmicas podem escolher deixar seus filhos no
Mitangue-Nhiri.
Neste
espaço,
as
crianças
e
adolescentes
recebem
alimentação e desempenham atividades lúdicas e educativas com uma
professora que é funcionária da instituição. O centro também recebe
estagiários diversos, entre eles estudantes brancos, indígenas e alunos(as) de
intercâmbio internacional.
89
Ainda, devido à falta de estrutura da ASSINDI para receber todos os estudantes indígenas de Maringá,
muitos universitários moram em casas alugadas em diferentes regiões da cidade, geralmente em bairros
afastados da UEM.
107
A quarta frente de atuação da instituição é o projeto interação, que
promove o encontro entre indígenas e não indígenas, principalmente por meio
de visitas à ASSINDI de alunos das escolas públicas e particulares de Maringá
e região. Nestas ocasiões, funcionários da ONG e os indígenas universitários
que moram na ASSINDI conduzem palestras nas quais falam a respeito da vida
nas aldeias, das culturas guarani e kaingang90, dos direitos indígenas, das TIs
no Paraná, entre outros assuntos. Esse projeto tem como objetivo, segundo a
instituição, desconstruir visões ultrapassadas a respeito dos povos indígenas e
atender à Lei nº 11.645/08, que torna obrigatório o ensino de história e cultura
afro-brasileira e indígena em instituições de ensino fundamental e médio no
Brasil.
Os estudantes indígenas da ASSINDI são, em geral, universitários da
UEM. De acordo com informações da Comissão Universidade para Índios
(CUIA/UEM), no ano de 2015 a universidade contava com 31 estudantes
indígenas, dos quais 17 eram Guarani. Os estudantes indígenas são
selecionados a partir do Vestibular dos Povos Indígenas no Paraná, que foi
criado a partir da Lei Estadual nº 13.134/2001, que “reserva 3 (três) vagas para
serem disputadas entre os índios integrantes das sociedades indígenas
paranaenses, nos vestibulares das universidades estaduais”. Em 2006, a lei foi
atualizada pela Lei Estadual nº 14.995/2006, que aumentou para seis a
quantidade de vagas asseguradas aos indígenas em cada vestibular.
Vale
destacar que estas vagas são suplementares, ou seja, são vagas adicionais
específicas para indígenas que vivem em aldeias no estado do Paraná.
A Universidade Federal do Paraná (UFPR) demorou um pouco mais que
as estaduais para oferecer vagas específicas aos indígenas nos cursos de
graduação. Foi apenas em 2004, por meio de um convênio com a Secretaria de
Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do Paraná (Termo de
Convênio n° 502/2004), que a instituição se tornou uma opção aos inscritos n o
Vestibular dos Povos Indígenas no Paraná91.
90
A forma como a instituição mobiliza a categoria cultura é abordada ao longo do capítulo.
Essa diferença entre a universidade federal e as estaduais está ligada a um quadro mais amplo de
debates referentes ao ensino superior indígena em âmbito nacional (cf. Souza Lima, 2007; Barroso-
91
108
O vestibular específico ocorre uma vez ao ano em uma das
universidades públicas estaduais paranaenses e corresponde a um processo
seletivo classificatório com provas de língua portuguesa (oral, redação e
interpretação de textos), língua estrangeira moderna (inglês ou espanhol) e/ou
línguas indígenas (guarani ou kaingang), biologia, física, geografia, história,
matemática e química. A organização do vestibular é responsabilidade da
instituição na qual o mesmo é sediado em cada ano e da CUIA. Esta, por sua
vez, de acordo com a Resolução Conjunta nº 006/2007, é formada por até três
membros de cada uma das universidades públicas paranaenses (indicados
pelos respectivos reitores), tem caráter permanente e interinstitucional e “a
finalidade de viabilizar aos membros das comunidades indígenas, o acesso,
permanência e conclusão nos cursos de graduação nas Universidades
Públicas, sediadas no Estado do Paraná”. Os requisitos formais aos membros
da CUIA são que tenham experiência em educação intercultural, ensino,
pesquisa e extensão com populações indígenas ou “tradicionais” e o
comprometimento com políticas de inclusão.
Devido às dificuldades de se ausentarem de suas comunidades e de não
disporem de recursos para custear as despesas com manutenção na cidade –
moradia, transporte, alimentação, etc. –, o governo paranaense, por meio da
SETI, destina uma bolsa de auxílio financeiro a cada aluno e aluna indígena.
Atualmente
regulamentado
pela
Resolução nº 23/2016,
este
auxílio
corresponde ao valor de R$ 900,00 (novecentos reais) com acréscimo de 50%
aos indígenas que comprovarem ter filho(s) e/ou filha(s) sob sua guarda. A
condição para a permanência da bolsa é que o(a) aluno(a) tenha pelo menos
75% de frequência nas atividades acadêmicas.
Como pode ser percebido na descrição sobre a ASSINDI e o vestibular
específico para indígenas no estado do Paraná92, tanto a ONG quanto a
universidade se conectam a emaranhados institucionais (Morawska Vianna,
2010; 2014) que envolvem setores do Estado, organizações internacionais,
Hoffman e Souza Lima, 2006, 2007; Barroso e Souza Lima, 2013; Cajueiro, 2008; Almeida, 2008). Para
uma análise do primeiro vestibular indígena da UFPR, ver Bevilaqua (2004).
92
Para análises e estudos mais aprofundados acerca do surgimento e desenvolvimentos das políticas de
acesso ao ensino superior voltada às populações indígenas no Paraná, ver Rodrigues e Wawzyniak
(2006), Novak (2007), Paulino (2008), Amaral (2010) e Goulart (2014).
109
instituições religiosas, instituições de ensino, entre outras. A principal conexão
entre a ASSINDI e a UEM não ocorre por uma via institucional, mas sim pelos
próprios indígenas que são ao mesmo tempo universitários e moradores na
ONG. Ainda assim, existem outras conexões, como por exemplo, as parcerias
da ASSINDI com a universidade na organização de eventos – como no evento
de bioescultura citado no capítulo anterior e que é retomado neste – ou na
presença de professores da UEM em cargos administrativos da ONG.
O modus operandi técnico-burocrático produz efeitos nas relações entre
os agentes institucionais e os indígenas. Nos tópicos seguintes, inicia-se uma
reflexão acerca de alguns destes efeitos, especificamente, com relação à
estabilização/objetificação de certos saberes.
3.1.1. Sobre a mobilização de etnônimos e autodenominações
Ao longo da pesquisa de campo acompanhei três edições do evento
Diálogo, promovidos pela ASSINDI para discutir a presença indígena em
Maringá junto a representantes do poder público do município. Na primeira
edição, Diálogo I: indígenas em Maringá, um ocorrido inusitado estimulou-me
refletir sobre a mobilização de etnônimos com relação aos Guarani.
Nesta edição, foi convidado como palestrante um funcionário da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos (SMDH) de Porto Alegre (RS),
formado em Ciências Sociais e com experiência na produção de políticas
públicas específicas para indígenas em contexto urbano – ele trabalhou
especificamente com os Guarani Mbya e Kaingang em Porto Alegre.
A
primeira parte do evento aconteceu na ASSINDI pela manhã com um público
majoritário de representantes de setores da prefeitura de Maringá. No período
da tarde o palestrante continuou com as atividades na UEM e com uma
presença maior de indígenas93.
Nesta segunda parte do evento, a dinâmica de exposições teve mais
um caráter de diálogo e conversa do que de uma palestra. Indígenas, a
antropóloga da ASSINDI, pesquisadores e curiosos falaram. Em meio a esse
93
Nas três edições do Diálogo, além de representantes da administração pública e indígenas, os eventos
contaram também com uma considerável parcela de acadêmicos não indígenas – alunos e docentes.
110
bate-papo, algo dito pelo convidado de Porto Alegre desencadeou uma reação
curiosa em alguém que assistia. O palestrante ressaltava a importância da
participação dos próprios indígenas na produção de políticas públicas e a
necessidade de compreender as demandas e especificidades dos indígenas
em cada localidade – que em sua experiência havia resultado em ações
distintas para os Mbya e para os Kaingang em Porto Alegre. Ele destacava
também que os Guarani em Porto Alegre eram diferentes daqueles que viviam
em Maringá, ou seja, não era possível apenas transplantar uma política de um
local para o outro. Foi neste momento que o convidado especificou que em
Porto Alegre os Guarani são Mbya e em Maringá são Nhandewa. Uma jovem
Guarani olhou para a pessoa que estava sentada ao seu lado e perguntou
baixinho: “Nós somos Nhandewa?”. Esta incerteza ao redor de uma
classificação tão comum na bibliografia etnológica me fez atentar para a
mobilização de etnônimos entre os meus interlocutores Guarani em Maringá.
Geralmente, os trabalhos acadêmicos na área de etnologia fazem uma
breve discussão ou descrição acerca de etnônimos para fins de apresentar os
povos que estudam. Não é o caso deste trabalho. Como pode ser percebida na
breve discussão sobre etnônimos realizada no Capítulo I, esta é uma questão
que deve ser entendida a partir de relações específicas. A mobilização de
etnônimos tornou-se interessante dentro de certa situação em Maringá, assim,
optei por conectá-la a esta reflexão acerca das perspectivas institucionais ao
invés de trazê-la apenas para fins de apresentação. Os etnônimos aqui não
têm finalidade de delimitação de “grupos” ou qualquer intenção parecida, mas
sim de refletir acerca dos modos de pensar e fazer guarani e institucionais.
Como mencionado anteriormente, existe uma convenção na etnologia,
inspirada em Schaden ([1954] 1974), de que os Guarani que vivem no norte do
Paraná são ligados a um “subgrupo” Nhandewa. Esta classificação vem sendo
reproduzida amplamente pela literatura etnológica e também por instituições,
como a ASSINDI e a UEM94. Mas e os Guarani? Como mobilizam essa
categoria? Entre meus interlocutores em Maringá, percebe-se que nenhum
94
Esta associação entre saberes etnológicos e institucionais não é estranha se considerarmos que a
etnologia e o indigenismo possuem uma estreita relação histórica ao longo do século XX no Brasil (cf.
Souza Lima, 2002).
111
deles chega ao pesquisador e enuncia prontamente “sou Nhandewa” ou “sou
Guarani Nhandewa”, eles dizem “sou Guarani”. No entanto, como eu carregava
uma incerteza etnológica quanto aos etnônimos Guarani, busquei investigar
isto mais a fundo junto a eles. Ao perguntar mais e me aprofundar em suas
teias de palavras, a maioria acabava chegando à categoria Nhandewa e se
reconhecendo como tal. Eu perguntava, não para pressioná-los e enfim
conseguir classificá-los, mas por um interesse que surgiu da própria pesquisa.
Alguns dos meus interlocutores me davam respostas muito parecidas
com a de Schaden. Falavam desses três “subgrupos” e se vinculavam ao
Nhandewa. Outros apontavam para caminhos mais complexos, falavam de
outros etnônimos como Awa Guarani e Guarani do Paraguai. Marlene, por
exemplo, me disse que seu pai, o txamõi Awa Djemõwytsu, é Kaiowa e sua
mãe Mbya, portanto, seguindo a linhagem paterna, ela se consideraria Kaiowa
– embora conheça mais da língua nhandewa. Na versão da irmã, Laura, que se
considera Nhandewa, seu pai é Guarani do Paraguai e sua mãe é que é
Kaiowa. Para Laura, ainda que o pai seja Guarani do Paraguai, ela diz que ele
se considera muito Nhandewa, pois mora em uma aldeia onde convive com
maioria Nhandewa. Henrique, o outro irmão que mora em Maringá, também se
considera Nhandewa.
Ricardo, além de se reconhecer como Nhandewa, se reconhece
também como Tupi. Ao perguntar se ele usa com frequência a denominação
Nhandewa, ele responde que sim, “usa sempre, Guarani Tupi, Tupi
Nhandewa...”. Depois me explica que Tupi, é o tronco linguístico95 – questão a
qual volto mais à frente. Quando pergunto para sua esposa, Eliane, ela traz as
noções de pureza e mistura para a reflexão. Ela diz que hoje em dia tem muita
mistura entre os Nhandewa com outros Guarani e os brancos, nesse sentido,
fica difícil de definir quem é Nhandewa puro. A ideia de pureza para ela está
95
Há algumas pesquisas com populações guarani, no estado de São Paulo, que se reconhecem como
Tupi Guarani, cf. Mainardi (2010; 2016), Almeida (2011; 2016), Danaga (2012; 2016) e Mainardi, Almeida
e Danaga (no prelo). Nos trabalhos destas autoras, consta que seus interlocutores eram classificados
como Nhandewa de acordo com a bibliografia, mas os mesmos não se autodenominavam como tal.
Porém, diferente da colocação de Rodrigo, que aciona o tronco linguístico Tupi-Guarani como uma
forma de autodenominação, entre os Tupi Guarani em São Paulo – grafados sem o hífen – a referência
oà à aoà t o oà li guísti o,à asà si à aà u à et
i oà ueà e e geà daà mistura à e t eà osà Gua a ià eà osà
antigos Tupi da costa.
112
associada à pessoa que é descendente de pai e mãe ligados a uma mesma
categoria de autodenominação.
Do ponto de vista de Luís, a pureza parece um ideal inalcançável. Filho
de pai Kaingang e mãe Guarani, ele é reconhecido pelos outros indígenas e
pelas instituições como Guarani. Pergunto a Luís se ele é Guarani ou
Kaingang. Ele ri e responde.
Aí foi criado uma nova ideia, de uma outra etnia, que no caso seria o
Kainguari [risos]. Mas isso aí são só alguns que falam, então... Mas assim,
[...] quando o pessoal fala "o que você é? Você é Kaingang ou Guarani?",
eu não me limito, eu não me especifico somente em uma, eu falo "eu sou
indígena", já basta. Se chegar alguém falando "não, mas é um trabalho
científico, a qual você pertence?", aí eu falo "então tá, eu pertenço...
Guarani ou Kaingang", por causa que minha mãe é Guarani. Mas eu não
fico "Ah, eu sou Guarani, eu sou Kaingang”, não, eu falo “eu sou
indígena...” (meus grifos).
Quando pergunto se ele usa ou se é comum usarem nas aldeias o
termo Kainguari, ele diz que “não, isso aí é uma ideia que minha mãe lançou e
meio que pegou nas reservas. Casa um Kaingang com Guarani, aí fala ‘vai sair
Kainguari’. Nas reservas até tem, mas é nova essa ideia”. Luís comparou esta
nova etnia, ou nova ideia, aos Tereguá, mistura de Terena com Guarani
comum na aldeia Tereguá na TI Araribá96. A fala de Luís é interessante para se
pensar o modo criativo e aberto a transformações das mobilizações de
autodenominações entre os próprios Guarani: “uma ideia que minha mãe
lançou...”. Luís se sente seguro ao se identificar como indígena, uma categoria
já bastante convencionada. A ascendência Kaingang e Guarani o deixa em
uma situação de ambiguidade e de ampla abertura para criação, como a ideia
de uma etnia Kainguari. Porém, como esta é uma nova ideia, nem um pouco
convencionada, Luís não se vincula a ela publicamente com tranquilidade e
livre de incertezas. Fala sobre ela praticamente em tom de brincadeira.
Ao mesmo tempo em que Luís faz enunciações sobre a mistura, sem
que isso seja um problema, “se for para um trabalho científico”, como destaquei
em sua fala, ele acaba se associando a uma classificação. Lembremos que o
96
Marcio Coelho (2016) realizou um estudo sobre a emergência do termo Tereguá entre os Guarani e
Te e aà aà TIà á a i .à Deà a o doà o à oà auto ,à aà atego iaà oà seà efe eà aà u aà ovaà et ia à ouà
so iedade ,à asàsi àaàu aàso ialidadeàpa ti ula à ueà esultaàdaà istu a àe t eàosàGua a iàeàTe e aà
naquela localidade.
113
“trabalho científico” está ligado a instituições, universidades e demais órgãos
de pesquisa. Na UEM, é comum que os indígenas sejam incitados pela
categoria etnia. No edital de abertura do Vestibular dos Povos Indígenas do
Paraná de 201697, por exemplo, entre os documentos exigidos aos candidatos
que optam por universidades estaduais, consta no Art. 7º § 4º, a necessidade
de “Autodeclaração assinada pelo candidato e Carta de Recomendação
assinada pelo cacique da comunidade à qual pertence o candidato, em que
conste a etnia indígena do mesmo”. Também é exigido, de acordo com o § 5º,
“Questionário Socioeducacional devidamente preenchido”, o qual também pede
a etnia do candidato entre outras diversas questões. Tal questionário,
geralmente se converte em estatísticas posteriormente. Por mais que o
candidato tenha a liberdade de preencher o questionário com uma categoria
não convencional, como Kainguari, o que estes documentos produzem é a
estabilização dessas autodenominações em dados e estatísticas, ao passo que
entre os Guarani, a dinâmica ocorre de forma muito mais aberta e relacional.
Assim, as autodenominações dos Guarani em termos de categorias
fixa emergem na relação com a lógica institucional. Nesses momentos, Luís
deixa de lado as explicações sobre a mistura e evoca a categoria Guarani
(Nhandewa). Quando lhe pergunto sobre as diferenças que existem estre os
Guarani, ele diz: “Vamos pegar o exemplo de uma árvore. Existe o Guarani
mesmo, o Tupi-Guarani, e esse é o tronco, que é de onde sai os galhos, no
caso. Desse tronco Tupi-Guarani sai o Guarani Nhandewa, que somos
nós, sai os Kaiowa... nossa, daí tem mais uns três...” (meus grifos). Ao se
reconhecer como Nhandewa, Luís traz a clássica imagem, muito difundida pela
etnologia e diversas organizações, do tronco linguístico Tupi98 – citado também
por Rodrigo. Quando Luís diz “Existe o Guarani mesmo, o Tupi-Guarani”, ele
não está falando de si próprio, mas de uma abstração reificada.
97
Em 2016 o Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná ocorreu na Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (UNIOESTE).
98
De acordo com o site do Instituto Socioambiental (ISA), na divisão do tronco linguístico Tupi, o TupiGuarani aparece como uma família, o Guarani como língua e o Nhandewa como dialeto (cf.
http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/linguas/troncos-e-familias, acesso em 03 de outubro
de 2016.). Dialeto é o mesmo termo utilizado por Schaden ([1954] 1974) e alguns dos meus
interlocutores para falar das diferenças entre os Guarani.
114
Esse tipo de pensamento é, nos termos de Luís e também de Deleuze
e Guattari ([1980] 1995), arborescente, que precisa de uma unidade (um
tronco) para derivar as diferenças. Strathern (1991), também discorre sobre
este modo de pensar. Ela identifica duas imagens recorrentes nos trabalhos
etnográficos: os “mapas” e as “genealogias” (árvores). Nos mapas há regiões,
sub-regiões e divisões que, em diferentes escalas de proporção, distinguem
diferentes domínios (continentes, países, cidades, bairros, ruas, etc.). Nos
diagramas genealógicos, como nos troncos linguísticos, os domínios (uma
classe, uma ordem, uma família, uma espécie, um dialeto, etc.), estão
encadeados em um esquema de descendências e derivações. Nos dois casos,
a conexão entre um domínio e o outro é desproporcional, pois partem do
pressuposto de que um domínio engloba o outro e possuem grandezas
diferentes de complexidade. Essa lógica, apontada por Strathern, aparece na
etnologia Guarani na ideia que há um “todo” Guarani composto por “partes”,
“subgrupos” ou “parcialidades”, descendentes desse todo – no caso,
Nhandewa, Kaiowa e Mbya.
Especificamente sobre etnônimos, Calavia Sáez (2013) refere-se a
esse modelo genealógico como uma maneira de classificar os povos há muito
tempo em desuso, pois atualmente seriam privilegiadas abordagens atentas
aos vínculos e às relações entre parentelas co-residentes, à memória dos
próprios indígenas, autodesignações, entre outras que dão maior atenção às
“ideologias indígenas relativas à socialidade” (p.7). No entanto, os Guarani
acionam diferentes lógicas de mobilização de autodenominação e etnônimos
em diferentes relações. Quando Luís aciona a lógica arborescente para
explicar os etnônimos Guarani, ele não está se comprometendo com esse tipo
de pensamento, mas evidenciando que é esta a linguagem posta pelas
instituições. São pontos de estabilização com os quais os Guarani dialogam
dentro de um contínuo processo de produção de multiplicidade.
Quando nos aprofundamos nas elaborações dos Guarani sobre suas
filiações e usos de autodenominações percebemos que, apesar de acionarem
lógicas genealógicas de classificação em algumas situações, elas não bastam.
O caso de Pedro, por exemplo, faz pensar que a autodenominação tem menos
a ver com ascendência/descendência (genealogias) e mais com relação. Pedro
115
me diz que o que define se um sujeito é Nhandewa é o lugar onde ele nasce e
vive. Se o sujeito nasce e vive em uma aldeia na qual o enunciado coletivo é
Nhandewa, como em Laranjinha, Pinhalzinho e Nimuendajú, é comum que o
mesmo se autodenominem como Nhandewa. Os pais de Pedro são Guarani,
mas ele tem conhecimento de ter ascendentes Kaingang e Terena também. No
entanto, como nasceu e sempre viveu em aldeias Guarani, assim ele se
identifica. A questão não é a aldeia como local geográfico (um domínio
“mapeável”), mas o conjunto de relações, uma forma de socialidade da qual
emergem enunciados.
Lembremos que em Pinhalzinho a autodenominação Nhandewa é
eleita pelos Guarani também pelo seu caráter de pronome na primeira pessoa,
conferindo ao termo um duplo sentido. Viveiros de Castro (1996) chama a
atenção para a característica de que as autodenominações enunciadas pelos
povos indígenas não se referem a nomes, mas sim a pronomes. Segundo o
autor, os etnônimos surgem na interação com não indígenas e incidem
primordialmente na nomeação de terceiros, ou seja, a categoria do “eles” e não
do “nós”. É neste sentido de nomeação do outro que se entende aqui as
classificações feitas por certa literatura etnológica, organizações e setores do
Estado. Assim, a forma como os Guarani mobilizam a categoria Nhandewa
(entre outras) é distinta do modo como fazem a ASSINDI e a UEM. Tenho
engendrado ao longo do texto o termo Guarani, sem complementos, porque é
assim que meus interlocutores indígenas, tanto em Maringá como em
Pinhalzinho, se autodenominam nas relações do dia a dia. Da perspectiva
guarani, em ambos os locais, a mobilização de autodenominações não segue
um padrão de classificação automático, mas sim lógicas relacionais de
autodenominação.
Assim, os meus interlocutores indígenas em Maringá são Guarani, mas
também se associam a outras formas de autodenominação. A maioria também
é Nhandewa. Marlene aciona a categoria Kaiowa, embora tenha maior
conhecimento da língua nhandewa. Luís também se considera Kaingang e
Kainguari. Rodrigo se reconhece também como Tupi, mesmo sabendo que
este é um termo que vem do tronco linguístico. Essa variação de
autodenominações não quer dizer que meus interlocutores desconheçam o que
116
eles são, mas que a multiplicidade do que são não cabe em categorias
reificadas.
Ser Guarani, como pode ser percebido desde o primeiro capítulo com
as descrições dos dons e as experiências pessoais de mobilidade, está
relacionado com a multiplicidade de singularidades. Com a mobilização de
autodenominações
não
é
diferente.
As
diferenciações
mostram
que
classificações reificadas e institucionalizadas não dão conta da dinâmica das
relações guarani. O acionamento de uma autodenominação não diz respeito a
um pertencimento original e imutável, mas a conexões parciais em um
complexo relacional.
Destaco três aspectos acerca da mobilização de etnônimos e
autodenominações guarani em Maringá. Primeiro, as instituições tendem
buscar a estabilização de autodenominações, perspectiva que, na leitura
proposta por Viveiros de Castros (1996), produz os etnônimos. Segundo, as
autodenominações Guarani são relacionais e dizem respeito a uma socialidade
caracterizada pela multiplicidade e abertura a novas possibilidades. Terceiro, o
modo guarani de lidar com as autodenominações envolve também dialogar e
acionar formas institucionais de mobilizar etnônimos, sobretudo, quando estão
em relação com tais organizações. Assim, entende-se que a lógica institucional
é mais uma possibilidade de relação da perspectiva guarani.
É importante ressaltar também, que não se trata de simplesmente opor
a socialidade guarani ao modus operandi das instituições. Se, por um lado, os
Guarani dialogam com os saberes e a lógica das organizações, por outro, as
organizações também dialogam com a multiplicidade. Vejamos como os
contrastes, encontros e composição de perspectivas aparecem na vida
universitária dos Guarani e em alguns eventos institucionais.
3.1.2. A vida universitária
Não é possível falar de uma experiência guarani dentro da universidade,
mas
de
muitas
experiências
singulares.
No
geral,
percebe-se
um
estranhamento dos Guarani, a princípio, com a dinâmica da vida universitária,
117
mas a forma como cada um se insere neste mundo ocorre por caminhos
pessoais. O amadurecimento e a não fixidez, discutidos no Capítulo II para
pensar a mobilidade guarani, também são percebidos na relação dos Guarani
com a UEM.
Em certa tarde na universidade, perguntei a Pedro o porquê de fazer um
curso universitário. Ele diz:
Acho que eu sempre gostei de estudar, eu acho. Com as dificuldades que
a gente tem, mas eu acho que eu sempre gostei. Mas eu não sabia que
curso. Daí eu estava pretendendo fazer Pedagogia, mas daí, com a
influência de colegas que estavam fazendo técnico em enfermagem, eles
começaram a falar como é que era, daí eu “ah, vou fazer Enfermagem”.
Pedro entrou no curso de Enfermagem em 2012 e elegeu o curso a
partir dos relatos de outros Guarani que faziam curso de Técnico em
Enfermagem. Porém, ao iniciar o primeiro ano ele encontrou bastante
dificuldade com a linguagem da biologia e acabou desistindo na metade de
2012. Pedro retornou ao curso em 2013, novamente por incentivos de seus
colegas Guarani. Além destes, ele diz que o apoio dos pesquisadores do
Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história (LAEE), que trabalham
em parceria com a CUIA na UEM no acompanhamento dos estudantes
indígenas, foi crucial para que ele permanecesse. Sobre a vida universitária,
ele afirma:
Aqui na cidade é muito corrido, sabe? [...] Quando eu estava estudando,
na época em que [a UEM] não estava em greve, eu estava cronometrando
tudo. Cronometrando na hora de dormir, na hora de comer, na hora de
estudar, na hora de... tudo. Porque se não, não dá conta. Eu sofri bastante
[...]. Agora eu acostumei, mas foi uma opção difícil, difícil mesmo.
A fala de Pedro traz a ideia de que a vida na cidade, especificamente
com relação à universidade, é marcada por uma temporalidade cronometrada.
Ao mesmo tempo em que a vida é corrida, o tempo é estabilizado por um
cálculo cronometrado para dar conta de todas as atividades por fazer. Pedro
desistiu temporariamente e depois retornou para o curso de graduação.
Casos de outros Guarani universitários apontam para uma grande
mobilidade com relação aos cursos escolhidos. A maioria dos meus
interlocutores Guarani já solicitou transferência interna – mudança de curso –
ao longo da trajetória acadêmica. Marlene, por exemplo, ingressou em
118
Informática em 2006, cursou um ano e trancou por três anos. Depois entrou em
Educação Física, mas também não concluiu. Descobriu então que queria ser
professora e ingressou no curso de licenciatura em Letras. Seu marido, Fábio,
também não seguiu adiante no curso no qual ingressou. Ele foi aluno de
Ciência da Computação por dois anos, de 2004 a 2006. Ele disse:
Na verdade, quando a gente fazia o vestibular a gente não tinha noção do
que que era o curso. [...] A gente escolhia o curso e não tinha noção do
que caia dentro do curso[...]. Eu falei assim, "vou fazer Ciência da
Computação porque vou aprender a mexer no computador", essa era a
ideia que eu tinha. Mas quando cheguei no curso... nossa senhora! É
cálculo pra todo lado. Era o meu ponto fraco, entendeu? [...] A primeira vez
que eu tive contato com um computador foi aqui, já dentro da universidade.
[...] O dia que começou a aula eu fui para a universidade e na hora do
intervalo eu desci lá na tulha99 e fui ligar um computador que nós tínhamos
lá, um computador antigo. Foi lá que eu fui aprender a ligar o computador.
Aí eu cheguei dentro do curso de ciência da computação e eu falei "cara, o
que eu estou fazendo aqui!?". Tinha umas garotadas lá muito feras na
internet, no computador, já dominavam bastante. Tanto que o professor
dava aula [...] e tinha um monte digitando no notebook. E eu no caderno
mesmo, porque eu não tinha noção. [...] Olha, eu tinha dois amigos, [...]
que me ajudavam bastante, aí tinha um outro pessoal lá que era mais
playboyzinho, foi os que começaram a ter discriminação comigo, porque
viam que eu estava, tipo assim, muito fraco em questão de matéria.
As dificuldades de Fábio no curso, que era de período integral, somadas
às dificuldades financeiras e problemas familiares, fizeram com que ele
trancasse sua matrícula. Em 2005 ele se tornou pai, Marlene teve
complicações no parto e problemas de saúde após a gravidez. A bolsa de
auxílio que Fábio recebia não era suficiente para as despesas da família. Foi
então que ele deixou a universidade e foi trabalhar como servente de pedreiro,
trabalho no qual ganhava em média cinquenta reais por dia de serviço.
Em 2010 Fábio voltou pra UEM, mas desta vez para o curso de Direito.
Em 2015 ele estava no quarto ano da graduação e se mostrava contente com a
escolha do curso, que, segundo ele, é de grande importância para trabalhar em
prol dos direitos indígenas. Seu irmão Marcos, que hoje faz Pedagogia,
também ingressou na vida acadêmica em outra área de conhecimento. Ele
99
Tulha é o nome de um tipo de construção em madeira comumente utilizada para guardar grãos em
ambientes rurais. O LAEE é conhecido como tulha, porque o espaço físico do laboratório possui a mesma
estrutura e instalação de uma tulha, que foi trazida de outro local e montada dentro da universidade. A
CUIA/UEM é sediada neste mesmo espaço.
119
fazia Educação Física, mas pediu transferência de curso porque não se dava
bem com as disciplinas ligadas à biologia.
Luís foi outro interlocutor que também mudou de curso de graduação.
Ingressou em 2009 em Agronomia, por pensar que poderia trabalhar com
agricultura na aldeia. No entanto, ele diz que “com o amadurecimento”, foi
conhecendo melhor a universidade e percebeu que não era o que ele queria.
Em 2011 mudou para o curso de Direito, no qual permanecia até o momento
dessa pesquisa. Sua tia, Eliane, não mudou de curso, mas disse que sua
primeira opção não era Letras, e sim Ciências Sociais. Ela diz que mudou de
ideia em cima da hora, quando fez a matrícula, e que não se arrependeu, pois
gostou do curso escolhido.
Essa mobilidade interna entre cursos de graduação acarreta que muitos
estudantes indígenas permanecem um tempo maior dentro da universidade do
que o tempo mínimo de conclusão de um curso de graduação estabelecido
pela
instituição100.
Nesse
sentido,
a
CUIA/UEM
consegue
negociar
transferências com maior flexibilidade para os indígenas universitários. De
acordo com os trabalhos de Rodrigues e Wawzyniak (2006), Novak (2007),
Paulino (2008), Amaral (2010) e Goulart (2014), um dos desafios das
instituições de ensino público paranaenses é garantir a permanência dos
estudantes indígenas até que concluam seus cursos. Assim, algumas medidas
em âmbito estadual – como a bolsa auxílio – e outras particulares de cada
universidade são criadas para lidar com esta questão. Na UEM, essa
flexibilização das transferências é uma delas. Segundo Novak (2007):
Na UEM em 2006, através de solicitação dos membros da CUIA local,
nomeou-se pela portaria nº. 0662/2006 – GRE [Gabinete da Reitoria], uma
comissão para normatizar e regulamentar o programa de permanência dos
estudantes indígenas da instituição relacionado a questões formais e
pedagógicas. Essa comissão, composta por membros da CUIA e outros
discentes e docentes indicados pelo CEP [Conselho de Ensino e
Pesquisa], em conjunto com os estudantes indígenas da UEM, elaborou
então a regulamentação do processo de ocupação de vagas, matrícula e
acompanhamento dos alunos indígenas. Este processo ficou normatizado
através da resolução 205/2006 – CEP (p. 120).
TalitaàDal B à
àe o t ouàsituaç esàse elha tes em sua pesquisa com estudantes indígenas na
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), como transferências e insatisfação com o curso de
graduação.
100
120
Considerando os termos legais predecessores, a Resolução nº 205/2006
estabelece algumas dimensões importantes para atuação da CUIA/UEM, como
a responsabilidade de distribuição de vagas específicas para indígenas por
curso de graduação, elaboração de Plano Individual de Acompanhamento do
Estudante Indígena (PIAEI), revisão de matrículas, orientação aos alunos(as)
em casos de trancamento especial de matrícula, avaliação e concessão de
novos prazos de conclusão de curso para alunos(as) que não se graduaram no
tempo máximo estabelecido, verificação das possibilidades de transferências
internas e externas para os estudantes indígenas, entre outras. Ainda que a
atuação da CUIA deva estar em diálogo com outras instâncias da universidade,
como os regimentos gerais a todos os estudantes ingressos na instituição e os
colegiados de cada curso de graduação, esta resolução demarca certa
flexibilidade à CUIA/UEM com relação aos tramites técnico-burocráticos ligados
aos universitários indígenas.
A CUIA aparece, ao mesmo tempo, como um seguimento da instituição
e um mediador entre indígenas e os regulamentos gerais da universidade.
Porém, como toda normatização, a resolução coloca uma série de limites a
essa flexibilização. Em alguns casos, os estudantes indígenas precisam refazer
o vestibular para dar continuidade aos seus cursos ou ingressar em uma nova
graduação. Isso aconteceu, por exemplo, com Marlene, que ingressou em 2006
e, durante sua formação no curso de Letras, extrapolou o tempo máximo para
conclusão da graduação. Quando tivemos as primeiras conversas em 2015, ela
estava matriculada no curso, porém, nos últimos dias em campo, recebi
notícias de que a mesma havia jubilado101 e não teria conseguido reingressar
por meio de um novo vestibular.
Percebe-se que o tempo Guarani diverge do tempo institucional. Este,
por mais que seja flexibilizado aos estudantes indígenas, corresponde a um
ideal que se resume em uma quantidade de anos de estudo que resultam em
um diploma. No âmbito da experiência, esse tempo pode ser percebido, como
expresso por Pedro, em um dia a dia corrido, no qual tudo tem que ser
cronometrado. Ainda assim, mesmo vivenciando o tempo da universidade,
101
A jubilação ocorre quando um aluno ou aluna excede o tempo máximo de conclusão de um curso de
graduação.
121
percebe-se, entre meus interlocutores Guarani, a busca por experienciar
diversos saberes que a universidade pode proporcionar. Ocorre uma
negociação entre dois tipos de tempo, o institucional e o da experiência. Este
último é um tempo de descobrimentos e desenvolvimento de dons. Lembremos
que a noção de dom diz respeito às potencialidades/capacidades de origem
celeste e as que são construídas e desenvolvidas no próprio curso da vida – e
mesmo as de origem celestes não são entendidas como entidades préexistentes à pessoa, mas sim como potências que só existem e são moduladas
na experiência vivida de cada Guarani.
No que diz respeito às vivências dentro de sala de aula, os percursos e
efeitos são singulares. Acompanhei dois dos meus interlocutores em atividades
acadêmicas: Marcos, em aulas e trabalhos do curso de Pedagogia, e Rodrigo,
em aulas do curso de Direito. Foram dois espaços de relações muito distintas e
singulares. Marcos, que ingressou, a princípio, no curso de Educação Física,
estava nos últimos anos da graduação em Pedagogia. Aparentemente ele tinha
um bom diálogo com as colegas de classe, professores e as discussões
relacionadas à educação. O curso era noturno e sua turma majoritariamente
composta por estudantes mulheres, das quais muitas eram trabalhadoras
assalariadas.
Marcos era o único aluno homem e indígena em sua turma. Ele brincava
que nesta condição, não tinha como os professores não decorarem o seu
nome. Nas aulas que assisti com ele não apareceram temáticas especificas
acerca das populações indígenas. Perguntei-lhe se essa era uma característica
corrente ao longo do curso. Ele respondeu afirmativamente, mas disse que
ainda assim conseguia estabelecer diálogos entre as abordagens pedagógicas
e as especificidades dos povos indígenas. Ele estava próximo de iniciar o seu
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e me apresentou algumas das suas
propostas de pesquisa. Dentre elas estavam temas como: a ida dos indígenas
para a cidade, a importância de pedagogos indígenas nas aldeias, o ensino da
espiritualidade guarani nas escolas indígenas, os motivos da perda da língua
guarani e os desafios para o seu resgate. Este último tema foi o eleito por ele e
sua orientadora, que desenvolve pesquisas sobre a educação escolar indígena.
122
As aulas na Pedagogia não eram excessivamente apegadas a
formalidades. Os estudantes dialogavam muito com os professores, saiam e
entravam na sala sem grandes restrições e geralmente se organizavam em
círculos
durante
as
aulas.
Temas
como
metodologia
de
pesquisa,
alfabetização, letramento, escolarização e psicologia aplicada à educação,
foram alguns dos que presenciei. Já nas aulas de Direito que acompanhei com
Rodrigo, a dinâmica era muito diferente.
Mesmo cursando a sua primeira opção de curso, Rodrigo já trabalhou
como professor na escola da aldeia e não desenvolveu interesse pela área da
educação. Como veio para a Maringá antes de ser aprovado no vestibular
específico, teve outras ocupações na cidade antes de se tornar estudante
universitário. A princípio trabalhou no LAEE junto a outros pesquisadores da
UEM na produção de materiais didáticos em guarani. Após, trabalhou como
jardineiro e também como abastecedor de produtos em estabelecimentos
comerciais pela empresa Coca-Cola.
Em 2015, no primeiro ano da graduação, diferente de Marcos, Rodrigo
não interagia muito com outros alunos do curso. Suas aulas eram matutinas e a
turma era composta majoritariamente por estudantes recém saídos do ensino
médio e que não trabalhavam. As restrições com horários de entrada e saída, a
disposição de carteiras em filas e a não interferência na exposição dos
professores durantes as aulas eram características marcantes. Assim como
Marcos, Rodrigo também era o único indígena em sua turma. Alguns temas
vistos em sala de aula dialogavam com questões pertinentes às realidades
indígenas,
como
por
exemplo,
a
relativização
da
universalidade
da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)102 – assunto de uma aula
de ciência política. Mas isso dependia muito da disciplina e do professor que a
ministrava. Em outra aula, por exemplo, o professor da disciplina de teoria geral
do direito ensinava teoria liberal jusnaturalista103 como se fosse uma verdade
universal e sem mencionar as suas fontes teóricas para tal reflexão. Em certo
102
A DUDH foi adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em dezembro de 1948, poucos anos
após o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e versa sobre direitos considerados básicos aos
humanos, sobretudo acerca das liberdades individuais.
103
Alguns dos teóricos clássicos considerados jusnaturalistas são Thomas Hobbes (1558-1676), John
Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
123
momento, quando o professor discorria sobre o “direito natural à propriedade e
à vida”, disse: “eu posso matar para defender minha vida e para defender
minha propriedade...”. Uma perspectiva que, tomada como “natural e
universal”, em nada contribui com as discussões acerca dos direitos indígenas
à demarcação de seus territórios.
Entendo estes discursos diversos dentro de salas de aula como
possibilidades múltiplas de saberes que os indígenas podem experimentar em
suas trajetórias universitárias. Por mais que a instituição seja uma organização
que estabiliza saberes, não existem perspectivas únicas. Retomando Herzfeld
([1997] 2008), a instituição, como um setor do Estado, pode ser melhor
entendida como um complexo instável de pessoas e funções, e não como uma
abstração reificada. Há de se considerar que as salas de aula são partes da
instituição que possibilitam menores níveis de estabilização, já que, de certa
forma, agencia saberes que podem vazar com maior facilidade ao controle
técnico-burocrático institucional. Isso não quer dizer que todas as aulas são
permeadas por saberes múltiplos e abertos à desestabilização. Algumas aulas,
como as que encontrei na Pedagogia, ainda que trabalhem com uma série de
saberes estabilizados na área, possuem um formato que possibilita a
mobilização de saberes diversos. Outras aulas, como as de teoria geral do
direito, possuem um formato e conteúdos altamente formalizados e reificados.
São complexas possibilidades que a própria lógica institucional permite. Neste
sentido,
percebe-se que,
assim
como os Guarani acionam
saberes
estabilizados em certas situações – como vimos na discussão sobre a
mobilização de autodenominações –, as instituições acionam saberes
múltiplos, ainda que sejam caracterizadas por uma lógica reificante
convencionada.
Os Guarani podem chegar na UEM com expectativas específicas, mas
estas comumente se transformam, potencializando seus desejos por certas
áreas de conhecimento e/ou levando-os a mudarem seus caminhos. Os
motivos específicos para pausar ou trocar de curso podem ser vários –
dificuldades pedagógicas, um filho que nasce, desinteresse pelo curso ou
interesse por outro, etc. –, mas destaco que a abertura para experimentar e
mudar caso não dê certo na primeira tentativa, é recorrente. Mais uma vez,
124
aparecem as imagens da não fixidez e do amadurecimento entre os Guarani.
Na universidade, os Guarani desenvolvem seus dons e descobrem novos: o
dom para enfermagem, para advogar em prol dos direitos indígenas, para ser
professor, entre outros.
A CUIA aparece como uma mediação entre o tempo do amadurecimento
guarani e o tempo objetificante da universidade. No entanto, como um setor da
própria instituição, é limitada a certa forma técnico-burocrática. Nas salas de
aula, as experiências são múltiplas, não é possível falar em uma vivência
genérica. E nos caminhos para experimentar a universidade, os Guarani
encontram saberes diversos, dos mais reificados e fechados ao diálogo com
realidades indígenas, aos mais abertos às múltiplas experiências possíveis.
Assim, os Guarani vão caminhando e desenvolvendo os dons.
3.1.3. Eventos institucionais
Eventos institucionais ligados a “questões indígenas”, como os
Diálogos mencionados anteriormente, são recorrentes tanto na ASSINDI
quanto na UEM. A maioria dos eventos promovidos pela ONG está ligada à
questão dos indígenas na cidade, à discussão sobre políticas públicas
especificas para estes sujeitos e ao projeto interação. Já os eventos, projetos e
atividades desenvolvidos na universidade, em geral vinculados à CUIA e ao
LAEE, estão relacionados majoritariamente ao tema da educação indígena. Os
eventos aqui apresentados não são voltados especificamente para questões
ligadas ao universo guarani e correspondem à momentos em que os Guarani
se relacionavam com outros sujeitos, especificamente estudantes Kaingang e
brancos (professores, pesquisadores, funcionários da ONG, entre outros).
Em campo, procurei acompanhar os caminhos dos Guarani nas
instituições e segui por portas que me foram abertas. Nesse sentido, pude
experienciar eventos ligados à ASSINDI mais de perto do que os da UEM. Na
sequência, apresento alguns destes eventos, sobretudo ligados ao projeto
interação, para refletir sobre os encontros entre os Guarani e os não Guarani
em contexto institucional em Maringá.
125
Veio da Terra: a oficina de bioescultura
Era um sábado à tarde de meados de abril de 2015. Estava a caminho
do Centro de Excelência em Atendimento à Comunidade (CEC) da UEM para
participar da oficina de bioescultura, mencionada no Capítulo II. Chegando ao
local, encontrei acadêmicos brancos e indígenas da UEM, lideranças guarani e
kaingang de duas aldeias do Paraná, especialistas em técnicas de
bioescultura, entre outros sujeitos. Anteriormente descrevi parcialmente o
evento para falar do mborai que ocorreu na ASSINDI. Agora faço uma
descrição de outros aspectos para refletir sobre as complexas associações
entre os Guarani, outros indígenas e as instituições.
Como já mencionado, a oficina de bioescultura fez parte do projeto Veio
da terra, de autoria de uma professora de Artes Visuais da UEM, e envolveu
uma parceria com vários atores em Maringá. O projeto foi contemplado no
edital do Prêmio Aniceto Matti, promovido pela Secretaria de Cultura da
cidade. Para ministrar as atividades programadas o evento contou com
representantes do grupo de Curitiba “Arquitetura da Terra” e pessoas Guarani e
Kaingang de duas aldeias no Paraná – os Guarani, de Pinhalzinho. No primeiro
dia o evento ocorreu em um espaço da UEM e contou com a presença de uma
funcionária da universidade – técnica em assunto culturais –, que também era
presidente do Conselho Municipal de Cultura da cidade. No segundo dia o
evento ocorreu na ASSINDI e contou com a participação de funcionários da
ONG. A presidenta desta esteve presente em ambos os dias.
Ao chegar ao CEC no primeiro dia de oficina, o que primeiro chamou
minha atenção foram os artesanatos guarani à venda. As peças vinham da
aldeia Pinhalzinho e foram feitas por Douglas, o jovem com dons para atesania
em madeira. Eram principalmente petỹ gwa e pequenas esculturas de animais
vendidas por um valor entre dez e quinze reais (figura 15). Em geral, os
eventos abertos ao público são momentos privilegiados para a venda de
artesanato em Maringá. No dia seguinte, os Guarani que moram na ASSINDI
também estavam vendendo suas peças. Saí de lá com um mbaraka mirĩ feito
por Rodrigo.
126
Figura 15. Peças de artesanato confeccionadas por Douglas, à venda na oficina de bioescultura. Foto
de Tabajara Marques, 2015104.
No o início do evento, no primeiro dia, fomos para um gramado e
sentamos em círculo embaixo de algumas árvores. Primeiro, André, o arquiteto
especialista em bioescultura, se apresentou, falou de sua trajetória como
arquiteto e a ligação do seu trabalho com a terra. Ele afirmou ter aprendido
muito do seu ofício com camponeses e povos indígenas. Ao explicar sobre a
filosofia que inspira o seu trabalho, afirmou que mente e corpo não são coisas
separadas e que precisamos nos engajar no meio ambiente para aprendermos
na vida. No seu caso, ele se referia especificamente ao contato sensível com a
terra. Um dos elementos interessantes de sua fala foi a assumida influência
indígena e camponesa para um trabalho que ele divulga para não indígenas e
não camponeses, por meio, por exemplo, de oficinas como esta. Percebe-se
logo de saída, traços de objetificação do que ele assume como aprendido com
indígenas e camponeses.
Após a fala do arquiteto, todos nos apresentamos e continuamos
sentados em círculo para ouvirmos histórias de duas lideranças105 indígenas: o
104
Disponível
em:
http://tabajaramarques.blogspot.com.br/2015/04/ontem-no-centro-deexcelencia.html. Acesso em 07 de outubro de 2016.
105
Lembremos que o termo liderança pode ser usado para se referir aos txamõi e mais velhos da
comunidade também.
127
txamõi Awa Djemõwytsu e um Kaingang mais velho106. Este contou a história
do tamanduá e de como este bicho sabe, antes do nascimento de uma criança,
se uma mulher grávida terá um menino ou menina. Porém, a história que
descrevo a seguir é a contada pelo txamõi nos dois dias do evento. Entre
outras coisas, sua narrativa fala sobre os Guarani, os macacos, as aldeias e as
cidades.
O txamõi anuncia que contará a história do macaco, ka’i em guarani. Ele
diz que o macaco é um bicho muito inteligente, igual gente. Se ele é ferido, por
bala ou qualquer outra coisa, ele pega um remédio na floresta, uma folha,
mastiga e coloca na ferida para se curar. Ele faz esse mesmo processo com
outros animais e até com gente, pois o macaco, segundo o txamõi, é o melhor
amigo do humano. Ele diz que sua avó criava muitos macacos e ficavam todos
dentro de um balaio. Porém, os bichinhos eram muito sabidos e espertos.
Quando eles escapavam, entravam na casa da avó e da tia e mexiam nas
coisas delas – passavam batom, perfume e faziam outras coisas do tipo. A avó
ficava brava, mas não batia nos bichinhos. Assim, ele diz que aprendeu que
não se pode matar ou maltratar os animais, a não ser se for para comer.
O txamõi continua explicando que quando uma pessoa fica desorientada
na floresta, quando ela perde o sentimento, não sabe como voltar para a aldeia
e fica andando em círculos, os macacos podem lhe ajudar. Isso aconteceu com
um parente seu. A pessoa se perdeu, mas os macacos, que sempre andavam
em bando, lhe avisavam onde tinha onça e outros perigos, dos quais ela
desviava. Depois de dias, a pessoa encontrou o caminho para aldeia. Ele
evidencia essa relação entre humanos e animais não humanos quando diz que
sua avó e seu pai conversavam com os macacos. Com os macacos e outros
bichos da mata, eles haviam aprendido muito sobre plantas e remédios em
geral. O txamõi revela que aprendeu muito com o seu pai que, por sua vez,
aprendeu muito com os macacos, que foram seus mestres. Ele afirma saber
bem menos do que sabia seu pai, mas ainda assim, sabe bastante.
Atualmente o txamõi lamenta que os macacos estejam desaparecendo,
as matas diminuindo e as cidades crescendo. Ele diz não conseguir ficar por
106
O termo mais velho com relação à liderança Kaingang foi proferido por meus interlocutores guarani.
Assim, não é possível saber aqui se está é uma categoria mobilizada pelos Kaingang também.
128
muito tempo em ambientes urbanos. Quando vai para a cidade, como no caso
deste evento, fica uma semana, dez dias, mas não mais do que isso. Para ele,
a cidade tem muito barulho e ele gosta de ouvir os pássaros e a cachoeira, e
ver os peixes no rio. Antigamente, diz ele, a vida era mais tranquila. Na aldeia,
ainda hoje, a vida é mais tranquila, mas não mais como antigamente. Os
indígenas que vão para a cidade têm que “colocar outras coisas na cabeça”,
outras preocupações.
Enquanto o txamõi falava dos macacos, os tais animais apareceram
próximo ao gramado onde estávamos sentados. No começo vimos um ou dois
e em pouco tempo já havia dezenas. Saltavam pelas árvores ao redor e nos
galhos sobre nós. Queriam mexer nas bolsas e demais pertences dos
participantes da oficina. O txamõi pareceu não se surpreender com a aparição
e movimentação dos macacos. Ao percebê-los, apenas continuou sorrindo
como vinha fazendo desde o início de sua narrativa.
Ressalto dois pontos pelos quais a fala do txamõi é relevante aqui no
texto. O primeiro diz respeito ao encontro entre as perspectivas guarani e
institucionais no próprio evento. O txamõi nos apresenta uma narrativa que
descreve aspectos da socialidade guarani, como as relações entre humanos e
bichos que envolvem comunicação, assim como acontece no mborai entre
humanos, objetos e seres espirituais. Geralmente, na aldeia, essas narrativas
são contadas no dia a dia, nas relações com os parentes e amigos, como
quando o cacique de Pinhalzinho ensina as crianças sobre plantas com efeitos
de cura e histórias dos tempos passados – relações descritas no primeiro
capítulo. No evento de bioescultura, o formato e a lógica de como a narrativa é
contada são diferentes. Pediu-se ao txamõi, e também para à liderança
Kaingang, que suas narrativas fossem contadas nos dois dias do evento. Eles
em pé, um por vez, no centro de um círculo de pessoas, no primeiro dia
sentadas num gramado e no segundo em cadeiras brancas de plástico dentro
do museu da ASSINDI. Era preciso reproduzir a história com horário e data
marcada. Muito diferente de como ocorre na aldeia, nas relações com os
parentes e pessoas próximas.
Não se trata aqui de fazer julgamento de valor, dizendo que um modo de
fazer é “pior” ou “melhor” do que o outro, mas de destacar que o formato
129
institucional envolve a objetificação da narrativa do txamõi, de forma que ela
seja apreendida pelos brancos, acadêmicos e funcionários de instituições.
Deve-se destacar ainda, que este encontro de modos distintos de socialidade,
por mais que gere alguns contrastes e desencontros, gera também parcerias e
alianças, e são quistos por todas as partes envolvidas. Lembremos que ao final
da reza no segundo dia de oficina, o txamõi fez uma fala agradecendo aos
brancos da cidade que acolhem os seus semelhantes Guarani. A relação é de
interesse mútuo, por mais complexas e distintas que sejam as suas intenções e
efeitos.
O segundo motivo pelo qual a narrativa sobre os macacos é interessante
diz respeito a uma característica particular da cidade de Maringá. Os macacos
estão desaparecendo, diz o txamõi, mas em Maringá, por enquanto, parece
haver uma grande presença do bicho, que é avaliada como um problema de
superpopulação pela administração pública maringaense 107. Esta controvérsia
com relação aos macacos evidencia a diferença da relação dos Guarani para
com os estes animais e da administração pública maringaense. Com efeito, vai
de encontro com a fala do txamõi, que opõe a vida na aldeia com a vida na
cidade. O que se evidencia são duas perspectivas distintas de como lidar com
os animais, dois tipos de socialidade que os Guarani costumam enunciar como
dois tipos de cultura.
De volta ao evento de bioescultura, cultura ali, da perspectiva
institucional, não são as formas distintas de socialidade, especificamente, mas
a história do macaco objetificada dentro de uma programação de evento, com
tempo para começar e acabar. Cultura naquela situação são os artesanatos
prontos e acabados para serem vendidos. Por mais que, tanto a cultura do
ponto de vista guarani, quanto do ponto de vista das instituições, se encontrem
107
A presença dos macacos em Maringá tem sido tratada como um problema de superpopulação que
estaria relacionada a transtornos para a população humana e para os macacos, como problemas de
saúde, impactos ambientais para outras espécies, invasões domiciliares, acidentes de trânsitos, etc. Cf.
Redação (2014), disponível em: http://maringa.odiario.com/maringa/2014/04/maringa-tera-projeto-decontrole-populacional-de-macacos-pregos/824691/, acesso em 07 de outubro de 2016; Sato (2014),
disponível em: http://maringa.odiario.com/maringa/2014/11/institutos-aprovam-projeto-de-manejopopulacional-de-macacos-pregos-de-maringa/1226953/, acesso em 07 de outubro de 2016; R7 (2014),
disponível em: http://rederecord.r7.com/video/macacos-trombadinhas-preocupam-autoridades-demaringa-pr--535bbfa0490f8cffa5001f07/, acesso em 07 de outubro de 2016; Riuzim (2014), disponível
em:
http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/08/maringa-quer-fazer-vasectomia-em-macacospara-reduzir-superpopulacao.html, acesso em 07 de outubro de 2016.
130
parcialmente em algum momento (no artesanato, nas narrativas dos mais
velhos, etc.), elas possuem extensões de significados bastante distintos.
Quando um Guarani fala do artesanato, não é apenas o objeto final que está
em evidência, mas todo o processo de transformação dos materiais, saberes e
técnicas empregadas na produção de uma peça.
Figura 16. Simulação da composição da terra na oficina de bioescultura no CEC. Foto de Tabajara
Marques, 2015108.
Na sequência da programação do evento, André nos explicou um pouco
sobre a composição da terra e nos encorajou a participar de uma dinâmica. Ele
explicou que a terra é composta por três principais elementos que se associam:
argila, areia e silte. Falou das diferenças de cada elemento e logo nos dirigiu
para uma teatralização. Ele distribuiu figurativamente estes elementos entre os
integrantes do círculo de forma que cada um assumiria o papel de um dos três.
Ouvimos as instruções, nos dirigimos ao centro do círculo e nos posicionamos
em pé bem próximos uns dos outros: os siltes parados e encolhidos; as areias
mais espaçosas e com peito estufado, porém também paradas; as argilas em
pé, com a coluna ereta e esperando água para se expandir. De uma pequena
distância, André jogou água sobre nós e logo as argilas começaram a abrir os
108
Disponível
em:
http://tabajaramarques.blogspot.com.br/2015/04/ontem-no-centro-deexcelencia.html. Acesso em 07 de outubro de 2016.
131
braços e pernas. Quando “a terra secou” (ao sinal do arquiteto) as argilas
seguraram os elementos/pessoas ao redor e foram puxando-os cada vez mais
para o centro, diminuindo o espaço entre cada componente. Estávamos ali
todos apertados: silte, areia, argila, Guarani, Kaingang, brancos e outros mais.
Formávamos a composição de uma unidade que era a terra. Porém, éramos
uma composição temporária. Quando André jogou água de novo, nos
separamos em partes e a composição estava desfeita.
Apesar de o arquiteto dizer que muito de sua influencia vêm dos “povos
indígenas e camponeses”, essa forma de pensar a composição da terra que
relaciona partes e todo (unidade) é bastante distinta da forma como os Guarani
pensam as relações, seja com pessoas, animais, objetos, espíritos ou a terra.
Os Guarani, como venho mostrando ao longo do trabalho, equacionam as
relações em termos de singularidades e multiplicidades que nunca compõem
um todo, mas produzem diferença continuamente.
Após a dinâmica, nos dividimos ao redor de dez montes de terra
dispostos ao chão, que misturamos, amassamos, molhamos, moldamos e
transportamos para a construção de duas grandes peças de bioescultura. No
primeiro dia, fizemos um macaco, no segundo, um tamanduá, cuja calda serve
como escorregador para as crianças na ASSINDI. Ambos os dias de evento
terminaram como uma reza, uma delas descritas no capítulo anterior. Um dos
argumentos neste trabalho é que o mborai e a crisma que ocorreram na
ASSINDI aconteceram daquela forma devido ao espaço oferecer certas
possibilidades que permitem compará-la a uma aldeinha – como a mata, o
afastamento do centro da cidade, a presença majoritária de indígenas, etc.
Assim, destaco que a reza que ocorreu no primeiro dia no CEC foi muito
distinta da do segundo dia, pois não houve crisma, os Kaingang e brancos
presentes, que eram muitos, apenas assistiram, não havia os objetos
adequados para todos os Guarani, como kangwaa, djetsa’a e mbaraka mirĩ, e o
apyka com a infusão de wyra pire. Assim, ela ocorreu com maiores limitações e
mais parecia uma apresentação para os brancos – ainda que pudessem ter
estabelecido ali algum tipo de relação com os seres espirituais.
132
Figura 17. Da esquerda para direita, funcionária da UEM, representante da ASSINDI e família Guarani
ao final da oficina de bioescultura no CEC. Os quatro Guarani ao centro são moradores de Pinhalzinho.
As duas Guarani à direita são moradoras em Maringá. Foto de Tabajara Marques, 2015109.
Destaco que o encontro dos Guarani com os brancos e Kaingang neste
evento institucional na cidade gerou, ao mesmo tempo, composições e
contrates de perspectivas. A perspectiva guarani traz consigo uma forma
específica de socialidade, relações com animais, objetos e espíritos. Eram
perceptíveis também os dons singulares: o txamõi que guiou a reza e narrou
elementos que aprendeu com os antigos, o artesão especialista em peças de
madeira, a D. Cleide que assumiu o papel de ywyraidja na reza. Na perspectiva
institucional, como na composição da terra explicada pelo arquiteto, ocorre a
junção de partes, como na escultura de terra, que se unem, secam e
cristalizam no formato de um todo. O evento é percebido como um “todo” e o
seu resultado foi objetificado em uma exposição de fotografias no museu da
ASSINDI semanas depois.
Reitero que apesar de perspectivas e efeitos distintos, o encontro é
desejado por todas as partes envolvidas. Para os Guarani, o evento trouxe a
possibilidade de aproximar parentes da aldeia com parentes da cidade, realizar
a reza e crismar a terra na ASSINDI, sobre a qual os Guarani universitários
109
Disponível
em:
http://tabajaramarques.blogspot.com.br/2015/04/ontem-no-centro-deexcelencia.html. Acesso em 07 de outubro de 2016.
133
vivem. Também possibilitou a manutenção de boas relações entre indígenas e
brancos, importante para os Guarani que vivem na cidade com o apoio das
instituições. Já da perspectiva institucional, um evento como este busca
atender objetivos como o do projeto interação da ASSINDI, que segundo a
página da organização propõe “romper com a visão ultrapassada que se tem
dos povos indígenas e que, consequentemente, acarreta na disseminação de
preconceito e discriminação étnico racial”, e tem resultados que podem ser
conferidos em uma exposição de museu ou na página online da ONG. Em
outros termos, nesta perspectiva a cultura guarani está relacionada à produção
de elementos objetificados/estabilizados.
Os estudantes indígenas vão ao teatro
Um dia após a oficina de bioescultura, indígenas universitários
moradores da ASSINDI e os Kaingang que estavam de passagem pela ONG,
realizaram uma apresentação de dança em um dos teatros de Maringá. O
evento era gratuito e aberto à população, e foram convidados alguns alunos de
escolas públicas que compuseram a plateia garantida. O mesmo ocorreu por
ocasião do “dia do índio” em uma parceria da ASSINDI com a Assessoria de
Igualdade Racial de Maringá. Contou com representantes tanto da ONG quanto
da administração municipal.
Os indígenas receberam um convite para conduzirem uma conversa,
palestra ou o que achassem mais adequado e interessante acerca de
“questões indígenas” para dialogar com o público maringaense. Eles aceitaram
o convite e se programaram para fazer uma dança seguida de um batepapo110. Um dos aspectos que mais chamou a atenção no evento é que a
dança e as músicas utilizadas eram produções guarani, embora a
apresentação fosse composta por sujeitos Guarani e Kaingang. Alguns dos
meus interlocutores contaram que devido às aulas na universidade, eles
praticamente não tiveram tempo para ensaiar e foi tudo às pressas. Também
foi corrido para preparar as pinturas corporais, pois a antropóloga da ASSINDI,
110
Maringá já teve um grupo de canto e dança guarani, mas como há uma rotatividade de Guarani
vivendo na cidade, o mesmo não se encontra em atividade atualmente. No entanto, apresentações são
improvisadas em momentos como estes.
134
que foi comprar as tintas, não havia encontrado as cores que os Guarani
geralmente usavam, vermelho e preto, assim, tiveram que usar um resto de
tinta que já dispunham misturada com água para fazer o material “render”.
A prefeitura disponibilizou um ônibus de ida e volta para os indígenas
até o teatro (localizado a cerca de 11 km da ASSINDI) e também para os
alunos que foram assistir à apresentação. No local, além de indígenas e
estudantes do ensino médio, estavam presentes a equipe de uma emissora de
televisão, o assessor de igualdade racial, a antropóloga, a assistente social e a
professora pedagoga da ASSINDI, entre outros. Como pesquisador – e
ajudante para o que pudesse aparecer – acompanhei os indígenas nos
bastidores.
Figura 18. O cartaz da ONG é transportado para a maioria dos eventos por ela promovido. Foto tirada
pelo autor, 2015.
135
Na entrada do teatro, um cartaz da ASSINDI recepcionava quem
chegava. O mesmo anunciava: “ASSINDI MARINGÁ – VALORIZANDO
NOSSAS RAIZES”. Abaixo do enunciado, imagens ilustravam os quatro
projetos de atuação da ONG (figura 18). Do cartaz institucional, com a ideia de
uma “raiz” – uma unidade de origem, neste contexto, relacionada aos povos
indígenas –, emergia novamente uma referência ao pensamento arborescente,
assim como apareceu na lógica de mobilização de etnônimos.
Dentro do teatro, o palco estava enfeitado com cestarias Kaingang e
artesanatos Guarani. Enquanto os Guarani e Kaingang se preparavam, a
antropóloga da ONG concedia uma entrevista para a equipe de televisão. Foi
também ela quem inaugurou as falas no palco do teatro. Ela fez uma
introdução ao evento dizendo que a dança a ser apresentada era uma parceria
entre os Guarani e Kaingang que moravam ou estavam de passagem pela
ASSINDI111. Também fez uma apresentação do trabalho da ONG, explicando
seus projetos, e discorreu sobre os motivos que levam os indígenas para a
cidade, que, segundo ela, estão ligados à falta de condições de viverem da
caça, da pesca e dos recursos da mata nas aldeias. Sobre os estudantes
indígenas, ela destacou que eles vão para a cidade em busca de certos
conhecimentos acadêmicos para depois retornarem para as aldeias e
trabalharem em benefício de suas comunidades. Ainda, falou sobre o
imaginário que os brancos comumente associam aos indígenas: nus e vivendo
na mata. Ela afirmou que essa ideia ligada a um passado idealizado não
corresponderia aos indígenas que estão em Maringá. Assim, destacou que
houve e há processos de mudança cultural nos quais os povos indígenas estão
inseridos, e que isso não acarreta em uma perda de cultura ou identidade, já
que todos os seres humanos vivem neste processo de mudança contínua.
Estes elementos que compõem a fala da antropóloga são recorrentes
em diversos eventos promovidos pela ASSINDI. O evento em questão pode ser
enquadrado dento do projeto interação, pelo qual a ONG expressa um esforço
constante de estabelecer diálogo com setores da população maringaense –
como, por exemplo, com alunos do ensino público e representantes da
111
Caso da maioria das crianças Kaingang que participaram da dança, pois estavam na cidade para
acompanhar os pais que haviam se deslocado da TI para vender cestarias.
136
administração pública da cidade –, para que a “questão indígena” ganhe
projeção em Maringá.
Enquanto a antropóloga terminava sua fala, os indígenas se
apressavam nos últimos preparativos na coxia do teatro. Corpos preparados:
pinturas,
saias,
mbaraka
mirĩ,
colares,
kangwaa.
Rapidamente
eles
repassavam os passos da dança. Algumas crianças não quiseram dançar e
Marlene me pediu que cuidasse do seu filho mais novo enquanto ela dançava.
Assistimos a apresentação da coxia, junto com algumas crianças Kaingang.
Figura 19. Apresentação de dança conjunta entre os Guarani e Kaingang. Foto tirada pelo autor, 2015.
Terminada a dança, iniciou-se um espaço de diálogo entre os
indígenas e a plateia. Os indígenas formaram uma fila em frente ao microfone e
cada um falou o seu nome de registro e nome guarani ou kaingang. As crianças
falavam no microfone e saíam correndo gargalhando, o que causava
gargalhadas simpáticas na plateia também. Após as apresentações, Rodrigo
tomou posição junto ao microfone, explicou algumas diferenças entre as etnias
Kaingang e Guarani e falou dessa parceria na realização da dança.
137
Na sequência, os alunos na plateia, e alguns professores, começaram
então com as mais diversas perguntas como: “O que vocês comem?”, “Quais
os significados das pinturas e colares que vocês usam?”, “A que deus vocês
seguem?”, “Como é viver na cidade?”, “Vocês recebem ajuda do governo?”,
“Vocês fazem mesmo dança da chuva?”, entre outras. As respostas eram muito
interessantes, pois emergiram as diferenças entre os Kaingang e os Guarani e
também as singularidades Guarani. Rodrigo e Marcos foram os responsáveis
entre os Guarani por responder as questões, e Rose, uma estudante de
Pedagogia, respondeu pelos Kaingang. Enquanto Marcos falava com maior
propriedade acerca da espiritualidade guarani – de Nhanderu, da oy gwatsu e
do mborai –, Rodrigo falou mais sobre o artesanato e a vida na cidade.
Tornam-se visíveis as singularidades e os dons dentro das instituições.
As falas finais no evento foram do assessor de igualdade racial, que
assumiu o microfone e pronunciou algumas palavras contra a discriminação
motivada por diferenças raciais, cor de pele, credo, entre outras. Diante desta
fala entusiasmada, os alunos aplaudiram o assessor com animação. Antes que
estes fossem embora, os Kaingang e Guarani, especialmente Rodrigo,
finalizaram o evento com a venda de seus artesanatos. Depois, guardamos as
peças que não foram vendidas e embarcamos no ônibus.
Neste evento, percebe-se a estabilização da cultura, seja “enfeitando” o
palco com artesanato ou dando explicações rápidas sobre a ida dos Guarani
para a cidade. Porém, percebe-se também muitas margens para a
desestabilização. Os indígenas tiveram liberdade para falar sobre aquilo que
achassem interessante. Por mais que fosse um espaço institucionalizado, eles
negociaram entre si (Guarani e Kaingang) o que iriam fazer com o convite que
receberam. Tal negociação produziu uma performance de dança inusitada, pois
os Kaingang compuseram uma dança com músicas reconhecidas como
guarani. Nas falas, percebe-se que os dons emergem. Os Guarani não falaram
de um “todo” Guarani, mas falaram a partir de suas singularidades. Quando
discorreram sobre as formas de obter alimento nas aldeias, Rodrigo, por
exemplo, disse que onde morava eles privilegiavam animais de caça. Marcos,
por sua vez, disse que de onde ele veio haviam poucos animais de caça e
geralmente compravam comida nos supermercados. Ele acrescentou: “é assim,
138
pelo menos em minha aldeia”. Nota-se, portanto, que estabilizações e
movimentos criativos se encontram e se entrelaçam, e as singularidades
aparecem.
Palestrantes indígenas na ASSINDI
Figura 20. Construção na ASSINDI que sedia o Museu Kre Porã e o setor administrativo da instituição.
Foto de Tabajara Marques, 2014112.
Na ASSINDI há uma construção de formato circular na qual fica a
administração da associação, a cozinha, a dispensa de alimentos e também o
Museu Kre Porã. Neste há um grande pilar com esculturas de animais entre
duas estantes de vidro altas e estreitas. Nestas, atrás dos vidros, estão
dispostos várias peças de artesanato, parte delas feitas por moradores de
Pinhalzinho. Acima das estantes, próximo ao teto, encontra-se uma longa fileira
de cestos kaingang feitos de taquara. Também há uma pequena sala com
portas de vidro onde ficam as peças de artesanato à venda para os visitantes.
O Museu Kre Porã pode ser entendido como uma instituição cultural (Wagner,
[1975] 2012), um espaço que guarda mostras de cultura. É neste espaço que
112
Disponível em: http://tabajaramarques.blogspot.com.br/2014/12/assindi-associacao-indigenistade_4.html. Acesso em 08 de outubro de 2016.
139
acontece a maioria dos eventos da ASSINDI, entre eles, os encontros entre
indígenas e estudantes do ensino básico de Maringá e região, que ocorrem por
meio do projeto interação. As visitas de estudantes maringaenses à ASSINDI
são agendadas regularmente. Acompanhei algumas delas e são parcialmente
descritas a seguir.
Figura 21. Pilar central no Museu Kre Porã entre as estantes com artesanato. Foto tirada pelo autor,
2015.
As visitas de estudantes à ASSINDI ocorriam, geralmente, em dias da
semana no período da manhã. Funcionários da ONG recebiam os estudantes e
os acomodavam em cadeiras dispostas dentro do museu. Algum dos
funcionários, geralmente a antropóloga ou a assistente social, realizava uma
fala de apresentação da instituição – similar à realizada pela antropóloga no
evento ocorrido no teatro. Em uma dessas visitas, além de apresentar a ONG e
discorrer sobre a presença dos indígenas em contexto urbano, a antropóloga
140
fez também uma breve apresentação sobre os povos indígenas no Paraná,
destacando as diferentes etnias – Guarani, Kaingang, Xetá e Xokleng. Ela
destacou que os Xokleng já habitaram o estado, mas atualmente não habitam
mais. Também enfatizou a história dos Xetá de contato com os brancos, que é
recente e remete à década de 1940113. Na sequência, ela convidou dois
indígenas para falarem com os estudantes, um Guarani e um Kaingang. Nas
visitas em geral, os próprios indígenas elegiam quem iria falar, muitas vezes ali
mesmo no momento. Entre os Kaingang geralmente era Sandro quem falava,
um estudante de Pedagogia, entre os Guarani havia maior alternância.
Em um dia específico, foi Eliane quem se dispôs a falar com os alunos.
Logo de início ela afirmou que, assim como seus colegas Guarani que vivem
na ASSINDI, pertencia ao povo Guarani Nhandewa. Ela explicou que o que
diferencia seu povo de outros povos Guarani é o dialeto. Ao invés de fazer uma
exposição, ela preferiu que os alunos lhe fizessem perguntas. Perguntaram-na
seu nome Guarani, se ela já havia sofrido preconceito por ser indígena, qual
era sua religião, qual era a principal fonte de renda dos Guarani atualmente,
entre outras coisas. Suas respostas foram permeadas por certa noção de
cultura. Ela falava de canto, dança, rezas e outras práticas tradicionais, que ela
caracterizava como cultura guarani. Diferente foi a fala do Kaingang, que
ressaltou a importância de lutar por uma educação indígena diferenciada e do
ingresso dos indígenas nas universidades.
Essa ideia de cultura guarani é um elemento constante nos eventos
institucionais e aparece tanto na fala dos indígenas quanto dos funcionários e
administradores da ONG. Neste dia em que Eliane respondia às questões dos
alunos, a antropóloga também fez algumas considerações acerca da cultura
guarani e cultura kaingang, sintetizando-as da seguinte forma: os Guarani
seriam caracterizados pela perda do conhecimento da língua guarani, mas
teriam uma vida ritual muito agitada114; os Kaingang, por sua vez, seriam fortes
113
De acordo com Carmen Lucia da Silva (1999), por volta de 1950 os Xetá foram considerados
praticamente extintos. Segundo a autora, no final do século XX somavam apenas oito sobreviventes.
Este histórico trágico e a atual mobilização dos Xetá em prol de seus direitos têm estimulado novos
estudos históricos e antropológicos e também trabalhos artísticos, como a peça teatral maringae seà Oà
Xet ,àvoltadaàpa aàoàpú li oài fa tilàeà ueàfoiàap ese tadaàe à i liote asàpú li asàdeàMa i g àeà egi o,à
no teatro da UEM e na ASSINDI em 2015.
114
A antropóloga referia-se, sobretudo, às práticas da reza e ao nimungarai.
141
na manutenção da língua kaingang, mas teriam uma vida ritual pouco
expressiva. Neste momento, a ideia de cultura do ponto de vista da instituição é
acionada a partir daquela lógica de pensamento que Strathern (1991) define
como “mapas”. O que a antropóloga faz nessa situação é localizar o que é do
“domínio kaingang” e do “domínio guarani”. Narrativas sobre a possibilidade de
existência do Kainguari, em geral, não emergem nesses eventos, pois fogem
dessa lógica institucional – de localizar e classificar – de comunicação com os
brancos.
No entanto, essa perspectiva que estabiliza também é acionada em
certos momentos pelos Guarani, como pudemos ver na descrição das
mobilizações de autodenominações. Na fala de Eliane, que evidencia que
pertence ao povo Guarani Nhandewa, ela também elenca elementos como os
cantos e as danças e os localiza na cultura e tradição guarani. Percebe-se,
portanto, que o termo cultura, da perspectiva Guarani, é mobilizado tanto para
falar de socialidades específicas e múltiplas singularidades, como pode ser
percebido nas descrições sobre os dons, como também de perspectivas que
estabilizam a cultura.
Quando os Guarani acionam as lógicas arborescentes e de mapas em
seus usos de cultura, o fazem, principalmente, na relação com as instituições e
em diálogo com os brancos. Não se trata de sucumbir ao pensamento
institucional numa posição passiva e nem de usar o termo cultura de modo
estratégico-pragmático, como forma política para alcançar certos fins. A
questão está relacionada com modos criativos de acionar a cultura quando em
relação com as lógicas institucionais. Assim, essas várias possibilidades do
termo se conectam tanto com a socialidade guarani, que tende à produção do
múltiplo, quanto com a própria lógica técnico-burocrática das instituições. Ao
dialogar e acionar essas formas institucionais, os Guarani não negam a
multiplicidade, mas o contrário, já que esses sentidos estabilizadores são
mobilizados como mais uma das múltiplas possibilidades.
Se, por um lado, os Guarani acionam essas formas estabilizadas de
saber, por outro, as instituições também dialogam com a mudança. Nesse
sentido, é importante destacar o papel da antropóloga da ASSINDI como
142
alguém que constantemente assume o papel de mediadora entres os indígenas
e a lógica técnico-burocrática. Por mais que em certas situações, sobretudo
quando envolve a comunicação com setores da população maringaense, ela
fala das culturas como elementos reificados, no dia a dia, ela busca
compreender quais são as particularidades dos Guarani e Kaingang atendidos
pela ONG. Percebe-se nas relações entre indígenas e instituições uma
constante negociação entre produção de multiplicidades e estabilizações. Os
saberes institucionais se atualizam, ainda que a tendência sequente seja
justamente estabilizar esses saberes para que sejam comunicados aos não
indígenas, registrados em documentos, colocados em um museu, etc. No
entanto, se existe essa abertura para a desestabilização, isso significa que em
alguma
medida
existem
extensões
de
multiplicidade
na
perspectiva
institucional. Já os Guarani estão constantemente produzindo multiplicidade,
mas em algumas
relações institucionais acionam certas estabilizações.
Percebe-se, portanto, que estabilizações e movimentos criativos se encontram,
se entrelaçam e se conectam em diversos momentos dessas relações mútuas.
3.2.
A minha vida ficou lá quando eu vim pra cá: contrastes entre a vida
nas aldeias e na cidade e as expectativas de retorno para as
comunidades
[A cidade] é diferente da aldeia, nossa! Principalmente quem chega igual
eu cheguei. Dentro da aldeia mesmo, a única cidade que eu lembro que eu
já fui foi a cidadezinha de Santa Amélia, depois eu voltava pra aldeia.
Como a minha família tem uma dificuldade financeira muito grande, eu
nunca saí pra outra cidade nenhuma. Quando eu vim para Maringá, eu vim
com duzentos reais. Eu estava vindo, tipo assim, a mesma coisa que falar
"vai lá pra Guarulhos", eu sei que vou pra Guarulhos, mas nem sei pra
onde fica, pra onde que vai, que ônibus que é... Foi o que eu fiz, eu vim pra
cá e eu cheguei aqui, nossa cara! Eu queria voltar logo, porque eu cheguei
aqui eu era sozinho. A associação aqui da ASSINDI era só essa casa de
madeira115. Pra baixo aqui era tudo mato, entendeu? Eu cheguei e fui
morar com meu primo. Foi o que morreu atropelado aqui na Colombo [BR367], ele fazia Agronomia. Aí, tipo assim, eu queria voltar. Porque na aldeia
a gente tinha um time de futebol, então todo domingo a gente ia jogar bola
com as colegadas, entendeu? Jogava truco, bebia cerveja... tipo assim, era
aquela diversão de adolescente. Então, a minha vida ficou lá quando eu
115
A primeira construção no terreno da ASSINDI foi uma casa de madeira que hoje funciona como uma
pequena enfermaria.
143
vim pra cá, eu vim aqui pra um mundo completamente diferente (meus
grifos).
A fala de Fábio aponta para um contraste entre a vida lá, na aldeia, e a
vida cá, na cidade. A diferença entre os dois locais é marcada por uma
percepção díspar entre as relações que ele mantinha na aldeia e o
desconhecimento e a solidão ao chegar na cidade. Este contraste já foi
mencionado ao longo do texto, no Capítulo II e nas percepções dos estudantes
acerca da vida universitária. Retomo essa reflexão aqui para pensar as
expectativas que os Guarani mantêm de retornar para as aldeias.
Figura 22. Fábio sentado na entrada da ASSINDI, por onde passa a BR-376, esperando seu filho
retornar da escola. Foto Tirada pelo autor, 2015.
Esta descontinuidade mencionada por Fábio entre lá e cá é evidente
também na visão de outros moradores Guarani em Maringá. Quando Eliane
chegou na cidade com a sua família, ela foi direto pra ASSINDI na expectativa
de morar na instituição.
Então, minha irmã morou aqui né [na ASSINDI]. Ela morou aqui, se formou
aqui na UEM e eu já tinha vindo visitar ela, então já sabia que tinha essas
casas pros estudantes, mas eu não sabia como é que funcionava né, eu
achei que era assim, passava [no vestibular] e vinha pra cá, então quando
eu cheguei aqui eu enfrentei dificuldade nessa parte também, porque eu
144
tinha que ter esperado eles fazerem uma seleção pra ver quem que ia
ocupar as casas, então eu vim assim. Daí quando eu cheguei aqui a
presidenta falou pra mim assim: “Você vai ter que esperar pra gente ver
quem vai ocupar as casas, a gente está dando preferência pra casais”
(meus grifos).
Apesar de desconhecer o sistema de seleção de moradores da ASSINDI
e da possibilidade de não conseguir um casa, Eliane e sua família conseguiram
logo que chegaram. Este foi apenas o início de uma experiência de surpresas e
incertezas na cidade. Logo, ela teve que “colocar outras coisas na cabeça”,
como disse o txamõi Awa Djemõwytsu no evento de bioescultura. Coisas que
não faziam parte do dia a dia na aldeia.
Pra acostumar com essa correria da cidade às vezes dá um negócio
assim, sabe? Eu sempre ficava muito nervosa pra lidar com a situação, pra
estar indo pra algum lugar, correr atrás de alguma coisa... Lá na aldeia
não, quando a gente tinha que fazer tipo um documento, eles reuniam
aqueles que precisavam fazer e iam todos juntos. Aqui não, se a gente
precisa de alguma coisa, a gente precisa correr atrás. Se precisa levar
uma criança no médico, a gente precisa correr daqui pra um lugar mais
longe, tem que perguntar onde fica, como que faz, e lá não, a enfermeira já
acompanhava. Tem essa dificuldade assim muito grande e eu creio que a
gente ainda vai enfrentar algumas coisas, mas agora a gente já está se
adaptando à cidade, mas foi muito difícil pra chegar aqui, pra pegar
circular. Quando eu cheguei aqui, o primeiro dia que eu fui pra UEM, o
Rodrigo foi comigo quase até o ponto [de ônibus]. Aí eu falei assim “nossa,
não dá pra todo dia ele vim me trazer, eu vou ter que me acostumar, vou
ter que me virar sozinha!”. [...] Ai eu comecei a ver que a gente tem que
se virar mesmo, porque não adianta ficar esperando a gente tem que
correr atrás... (meus grifos).
De acordo com Eliane, na aldeia, quando se precisa resolver um
problema, o mesmo é resolvido de forma coletiva. Para fazer um exame de
sangue, por exemplo, o agente indígena de saúde (AIS) reúne todas as
pessoas da aldeia que precisam fazer a coleta e as acompanha até o posto de
saúde ou local apropriado mais próximo. Na cidade, as pessoas precisam lidar
com essas questões sozinhas. A imagem de se virar sozinho na cidade
aparece tanto na fala de Eliane como na de Fábio. Se, quando estavam nas
aldeias, eles viam a cidade como espaço de oportunidade, agora a imagem
evocada é de um contraste entre a coletividade da aldeia e a solidão na cidade.
Nota-se que na cidade as expectativas mudam. Há uma percepção das
oportunidades, sobretudo no que diz respeito à experiência universitária, mas
acrescenta-se a essa perspectiva uma visão da cidade como um espaço de
145
solidão. Ainda que eles constituam laços entre si e, na maioria das vezes, se
mantenham entre parentes, muitos são parentes distantes, que viveram em
aldeias diferentes. Também tem o caso dos que moram fora da ASSINDI, cuja
convivência diária entre semelhantes é menor. Os resquícios de socialidade
coletiva que a ASSINDI permite não substituem as relações que mantinham
anteriormente. São relações recentes. Na aldeia, a maioria morava com os
pais, irmãos, tinha seus amigos por perto e o amparo da política e organização
internas da comunidade para lidar com questões do dia a dia. Na cidade esse
vínculo é dificultado.
A comparação entre aldeia e cidade toma contornos ambíguos e
paradoxais, pois, por mais que haja condições na aldeia que impulsionam a ida
para à cidade, a vida lá é melhor. Por mais que a vida cá ofereça certas
oportunidades que não se encontram na aldeia, a maioria dos Guarani
planejam voltar para lá. A vida na cidade é vista como uma condição
temporária. O que procuram é se adaptar – como disse Eliane – e experienciar
a vida na cidade.
O esposo de Eliane, Rodrigo me falou sobre estes aspectos da vida
coletiva na aldeia e de como é ficar longe da família na cidade:
Pela necessidade, a gente não vê, assim, a dificuldade, mas se for
parar para pensar é difícil pra gente. Porque na cultura do Guarani a
gente é muito próximo, né, de procurar saber “como é que está?”, no dia
a dia, “como é que vai?”, com fulano, cicrano... Então, aí, distante assim, é
difícil, né (meus grifos).
Rodrigo fala que no dia a dia ele costumava visitar outros Guarani na
aldeia, conversar com os mais velhos pra “aprender mais sobre a cultura, e
mais assim, sobre as histórias dos antepassados e saber mesmo da própria
identidade, né... é muito importante pra nós”. Essas relações de visitas diárias
aos parentes e amigos próximos ficam distantes na cidade e eles têm que
construir novas relações. A possibilidade de aprender com os mais velhos, por
sua vez, valorizada por Rodrigo como um caminho para saber da cultura,
também fica distante. Porém, Rodrigo destaca que, pela necessidade, não é
difícil. Retomando sua narrativa acerca dos motivos que o levaram a fazer
Direito – apresentada no terceiro capítulo –, ele aponta o sentimento de
injustiça com relação a uma tragédia que aconteceu na família e acrescenta
146
que “até mesmo pelos parentes na reserva... na parte de demarcação, fica
muito difícil pela FUNAI, porque os fazendeiros compravam muito eles, daí eles
iam mexendo até uma parte e daí de lá não sei o que acontecia que eles
sumiam”. Assim, como muitos outros interlocutores, Rodrigo busca se formar
para trabalhar em prol das comunidades indígenas. Este aspecto está
intimamente ligado às suas expectativas de retorno para as aldeias.
O sobrinho de Rodrigo, Luís, também fala dessas relações coletivas que
contrasta com as relações na cidade. Ele reconhece que na ASSINDI esse
contraste é suavizado, mas ainda assim são formas de viver diferentes.
Dentro da reserva a gente já tem um ambiente estabelecido, no caso, é um
lugar pequeno, você conhece todo mundo, você chega e você conversa,
né, com os indígenas. É do índio a gente chegar e você... como é que eu
vou dizer pra você? Você ter uma interação entre eles mesmos [...]. E
quando um indígena chega na cidade, um lugar que ele não conhece,
vamos supor que eu venho da aldeia e vou morar lá no centro, num
apartamento, no caso assim, seria totalmente diferente do que é vir morar
aqui na associação, porque aqui moram os indígenas, a gente se sente
mais a vontade [...]. São coisas, assim, que dentro da reserva, são comuns
[...]. E aqui na cidade, assim, a gente já não vê muito isso. [...] Na rua a
gente vê isso, o pessoal muito impaciente. Vamos supor, se você
cumprimenta um, a maioria não vai te responder, porque não te conhece.
Vamos supor que você fala alguma coisa, a pessoa já vai achar que você
está mal intencionado com alguma coisa. Então é diferente. [...] O
indígena tem um costume de se relacionar de um jeito diferente do
não índio. Eu acho que a diferença a gente vê [...] no dia a dia. [...] Se
você entra dentro de um mercado, as pessoas olham você, vamos supor
que você está olhando demais, a pessoa já vai achar que você está
querendo roubar mais do que comprar as coisas. Já com o indígena não
tem essa preocupação (meus grifos).
Luís evidencia que existem formas diferentes de se relacionar nas
aldeias e nas cidades. Por um lado, como os outros evidenciaram, a
coletividade, intimidade e interação nas aldeias, e por outro, a desconfiança e
impaciência nas cidades. Assim como para os outros interlocutores, a estadia
na cidade é vista como temporária por Luís. Ele começou a fazer graduação
em Agronomia com expectativas de voltar para trabalhar na aldeia. Ao
descobrir que não era o que ele queria, mudou para Direito, mas ainda com
essa mesma expectativa. Luís e seu tio Rodrigo me disseram que não sabem
ao certo para qual aldeia vão retornar, mas o desejo pelo retorno é certo.
Quando Luís toca neste assunto, ele retoma a fala sobre as diferentes aldeias
nas quais morou.
147
Igual eu contei pra você que eu já morei nessas aldeias, e nelas todas eu
tenho uma relação, assim, muito boa, com o pessoal, liderança que me
conhece. Que nem lá no Laranjinha, o cacique lá e as lideranças, o
cacique é meu primo, quer muito que eu vou pra lá [...]. No Pinhalzinho tem
liderança lá que é da minha família. Laranjinha tem um rapaz, não sei se
você já ouviu falar dele, que foi o primeiro índio que se formou no curso de
Direito, [...] ele é bem conhecido aqui. De Apucaraninha também vivem me
chamando pra eu ir trabalhar com eles. E no Barão [de Antonina] também,
por influência por parte da minha mãe, por morar lá. Então assim [...] eu
tenho comigo um projeto [...] pra eu trabalhar não só em uma, mas pra
trabalhar em todas. Porque no momento a gente não tem tanto funcionário
na área que a gente está. São escassos os índios [formados em Direito].
[...] Mas de princípio, assim, a que oferecer um trabalho, alguma coisa, eu
estou indo.
Mesmo na cidade, Luís aponta que mantém relações com as
comunidades. Essa parece ser uma preocupação comum entre meus
interlocutores para que possam retornar para as aldeias e desempenhar suas
atividades profissionais nas TIs. Os meus principais interlocutores Guarani que
estudam na UEM mantém esse desejo profissional de retorno para as aldeias.
Além de Rodrigo e Luís, Fábio também espera advogar em prol dos direitos
indígenas. Marlene, Laura, Eliane e Marcos planejam atuar como professores
nas escolas indígenas das comunidades. E Pedro quer retornar para trabalhar
na área de saúde, como por exemplo, no cargo de AIS.
Estes vínculos com a universidade e com as comunidades são
percebidos também por outros pesquisadores, como Novak (2007), Paulino
(2008) e Amaral (2010), com pesquisas na área da educação em âmbito
estadual com relação aos Guarani e Kaingang no ensino superior, e Goulart
(2014), numa pesquisa etnográfica com os estudantes Guarani e Kaingang na
UEL – que fica em Londrina à aproximadamente 97 km de Maringá.
Amaral (2010) em sua pesquisa sobre trajetórias e permanências de
indígenas no ensino superior público no Paraná, caracteriza esse vínculo dos
estudantes indígenas com as comunidades e as universidades como um “duplo
pertencimento”. As vivências nas cidades, para este autor, se caracterizariam
por uma experiência na “univer-cidade”, visto que seus interlocutores indígenas
associam a universidade ao espaço urbano. Amaral afirma que:
É no ambiente urbano e universitário que se explicitará seu
reconhecimento de estrangeirismo, quer na relação entre os não
indígenas, quer na relação entre os indígenas – sendo estes do mesmo
148
grupo étnico provenientes de diversas aldeias ou de outros grupos étnicos
– organizando sua convivência por intermédio de grupos e, por que não,
de aldeias inseridas na “univer-cidade”, potencializando a sua identidade
estrangeira diante da estrutura institucional universitária e dos sujeitos não
indígenas (2010, p. 383).
Para o autor, essa vivência dos indígenas na cidade constitui uma
condição de “estrangeiros”. Na pesquisa de Goulart (2014), outros elementos
surgem na comparação entre a vida nas aldeias e a vida nas cidades. Para ela,
a ida para à cidade é percebida por seus interlocutores, a princípio, como um
espaço de “liberdade”. Uma condição conquistada na medida em que ficam
livres da supervisão de seus familiares e das lideranças das comunidades.
Porém tal condição é relativizada pelos próprios indígenas e a noção de
liberdade ganha contornos ambíguos.
Em diversas ocasiões quando conversávamos sobre a vida na cidade, os
acadêmicos não mencionavam com tanta ênfase as relações e
construções positivas que alcançaram na cidade, como a participação em
estágios, por exemplo. São acionadas com maior frequência as limitações
que passam a sentir, fazendo com que os momentos de liberdade urbana
sejam substituídos pela mais ampla liberdade que existe na aldeia
(GOULART, 2014 p. 117).
Nesse sentido, a autora menciona os momentos nos quais os indígenas
retornam para as aldeias, e destaca as preocupações com este retorno.
[...] o tempo de estadia na cidade vai da sensação de liberdade ao
desencantamento e preocupações com o retorno que, por sua vez, [...]
depende das relações políticas internas, bem como dos laços que esses
acadêmicos mantiveram durante o período de afastamento. Assim, “pisar
na terra” [nas aldeias] é não somente um modo de se refugiarem em
tempos de desassossego na universidade, mas indica também a
necessidade sentida por alguns em manter os vínculos políticos com
caciques, lideranças e comunidade – o que aparece como uma
possibilidade de retorno com vaga de trabalho. Mesmo que o retorno não
seja diretamente para a T.I., há o desejo de contínuo diálogo e parcerias
políticas de caciques e lideranças (GOULART, 2014 p. 117).
Assim, no trabalho de Amaral a condição dos indígenas na cidade é
relacionada a um estrangeirismo e na pesquisa de Goulart a uma condição
ambígua de liberdade. Entre meus interlocutores Guarani em Maringá,
retomando ideias deste capítulo e do anterior, as imagens que aparecem são
várias, como cidade-oportunidade, cidade-solidão, cidade-correria, cidadedificuldade. Com relação às aldeias, por sua vez, aparecem imagens como
aldeia-dificuldade, aldeia-coletividade, aldeia-cultura, aldeia-oportunidade. Se a
149
princípio eles percebem a cidade como um espaço de oportunidade – de
estudar e descobrir novos saberes –, com as expectativas de retorno para as
comunidades, a aldeia é que se transforma em espaço de oportunidade – de
trabalho e desenvolvimento dos saberes desenvolvidos na cidade.
O duplo vínculo entre comunidade e universidade e o retorno dos
estudantes indígenas para as aldeias é tratado por Paulino (2008) e Amaral
(2010) em termos de emergência de potenciais intelectuais indígenas116. Aqui,
atrelado às perspectivas guarani, que vêm sendo descritas desde o primeiro
capítulo, opto por pensar em termos de dons. O que se percebe entre meus
interlocutores é que a universidade é mais um espaço possível para a
produção e desenvolvimento de saberes. Fica evidente que a busca por estes
saberes na universidade está atrelada a uma série de experiências singulares,
assim como ocorre com a busca por saberes que não estão na universidade –
como aqueles que se desenvolvem primordialmente na aldeia, apresentados
no Capítulo I. A socialidade e o “modo de ser” guarani, por eles chamado de
nhandereko,
correspondem
a
uma
multiplicidade
de
singularidades,
especialidades – poderíamos dizer intelectualidades – em diferentes atividades,
como na reza, na liderança, no artesanato, na caça, na pesca, num curso de
Direito ou Pedagogia. Cada pessoa desenvolve seus saberes e seus dons
pessoais.
O desenvolvimento desses múltiplos dons envolve também a busca por
diferentes efeitos. Nesse sentido, a ida para a universidade e a expectativa de
retorno para as aldeias, geralmente, estão associadas ao desenvolvimento de
atividades específica dentro das comunidades, como resgatar a língua guarani,
garantir e ampliar os direitos indígenas, aprimorar a educação escolar e saúde
indígena, entre outros.
Assim, retomo uma fala de Fábio, apresentada no
Capítulo II, importante naquele momento para entender a ida para a cidade e
agora para compreendermos o desejo de retorno para a aldeia. Ele diz:
É essa que eu acho que é a função de nós estarmos na universidade. O
porquê é muito importante, entendeu? A gente poder retornar pra lá
[aldeia] e ao invés de ter que cada vez perder um pouco mais de nossa
cultura, a gente tenta unir um pouco desse conhecimento que a gente
tem aqui fora em prol da comunidade indígena (meus grifos).
116
Pauli o,àespe ifi a e te,àfazàu aàa
liseài spi adaà aàideiaàdeà intelectual org
i o àdeàG a s i.
150
Aqui, a ideia de evitar a perda da cultura não diz respeito a uma busca
por saberes abstratos do passado, mas sim a uma extensão criativa de
elementos relacionados aos conhecimentos dos mais velhos, à contínua
produção de diferença e às formas particulares de ser e se relacionar.
3.3.
Considerações parciais III
Etnônimos e autodenominações, tempo institucional e tempo de
amadurecimento, culturas enunciadas dentro de diferentes extensões de
significados, contrastes entre a vida nas aldeias e a vida na cidade e
instituições. Neste capítulo tornaram-se visíveis uma série de contrastes no
modo como operam as organizações e os modos como vivem os Guarani. Por
um lado, as instituições tendem à estabilização de saberes e os Guarani à
extensão de múltiplas formas de ser e experienciar o mundo. Por outro, essas
lógicas distintas se cruzam em encontros desejados por ambas as partes e
criativas composições surgem.
Percebe-se que, nas instituições, os Guarani continuam seus caminhos
não fixos, amadurecendo e desenvolvendo dons. Nessas jornadas encontram
novos saberes, compõe-se parcialmente às lógicas comuns aos espaços
institucionais e o desejo é de retorno para as comunidades. Nas aldeias,
lugares propícios à vivência do nhandereko, as lógicas institucionais também
operam em complexas conexões com a socialidade guarani. Lá essas
conexões estão presentes, principalmente, em instituições como a escola
indígena, o posto de saúde, nos projetos de resgate da cultura guarani, na
constituição de grupos de canto e dança e mostras de cultura. Elementos com
os quais os Guarani estudantes universitários almejam se engajar em seus
planos pós-universidade.
Na sequência do trabalho, é sobre as perspectivas acerca da cidade e
as composições entre os modos guarani e institucionais de operar na aldeia de
Pinhalzinho, que se volta o esforço etnográfico aqui empreendido. A escrita
segue as expectativas dos Guarani e retorna para a vida na aldeia.
151
4. Capítulo VI – Cidades, instituições e a vida na aldeia:
relações guarani e institucionais em Pinhalzinho
Até o momento, esta etnografia percorreu os sentidos de cultura e dons
na aldeia de Pinhalzinho, as extensões desses elementos na cidade de
Maringá e o encontro entre perspectivas guarani e institucionais, também na
cidade. Agora, em um movimento descritivo de retorno à aldeia, a proposta é
pensar o encontro entre perspectivas guarani, cidades e instituições a partir da
aldeia de Pinhalzinho. Assim, neste capítulo destaco dois núcleos de reflexão.
Primeiro, as percepções dos moradores de Pinhalzinho acerca da vida nas
cidades e dos Guarani que saem da comunidade para estudar – como meus
interlocutores em Maringá. Segundo, retomando a perspectiva de Morawska
Vianna (2010; 2014) acerca das organizações como centros de ressonância,
descrevo algumas extensões de instituições em Pinhalzinho e relações
institucionais produzidas pelos Guarani em organizações dentro da aldeia – e
também com organizações de fora.
Sobre as perspectivas acerca das cidades, é relevante pensar que os
moradores de Pinhalzinho têm experiências diversas com cidades, sejam
próximas da aldeia ou não. Alguns dos meus interlocutores nasceram ou já
moraram em cidades por algum tempo, inclusive para estudar. Outros saíram
para estudar, mas continuaram morando dentro da aldeia. Estes fizeram ou
fazem graduação em universidades próximas, principalmente na Universidade
Estadual do Norte do Paraná (UENP) no campus de Jacarezinho, que fica a
aproximadamente 53 km de Pinhalzinho. Ainda, há as notícias e histórias que
se ouve a respeito das cidades. Notícias de parentes e amigos que ressoam
até as aldeias, assim como as instituições, e que também compõem
experiências. Se em Maringá percebem-se contrastes entre a vida nas aldeias
e a vida nas cidades, na aldeia de Pinhalzinho não é diferente. No entanto, as
percepções
trazem
outros
elementos
interessantes
à
reflexão
aqui
empreendida. Uma delas diz respeito ao risco de quem vai para a cidade de
perder a cultura e os laços comunitários.
152
O segundo ponto evidenciado neste capítulo, as ressonâncias das
instituições na aldeia, não está separado das percepções das cidades. Na
medida em que os Guarani vivem nas cidades ou escutam sobre elas, também
vivem e escutam sobre as instituições. A UEM e a ASSINDI são duas dessas
organizações que ressoam até a aldeia – a primeira por meio de projetos e a
segunda por meio das informações que circulam. Porém, mais do que as
ressonâncias de organizações em específico, um modo institucional de operar
também está presente em Pinhalzinho por meio, por exemplo, das atividades
ligadas à escola e ao posto de saúde indígena, dos projetos de fortalecimento
da cultura e diversos modos de registros, como na produção e valorização de
livros, vídeos, mostras culturais e apresentações de canto e de dança. Convém
pensar em que medida essas relações institucionais e práticas de objetificação
divergem ou não do modo de operar das instituições de fora da comunidade –
como a ASSINDI e a UEM.
Ocorre que os Guarani transformam as práticas institucionais em
modos guarani de operar com relação a uma série de elementos dentro da
aldeia. Assim, como com relação à noção de cultura, o fazer institucional dentro
da comunidade não diz respeito exclusivamente a um elemento exógeno,
apropriado apenas como estratégia política perante o funcionamento estatal.
As práticas institucionais, por mais que sejam identificadas, à priori, como
características do mundo dos brancos, transformam-se em elementos que
provocam efeitos valorizados na vida dos Guarani em Pinhalzinho, como nos
cargos a serem ocupados na escola, no posto de saúde e nos projetos, na
criação de grupo de canto de dança, nas mostras culturais e diversas formas
de objetificação de elementos enunciados como cultura. Estes efeitos, por mais
que gerem algumas controvérsias e diferentes opiniões por parte dos Guarani,
em geral, são desejados e estão relacionados aos enunciados de cultura e à
ampliação das possibilidades de desenvolvimento de dons.
4.1.
A vida na aldeia e fora dela: andanças, cidades e indígenas
universitários
Falar sobre a vida dentro e fora da aldeia de Pinhalzinho é falar de
muitas experiências. É relembrar tempos passados e refletir sobre o presente,
153
falar de mobilidade, de entrar na universidade e das relações com os parentes.
Os caminhos e narrativas se compõem na multiplicidade vivenciada. Como
mencionei, alguns dos meus interlocutores na aldeia nasceram fora de
comunidades. Este é caso de D. Vilma e sua filha Isabel, a primeira com 78 e a
segunda com 62 anos. Enquanto falávamos das suas andanças, os lugares
onde nasceram, trabalharam e moraram, disseram que nasceram fora da
aldeia, ou como Isabel pontuou, “no meio dos brancos”.
No caso de D. Vilma é interessante que, além da vida nas cidades
(espaços urbanos), surge a ideia de outro tipo de vida fora das aldeias: a vida
nas fazendas. Ela disse que nasceu em uma fazenda e que só foi viver em
aldeia quando tinha por volta de 9 anos de idade. Ela trabalhava em uma
fazenda até que seu pai a levou para a aldeia Laranjinha.
A primeira vez que eu vim pro posto, eu vim pro Laranjinha. Acho que eu
tinha 9 anos, por aí. Aí eu saí pra fora, fui andar pro mundão outra vez, [...]
me casei e fui morar pra fora. [...] Andar de fazenda em fazenda. Aí eu criei
tudo meus filhos por lá. [...] E é assim que foi minha vida, já vim pra cá
[Pinhalzinho] com tudo eles casados, tudo grande já. [...] Eu trabalhava
[nas fazendas], tinha que ajudar o marido, porque eu tinha uma filharada,
então eu precisava. Ele trabalhava em um canto e eu trabalhava em outro.
Ele trabalhava no veneno e eu trabalhava na roça, assim, carpir, coar
café... É o que eu fazia antigamente.
Interessante que mesmo nascida fora da aldeia e tendo trabalhado por
muito tempo em fazendas – antes e depois de ter morado em Laranjinha –, D.
Vilma é reconhecida em Pinhalzinho pelo seu amplo conhecimento da cultura.
Ela é uma referência na aldeia quando o assunto são mitos, histórias do
passado, técnicas de artesanato com trançados de taquara, a reza e a língua
guarani. Nossa primeira conversa foi em uma das oy gwatsu – a que fica sob
seus cuidados. Apesar de não ser txamõi, ela me explicou muitos detalhes
sobre a reza e os seres espirituais que habitam a terra e o cosmo celeste.
Também foi ela quem me contou mais detalhadamente, ao longo de horas em
dois dias, uma versão do mito de criação da humanidade, segundo ela, uma
história que aconteceu há muito tempo. Isso demonstra que a vida fora das
aldeias, em seu caso, não a impediu de conhecer os elementos da cultura. A
própria mobilidade – e isto converge com as discussões sobre este assunto no
Capítulo II – é entendida por ela como algo próprio da cultura. Ela disse que as
andanças não são característica apenas dos Guarani, e afirmou que “tudo
154
quanto é índio andava por aí”. Eu perguntei se havia algum motivo especifico
para essas andanças, e ela disse:
Não sei... É porque não tinha parada né. Daqui mesmo, meu pai, quando
morava aqui [...] depois de um tempo dizem que ele resolveu, partiu daqui,
foi pra Araribá a pé. Não usava ônibus não, ia a pé. Posava num canto,
posava em outro, fazia um balaio, vendia, comprava alguma coisa, desse
jeito.
Quando D. Vilma saiu de Laranjinha, ela diz que estava procurando
serviço. Segundo ela, “na aldeia a gente trabalha, mas... ah sei lá... Enquanto
planta é bom, mas quando não planta a gente... um tem serviço, outro não tem,
outros já não dão serviço praquela pessoa... Nós somos assim”. Isabel, que
também nasceu fora da aldeia, na cidade de Itapejara d'Oeste, no sudoeste do
Paraná, contou que essas andanças são uma tradição, algo que vem sendo
feito há muito tempo e que é próprio do jeito dos indígenas viverem. Ela disse:
No passado os índios não pegavam carro, índio andava a pé. Isso é uma
tradição. [...] Eu mesmo já andei muito a pé. Eu e meu marido fomos pra
Curitiba a pé. [...] Ah, levou uns quinze dias, hein. Dormia em baixo de uns
pés de café, dormia nas construções. Dormi em Londrina na construção,
em Maringá também. Daí eu fui assim... Tinha vez que pegava carona,
né... E andava. Isso na época que eu morava em Laranjinha.
Isabel nasceu na época em que D. Vilma trabalhava nas fazendas.
Depois que foi pra aldeia de Laranjinha tornou a sair, já com o marido, e andou
por diversas cidades, o que não implicou, assim como com os estudantes
Guarani em Maringá, em uma perda de vínculo com a comunidade. O Sr.
Joaquim, de 65 anos, nunca viveu na cidade, mas já morou em Laranjinha,
Araribá e, atualmente, vive em Pinhalzinho. Ele confirmou essa ideia de que as
andanças são uma tradição.
Eu sei por que os índios mudavam, você sabe por quê? Era um costume
assim, já por tradição. Por exemplo, eles moravam aqui no Pinhalzinho, [...]
daí eles disfrutavam do que tinha por aqui, aí de repente fracassava. Aí os
bichos quando eles percebem, que as caças, quando percebem que estão
batendo direto assim, eles mudam, e os índios mudam atrás. [...] Por
causa disso que os índios um tempo estão aqui e um tempo eles estão lá
no Laranjinha, vamos supor. É isso. Não é porque eles mudam porque vai
procurar melhora... porque pra eles não tem melhora, melhora é ir atrás da
caça. As caças veem que um bando de homens, de índios, está por ali
fazendo o cerco... entre eles lá também são sabido... “Não, aqui não dá pra
morar mais, vamos funda”... “Vamos funda o focinho!” [risos].
Assim, Joaquim explicou que a mobilidade, no passado, também
estava relacionada à busca pelos animais de caça. Fernando, por sua vez,
liderança e filho do cacique, apresentou uma definição bastante interessante
155
para pensar a mobilidade. Quando me explicou os conceitos de teko e tekoa,
me disse que o primeiro termo se refere ao local onde se vive, por exemplo, na
aldeia de Pinhalzinho, e o segundo se refere ao território composto por todas
as localidades as quais os Guarani percorrem e mantêm certas relações. Ele
afirmou que tekoa se refere à mobilidade.
Tekoa é o território, teko é o local onde mora. Por exemplo, o tekoa nosso
é desde o Itararé pra cá, Bauru, Laranjinha, Posto Velho... dá um tekoa, dá
um território guarani, por onde você transita, você mora aqui, mora lá... [...]
É a mobilidade, né. [...] O Posto Velho vem pra cá quando precisa das
coisas, o Barãozinho vem, daqui vai pro Posto Velho, vai pro Laranjinha...
É fortalecendo de fato o território, não é só pra morar, é pra suprir a
necessidade do momento. Por exemplo, Bauru vem buscar muito sapé117
aqui, porque a região de sapé é forte aqui, então vem Bauru, vem ali do
Barãozinho, vem Laranjinha, vem Posto Velho, sabe? Então dentro do
território eles acham que aqui é o local que supre essa necessidade.
Pesca, a turma daqui tem vontade de ir pescar lá no Posto Velho, porque
acha que o rio de lá tem mais peixe (meus grifos).
Assim, de acordo com Fernando, a mobilidade é intrínseca à noção de
território. Este não é fechado, mas se compõe das andanças e das relações
entre os Guarani de diferentes locais. Assim, a noção de tekoa aqui aparece
como uma boa analogia para a noção de mobilidade e também de
multilocalidade, termo este que, como vimos anteriormente, se refere às
relações construídas e mantidas por Guarani em diferentes localidades
(Pissolato, 2007).
É pertinente pensar que a cada conversa com um Guarani, novos
elementos aparecem para pensar a mobilidade e outras questões, assim, não é
possível definir uma causa última para compreendermos tais relações. Cada
parcela de informação nos direciona para caminhos ao mesmo tempo variados
e conectados que evidenciam a multiplicidade como uma característica
diacrítica nas experiências e narrativas guarani.
Diferente de D. Vilma e Isabel, que falam de suas andanças fora da
aldeia, o cacique de Pinhalzinho – irmão de Vilma – acostumou-se desde
pequeno a viver dentro da comunidade, no seu caso, ele cresceu e viveu a
maior parte de sua vida na aldeia de Laranjinha. No entanto, por volta de 1993,
ele morou dois anos com sua esposa, filhos e filhas na cidade de Jacarezinho.
Além de uma reconhecida liderança, ele é um especialista em plantas com
117
Sapé corresponde a um tipo de gramínea cujos caules são utilizados na construção de telhados após
processo de secagem.
156
propriedades de cura. Assim, ele teve uma loja na cidade na qual produzia e
vendia ervas e outros tipos de remédios. Segundo ele, havia um homem
benzedor que sempre enviava seus pacientes para comprar em sua loja, que
era muito famosa. Ele afirmou que os clientes faziam fila na porta, que vinha
gente famosa lhe procurar e pessoas de todo Brasil. Ainda assim, ele disse que
preferiu retornar para a aldeia. Como o txamõi Awa Djemõwytsu e os
estudantes Guarani em Maringá, ele indicou uma preferência pela vida dentro
da comunidade. O cacique disse que a cidade era muito violenta e um lugar
ruim para criar seus filhos. Seu filho Fernando, que foi morar com ele em
Jacarezinho, disse que não se adaptou em nada e retornou para a comunidade
antes do retorno do seu pai. O cacique, até nos dias de hoje, quando tem que
sair da aldeia para alguma reunião, por exemplo, disse que não aguenta ficar
mais que poucos dias fora da comunidade. Para ele, a pessoa tem que viver
onde ela se sente bem, e ele disse que se sente bem na aldeia.
A perspectiva da cidade como violenta e insegura é recorrente entre
meus interlocutores. O cacique tem uma filha que mora na cidade de
Jacarezinho com o marido e o filho. Ele sempre me falava com pesar sobre seu
neto que vive na cidade e não tem onde brincar. Segundo ele, havia um bar na
esquina da casa, local que apontava como perigoso e violento. Quando esta
sua filha estava na aldeia no almoço no natal, em certo momento perguntou
alto para todos: “Onde está minha bolsa!?”. A bolsa estava sobre a mesa do
lado de fora da casa. Quando ela encontrou, ela disse: “Ah se fosse na
cidade!”, se remetendo à ideia de que na cidade a sua bolsa teria sido roubada
caso fosse deixada em uma mesa do lado de fora da casa.
Em várias conversas que tive com o cacique e sua família, surgia o
contraste entre a vida nas aldeias e a vida nas cidades. Em algumas narrativas
de lembranças ou eventos cotidianos apareciam elementos para pensar este
contraste. Em uma manhã, enquanto tomávamos café, um genro do cacique
contou que, certa vez, quando era mais novo e estudava em uma escola na
cidade, junto com outros meninos, pegou mangas de uma árvore cujos galhos
atravessavam por sobre o mudo escola. Enquanto chupavam as mangas, os
meninos ouviram o grito de uma mulher: “Oh muleque! Se vocês quiserem
manga vão comprar!”. Por fim, eles acabaram indo pra a diretoria e o jovem se
157
justificou dizendo que “o pé de manga não era dela”. Ele me explicou que para
ele não fazia sentido uma árvore ser propriedade de alguém e que na aldeia
isso não existe, se tem uma árvore qualquer um pode subir e pegar uma fruta –
como eu sempre via as crianças fazendo.
Renata, uma das filhas do cacique, me contou outra história, sobre
quando ela foi viajar para o Rio de Janeiro com o pai e a mãe por ocasião da
Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS),
RIO+20, em 2012. Ela disse que antes de sair da aldeia imaginava que na hora
do almoço, se ela precisasse de um limão para colocar na salada, era só sair
na rua e pegar em uma árvore, mas o que encontrou foram restaurantes muito
caros. O cacique comentou com tom de humor que se ela pegasse um limão
em qualquer lugar era perigoso ir presa. Nesse mesmo dia de conversa, ela
acrescentou que, certa vez, foi em um supermercado tão grande em uma
cidade próxima, que ela e uma amiga acabaram se perdendo uma da outra de
tantos corredores que havia. Ela contava com humor, e todos na mesa riam,
mas o desconhecimento e a surpresa com as cidades apontam que estas
exigem modos de se relacionar e perceber distintos daqueles que são
desenvolvidos na aldeia.
Tadeu, filho do txamõi Awa Djemõwytsu, irmão de Marlene e Laura –
estudantes na UEM – e vice-cacique em Pinhalzinho, apontou estes contrastes
entre a vida na cidade e a vida na aldeia como modos distintos de se viver e
culturas diferentes. Ele ainda diz que na cidade você tem que fazer as coisas
pensando no que você vai fazer ao longo do ano inteiro. Vive-se o tempo
presente pensando no futuro, o que não seria o imperativo no dia a dia na
comunidade. Assim, pensa-se também em contrastes de temporalidade, algo
muito bem apontado por alguns estudantes Guarani em Maringá quando falam
da correria da vida acadêmica.
Estes modos distintos de se viver, entre indígenas e brancos,
respectivamente associados à vida nas comunidades e à vida nas cidades (ou
fora das aldeias), aparecem nas pesquisas de Lasmar (2005; 2008), com os
indígenas que vivem em São Gabriel da Cachoeira na região do Alto Rio
Negro, como diferenças ontológicas pautadas em interpretações da mitologia
158
de origem. Estas diferenças estariam no âmago destes modos divergente de
viver:
Coadunando-se com o ethos pacífico e moderado dos índios, a vida
comunitária teria por característica principal a valorização do parentesco,
da partilha e do bem comum. Na cidade, por sua vez, os desejos e
objetivos se tornariam mais individualizados, e a competição passaria a ser
a regra. Comunidade e cidade representariam, portanto, dois modos
distintos de viver, que traduziriam filosofias sociais distintas (2008, p. 12).
Em Pinhalzinho, ouvi algumas variações mitológicas sobre o começo
do mundo e tempos muito antigos. Uma das narrativas demarcava uma
diferença entre indígenas e brancos. Segundo o cacique, já após a criação do
sol, da lua e da terra, Nhanderu haveria jogado sementes sobre o solo, e foi aí
que surgiram as matas de onde os indígenas tirariam seu sustento. Já os
brancos, segundo ele, desde os primórdios trabalharam num mundo
competitivo de compras e vendas. No geral, a maioria dos meus interlocutores
não aciona uma explicação mitológica para esta distinção entre indígenas e
brancos, mas evidenciam que há formas de ser e se relacionar que contrastam.
A comunidade é relacionada a um tempo e espaço que possibilitam a
convivência com os parentes, a educação dos filhos, a relação com os animais
de caça e criação, a vivência da espiritualidade guarani, a relação com plantas
comestíveis ou para produção de remédios, certa forma de se fazer política,
etc. Como já mencionado anteriormente, a comunidade é entendida como um
local próprio para viver na cultura – ainda que isso seja parcialmente possível
fora da aldeia, como mostram as descrições acerca da vida dos Guarani na
ASSINDI , no Capítulo II, e as narrativas de andanças de D. Vilma e Isabel.
Há de se destacar também que estão inclusas certas habilidades
perceptivas neste modo especifico de se relacionar que corre nas aldeias. Os
Guarani, e cada um com suas singularidades, desenvolvem certas capacidades
sensoriais no que diz respeito ao ambiente da comunidade, por exemplo, com
relação às matas, rios, seres extra-humanos, etc. Nesse sentido, é comum
escutar reclamações dos Guarani, sobretudo dos mais velhos, com relação aos
barulhos das cidades. A vida na cidade, como disse uma interlocutora em
Maringá, exige que a pessoa se adapte ao espaço urbano. Em termos
ingoldianos, podemos pensar esse movimento de adaptação como um
processo de educação da atenção intrínseco ao desenvolvimento de
159
habilidades específicas para o novo ambiente (Ingold, 2000). Ainda, essa
educação da atenção no espaço urbano estimula experiências singulares,
distintas das dos brancos, como mostra a narrativa de Isabel que percorreu
muitas cidades andando a pé por longos dias, pedindo carona, dormindo em
construções e embaixo de árvores. Ela não identifica os seus caminhos fora da
aldeia como um modo de viver dos brancos, mas sim como uma experiência de
mobilidade própria da tradição. Vivências específicas também ocorrem com os
estudantes indígenas em Maringá, que, como vimos, apesar de toda a
dinâmica
burocrática
das
instituições,
percorrem
seus
caminhos
de
experienciar e desenvolver dons na universidade.
Em Pinhalzinho encontrei interlocutores Guarani que já foram para a
cidade especificamente para ingressar em instituições de ensino superior ou
magistério. Este é o caso de Ana, que é Mbya, formada em magistério indígena
e professora de língua guarani na escola de Pinhalzinho. Ela diz que não tem
parentes por parte de sua família na aldeia, pois morou na TI Rio das Cobras
(Espigão Alto do Iguaçu e Nova Laranjeiras/PR)118 até os seus treze anos de
idade, quando foi pra Pinhalzinho morar com uma tia – que já não mora mais
no local. Atualmente, Ana é casada com um dos filhos de Isabel. Perguntei
para ela se já havia morado na cidade e prontamente respondeu que não.
Porém, logo ponderou e disse que “só pra estudar, porque eu estudei
magistério e daí tinha que ficar”. Perguntei se ela ficava indo e voltando entre
aldeia e cidade ou se ficou na cidade por um tempo, ela disse: “Eu ficava um
mês lá e um mês em casa”. Mesmo morando alguns meses intercalados nas
cidades de Curitiba e Faxinal do Céu (PR) para realizar a formação em
magistério indígena, ela não identifica a cidade como um possível local de
moradia. Ela disse que a vida na cidade é muito movimentada, com muitos
carros e barulhos. Afirmou ainda que “se for pra morar na cidade... não... só se
não tiver solução, assim... daí a gente se arrisca, né”. Assim, ela se formou em
Magistério Indígena e atua na área como professora de língua guarani na
escola da aldeia.
118
A TI Rio das Cobras fica na região centro-sul do Paraná e é composta majoritariamente por pessoas
Kaingang e Guarani Mbya.
160
Meire, outra interlocutora, morou em Pinhalzinho desde que nasceu e
em 2006 mudou-se pra Maringá para cursar Enfermagem. Ela se formou na
UEM em 2010, morou na ASSINDI até 2008, depois em uma casa que era
doada para estudantes indígenas, voltou a morar na ONG e no último ano da
graduação alugou uma casa. Ela contou que foi para a cidade sozinha e depois
levou seus filhos, mas eles não se adaptaram. Assim como Ana, ela diz que
não gosta da vida na cidade, foi apenas para se formar, mas já com a ideia de
retornar e trabalhar na comunidade. Porém seus planos não deram tão certo de
início, ela voltou pra aldeia e não conseguiu um emprego, assim, retornou para
Maringá e trabalhou como costureira. Faz dois anos que ela voltou para
Pinhalzinho e conseguiu uma vaga de trabalho na escola indígena como
auxiliar de serviços gerais.
Outra mulher guarani que saiu para estudar, se graduou e retornou
para Pinhalzinho, foi a filha de Joaquim, Simone. Ela morou em Londrina de
2005 a 2013 e se formou em Secretariado Executivo Bilíngue na UEL. Ela diz
que a situação dos estudantes indígena em Londrina é mais complicada do que
em Maringá, devido à falta de um apoio como o oferecido pela ASSINDI 119.
Perguntei se ela gostou de morar na cidade e ela disse:
[...] olha, gostar não está certo o termo não, mas a gente aprende a se
adaptar né. Não é gostar, porque acho que gostar, quem nasceu na aldeia
não chega a gostar da cidade. Não vê a hora que termina aquela missão
lá e volta de novo pra aldeia. Mas eu me adaptei, demorou, mas eu me
adaptei lá na cidade (meus grifos).
Simone se refere à sua ida pra universidade como uma missão, uma
tarefa com objetivos de aprender novos saberes, desenvolver novos dons e
retornar para a comunidade. Hoje, apesar de não trabalhar formalmente em
sua área de formação, ela é engajada na militância a favor dos direitos
indígenas e representa a comunidade de Pinhalzinho em alguns eventos,
sobretudo no que concerne à questão das mulheres indígenas, assunto do qual
falarei mais adiante.
Joaquim conta que se sente orgulhoso porque muitos de seus parentes
estão estudando em nível superior. Além de Simone, a sua filha Luara também
119
Para descrições acerca das experiências de estudantes indígenas na UEL, inclusive sobre as
possibilidades de moradia, ver Goulart (2014).
161
fez graduação120. Esta se formou em Pedagogia pela UENP em Jacarezinho,
curso no qual permaneceu entre 2003 e 2008. Luara continuou morando na
aldeia enquanto fez sua formação. Em nossa conversa ela evidenciou o seu
compromisso com a educação escolar indígena, o que é perceptível em sua
trajetória. De 2009 a 2010 ela trabalhou como professora de língua guarani na
escola dentro da comunidade e a partir de 2011 assumiu o cargo de pedagoga
da instituição.
Outro Guarani que expressa esse compromisso é Gustavo, jovem
graduado em História e diretor da escola na comunidade desde 2011. Ele, que
é filho de Meire e casado com uma filha de Isabel, nasceu e morou fora da
aldeia até por volta dos 6 anos de idade – na cidade de Campinas e
Hortolândia, no estado de São Paulo, e depois em Guapirama. Com relação à
vida em aldeias, morou apenas em Pinhalzinho e por volta dos 15 aos 17 anos
tornou a viver em algumas cidades para jogar futebol em equipes profissionais.
Ele disse:
[...] com quinze anos, como eu jogava bola, sempre joguei bem e me
destacava, o chefe da aldeia aqui viu eu, gostou de mim e me levou pra
jogar bola lá em Bauru, daí eu passei num teste lá e fui jogar no
Noroeste121, daí eu fiquei oito meses jogando bola lá. Daí teve uma briga
entre ele, que ele queria ser tipo meu empresário, e o cara lá. Daí ele
acabou tirando eu de lá. Aí ele tirou eu de lá, com dezesseis anos daí ele
me arrumou um outro pra mim em Londrina. Daí eu fui pra Londrina, daí
fiquei lá uns dois meses. Brigou de novo e trouxe eu de lá. Daí eu fui pra
Apucarana. [...] Lá foi eu que não gostei de uma atitude das pessoas lá,
daí eu acabei ligando pra minha mãe e mandando buscar eu. Então eu
fiquei meio pra lá e pra cá jogando bola, né. [...] Foi difícil pra caramba,
porque, imagina, desde pequeno aqui dentro, saia só pra ir na escola ali,
daí voltava e ficava aqui, daí eu tive que fazer meu CPF, tive que fazer a
minha matrícula, quando eu saía eu tinha que ir lá buscar, conversar. [...]
Por exemplo, meu CPF eu fiz lá em Bauru, porque pra jogar bola precisava
de CPF, e o dono que cuidava de lá, do alojamento, porque a gente ficava
num alojamento, falou assim “Oh, o endereço é esse aqui, isso aqui, toma
o dinheiro da circular...”. Como é que eu ia pegar uma circular?! Então as
vezes tinha que ir meio que implorando pra pessoas ajudar a gente. Ele só
falava o nome da circular, mas como é que eu ia? Passava tanta circular,
eu falava “Ah, meu Deus do céu”. [...] Mas isso me ajudou bastante, me
ajudou a desenvolver, pelo menos, o diálogo com as pessoas, assim,
conversar, ter que correr atrás das pessoas. [...] Eu acho que pra minha
vida foi bom pra caramba (meus grifos).
120
Entre os meus interlocutores em Maringá, Eliane e Luís são dois estudantes universitários que
Joaquim citou como membros de sua família.
121
Aqui, Gustavo se refere ao Esporte Clube Noroeste, um clube de futebol da cidade de Bauru (SP).
162
Gustavo identifica algumas características em sua experiência fora da
aldeia que também apareceram entre meus interlocutores em Maringá. Por um
lado, a correria da vida na cidade, onde você tem que ir sozinho atrás das
burocracias do dia a dia, por outro o desenvolvimento de novas habilidades, no
seu caso, o diálogo com as pessoas. Algo importante pra ele, cujo nome de
crisma está relacionado à sua comunicação. Segundo ele, quando foi crismado
a txamõi lhe disse: “Você tem que tomar cuidado na hora que você fala, porque
você fala muito alto, você assusta as pessoas”. Assim, percebe-se como a
saída da aldeia lhe possibilitou aprimorar um dom de origem celeste,
importante para a sua atual função de diretor na escola da comunidade. Ainda
que Gustavo identifique esse aspecto positivo em seus caminhos fora da
aldeia, ele diz que não pretende voltar a morar na cidade. Ao longo de sua
graduação em História, concluída em 2010 pela UENP de Jacarezinho, morou
durante todo o tempo na aldeia. Ele diz:
Eu prefiro dez vezes a aldeia. [...] Cidade é uma loucura, uma correria.
Infelizmente hoje a gente depende também uns trinta por cento da cidade,
a gente depende bastante... mas é o que eu sempre prego pras crianças, a
cidade está inchada deles lá [brancos], eles não dão conta mais deles
mesmos lá, e nós temos o maior patrimônio que é terra, nós temos o maior
patrimônio que é o mato, que é o rio, são as minas. Então, nós temos que
mostrar pras crianças que tem como sobreviver dentro da comunidade.
Para realizar essa tarefa, educar as crianças para a vida na
comunidade, Gustavo aposta em uma educação diferenciada dentro da escola
da aldeia, assunto do qual tratarei mais à frente.
Leonardo, filho do txamõi Awa Djemõwytsu e D. Cleide, encontra-se
atualmente na situação de morar na aldeia e estudar na cidade. Ele cursa
História na UENP de Jacarezinho e já ocupa um cargo na escola da
comunidade. É interessante que em Pinhalzinho alguns Guarani fazem uma
reflexão comparativa entre estes estudantes que saem para estudar, mas
continuam vivendo na aldeia, como Leonardo, Gustavo, Luara e Ana, e aqueles
que vão morar na cidade para estudar, como Simone, Meire e meus
interlocutores Guarani em Maringá. Esta reflexão está ligada as visões acerca
dos pontos positivos e negativos de sair para estudar na universidade.
De acordo com Fernando, que é uma das lideranças em Pinhalzinho
mais atenta aos debates sobre educação indígena, um dos maiores pontos
163
negativos da saída dos indígenas para realizarem um curso de nível superior é
que quando eles retornam, muitas vezes trazem ideias que conflitam com as
dinâmicas da política indígena na comunidade. Ele diz que a maioria dos que
voltam, retornam com a ideia de que “agora eu sei mais do que o cacique, o
cacique não é nem estudado e vai querer mandar em mim que fiz faculdade?!”.
Segundo ele, eles não falam com estas palavras, mas deixam subentendido.
Fernando aponta a própria instituição universitária, especificamente a CUIA,
como uma das causas desses conflitos, pois a universidade não prepararia os
estudantes para o retorno para as aldeias, mesmo dispondo de uma equipe
especializada para acompanhar os indígenas em suas formações.
Assim, para Fernando, a saída da aldeia para estudar corresponde a
um potencial perigo, pois pode gerar futuros conflitos na comunidade. Já com
relação aos indígenas que estudam na cidade, mas continuam morando na
aldeia, Fernando faz outra análise. Segundo ele, “o que dá certo, por exemplo,
os que estudam aqui, vai e volta pra aldeia. Esses dão certo, porque está no
dia a dia ali. Está ali com o cacique, está com as lideranças, está com a
comunidade”. Ele aponta um aspecto positivo em geral da formação dos
Guarani em nível superior, que é o desenvolvimento de protagonismo:
O lado positivo é que eu acredito que acaba virando protagonismo dentro
da Terra Indígena. Mas só que assim, o que eu vejo, quem conseguiu
trabalhar hoje dentro da Terra Indígena são os que estudaram e voltaram
pra Terra Indígena, estão no dia a dia. Os que ficaram quatro anos oito
anos fora não tiveram essa oportunidade dentro da Terra Indígena. Eu
percebi isso. [...] O povo confia naquele que está no dia a dia com ele, que
sofre do mesmo sofrimento, passa dos mesmos apuros.
Esta noção do protagonismo é um dos temas centrais do trabalho de
Amaral (2010), que afirma que “a inédita existência e o protagonismo deste
novo sujeito se realizam dada a sua capacidade de dupla e simultânea
vinculação e pertença a esses dois universos: a universidade e a comunidade
indígena” (p. 510). Esse vínculo com a comunidade, que busca ser mantido por
meus interlocutores Guarani em Maringá, aparece na fala de Fernando como
um elemento decisivo
na
possibilidade do indígena
graduado
atuar
profissionalmente dentro da comunidade.
Sobre este mesmo assunto, Gustavo, que morou na aldeia enquanto
fez sua graduação e que atualmente é engajado na defesa de questões
164
relativas à educação indígena, concordou com Fernando no que diz respeito ao
perigo relativo à situação de ficar longe da comunidade. Ele disse o seguinte
com relação aos estudantes indígenas que vivem fora da aldeia:
[...] os jovens lá fora, eles querem fazer parte também de reuniões que os
caciques participam, que as lideranças participam, e às vezes eles querem
fazer parte meio que sendo quase que autônomos. Só que eles esquecem
que eles são de lá, claro estão tendo um conhecimento novo, estão se
politizando, só que o representante deles é o cacique aqui. E às vezes dá
um choque, sabe? E esse choque às vezes acaba machucando ambas as
partes.
De acordo com as reflexões de Sztutman (2005) sobre as lideranças
indígenas, como vimos no Capítulo I, a chefia assume um papel de enunciador
de um coletivo que eclipsa as diferenças sem suprimir a multiplicidade. Com
esses relatos sobre o potencial perigo do retorno dos estudantes que ficam
muito tempo longe da comunidade, percebe-se que é esta magnificação da
figura do líder que pode estar em risco.
Outro aspecto que Gustavo apontou como negativo é que, muitas
vezes, o indígena que fica longe da aldeia, quando retorna, volta falando de um
jeito diferente dos Guarani que vivem na comunidade. Aqui, o que aparece é o
risco é de sair da chamada cultura. Porém, ele fez três ponderações e indicou
um ponto positivo com relação a essa questão. Uma primeira ponderação diz
respeito à condição específica dos indígenas que vivem na ASSINDI:
Eu vejo assim, que os índios que estão em Maringá, eles estão melhores,
porque eles estão todos juntos no centro cultural [ASSINDI], daí eles
acabam criando um elo ali. Já os índios que estão em outras [cidades] que
não tem, às vezes mora um índio num apartamento, mora um outro em
outro e tal, eles acabam se tornando mais assim.
Portanto, a perspectiva de Gustavo se conecta com as perspectivas
dos meus interlocutores Guarani em Maringá de que a ASSINDI possibilita
traços de uma socialidade coletiva que é comum na aldeia. Uma segunda
ponderação diz respeito às exceções, aos Guarani que mesmo morando longe,
se mantêm na cultura. Gustavo deu como exemplo os filhos e filhas do txamõi
Awa Djemõwytsu e D. Cleide, que, segundo ele, tiveram dentro da família uma
educação forte na cultura. Três dessas filhas moram em Maringá na ASSINDI,
duas delas são Marlene e Laura, que foram minhas interlocutoras de pesquisa.
Uma terceira ponderação apontada por Gustavo é que, segundo ele,
quando os indígenas retornam da cidade para morar na aldeia, depois de um
165
tempo eles se acostumam novamente com as dinâmicas internas da
comunidade. Pensando com Ingold (2000), poderíamos entender esse retorno
como um momento para educar-se no ambiente da aldeia novamente122. Nesse
sentido, entende-se o processo educativo como um desenvolvimento relacional
com o meio que é contínuo ao longo da vida.
O aspecto que Gustavo indicou como um ponto positivo do ingresso
dos indígenas nas universidades é a politização dos sujeitos. Ele afirmou que:
Na questão do estudo, na questão de se politizar é muito bom. Muito bom
mesmo, porque muitos saem daqui achando que a cultura não volta mais,
daí quando chegam lá fora se lascam. Eles veem que precisam da cultura.
Nessa parte é boa. Muitos dos que estão aqui dentro falam “Ah, mas pra
que resgatar de novo o guarani [a língua]? Pra que ter de novo a casa
grande?” Muitos às vezes, ainda influenciados naquela visão de ter que
trabalhar [...] assim cronometrado igual o não índio trabalha, desse jeito
bem cronometradinho assim, eles acabam pensando “Ah, mas nós
Guarani estamos acabando mesmo e a língua não importa mais...”. Está
entendendo? Então quando ele cai lá fora que ele vai com esse discurso aí
ele se lasca lá.
Percebe-se que Gustavo menciona a cultura principalmente para se
referir às praticas ligadas aos mais velhos que eles buscam resgatar, como a
língua guarani e o fortalecimento das práticas de reza na oy gwatsu. A
politização da qual ele fala se refere a uma percepção da importância de
fortalecer estes elementos dentro da comunidade.
Quando conversei com o cacique sobre os Guarani universitários, ele
fez uma crítica ao Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná, que, segundo
ele, deveria ser mais voltado para a cultura do candidato indígena, pois aquele
que cresce na cultura, provavelmente não vai ser aprovado. Mas por outro
lado, ele vê como um ponto positivo que os indígenas saiam da aldeia para
estudar e retornem para trabalhar. Assim, a educação, a politização e o
protagonismo desenvolvidos fora da aldeia aparecem como elementos
positivos para atender uma expectativa da comunidade, que é ocupar
exclusivamente com especialistas guarani os cargos internos – na escola, no
posto de saúde, nos projetos, etc. É desse modo que os Guarani almejam
desenvolver cada vez mais a autonomia da comunidade, assunto que será
mais abordado no tópico seguinte.
122
Isto não quer dizer que as relações na aldeia permanecem intactas durante todo o tempo em que os
indígenas permaneceram fora, mas evidencia que existem relações na comunidade e nas cidades que se
baseiam em diferentes convenções e estilos de criatividade (Wagner, 2012).
166
Figura 23. Estrada leva até a cidade mais próxima de Pinhalzinho. Fonte: foto tirada pelo autor, 2015.
4.2.
A comunidade e as instituições
“Lutas e conquistas da nossa organização”, diz um dos enunciados de
um Boletim Informativo de novembro de 2014 realizado pelos moradores de
Pinhalzinho com o apoio do Instituto Federal do Paraná (IFPR) de Paranaguá,
UFPR Litoral, Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra
(ENCONTTRA), Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpin Sul),
Projeto Básico Ambiental (PBA) Indígena, Grupo de Pesquisa Identidades
Coletivas e Conflitos Territoriais no Sul do Brasil, Projeto Nova Cartografia
Social e Escola Estadual Indígena Ywy Porã 123. Na descrição das conquistas
(p. 11), encontram-se:
- Demarcação do Território Indígena Pinhalzinho – TIP (1985);
- Retomada do Porto de Areia;
- Retirada dos Posseiros da TIP;
- Água Tratada, 2000;
- Fim dos arrendamentos de terra na TIP;
- Melhoria da estrutura da Saúde Indígena na TIP (Depois da ocupação do
movimento indígena na FUNASA [Fundação Nacional de Saúde]);
- Construção do Posto de Saúde;
- Estadualização da Escola Indígena (2008);
123
Ywy Porã significa terra boa/bonita.
167
- Indicação pelas lideranças de Pedagogo e Diretor indígenas na Escola;
- Realização de Feiras de Sementes Indígenas;
- Proibição e Fim do uso de agrotóxicos e transgênicos na TIP;
- Criação do PBA nas TI’s da região;
- Parceria com a EMATER [Instituto Paranaense de Assistência Técnica e
Extensão Rural] (recuperação de nascentes).
Logo abaixo, na mesma página, há outro tópico com o enunciado
“Reivindicações”, que correspondem a:
- Corrigir as divisas atuais da TIP;
- Reposição dos Marcos Geodésicos dos limites da TIP;
- Ampliação da TIP para o Território Tradicionalmente Ocupado;
- Conservação das estradas pelo município;
- Cumprimento da Lei da Educação Indígena (SEED [Secretaria de Estado da
Educação]);
- Ampliação da Saúde Indígena (SESAI [Secretaria Especial de Saúde Indígena]).
Este boletim informativo foi produzido especialmente por ocasião da
realização do trabalho de “cartografia social”124 das terras de Pinhalzinho por
uma equipe do IFPR e moradores da comunidade. Tanto as conquistas quanto
as reivindicações apontam para uma abertura dos Guarani em Pinhalzinho
para dialogar com diversas organizações, instalar instituições dentro da aldeia
– como a escola e o posto de saúde – e a criação de organizações indígenas –
como a Associação de moradores da comunidade.
Não pretendo aqui apresentar todos estes canais institucionais aos
quais os Guarani em Pinhalzinho se conectam ou mesmo tratar de todas essas
questões que estes dois pequenos tópicos do boletim nos apontam, mas, por
ora, destaco que os Guarani em Pinhalzinho estão inseridos em um amplo
compósito de relações institucionais. Se, por um lado, como anuncio na
introdução deste capítulo, algumas instituições ressoam até a comunidade, por
outro, os próprios Guarani produzem extensões institucionais que também
ressoam para outras direções.
A proposta aqui é pensar algumas das relações institucionais em
Pinhalzinho que de alguma forma emergiram durante a pesquisa de campo e
após o campo, no momento em que procurava um modo de organizar o
material etnográfico. Assim, as descrições a seguir tratarão de algumas
ressonâncias de organizações até a comunidade, parcerias com organizações,
a presença de instituições dentro da aldeia e as enunciações da cultura com
E à pou asà palav as,à oà te oà a tog afiaà so ial à apa e eà a uià oà se tidoà deà p o essosà deà
mapeamentos que envolvem a participação de populações locais. Para discussões mais substanciais
sobre o conceito e as práticas acerca da cartografia social, ver Ascelrad (2008; 2010).
124
168
relação a este fazer institucional guarani. Como vimos no Capítulo III, há uma
tendência das instituições permeadas por saberes técnico-burocráticos à
objetificação de certos saberes, veremos aqui, como os Guarani se relacionam
com este caráter estabilizador do fazer institucional e produzem suas próprias
objetificações. Por último, mas não menos importante, apresento também uma
reflexão sobre os cargos e compromissos que operam nas relações
comunitárias e extracomunitárias em prol da comunidade.
Ao longo do texto, voltarei a falar do projeto de cartografia social, mas
por ora, comecemos pensando as ressonâncias da UEM na comunidade de
Pinhalzinho.
4.2.1. Algumas extensões das Instituições de Ensino Superior em
Pinhalzinho
No dia a dia em Pinhalzinho, costumava caminhar bastante por vários
locais da aldeia. Uma pessoa me indicava outra ou falava de algum ponto da
aldeia para que eu conhecesse. Caminhando, eu ia em busca destes
encontros. Em uma dessas caminhadas, fui até o posto de saúde para
conversar com o agente indígena de saúde, mas antes mesmo de entrar no
local, deparei-me com uma imagem que me chamou atenção. Era um cartaz de
divulgação do XV Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná (figura 24).
Figura 24. Cartaz de divulgação do XV Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná colado no Posto de
Saúde na TI Pinhalzinho. Fonte: foto tirada pelo autor, 2015.
169
Como foi apresentado nos Capítulos II e III, a UEM e a ASSINDI
ressoam até as aldeias, sobretudo por meio de informações que circulam
oralmente entre os Guarani. Ouvir falar sobre tais instituições é uma das
questões centrais para pensar o movimento dos meus interlocutores rumo à
cidade de Maringá. No presente capítulo, foi apresentado também como as
narrativas sobre a ONG e as universidades, assim como o retorno daqueles
que saíram para estudar, geram diferentes percepções e reflexões acerca das
instituições que estão nas cidades. Assim, percebem-se ressonâncias das
instituições que estão para além dos canais técnico-burocráticos que as
caracteriza, e que se concretizam pela própria circulação dos indígenas e suas
narrativas. Agora, descrevo algumas das ressonâncias das universidades,
especificamente da UEM e da CUIA estadual, por meio de canais técnicoburocráticos. Conversando com meus interlocutores em Pinhalzinho, eles me
falaram sobre as extensões do Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná na
aldeia e as parcerias entre a comunidade e a UEM125.
Uma notícia escrita por Paulo Pupim no Jornal da UEM de dezembro
de 2004, ano em que a CUIA foi instituída, diz o seguinte:
Por sediar o próximo vestibular para os índios, a UEM terá que bancar
parte das despesas. São gastos com a impressão de cartazes, manuais,
provas, entre outros. O restante será dividido. A Fundação Nacional do
Índio (Funai) responde pelo transporte dos candidatos. O governo estadual
se encarrega da hospedagem.
Os membros da CUIA estão percorrendo todas as aldeias fazendo as
inscrições, que se estendem até 10 de dezembro. Os índios concorrerão
somente entre eles (grifos do autor)126.
Como a organização e realização do processo seletivo do Vestibular
dos Povos Indígenas do Paraná é de responsabilidade da CUIA, alguns dos
meus interlocutores relatam que seus membros vão até as aldeias no período
125
Vale destacar que não há relações formais diretas e constantes entre a comunidade e a ASSINDI, mas
ainda assim algumas relações são estabelecidas entre ambas, como quando o cacique me pediu para
levar uma peça de artesanato feita por ele para a ONG, como presente e mostra das peças que eles têm
produzido em Pinhalzinho, e na realização da oficina de bioescultura, na qual o txamõi Awa Djemõwytsu
participou como uma liderança da comunidade. Também, quando estava em Maringá na véspera de
minha partida para Pinhalzinho, um Guarani me contou que uma tempestade havia causado danos em
algumas casas na aldeia, inclusive uma das oy gwatsu. Nessa situação, parentes guarani e técnicos da
ONG em Maringá se mobilizaram para arrecadar roupas, cobertores e colchões para enviar para a
aldeia. Assim, percebe-se que, apesar de não serem frequentes, existem algumas situações de parceria
entre Pinhalzinho e a ASSINDI.
126
Disponível em: http://www.jornal.uem.br/2011/index.php/component/content/article/145-diosampliam-espano-ensino-superior-pa. Acesso em 08 de setembro de 2016.
170
próximo às inscrições do vestibular. Os membros da CUIA falam com o cacique
e ajudam os candidatos a fazerem suas inscrições – que, como vimos, com
exceção da UFPR, exige uma assinatura do cacique. Foi em uma dessas
visitas dos membros da CUIA à Pinhalzinho, em 2004, que Simone decidiu que
faria vestibular para o curso de Secretariado Executivo Bilíngue na UEL.
Quando conversei com ela sobre as suas experiências de graduação, ela me
falou que nesta visita da CUIA, “só entregaram um livro pra gente, na mão da
gente, assim, e tipo ‘Fiquem à vontade’”. Ela afirmou que suas dúvidas não
foram sanadas e acabou se inscrevendo num curso de graduação do qual não
tinha muitas informações. Ela disse que:
Agora mudou, agora eles explicam o curso, falam mais, mas em 2003,
2004, não explicavam muito bem, aí eu achei que o Secretariado Executivo
Bilíngue fosse telefonista, naquele tempo. Aí eu peguei e falei “Vai esse
aqui mesmo”. Aí depois que eu vi a abrangência do curso, todas as
matérias, aí eu “Agora que eu estou aqui, continua, né”. Nunca mudei de
curso e nunca mudei de universidade nenhuma, sempre foi o mesmo.
Ela disse que sua escolha de continuar o curso foi uma forma de
gratidão àqueles que lhe ajudaram na cidade, segundo ela, o colegiado
universitário e os colegas de turma. Simone ficou grávida no primeiro ano da
graduação e afirmou que o apoio das pessoas da universidade foi crucial para
que ela pudesse se formar.
Este desencontro de saberes mencionado por Simone, entre o universo
acadêmico e a vida na comunidade, que a CUIA tem o papel de mediar,
também foi citado pelos meus interlocutores em Maringá, como por exemplo,
por Fábio, que pensava que ele iria aprender a “mexer no computador” no
curso de Ciência da Computação. Em Maringá, a falta de informação e as
dúvidas dos Guarani que não eram sanadas, quando ainda estavam nas
aldeias, foram críticas que me apresentaram a essa mediação da CUIA entre
os indígenas e a universidade. Esse desconhecimento sobre os cursos de
graduação não é uma característica exclusiva dos Guarani ou dos povos
indígenas, e nesse sentido a UEM promove uma Mostra de Profissões aberta à
população na qual os próprios graduandos falam de seus cursos. No entanto,
pela distância das aldeias, os indígenas interessados no vestibular dificilmente
têm acesso a este tipo de evento. Um dos meus interlocutores em Maringá
171
defendia que um evento como este, ou algo semelhante, deveria ser
proporcionado aos indígenas também.
Vale destacar que a CUIA foi institucionalizada em 2004 e desde então
vem fazendo esse papel de mediação entre os indígenas e a universidade. Não
é possível dizer que sua conduta permaneceu a mesma ao longo de todo esse
tempo. Como aponta Goulart (2014) em seu trabalho, os membros da CUIA
fazem reuniões em que divergem, debatem, repensam suas práticas e afins, o
que implica em certas mudanças ao longo do tempo. Segundo a própria
Simone, atualmente os membros da CUIA trazem mais informações aos
candidatos indígenas do que na época em que ela se inscreveu no vestibular –
no primeiro ano de atuação da CUIA. O que também não significa que a
atuação desse setor universitário tenha melhorado ou piorado no atendimento
aos indígenas que vivem no Paraná, mas apenas que Simone percebe
algumas mudanças e que a CUIA envolve debates e ações práticas de seus
membros que produzem alterações em seu modo de atuação.
Para além das ressonâncias da universidade na aldeia por meio das
políticas públicas de ingressos de indígenas no ensino superior, há também
relações de parceria entre a comunidade e as universidades, especialmente
com a UEM. Gustavo, diretor da escola indígena, fez o seguinte comentário
sobre os estudantes Guarani em Maringá e a UEM:
Maringá nos ajuda demais, muitas coisas na escola, sabe? E quando nós
solicitamos a eles, eu falo “Mas nós vamos ter que pedir pro cacique
primeiro, tá?”, e isso que é o lado que eu vejo mais positivo, está
entendendo? Porque daí eles não estão se separando da hierarquia da
comunidade, sabe? [...] Os estudantes ajudam aqui e a própria
universidade também. Nós temos uma festinha que nós fazemos aqui na
escola, que nós arrecadamos prendas, assim e tal, pro recurso depois
converter em ajuda na escola, e nós sempre solicitamos à universidade,
através da Associação [de moradores de Pinhalzinho] pra escola, sabe? E
a universidade sempre está nos ajudando.
Aqui, Gustavo destaca a UEM como uma instituição parceira, entre
outras universidades, no desenvolvimento de projetos da comunidade. Essas
parcerias são construídas, principalmente, com pesquisadores do LAEE/UEM.
Ainda que ambas as partes mobilizem perspectivas distintas, tantos os
interesses dos indígenas quanto dos pesquisadores parecem ser parcialmente
atendidos nessas relações.
172
Em um artigo acadêmico sobre “educação” e “religião” entre os Guarani
no norte do Paraná, Faustino (2012) introduz brevemente um panorama sobre
políticas de inclusão social em âmbito histórico internacional, adentra em
discussões sobre educação indígena e apresenta os resultados de um projeto
de extensão realizado por pesquisadores da UEM junto aos Guarani de
Pinhalzinho, Laranjinha e Posto Velho. De acordo com a autora, o projeto
surgiu a partir do interesse de professores Guarani dessas TIs em realizar uma
parceria com a universidade para a produção de um material didático que
contemplasse elementos das tradições guarani. Por um lado, da perspectiva
universitária, projetos como estes podem ser pensados a partir de uma longa
história de relações globais/internacionais que possibilitam refletir sobre
questões locais, como por exemplo, a relação entre “educação” e “religião” em
comunidades Guarani no norte do Paraná. Este é um modo de pensamento
identificado por Strathern (1991) como genealógico ou de mapas, ou seja, que
identifica um “todo” e “partes” – discutido no Capítulo III. Por outro lado, a
busca dos professores guarani pela parceria com a universidade, muito
possivelmente, não parte de uma constatação do “todo” (do global), mas de
suas próprias experiências e expectativas com o ensino nas escolas indígenas.
Alguns efeitos produzidos em parcerias como esta, como a produção
de materiais didáticos específicos, conectam ambas as partes envolvidas, mas
os pontos de vistas não partem de uma mesma posição. Segundo Faustino
(2012), “o material resultante do projeto foi preparado e revisado pelos
professores indígenas para ser publicado e assim compor tanto o acervo de
materiais escritos diferenciados e específicos da cultura Guarani Nhandewa
como um acervo de fontes [de] pesquisas sobre a história dos Guarani no
Paraná” (p. 259). Ou seja, por um lado, da perspectiva dos Guarani, o foco
pode ser as especificidades da cultura, e por outro, da perspectiva universitária,
a produção de um acervo para futuras pesquisas com os Guarani no Paraná.
Ainda com relação ao debate sobre educação escolar indígena,
algumas parcerias levam pessoas da comunidade para a universidade e vice
versa, como na participação de Gustavo no Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência para a Diversidade (PIBID – Diversidade) da UEM. De
acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
173
(CAPES), este programa tem como objetivo “o aperfeiçoamento da formação
inicial de professores para o exercício da docência nas escolas indígenas e do
campo”127. De acordo com Gustavo, ele vai mensalmente à Maringá participar
de reuniões do PIBID, nas quais auxilia a partir de sua experiência como
graduado, professor e diretor na escola em Pinhalzinho. Ainda, estudantes
indígenas que participam do programa, eventualmente, vão até as aldeias
conhecer os espaços escolares.
Há também parcerias com a UEM cujo foco não é a escola. Em uma
breve passagem pela página online do LAEE encontramos projetos
desenvolvidos em diferentes TIs no Paraná integrando diversas áreas de
conhecimento, como educação, história, arqueologia e agronomia 128. Em uma
conversa com Joaquim e sua esposa Luzia, esta me falou de um projeto com
um professor da UEM integrante do LAEE cujo objetivo era difundir técnicas de
artesanato entre as mulheres da aldeia. Ela disse:
Uma vez ali, moço, a mulher do cacique fez um ajuntamento de só mulher,
né, e acompanhada com um rapaz lá de Maringá, como que é? O
professor [...], então deu uma ideia pra ela pra ela ensinar as mulheres a
fazerem aquelas cestinhas de palha. Aí juntamos, uma semana foi bem,
iche, foi um pique só, sabe? Mas aí depois eu falei assim “Laurinda, como
é que você aprendeu fazer essa onça aí?”. Ela falou “É assim Luzia”, ela
sentava perto de mim e coisava a palha e coisava a palha e fazia um
miolinho lá, e rapidinho ela... Eu falava assim “O meu serviço é lavar
caçada e limpar casa, porque isso aqui não é pra mim não”. A minha
comadre ali aprendeu e ela vai até uma altura com a cestinha assim,
depois um pouco ela desmancha tudo de novo e faz até naquela altura... E
a Laurinda é a única que aprendeu bem, foi a Laurinda e as meninas dela,
porque o resto... [Ela] aprendeu sozinha. Porque a minha mãe lá em
Laranjinha, lá em Santa Amélia, ela fazia aquelas bolsa de palha, sabe?
Ela fez a forma de tábua, assim, e aqui ela fez assim um tipo de onde você
ia amarrar a alça da bolsa, né. E aí ela coisava aquele cordão da palha e
passava assim por baixo e amarrava aqui no grampo e voltava de novo,
traçava lá e voltava. Ela fazia bolsa e vendia. Ela [Laurinda] falou “Luzia,
você viu tanto tempo a sua mãe fazendo bolsa pra vender lá, você não
aprendeu?”, eu falava “Ah Laurinda, a minha profissão não é essa”. Até eu
fico olhando, eu acho bonito quando os índio estão vendendo as coisinhas,
mas que ideia viu... eu não tenho essa ideia não.
A narrativa de Luzia traz a imagem de um projeto que pra ela não deu
muito certo. Ainda que os projetos em Pinhalzinho visem a comunidade e
127
Cf. http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid/pibid-diversidade. Acesso em 09 de
setembro de 2016.
128
Para conhecer um pouco mais dos projetos desenvolvidos pelo laboratório, cf.
http://www.dhi.uem.br/laee/. Acesso em 09 de setembro de 2016.
174
muitas vezes fortalecer os laços coletivos, eles não se sobrepõem as
singularidades guarani. Luzia enfatiza que ela não tem o dom para produzir
artesanatos. Sua mãe tinha e Laurinda, esposa do cacique, também tem, mas
ela prefere não insistir, como diz, em uma ideia que não desenvolve.
Para além da UEM, outras instituições de ensino fazem parcerias com
os Guarani em Pinhalzinho. Este é o caso já mencionado do projeto de
cartografia social que foi desenvolvido na aldeia129. A parceria foi feita não com
uma universidade, mas com o IFPR de Paranaguá, que é um instituto público
voltado ao ensino básico, profissional e superior. Esta iniciativa surgiu a partir
da aliança entre as comunidades de Pinhalzinho, Laranjinha e Posto Velho,
que escreveram uma carta em 2012 direcionada a um professor do IFPR
solicitando a realização da cartografia social em suas terras. O documento
seguiu com as assinaturas de lideranças e um abaixo assinado de moradores
das três TIs. Ainda, tal demanda está associada ao PBA realizado dentro de
oitos TIs no norte do Paraná que corresponde às ações de mitigação e
compensação pelos impactos da construção da UHE Mauá no rio Tibagi,
empreendimento de responsabilidade do Consórcio Energético Cruzeiro do Sul.
O projeto de cartografia social teve início em outubro de 2013 e, de
acordo com o Boletim Informativo (2014), contou com atividades desenvolvidas
ao longo de um ano, como oficinas de produção de mapas coordenadas pelas
lideranças de Pinhalzinho. O mapeamento contou com a participação da
associação dos moradores, da escola e diversos membros da comunidade. As
atividades do projeto incluíram registros fotográficos, registros e pesquisa de
narrativas, coleta de pontos de GPS (Global Positioning System), elaboração
de croquis, legendas e construção de mapas. O boletim que resultou deste
trabalho recebeu o nome de Djaikwaa Pa Nhandereko (Nosso Lar Nós
Conhecemos)130 e é composto majoritariamente por imagens e narrativas dos
próprios Guarani acerca da história da região de Pinhalzinho, da luta pela
conquista da demarcação da terra, da organização social e da cultura em
129
Questões relativas à cartografia social não são o foco deste trabalho, contudo, vale conferir uma
produção antropológica que vem sendo escrita acerca de temas como cartografia social,
etnomapeamento e mapeamento participativo, cf. Almeida (1994), Cardoso (2013), Santos (2014), entre
outros.
130
I te essa teà ueàa uià ossoàla àapa e eà o oàu aàt aduç oàdeà nhandereko, o que indica outras
possibilidades de tradução para além de cultura.
175
Pinhalzinho, das conquistas e reivindicações e da importância da cartografia
social no local. Também há uma parte dedicada às narrativas das crianças
sobre a vida na aldeia, brincadeiras e armadilhas. A imagem central do boletim,
que ocupa duas páginas, corresponde ao mapa que resultou do processo de
mapeamento social. Parte dos elementos destacados no mapa foi desenhada
pelas crianças da comunidade.
A percepção dos Guarani acerca da importância da cartografia social é
um dos pontos mais pertinentes para a reflexão aqui empreendida. O Boletim
Informativo apresenta seis narrativas específicas acerca deste assunto e é
possível perceber duas questões destacadas pelos Guarani em suas falas.
Primeiro, a importância da cartografia social com relação a uma das suas
atuais reivindicações, que é a revisão e ampliação dos limites territoriais
atualmente demarcados, ou seja, o mapeamento é relevante para uma
demanda pelo reconhecimento de suas terras perante o Estado. Nesse sentido,
uma das narrativas ressalta a importância da cartografia com relação às
políticas de demarcação de terra e o papel dos mais velhos nesse processo131:
[...] o mapeamento pra nós, ele vai de encontro até com a Constituição
Federal. Que é provar que aquele espaço é de nosso uso, costume e
tradição. Mas mostra dentro do papel que a gente conhece e como que a
gente faz esses uso e costume, como que a gente explora ele
conscientemente. O mapeamento também vai dar visibilidade pros nosso
mais velhos, como eles entendem esse espaço aqui, o local que eles têm
que buscar remédio, o local que é importante. Isso dá força pro mais
velhos discutir de novo, dá pra mostrar prá eles que o conhecimento deles
não tá perdido, e que tá sendo importante ainda, e que é fundamental
agora. [...] Os mais velhos conhecem de ponta a ponta o território. E o
mapeamento vai fortalecer isso, vai fortalecer a fala deles. Porque depois,
entre a conversa deles, um vai lembrando uma coisa outro vai lembrando
outra, isso vai dando visibilidade daquilo que é escondido no território. A
cartografia mexeu com eles, na verdade volta pra eles relembrar a luta dos
pais dele. Que lutô pra manter esse território e depois perdeu. [...] Isso
mexe com a sensibilidade porque volta na história dos pais. Volta na
história dos pais e a intenção é recuperar aquilo que o pai dele lutou pra
segurar. Sabe o que eu tô percebendo é que tá caindo na mente deles o
que é cartografia agora. Porque tá mexendo com a história deles (2014,
p.15).
Se por um lado o mapeamento é importante para resgatar
conhecimentos e lutas dos mais velhos e dar visibilidade à questão do território
aos que estão fora da aldeia, brancos e especificamente setores do Estado, por
131
As transcrições das falas presentes no boletim são aqui reproduzidas com o mesmo estilo de grafia.
176
outro, os Guarani apontam para um importante efeito do mapeamento dentro
da comunidade. Este é o segundo aspecto destacado, que é a difusão destes
sabres sobre o território, próprio dos mais velhos, entre outros Guarani que
vivem na aldeia. Nesse sentido, em conexão com este aspecto educativo
voltado principalmente às gerações mais novas, que algumas das narrativas no
boletim destacam que:
É importante pras crianças, pra eles aprendê bem os pontos [GPS]
certinho. Tipo assim, talvez a gente não consegue recuperá a área que foi
perdida. Mas lá na frente as crianças já tem uma arma pra aprendê com
esse mapa. Já tem o queijo e a faca na mão. O dia que eles quizé luta pelo
aquilo lá, eles tem tudo isso que a gente tá deixando pra eles (2014, p. 14).
Porque nós e as crianças tão sabendo agora tudo aquilo que é importante
recuperar: as linhas (divisas), os rios, as matas, nossa escola, nossas
estradas. Eu mesmo não sabia, agora eu tô aprendendo (2014, p. 14).
Pra quem não conhece, serve pra aprofundar mais na parte de remédio, a
cultura, na parte de vivência de cultivo também, a água, a mina dágua
(2014, p. 14).
Estas três falas destacam estes aspectos educativos voltado para os
próprios moradores da comunidade. A cartografia social e os pontos por ela
destacados no território foram trabalhados na escola indígena com os alunos e
alunas. Um dos projetos desenvolvidos na escola foi o Djaikwaa Pa
Nhandereko, que tem o mesmo nome que foi dado ao o Boletim Informativo.
Não é à toa que o boletim foi me dado por Gustavo em uma de minhas visitas à
escola, onde ele é trabalhado com os estudantes guarani.
Assim, percebe-se que estas relações com organizações fora da
aldeia, no caso aqui, instituições de ensino superior como a UEM e o IFPR,
possuem uma dimensão voltada para dentro aldeia, como o resgate de
elementos por eles enunciados como cultura e o fortalecimento da autonomia
da comunidade. Estas questões serão mais exploradas no tópico seguinte no
que diz respeito a escola e outras instituições de Pinhalzinho.
177
Figura 25. Marco de resistência, local onde um antigo morador de Pinhalzinho foi assassinado por um
chefe de posto na época da retomada das terras. Este foi um dos pontos destacados na cartografia
social. Fonte: foto tirada pelo autor, 2015.
4.2.2. Instituições dentro da aldeia, projetos e práticas de objetificação
guarani
O cacique e o txamõi Awa Djemõwytsu são dois Guarani em
Pinhalzinho com dons voltados à produção de remédios e práticas de cura. A
oy gwatsu e as matas, de onde são colhidas plantas, mel e outras matérias
com propriedades curativas, são dois espaços centrais para pensar a saúde na
comunidade. Como me disse o cacique certa vez, a “mata é nosso
supermercado e nossa farmácia”. Ainda, estes mesmos espaços são locais
privilegiados para a educação das crianças. Ao se engajar nas práticas de reza
e caminhar pelas matas, rios e outros pontos do território com os mais velhos,
elas desenvolvem saberes sobre uma série de elementos enunciados como
parte da cultura guarani. Porém, atualmente há outros espaços dentro da
aldeia que também são núcleos de práticas de cura e educativas. Refiro-me
especificamente ao Posto de Saúde e à Escola Estadual Ywy Porã.
178
Nesse sentido, ao longo deste tópico proponho conhecer um pouco
destas instituições e seguir outras questões às quais elas se conectam. Farei
uma breve descrição do posto de saúde e me deterei um tempo maior em
descrever a escola devido ao universo de questões com as quais ela se
relaciona e que possibilita pensar as relações entre instituições, mobilização de
saberes guarani e institucionais e os enunciados de cultura.
Uma característica interessante da instituição escolar e de projetos que
extrapolam a escola é a objetificação de certos saberes da enunciada cultura.
As práticas de objetificação guarani aparecem engajadas numa dinâmica de
continuamente convencionar e produzir múltiplas diferenças, um processo de
contínua extensão criativa do que meus interlocutores chamam de cultura.
Assim, a parte final deste tópico discorre sobre essas práticas de objetificação
guarani.
O posto de saúde em Pinhalzinho
O Posto de Saúde em Pinhalzinho é voltado para atendimentos
primários. O prédio é pequeno e contém uma recepção, sala de vacinação,
farmácia, sala de consulta convencional e pediátrica, sala de atendimento
odontológico, sala da enfermeira e copa. O clínico geral e o dentista que
atendem no local não são indígenas e trabalham também em outros locais na
cidade. A recepcionista, a enfermeira e a técnica de enfermagem também não
são indígenas, porém esta última é casada com um Guarani da comunidade.
Os funcionários Guarani que trabalham no posto são o agente indígena de
saúde e quatro dos cinco motoristas. Estes últimos se organizam em um
cronograma de trabalho de modo que sempre haja um motorista disponível
para o caso de que algum morador precise ser levado para cidade, onde são
realizados atendimentos especializados e emergenciais pelo Sistema Único de
Saúde (SUS).
Jorge, um dos motoristas do posto de saúde, sempre ia até o escritório
onde eu fiquei hospedado na aldeia para trocarmos algumas palavras. Em uma
de nossas conversas ele refletia sobre sua vida na comunidade, seu trabalho e
seus dons. Por fim, ele dizia que amava dirigir e que seu dom era este mesmo.
Sua fala me fez pensar que, como no caso dos estudantes universitários, os
179
dons não se restringem aos elementos que são enunciados como parte da
cultura – artesanato, política interna, reza, entre outros –, mas abrangem
conhecimentos que, à primeira vista, podem ser identificados como coisas dos
brancos, como dirigir um carro ou fazer um curso de ensino superior.
O agente indígena de saúde em Pinhalzinho é Tadeu, o vice-cacique.
Ele diz que foi eleito para o cargo pela comunidade132 e assume esta posição
desde 2010. Porém, ele diz que não tem muita afinidade – poderíamos dizer
dom – com a área da saúde. Ainda assim, ele fala de vários compromissos que
mantem com a comunidade, dentre os quais, as demandas na área de saúde,
que segundo ele é grande. Nas conversas com Tadeu, recorrentemente ele
ressaltava o seu comprometimento com as atividades na aldeia, além de vicecacique e agente de saúde, ele também é um dos coordenadores do grupo de
canto e dança e está se preparando para se tornar txamõi. Tadeu disse que
seu maior interesse é pelas discussões acerca dos direitos indígenas e da
atuação política da comunidade. Assim, no dia a dia da aldeia ele se mostra
uma liderança comprometida e muito bem vista pelos outros Guarani na
comunidade.
Apesar da presença
da instituição
de saúde
dentro da
TI,
aparentemente, não há muitos conflitos entre os saberes praticados dentro do
posto e os saberes dos mais velhos sobre remédios e práticas de cura. No
geral, eles procuram o posto de saúde e reivindicam mais médicos e
disponibilidade de medicamentos. Lembro uma única vez de ter ouvido em
campo uma reclamação no sentido de que alguns mais novos estariam
recorrendo apenas ao posto de saúde e esquecendo da cultura, com relação
às praticas de cura. Porém, em geral, ainda que haja uma grande procura dos
Guarani pelo atendimento no posto, eles não deixam de utilizar os remédios da
mata. Em campo, ouvi e vi muito mais processos de feitura de remédios e
outras práticas relativas à saúde, associadas à noção de cultura – como os
banhos com infusão de wyra pire –, do que elementos relacionados às práticas
biomédicas.
O que se nota são esforços dos mais velhos e lideranças em ensinar
as crianças sobre os remédios da mata, como nas práticas descritas no
132
Um dos requisitos exigidos pela FUNASA.
180
primeiro capítulo – nas quais o cacique “brinca” com as crianças de simular
doenças e procurar plantas para produzir remédios. Ainda, outra tentativa
empreendida para a manutenção dos saberes dos mais velhos com relação a
este aspecto é a inclusão deste tema dento da escola. Assim, passemos a
algumas reflexões sobre a escola e os projetos nos quais se envolve.
A Escola Estadual Ywy Porã e os projetos
A Escola Estadual Ywy Porã, que atende alunos dos primeiros e
últimos anos do ensino fundamental, foi um dos primeiro lugares que visitei ao
chegar em Pinhalzinho. Era período de férias. Tadeu e a pedagoga Luara
deixaram-me caminhar sozinho pelas salas e espaços externos para conhecer
um pouco da parte física da escola. Com a câmera em mãos, fotografei uma
série de trabalhos feitos pelos alunos e professores e palavras em guarani
dispostas pelas paredes. A maioria era resultado de projetos realizados na
escola em parcerias com outras iniciativas coletivas na aldeia. Foi Luara, Ana
(professora de guarani) e Gustavo (diretor) que, posteriormente, elucidaram
alguns dos sentidos destes trabalhos e dos projetos aos quais estavam
relacionados.
Luara e Gustavo me explicaram que a dinâmica na escola é composta
por atividades internas, que incluem aulas pautadas em saberes disciplinares
comuns em qualquer outra escola pública no Brasil e saberes específicos –
como a língua guarani e outros elementos da cultura – e atividades externas,
como ida à casa de mais velhos e à oy gwatsu. Além de Luara e Gustavo,
muitos outros dos meus interlocutores falam da escola como um espaço para
fortalecer a cultura133. Este esforço é realizado, principalmente, por meio da
execução de diversos projetos que buscam integrar as diferentes disciplinas
escolares ao redor de temáticas comuns e fazer com que os alunos se
engajem em atividades da comunidade. Uma das características interessantes
desses projetos é que, geralmente, não são criações circunscritas a instituição
escolar, mas sim extensões de outros projetos realizados no âmbito da
comunidade e que estão vinculados a diferentes instituições.
133
Ainda que haja controvérsias acerca do papel da escola, como mostro mais adiante.
181
Luara e Gustavo me falaram de três projetos que foram desenvolvidos
em 2014 e 2015. Um deles é o já mencionado Djaikwaa Pa Nhandereko
(Nosso lar nós conhecemos), que ocorreu devido ao projeto de cartografia
social do território de Pinhalzinho. Os professores da escola não apenas
trabalharam o Boletim Informativo (2014) em sala de aula, mas os próprios
alunos foram levados para conhecer o território com alguns mais velhos da
comunidade. Gustavo descreve a participação da escola junto aos alunos no
processo de mapeamento social da seguinte maneira134:
[...] nós começamos a pensar assim, que quando nós éramos mais
pequenos, a gente não ficava muito na televisão, que nem tinha, nós
íamos brincar nas árvores ou as vezes ia matar um passarinho, ou às
vezes ia ajudar o pai fazer uma armadilha [...]. A gente tinha conhecimento
do território da gente, coisa que as vezes essas crianças de agora não vão
ter. Como é que eles vão defender aquilo que eles não conhecem? [...]
Daí, Djaikwaa Pa Nhandereko, nós visitávamos os quatro cantos da
comunidade, os marcos mais fundamentais da comunidade. E sempre que
nós íamos nós levávamos um mais velho que contava a história da
demarcação da comunidade, o que aconteceu ali. Naquele caminho ele via
uma planta, ele via uma árvore, ele comentava sobre ela, sabe? Então nós
visitamos quatro marcos geodésicos que divide a comunidade, fizemos um
levantamento, as crianças colocaram lá “área de risco”, porque o
agronegócio está se aproximando, eles mesmos coloram nome, sabe?
“Casa abandonada”, “local de resistência”, como foi aquela cruzinha que
tem lá na entrada da aldeia ali, [figura 25] [...] “fim do arrendamento” do
porto, [...] “armadilhas ilegais” dentro da comunidade, que nós andando no
mato, nós achamos várias armadilhas pra capturar animais. Então daí que
nós passamos pras lideranças isso daí. Então foi um levantamento assim
também que ajudou neles, no sentido deles conhecerem. [...] E pras
crianças da tarde, como são mais pequenos [...] nós desenvolvemos o
projeto das armadilhas tradicionais. Daí nós visitávamos cada índio mais
velho, que tinha uma habilidade de uma técnica de caça, e ele ensinava
[...]. Daí ele falava com quem que ele aprendeu, como que era o nome em
guarani.
Gustavo destaca que as atividades desenvolvidas no projeto Djaikwaa
Pa Nhandereko foram importantes para as crianças ampliarem seus saberes
sobre
o
território
e
para
que
futuramente
deem
continuidade
aos
agenciamentos em defesa do mesmo. O Boletim Informativo (2014), decorrente
do trabalho de mapeamento, também contou com a participação das crianças.
Foram incluídos seus desenhos no mapa principal e na legenda, uma página
com seus depoimentos sobre a vida na comunidade e outra com descrições
baseadas em seus conhecimentos sobre brincadeiras e armadilhas. Destaco
134
Ao longo deste tópico utilizo várias falas de Gustavo em detrimento de outros interlocutores devido
ao seu papel como uma liderança na instituição escolar em Pinhalzinho e também pela oportunidade
que tive em campo de registrar suas falas acerca de vários assuntos relacionados à escola.
182
que, como já foi mencionado, o mapeamento social não foi uma iniciativa da
escola, mas uma associação com um projeto da comunidade em parceria com
o IFPR e executado dentro do PBA ligado ao Consórcio Cruzeiro do Sul.
Percebe-se neste projeto o intuito de integrar as crianças com pautas coletivas
da comunidade, especificamente, o território.
Um segundo projeto que me apresentaram foi o Ymã Gua Kuery
Oikuaave’a Ha’e Nhandeva’e Oexaa Rupi (História e Conhecimento do Tempo
na Visão Guarani)135. Neste, segundo Luara e Gustavo, foram trabalhados as
estações do ano e ciclos climático-temporais, técnicas de contar o tempo e
astronomia, tudo dentro de concepções que eles associam à cultura guarani.
Gustavo disse que a ideia surgiu quando Fernando lhe fez uma proposta para
trabalhar os Sistemas Agroflorestais (SAFs) na escola. A princípio ele ficou
com receio, por não conhecer muito sobre agricultura, mas pensou: “O quê que
dentro da cultura eu posso pensar na agricultura?”. Foi aí que Gustavo buscou
referências nos saberes dos mais velhos.
Daí me veio a ideia de que de primeiro, eu lembro que tinha o período pra
nós plantarmos o milho, tinha o período que você caçava [...], então eu
pensei, mas tem toda essa questão do tempo né, [...] tem também a
questão das estações, da lua. Então, daí, esse ano nós fizemos um
trabalho [...] que nós reunimos a agrofloresta, agricultura, com o
conhecimento do tempo na visão guarani [...]. Fizemos um calendário, a
cada quinze dias, nós tirávamos as crianças das salas de aula, íamos até
um mais velho, [...] e fazíamos estes questionamentos com as crianças:
“Em qual lua é melhor pra caçar? Em qual lua é melhor pra pescar? Em
qual tempo se planta? Qual é o tempo melhor pra pescar?”. Nós
perguntávamos “Tem algum mito sobre?”. Então foi um trabalho bem
interessante.
Além de se dirigir aos mais velhos, Gustavo procurou referências
acadêmicas que pudessem lhe ajudar a pensar o tempo associado à cultura
guarani. Foi neste caminho que ele diz ter encontrado os trabalhos de
Germano Bruno Afonso, segundo Gustavo, “o pioneiro na etnoastronomia
indígena” 136.
[...] através da pesquisa dele, ele conseguiu identificar as constelações
indígenas. Que constelação que surge? Em que tempo que aparece?
Quais são as constelações, sabe? Foi muito bacana, porque daí, nós
conseguimos pegar aquilo que é, vamos dizer assim, é o popular, o
conhecimento ali, e nós conseguimos pegar esse que é o científico. Daí foi
135
Nota-se que a escrita do nome do projeto foge a grafia nhandewa que me foi apresentada em campo.
Isso se dá, provavelmente, porque a professora de língua guarani na escola é Mbya. Assim, muito do
que é ensinado na escola segue princípios da grafia mbya e não nhandewa.
136
Para algumas reflexões deste autor sobre constelações indígenas, ver Afonso (2006; 2009; s.d.).
183
interessante que muitas das coisas que nossos índios daqui falavam, ele
também falava no científico ali junto, através de outras pesquisas com
outros Guarani, está entendendo? Então isso que foi interessante.
Gustavo fez uma analogia entre uma proposta de observatório
astronômico indígena de Germano Bruno Afonso com métodos Guarani de
contar o tempo diário por meio da percepção da mudança da sombra de uma
estaca de madeira fincada no chão. Nesse sentido, é interessante que Gustavo
faz uma associação entre o conhecimento acadêmico e o dos mais velhos de
um modo não tão conflituoso como poderia parecer a conexão entre o
conhecimento científico137 e guarani. Porém, não é qualquer referência
acadêmica que possibilita essa associação, Gustavo ressalta que Germano
Bruno Afonso se inspirou em percepções indígenas do tempo e do céu para
compor sua teoria, então, é como se Gustavo encontrasse na etnoastronomia
do autor uma extensão indígena anterior. Assim, é como se fosse um caminho
para um resgate parcial de saberes que antes de serem transformados em
científicos já compunham, de alguma forma, a cultura guarani.
Esta associação entre saberes distintos também aparece no terceiro
projeto que me foi apresentado. Este se refere a uma iniciativa prática de
trabalhar os SAFs com os alunos da escola. Como já mencionado, a proposta
partiu de uma das lideranças da comunidade, e a intenção, segundo Gustavo,
era fomentar uma forma de agricultura alternativa à monocultura existente
dentro aldeia. De acordo com Gustavo, na época em que Pinhalzinho era
chefiado por funcionários da FUNAI, os Guarani tinham que seguir os modelos
impostos pelo chefe e pelo fomento. Estes, segundo Gustavo, seriam os
responsáveis pela difusão do modelo de monocultura no local. Neste sentido,
atualmente, as lideranças têm buscado iniciativas com SAFs e a introdução do
uso de sementes crioulas138 nos métodos de plantio dentro da comunidade.
Estas iniciativas têm sido feitas com apoio do PBA e têm gerado eventos como
a Feira de Sementes que ocorre anualmente em Pinhalzinho. Assim, percebese que este projeto na escola também está relacionado a outras iniciativas
dentro da aldeia.
137
Aqui emprego o termo científico no sentido em que Gustavo o mobiliza para se referir ao
conhecimento acadêmico.
138
São sementes tradicionais, mantidas há gerações por pequenos agricultores e os chamados povos
tradicionais. Com relação a esta questão, em Pinhalzinho os mais velhos são reconhecidos como
guardiões das sementes.
184
Em conversa com Gustavo ele me explica entusiasmado qual é a
proposta dos SAFs e como isso envolve conhecimentos guarani e científicos.
A agrofloresta, ela quer fazer o quê? Tem um grande estudioso, Ernest, ele
bebeu na fonte das comunidades indígenas, e por quê? Porque quando na
carta de Pero Vaz de Caminha, ele mesmo falava “Ah, os índios que vivem
aqui comem e vivem das sementes que caem no chão, comem desse
inhame para que tudo lugar dá”, então, [...] os indígenas aqui já viviam nos
sistemas da agrofloresta, porque eles sabiam respeitar os ciclos ali, ele diz
que eles comiam daqueles sementes que caiam, mas ele não via que
muitas delas eles semeavam também, dentro daquele sistema ali. A
agrofloresta é o quê? Ela pega uma terra que está que nem essa terra
aqui, olha [aponta]. É uma terra limpa, e daí o quê que você quer? Você
vai começar a trazer vida praquilo ali, porque aqui não tem como os
passarinhos voltarem aqui, não tem como os mamíferos voltarem aqui,
porque só existe a monocultura ou do colonião ou da brachiaria ali139, já na
agrofloresta não, você trabalha a terra ali, daí você começa a plantar, você
volta a trazer as árvores de volta ali, praquela área. Só que daí, você cria
um espaço ali em que junto com as árvores você traz também a mandioca,
você traz também o inhame, você traz também o feijão, o feijão guandu, o
feijão-de-vara, você traz também de volta o arroz ali dentro... Então, o que
acontece? Uma árvore, uma árvore nativa, ela vai levar vinte anos pra
crescer, e ela precisa do quê? No mato tem aquelas árvores emergentes,
tem as médias e tem as primárias, as primárias precisam das maiores
porque elas precisam de menos luz solar naquele momento, então ela
necessita de uma pra fazer a proteção pra ela. Então, na agrofloresta você
vai fazer isso também. Você vai plantar uma árvore nativa e se essa árvore
nativa não tiver uma proteção ali ela vai acabar morrendo com muito sol.
Você planta ela e ao lado dela você planta, por exemplo, uma mandioca ou
uma banana, que cresce e produz a um tempo curto e ela começa dar
proteção praquela ali.
Gustavo falou entusiasmado sobre os SAFs, que segundo ele é uma
técnica de plantio que busca um equilíbrio entre diferentes espécies de plantas,
animais humanos e não humanos. Ele fala, por exemplo, que na agricultura
convencional há uma série de insetos chamados de pragas que na agrofloresta
são entendidos com insetos amigos, pois estes atraem também os seus
próprios predadores e consequentemente outras espécies de animais.
Interessante que ele ressalta que o pesquisador suíço Ernest Götsch
pesquisou os indígenas da América Latina pra desenvolver este método. Ele
cita o autor como uma referência, ou um caminho, para pensar técnicas de
plantio que quebrem com a monocultura140. Assim como quando cita Germano
Bruno Afonso, Gustavo relaciona as pesquisas de Götsch a uma extensão de
saberes e práticas indígenas.
139
Colonião e a brachiaria são duas espécies de gramíneas.
Para uma introdução à proposta de Ernest Götsch e aos estudos relacionados à agrofloresta, ver
Götsch (1995).
140
185
Enquanto Gustavo me descrevia a proposta dos SAF lembrei das
plantações mantidas pelo cacique em um terreno próximo de sua casa.
Perguntei se aquele espaço tinha alguma relação com a proposta da
agrofloresta. Ele diz que:
[...] seguem o mesmo ritmo, mas daí, o que acontece? O dele é mais o que
ele sempre fez, é também agrofloresta, está entendendo? Mas daí não
segue muito os princípios de dados, assim, sabe? [...] O dele é mais da
cultura daquilo que ele tem da família dele, mas então, é o que o Ernest
bebeu na fonte. Vamos dizer assim, o dele é o mais legítimo (meus grifos).
Quando Viveiros de Castro ([2009] 2015) propõe que a antropologia
assuma a sua missão de uma permanente descolonização do pensamento a
partir das experiências com outras “culturas” e “sociedades”, o autor parte do
princípio de que as teorias antropológicas foram (e são) influenciadas e
coproduzidas pelos próprios interlocutores de pesquisas. Desse modo, em
Pinhalzinho ocorre como se meus interlocutores tivessem uma percepção
assumida dessa coprodução das populações indígenas em algumas teorias
acadêmicas, questão para qual Viveiros de Castro chama a atenção dos
antropólogos. Assim, quando os Guarani em Pinhalzinho buscam conectar
saberes guarani com saberes científicos para fortalecer suas atividades na
escola em prol da cultura, é menos no sentido de encontrar contrastes e
controvérsias e mais de buscar alianças possibilitadas pelo reconhecimento de
uma extensão indígena daquele material.
Este tipo de engajamento, pelo que relatam meus interlocutores,
possibilita uma extensão criativa do que enunciam como cultura na
comunidade. O foco dos coordenadores guarani da escola, assim como de
outras lideranças, é integrar as crianças nesses projetos coletivos para que as
gerações futuras continuem se engajando nesse processo de produção de
diferença, com relação aos brancos, outros povos indígenas e na multiplicidade
de suas singularidades. É nesse intuito que as crianças participaram do
mapeamento social, desenvolveram estudos práticos com relação ao tempo,
fizeram pesquisas com plantas e sementes e, atualmente, estão trabalhando
em construções de jardins agroflorestais.
Nota-se que enunciações sobre a diferença, sobretudo no âmbito da
educação escolar indígena, são comuns entre meus interlocutores, tanto na
aldeia como em Maringá. Em Pinhalzinho, tal ideia foi reforçada em falas de
186
lideranças como Tadeu e Fernando e também pelo diretor da escola. Este
afirmou o seguinte sobre a educação diferenciada:
Não vai existir uma educação diferenciada só por causa da língua guarani
[...] a educação diferenciada só vai acontecer quando os sujeitos ali dentro
forem sujeitos diferenciados dentro da cultura guarani [...] então, o prazo
dos professores não índios dentro da escola, ele tem um tempo,
porque os professores indígenas lá, eles vão ter que se formar e vão
ter que voltar e vão ter que assumir as suas responsabilidades dentro
da aldeia. Isso é uma coisa muito boa! [...] As leis 10.639 e a 11.645141,
quando tem essas leis, os povos indígenas e os afros que lutaram por
essas leis, quando eles lutaram, nós não queremos que seja só pra
relembrar uma data ali. Não! Nós queremos que agora a história seja
contada com os nossos olhares, com a nossa visão (meus grifos).
Esta discussão da diferença é recorrentemente levantada em
etnografias que discorrem sobre escolas indígenas. Percebe-se que a
efetivação de uma prática de educação diferenciada para povos indígenas,
como pressupõe a legislação brasileira, depende muito do contexto e das
especificidades de cada população. Algumas pesquisas apontam para a escola
como um espaço de valorização da cultura e da tradição (Oliveira, 2005;
Mainardi, 2010), outras indicam uma distância entre as políticas nacionais de
educação diferenciada e as realidades escolares, ainda que as escolas sejam
percebidas, apropriadas e/ou valorizadas de modos singulares pelos indígenas
(Collet, 2006; Cohn; Tassinari, 2006; Marqui, 2012; Beltrame, 2013).
Uma abordagem que vem ganhando espaço na área de antropologia
da educação é a proposta de Tassinari (2001) de pensar a escola como um
espaço de “fronteira”. De acordo com a autora, a escola indígena não é um
espaço de saberes exclusivos dos brancos ou indígenas, mas sim “um espaço
de contato e intercâmbio entre populações, como espaço transitável,
transponível, como situação criativa na qual conhecimentos e tradições são
repensados, às vezes reforçados, às vezes rechaçados, e na qual emergem e
se constroem as diferenças étnicas” (p. 68). Aqui, não propus fazer uma
etnografia da educação ou atenta ao cotidiano da escola, mas é possível
perceber uma busca dos Guarani por relacionar saberes científicos/brancos e
guarani, de modo que apareçam composições criativas voltadas ao
fortalecimento da cultura e da comunidade.
141
As leis 10.639/03 e 11.645/08 tornam obrigatório nos ensinos fundamental e médio, público e
privado, o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena.
187
Lideranças – incluindo o diretor da escola –, professores indígenas e
não indígenas e moradores da comunidade, falam sobre a escola como um
espaço de negociação de saberes científicos/brancos e guarani. Se, em geral,
as lideranças apostam nessa negociação como uma forma de fortalecer a
cultura, como apresentado na descrição dos projetos, há também críticas à
escola como um potencial risco para a cultura. Estas críticas vêm
principalmente dos mais velhos, que veem que a melhor forma de educação
não está na escola, mas sim na oy gwatsu e espaços como o terreno próximo à
casa do cacique descrito no Capítulo I – no qual há uma intensa convivência
entre as crianças. Nos trabalhos de Testa (2007) e Macedo (2009), com
populações Guarani no estado de São Paulo, ambas as autoras constatam em
seus contextos de pesquisa o receio dos mais velhos com relação ao ensino de
elementos da cultura dentro da escola, visto que estes deveriam ser
desenvolvidos em espaços apropriados, como a casa de reza, por meio da
oralidade e na experiência prática, e não em instituições estatais.
Ainda que se perceba essa controvérsia em Pinhalzinho, grande parte
da comunidade vê a escola como uma conquista positiva para os Guarani e o
esforço das lideranças é de relacionar os saberes científicos e guarani de modo
a direcionar os efeitos deste encontro a favor da coletividade e da cultura.
Assim, essa relação entre saberes é constantemente pensada e negociada e
um dos caminhos para a efetivação desses efeitos positivos dentro da aldeia é
a conquista de autonomia, ou seja, como disse Gustavo, “nós queremos que
agora a história seja contada com os nossos olhares, com a nossa visão”.
Neste sentido, a figura dos indígenas universitários é importante para ocupar
os cargos na escola – também no posto de saúde e nos diversos projetos – e
fortalecer cada vez mais um ensino a partir de uma perspectiva guarani. A
autonomia da própria comunidade para direcionar os caminhos e tomar
decisões referentes à escola é almejada como uma forma de garantir um
contínuo fortalecimento da cultura.
Uma característica interessante é que a autonomia coletiva não se
sobrepõe à autonomia da pessoa, pois as singularidades pessoais, como
venho discutindo ao longo deste trabalho, é crucial para pensar o modo como
os Guarani se relacionam com o mundo. Neste sentido, pensando nesses
caminhos singulares, Gustavo afirma que:
188
A escola vai dar autonomia para que aonde você for na cidade você
consiga viver aquilo que você tem um sonho, que você tem a vontade de
fazer, que você pelo menos tenha dignidade pra você conseguir fazer
aquilo, mas se você optar pela aldeia, a escola também quer mostrar que
dá pra você viver dentro da aldeia. A aldeia tem recursos... E outra, é o
lugar onde estão os mais velhos. É o lugar onde está a história, as
pessoas que morreram há tantos anos, mas estão também na história,
estão vivas dentro da história da aldeia. Então eu sempre mostro pra eles
isso daí (meus grifos).
Assim a escola é um espaço que almeja uma formação voltada para os
objetivos da comunidade, mas que também busca possibilitar uma autonomia
pessoal para que cada pessoa possa seguir os seus sonhos. Essa relação
entre coletivo e pessoal não é necessariamente conflituosa, mas um aspecto
de uma socialidade que, ao mesmo tempo, privilegia o coletivo e o múltiplo.
Espera-se que cada pessoa se envolva com a comunidade e tenha autonomia
para seguir o seus sonhos, caminhos e dons.
Figura 26. Crianças na escola realizando atividade do projeto Y ã Gua Kuer Oikuaave’a Ha’e Nha deva’e Oe aa
Rupi. Fonte: página online da escola, SEED, 2015 142.
142
A escola possui uma página online institucional vinculada à SEED/PR. Na página encontram-se
diversas
informações
sobre
a
escola,
seus
projetos
e
fotografias.
Cf.
http://www.tmziyvypora.seed.pr.gov.br/. Acesso em 09 de outubro de 2016. A imagem acima pode ser
conferida em: http://www.tmziyvypora.seed.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=28. Acesso
em 09 de outubro de 2016.
189
Figura 27. Crianças em atividade escolar do projeto Djaikwaa Pa Nhandereko. Fonte: página online da escola,
SEED, 2014143.
Práticas de objetificação guarani
“O GUARDIÃO DAS HISTÓRIAS” está escrito em letras maiúsculas na
capa de um caderno do cacique de Pinhalzinho. Sempre que ia à sua casa
conversávamos muito, e com frequência ele tinha algo para me mostrar. Um
dia, sentados na varanda, ele entrou em casa e voltou com um caderno nas
mãos. Era um caderno no qual ele escrevia suas lembranças, sua trajetória, a
história da região, mitos e frases que ele gostava, criava desenhos e colagens.
Era uma espécie de caderno de registros. Fiquei instigado quando ele me
mostrou, porque algumas das histórias registradas ele já havia me contado em
dias anteriores. Assim, eu havia conhecido algumas daquelas histórias
oralmente, mas agora, um novo caminho de reflexão se abria. É interessante
que antes deste ocorrido eu não havia percebido essa relevância do registro de
uma série de elementos enunciados como cultura guarani. Deste então, passei
143
Disponível em: http://www.tmziyvypora.seed.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=26.
Acesso em 09 de outubro de 2016.
190
a enxergá-los em diversos lugares na vida da comunidade – muitos desses
elementos foram percebidos quando já havia voltado da pesquisa de campo.
Além do seu caderno de registro, me surpreendeu também quando ele
me levou para conhecer seu escritório e pediu que eu fotografasse. Era uma
construção de madeira, de aproximadamente 4 m², que ficava ao fundo de sua
casa e sempre trancado. Pensava que era um espaço onde guardava
ferramentas, armazenava sementes ou coisas do tipo, mas quando entrei o que
vi foi uma série de cartazes de eventos e objetos que o cacique guardou ao
longo de sua vida. Ali, havia mais um espaço de registro, e o que estava sendo
registrado eram artefatos que compunham a sua própria história.
Figura 28. Cartazes na parede da cozinha na casa do cacique. Fonte: foto tirada pelo autor, 2015.
Na cozinha da casa do cacique, cômodo no qual tomávamos café,
almoçávamos e jantávamos todos os dias, havia cartazes de eventos e de
organizações indigenista (figura 28). Comumente, em meio às nossas
conversas, ele me trazia um livro, um DVD ou CD com músicas ou me
chamava para ver um vídeo, todos relacionados a elementos da cultura
guarani. O cacique escreve suas histórias em seu caderno e também se dedica
a escrever poesias. Um dos livros que me emprestou para tirar cópia foi uma
191
coletânea de poesias organizada em 2008 por uma professora da escola da
aldeia, que foi financiado pela associação dos moradores da comunidade. As
poesias eram, em grande maioria, de autoria de indígenas moradores da
aldeia, e tratavam de assuntos diversos como a vida na comunidade, a reza,
lembranças, as matas, a escola, etc.
Os registros estão na vida diária dos meus interlocutores e não se
valoriza apenas o que eles registram, mas também aqueles feitos por outros.
Uma tarde após o almoço na casa do cacique, estávamos em umas seis
pessoas conversando. D. Laurinda, esposa do cacique, contou que no dia
anterior havia passado uma matéria na televisão sobre o milho (awati)
produzido pelos povos Guarani. Ela contou que, segundo a reportagem, no
começo do mundo havia uma formiguinha carregando um grão de milho, o qual
os indígenas pegaram e plantaram, dando início ao cultivo de milho entre os
Guarani. Ela confabulou: “De certo foi Deus que mandou aquela formiguinha”.
Os outros Guarani presentes ficaram animados com a possibilidade de
conseguir uma cópia do vídeo desta matéria para que eles pudessem ver
também. Depois, cada um começou contar coisas que haviam visto na
televisão, geralmente reportagens documentais sobre outras populações
indígenas, e que lhes despertavam interesse.
Esta valorização e produção de registros também ocorrem em diversas
outras partes da vida na aldeia, como na escola, nas mostras culturais e feiras
de sementes crioulas, e são entendidas aqui como práticas de objetificações de
elementos enunciados como cultura. Porém, seriam essas objetificações do
mesmo tipo daquelas mobilizadas pelas instituições, especificamente, com
relação à estabilização de saberes comuns nas organizações em Maringá
descritas no Capítulo III?
Strathern ([1988] 2006), em famoso livro sobre relações de troca e
gênero na Melanésia, distingue dois tipos de objetificação: a reificação e a
personificação. Suas reflexões se debruçam acerca de como são construídas
pessoas e coisas, e a diferença entre esses dois modos de objetificar diz
respeito especialmente àquilo que as relações tornam visíveis. No caso da
reificação, comum ao pensamento ocidental e ao modelo de economia de
mercado, o que aparece são formas restritas, coisas. Na personificação, por
sua vez, comum ao pensamento melanésio, o que se torna visível são as
192
próprias relações. Isto não quer dizer que estes dois modos não coexistam,
pelo contrário, a autora se inspira nas ideias de Wagner ([1975] 2012) da
relação entre convenção e invenção, que são associados por analogia
respectivamente à reificação e personificação. Assim como em Wagner, estes
dois termos implicam-se mutuamente. O que importa, portanto, é como as
relações tomam forma e tornam-se visíveis.
Pensando tais reflexões com relação aos meus interlocutores, o que
pode se assemelhar à primeira vista com pura reificação é muito mais
adequado de ser pensado como uma relação entre reificação e personificação
na qual esta última se sobressai. Isto porque na medida em que os Guarani em
Pinhalzinho produzem ou se apropriam de elementos que aparecem como
reificação, como um caderno para registros, um escritório para guardar objetos,
vídeos, CDs, DVDs ou textos acadêmicos – como no caso da escola com
relação às teorias de Germano Bruno Afonso e Ernst Gösch –, o que eles
fazem é introduzir estes elementos em relações de modo que eles
potencializem a produção de outras relações. Reificação e a personificação
implicam em diferentes modos de conhecer. Segundo Strathern ([1988] 2006),
“a lógica da mercadoria dos ocidentais leva-os à busca do conhecimento sobre
as coisas (e sobre as pessoas como coisas); a lógica da dádiva dos
melanésios, a torna conhecidas para eles as pessoas (e as coisas como
pessoas)” (p. 268). Assim, podemos pensar que ao acionar práticas de
registros, os Guarani em Pinhalzinho não buscam produzir e conhecer as
coisas em si, mas sim relações e saberes que circulem e construam pessoas.
O que é mais relevante, não são os registros e objetos do cacique em si, mas
sim a produção de sua pessoa por meio de elementos que construam sua
história. Importa que sua história circule, se estenda para outras pessoas e
agencie outras potenciais lideranças. A escola e o grupo de canto e dança são
dois bons exemplos para pensar essas práticas de objetificação.
Na escola, como vimos, o diretor, professores e alunos, buscam se
engajar com projetos e textos acadêmicos que envolvem práticas de
objetificação, como nos trabalhos dispostos pelas paredes da escola e no
Boletim Informativo sobre a cartografia social. Porém, esta estabilização de
saberes em papéis não é a finalidade em si. A proposta é envolver os alunos
em engajamentos da comunidade, como a defesa do território e o
193
desenvolvimento das práticas agroflorestais. Quando trazem trabalhos como os
de Germano Bruno Afonso e Ernst Gösch para as discussões escolares, não
se pretende apreender suas teorias como coisas em si, mas potencializar
novas relações na comunidade, sobretudo com relação às próximas gerações,
as crianças. No caso dos SAFs, por exemplo, busca-se uma expansão de
relações que não se restringem aos seres humanos, uma vez que, segundo
Gustavo, a proposta da agrofloresta é criar condições para o desenvolvimento
de uma diversidade de plantas e animais que a agricultura da monocultura não
permite.
Quando se institucionaliza a língua guarani dentro das salas de aula da
escola, a intenção não é que ela fique registrada em cadernos e livros, mas
que as novas gerações comecem a desenvolver este saber que foi censurado
na época dos chefes do SPI e da FUNAI. Mesmo que as crianças não falem a
língua guarani fluentemente, quando brincam pelos espaços da aldeia acionam
palavras em guarani umas com as outras a todo momento. Isso é percebido
pelos Guarani como um efeito da institucionalização do ensino da língua
guarani na escola.
É interessante que a troca de elementos objetificados com outros
povos não se pauta apenas nas relações com os brancos, mas também com
outros Guarani. Isto ocorre comumente com relação ao grupo de canto e dança
de Pinhalzinho, o Kuringwe Mbaraete (Jovens Fortes). Não apenas aderem
elementos, como músicas de outros povos Guarani, como o próprio grupo
surgiu a partir da relação com os Guarani Mbya. De acordo com Fernando, os
cantos ligados a grupos de canto e dança surgiram dentro de escolas entre os
Mbya, porque as crianças eram muito ligadas a casa de reza, e esta seria uma
estratégia dos professores para manter os alunos dentro da escola. “Porque se
o dia a dia deles era dentro da casa de reza cantando, então levaram [os
cantos] pra escola”. Porém, ele afirma que em Pinhalzinho é diferente.
Fernando diz que entre os Nhandewa, como ele se autodenomina,
especificamente nas aldeias em que morou na região norte do Paraná
(Pinhalzinho, Laranjinha e Posto Velho), os grupos de canto e dança foram
introduzidos a partir de uma inspiração nos Mbya. Ele disse: “Começamos no
Laranjinha, que eu morava lá, daí fui pro Posto Velho, fortalecemos lá, aí eu
vim pra cá e estava iniciando um grupo de canto aqui e eu ajudei fortalecer
194
também. [...] Eu ajudei a organizar, fortalecer e tem quem coordena agora”.
Segundo Fernando, em Pinhalzinho o grupo tem um papel distinto daquele que
tem entre os Mbya. Para ele, o desenvolvimento do grupo está relacionado
com manter e reforçar as relações coletivas na aldeia, por meio, por exemplo,
dos ensaios e reuniões para conversarem sobre as músicas, instrumentos e
passos de dança. É mais um projeto para se envolverem coletivamente. Essa
valorização da coletividade é algo que Fernando destaca como próprio da
cultura guarani desde os antepassados.
Renata e Tadeu são os coordenadores do Kuringwe Mbaraete. Tadeu
me disse que o grupo já tem aproximadamente dez anos de existência e que
eles começaram depois que aprenderam com alguns Mbya do sul do Paraná.
Ele destacou o papel que o grupo tem em manter laços de coletividade dentro
da aldeia. No momento da pesquisa, segundo ele, eles precisavam discutir
uma renovação do grupo voltada a integrar mais crianças, pois haveria uma
grande rotatividade de pessoas, já que muitos dos que participam, por diversos
motivos, mudam para outros lugares. Tadeu aponta uma dificuldade que é
competir com elementos vindos do mundo dos brancos, como a televisão ou o
desejo de sair à noite na cidade. Assim, o empenho com o Kuringwe Mbaraete
é também um comprometimento com a coletividade que eles buscam
fortalecer.
Tadeu aponta também para as trocas que ocorrem entre grupos de
canto de dança. Ele disse que o rawe (violino) é comumente utilizado pelos
Mbya, mas eles estão integrando ao Kuringwe Mbaraete também144. As
músicas, segundo ele, algumas eles próprios criam, a partir de sonhos145 ou
elementos que veem no dia a dia na comunidade (os animais, os rios, a mata,
a reza, etc.). Outras eles trocam com outros grupos, por meio de CDs, DVDs
ou pessoalmente em encontros e mostras culturais. Se, por um lado, existe um
grande esforço pela manutenção do senso de coletividade, que eles identificam
como comum aos Guarani e característico da cultura que se estende desde os
antigos, por outro, existe um formato visivelmente reificados do grupo em
144
Além do rawé, eles utilizam também o mkaraka (violão), mbaraka mirĩ, angwapu (tambor) e algumas
crianças estão aprendendo a tocar mimby (flauta), que segundo Tadeu era um instrumento comum
entres os Guarani no passado.
145
Vale destacar que os sonhos, entre meus interlocutores guarani, podem estar relacionados a
conexões com seres celestes que lhes fazem revelações.
195
registros e performances em eventos – como aquela que ocorreu em Maringá
descrita no Capítulo III.
Figura 29. Coordenador do Kuringwe Mbaraete (à esquerda) e dois dos integrantes ensaiando com
seus instrumentos. Fonte: foto tirada pelo autor, 2015.
Em Pinhalzinho, eles não possuem CDs ou DVDs oficiais do Kuringwe
Mbaraete, apenas registros realizados por eles próprios. Há uma mobilidade do
grupo para realizar suas performances em eventos. Dentro da aldeia eles se
apresentam em eventos como as Feiras de Sementes Crioulas Indígenas
Ymaũ e Mudas Nativas, que teve sua quarta edição em 2016, e a Mostra
Cultural Guarani Nhandewa, que ocorreu em 2014146. Também há eventos em
outras aldeias da região, principalmente em Laranjinha e Posto Velho. Nestes
eventos, que reúnem indígenas de outras aldeias e brancos, são realizadas
apresentações do grupo de canto e dança, dos alunos da escola indígena,
palestras, entre outras atividades. Podemos pensar estes momentos como
momentos de reificação, no qual se estabiliza em certo formato e estética
mostras (partes reificadas) de uma série de elementos que eles nominam de
cultura. Mas a vida Guarani na aldeia não gira ao redor desses momentos de
146
Estes eventos são realizados pela Associação de moradores de Pinhalzinho em parceria com outras
instituições, como a escola, o IFPR e o Consórcio Cruzeiro do Sul – por meio do PBA.
196
reificação, pelo contrário, os elementos reificados se dissolvem no dia a dia,
quando o que se espera e percebe é a proliferação de relações.
Com relação ao Kuringwe Mbaraete, cabe perguntar em que tipo de
relações estes momento de reificação se convertem no dia a dia guarani.
Provavelmente, meus interlocutores diriam que se multiplicam as próprias
relações na comunidade acerca do canto, da dança e da língua – já que as
canções são em guarani. Entre os meus interlocutores, nota-se que estes
elementos reificados são mobilizados com a intenção de resgatar e
desenvolver aquela cultura que eles associam à época dos antigos e dos mais
velhos, como técnicas de agricultura, a fala da língua guarani, os saberes
acerca do tempo e do território, etc.147, e também de desenvolver novas
relações, que não se pautam necessariamente na ideia de um passado, como,
por exemplo, o desenvolvimento do grupo de canto de dança e dos
agenciamentos políticos da comunidade. Portanto, tomando emprestadas as
categorias propostas por Strathern ([1988] 2006), as reificações se convertem
(precisam se converter) em personificações, ou seja, aquilo que aparece como
formas restritas nos registros, na institucionalização e nas mostras de cultura,
precisa promover a proliferação de relações no dia a dia na comunidade.
Valéria Macedo (2009), em sua pesquisa com os Guarani na TI
Ribeirão Silveira no litoral paulista, reflete sobre as objetificações guarani e dos
brancos e os intercâmbios entre estes por meio de projetos, parceria com
organizações e setores do Estado, grupo de canto, mobilização da categoria
cultura, entre outros elementos148. A autora destaca que há uma diferença
marcada entre os Guarani e os brancos conferida pelo devir divino dos
primeiros. Ela afirma que “estar humano e devir divino é manejar intercâmbios
com os brancos, os animais e demais seres nesta terra onde tudo perece, sem
abrir mão da perspectiva conferida pelo nome, ou o nhe’e, enviado de
nhanderu amba [a morada celeste dos ancestrais]” (p. 290). Em Pinhalzinho,
estas trocas também não envolvem abrir mão do modo como vivem e se
147
É importante ressaltar que esse resgate não se refere a uma busca por viver como se vivia no
passado, mas se trata de uma reflexão sobre o passado realizada no tempo presente, o que faz desse
movimento um empreendimento eminentemente criativo.
148
Para reflexões acerca de relações com bens objetificados dos brancos entre povos amazônicos, ver
Gordon (2006), em trabalho com os Xikrin-Mebêngôkre, e Andrello (2006), com relação a povos
uaupesianos.
197
relacionam, mas pelo contrário, possibilita uma ampliação das possibilidades
de saberes e desenvolvimento de dons. Portanto, as práticas de objetificação
guarani não são as mesmas de instituições como a ASSINDI e a UEM. Nestas,
como vimos, há uma tendência à reificação, e entre os Guarani, ainda que se
associem parcialmente às reificações, a tendência continua sendo a
multiplicidade. Permanecem visíveis distintos estilos de criatividade (Wagner
[1975] 2012).
4.2.3. Posições
e
compromissos:
relações
comunitárias
e
extracomunitárias
“Eu tenho compromisso com o grupo, tenho compromisso com a
aldeia. Hoje eu sou uma pessoa aqui dentro da aldeia que tenho
reponsabilidade [...]. Eu, o cacique, o Fernando, [...] a gente tenta manter a
aldeia, buscar o direito da aldeia, tanto faz na saúde, na educação...” (meus
grifos). Tadeu, que ocupa as posições de vice-cacique, coordenador do
Kuringwe Mbaraete e o de agente indígena de saúde, me contou dos seus
compromissos com a comunidade. Duas das suas irmãs e um irmão saíram da
aldeia para fazer graduação – as duas na UEM e o irmão na UEL. Ele disse
que, apesar de já ter feito vestibular e ter sido aprovado, não saiu da aldeia
para fazer uma graduação devido aos seus compromissos com a comunidade.
Ele tem o dom para liderança e afirmou que já nasceu com isso – o que seria
comum a todo indígena, segundo ele –, mas quer se aprimorar. Assim, ele
assume uma série de posições que o mantém engajado com diferentes
demandas coletivas.
Em Pinhalzinho existe uma série de posições institucionalizadas, em
maior ou menor grau. Estas são diversas como: cacique, vice-cacique,
lideranças, funções assalariadas nas instituições e projetos, etc. Como
mencionado no primeiro capítulo, algumas das posições de liderança
extrapolam os papéis convencionalmente institucionalizados, como dos mais
velhos. Em algumas situações, moradores da comunidade são eleitos para
participarem de reuniões, encontros e congressos, o que lhes confere a
potência ligada ao papel de líder, que corresponde à objetivação de um coletivo
em sua figura, e que o torna capaz de enunciar por um “nós” (Sztutman, 2005).
Outras posições, comumente, não conferem esse efeito, mas exigem
198
capacidades específicas, como nos trabalhos assalariados na área da saúde,
na escola, nas funções de motorista, cozinheiro(a), etc. Assim, seja qual for a
posição, é exigido algum tipo de habilidade, podendo ou não convergir com os
seus dons.
Tadeu falou de seus compromissos com a comunidade, que envolvem
uma série de engajamentos em relações internas na aldeia como, por exemplo,
em um ensaio no grupo de canto e dança, participação em reuniões, visitas à
casa de algum mais velho para lhe medir a pressão ou fazer algum outro
atendimento básico de saúde, etc. Porém, existe também uma dimensão
externa em suas funções, como participar de congressos de saúde,
acompanhar algum doente até a cidade, fazer alguma apresentação de canto e
dança em um evento ou, como ele me disse que faria ao longo de 2016, fazer
um curso de formação de liderança para aprimorar seus saberes com relação a
essa questão. Tadeu desenvolve e se compromete com esses dois tipos de
relações, mas algumas pessoas tendem a se especializar mais em uma ou
outra. Fernando, por exemplo, atua em ambas as direções, mas disse que o
que gosta mesmo é de se relacionar com o lado de fora. Ele afirmou que:
Eu sou mais liderança envolvido com as políticas lá fora. Fui conselheiro
distrital de saúde indígena, acho que dez anos... dez anos, mais, vinte
anos quase. [...] Na verdade eu sou lá do movimento mesmo de base. Eu
não gosto de estar na mesa de negociação muito, só se precisar mesmo,
mas eu sou mais de ir pro embate mesmo. Negocia, se não deu, organiza
um movimento e ocupa, sabe? Fazer acontecer. [...] Fui membro titular da
Comissão Nacional de Educação [Escolar] Indígena [CNEEI], aí eu estava
muito nesse debate, meu GT [Grupo de Trabalho] era sobre os planos
curriculares, os currículos das escolas, esse era o meu tema. Na saúde
estive um bom tempo, todo esse tempo que eu falei, e também trabalhei
muito com os outros povos de comunidades tradicionais. [...] Um exemplo
que eu ajudei no Paraná, [foi para] que o Requião149 aprovasse a lei do
LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros], eu participei ativo
naquele movimento junto com eles. [...] Uma proposta que eu fiz quando
eu coordenei um encontro com as comunidades tradicionais [foi que]
tivesse a capacitação de liderança, porque um é você ser liderança, e
outro é você entender como que funciona o poder pra você conseguir
fazer o seu papel de liderança. Daí nós conseguimos, começa esse ano
as aulas e em uns dois módulos ali eu acho que devo dar aula também
sobre isso. Então nós temos essas parcerias com outros movimentos.
Faxinalenses, quilombolas, pescadores, pescadores artesanais, os ilhéus,
ciganos, os LGBT mesmo... (meus grifos).
Fernando é uma liderança em Pinhalzinho com dons e entusiasmo pela
atividade que desenvolve, sobretudo, quando se referem às relações
149
Roberto Requião foi governador do Paraná em três mandatos.
199
extracomunitárias. Simone, atualmente, também está engajada em relações
fora da comunidade, quando lhe perguntei se ela havia conseguido assumir um
emprego assalariado dentro da aldeia depois que terminou sua graduação, a
mesma disse que não e que no momento não pensava em trabalhar na área,
pois, de acordo com ela: “Eu peguei uns objetivos pra mim fazer, que é com o
movimento indígena”. Estes objetivos, atualmente estão ligados aos direitos
das mulheres indígenas. Ela disse:
O movimento indígena são várias lideranças em vário estados do país que
saem em busca pelos direitos. É difícil de alcançar? É. Quer dizer, quase
impossível alcançar hoje com a bancada ruralista, evangélica, o
agronegócio, enfim, um monte de coisa, mas assim, eu sou mais focada
agora nos projetos com as mulheres a nível sul, não a nível local. [...]
Desde 2010 eu estou saindo, antes de entrar na faculdade eu já saia
nesses eventos. Vindo pra cá ver o filho, indo pros eventos, dar conta da
faculdade, nossa tem hora que... Graças a Deus eu consegui terminar
minha faculdade, pelo menos. Mas então, agora esse projeto meu a gente
conseguiu uma parceria com a ONU.
O projeto ao qual ela se refere se chama Voz das Mulheres Indígenas
e foi elaborado pela ONU Mulheres Brasil em cooperação com a embaixada da
Noruega. O mesmo é protagonizado por vinte duas mulheres indígenas de
diferentes povos e regiões do Brasil, cuja tarefa é de serem articuladoras nas
relações com outras mulheres indígenas em suas regiões para tentar identificar
demandas comuns entre elas. Como Simone foi a única representante da
região sul na primeira reunião de convocação do projeto, ela ficou responsável
por conversar com mulheres Guarani, Charruá, Kaingang, Xetá e Xokleng no
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em uma matéria com trechos de
falas de Simone no portal ONU Mulheres Brasil, podemos perceber que estes
projetos possibilitam experiências extracomunitárias interessantes para pensar
a posição das lideranças atualmente:
Há pouco tempo, [Simone] reencontrou dona Brasília, do povo Kaigang
[sic], indígena que vive no Rio Grande do Sul, quem [...] admira por ter
criado seis filhos. “Ela disse que estou melhorando. Falei sobre o projeto e
ela me parabenizou. Disse que está disposta a ajudar”, conta. No processo
da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista, ela reforçou seu
compromisso político para a conscientização de mulheres. “Encontrei uma
senhora que não falava Português. Ela falou que estava tudo bem. Pensei
que ela não sai da aldeia e não sabe o que está acontecendo. Com elas,
precisamos ter mais tempo e mais calma, porque não estão vendo a
atualidade. Cabe a gente, como referência e multiplicadora, levar as
informações para as bases e atualizar o que está acontecendo”, afirma.
Perguntada sobre o futuro, ela revela o seu sonho no misto entre pessoal e
coletivo, mas essencialmente político. “Meu sonho é ver cada mulher de
200
cada etnia, de cada povo, de cada região falar por si. Enquanto eu não ver
a autodeterminação e o empoderamento nelas, meu sonho ainda não
estará completo. Como diz o cacique, eu sou nova no movimento e na luta.
Enquanto eu não ver cada mulher falando por si, minha luta não acabou”,
conclui150.
O trecho da matéria com falas de Simone indica que esta teve contatos
com outras mulheres indígenas fora da comunidade. Essa experiência
extracomunitária gera efeitos na construção desse lugar da liderança. Nessas
relações, a enunciação de um “nós” que caracteriza a figura do líder é
composta e negociada em outras relações. No trecho acima, destaca-se que
Simone, como única representante do sul, se associa com outras experiências
de mulheres indígenas, que não as suas e nem as das mulheres da sua
comunidade exclusivamente. Este parece ser um dos desafios das relações
extracomunitárias relevantes para pensar este posto de um líder e os
compromissos neles envolvidos. Como se constroem essas parcerias com
aqueles que não somos “nós”?
No caso de Fernando, que mencionou suas parcerias com outras
comunidades tradicionais e também com o movimento LGBT, podemos pensálas em relação a sua afirmação de que “um é você ser liderança, e outro é você
entender como que funciona o poder pra você conseguir fazer o seu papel de
liderança”. Assim, neste caso, entender como funciona o poder parece estar
relacionado com uma busca por produzir alianças parciais (Haraway, [1985]
2000) com outras experiências de lideranças. Tais associações não implicam
em perder o compromisso com a comunidade, visto que as enunciações
guarani sempre destacam este compromisso e o desejo por autonomia.
Também, é importante ressaltar que estas parcerias extracomunitárias
são quistas pelos Guarani, mesmo com a gama de diferenças e divergências
que possam encontrar. Assim também ocorre, como vimos, com as alianças
entre os estudantes Guarani e as instituições em Maringá e, também, entre os
moradores da aldeia e diversas instituições e projetos. Em geral, há uma
característica comum nestas parcerias que é a expectativa de efeitos na vida
150
Este trecho e a figura n. 30 foram retirados de uma matéria do site da ONU Mulheres Brasil, cf.
http://www.onumulheres.org.br/noticias/enquanto-eu-nao-ver-cada-mulher-falando-por-si-minha-lutanao-acabou-afirma-a-guarani-nhandeva-andreia-lourenco/, acesso em 16 de setembro de 2016. As
informações acima e outras informações sobre o projeto Voz das Mulheres Indígenas podem ser
conferidas em matérias da ONU no Brasil: https://nacoesunidas.org/iniciativa-da-onu-mulheresidentifica-pautas-das-mulheres-indigenas-no-brasil/, acesso em 16 de setembro de 2016.
201
comunitária: melhorias na escola, no posto de saúde, novas espaços de
engajamento para as mulheres, defesa do território, autonomia, fortalecimento
das diversas práticas e saberes que chamam de cultura.
Nesse
sentido,
as
posições
nas
relações
comunitárias
ou
extracomunitárias, quando ocupados eminentemente por pessoas Guarani, são
vistas
como
um
fortalecimento
da
autonomia
da
comunidade.
Este
fortalecimento é procurado na medida em que possibilita diminuir a assimetria
na relação com os brancos, que colocaram barreiras ao desenvolvimento da
língua, das suas técnicas de agricultura, do território, de saberes comuns aos
mais velhos, entre outros efeitos. Nesse sentido, o termo cultura é diacrítico
nas relações com os brancos e, especificamente, no âmbito de projetos,
setores estatais e não-estatais, como apontam outros trabalhos com povos
Guarani, como Macedo (2009) e Danaga (2012).
Porém, além dessa dimensão da mobilização da cultura na relação
com os não indígenas, há também em Pinhalzinho uma dimensão relevante
nas enunciações do termo entre os próprios Guarani. Muitos dos meus
interlocutores viveram e vivem em um momento onde a cultura já era uma
categoria comum na comunidade, mobilizada tanto na relação com os brancos
quanto no dia a dia dentro da aldeia. Jovens e crianças são educados da
linguagem da cultura e isto compõe uma dimensão importante, não apenas
para se relacionar com o lado de fora, mas também para continuamente
construir uma composição de relações na comunidade. Desse modo, a
multiplicação
de
posições
voltadas
para
atividades
internas
ou
extracomunitárias, relacionadas ao engajamento com instituições e projetos,
não significa um enfraquecimento do que eles chamam de cultura ou do modo
se ser, o nhandereko. Pelo contrário, da perspectiva guarani, quando esses
cargos e posições diversas são ocupados por eles próprios – o que
corresponde à expectativa da maioria dos meus interlocutores guarani em
Pinhalzinho e em Maringá –, estas parcerias e intercâmbios possibilitam o
fortalecimento da chamada cultura e a expansão das múltiplas diferenças e
singularidades, pois possibilitam o desenvolvimento de novos dons.
202
Figura 30. Simone no projeto Voz das Mulheres Indígenas. Fonte: site da ONU Mulheres Brasil, 2015.
4.3.
Considerações parciais IV
Com o movimento descritivo de retorno à Pinhalzinho percebemos
outras reflexões acerca da vida nas aldeias e nas cidades e as relações dos
Guarani com instituições. Agora, além do contraste entre modos de vida
distintos – urbano e comunitário, brancos e guarani –, aparece nas reflexões
guarani o potencial perigo de ficar longe da comunidade. Perigo de enfraquecer
os laços comunitários, de se distanciar da cultura, de retornar para a aldeia
com ideias que divergem da comunidade. Porém, esse perigo é contornável. É
possível viver longe e manter os laços comunitários e a cultura, assim como
quando uma pessoa retorna para a aldeia e está em dissonância com a
comunidade, também é possível que logo ela entre em sintonia.
Este perigo é contornável, mas é um risco presente com relação aos
estudantes universitários que vão pra longe da aldeia, como meus
interlocutores em Maringá. Porém, Maringá é visto como um local privilegiado
para manter-se na cultura, dado a presença da ASSINDI, que, como vimos
anteriormente, pode ser comparada a uma aldeinha. Assim, apesar dos riscos,
203
há aspectos positivos importantes no ingresso dos Guarani no ensino superior,
sobretudo, a disponibilidade de especialistas guarani para ocupar posições nas
instituições dentro da aldeia, projetos e afins. A graduação dos estudantes
coaduna com as expectativas de fortalecer a autonomia da comunidade.
A produção de parcerias com instituições que ressoam até a
comunidade, o engajamento em projetos, manutenção de instituições dentro da
aldeia e o empreendimento de práticas de objetificação, em um primeiro olhar,
poderiam ser entendidos como um agenciamento de lógicas que cristalizam
elementos da chamada cultura e que tendem à reificação. No entanto, não é
isso que os Guarani percebem e buscam com tais práticas. Na medida em que
este emaranhado de relações é quisto pelos indígenas e empreendido por eles
próprios, a percepção é de uma crescente autonomia da comunidade. Os
efeitos que os Guarani percebem e buscam com tais parcerias, fazer
institucional e práticas de objetificação, são de fortalecimento da cultura e a
multiplicação das possibilidades de produzir diferenças e desenvolver novas
singularidades, novos dons guarani.
É como se, em termos wagnerianos, estilos distintos de criatividade
(Wagner, 2012) se encontrassem e não apenas entrassem em contraste, mas
se afetassem de modo a produzir certas transformações nesse compósito de
múltiplas singularidades que eles chamam de nhandereko.
204
Considerações e reflexões finais
Este trabalho buscou refletir sobre um complexo de relações Guarani
que se estendem entre a TI Pinhalzinho e a cidade de Maringá e também para
outras direções – outras cidades, caminhos guarani e aparatos institucionais.
Iniciou-se com a suspensão do conceito antropológico teórico-analítico de
“cultura” para pensar como os meus interlocutores mobilizam tal categoria em
suas relações na comunidade e na cidade. Tal empreendimento levou a
conhecer estes elementos da cultura, relacionados a uma diversidade de
atividades, saberes e relações, como reflexões sobre o passado, saberes dos
mais velhos, as práticas da reza e da espiritualidade em geral, um modo de
devir líder, práticas de caça, pesca, criação de animais e produção de
artesanato e um modo de ser e se relacionar que contrasta com a vida na
cidade. Desse complexo do qual se enuncia a cultura, emerge também uma
multiplicidade de dons, capacidades e saberes para a vida, desenvolvidos em
relações com os seres celestes, pela crisma e nas práticas espirituais, e nas
vivências neste mundo terreno.
Os dons e enunciados de cultura se estendem junto aos Guarani para
a cidade, onde aparecem questões como a mobilidade, o amadurecimento e a
não fixidez, elementos centrais para entender a socialidade guarani e o que
eles chamam de nhandereko, o “nosso jeito de ser”. Este envolve relações com
seres espirituais, animais não humanos, plantas entre outros elementos que
compõe um modo de se relacionar que os Guarani enunciam como cultura.
Nesse sentido, a ASSINDI em Maringá, que é comparada a uma aldeinha,
aparece como um espaço propício para viver parcialmente essa cultura.
No entanto, é na cidade também que os Guarani, especificamente os
universitários, vivenciam o encontro de perspectivas guarani e institucionais,
que contrastam e se associam parcialmente. A primeira, com uma tendência ao
múltiplo, à vivência do tempo da experiência e ao desenvolvimento de dons, e
a segunda, inclinada à produção de reificações. As associações entre tais
perspectivas é quista pelas partes envolvidas e geram composições criativas e
modos específicos de viver e experienciar a cidade e suas instituições.
205
De volta às reflexões na aldeia, questões que emergiram na cidade,
aparecem também a partir da comunidade. Possibilitando pensar com os
Guarani novos contrastes entre a vida na aldeia e na cidade, a figura dos
estudantes indígenas universitários, as produções de parcerias com instituições
que ressoam até a comunidade, o engajamento em projetos, a manutenção de
instituições dentro da aldeia e o empreendimento de práticas de objetificação.
As parcerias entre os Guarani e instituições, aparecem como caminhos para a
autonomia da comunidade, fortalecimento da chamada cultura e expansão de
relações, diferenciações e dons.
Esta imagem descritiva que vai da aldeia para a cidade e da cidade
para a aldeia não corresponde a um caminho reificado de um movimento
guarani, mas a um experimento etnográfico que buscou acompanhar o
movimento de alguns de meus interlocutores e possibilitou pensar as relações
na aldeia, na cidade, o encontro com instituições na cidade e as instituições na
comunidade. Nessa paisagem descritiva questões centrais emergiram para
refletir sobre o devir Guarani neste complexo relacional. Este devir poder ser
melhor entendido como múltiplos devires. O nhandereko, traduzido como
“nosso jeito de ser”, e algumas vezes como cultura, corresponde a essa
múltipla paisagem de devires, multiplicidade e singularidades pessoais que
podem ser pensadas por meio do conceito de dom. Essas singularidades
podem ser entendidas em suas conexões com um plano espiritual, onde
habitam os seres celestes, pois o nome assentado no corpo de cada Guarani é
uma potência diacrítica nos caminhos e saberes desenvolvidos ao longo da
vida.
As singularidades que compõem a paisagem do nhandereko, entre os
meus interlocutores Guarani, devem ser entendidas também com relação aos
saberes desenvolvidos no plano terreno. Na aldeia, na cidade, nas
experiências universitárias, nas associações com instituições e projetos, no
engajamento na vida política da comunidade – que envolvem relações
comunitárias e extracomunitárias –, em síntese, no próprio movimento que é
diacrítico na socialidade guarani. Assim, o celeste e o terreno são fontes
potenciais valorizadas para o desenvolvimento de saberes, diferenças e
singularidades, e não são entendidos como polos opostos e distintos da vida,
206
mas como aspectos de um complexo relacional múltiplo que se desenvolve
eminentemente na experiencia vivida.
Deste modo, qual seria a diferença entre o que meus interlocutores
Guarani chamam de nhandereko e de cultura? Em alguns momentos, estes
dois conceitos se tocam, em outros seguem caminhos distintos. Por um lado,
são próximos quando meus interlocutores mobilizam a cultura para se referir a
um modo de se relacionar que se diferencia do dos brancos e outros povos.
Um modo de se relacionar em aberto, que valoriza o tempo da experiência, o
contínuo movimento e desenvolvimento de saberes. Por outro lado, são
diferentes em situações em que a cultura é mobilizado para se referir a
elementos reificados, como nas mostras de cultura, em que apresentam
performances de canto e dança, peças de artesanato, palestras, vídeos, entre
outros elementos que correspondem a um formato restrito. No entanto, como
vimos no Capítulo IV, a mobilizações desses elementos reificados são
controladas, pois o objetivo das práticas de objetificação guarani não são a
proliferação de “coisas”, mas sim a proliferação de relações. Neste sentido,
diferente da lógica institucional que vimos no Capítulo III, entre os Guarani
agencia-se uma lógica de expansão das multiplicidades, diferenças e
singularidades que compõe uma socialidade específica, o próprio nhandereko.
Essa potencialidade da cultura para a produção de objetificações não
significa que o nhandereko não possa ser estabilizado em relações
institucionais – como percebe-se no projeto Djaikwaa Pa Nhandereko –, mas
sim que, em Pinhalzinho, tal categoria não é comumente acionada com relação
a mobilização e produção de formas restritas. O nhandereko tende a aparecer
como relações, múltiplas possibilidades de devires, uma socialidade aberta à
contínua produção de diferenças.
Gostaria agora de trazer de volta ao texto o conceito teórico-analítico
de “cultura”, que foi suspenso no Capítulo I. A mobilização de cultura pelos
Guarani se aproxima de certa forma ao nosso conceito (euroamericano) de
“cultura”, na medida em que ambos contêm um potencial de objetificação.
Potencial este que é apontado por Wagner (2012 [1975]) em suas reflexões
sobre o conceito. Assim, podemos dizer que nas mobilizações que meus
interlocutores fazem de cultura, o termo se conecta tanto com nhandereko
207
quanto com “cultura”. A reflexão no Capítulo IV de como meus interlocutores
lidam com teoria científicas pode ser um caminho para entender essas
enunciações do termo. Se eles buscam reconhecer extensões indígenas em
teorias acadêmicas sobre etnoastronômia e SAFs, poderiam eles reconhecer
extensões indígenas na categoria “cultura”?
Existem algumas semelhanças na forma como os Guarani falam da
etnôastronomia, dos SAFs e da cultura. Os três são tratados com seriedade,
dos três se esperam efeitos que ampliem a autonomia na comunidade e os três
estão presentes tanto nas relações com os brancos quanto com outros Guarani
– sobretudo com relação às novas gerações. Outra semelhança me parece
pertinente à reflexão, eles apontam a etnôastronomia e os SAFs como teorias
que se inspiraram em práticas indígenas de percepção do tempo e de
agricultura. Se pensarmos com relação ao termo “cultura”, não precisamos ir
longe para perceber que grande parte das teorias antropológicas esteve aliada
às práticas indígenas no desenvolvimento do conceito – por mais que o termo
tenha uma história ampla e com diversas extensões de significado que
extrapolam a antropologia, como bem mostra Wagner ([1975] 2012). Nesse
sentido, me parece que a mobilização da categoria cultura não implica apenas
em uma estratégia de relação com os brancos e nem seria o modo como meus
interlocutores a explicariam.
Entre os meus interlocutores Guarani em Pinhalzinho e em Maringá, é
mais apropriado entender a cultura como um termo ao mesmo tempo potente
nas relações comunitárias e extracomunitárias, por ter extensões de significado
tanto entre os Guarani quanto entre os não indígenas, como uma categoria
intimamente conectada às reflexões guarani acerca de suas relações, vivência
e experiências no mundo. Assim, por mais que cultura tenha um potencial de
objetificar, os seus efeitos desejados e concretizados tem sido de potencializar
múltiplas singularidades, diferenças, saberes e dons.
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