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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DA AMAZÔNIA MATHEUS CAMILO COELHO OBJETOS ENTRE CONTEXTOS E SIGNIFICADOS: AS COLEÇÕES ETNOGRÁFICAS DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI ENTRE 1894 E 1905 BELÉM 2021 2 MATHEUS CAMILO COELHO Objetos entre contextos e significados: as coleções etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi entre 1894 e 1905 Dissertação de mestrado apresentada à Banca Examinadora do Programa de PósGraduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará, como requisito para obtenção do título de Mestre em História Social da Amazônia. Orientador: Prof. Dr. Nelson Rodrigues Sanjad. BELÉM 2021 3 Objetos entre contextos e significados: as coleções etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi entre 1894 e 1905 MATHEUS CAMILO COELHO Dissertação de mestrado apresentada à Banca Examinadora do Programa de PósGraduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará, como requisito para obtenção do título de Mestre em História Social da Amazônia. Orientador: Prof. Dr. Nelson Rodrigues Sanjad. Aprovada em: __/__/____ Banca examinadora: __________________________________________________ Prof. Dr. Nelson Rodrigues Sanjad (Orientador - UFPA) __________________________________________________ Prof. Dr. Filipe Pinto Monteiro (Avaliador interno- UFPA) __________________________________________________ Profa. Dra. Lúcia Hussak van Velthem (Avaliadora externa à Instituição – MPEG) BELÉM 2021 4 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Pará Gerada automaticamente pelo módulo Ficat, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a) C672o Coelho, Matheus Camilo. Objetos entre contextos e significados: as coleções etnográficasdo Museu Paraense Emílio Goeldi entre 1894 e 1905 / Matheus Camilo Coelho. — 2021. 213 f. : il. Orientador(a): Prof. Dr. Nelson Rodrigues Sanjad Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de PósGraduação em História, Belém, 2021. 1. Coleção Etnográfica. 2. Viajantes. 3. Museu Paraense Emílio Goeldi. I. Título. CDD 981.15 5 Agradecimentos Primeiramente, a Deus e à Espiritualidade, por terem me acompanhado sempre e pela força para suportar as tribulações da jornada. Aos meus pais, Francisco e Edilene pela educação e formação e por não pouparem amor ao longo da minha vida. A eles agradeço o que sou como ser humano, os ensinamentos sobre vida e trabalho, a torcida incondicional e o acolhimento nos momentos mais difíceis. À minha irmã, Paula Yasmin, pelo amor envolvido, o incentivo e por estar sempre pronta para me ajudar e fazer superar os obstáculos do meu caminho. Ao prof. Dr. Nelson Sanjad, pela confiança, pelo tempo dedicado à pesquisa, pelo rigor e atenção nos apontamentos e a gentileza em todas as orientações. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo financiamento para a realização do presente trabalho. À Universidade Federal do Pará e ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia que acolheu o meu projeto de pesquisa. Agradeço às professoras e professores do PPHIST pelos debates, trocas e aprendizados acadêmicos. Em especial, aos professores David Ramirez, Filipe Pinto, Magda Ricci e Aldrin Figueiredo pelos diálogos nas disciplinas e pelas contribuições concedidas a este trabalho. À Alegria Benchimol, minha primeira orientadora, que me apresentou ao tema das coleções etnográficas e do viajante Henri Coudreau. Agradeço sempre pela oportunidade de aprendizado durante a Iniciação Científica, pelas orientações sempre firmes e rigorosas e pelo incentivo e profissionalismo que tanto me auxiliou desde 2016. À Elis de Araújo Miranda, pela parceria nos artigos publicados e por todo auxílio e orientação durante os dois anos de Iniciação Científica no Museu Paraense Emílio Goeldi. Aos meus novos e velhos amigos do PPHIST. Em especial, agradeço a Luís Augusto e Daniel Lapola pela amizade, pela ajuda com as fontes e pelas interlocuções sobre nossos trabalhos. Aos amigos Andrey e Rebeca, pela amizade, leitura do projeto de pesquisa e auxílio na captação de fontes e bibliografias essenciais para a escrita desta dissertação. Com medo de esquecer algum nome, sou grato a todos os amigos que me ofereceram palavras, suportes e gestos valiosos para este trabalho. Por fim, mas não menos importante, à minha família também – tios, tias, primas e primos – e amigos de casa, que são também família, por toda a generosidade e solidariedade nos momentos difíceis e por proporcionar ocasiões de descontração necessárias para manter o equilíbrio emocional. Em particular, a José Camilo (in memoriam), meu tio, meu amigo e meu 6 herói. Por todos os ensinamentos ofertados ao longo dos anos, pela generosidade ao nos acolher em sua casa e ao nos oferecer o riso como possível antídoto a todo tipo de dor. A morte, como o senhor sempre nos advertiu, não existe e o amor prossegue além dos limites físicos. Gratidão eterna, meu tio. 7 Resumo A presente pesquisa investiga o processo de musealização de quatro coleções etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), denominadas Lauro Sodré (1897), Henri Coudreau (1898), Frei Gil Vilanova (1902) e Theodor Koch-Grünberg (1905). Não apenas centrada no protagonismo do coletor/colecionador e compreendendo o colecionamento como uma prática polissêmica, a pesquisa considera o contexto social e político, os interesses dos museus, a agenda científica da época, a trajetória e as concepções das comunidades produtoras e dos colecionadores, as redes de colaboração e circulação de objetos na região amazônica. As quatro coleções possuem relevância para a Reserva Técnica Curt Nimuendajú do MPEG em razão de terem sido adquiridas durante um período de reestruturação e reorganização da instituição, e também, de certa forma, por representarem três contextos diferentes de coleta de artefatos indígenas na Amazônia do final do século XIX e início do XX, protagonizados por um explorador francês, um missionário dominicano e um etnólogo alemão. O estudo dessas coleções certamente permite analisar como diferentes contextos políticos, sociais e culturais, incluindo princípios religiosos, filosóficos, científicos e as relações entre povos indígenas e coletores, atuaram na seleção (e rejeição) dos objetos que compõem as aludidas coleções. Palavras-chave: Coleção Etnográfica; Viajantes; Museu Paraense Emílio Goeldi; Rio Negro; Rio Araguaia; Rio Tapajós; Rio Xingu. 8 Abstract This study aims to investigate the process of musealization of ethnographic collection placed in the Museum Paraense Emílio Goeldi (MPEG), named Lauro Sodré (1897), Henri Coudreau (1898), Frei Gil Vilanova (1902) and Koch-Grünberg (1905). Not only centered in the collector’s protagonism but comprehending the collection processes as a polysemic practice, this research intent to comprehend its role in social and political context, interests of the museums, their scientific agenda, trajectory and conceptions of the producing communities and collectors, the collaboration and circulation networks on Amazon region.. The four collections are relevant to Curt Nimuendaju Technical Reserve Ethnographic Collection at the Goeldi Museum due to their acquisitions during a restructuring and reorganization period, and also, in a way, represent three distinct contexts of collecting indigenous artefacts in Amazon at the end of 19th century and 20th century beginning, led by a French explorer, a Dominican missionary, and a German ethnologist. Their study certainly allows us to analyse how different political and social contexts, religious, philosophical, cultural, scientific thoughts and the relationships between indigenous peoples and collectors acted in objects selection and rejection that make up the aforementioned collections. Keywords: Ethnographic Collection; Travellers; Museu Paraense Emílio Goeldi; Negro River. Araguaia River; Tapajós River; Xingu River; 9 Lista de Figuras Figura 1. Trecho do mapa do rio Tapajós e São Manuel elaborado por Henri Coudreau. (COUDREAU, 1897)................................................................................................................50 Figura 2. Um “seco” no alto Parauapebas (COUDREAU, 1898)............................................52 Figura 3. A comitiva da expedição ao Tapajós em frente à tenda do viajante (COUDREAU, 1897a)........................................................................................................................................59 Figura 4. Henri Coudreau, Cardozo e moradores da casa desse último (COUDREAU, 1897a)........................................................................................................................................60 Figura 5. Machado e ponta de flecha Parintintin (Kagwahiva) (COUDREAU, 1897a)........................................................................................................................................62 Figura 6. Machado Tapayuna (COUDREAU, 1897a).............................................................65 Figura 7. Joaquim Pena e sua família (COUDREAU, 1897c).................................................66 Figura 8. Maloca Abandonada (COUDREAU,1897c)............................................................68 Figura 9. Brinquedo-Ubá do povo Yudjá/Juruna. Fonte: “Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendajú MCTI/ Museu Paraense Emílio Goeldi” (2016)........................................................................................................................................69 Figura 10. Objetos possivelmente da coleção etnográfica Lauro Sodré de 1897. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica......................................................................................................70 Figura 11. Museu Real de Etnologia (Königliches Museum für Völkerkunde). http://www.zeno.org/nid/20000572284)...................................................................................79 Figura 12. Theodor Koch-Grünberg (ZERRIES, 1972)………………..................................84 Figura 13. Dança do Falo, Rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909).......................................86 Figura 14. Índio do Curicuriarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909)...............................................90 Figura 15. Bastões de ambaúba para dança, dos Kauá. Rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909).........................................................................................................................................90 Figura 16. Theodor Koch-Grünberg e seu pequeno amigo Tarú, no rio Aiarý (KOCHGRÜNBERG, 1909).................................................................................................................94 Figura 17. Vila de São Felipe (KOCH-GRÜNBERG, 1909)................................................100 Figura 18. Dom Germano Garrido y Otero (KOCH-GRÜNBERG, 1910)...........................101 10 Figura 19. Mapa elaborado por Koch-Günberg do percurso da sua expedição de 1903 a 1905 (KOCH-GRÜNBERG, 1909).................................................................................................105 Figura 20. Índio Siusí com makálu (adorno de prata pendurado no pescoço). Rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909).................................................................................................108 Figura 21. Objetos do povo Siusí adquiridos no Rio Içana(KOCH-GRÜNBERG, 1909)...110 Figura 22. Antonio, índio Katapolitani, porta-voz e guia do americanista (KOCHGRÜNBERG, 1909)...............................................................................................................111 Figura 23. Schmidt com seus amigos indígenas na hospedagem em Cururú-cuará (KOCHGRÜNBERG, 1909)...............................................................................................................113 Figura 24. Mulher idosa Siusí, em Cururú-cuára, confeccionando um ralo para ralafir mandioca (KOCH-GRÜNBERG, 1909).................................................................................114 Figura 25. Grandes flautas chamadas de Yapurutú, nas descrições do etnólogo, pertencentes aos Kauá e aos Siusí do Rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909)..........................................115 Figura 26. Índio Kawá atirando com carautana. Rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909)...117 Figura 27. Cabaça para paricá e instrumento para tomar do povo Tukano, da coleção Theodor Koch-Grünberg (1905) do Museu Paraense Emílio Goeldi. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica..............................................................................................................................125 Figura 28. Redes e matapí do rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1910).......................................................................................................................................127 Figura 29. Surubiróca, maloca dos Kubeo no rio Cuduiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1910)..128 Figura 30. Negociando com os Bahúna (KOCH-GRÜNBERG, 1910).................................129 Figura 31. Sequências de fotografias do processo de confecção das máscaras de dança dos Kobeo, no rio Cudiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1910)............................................................131 Figura 32. Dança das máscaras dos Kobeo no Rio Cudiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1910)..131 Figura 33. Remadores indígenas descendo a embarcação em Yurupirý-Cachoeira (KOCHGRÜNBERG, 1910)...............................................................................................................133 Figura 34. O americanista com os Makúna, Yabahána, Yahúna, no baixo Apaporis. Fonte: Koch-Grünberg, 1910.............................................................................................................136 Figura 35. Frei Gil de Vilanova (GALLAIS, 1942)..............................................................157 Figura 36. Casas em Sant’Anna da Barreira. (COUDREAU, 1897).....................................165 11 Figura 37. Índios Kayapó fotografados por Coudreau, incluindo o chefe Pacarantí (COUDREAU, 1897)..............................................................................................................166 Figura 38. A missa em Barreira (COUDREAU, 1897).........................................................167 Figura 39. Indígenas Kayapó visitados por Coudreau e Vilanova em 1897 (COUDREAU, 1897).......................................................................................................................................169 Figura 40. Missão de Conceição do Araguaia (PARÁ, 1908)...............................................171 Figura 41. Alunos da Escola da Missão de Conceição do Araguaia e missionário dominicano (PARÁ, 1908).........................................................................................................................174 Figura 42. Crianças indígenas da Catequese e seus pais (GALLAIS, 1906).........................175 Figura 43. Conceição do Araguaia em 1901 (GALLAIS, 1906)...........................................176 Figura 44. Fotografia da Seção de Etnografia do Museu Goeldi, com destaque às flechas e bodurnas dos Irã Ãmrãnh. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica.............................................184 Figura 45. Irã Ãmrãnh posam para o retrato com suas flechas e bodurnas, representações do ethos guerreiro (PARÁ, 1908)................................................................................................187 Figura 46. Indígenas Irã Ãmrãnh em visita ao Museu Goeldi em 1902. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica................................................................................................................190 Figura 47. Grupo de Irã Ãmrãnh no Museu Goeldi em 1901. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica..............................................................................................................................191 12 Lista de Tabela Tabela 1. Coleção Lauro Sodré (1897)....................................................................................55 Tabela 2. Coleção Henri Coudreau (1898)..............................................................................56 Tabela 3. A coleção de Theodor Koch-Grünberg (1905) do Museu Paraense Emílio Goeldi......................................................................................................................................144 13 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................14 CAPÍTULO 1 – Henri Coudreau: um coletor ocasional a serviço do Estado do Pará............................................................................................................................................32 1.1 As expedições de Henri Coudreau: das Guianas ao Pará....................................................32 1.2 Objetos em rede: a formação das coleções de Henri Coudreau no Pará.............................53 1.3 A Transferência das coleções para o Museu Paraense........................................................72 1.4 Colecionamento e agência indígena: redes de circulação...................................................75 CAPÍTULO 2 – A coleção Theodor Koch-Grünberg de 1905: um Völkerkundler na Amazônia..................................................................................................................................78 2.1– Os americanistas e a Volkerkünde.....................................................................................78 2.2– As expedições de um Volkerkundler (1899-1924)............................................................84 2.3 – A Volkerkünde percorre o rio Negro: a formação das coleções etnográficas de KochGrünberg...................................................................................................................................94 2.4 – A aquisição das “duplicatas” pelo Museu Goeldi......................................................................................................................................137 CAPÍTULO 3 – A Coleção Frei Gil de Vilanova: colecionismo e catequese no início do século XX................................................................................................................................148 3.1 – As missões religiosas no Araguaia do século XIX........................................................148 3.2 – Frei Gil Vilanova e a missão de Conceição do Araguaia..............................................157 3.3 – Objetos indígenas para a manutenção da fé...................................................................178 3.4 – Aquisição da coleção Frei Gil de Vilanova de 1902 pelo Museu Goeldi......................187 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................193 REFERÊNCIAS....................................................................................................................198 14 Introdução Durante o século XIX o processo de institucionalização das ciências no Brasil foi acelerado e os museus de História Natural tiveram importante papel no desenvolvimento científico nacional1. Essas instituições se firmaram como locais de referência na produção e difusão do conhecimento, na circulação de pesquisadores e na formação de coleções da flora, da fauna, dos recursos geológicos e da cultura material das populações originárias. Segundo Margaret Lopes2, a origem desses museus está relacionada aos gabinetes de curiosidades da Europa nos séculos XVII e XVIII, que abrigavam não apenas objetos locais, mas novos saberes e artefatos de povos distantes trazidos pelos viajantes e aventureiros durante a expansão ultramarina europeia. Gradualmente, esses locais de curiosidades e de cunho enciclopédico foram substituídos pelos Museus de História Natural, com um caráter científico mais especializado — onde, então, os objetos não eram apenas acondicionados, mas também descritos, examinados, agrupados “objetivamente” por traços comuns. No Brasil, a formação dos primeiros museus desse gênero remonta ao final do século XVIII. A criação do Museu Real (depois Imperial e Nacional), em 1818, é um marco importante, que teria consequências em diversos campos científicos e em diversas províncias do nascente Império do Brasil. O Grão-Pará foi uma delas, onde intelectuais conectados, a um só tempo, com a administração central do império e com redes internacionais de instituições e viajantes criaram, em 1866, o Museu Paraense (MP), atual Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). De acordo com Sanjad, a visita de Louis Agassiz à Amazônia e a organização da Segunda Exposição Provincial de Produtos Agrícolas e Industriais foram definitivas para a fundação do MP3. O cientista suíço radicado nos Estados Unidos, convidado de honra da exposição, sugestionou a pertinência de um museu de história natural na região, ideia essa que foi acolhida e relançada ao debate público por Domingos Soares Ferreira Pena. Formou-se, 1 O tema da institucionalização das ciências no Brasil possui uma vasta bibliografia. Citamos alguns trabalhos: FIGUEIRÔA, Silvia F. de M. Mundialização da ciência e respostas locais: sobre a institucionalização das ciências naturais no Brasil (de fins do século XVIII à transição ao século XX). Asclepio, v. 50, n. 2, p. 107-123, 1998; GUALTIERI, Regina Cândida Ellero. Evolucionismo no Brasil: ciências e educação nos museus, 18701915. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2008; LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica. Brasília: Editora UnB, 2009; SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro. Editora Fiocruz. 2006; CARULA, Karoline. Darwinismo, raça e gênero: projetos modernizadores da nação em conferências e cursos públicos (Rio de Janeiro, 1870-1889). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016; MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça como questão: História, Ciência e Identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010. 2 LOPES, Op. Cit., 2009. 3 SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Brasília: Instituto Brasileiro de Museus; Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2010. 15 então, em outubro de 1866, a Associação Filomática, cujo objetivo consistia na criação de um museu de história natural e de “artefatos indígenas” no Pará – que servisse à instrução pública. A aliança com o presidente da província Pedro Leão Vellozo e com o vice-presidente Antonio Lacerda Chermont foi fundamental para a instalação do Museu Paraense. À época, o argumento que sustentava o financiamento público à instituição museológica baseava-se no progresso econômico, no sentido de que a “divulgação dos produtos naturais da província contribuiria para incentivar a agricultura e a diversificação das exportações”.4 Ferreira Penna e seu grupo também usaram pressupostos de cunho regionalista que pretendiam manter em Belém um local de referência para a conservação e exposição de coleções, como reação aos interesses estrangeiros pelos produtos regionais5. Após cinco anos da fundação da Associação, o presidente da província Joaquim Pires Machado Portella transformou o Museu Paraense em instituição pública, contando com o naturalista Ferreira Penna no cargo de diretor. Em março de 1871, ocorreu a instalação oficial do Museu Paraense e da Biblioteca Pública, na qualidade de departamentos públicos, no prédio do Liceu Paraense. O acervo do museu, quando da abertura, resumia-se a artefatos etnográficos e arqueológicos reunidos pelo próprio diretor, uma coleção de minerais da Europa, uma coleção de serpentes e vários objetos doados pelo naturalista Joseph Beal Steere. O acervo incipiente do Museu Paraense foi incrementado ao longo de alguns anos mediante coletas feitas em viagens pelo interior do Pará pelo próprio Ferreira Pena e por doações de intendentes de cidades e vilas amazônicas, governos provinciais, de membros da elite e de outros museus de história natural – sofrendo também descréscimos por conta de empréstimos a instituições nacionais6. Todavia, como outras instituições brasileiras, atravessou dificuldades para a sua manutenção nos últimos anos do Império, como a carência de pessoal qualificado, falta de verbas, problemas nas instalações etc. Em 1889, o museu foi declarado extinto pela Assembleia Provincial, mas a lei votada não foi aplicada em razão da proclamação da República, em novembro. 4 SANJAD, 2010, p.57. SANJAD, Nelson. “Ciência de potes quebrados”: nação e região na arqueologia brasileira do século XIX. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 19, n. 1, p. 133-164, 2011. 6 Conferir: MELO, Josiane Martins. Objetos em Trânsito: A Musealização de Artefatos Arqueológicos no Museu Paraense Emílio Goeldi (1866-1907). 2017. Dissertação (Mestrado em História Social) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Pará, Belém, 2017; AMORIM, Lilian Bayma de. Dois Museus e Uma Coleção: deslocamentos, disputas e identidades na trajetória de objetos arqueológicos da cultura marajoara. Tese (Doutorado em Museologia e Patrimônio) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, 2019. 5 16 Após o advento da República, o Museu Paraense foi reinstalado em um novo prédio. A reabilitação da instituição foi motivada por seu papel político e pedagógico para a “reforma do povo”, liderada pelo então diretor de Instrução Pública José Veríssimo, que procurava infundir na população paraense preceitos de patriotismo, cientificidade e civilidade, os ideais do novo regime republicano. Na reinauguração do Museu Paraense em 1891, Verissimo discursou perante o governador Bacellar Pinto Guedes, fixando de forma nítida a instituição como parte dos ideais republicanos, como ao declarar que, “como elemento de instrucção popular, um Museu é uma eloqüente, instructiva e interessante, para falar a linguagem pedagógica, lição das coisas”7. Em outubro de 1893, Lauro Sodré escreveu para Veríssimo, que estava no Rio de Janeiro, solicitando que convidasse para assumir a direção do Museu Paraense o zoólogo suíço Emílio Goeldi (1859-1917), que já havia trabalhado no Museu Nacional do Rio de Janeiro e de onde se afastou em 1890. A negociação perdurou até o ano seguinte, quando Sodré anunciou na Mensagem enviada ao Congresso do Pará, no dia 7 de abril de 1894, a contratação de Goeldi8. A partir 1894, com o apoio do governo republicano de Sodré e de seus sucessores, e com a chegada do zoólogo suíço Emílio Goeldi para assumir o cargo de diretor, a instituição passou por um período de reformas físicas e administrativas, de ampliação e qualificação no quadro de pesquisadores e de grande expansão de suas coleções. Essa reestruturação do museu atendeu ao desejo do meio acadêmico internacional, principalmente centro-europeu, que buscava ter acesso à região amazônica para formar coleções e abrir campo para realizar seus trabalhos9 e também aos anseios políticos de uma elite local, enriquecida pelo boom da borracha10, por modernização e por progresso. 7 VERÍSSIMO, José. Discurso pronunciado por José Veríssimo, Diretor geral da Instrução Pública perante o Governador do Estado, Capitão Tenente Bacellar Pinto Guedes, por ocasião de se inaugurar o museu, restaurado em 13 de maio de 1891. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, Belém, v. 1, n. 14, 1896, p.7. 8 SODRÉ, Lauro. Mensagem dirigida pelo Sr. Governador Dr. Lauro Sodré ao Congresso do Estado do Pará em 7 de abril de 1894. Belém: Typ. do Diário Official, 1894a. 9 SANJAD, Op. Cit., 2010; ____. Nimuendajú, a Senhorita Doutora e os “etnógrafos berlinenses”: rede de conhecimento e espaços de circulação na configuração da etnologia alemã na Amazônia no início do século XX. Asclepio, [S.l.], v. 71, n. 2, p. p273, nov. 2019. ISSN 1988-3102. Disponível em: <http://asclepio.revistas.csic.es/index.php/asclepio/article/view/901>. Acesso em: 14 ago. 2020. doi:http://dx.doi.org/10.3989/asclepio.2019.14. 10 A partir da década de 1870 até primeiras décadas do XX ocorreu o auge da exploração da borracha na Amazônia. O excedente de capital fruto dessa economia possibilitou o estado do Pará de aumentar os investimentos em diversos setores, como os de infraestrutura e instrução pública. A capital paraense, nesse período, era o maior porto de escoação da goma elástica da região amazônica, e passou por muitas transformações nos espaços públicos, na vida privada e nas relações das classes sociais, possibilitadas pelo originário da economia da borracha In: WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e 17 Sanjad11 defendeu a tese de que o advento da República e o regime federalista implementados no país foram fundamentais para a história do Museu Paraense Emílio Goeldi. O historiador argumenta que o ambiente político possibilitou que uma instituição estadual, com graves dificuldades de manutenção, fisicamente distante do centro político do país e desde sua origem especializada nos estudos sobre uma região que já se configurava, na segunda metade do século XIX, como 12 fronteira econômica, se destacasse no cenário científico brasileiro . Emílio Goeldi modificou o nome da instituição para Museu Paraense de História Natural e Etnografia e foi seu diretor de 1894 a 1907. Teve autonomia e recebeu o apoio dos governos republicanos no Pará para conectar a instituição com os principais centros científicos europeus e norte-americanos. Desde o período colonial, a capital paraense era porta de entrada de naturalistas e viajantes estrangeiros na região amazônica. No entanto, a partir dos anos finais do século XIX e durante as primeiras décadas do século XX, tornou-se também um ponto de conexão relevante nas redes científicas internacionais, em razão da ligação do Museu Paraense como as instituições congêneres do Velho Mundo. Por conta disso, houve um intercâmbio de informações, pesquisadores, publicações científicas, espécimes da fauna e flora amazônicas e cultura material entre a instituição paraense e outros museus. Além de inserir o MP nas redes científicas internacionais e arregimentá-lo nos ditames vigentes da ciência do final do XIX e início do XX, Goeldi buscou consolidar um programa de estudos científicos dedicados à História Natural, à Etnografia e Arqueologia da Amazônia13. Conforme o novo Regulamento do Museu Paraense, os meios para um projeto científico claro e coerente residiriam em três pilares: realização de conferências públicas pelos pesquisadores do museu; divulgação dos trabalhos por meio de publicações; e por fim, formação de coleções cientificamente organizadas14. No mesmo documento, as seções científicas foram divididas em quatro: 1ª Zoologia e ciências anexas (anatomia e embriologia comparadas); 2ª Botânica e ramos anexos; 3ª – Geologia, paleontologia e mineralogia; 4ª Etnologia, arqueologia e antropologia. O Museu seguiria um perfil regional, voltado para estudos amazônicos, o que estava em conformidade com a Lei nº 199, de 26 de junho de 1894, e o Regulamento do mesmo ano, decadência (1850-1920). São Paulo: Hucitec/ EdUSP, 1993; SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo a Belle Époque. Belém: PakaTatu, 2002. 11 SANJAD, 2010. 12 Ibid., p. 17. 13 GUALTIERI, 2008; SANJAD, 2010. 14 SODRÉ, 1894a, p. 205. 18 ambos instituídos pelo governador Lauro Sodré. O primeiro artigo deste último assinalou os objetivos do museu: “[...] o estudo, o desenvolvimento e a vulgarização da História Natural e Etnologia do Estado do Pará e da Amazônia em particular e do Brasil, da América do Sul e do continente americano em geral”15. De acordo com Goeldi16, o Museu Paraense não almejava “[...] nem o elefante da India, nem a girafa do continente negro. Queremos o que é nosso, o amazônico, o paraense [...]”. No entanto, como aponta Gualtieri17, o enfoque regional no museu estava apenas nas populações, na fauna e na flora, “tudo o mais seria construído ou concebido com base em referenciais europeus”. Como exemplo, a instituição teve vinte e nove cientistas e técnicos em seu corpo científico, a maior parte de naturalidade centro-europeia e com alto grau de formação acadêmica, que foram arregimentados nas universidades de Basel, na Suíça, e em outras quatro do Império Alemão, tais como Strassburg, Giessen, München e Freiburg18. O artigo 19 do citado regulamente requeria um pesquisador com formação completa em “[...] universidades onde o ensino das sciencias naturaes ocupe um lugar notoriamente proeminente”. Essa exigência estabelecia uma preferência por cientistas estrangeiros, pois, como argumentou Corrêa19, “a formação exigida pelo regulamento só poderia ser encontrada fora do país e especialmente na Europa”. As tendências teóricas dos pesquisadores do museu, incluindo seu diretor, estavam em clara sintonia com a ciência praticada em estabelecimentos congêneres centro-europeus, não raro, se distanciando de debates em voga no meio intelectual e museológico nacional20. Contudo, em razão do período de trabalho, fim do século XIX e início do XX, há por parte de alguns estudos historiográficos certa tentativa de conectar diferentes tradições científicas a um ideário em voga no país, o que tem gerado distorções e problemas na interpretação histórica, como incluir Emílio Goeldi entre os naturalistas seguidores do darwinismo social21. 15 SODRÉ, Lauro. Regulamento do Museu Paraense, 2 de julho 1894. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, v. 1, n. 1, set. 1894b,p.22. 16 GOELDI, Emílio. Relatório apresentado pelo Director do Museu Paraense ao Sr. Dr. Lauro Sodré, Governador do Estado do Pará. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, v. 1, n. 3, 1895, p.222. 17 GUALTIERI, 2010, p. 143. 18 SANJAD, 2019. 19 CORRÊA, Igor Nazareno da Conceição. A ciência da floresta: a institucionalização das ciências naturais no estado do Pará (1894-1907). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo Cruz,Casa de Oswaldo Cruz, 2017. 20 Ibid.; SANJAD, 2010. 21 De acordo Domingues, o darwinismo social, cujas ideias pouco seguiam os princípios apresentadas pelo autor de A origem das espécies, “pretendia que os mecanismos da seleção darwiniana pudessem ser transferidos de maneira válida às sociedades humanas (com ideias, tais como a de concorrência vital, a de luta pela vida ou a de seleção natural)”. In: DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. O Darwinismo no Brasil, nas Ciências Naturais e na Sociedade. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 21, n. 1 e 2, p. 114-137,2014. 19 Goeldi não era um seguidor desses pressupostos, tão pouco escreveu sobre temas como miscigenação, raça e a possibilidade de civilização nos trópicos. Ele era um seguidor da teoria do “recapitulacionismo” desenvolvida pelo evolucionista Ernst Haeckel, de quem havia sido aluno em Jena, Alemanha. A influência desse autor sobre Goeldi pode ser observada nas pesquisas publicadas no Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, como no caso do artigo acerca da ave Cigana, no qual Goeldi especula sobre as possibilidades de comprovar a citada teoria a partir do estudo do animal: Porque damos importancia a esta descoberta de um par de garras nas azas da jovem “Cigana”? – Respondemos com toda consciencia de nossa responsabilidade scientifica, que é porque representa irrefutavelmente uma herança antiquissima dos primeiros tempos da independencia, da individualisação da classe das Aves do tronco comum entre Aves e Repteis. [...] É um dos documentos phylogeneticos dos mais interessantes – nova e inesperada pedra de toque para a verdade da evolução e da transformação, portanto logo [sic] tambem um objecto de justo embaraço e perplexidade para aquelles, que julgam, que a sociedade humana lucra com a crença 22 na eterna e perpetua rigidez da especie . Apesar disso, no livro O espetáculo das raças, Schwarcz23 chega a afirmar que o diretor do Museu Paraense, enquanto naturalista, “era sobretudo um evolucionista convicto, defensor da ideia da ‘perfectabilidade’ humana” e “seduzido pelas conclusões poligenistas”. Essas hipóteses foram criticadas por Sanjad24 e Ferreira25, pois a antropóloga, além de atribuir erroneamente um discurso feito por José Verissímo a Goeldi, apontou alguns autores como sendo influentes no seu trabalho, mas que não podem ser encontrados em nenhum dos textos publicados por Goeldi, tais como Lewis Henry Morgan, Herbert Spencer, Edward Burnett Tylor e James George Frazer. De tradição germânica, Emílio Goeldi dialogou, em seus trabalhos etnológicos, com Adolf Bastian, Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Max Schmidt e Theodor KochGrünberg, autores que não podem ser colocados no mesmo pacote das proposições racistas e evolucionistas sociais26. As ideias de Bastian e de outros americanistas arrolados estavam na contramão do ideário desenvolvido pelos antropólogos franceses, norte-americanos e ingleses do mesmo período. Diferentemente de outras vertentes científicas, nos trabalhos destes etnólogos alemães a questão racial não era um problema central, mas sim o desenvolvimento 22 GOELDI, 1895b. p. 172-173. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 18701930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.113. 24 SANJAD, Nelson. Emílio Goeldi (1859-1917): a ventura de um naturalista entre a Europa e o Brasil. Rio de Janeiro: EMC, 2009. 25 FERREIRA, Lúcio Menezes. Território Primitivo: a institucionalização da arqueologia no Brasil (18701917). Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2010. 26 SANJAD, 2009. 23 20 das culturas – que, para os autores, não era hierarquizado, mas multilinear, “espiralado”27. A tradição bastiniana ressaltou as particularidades de cada cultura humana, com certo relativismo, comparando-as no fundamento analítico. Para os autores da Völkerkunde28, a etnologia alemã, era fundamental reunir a maior quantidade de informações acerca dos povos por meio dos relatos de viagem, fotografias, gravações de áudio e, em especial, da formação de coleções de cultura material. Os objetos etnográficos e arqueológicos tinham um papel fundamental como expressão real da cultura dos seus criadores, uma espécie de “cultura materializada”. Esta pesquisa parte do pressuposto de que a etnologia alemã e as redes museológicas vigentes no século XIX e início do XX influenciaram a formação do acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi até o final do que Sanjad considerou como “anos germânicos” na instituição (1894-1921).29 A coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi A formação da coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi está intimamente ligada à história da instituição30. Os primeiros objetos etnográficos foram adquiridos ainda na fase de Associação Filomática, após a publicação de cartas pedindo a colaboração aos membros da elite das cidades e vilas do interior do Pará para a ampliação das coleções da instituição31. Os artefatos que inauguraram a coleção abarcavam “vestimentas de pennas e plumas, adufos ou tamborins, trombetas e tibicinas; armas de guerra; instrumentos de caça e pesca, machados de pedra, tembetás de quartzo branco; ídolos de argila, e vasos de barro”32. Ao logo do Império, outras peças foram recebidas pela instituição e acondicionadas na sede, mas poucas chegaram à República em razão do confisco feito pelo Museu Nacional por ocasião da Exposição Antropológica de 1882.33 27 BALDUS, Herbert. Adolf Bastian. In: Revista de Antropologia, v.14, São Paulo, 1966, p. 127; VIERTLER, 2017. 28 A utilização dos termos “antropologia”, “etnologia” e “etnografia” não é uniforme em todo o mundo. Na Alemanha e em países que comungam da língua alemã, o termo Anthropologie era utilizado para designar antropologia biológica e Völkerkunde – termo empregado pelos intelectuais e pesquisadores alemães para tratar da “ciência dos povos” ou “ciência do estudo dos povos” – abarca as atuais antropologia social, antropologia cultural e etnologia. In: VIERTLER, Renate Brigitte. Os fundamentos da teoria antropológica alemã: etnologia e antropologia em países de língua alemã: 1700-1950. São Paulo: Annablume, 2017. 29 Cf. SANJAD ,2019. 30 VELTHEM, Lúcia Hussak van; TOLEDO, Franciza; BENCHIMOL, Alegria; ARRAES, Rosa; SOUZA, Ruth. A coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi: memória e conservação. MUSAS: revista brasileira de Museus e Museologia, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 121-134, 2004. 31 PENNA, Domingos Soares Ferreira. Archeologia e Ethnografia no Brazil. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnografia, Belém, tomo 1, p.28-31, 1894. 32 Ibid., p. 19. 33 SANJAD, 2019; MELO, 2017; AMORIM, 2019. 21 Desde o século XVI, artefatos ameríndios vinham sendo alvo de coleta e colecionamento. Os gabinetes de curiosidade, precursores dos museus de história natural e etnografia, acumulavam espécimes dos três reinos da natureza e objetos da cultura humana provindos de diversos continentes e separados, comumente, em duas categorias: naturalia, produtos da natureza, e artificialia, objetos do engenho humano34. Nesse período, os artefatos de cultura material “eram apreciados [...] muito mais por seu exotismo e pela raridade dos materiais constituintes do que por suas qualidades estéticas”35. No século XIX, com a disciplinarização da antropologia e a formação dos departamentos de antropologia e etnografia nos museus, essa categoria de artefatos passa a ser chamada de etnográfica – transformando seu status, sentido e funções no espaço museológico – e passam a ocupar mais espaço nos museus36. Foi o que ocorreu com o Museu Paraense. Em 1894, no início da gestão de Goeldi, o acervo etnográfico contava com 291 peças e foi definido como pequeno e caótico. Goeldi o criticou pela falta de organização no relatório ao Governador: Mas encontrar umas 150 flechas, perto de uma dúzia de arcos, além de maracás, remos, enfeites, de pennas, collares, machados de pedra, etc., tudo sem letreiro, nem indicação alguma de proveniência? Isto é mais que funesto e quase disperta a suspeição que houve quem tivesse um interesse especial de produzir intencionalmente este estado chaotico, valendo-se do conhecimento da circumstancia, que objetos ethnographicos de origem incerta pouco ou nenhum valor 37 possuem . O diretor, por conta da sua experiência em outras instituições museais nacionais e estrangeiras, enxergou a necessidade de enquadrar as coleções nas leis sistemáticas de classificação da Etnografia e Antropologia do período. No mesmo relatório, ele confessou que, dados o descaso e a desorganização em que se encontrava a coleção etnográfica, julgouse forçado “[...] em prol da probidade scientifica a encostar a maioria d'estes instrumentos de índios ou a degradal-os a um uso meramente ornamental e principiar de novo”. Esse processo de descarte e preocupação com o acervo do diretor pode ser compreendido como um “‘esboço’ de política de preservação, pois Goeldi colocou em pauta questões cruciais para entender o museu e as coleções naquele momento”, como destacou Josyane Mello38. 34 THOMPSON, Analucia. Objetos indígenas: do artificial ao imaterial. Antíteses, v. 7, n. 14, p. 258-281, 2014. RIBEIRO, Bertha; VELTHEM, Lúcia H. van. Coleções etnográficas: Documentos materiais para a história indígena e a etnologia. In: CUNHA, M. C. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992,p.103. 36 THOMPSON, Op. Cit., 2014. 37 GOELDI, Emílio Augusto. Relatório sobre o estado do Museu Paraense apresentado a S. Exa. o Sr. Dr. Governador do estado do Pará pelo diretor do museu, 28 de junho de 1894. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, Belém,v. 1, n. 1, set. 1894, p.15. 38 MELO, 2017., p.89. 35 22 A partir de 1894, a coleção etnográfica passou a ser de responsabilidade da Seção Etnográfica e Arqueológica, chefiada por Goeldi por falta de profissionais da área, como lamentou em relatório de 1898: Ainda está sem chefe scientifico próprio a quarta secção, a de Etnographia e Archeologia, tendo sido até agora infructiferos os meus esforços para encontrar um profissional de todo idôneo e disposto a vir para o Pará. Continuam vigorando, porém, em conformidade com as instrucções do Governo relativamente a este assumpto, as minhas incumbências e não perco a esperança, que esta Directoria consiga ainda preencher a dita vaga com um elemento apropriado39 Durante quase toda a sua gestão, 1894 a 1907, ao elencar nos relatórios aos governadores o pessoal científico do Museu, o zoólogo deixava claro o caráter provisório de seu trabalho ao escrever que o chefe da aludida seção era “o diretor (provisoriamente)”40, mesmo com anos na chefia do departamento, e a preocupação em obter um profissional qualificado para o cargo em questão, que realizasse uma obra “melhor do que um mero aglomerado fragmentario, debaixo do domínio do cego acaso”41. Dessa forma, o empenho não residia apenas na obtenção de material, mas também no tratamento científico e metodológico das coleções salvaguardadas. Goeldi privilegiou, na alocação de recursos e postos de trabalho, a zoologia e a botânica. Entretanto, ele realizou investigações de caráter etnológico, atendendo aos anseios do governo e de intelectuais paraenses42, e empenhou-se no trabalho de ampliação da coleção, incrementando novos objetos por meio de doações de políticos, viajantes, militares, sertanistas, coletas dos próprios colaboradores da instituição e eventuais aquisições. É nesse período que se inicia a prática, que perdura até o presente na instituição, de se referir às coleções pelos nomes dos doadores. São os casos das coleções de Henri Coudreau (1898), Lauro Sodré (1897), Paes de Carvalho (1898), Frei Gil de Vilanova (1902), Hugo Berta (1905) e Theodor Koch-Grünberg (1905), todas incorporadas na gestão de Goeldi. A Seção de Etnografia e Arqueologia teria seu primeiro chefe especializado apenas com a contratação de Curt Unkel Nimuendajú em 1920, etnológo alemão residente em Belém 39 GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado ao Exmº Sr. Dr. Lauro Sodré, governador do estado do Pará, pelo director do Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia, Belém, 2(1/4), 1898,p.270. 40 GOELDI, Emílio Augusto. Relatorio apresentado ao Sr. Dr. Secretario da justiça, interior e instrucção publica, referente ao anno de 1902, pelo director do Museu. Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de Historia Natural e Ethnographia, Belém, 4(1/4), 1906, p.508. 41 GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado pelo Director do Museu Paraense ao sr. Dr. Lauro Sodré, governador do Estado do Pará, Janeiro de 1895. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia,v.1, n.3,1896, p. 223. 42 SANJAD, Nelson; SILVA, João Batista Poça. Três contribuições de Emílio Goeldi (1859-1917) à arqueologia e etnologia amazônica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 4, n. 1, p., jan.-abr. 2009. 23 desde 1913, atraído por um convite da então diretora Emília Snethlage para um exame das coleções etnográficas e arqueológicas. Em 1921, Nimuendajú elaborou o primeiro inventário das coleções da referida seção, o Catálogo das coleções etnográficas do Museu Goeldi, listando ao todo 2.662 peças.43 Em outro inventário, também feito por Nimuendajú, com o auxílio de Evalda Xavier Falcão, entre 1939 e 1940, contou-se 6.744 objetos. Na década de 1950, Eduardo Galvão reordenou a coleção, resultando no livro de Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia, calculando 9.000 peças etnográficas e arqueológicas44. Conforme Benchimol, desde 1938, o acervo etnográfico e arqueológico do Museu Paraense Emílio Goeldi é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), passando a pertencer à categoria de “Patrimônio arqueológico, etnográfico e paisagístico”. Desde então, a coleção etnográfica vem sendo ampliada, chegando a mais de 15.000 objetos atualmente,45 todos acondicionados na Reserva Técnica Curt Nimuendajú.46 Coleções etnográficas e musealização A presente dissertação é um trabalho historiográfico, mas buscou-se fundamentar teórica e metodologicamente a investigação a partir do diálogo com a Museologia e a Antropologia. Ao longo da pesquisa, alguns conceitos emergiram a partir das fontes examinadas e outros instrumentalizaram a análise dos objetos, muitas vezes não familiares aos historiadores. No âmbito das questões examinadas nesse empreendimento, cabe explicitar, mesmo que superficialmente, os conceitos de coleção, objeto etnográfico e musealização que nortearam diversas reflexões nessa escrita. O termo coleção, de modo geral, “designa um conjunto ou reunião de objetos da mesma natureza ou que têm qualquer relação entre si”47. No entanto, como salienta Pearce, “[...] coletar é uma atividade tão complexa e tão humana para ser tratada sumariamente 43 BENCHIMOL, Alegria. Informação e objeto etnográfico: percurso interdisciplinar no Museu Paraense Emílio Goeldi. 2009. 124 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação)-Universidade Federal Fluminense e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (PPGCI/UFF/IBICT), Rio de Janeiro, 2009. 44 É importante frisar, as coleções arqueológicas e etnográficas somente foram separadas por Eduardo Galvão na década de 1960. 45 GARCÉS, Claudia Leonor Lópes. “Las colecciones etnográficas del alto río Negro en el Museu Paraense Emílio Goeldi: notas históricas y diálogos contemporâneos”. In: KRAUS, Michael; HALBMAYER, Ernst; KUMELS, Ingrid (orgs.), Objetos como testigos del contacto cultural: perspectivas interculturales de la historia y del presente de las poblaciones indígenas del alto río Negro (Brasil/Colombia). Berlim: IberoAmerikanisches Institut, 2018. 46 Reserva Técnica consiste no espaço dedicado ao armazenamento de artefatos museológicos não expostos “sob rígido controle para sua conservação e salvaguarda”. In: VELTHEM et al, Op. Cit., 2004, p.123. 47 LOUREIRO, Maria L. N. M. Fragmentos, Modelos, Imagens: processos de musealização nos domínios da ciência. Datagramazero - Revista da Ciência da Informação, v. 8, n. 2, paginação irregular, abr. 2007, p. 3 24 através de definições”, pois há diversos atributos significativos que compõem uma coleção48. No presente trabalho, distante de visões universalistas e ahistóricas acerca do ato de colecionar, compreende-se as coleções como “práticas polissêmicas”49. Essa noção possibilita observar que a aludida prática, “apesar de recorrente em diversas culturas e tempos, tem significado diverso, bem como diferentes razões práticas”50. Nessa perspectiva, o colecionismo não é um fato natural, mas uma prática associada a contextos históricos e sociais, ideologias, projetos e propósitos51. Passamos, então, ao conceito de objeto etnográfico, sendo vinculado ao de coleção. Velthem conceitou, a partir das ideias de Savary, e explicou o que representa esse tipo de cultura material: Para a compreensão do que representa um objeto etnográfico, é preciso destacar que ele é criado em um contexto particular, referente a uma sociedade humana específica onde está inserido em muitos planos: técnico, produtivo, estético, simbólico. Apesar de possuir elementos de ligação, pois se trata igualmente de uma coisa, não se confunde com o objeto industrial devido a determinadas características. Um objeto etnográfico é o resultado de um trabalho manual, elaborado de acordo com materiais e técnicas locais e cujo aspecto formal obedece a parâmetros da sociedade que o produziu (Savary, 1989)52. Nessa perspectiva, o objeto etnográfico é um artefato criado em um determinado contexto, por uma sociedade humana específica, resultando do trabalho artesanal humano, com técnicas específicas da comunidade produtora, a partir de elementos e matéria-prima locais. Esses artefatos podem ser analisados por diferentes aspectos, considerando a matériaprima de que se originaram, os procedimentos de confecção, os significados artísticos e cosmológicos para as culturas artífices, a vida social do campo ao museu e outros mais53. O objeto etnográfico consolidou-se como tal, e assumiu o status que possui atualmente, a partir do seu trânsito do contexto primário para o museu54, onde passou a ser preservado e é recontextualizado e re-significado, desvencilhando-se de “de uma realidade 48 PEARCE, Susan M. Interpreting objects and collections. New York: Routledge, 2003, p.159. MAGALHÃES, Aline M; BEZERRA, Rafael Z. (Orgs.) Coleções e colecionadores: a polissemia das práticas. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2012. 50 Ibid., p. 10. 51 OLIVEIRA, Ana Cristina Audebert Ramos de. Colecionismo a partir da Perspectiva de Gênero. Museologia & Interdisciplinaridade, [S. l.], v. 7, n. 13, p. 15–30, 2018.. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/17753. Acesso em: 15 jun. 2021. 52 VELTHEM, Lucia Hussak van. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 7, n. 1, jan.-abr. 2012, p.53. 53 ABREU, Regina. Tal Antropologia, qual museu? In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário; SANTOS, Myrian Sepúlveda (Org.). Museus, coleções e patrimônios: narrativas polifônicas. Rio de Janeiro: MinC; IPHAN; DEMU, 2007 54 PEARCE, Op. Cit., 2003. 49 25 imediata para remeter e evocar realidades ausentes”55. De acordo com Desvallées e Mairesse56, o conceito tradicional de objeto museológico relaciona-se necessariamente ao processo de musealização, tema importante da Museologia, entendido como “extração, física e conceitual, de uma coisa do seu meio natural ou cultural de origem”, o que opera “uma mudança do estatuto do objeto”. E, “uma vez dentro do museu, assume o papel de evidência material ou imaterial do homem e do seu meio, e uma fonte de estudo [...]”. Loureiro57 também salienta a transformação do objeto em documento durante a musealização, que, para a autora, consiste no “conjunto de ações caracterizadas pela separação/deslocamento do contexto original e privação das funções de uso de alguns objetos, que passariam a desempenhar a função de documentos”. Nesse mesmo sentido, comenta Analucia Thompson: O estudo histórico da formação e da trajetória de uma coleção sob a guarda de um museu permite tornar visíveis sua singularidade e seu sentido, ao explicitar as relações sociais e políticas que a tornaram possível. E, ao mesmo tempo, abre espaço para que aquilo que estava esquecido possa ser lembrado em novas situações, em outros usos e por outros sujeitos, cuja memória pode ser acionada, não só pelos objetos guardados no museu, mas também pelas histórias que neles estão penetradas e, ao mesmo tempo, esquecidas58. Como destacado, os objetos e as coleções etnográficas são documentos, testemunhos das relações interculturais que as originaram, dos sentidos e das práticas envoltas em sua fabricação e seleção. Ao estuda-las, deve-se investigar os agentes participantes – produtores, intermediários, financiadores, diretores de museus, políticos etc –, os contextos políticos e sociais do campo, as redes e os sentidos presentes durante a coleta e o registro e exposição dos objetos, assim como as mudanças de significado e status que ocorrem no processo59. Museus e coleções como objetos da história Nas últimas três décadas, estudos acerca das instituições e expedições científicas na Amazônia da segunda metade do século XIX e início do XX têm ganhado destaque face às muitas possibilidades da pesquisa histórica. Desde a década de 1990, o Museu Paraense e seus pesquisadores têm sido cada vez mais analisados em artigos, dissertações e teses por diversos 55 LOUREIRO, Maria Lucia de Niemeyer Matheus; LOUREIRO, José Mauro Matheus. Documento e musealização: entretecendo conceitos. MIDAS. Museus e estudos interdisciplinares, n. 1, 2013,p.7. 56 DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos chave da museologia. Paris: Armand Colin, ICOM. 2013, p. 57. 57 LOUREIRO, Op. Cit., 2007. 58 THOMPSON, Analucia. Coleções Etnográficas e Patrimônio Indígena. In: XXVII Simpósio Nacional de História da ANPUH: Conhecimento histórico e diálogo social. Natal, Brasil, 2013, p. 1 59 Byrne, S; Clarke, A; Harrison, R; Torrence, R. (orgs). Unpacking the Collection. Networks of Material and Social Agency in the Museum. New York, Heidelberg, Dordrecht & London: Springer, p. 3–26, 2011. 26 pesquisadores, com a finalidade de responder a problemas diversos. Destacam-se, primeiramente, os estudos de Lopes60 e Gualtieri,61 que investigam – por meio de abordagens comparativas de museus brasileiros – os modelos institucionais e a recepção das teorias evolucionistas nesses espaços. Sanjad também tem realizado investigações no campo da História da Ciência a respeito da construção institucional, da agenda científica, das relações sociais, da circulação de conhecimentos e das contribuições dos pesquisadores que atuaram no Museu Paraense no final do século XIX e início do XX62. Apontamos, ainda, trabalhos mais recentes que investigaram a produção científica e o acervo do Museu Paraense, como os de Corrêa63 e Machado,64 que investigaram, nessa ordem, a institucionalização e o ensino das Ciências Naturais no Pará a partir da produção científica da instituição. A história da coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi não é um tema novo. As coleções etnográficas e arqueológicas da instituição têm sido estudadas, do ponto de vista histórico, com alguma regularidade, desde os anos 1970. Contudo, mais recentemente ganharam em amplitude e complexidade, sobretudo a partir das análises de Velthem et al.65, Velthem, Pereira e Galucio66, Velthem e Guapindaia67, Benchimol,68 Melo,69 Amorim,70 López-Garcés71 e López-Garcés e Karipuna72. Benchimol,73 por exemplo, visou compreender 60 LOPES, 2009. GUALTIERI, 2008. 62 Nelson Sanjad possui uma grande produção acerca da História da Ciência na Amazônia e sobre o Museu Paraense, destacamos: SANJAD, 2010; _____, 2019; ;____; SILVA, J. B. P. Op. Cit., 2009. 63 CORRÊA, Igor Nazareno da Conceição. A ciência da floresta: a institucionalização das ciências naturais no estado do Pará (1894-1907). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, 2017. 64 MACHADO, Diego Ramon Silva. A “lição de coisas”: o Museu Paraense e o ensino da história natural (1889-1900). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Educação Matemática e Científica, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática, Belém, 2010. 65 VELTHEM et al, 2004. 66 VELTHEM, Lúcia H. van; PEREIRA, Edithe; GALÚCIO, Ana Vilacy. Acervos culturais do Museu Paraense Emílio Goeldi: 150 anos de história e perspectivas futuras. In: GALÚCIO, Ana Vilacy; PRUDENTE, Ana Lucia (org). Museu Goeldi:150 anos de ciência na Amazônia, p. 274-292, 2019. 67 VELTHEM, Lucia Hussak Van; GUAPINDAIA, Vera. Patrimônios entrelaçados: coleções arqueológica e etnográfica. In: VELTHEM, Lucia Hussak Van et al. Reencontros: Emílio Goeldi e o Museu Paraense. Belém: MPEG, 2006. p. 26-37. 68 BENCHIMOL, 2009. 69 MELO, 2017. 70 AMORIM, 2019. 71 GARCÉS, Claudia Leonor Lópes. “Las colecciones etnográficas del alto río Negro en el Museu Paraense Emílio Goeldi: notas históricas y diálogos contemporâneos”. In: KRAUS, Michael; HALBMAYER, Ernst; KUMELS, Ingrid (orgs.), Objetos como testigos del contacto cultural: perspectivas interculturales de la historia y del presente de las poblaciones indígenas del alto río Negro (Brasil/Colombia). Berlim: IberoAmerikanisches Institut, 2018. 72 GARCÉS, Claudia Leonor Lópes; KARIPUNA, Suzana Primo dos Santos. “Curadorias do invisível”: conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi. Museologia & Interdisciplinaridade, v. 10, n. 2021, p. 103. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/35492. Acesso em: 14 jun. 2021. 73 BENCHIMOL, 2009. 61 27 a organização da coleção etnográfica do Museu Goeldi em três momentos da sua história – quando esteve sob a gerência de Nimuendajú, Galvão e Velthem. Em outro trabalho, Benchimol e Guerra74 estudaram a gênese coleção Aparai de Curt Nimuendajú. Por sua vez, Domingues-Lopes75, Velthem76 e Chaves77 analisaram as coleções Xikrín do Cateté, Mebêngôkre-Kayapó e Tukano, respectivamente. Todavia, por conta da sua perspectiva antropológica, López-Garcés, Domingues-Lopes, Velthem e Chaves desvelaram os usos e os significados de objetos etnográficos não só para sociedades do passado, mas para as populações atuais dos povos estudados. Mais próximo do estudo que Melo78 realizou sobre a coleção arqueológica do Museu Paraense, o presente trabalho trata da musealização da coleção etnográfica da instituição entre 1894 e 1905, buscando contribuir, como um todo, para os estudos acerca da etnografia indígena no século XIX e início do XX. O tema é aqui abordado como prática científica composta por diversos sentidos, contextos e significados, distante das teorias totalizantes e longe de ser protagonizada apenas pelo coletor/colecionador. Essa prática está inserida em redes colaborativas e em contextos políticos e sociais distintos, associada a diferentes perspectivas religiosas, filosóficas e científicas. A compreensão das coleções como um empreendimento coletivo segue uma tendência das últimas décadas nos estudos históricos e sociais, no sentido de ressaltar a prática e a sociabilidade como aspectos fundamentais na produção de conhecimento, revisitando a atuação de agentes e redes antes invisíveis ou colocados em segundo plano79. De acordo com Burke80, essa mudança de enfoque se relaciona com o surgimento da Nova História Cultural, 74 GUERRA, Claudia Bucceroni; BENCHIMOL, Alegria. Dois momentos da coleção Aparai no Museu Paraense Emílio Goeldi: Curt Nimuendajú em 1915 e Otto Schulz-Kampfhenkel em 1935-37.Museologia e Patrimônio. vol.10, no2, p.92-116. 2017. 75 DOMINGUES-LOPES, Rita de Cássia. Desvendando significados: contextualizando a Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté. Dissertação de Mestrado em Antropologia/UFPA, Belém, 2002. 76 VELTHEM, Lúcia Hussak. Plumária Tukano: tentativa de análise. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Nova Série, Antropologia. Belém, p. 1-29, fev. 1975. 77 CHAVES, Carlos Eduardo. Nas trilhas de Irã Ãmrãnh: sobre história e cultura material Mebêngôkre. 2012. 176 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2012. 78 MELO, 2017. 79 Alguns estudos recentes que abordam a temática: RAJ, Kapil. Networks of knowledge, or spaces of circulation? The birth of British cartography in colonial south Asia in the late eighteenth century. Global Intellectual History, v. 2, n. 1, p. 49-66, 2017; RAJ, Kapil. Relocating and the Construction of Knowledge in South Asia and Europe, 1650-1900. New York: Palgrave Macmiliam, 2007; ANTUNES, Anderson Pereira. Um naturalista e seus colaboradores na Amazônia: a expedição de Henry Walter Bates ao Brasil (18481859). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde – Fiocruz). Casa de Oswaldo Cruz, 2019; SANTOS, Rita de Cássia Melo. Sobre crânios, idiomas e artefatos indígenas: o colecionismo e a História Natural na viagem de Johann Natterer ao Brasil (1817-1835). Sociedade e Cultura, v. 21, n. 1, 2018; CAMERINI, Jane. Wallace in the field. Osiris, 2nd series, v. 11, Science in the field. p. 44-65, 1996. 80 BURKE, Peter. O que é história cultural? 2ª edição revista e ampliada. Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 28 isto é, a atenção vem se movendo “dos indivíduos heroicos e suas grandes ideias” em direção às “contribuições dos artesãos que fizeram os instrumentos científicos e dos assistentes de laboratório que, na verdade, realizaram os experimentos”81. Nesse sentido, a formação e a musealização das coleções etnográficas não podem ser compreendidas como simples frutos das singulares escolhas estéticas dos coletores ou das demandas das instituições financiadoras. Elas são, de fato, um empreendimento coletivo, desenvolvido em diferentes etapas, em contextos complexos e com a contribuição de diversos sujeitos que interagem em relações assimétricas, muitas vezes tornados invisíveis ou secundarizados nas publicações científicas e na historiografia. Objetivo O objetivo do presente trabalho é estudar o processo de musealização de quatro coleções etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), denominadas Lauro Sodré (1897), Henri Coudreau (1898), Frei Gil de Vilanova (1902) e Theodor Koch-Grünberg (1905). Essas quatro coleções foram escolhidas pela importância que possuem no acervo etnográfico do MPEG e por terem sido adquiridas em um período em que a instituição visava se consolidar no cenário científico internacional, sob a liderança de Emílio Goeldi. Essas coleções, de certa maneira, representam três realidades distintas vivenciadas por viajantes e povos indígenas na Amazônia do final do século XIX e início do XX: as duas primeiras foram formadas por um explorador francês a serviço do governo do Pará; a terceira, por um frade dominicano que criou uma missão religiosa no rio Araguaia com a finalidade de evangelizar os indígenas locais; e a quarta, por um etnólogo alemão a serviço do Königliches Museum für Völkerkunde, o mais importante museu etnográfico da época. Os três coletores estiveram em contato com distintos povos indígenas, em contextos complexos, mas que estão conectados por pessoas, ideias e instituições. O recorte temporal desta pesquisa justifica-se pela importância da gestão de Emílio Goeldi no Museu Paraense, o qual teve relevante papel na reestruturação e no aumento quantitativo da coleção etnográfica da instituição. Ele inicia com a chegada de Goeldi ao museu, em 1894, e finda com a entrada, em 1905, da última grande coleção adquirida em sua gestão, a de Theodor Koch-Grünberg. Goeldi participou diretamente da aquisição das três coleções, seja solicitando a intervenção de Lauro Sodré junto a Henri Coudreau, seja 81 BURKE, 2008, p. 81-82. 29 angariando e negociando recursos financeiros para a compra das grandes coleções de Frei Gil de Vilanova e de Koch-Grünberg, ambas com mais de 500 peças. Metodologia Marc Bloch82, no livro Apologia da História, foi conclusivo ao escrever que “em contraste com o conhecimento do presente, o do passado seria necessariamente indireto”. O historiador investiga o passado por meio de testemunhas e vestígios, entendidos como fontes históricas. As fontes consistem não apenas de documentos oficiais ou escritos. O próprio Bloch dilatou as possibilidades metodológicas da pesquisa histórica quando afirmou: “tudo o que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele”83. À medida em que ocorreram novas propostas teóricas e metodologias no campo historiográfico, houve igualmente o alargamento dos tipos de fontes a serem utilizados. No entanto, os documentos históricos não falam e não respondem problemas por si mesmos, assim como não são testemunhos integrais e puros dos eventos tais como aconteceram; são, de fato, representações dos eventos históricos. É ofício do historiador se deslocar aos arquivos com suas questões e problemas e desenvolver o conhecimento histórico através da interpretação e da crítica documental84. É o que este trabalho pretende fazer a partir de uma pesquisa qualitativa de caráter documental e bibliográfico. Em razão das questões levantadas a respeito da musealização das coleções etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e do recorte temporal, na presente dissertação são usadas, principalmente, fontes históricas produzidas no final do século XIX e início do XX, como o Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia; cartas dos diretores e colaboradores do MPEG; jornais; relatórios e ofícios governamentais; livros de viagem, como os de Henri Coudreau e Theodor Koch-Grünberg; biografias, como a de Frei Gil de Vilanova, escrita por Gallais;85 artigos publicados em revistas científicas estrangeiras; e os inventários da coleção etnográfica da referida instituição. As coleções também foram pensadas como fontes históricas, analisando e comparando as diferentes formas de coleta, as suas estruturas e a diversidade de artefatos que as compõem86. 82 BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 69. 83 Ibid., p.79 84 REIS, José Carlos. O lugar da teoria-metodologia na cultura histórica. Revista de Teoria da História, ano 3, n. 6, dez/2011, pp. 4-26. 85 GALLAIS, Estevão. O Apóstolo do Araguaia: Frei Gil missionário dominicano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1942. 86 Em razão do fechamento do Arquivo Guilherme de La Penha e da Reserva Técnica Curt Nimuendajú para consulta local de fevereiro de 2020 até o presente momento, junho de 2021, não foi possível realizar uma pesquisa empírica das coleções Frei Gil de Vilanova e Theodor Koch-Grünberg como intencionávamos, bem como ao Livro de Tombo da Coleção Etnográfica. 30 As fontes acima destacadas foram utilizadas a partir da crítica documental e do cruzamento com a bibliografia pertinente. Nesse trabalho, compreendo que os documentos históricos são também monumentos. Como afirmou Le Goff87, todo documento, enquanto evidência de uma realidade, é um monumento, visto que há uma intenção de perpetuação – voluntária ou não – de uma memória coletiva. Nessa perspectiva, compreendo que as fontes utilizadas na pesquisa, enquanto documentos e monumentos, resultam da ação das sociedades humanas para resguardar e impor ao futuro, de forma consciente ou não, as imagens de si mesmas. Estrutura da dissertação A presente dissertação desenvolveu-se em três capítulos, cada um tratando de uma coleção. No primeiro capítulo, intitulado “Henri Coudreau: um coletor ocasional a serviço do Estado do Pará”, foi analisado o processo de formação e musealização das coleções etnográficas formadas por Henri Coudreau, viajante francês, durante as expedições a serviço do Estado do Pará aos rios Xingu e Tapajós, entre 1895 e 1896, e que foram doadas mais tarde ao Museu Paraense. Coudreau pertencia a uma geração de viajantes que transitaram pela Amazônia no século XIX financiados pela elite e pelos governos locais. Objetiva-se no capítulo compreender como a trajetória do coletor, sua participação em redes colaborativas, a agência indígena e a interação dos agentes nos espaços sociais de contato concorreram para a formação, aquisição e catalogação das coleções denominadas “Lauro Sodré” (1897) e “Henri Coudreau” (1898) pelo MPEG. O segundo capítulo, denominado “A coleção Theodor Koch-Grünberg (1905): um Völkerkunder na Amazônia”, investiga a coleção formada pelo etnólogo alemão para o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). No primeiro momento, aborda-se de forma sintética o contexto etnológico e museológico alemão no final do século XIX e a trajetória, as concepções e a produção científica de Koch-Grünberg. No segundo momento, tenciona-se investigar a formação e musealização da coleção para além do protagonismo do etnólogo, mas trazendo à luz os processos de negociação, as redes de colaboradores e a circulação de objetos entre as populações ameríndias no Alto Rio Negro. O último capítulo, intitulado “A Coleção Frei Gil de Vilanova: colecionismo e catequese no início do século XX”, investiga a musealização de uma coleção formada por um coletor não ligado aos museus ou à ciência, como os anteriores, e em circunstâncias também 87 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 547. 31 distantes. A coleção foi formada por um frade dominicano junto aos indígenas Irã Ãmranh com o objetivo de vendê-la, visando à manutenção da catequização em Conceição do Araguaia no início do século XX. Em razão disso, investigaremos a interação da esfera religiosa, da política indigenista e do contexto econômico do Pará no período, assim como da cultura Mebêngôkre-Kayapó e do colecionismo etnográfico vigente. A catalogação e o inventário da coleção também são estudados. 32 Capítulo 1 – Henri Coudreau: um coletor ocasional a serviço do Estado do Pará Este capítulo abordará a musealização das coleções etnográficas formadas por Henri Coudreau durante suas viagens a serviço do estado do Pará aos rios Xingu e Tapajós entre 1895 e 1896. As duas coleções foram doadas ao Museu Paraense de História Natural e Etnografia durante a gestão de Emílio Goeldi (1894-1907) e atualmente são denominadas coleções Lauro Sodré (1897) e Henri Coudreau (1898). O capítulo está dividido em quatro tópicos. O primeiro objetiva apresentar brevemente a trajetória de Coudreau pelas Guianas e pelo Pará, o envolvimento dele com o Contestado Franco-Brasileiro e aspectos das suas expedições e produção científica. O segundo tópico abordará como as coleções de Coudreau foram formadas, a participação das redes de colaboradores na aquisição dos objetos e também quais os itens que as compõem atualmente. O terceiro tópico visa tratar do processo de aquisição e catalogação, pelo Museu Paraense, das coleções formadas pelo viajante francês. O quarto tópico analisará as coleções para além do protagonismo concentrado no coletor, ressaltando a agência indígena e a interação de outros atores no processo de seleção e rejeição dos objetos. 1.1 As expedições de Henri Coudreau: das Guianas ao Pará Os relatos de Henri Coudreau tornaram o viajante francês conhecido nacional e internacionalmente. Coudreau foi um homem preocupado com o trabalho em campo, executando o papel do explorador-viajante e divulgador dos povos e da natureza amazônicos. Esteve por quase vinte anos expedicionando pelos rios e pelas terras da região, entrando em contato com quilombolas, ribeirinhos, coronéis, seringueiros e índios, merecedores de páginas importantes de suas obras. Como afirmou seu biógrafo, Sebastian Benoit88, a vontade de viajar pelo mundo acompanhou Coudreau desde muito cedo. Nascido em 6 de maio de 1859, em Sonnac, região de Charentes-Maritimes, tentou por inúmeras vezes uma vaga para alguma expedição científica, inclusive na Missão de Paul Flatters89, desejo que só pode executar após ser aceito 88 BENOIT, Sébastien. Henri Anatole Coudreau (1859-1899): dernier explorateur français en Amazonie. Paris: L’Harmattan, 2000. 89 Em 1879, o governo francês iniciou o projeto que ligaria a Argélia ao Sudão Francês, atual Mali. O tenentecoronel Paul Flatters conduziu duas missões entre 1880 e 1881. As duas expedições fracassaram após sucessivos ataques da sociedade Kel Tamacheque. Flatters foi morto e, dos 97 membros da missão, apenas dez chegaram vivos (e nenhum deles era francês). Para saber mais, ver: ADNANE, Mahfouz Ag. Pulular sob o rolo 33 para lecionar História e Geografia no Lycée de Cayenne, atual “Collége Eugène Nonnon”, em 1881, aos 21 anos. A formação de Coudreau deu-se na École Normale Spéciale de Cluny, na França. Contudo, o cargo de professor era só um meio para atingir seus objetivos maiores, como ele mesmo narrou: “no dia em que entrei na Escola Normal Especial, eu discorri longamente ao diretor que o meu destino não apontava à educação. Ensinar é nada mais que um meio para mim. O objetivo vislumbrado são as missões científicas. E isto se passou em novembro de 1877!”90. Entre 1883 e 1885, autorizado pelo subsecretário de Estado para as colônias, realizou a sua primeira missão científica, que deveria se deter na região do Contestado FrancoBrasileiro, entre os rios Oiapoque e Araguari, mas que, por sua indisciplina, se estendeu a Macapá e ao rio Amazonas até o rio Uaupés, na fronteira com a Colômbia. De 1887 até 1889, duas missões encomendadas pelo Ministério de Instrução Pública possibilitaram que Coudreau explorasse as nascentes dos rios Maroni e Oiapoque. Em 1888, chegou ao Tumucumaque, região aurífera considerada o éden guianense, conhecida até então apenas pelas descrições de Walter Raleigh e Jules Nicolas Crevaux91. Outras expedições foram realizadas, ainda patrocinadas pelo governo francês, pelos rios Branco e alto Trombetas. Essas excursões resultaram todas na publicação de livros, artigos e mapas, que foram difundidos no meio político e científicos europeus. Coudreau pertenceu a uma geração de viajantes exploradores franceses que, a partir do século XIX, adentrou o território amazônico, financiada pelo governo daquele país, pelas elites locais ou ainda por instituições científicas, com os mais diversos objetivos, como a demarcação de fronteiras, a identificação e o estudo de aspectos geográficos, zoológicos, botânicos, mineralógicos e da população da região, principalmente a indígena. Não havia formação acadêmica para se tornar um explorador, logo, era um trabalho que se aprendia na prática e que se vinculava a múltiplos interesses, não estando, necessariamente, ligado a uma área científica92. Além de serem movidos pela curiosidade e compressor: sobre a resistência Kel Tamacheque à agressão colonial francesa (1881-1919). Anos 90, v. 26, p. 117, 2019. 90 COUDREAU, Henri Anatole. La France Équinoxiale: Voyages à travers les Guyanes et l’Amazonie. Paris: Challamed Ainé Ed., 1887, p. 7. No original: “Le jour de mon entrée à l’École Normale Spéciale, j’expose longuement au directeur que je ne me destine point à l’enseignement. Le professorat n’est pour moi qu’um moyen. Le but entrevu, ce sont les missions scientifiques. Et cela se passait em novembre 1877!”. 91 SOUZA FILHO, Durval de. Os retratos dos Coudreau: índios e miscigenação através das lentes de um casal de visionários que percorreu a Amazônia em busca do “Bom Selvagem” (1884-1899). 2008. 219 f. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Pará, Belém, 2008. 92 FERRETTI, Federico. Tropicality, the unruly Atlantic and social utopias: the French explorer Henri Coudreau (1859− 1899). Singapore Journal of Tropical Geography, v. 38, n. 3, p. 332-349, 2017b. 34 pelo desejo de aventura, esses profissionais deviam observar e narrar a natureza e as populações das regiões percorridas, ter noções de botânica, etnologia, geografia e meteorologia. A generalidade do trabalho dos viajantes e a rapidez com que elaboravam seus relatórios e suas publicações geravam, com frequência, distorções nas informações veiculadas e representações preconceituosas acerca das populações nativas93. Esses atores estavam inseridos em contextos de circulação de informação e cultura impressa, de práticas colonialistas e de relações assimétricas com as populações locais94. É evidente que o racismo e etnocentrismo podem ser, e muitas vezes o são, encontrados nas práticas e nas páginas dos exploradores, mas há elementos distintos e complexos que marcam a originalidade de cada um deles: a visão de mundo peculiar de cada autor e as relações complexas vivenciadas com os povos indígenas e a rede local nas expedições. Em recente artigo, Ferretti contrariou as visões estabelecidas sobre Coudreau, como um exemplo de explorador dos grandes impérios, enxergando também no trabalho do viajante francês um exemplo da complexidade e diversidade do campo intelectual naquele período, por conta de suas ideias inovadoras e utópicas sobre uma Amazônia independente do controle das nações então existentes, incluindo o Brasil, com comunidades locais livres e fortalecidas95. Segundo Ferretti, a experiência com os povos ameríndios e a relação com o anarquismo anti-colonialista de Elisée Reclus distanciaram o pensamento de Coudreau de outros viajantes franceses: Meu principal argumento é que Coudreau, quando começou suas explorações aos vinte e três anos de idade, estava imerso em todo tipo de eurocentrismo, etnocentrismo e estereótipos racistas, e que ele perdeu gradualmente a maioria deles, em virtude de duas experiências importantes, a saber, sua estadia por anos entre as comunidades ameríndias na floresta tropical (compartilhando sua comida, nudez e costumes sociais), e seu contato, durante suas curtas estadias na Europa, com anarquistas anticolonialistas como Elisée Reclus (1830-1905), o geógrafo francês e protagonista do questionamento radical do colonialismo, racismo e eurocentrismo da Era dos Impérios96. 93 FRANCO, Stella Maris Scatena. Relatos de viagem: reflexões sobre seu uso como fonte documental. Cadernos de Seminários de Pesquisa, v. 2, p. 62-86, 2011; KURY, Lorelai; SÁ, Magali Romero; LIMA, Nísia Trindade. A ciência dos viajantes: natureza, populações e saúde em 500 anos de interpretações do Brasil. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 2000. 94 DRIVER, Felix. Imagining the tropics: views and visions of the tropical world. Singapore Journal of Tropical Geography, v. 25, n. 1, p. 1-17, 2004. 95 FERRETTI, Op. Cit. 2017, p.333 (Tradução Nossa). No original: “My main argument is that Coudreau, when he began his explorations at the age of twenty-three, was immersed in all kinds of eurocentric, ethnocentric and racist stereotypes, and that he gradually lost most of them thanks to two main experiences, i.e., his living for years among Amerindian communities in the tropical forest (sharing their food, nakedness and social customs), and his acquaintance, during his shorts stays in Europe, with anarchist anti-colonialists like Elisée Reclus (18301905), the French geographer and protagonist of a radical questioning of colonialism, racism and Eurocentrism in the Age of Empire”. 96 Ibid. 35 Embasado principalmente nos textos produzidos por Coudreau entre 1883 e 1895, a partir de suas experiências patrocinadas pelo governo francês, Ferretti sustenta que o explorador foi um agente complexo e inovador, por vezes distante das concepções de outros viajantes franceses contemporâneos a ele, mas apresentando ainda traços do colonialismo e racialismo vigentes. Vivendo os prazeres e as dificuldades de expedicionar na Amazônia na segunda metade do século XIX e entrando em contato com anarquistas como Elisée Reclus, Coudreau, progressivamente, abandonou certos pressupostos eurocêntricos e racistas, e passou a questionar os ideais positivistas de civilização e progresso97. Ferretti demonstra, ainda, por meio do estudo de caso de Coudreau, a diversidade do pensamento social entre viajantes no século XIX, a influência das experiências vividas além das fronteiras coloniais e da agência indígena, sem deixar de tratar das contradições entre a viagem em si e a produção textual. O viajante francês foi um entusiasta das noções de liberdade e igualdade entre os indígenas, apoiador da República de viés anarquista de Cunani e um incentivador da miscigenação entre brancos e índios. A interpretação de Ferreti é importante, mas faço ressalvas às supostas “ideias inovadoras” a partir da própria obra de Coudreau. Compreendo que o pensamento de Coudreau é complexo e que não se deve colocar esse viajante na mesma categoria de geógrafos anarquistas como Reclus, uma vez que não se afastou totalmente das amarras ideológicas e políticas de seu tempo. Coudreau foi um viajante que serviu a estados nacionais e se relacionou com pessoas de diversas classes sociais, apesar do seu evidente apreço pelos indígenas. O trabalho de explorador, além das capacidades intelectuais, dependia da boa relação com as autoridades e também das redes de contato com as comunidades locais, capazes de fornecer suprimentos e conhecimentos sobre os lugares percorridos98. Nesse sentido, a experiência de campo permitiu ao viajante francês criticar os estatutos da civilização e as relações capitalistas que adentravam o sertão amazônico e exploravam o trabalho indígena, como também o tornou mais habilidoso no trato com as relações de poder. É possível perceber que as ideias libertárias de Coudreau – próximas, mas não completamente inseridas no campo anarquista – foram modificadas pelas suas experiências de campo, pelo contato com os indígenas e pelas polêmicas em que se envolveu e que o fizeram, 97 FERRETTI, 2017. ANTUNES, Anderson Pereira. Um naturalista e seus colaboradores na Amazônia: a expedição de Henry Walter Bates ao Brasil (1848-1859). Tese (Doutorado em História das ciências e da saúde – Fiocruz). Casa de Oswaldo Cruz, 2019. 98 36 anos mais a frente, abandonar as missões francesas e passar a trabalhar para o governo do Estado do Pará. O radicalismo de suas ideias e as críticas duras ao positivismo explicitados no livro La France Équinoxiale, publicado entre 1886 e 1887, foram amenizados no trabalho subsequente no Brasil. Por exemplo, a rejeição aos positivistas – chamados de “fanáticos da muito debatida doutrina do progresso infinito”99 – por vezes desaparece ou ganha tons suaves a partir do acordo que Coudreau firmou com o governador do estado do Pará, Lauro Sodré, um entusiasta das ideias evolucionistas e positivistas. Esse acordo previa uma série de expedições a serem realizadas no território paraense, o que se efetivou entre 1895 e 1899. Nesses anos, a rejeição de Coudreau às noções de “civilização”, destacada por Ferretti, não teve o mesmo entusiasmo e não foi tão explícita, pois o viajante dependia do apoio de comerciantes, proprietários de terra e agricultores, hospedando-se em suas residências. Muitos ganharam notas de agradecimento nas páginas dos livros de Coudreau. Faziam parte da rede local que permitia arregimentar indígenas e ribeirinhos para as expedições, que emprestava embarcações e que fornecia hospedagem e suprimentos para a comitiva. Além disso, as obras publicadas pelo viajante possuíam a evidente finalidade de divulgar o estado do Pará no exterior. Dessa forma, uma imagem do estado como um lugar de exploração e massacre das populações nativas não era adequada aos patrocinadores das expedições. Apesar disso, encontram-se, nos textos de Coudreau originados das expedições paraenses, traços de seus antigos ideais. Por exemplo, ao percorrer o rio Xingu, ele se deparou com a penúria e a precariedade das condições de vida dos povos indígenas da região. Na visão dele, os responsáveis por essa situação eram os comerciantes que se embrenhavam pela floresta, retirando os indígenas da sua harmonia com a natureza e os colocando na lógica capitalista desigual, o que conduzia as populações locais a uma situação miserável100: “O baneane101 e o mascate se assentam nas covas funerárias dos índios recentemente mortos, mortos para ou por eles. E eles estão rindo”. Em outro momento, comentando sobre a situação de Joaquim Pena e sua família, índios Yudjá/Juruna também do Xingu, Coudreau refletiu acerca da ilusão de que o comércio 99 COUDREAU, Henri Anatole.La France Équinoxiale: Voyages à travers les Guyanes et l’Amazonie. Paris: Challamed Ainé Ed., 1887, p. 365. 100 COUDREAU, Henri. Voyage au Xingu: 30 mai 1896, 26 octobre 1896. Paris: Lahure, 1897c, p. 87. No original: “Le Banian, le Mascate s'asseyent sur les trous funéraires de Indiens récemment morts, morts pour ou par eux. Ils ricanent”. 101 Termo utilizado para designar um comerciante indiano, do sânscrito vaig-jana (homem de negócios). "baneane", in: <https://dicionario.priberam.org/baneane>. Acesso em: 22 jan. 2020. 37 era benéfico para a população indígena, como uma forma de civilizá-los, e ironizou: “Qual é o filósofo que declara que o comércio suaviza e controla a moral? Porque não o tráfico de escravos!”102. Apesar de ter falecido com apenas quarenta anos, a produção intelectual de Coudreau foi volumosa, mas pode ser dividida em duas partes, marcadas pelos trabalhos que executou para dois países que então viviam uma crise diplomática, o Brasil e a França103. Os livros La France Équinoxiale (três volumes), Voyage au Rio Branco, Les Français en Amazonie, Dialectes indien de la Guyane e Chez nos indiens fazem parte dos escritos produzidos em Caiena, a partir das já citadas expedições sob o patrocínio e os interesses do governo francês. Todos possuem as marcas de um olhar colonialista francês acerca da região amazônica. La France Équinoxial é uma das obras mais conhecidas de Coudreau pelas informações compiladas nos três volumes, pelo incidente diplomático envolto na sua produção (a suposta República do Cunani) e pelo apelo nacionalista francês e colonialista acerca da questão do Contestado Franco-Brasileiro. O livro foi fruto, segundo o autor, de quatro anos de estudos, entre 1881 e 1885, “como funcionário e missionário científico na Guiana francesa e na Amazônia; - estudos feitos tanto nas bibliotecas, às vezes com os colonos, às vezes no meio dos selvagens”104. Na referida obra, Coudreau reporta as riquezas naturais da Guiana Francesa, a biodiversidade, comenta sobre a migração europeia no território, sobre o histórico da disputa com o Brasil, defendendo uma posição favorável à França, como assinalou na introdução: “Eu sou grande partidário da expansão francesa. Talvez os fatos que relato pareçam ir contra minhas teorias. Sou, no entanto, um colonial convicto”105. 102 Coudreau, 1897c, p. 82 (tradução nossa). No original: “Quel est done le philosophe qui prétend que c’est le commerce qui adouci et policé les moeurs? Pourquoi pas la traite des nègres!” 103 O Contestado Franco-Brasileiro também é conhecido como Questão do Amapá. Foi uma disputa entre a França e o Brasil pelo território que se estende entre os rios Oiapoque e Araguari, no norte do atual Amapá, antes parte do estado do Pará. As disputas sobre a fronteira que dividiria os dois países iniciaram ainda no século XVII e se estenderam por mais de duzentos anos. O estopim da questão foi o conflito ocorrido no dia 15 de maio de 1895 na vila de Amapá, situada próximo à foz do rio Amapá Grande, no litoral norte da Guiana Brasileira, entre franceses e os habitantes locais, resultando em sequências de atos violentos, entre os quais assassinatos e o incêndio de casas. A questão envolveu políticos, diplomatas e cientistas – do lado francês, Henri Coudreau e Paul Vidal de La Blache; do lado brasileiro, Emílio Goeldi, Jacques Huber e outros. A questão foi resolvida em 1900 por um árbitro estrangeiro, o presidente da Suíça, que decidiu a favor do Brasil. In: SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Brasília: Instituto Brasileiro de Museus; Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2010. 104 COUDREAU, Op. Cit., 1886, p. 15 (tradução nossa). No original: “comme fonctionnaire et comme missionaire scientifique dans la Guyane française et dans l’Amazonie; - études faites tantòt dans les bibliothèques, tantôt auprès des colon, tantôt au milieu des sauvages” 105 Idem (tradução nossa). No original. “Je suis grand partisan de l’expansion française. Peut-être les faits que je relate paraîtront-ils aller à l’encontre de mês théories. Je n’en demeure pas moins un colonial convaincu”. 38 Como já dito, Coudreau foi contratado pelo governo francês para fazer um estudo da região do Contestado e o resultado deste trabalho é um capítulo destinado à questão, uma compilação de dados que visavam comprovar o direito da nação europeia sobre a região e a necessidade de uma política colonial mais efetiva por parte dela. Para justificar os direitos da França sobre o território, o viajante recorreu à história diplomática do Contestado e à identidade dos moradores. Coudreau tentou utilizar dados e argumentos sérios para dar credibilidade às suas colocações acerca do direito francês sobre o território contestado. Seu objetivo era popularizar a disputa entre os dois países – que poderia ter uma solução pacífica que fortaleceria a amizade de ambas as nações – e o próprio território, considerado “a parte mais bela e mais útil das nossas possessões americanas”106. Recorrendo ao histórico diplomático, afirmou que a região entre o Orenoco e o Amazonas havia sido inicialmente ocupada pela França no século XVI, mas o descuido do governo francês em proteger o território fez com que fosse dividido com outros países europeus. O viajante alegou que o Tratado de Utrecht, de 1713, não solucionou o problema dos limites, pois os soberanos francês e português aceitaram como fronteira o rio “Japoc ou Vicente Pinçon”, sem indicação de longitude e latitude e que nunca foi localizado com precisão nos mapas. Após anos de abandono, os portugueses voltaram a sua atenção ao território das Guianas após a emancipação dos escravizados, em 1792, pois se sentiram ameaçados pela revolta decorrente da Revolução Francesa. Segundo Coudreau, os lusos avançaram no território contestado, destruindo as fortificações e missões indígenas francesas que teriam existido no atual estado do Amapá107. A história diplomática exposta no capítulo dedicado ao Contestado foi oposta à defendida pelo diplomata e professor do colégio Pedro II, Joaquim Caetano da Silva, no livro L’Oyapoc et l’Amazone, question brésilienne et française, publicado em 1861. Essa obra defendia, e por isso inspirou a diplomacia brasileira, que o Tratado de Utrecht deveria ser a base jurídica inicial da disputa, haja vista que o mesmo era o mais antigo pacto entre os dois países108. O segundo ponto de destaque na obra é a afirmação de Coudreau de que os habitantes da região do contestado não se identificavam como brasileiros ou franceses. Segundo Coudreau, “as populações desse território vivem hoje em estado anárquico, fora das 106 COUDREAU, 1886, p. 217. No original: “la partie la plus belle, la plus utile de nos possession américaines”. Ibid. 108 SANJAD, 2010. 107 39 influências francesas e brasileiras”109, apesar de possuírem uma preferência pelos franceses, pois haviam sido oprimidos e escravizados pelos brasileiros. O envio da “missão científica” ao contestado e as declarações do jovem Coudreau na região, que invocavam os habitantes locais a aderirem à causa francesa, geraram um incidente diplomático entre as duas nações soberanas. Ele chegou até mesmo a recolher em algumas aldeias um abaixo-assinado pedindo a anexação da região à França110. Em 1883, o ministro brasileiro Marcos Antônio de Araújo, o barão de Itajubá, acusou formalmente Coudreau de ser um agente infiltrado no território contestado em longa carta de protesto: Ele chamou a atenção, não apenas por causa das atividades a que se dedicou durante a sua viagem, mas também pelas informações que dava sobre a sua missão [...] pelas suas maquinações no território de Amapá declarando aos habitantes desta região que fariam bem em aderir à causa francesa [...] e assegurando que Oiapoque e Conani [sic] pertenciam a partir desse momento à Guiana francesa111. O protesto do governo brasileiro a respeito do caráter da missão do viajante ao contestado, como parte do projeto francês de anexar a região, foi amplamente divulgado na imprensa, principalmente a paraense. Alguns jornais locais, como o Diário de Notícias, consideravam Coudreau um espião112. Três anos após os protestos do barão de Itajubá, Coudreau, em La France Equinoxiale, afirmou que lidava com reservas com a questão da disputa franco-brasileira e que pagava ainda o preço pelo seu envolvimento enquanto um patriota: Sabe-se o quão intimamente estive envolvido nas últimas circunstâncias diplomáticas que ele [Contestado franco-brasileiro] deu origem e o quanto trabalhei para este fim. A questão, mesmo que seja secundária, não deixa de ser interessante, e o papel que me fiz desempenhar recentemente poderá levar a crer que eu forço intencionalmente estes resultados. Contudo, tenho demasiado patriotismo para fazer outra coisa que não seja uma apresentação puramente científica e desinteressada dos factos, que são suficientemente interessantes em si mesmos, e suficientemente sérios113. 109 COUDREAU, 1886, p.217 (tradução nossa). No original: “les populations de cette contrée vivent aujourd’hui dans um état anarchique, em dehors des influences française et brésilienne”. 110 SOUZA FILHO, 2008. 111 Carta do barão de Itajuba, agente diplomático do Brasil em Paris ao ministro dos Negócios estrangeiros, 24 de dezembro de 1883, apud PUYO, Jean-Yves. Henri Coudreau e a questão do contestado franco-brasileiro – a exploração de 1883-1884. In: JOBIM, José Luíz et al (orgs.). Diálogos França-Brasil : circulações, representações, imaginários. Rio de Janeiro: Makunaima, 2019, pp. 55-56. 112 Diário de Notícias, Belém, 9 de maio de 1884, p. 2. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional –Rio de Janeiro- Brasil. 113 Coudreau, 1886, p.216 (tradução nossa). No original: “On sait combien intimement j’ai été mélé aux derniers événemets diplomatiques auxquels elle a donné lieu, et combien j’ai payé pour la connaitre. La question, pour étre secondaire, ne cesse pas d’étre brûlante, et le rôle qu’elle m’a fait jouer, récemment pourrait faire croire que je force intentionellement la note. Cependant j’ai trop de patriotisme pour faire autre chose qu’un exposé purement scientifique et désintéressé des faits, d’ailleurs assez intéressants em eux-mémes, et assez graves”. 40 A afirmação de Coudreau acerca das preferências dos habitantes do contestado pelos franceses foi posteriormente questionada por Emilio Goeldi. De acordo com Sanjad, em 1895, após o incidente que resultou em mortes no território disputado, o diretor do Museu Paraense foi enviado para “checar a veracidade das informações divulgadas por Coudreau e sustentadas por Reclus sobre o Cunani; e proceder a um inventário científico da região, à maneira como o explorador francês havia feito doze anos antes”114. Em relatório para o ministro de Relações Exteriores, Carlos de Carvalho, de 21 de novembro de 1895, Emílio Goeldi assinalou: O território contestado é – folgo poder afirmar do modo o mais positivo – habitado na sua maior superfície por brazileiros [...]. A língua usada é o portuguêz; o modo de vida, os costumes, a educação – tudo é tal qual como no Pará, porque quase todos são Paraenses. Nas ditas localidades ha, quando muito, um total de meia dúzia de estrangeiros, sendo talvez uns três somente crioulos de Cayenna.115 As palavras de Goeldi deixavam claro que os moradores do território contestado eram de origem brasileira e mais, que almejavam pertencer ao Brasil, rompendo com a tese francesa, forjada por Coudreau, de que os habitantes falavam francês e queriam pertencer à França. Nesse sentido, de acordo com Goeldi, os escritos de Coudreau não eram verídicos: “o que o Senhor Henri Coudreau escreveu acerca das sympathias para a França é grossa mentira; a gente de Counany ficou indignada quando li os respectivos trechos do livro de Coudreau!”116. Em outro documento, Goeldi novamente reforçou que a nacionalidade dos moradores do território contestado era “brasileira” e questionou a credibilidade de Coudreau como um homem da ciência, afirmando ser ele “um agente político, asserção que posso affirmar hoje com innumeras provas coligidas no proprio contestado”117. O diretor do Museu Paraense afirmou que, a partir das suas excursões a campo, obteve valorosos resultados científicos, que colocavam à prova o trabalho cartográfico de Coudreau. Segundo Goeldi, havia nesse trabalho “numerosissimos erros nos mapas actualmente existentes; assim, por exemplo, são muito defeituosas e levianas as cartas contidas na obra de 114 SANJAD, 2010, p. 307. GOELDI, Emílio. Cópia de um ofício reservado enviado por Emílio A. Goeldi ao Ministro Carlos de Carvalho, relantando a situação dos territórios contestado entre o Brasil e Guiana Francesa doc. 8, 21 de novembro de 1895. In: GOMES, Flávio dos Santos; QUEIROS, Jonas Marçal de; COELHO, Mauro Cezar (Orgs.). Relatos de Fronteiras: Fontes para a História da Amazônia séculos XVIII E XIX. Belém: Editora Universitária, 1999, p.97. 116 Ibid. 117 GOELDI, Emílio. Exposição sumária da viagem realizada ao Territorio contestado Franco-Brazileiro pelo Muzeu Paraense de Historia Natural e Etnographia, Doc. 14, 7 de outubro a 14 de novembro de 1895. In: GOMES, Flávio dos Santos; QUEIROS, Jonas Marçal de; COELHO, Mauro Cezar, Op. Cit., 1999, p. 100. 115 41 H. Coudreau”118. No entanto, Francinete Cardoso ressalta que a exposição do suíço também estava repleta de subjetividade, pois o diretor do Museu Paraense “já parte para o Contestado com uma visão pré-concebida e, ao entrar em contato com os sujeitos históricos do Cunani, confirma o que ele queria: são brasileiros de natureza e de coração”119. As críticas de Goeldi, mesmo comprometidas também com demandas políticas, revelam um processo em curso em fins do século XIX e a compreensão da obra e do lugar social de Coudreau para os contemporâneos. Como aponta o estudo de Sá120, em fins do século XIX, ocorreu um processo de profissionalização e especialização das ciências em detrimento da cultura intelectual generalista e bacharelesca. O estudo da realidade passou a exigir trabalho de campo, desenvolvimento de métodos práticos e experimentais, observação empírica, estudo em laboratório e uma padronização mais específica da linguagem das ciências. Como Ferretti121 apontou, Coudreau não estava realmente interessado numa pesquisa cuidadosa, na exatidão do método científico, era primordialmente um explorador, um homem de campo. Nos livros de viagem que escreveu – com uma linguagem mais próxima da literatura do que da ciência, “resultante de uma simplicidade máxima reduzida a signos fixos e impessoais”122 –, combinava sua própria experiência in loco com suposições e dados coligidos, de forma não rigorosa, entre povos indígenas, missionários, seringalistas, moradores locais, proprietários de terra e comerciantes. Emílio Goeldi, certamente, ao criticar Henri Coudreau, não apenas censurou os erros geográficos e as imprecisões, mas pontuou a existência de duas éticas de trabalho. Coudreau, nessa concepção, pertencia a uma tradição generalista, não especializada e sem o rigor metodológico das ciências emergentes do século, comprometida com ideais estéticos e políticos. No outro lado, o grupo dos cientistas/homens da ciência, mais especializados, com mais alto grau de escolaridade, com domínio da “técnica” e da escrita rigorosa e objetiva da ciência. Esses últimos exaltavam-se não poucas vezes como “modernos” e “autoridades” em detrimento das outras tradições. Evidentemente, a filiação a esses grupos não pode ser tida de forma tão ferrenha e fixa, sendo muito mais fruto de uma exaltação de autoimagem e de discursos performativos 118 Ibid., p. 101. CARDOSO, Francinete do Socorro Santos. “O poder das autoridades e representações sobre o contestado franco-brasileiro”. In: COELHO, Mauro et al. (Orgs). Meandros da história: trabalho e poder no Pará e Maranhão – séculos VXIII e XIX. Belém: UNAMAZ, 2005, p. 303. 120 SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (18951935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. 121 FERRETTI, 2017. 122 SÁ, Op. Cit., p. 128. 119 42 do que de um enquadramento objetivo123. Existia, de fato, um trânsito de intelectuais de um grupo a outro, por diversas circunstâncias, e também as mesmas notas críticas poderiam desaparecer nas análises da produção de conhecimento de outros personagens. No entanto, essa divisão imposta pelos próprios atores esclarece a razão das críticas feitas não apenas por Goeldi, mas também por outros autores, como Arthur Vianna, ao trabalho do viajante. De volta aos escritos de Coudreau, destacam-se alguns projetos para a expansão francesa na região amazônica, como a utilização da mão-de-obra local para empreendimentos agrícolas coloniais e a implantação de uma grande penitenciária para os criminosos franceses, o que garantiria a exploração do território mediante trabalho forçado. Essa ideia foi difundida também em outros trabalhos – como La France Equinoxiale – e em palestras, como a proferida em 30 de novembro de 1885 na Sociedade de Geografia Comercial de Bordeaux, publicada no Boletim da Sociedade Geographica do Rio de Janeiro. Na comunicação, o autor tratou sobre “os territorios contestados entre a França e o Brasil e o do Valle do Amazonas, os quaes percorreu em todos os sentidos em differentes viagens de exploração, que fez, commissionado por Mr. Chessé, governador da Guyana Francesa”124. O viajante alegou que o acréscimo de território para a França seria importante para colocar em prática a lei francesa sobre os criminosos reincidentes transportados para a Guiana. Para Coudreau, se eles fossem enviados para a região do contestado, encontrariam um clima sadio e terras propícias à agricultura, e seriam ótimas ferramentas para a colonização. Além do mais, as riquezas da flora faziam da Amazônia, segundo Coudreau, um local ótimo para a realização de atividades econômicas lucrativas. Coudreau, durante longo tempo, foi defensor de uma política colonialista francesa na região. O envolvimento com o contestado franco-brasileiro tornou notório o trabalho do explorador francês, que passou a ser elogiado pelo levantamento cartográfico e pela descrição geográfica da Amazônia, como também criticado por cientistas e intelectuais, brasileiros e estrangeiros, que se envolveram na disputa internacional pelo território contestado. A aproximação de Coudreau com o Brasil, especialmente com o governo do estado do Pará, iniciou em 1895, quando abandonou definitivamente as missões francesas e passou a dar entrevistas em periódicos paraenses e cariocas com a finalidade de desvincular a sua imagem de defensor da causa francesa no território contestado e se identificar cada vez mais como um “colono brasileiro”. Em uma entrevista publicada no Jornal do Brasil em 14 de abril de 123 SÁ, 2006. COUDREAU, Henri. Boletim da sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, tomo II, 1886, p. 114. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 124 43 1895125, Coudreau comentou sobre um possível arbítrio internacional do Contestado francobrasileiro. Eis a opinião do ex-funcionário francês na região: Em virtude dos recentes manejos do governo da Guyane no território contestado, o governo francez deliberou agir como convinha ao caso. Ora, não resta duvida que se a questão for submettida a arbitramento, o Brasil terá ganho de causa. Esta é minha opinião. Apesar de não negar o direito francês ao território, Coudreau deu ganho de causa ao Brasil em razão dos excessos cometidos pelo governo de Caiena, o que remete a mudanças nas suas opiniões políticas e a um desapego das ideias colonialistas que defendia. A declaração de Coudreau foi surpreendente em razão do trabalho que realizara estar sendo usado na argumentação da diplomacia francesa. Na mesma entrevista, que buscou distanciar o viajante do governo francês, Coudreau foi tratado como um agente nacional, que “fala o portuguez e que passou um terço de sua existência no Brasil”. Podia, portanto, “ser considerado quase que nosso compatriota”. Seus arroubos nacionalistas foram minimizados da seguinte maneira: “como o seu ilustre amigo Elisée Reclus e como o grande Camões, ele [Coudreau] pensa que toda a terra é pátria para o forte”. Coudreau não discordou e afirmou que era “apenas um colono do Brasil”126. No momento da publicação da reportagem, Coudreau ainda não estava a serviço do governo do Pará. Todavia, suas declarações apontam que já vinha conversando com Lauro Sodré e que tinha interesse em explorar os sertões do norte do Brasil. O próprio jornalista apoia essa ideia e conclui que “o governo do Pará deverá compreender que há certas boas vontades que são convenientes não desanimar. Coudreau é uma delas e muitas vezes repete: eu não sou mais do que um colono do Brasil”127. O jornalista e talvez muitos de seus leitores sabiam da importância de ter um viajante como Coudreau a serviço do Brasil naquele momento delicado de arbitragem internacional. Coudreau era, afinal, um ex-funcionário da França e até então divulgador de ideias colonialistas na Amazônia. Suas críticas às autoridades francesas e o abandono de parte de suas ideias jogariam seus escritos anteriores no descrédito. Coudreau certamente tinha ciência dos interesses brasileiros que estavam em jogo e soube se utilizar disso muito bem para dar prosseguimento aos seus planos de viajar pela região e, dessa maneira, manter sua situação financeira. 125 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de abril de 1895, p.3. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional –Rio de Janeiro- Brasil. 126 Ibid. 127 Ibid. 44 A partir de 1895, as declarações ufanistas e favoráveis à colonização francesa ganham um tom mais diplomático, possivelmente pelo interesse de Coudreau em trabalhar no Brasil. É o que se depreende de uma entrevista publicada no mês seguinte, no dia 2 de maio de 1895, pelo jornal Província do Pará, na qual Coudreau respondeu sobre diversos temas, como a sua opinião sobre o Contestado, sua amizade com o Barão do Rio Branco e a recepção negativa de suas conferências e livros no Brasil. Vejamos um trecho: [O jornalista] - Mas, desculpae a franqueza, nós brasileiros temo-vos na conta do mais implacavel adversário na nossa questão de limites com a França, pois as vossas explorações e as vossas conferencias, dizem ter sido n’estes últimos dez anos um enorme entrave a um ajuste amigável franco-brasileiro. Coudreau – Ha muito exagero n’esta apreciação. A minha mais recente opinião exarada n’uma conferencia que fiz em Paris, em princípios d’este anno, é toda de Paz e concordia. Penso que por qualquer ajuste amigavel a França deve acabar para sempre com esta desconfiança que em vosso paiz se nota contra ella. Nós somos da mesma raça, e devemos confederar-nos, como latinos, para continuar na America do Sul as tradições gloriosas dos nossos avós comuns. [..] O contestado territorial da Guyana é uma insignificância comparativamente com os enormes resultados que advirão aos dois paizes de uma liga intelectual e comercial128. Coudreau evita adentrar nas suas teses anteriores a respeito do Contestado, preferindo um tom moderado sobre as questões envolvendo as duas nações. Não satisfeito com a resposta ponderada do francês, o repórter, não identificado, insiste no assunto e Coudreau responde que não pode explicitar a sua posição por ser hóspede em território brasileiro e por contar com alguns amigos no meio político parisiense. Lança, contudo, frases irônicas, consideradas pela diplomacia francesa como agressivas: “faço-vos a vontade, já que tanto instais. Nós temos frequentes ‘nervositis’ politicas em nosso paiz. É-nos talvez preciso um outro ‘Fernando de Noronha’ e vós sabeis que, como “guilhotini séchre” [sic] a Guyana Cayennense é excelente”129. Coudreau tinha intenções de trabalhar para as autoridades brasileiras, em especial no Pará, e deixa isso explícito ao responder se tinha a intenção de fixar residência na Amazônia, “á sombra da bandeira brasileira”, fazendo um claro pedido ao governo paraense: Exactissímo. Sei que tendes acesso ante os poderes públicos, e na opinião publica; podeis pois garantir a lisura de minhas intenções. Peço ao vosso eminente governador me considere cidadão o mais humilde da Amazonia. Fallo em altas vozes e que o éco repercuta até as barreiras do Tabatinga. “C’est fait”130. Com base no excerto acima, percebe-se que Coudreau já estava em negociação com Lauro Sodré. Não é possível afirmar se Sodré hesitou em contratar o explorador, mas 128 A Província do Pará, 2 de maio de 1895, p. 1. Acervo da Biblioteca Pública Arthur Vianna - Fundação Cultural Presidente Tancredo Neves. 129 Ibid. 130 Ibid. 45 certamente Coudreau tentou veementemente convencer as autoridades acerca da lisura de suas intenções e de que havia se convertido à causa brasileira, ou pelo menos abandonado a causa francesa – não seria um espião francês em território nacional. As declarações “do colono do Brasil”, como Coudreau passou a se caracterizar, foram acompanhadas pelas autoridades francesas, como podemos ler nas cartas trocadas entre o ministro Gabriel Hanotaux e o encarregado de Negócios franceses no Rio de Janeiro, Eugène Daubigny, publicadas no livro Barão do Rio Branco: Caderno de Notas. A Questão entre o Brasil e a França (maio de 1895 a abril de 1901)131, do embaixador Affonso José Santos. Daubigny, no dia 6 de junho de 1895, enviou um oficio a Hanotaux, no qual comunicava o desembarque de Coudreau no Pará, juntamente com as suas novas declarações e pretensões no estado brasileiro. O encarregado anexou ainda um recorte do Jornal do Commercio de 3 de junho, que reproduzia a entrevista concedida para A Província do Pará, já citada. Nela, Coudreau fez críticas ao governador de Caiena e manifestou o seu desejo de fixar-se no norte do Brasil. No excerto abaixo, após falar sobre as intenções do geógrafo, Daubigny comenta as declarações que fez sobre o futuro do território contestado: [...] então, resumindo suas impressões em uma piada de gosto muito medíocre, o Sr. Coudreau acrescenta: "Eu tenho a idéia que nosso rei destronado de Dahomey, pobre Behauzin, será nomeado governador de Cayenne. Está no espírito de nossa política colonial” [traduzido ao francês]. Eu não teria feito, com Vossa Excelência, o eco dessa linguagem que parece inspirar ressentimento pessoal, se não tivesse sido aqui o assunto de comentários persistentes hostis ao nosso país e sua política e se não tivesse uma certa ressonância. O explorador solicitado, além disso, que expressasse a sua opinião sobre a questão do Contestado, reservou-se ao silêncio. Mas o tom deplorável de suas apreciações em geral, a parcialidade com que ele tem defendido a colonização brasileira, próximo aos ecos que nos chegaram de suas conversas anteriores, dão o significado e a interpretação de que esse silêncio é suscetível. Pedi ao Gerente do nosso Consulado em Belém, que acabou de me enviar o texto original da entrevista publicada pela Provincia do Pará, para me manter informado dos fatos e gestos do Sr. Coudreau e eu não faltarei de transmitir a Vossa Excelência as informações que poderia me falar sobre isso132. 131 SANTOS, Affonso José. Barão do Rio Branco: Caderno de Notas. A Questão entre o Brasil e a França (maio de 1895 a abril de 1901. Brasília: FUNAG, 2017. 132 Ibid., p. 95 (Tradução nossa e de Alegria Benchimol). No original: “Puis résumant ses impressions dans une plaisanterie du goût le plus médiocre, M. Coudreau ajoute: “J’ai idée que notre roi détroné du Dahomey, le pauvre Béhauzin, va être nommé Gouverneur de Cayenne. C’est dans l’esprit de notre politique coloniale. Je ne me serais pas fait, auprès de Votre Excellence, l’écho d’un tel langage que semble inspirer des ressentiments personnels, s’il n’avait été ici l’objet de commentaires persistants hostiles à notre pays et à sa politique et s’il n’avait eu un certain retentissement. L’explorateur sollicité, d’ailleurs, d’exprimer son opinion sur la question du Contesté, s’est renfermé dans le mutisme. Mais le ton déplorable de ses appréciations en général, la partialité avec laquelle il a défendu la colonisation brésilienne, rapprochés des échos, arrivés jusqu’à nous, de ses précédentes conversations, donnent le sens et l’interprétation dont ce silence est susceptible. J’ai prié le Gérant de notre Consulat à Belém, qui vient de m’adresser le texte original de l’interview publiée par la Provincia do Pará, de me tenir au courant des faits et gestes de M. Coudreau et je ne manquerai pas de transmettre à Votre Excellence les renseignements qui pourraient me parvenir à son sujet”. 46 Daubigny traduziu para o seu superior as declarações de Coudreau, sobretudo os trechos polêmicos, omitindo os trechos com tons mais ponderados. Portanto, compreendo o que foi escrito na carta como uma tradução cultural133, não elaborada de forma direta ou mesmo isenta, mas adaptada ou montada a partir das necessidades e dos interesses da diplomacia francesa e dos governantes em Caiena. Não somente a fala de Coudreau foi alvo da atenção e preocupação de Daubigny, mas também o silêncio em relação ao Contestado e os ecos vindouros que as declarações teriam no Brasil. A partir das entrevistas de Coudreau, o então encarregado francês declarou que havia uma campanha local organizada para fazer o Brasil lucrar com os ressentimentos do explorador em relação ao governo de Caiena134. Além de comentar as entrevistas e reportagens sobre Coudreau, Daubigny fazia também as suas próprias apreciações sobre as ações do viajante na imprensa nacional, como uma espécie de contextualização e tradução dos recortes enviados. A interpretação de Daubigny corroborava a ideia de que Coudreau estava traindo a causa francesa, como demonstra um ofício enviado do Rio de Janeiro a Paris no dia 27 de julho de 1895: Ministro, de acordo com as informações que me chegaram hoje e cuja autenticidade não resta dúvida, o Sr. Coudreau teria abraçado definitivamente a causa do Brasil. Este explorador fornece ao governo do Rio todas as informações que acredita servir de nossos interesses e é notavelmente o autor da lista de ‘Brésiliens Massacrés’ em Mapá, que aparece em francês na sequência do discurso proferido pelo senhor Serzedello Correa na sessão da Câmara dos Deputados de 16 de julho e da qual Vossa Excelência vai encontrar em anexo o texto. Esta lista que o ex-ministro das Relações Externas do Marechal Peixoto apresento em apoio a suas reivindicações contra nós, na tribuna da Câmara, é, parece, uma das peças da "investigação" pessoal que o Sr. Coudreau empreendeu no território contestado sobre os incidentes recentes e cujas conclusões mais do que suspeitas dirigidas ao Governo de Pará, foram publicados pelos jornais de Belém135. A despeito das acusações de Daubigny, não se pode confirmar se Coudreau entregou informações sigilosas ao governo brasileiro sobre o território ou se foi contratado para servir de delator dos interesses franceses na região em disputa. Contudo, cada vez mais as opiniões 133 BURKE, Peter. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna. In: BURKE, Peter; HSIA, R. Pochia(Org.). A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: UNESP, 2009, pp.13-46. 134 SANTOS, 2017. 135 Ibid., p. 157 (tradução nossa). No original: “D’après les renseignements qui me parviennent aujourd’hui et de l’authenticité desquelles il n’y a pas lieu de douter, M. Coudreau aurait définitivement embrassé la cause du Brésil. Cet explorateur fournit au Gouvernement de Rio toutes les informations qu’il croit de nature à desservir nos intérêts, il est notamment l’auteur de la liste des ‘Brésiliens Massacrés’ à Mapá qui figure, en français, à la suite du discours prononcé par M. Serzedello Correa dans la séance de la Chambre des Députés du 16 juillet et dont Votre Excellence trouvera ci-joint le texte. Cette liste que l’ancien ministre des Relations Extérieures du Maréchal Peixoto fait figurer à l’appui de ses revendications contre nous, à la tribune de la Chambre, est, paraîtil, une des pièces de “l’enquête” personnelle que M. Coudreau a entreprise au territoire Contesté sur les récents incidents et dont les conclusions plus que suspectes adressées au Gouvernement de Pará, ont été publiées par les journaux de Belém”. 47 de Coudreau tornaram-se polêmicas, sobretudo após o chamado massacre da Vila do Amapá136, fato que comoveu a população brasileira e repercutiu bastante na imprensa nacional. Em 6 de junho de 1895, foi divulgada uma carta de Coudreau endereçada a Manoel Antonio Gonçalves Tocantins, engenheiro e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), publicada no Diário de Notícias, que se refere ao acontecido: Ilmo Sr. Dr. Tocantins, encarregado de missões científicas. Meu caro colega, acabo de ler atentamente vosso relatório sobre o massacre do Amapá. Relata um conjunto de fatos que desgraçadamente não podem ser postos em dúvida mesmo nos detalhes. Assisti ao inquérito que fizestes no Amapá e cotejei-o com o outro contra-inquérito feito por mim mesmo e minha convicção é completa: os fatos são exatos no seu conjunto. Peço-vos somente que distingais, nesse lamentável acontecimento, duas fontes de responsabilidade: 1º - A responsabilidade do Governo Francês – O governo foi iludido em sua boa fé por um pequeno bando de indivíduos, mais ou menos comprometidos em “camarinha”, que eu observo há alguns anos e cuja entrada próxima nas galés espero com paciência; 2º - A responsabilidade do bando de indivíduos em questão – Por hoje não marcarei na espádua senão o odioso instigador do massacre do Amapá, o célebre Charvein, grande jacobino, anticolonial, que dá realmente a mão ao seu negro nas pequenas combinações auríferas do Contestado. Não determino por ora porque não estou na França; mas fá-lo-ei nos jornais de meu país. Falarei! Não consentirei que se diga que Caiena, a Caiena que conheceis, a Caiena com sentimento antifrancês, vós mesmo o tendes verificado, provocou um rompimento entre França e Brasil. O coração e o bom senso das duas grandes nações amigas prevalecerão contra as patifarias dos negros e a raiva dos concessionários137. A carta divulgada no Diário de Notícias, e que foi anexada em correspondência de Daubigny, não está isenta de intencionalidade. Como destacou Le Goff138, todo documento, enquanto prova de uma realidade, é um monumento, visto que há uma intenção de perpetuação - voluntária ou não - de uma memória coletiva. As opiniões de Coudreau, ao mesmo tempo em que validavam os protestos brasileiros sobre o massacre e sobre o domínio da região, amenizavam a responsabilidade francesa sobre o acontecido, culpando os negros mocambeiros que transitavam na região. Não seria isso uma evidência da apropriação do ideário racista no discurso de Coudreau? Como visto, Coudreau era um sujeito atuante nas tramas que envolviam o contestado franco-brasileiro e suas opiniões ganhavam destaque na imprensa brasileira. Todo esse longo contexto apresentado no presente capítulo serviu para explicar o quão complexa foi a 136 Conflito ocorrido em 15 de maio de 1895 na Vila do Amapá, no território disputado entre Brasil e França, entre os soldados comandados pelo capitão Lumier, da Guiana Francesa, e os homens armados comandados por Francisco Xavier da Veiga Cabral, que resultou no incêndio da vila e na morte de soldados franceses e de muitos habitantes locais, além do aprisionamento de brasileiros acusados de colaborarem com Cabral. 137 Diário de Notícias, Belém, 9 de maio de 1884, p. 2. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional –Rio de Janeiro- Brasil. 138 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990. 48 contratação de Henri Coudreau pelo governo do Estado do Pará. Em um ofício, Daubigny explica as motivações que envolveram o acordo firmado entre o explorador e Sodré: Sr. Lauro Sodré pensou que tinha que recompensar um zelo tão bonito e ele usou o talento e conhecimento do viajante, confiando-lhe a missão de explorar o alto Tapajóz, um dos afluentes do Amazonas. Eu gostaria de ter esperança de que esta excursão, muito longe, forneça alimentos necessários para a atividade do Sr. Coudreau, uma distração para seus ressentimentos e que nos liberte do medo das manifestações barulhentas que sua presença pudesse provocar à [ilegível] [...]139. A explicação de Daubigny, segundo a qual a contratação de Coudreau pelo governo do Pará foi uma forma de recompensá-lo pelas informações repassadas às autoridades brasileiras, está repleta de ressentimento pela “traição” da causa francesa, mas não pode ser julgada como falsa. Não se pode negar que a adoção da identidade “brasileira” por Coudreau, o que tantas vezes ele evidenciou, foi fundamental para a sua contratação. Todavia, não é possível afirmar, pois não há documentos que o comprove, que Coudreau agiu como um espião ou delator dos interesses franceses no território contestado. Além dessa questão geopolítica, outras interferiram na decisão de Lauro Sodré em contratar Coudreau, como as perspectivas de divulgação do estado do Pará140 e o renome de Coudreau nas sociedades científicas europeias e norte-americanas.141 O sucessor de Sodré no governo do Pará, José Paes de Carvalho, em mensagem dirigida ao Congresso do Estado no dia 15 de abril de 1898, apresentou o plano de exploração de Coudreau no Pará, quando o viajante já havia sido contratado. Carvalho afirmou que as publicações de Coudreau iriam concorrer “efficazmente para vulgarisarem-se em nosso paiz e fora d’elle conhecimentos correctos ácerca do Pará, mal conhecido e mal julgado ainda”142. Além disso, continuou o governador, seriam um repositório de importantes dados para a confecção de carta geodésica e cadastral do estado. 139 SANTOS, 2017, p. 157 (tradução nossa). No original: “M. Lauro Sodré a cru d’ailleurs devoir récompenser un si beau zêle et il utilize les talents et les connaissances du voyageur en lui confiant la mission d’explorer le haut Tapajóz, un des affluents de l’Amazone. Je me plais à espérer que cette excursion assez lointaine offrira un aliment nécessaire à l’activité de M. Coudreau, une diversion à ses rancunes, et, nous délivrera de la crainte de manifestations bruyantes que sa présence pouvait provoquer à [ilegível]”. 140 COELHO, Matheus Camilo; BENCHIMOL, Alegria; MIRANDA, Elis de Araújo. Henri Coudreau e a “vulgarização” amazônica: os índios Juruna, Tapayuna e Parintintin (1895-1896). Novos Cadernos NAEA, [S.l.], v. 22, n. 3, dez. 2019. ISSN 2179-7536. Disponível em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/6969>. Acesso em: 02 jan. 2020 141 Em 1886, Coudreau recebeu uma medalha de ouro da Sociedade de Geografia comercial de Paris e, em 1892, uma medalha de ouro da Sociedade de Geografia de Paris em retribuição aos seus dez anos de pesquisa nas Guianas. Em 1887, já havia ganhado o prêmio trienal da Sociedade dos Estudos Colonial Marítimos. Além disso, teve palestras e artigos seus publicados em periódicos de grande alcance, como o Le tour du Monde. 142 CARVALHO, J. P. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José Paes de Carvalho, Governador do Estado, em 15 de Abril de 1898, apresentando a proposta a de orçamento da receita e despeza para o exercicio de 1898-1899. Belém: Typ. do Diário Official, 1898, p.22. 49 Carvalho acreditava que, graças à notoriedade de Coudreau e aos livros publicados em francês na Europa, financiados pelo governo do Pará, os negócios locais ganhariam maior relevância internacional, atraindo mais investimentos e imigrantes143. Esse plano é evidente no livro Voyage au Tapajós, publicado em 1897. Além de descrições da vegetação, hidrografia, topografia, população e línguas faladas ao longo do rio, o livro possui páginas dedicadas às possibilidades de ocupação da terra, aos modos de aprimorar o comércio e dinamizar o transporte fluvial, além de uma ode ao Pará e da análise das disputas territoriais do estado. Coudreau também defendeu suas ideias para o desenvolvimento da região amazônica, como a construção da ferrovia Chile-Pará e a atração de imigrantes para colonizar as regiões inabitadas do estado144. Coudreau realizou, ao todo, seis expedições pelo território paraense, passando por alguns dos principais rios do estado – Tapajós, Xingu, Tocantins, Araguaia, Itaboca, Itacaiúnas, Nhamundá e Trombetas – e narrando as aventuras de sua viagem, as riquezas naturais, os povos que habitavam as terras percorridas. Dessas excursões ao interior amazônico, de 1895 a 1899, resultaram seis livros em francês, todos patrocinados pelo governo do Pará e impressos em Paris, contendo o relato da viagem, dados meteorológicos, vocabulários indígenas e mapas. A primeira missão de Coudreau, ao rio Tapajós, teve como objetivos oficiais checar informações geográficas e estudar as riquezas e os habitantes da região, como reporta o governador do Pará: (A) verificação das coordenadas geographicas dos pontos, que tinham sido fixados pelo Conde de Castelnau; (B) exploração do rio S. Manoel ou das Tres Barras até á cachoeira das Sete Quedas; (C) indicação precisa das posses situadas nas margens do rio Tapajós, a partir do ponto chamado – Bacabal,- e do rio S. Manoel até as suas maiores cachoeiras; (D) noticia detalhada acerca da população indigena dos referidos rios, especialmente sobre os mundurucus e apiacás; (E) indicação da natureza do solo, e descriptação das riquezas naturaes da região estudada; (F) estudo dos melhores meios de comunicação entre o alto e o baixo Tapajós.145 143 Mesmo não sendo sua intenção, Coudreau também atraiu para a Amazônia alguns cientistas. Um dos melhores exemplos é Wilhelm Kissenberth, vinculado ao Königliches Museum für Völkerkunde, de Berlim. Em carta a Jacques Huber, botânico suíço e pesquisador do Museu Paraense entre 1895 e 1914, Theodor KochGrünberg, também vinculado ao museu etnológico de Berlim, informa que a viagem de Kissenberth ao rio Araguaia, em 1908, havia sido inspirada pelos escritos de Coudreau. Ver: Carta de Theodor Koch-Grünberg a Jacques Huber. Berlim, 16 de dezembro de 1907. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Fundo Jacques Huber, Dossiê Theodor Koch-Grünberg. 144 COUDREAU, Henri. Voyage au Tapajoz, 28 juillet 1895- 7 janvier 1896. Paris: Lahure, 1897a. 145 SODRÉ, Lauro. Mensagem dirigida pelo Sr. Governador Dr. Lauro Sodré ao Congresso do Estado do Pará. Belém: Diário Official,1895, p. 48. Embora não explicitada, a questão dos limites territoriais do estado está presente nos itens “B” e “C”, pois a fronteira contestada com o Mato Grosso estava entre o rio São Manuel (Teles Pires) e a cachoeira das Sete Quedas. 50 Em 1896, Coudreau viajou pelo rio Xingu. Em seguida, entre o mesmo ano e 1897, pelo Tocantins e Araguaia. Ainda em 1897, seguiu para os rios Itaboca e Itacaiúnas. Em 1898, novamente pelo Tocantins e Xingu, e em parte do Nhamundá. No ano seguinte, entre agosto e novembro, Coudreau realizou sua derradeira expedição. Ele faleceu no alto Trombetas, próximo ao lago Tampagem, no dia 9 de novembro de 1899146. A obra Voyage au Trombetas foi finalizada e publicada por sua esposa e companheira de viagens, Octavie Coudreau. Todos os livros de Coudreau apresentam a mesma estrutura. Descrevem a vegetação, hidrografia, demografia, economia, costumes e línguas faladas nos vários rios que percorreu. As informações foram apresentadas em textos, tabelas populacionais e meteorológicas, vocabulários de línguas indígenas, fotografias, gravuras e mapas. Figura 1. Trecho do mapa do rio Tapajós e São Manuel elaborado por Henri Coudreau. Fonte: COUDREAU, 1897. 146 COUDREAU, Octavie. Voyage au Trombetas.Paris: A. Lahure, 1900. 51 A Figura 1 representa um dos resultados das viagens de Coudreau pelo Pará. Esse mapa dos rios Tapajós e São Manuel (atualmente conhecido como Teles Pires, afluente do Tapajós), percorridos pelos viajantes entre 1895 e 1896, foi desenhado por Octavie em uma escala de 1:600.000, com legendas que informam a localização de igarapés, braços de rios, rochas, barragens, habitações e serras.147 Ele foi publicado na obra Voyage au Tapajós, de 1897. Octavie Coudreau foi uma figura fundamental nas expedições do casal, sendo responsável pelas fotografias, pelos primeiros-socorros, pela administração da viagem, pela cartografia. Ela acompanhou o marido em todas as expedições, inclusive estava com ele quando da sua morte. Tinha domínio sobre o roteiro a percorrer, tanto que deu prosseguimento aos planos de exploração do alto Trombetas e foi responsável pela publicação do livro. Acerca da sua importância, Henri escreveu: “Madame Coudreau é para nós o emblema da família em viagem, o bom gênio de nossa casa errante. Eu creio que se Livingstone tem uma carreira de grande dimensão, madame Livingstone nisto esteve muito envolvida, não há dúvidas”148. O êxito e os conhecimentos resultantes dessas viagens não podem ser pensados unicamente pela ação individual do viajante que liderava as excursões, mas são frutos de uma série de agentes, negociações e conflitos que envolviam líderes políticos, outros cientistas e grupos locais. É claro que as ações do viajante, sua expertise em vários campos científicos e a habilidade física e mental para superar as dificuldades inerentes de viagens longas por territórios sem infraestrutura, altamente suscetíveis a doenças, como a malária, são importantes para o cumprimento da sua tarefa. Convém, no entanto, lembrar que exploradores, como Coudreau, necessitam de um grupo de pessoas e de instrumentos que os auxiliem em seus objetivos, assim como devem manter boas relações com uma rede local de apoio. Essas redes eram formadas por proprietários e comerciantes influentes nas regiões percorridas, que hospedavam os viajantes, ajudavam a arregimentar colaboradores, forneciam suprimentos e barcos, complementavam o financiamento e, na maioria das vezes, intermediavam o contato dos viajantes com povos indígenas e populações ribeirinhas. Sem a ajuda desses intermediários seria difícil ou 147 Sobre Octavie, ver: FERRETTI, Federico. Imperial ambivalences. Histories of lady travellers and the French explorer Octavie Renard-Coudreau (1867-1938). Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, Londres, v. 99, n. 3, p. 238-255, Jun. 2017. 148 COUDREAU, Henri. Voyage au Tocantins et Xingu, 3 avril 1898-3 novembre 1898. Lahure: Paris, 1899, p.56-57. No original: “Madame [Coudreau] est pour nous l’emblème de la famille en voyage, le bon génie de notre foyer errant. Je crois que si Livingstone a pu fournir une si longue carrière, Mme Livingstone y a été pour beaucoup plus qu’il n’en est ordinairement question”. 52 impossível executar completamente as excursões e realizar a coleta de dados, espécimes e objetos. Por essa razão, manter boas relações com a comunidade local e respeitar os contextos sociais específicos dos lugares onde realizavam o trabalho de campo eram habilidades fundamentais para os viajantes, como pontuou Lopes149. As expedições de Coudreau não fugiram à regra e contaram com a ajuda de remeiros, guias indígenas, ribeirinhos, comerciantes e seringalistas. Figura 2. Um “seco” no alto Parauapebas. Fonte: Coudreau, 1898. A Figura 2 representa o cotidiano das viagens realizadas por Coudreau no Pará. Na fotografia, certamente tirada por Octavie, Henri atravessa um “seco” no alto Parauapebas, numa canoa, sendo conduzido por membros da expedição, remeiros e mateiros habitantes da região. Na embarcação, o geógrafo está com a vestimenta e acessórios de um explorador do século XIX – chapéu, casaco e um caderno de campo –, contemplando e analisando o local. Essa imagem apresenta algo bem comum nas viagens do casal Coudreau: a dificuldade de transpor as barreiras naturais dos rios e a fundamental participação de remeiros e guias locais, em sua maioria miscigenados, negros e indígenas. Seus nomes não são lembrados por Coudreau, mas ele cita a sua participação e declara sua presença (e função) nas fotografias. No caso da Figura 2, o “elemento civilizador”, estrangeiro, cientista, ocupava um lugar mais importante do que os nativos que se sacrificam para transportá-lo. Dentro da canoa, Coudreau exerce uma atividade intelectual, evidenciada pelo olhar distante e pelo caderno de campo, enquanto os demais membros da expedição exercem o trabalho braçal. Imagens como essa, 149 LOPES, Maria Margaret. Viajante pelo campo e pelas coleções: aspectos de uma controvérsia paleontológica. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 2001, p. 881-897. 53 que povoam os relatos de Coudreau, são poderosas evidencias do etnocentrismo, das hierarquias sociais e raciais, das escolhas estéticas associadas a elas e também de concepções características do final do século XIX. 1.2 OBJETOS EM REDE: A FORMAÇÃO DAS COLEÇÕES DE HENRI COUDREAU NO PARÁ Na mensagem de Lauro Sodré ao Congresso do Pará, em 1895, Emílio Goeldi ganhou menções elogiosas pelo trabalho realizado e pelo impulso “de fazer dele [Museu Paraense] cousa digna de nossa civilisação e na altura dos institutos congêneres”150. Os elogios vieram acompanhados de uma solicitação de verbas para completar a organização do estabelecimento, considerado útil para o Pará, pois “servindo diretamente aos interesses da sciencia pelo muito que pode produzir o estudo do nosso meio physico, concorrerá bastante para os progressos do Estado, sob o ponto de vista moral e até material”151. No mesmo documento, Sodré assinalou que seriam contratados especialistas para as seções de Botânica, Geologia e Mineralogia e Etnografia, Antropologia e Arqueologia152. Apesar das promessas de contratação de um chefe específico para essa última seção, foi Emílio Goeldi quem se responsabilizou por ampliar e reestruturar as coleções arqueológicas e etnográficas da instituição. Goeldi se utilizou da rede de apoio composta por políticos, intelectuais, viajantes, militares, etnólogos, missionários e comerciantes. Entre eles, o próprio Sodré e o seu novo aliado, Henri Coudreau. Em 24 de junho de 1895, Goeldi enviou uma carta ao governador, assumindo saber da contratação de Coudreau e da missão a ele confiada. Apesar de não comentar como tomou conhecimento do assunto, é possível que o diretor do museu tenha lido em jornais ou nas publicações oficias, afinal, o acordo entre o viajante francês e Sodré foi bastante divulgado. Tendo ciência de que Coudreau estava “incumbido da comissão official de exploração da zona limitrophe entre os Estados do Pará e Matto-Grosso e Amazonas”153 e ainda de que pretendia estudar os índios Apiacá e Munduruku, pareceu-lhe oportuno pedir providencias ao governador: 150 SODRÉ, Lauro. Mensagem dirigida pelo Sr. Governador Dr. Lauro Sodré ao Congresso do Estado do Pará em 7 de Abril de 1895. Belém: Diario Official, 1895, p. 38. 151 Ibid., p.39. 152 Ibid. 153 Carta de Emílio Goeldi a Lauro Sodré. Belém, 24 de julho de 1895. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Fundo MPEG, Gestão: Emílio Goeldi, Série: Correspondência ativa. 54 [...] afim que os objetos ethonographicos e de historia natural, que por ventura sejam encontrados durante a comissão [de Coudreau] sejam reservados para o Museu Paraense e que revertam para este Estabelecimento estadoal collecções feitas em comissões pagas pelo Estado. [...] tomo a liberdade enviar a V. Exma. dois exemplares das “Instrucções praticas” como afim de serem transmitidas na mesma [ilegível] ao Sr. Henri Coudreau. Coudreau não fazia parte da rede de Goeldi. Não há correspondência entre eles, apenas citações nada elogiosas nos relatórios do diretor sobre o Contestado franco-brasileiro e fortes críticas nos vários trabalhos que Goeldi publicou sobre a Guiana Brasileira, feitas com a finalidade de lançar a obra de Coudreau no descrédito154. Isso pode explicar o envio da carta a Sodré, com quem Goeldi mantinha uma boa relação. Além do mais, a carta objetivava estabelecer um acordo para que outras expedições e comissões, de outros viajantes pagos pelo estado, formassem coleções reservadas ao Museu Paraense. Outro elemento importante da carta foi o envio das “Intrucções praticas sobre o modo de colligir productos da natureza para o Museu Paraense de História Natural e Ethnographia”155, um documento publicado no Boletim da instituição, no Diário Oficial do Estado e em jornais do interior do Pará com o propósito de incentivar e orientar possíveis colaboradores na coleta de espécimes e objetos para o museu. As “Instrucções praticas” não versam sobre a cultura material indígena, tratando principalmente da coleta de espécimes da fauna e flora e da geologia. Dessa forma, não inspiraram o viajante a formar coleções etnográficas, mas serviram, provavelmente, de base para a coleção de lepidópteros156 e coleópteros157 doada ao Museu Paraense, como informado no Boletim da instituição: Obteve o Museu Paraense como presente da parte de S. Exc. o Sr. Dr. Lauro Sodré, Governador do Estado, uma collecção de lepidópteros e coleópteros do Tapajoz – viagem Coudreau – importando em 549 especimens – Lepidoptera 142, Coleoptera 401, Hemiptera 2, Orthoptera 1, Hymenoptera 3. Infelizmente, porém o seu estado de conservação equivaleu a um desastre completo já no momento da entrega e pouco proporcionalmente pôde-se salvar talvez 10%. É pena, porque como collecção local de zona circumscripta teria tido valor158. 154 SANJAD, 2010. GOELDI, Emílio. Instrucções praticas sobre o modo de colligir productos da natureza para o Museu Paraense de História Natural e Etnographia. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, Belém, 1(1/4): 239-256, 1894/96. 156 Ordem de insetos que inclui Borboletas e Mariposas. Disponível em: <http://www.insecta.ufv.br/Entomologia/cien/sistematica/resumo/comuns.html> Acesso em 6 de junho de 2018. 157 Ordem de inseto que inclui besouros. Disponível em: <http://www.insecta.ufv.br/Entomologia/cien/sistematica/resumo/comuns.html> Acesso em 6 de junho de 2018. 158 GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado ao Exmº Sr. Dr. Lauro Sodré, governador do estado do Pará, pelo director do Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia, Belém, 2(1/4):, 1898, p. 278-279. 155 55 De toda maneira, Coudreau já havia formado coleções de objetos indígenas antes de trabalhar no Brasil, como aponta o estudo de Louise Deglin sobre a coleção que o viajante destinou ao Musée d’Ethnographie du Trocadéro (MET), atualmente conservada no Musée du Quai Branly. Segundo a pesquisadora francesa, o envio de coleções guianenses estava relacionado ao interesse pessoal de Coudreau em expor seu trabalho numa instituição parisiense e ao desejo de contribuir com uma importante instituição, cujo fundador e diretor, Ernest Hamy, a quem Coudreau nutria simpatia e admiração, enfrentava dificuldades financeiras159. Possivelmente, a experiência de coleta nas Guianas e a aquisição da coleção pelo MET incentivaram Coudreau e deram margem ao trabalho realizado posteriormente, a pedido de Goeldi. O desinteresse pela história das peças e dos povos criadores, a preferência pelo exotismo, a utilização de intermediários para a obtenção de objetos são elementos comuns nas coleções de Coudreau depositadas tanto no Musée du Quai Branly quanto no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). Entre 1895 e 1896, durante suas primeiras excursões a serviço do governo paraense, Coudreau coletou 46 objetos – este é o número documentado na Reserva Técnica Curt Nimuendajú, do MPEG. Esse total está dividido em duas coleções, denominadas Lauro Sodré (1897) e Henri Coudreau (1898). A primeira é formada por um objeto Tapayuna (Kajkwakratxi), obtido no rio Tapajós, e 35 objetos Yudjá/Juruna, do rio Xingu (Tabela 1). A coleção Coudreau é formada por dez objetos Parintintin (Kagwahiva) provenientes da primeira expedição realizada no Pará, pelo rio Tapajós160 (Tabela 2). Tabela 1. Coleção Lauro Sodré (1897) Item 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 159 Nº de Procedência registro 845 Rio Arinos 5519 5520 5521 5522 5523 5524 5525 Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Objeto Machado de pedra encabado Brinquedo, Cachorro Brinquedo, Quadrúpede Brinquedo, Quadrúpede Brinquedo, Quadrúpede Brinquedo, Jacaré? Brinquedo, Pássaro? Brinquedo, Zoomorfo? Povo Indígena Tapayuna (Kajkwakratxi) Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna DEGLIN, Louise. La collection Henri Coudreau au Musée du Quai Branly Vestige d'une destinée singulière et controversée. Mémoire d'étude. Écoule du Louvre. 2015. 160 Livros de Tombo da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi. 56 9. 5526 Alto Xingu 10. 5527 Rio Xingu 11. 5528 Rio Xingu 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 5531 5532 5533 5534 5535 5536 5537 5538 5539 5540 5541 5542 5543 Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Alto Xingu 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 5544 5545 5546 5547 5548 5549 5550 5551 5552 5553 5554 5555 Alto Xingu Alto Xingu Alto Xingu Rio Xingu Alto Xingu Rio Xingu Rio Xingu Rio Xingu Alto Xingu Alto Xingu Alto Xingu Alto Xingu Instrumento para abrir ou fechar os fios dos tecidos Fragmento de instrumento de música Bambús para cavinhas auriculares Brinquedo, Tatu Brinquedo, Cachorro Brinquedo, Macaco Brinquedo, Jacaré Brinquedo, Jabotí Brinquedo, Pássaro? Brinquedo, Pássaro? Brinquedo, Pássaro? Brinquedo, Ubá Brinquedo, Zoomorfo Espátula Espátula Instrumento para abrir ou fechar fios dos tecidos Cabaça para azeite de coco Cabaça para azeite de coco Cesto Apito? De taboca Ponta de Lança de pedra Maracá Diadema de penas Pente Colar de dentes diversos Banco Panela Tigela Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Yudjá/Juruna Tabela 2. Coleção Henri Coudreau (1898) Item 1. Nº de Procedência registro 5169 Rio Madeira 2. 5170 3. 5171 4. 5172 5. 5173 Alto S. Manuel Rio Madeira Rio Maici – Madeira – Amazonas Rio Madeira Objeto Capacete Povo Indígena Parintintin (Kagwahiva) Machado de Pedra Parintintin (Kagwahiva) Arco Parintintin (Kagwahiva) Flecha com ponta de taquara Parintintin (Kagwahiva) Flecha com ponta de taquara Parintintin (Kagwahiva) 57 6. 5174 7. 5175 8. 5176 9. 5177 10. 5178 Rio Madeira Rio Madeira Rio Madeira Rio Madeira Rio Madeira Flecha com ponta de taquara Parintintin (Kagwahiva) Cinto de tala Parintintin (Kagwahiva) Enfeite de taboca com penas Parintintin (Kagwahiva) Enfeite de taboca com penas Parintintin (Kagwahiva) Pulseira de palha com Parintintin pingente de penas (Kagwahiva) Coudreau não era um etnólogo ou etnógrafo profissional. As duas coleções do MPEG, comprovadamente formadas pelo viajante francês, têm similitudes com a coleção do MET. Não há informações detalhadas sobre a origem dos objetos, nem fotografias ou descrições a respeito do uso e dos respectivos significados para as comunidades produtoras – elementos substanciais no trabalho etnológico. Tampouco houve, por parte do coletor, tentativa de representar, por meio de artefatos, as diferentes manifestações da cultura dos povos Yudjá/Juruna, Tapayuna (Kajkwakratxi) e Parintintin (Kagwahiva). A prática colecionista de Coudreau, a sua despreocupação com o tratamento das informações e dos objetos, era oposta aos ideais vicejados por Goeldi. No relatório apresentado ao governador do Pará em janeiro de 1895, o diretor argumentou que o Museu Paraense deveria planejar um estudo mais aprofundado e sistemático dos índios, como faziam os museus na América do Norte. Segundo Goeldi, não era suficiente “obter-se uma flecha de Tembé de uma pessoa, um arco de Urubú de outra e juntar-lhes mais uma buzina de Parintintins ou um colar de Mundurucús, etc., tudo com autenticidade problemática ou como presente de terceira ou quarta mão”.161 Não era possível imaginar que isso significava um bom trabalho de etnografia. Pelo contrário, para Goeldi: É uma imperiosa necessidade, estudar-se metodicamente uma tribo depois da outra, debaixo dos múltiplos pontos de vista de sua historia, de sua atual residência e extensão, do seu numero, dos seus costumes em paz e em guerra, da sua vida domestica e expedicionária, do seu intelecto e de suas crenças, dos seus utensílios e armas, da sua configuração física, da sua língua, etc. É preciso demorar-se entre eles, para obter-se um estudo monográfico aprofundado162. Apesar dos limites apontados na coleção etnográfica formada por Coudreau, esse conjunto de objetos também pode ser pensado de outra maneira. Tomemos como referência os 161 GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado pelo Director do Museu Paraense ao sr. Dr. Lauro Sodré, governador do Estado do Pará, Janeiro de 1895. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia, v. 1, n.3 Pará-Brazil 1896. p. 220. 162 Ibid. 58 estudos publicados no livro Unpacking the Collection163, largamente influenciados pela Actor Network Theory (ANT) de Bruno Latour. De acordo com essa abordagem, os coletores de museus fazem parte de uma rede composta por diferentes atores humanos e não humanos, que trabalham em escalas e temporalidades distintas, e que possuem agência. Ou seja, não é possível compreender que alguém possa reunir uma coleção isoladamente. É necessário o suporte de outras pessoas e objetos para dar cabo nesse objetivo. Segundo Byrne e colaboradores, No caso dos colecionadores de museus do século XIX, por exemplo, é impossível pensar neles trabalhando isoladamente. Eles dependem não apenas das tecnologias que permitem a viagem, dos objetos com os quais negociam com as comunidades criadoras que produzem os itens e, de fato, dos próprios itens, mas também necessitam do próprio museu como local de armazenamento e na série de ideias que sustentam a necessidade de desenvolver tais coleções. […] Todos esses objetos e pessoas diferentes trabalham juntos para definir o colecionista de museu como tal164. Como assinalou o excerto acima, diversos atores fazem parte do processo de formação das coleções. No caso das coleções formadas por Coudreau no Pará, os povos indígenas, os intermediários (go-betweens), as demandas do Museu Paraense e seu diretor, os proprietários de terras e comerciantes que auxiliaram o viajante, o governador do estado e as ideias acerca do colecionismo de artefatos indígenas são alguns dos elementos que atuaram no processo de seleção e rejeição de objetos. Os objetos Tapayuna (Kajkwakratxi) e Parintintin (Kagwahiva), por exemplo, chegaram às mãos de Coudreau por meio de um intermediário, que era parte da rede de apoio que o ajudou em toda a excursão pelo Tapajós e sem a qual o viajante encontraria muitas dificuldades para atender os objetivos propostos pelas autoridades estatais e pelo diretor do Museu Paraense. Esse intermediário se chamava José Francisco Moreira, arrolado por Coudreau entre as várias pessoas que o guiaram naquela região, da seguinte maneira: Que pessoas afáveis são a maior parte dos habitantes do Tapajós. Cardozo me conduziu até próximo da causa de Mauricio, Mauricio me levou até a casa de Paulo Leite, Paulo Leite subiu comigo até o Salto Augusto e depois desceu comigo até a casa de Mauricio. Mauricio me restabeleceu à Saturnino que me levou até Sete Quedas e me desceu até Moreira. Moreira me trouxe de volta até a casa de Mauricio que me conduziu até a casa de Cardozo, Cardoso prosseguiu comigo até a casa de 163 BYRNE, S., CLARKE, A., HARRISSON, R., TORRENCE, R. Networks, Agents and Objects: Frameworks for Unpacking Museum Collections. In: Byrne, S; Clarke, A; Harrison, R; Torrence, R. (orgs). Unpacking the Collection. Networks of Material and Social Agency in the Museum. New York, Heidelberg, Dordrecht & London: Springer, pp. 3–26, 2011. 164 BYRNE; CLARKE; HARRISSON; TORRENCE, Op. Cit, 2011, p.11 (tradução nossa). No original: “In the case of nineteenth century museum collectors, for example, it is impossible to think of them as working in isolation. They rely not only on the technologies which enable travel and the objects with which they trade, the creator communities who produce the items and indeed the items themselves but also on the museum itself as a storage facility and the series of ideas that underpin the need to develop such collections [...] All of these different objects and people work together to define the museum collector as such”. 59 Tartaruga que me envia até a casa de Thiago, que me levou de volta até a casa de Pinto, com quem cheguei no Brasil e ao vapor. De certo que seria a última impropriedade de não sabermos reconhecer, a não ser por meio de platônicos agradecimentos tanta boa vontade, tanto desinteressada quanto espontânea [...].165 No fragmento acima, Coudreau identifica alguns nomes da rede que lhe deram guarida, compartilharam suprimentos e embarcações, ajudaram a conseguir colaboradores para a comitiva e foram seus intermediários nas relações travadas com outros sujeitos. Entretanto, na apreciação de gratidão, os nomes elencados pertencem em maior parte às camadas mais abastadas e influentes da elite política e financeira do Tapajós, apesar de outros atores, de classes e origens distintas, e geralmente não nomeados, também terem auxiliado o viajante a cumprir seus objetivos, como membros da comitiva (Figura 3). Figura 3 – a comitiva da expedição ao Tapajós em frente à tenda do viajante. Fonte: Fonte: Coudreau, 1897a. A omissão dos nomes das camadas populares e das populações indígenas não é um simples erro ou equívoco da memória, mas resultado das relações sociais no campo de trabalho e da conveniência. Sobre a primeira razão, é importante destacar que havia na Amazônia, durante o século XIX, regras de sociabilidade que instituíam que os viajantes, ao 165 COUDREAU, 1897a, p.149 (tradução nossa). No original: “Quelles obligeantes personnes que la plupart de ces habitants du Tapajoz! Cardozo me conduit près de chez Mauricio, Mauricio m'emmène chez Paulo Leite, Paulo Leite me monte à Salto Augusto puis me descend chez Mauricio, Mauricio me remet à Saturnino qui me pousse jusqu'à Sete Quédas et me fait descendre chez Moreira; Moreira me fait ramener chez Mauricio qui me fait conduire chez Cardozo, Cardozo me fait poursuivre mon chemin jusque chez Tartaruga qui me fait remettre à Thiago, lequel me fait remettre à Pinto avec qui j'arrive chez Brazil et au vapeur. Certes, il serait de la derniere inconvenance de ne pas savoir reconnaitre autrement que par de platoniques remercîments tant de bonnes volontés aussi désiritéressées que spontanées [...]”. 60 avançar no território, deveriam se apresentar não só aos postos oficiais de comando, mas também aos membros da elite local166. Essas normas contribuíam para o importante contato e para a troca de informações entre a elite local e os viajantes. As pessoas citadas por Coudreau possuíam recursos, informações, trabalhadores e prestígio, que permitiam a expedição ser bem sucedida, portanto, havia um real sentimento de gratidão por essas pessoas – bem como algum interesse. Figura 4 – Henri Coudreau, Cardozo e moradores da casa desse último. Fonte: Coudreau, 1897a. Além disso, não se pode perder de vista que as obras de Henri Coudreau entre 1895 e 1899 tinham um nítido objetivo de divulgar o Pará ao mundo, inclusive para despertar a imigração de colonos europeus e o interesse do capital internacional. Logo, ao elencar e apresentar a vida de alguns moradores proeminentes do Tapajós, o viajante estava mostrando ao leitor que é possível prosperar na região. Quando da expedição, José Lourenço Cardozo (Figura 4) era um proprietário de terra em Chacorão e Tapucú e um dos principais criadores de gado da região; Mauricio Rodrigues da Silva era então ex-sargento do destacamento de Itaituba e tinha relativa influência e sucesso na região pela exploração da borracha; Paulo Leite, cunhado de Mauricio, era seringalista e possuía o título de “patrão e protetor dos 166 ANTUNES, 2019. 61 Apiácas”167 – designação conferida por comandar uma aldeia indígena que vivia próxima de sua casa – e à época tentava “reunir à sua volta todos os Apiácas e entregar-se à pecuária nos prados artificiais que começou a criar entre a sua cachoeira e o Salto São Simão”168. Como prova desse argumento, citamos uma fala do próprio autor sobre a fortuna desses personagens em terras paraenses: Mesmo para os mais qualificados – ou os mais interessados – seria difícil conhecer a produção total de muitos dos mais importantes exploradores de borracha [do Tapajós]. Os seus números de produção são cuidadosamente escondidos. Tenho visto pequenas fortunas em casas. Eu descobri o tesouro: nunca me foi mostrado ostensivamente. Além disso, esta estatística não é da minha responsabilidade. Contudo, não hesito em afirmar que se eu tivesse uma produção anual equivalente apenas às reunidas por Paulo Leite, Mauricio e Cardozo, eu não teria outra preocupação além de mandar construir uma casa rústica nos subúrbios do Pará para ali dedicar-me a alguma ciência, escrevendo algumas impressões e algumas memórias 169. Outra figura elencada por Coudreau é José Francisco Moreira, paraense e morador do São Manuel, mas que provavelmente circulava por todo o Tapajós e afluentes. Ele era ligado à rede composta por Leite, Cardozo, Maurício, Tartaruga, Thiago, Pinto e os povos indígenas da região. Quando da expedição de Coudreau, Moreira começava a “estabelecer prados artificiais para a criação de gado” na ilha de Nova Olinda170 e fazia comércio com os Munduruku. Recebeu dos seus vizinhos “civilizados” o epíteto de “tuxaua”, por conta de seus “modestos sucessos de linguista americanista e aviador de Caras-pretas”. Residia próximo às “malocas mundurucú”.171 Moreira, portanto, também não deve ter conhecido os Parintintin (Kagwahiva), pois a aliança dele com os inimigos históricos desse povo, os Munduruku, afastaria qualquer possibilidade de aproximação. Os objetos Parintintin (Kagwahiva), entre os quais se encontram o machado de pedra e a ponta de flecha representados na Figura 5, foram oferecidos a Coudreau como um presente. 167 COUDREAU,1897a, p.61 (tradução nossa). No original: “Voici six années qu'il s'est établi à Todos os Santos, portier du Alto Tapajoz, patron et protecteurs des Apiacás”. 168 Ibid. No original: “Il se propose maintenant de réunir autour de luis tous les Apiacás et de se livrer en grand à l'élevage dans les prairies artificielles qu'il a commencé à créer entre sa cachoeira et la Salto São Simão”. 169 COUDREAU, 1897a, p.207 (tradução nossa). No original: “Il serait difficile peut-être, même pour les plus qualifiés, - ou les plus intéressés - il serait difficile de connaître la production totale de beaucoup des plus importants exploiteurs de borracha. On cache soigneusement son chiffre de production. J'ai vu de petites fortunes dans des maisons. Je découvrais le trésor: on ne me le montrait jamais ostentation. Cette statistique n'est d'ailleurs pas de mon ressort. Pourtant je n'hésite pas à affirmer que si j'avais une production anuelle équivalente seulement à celles réunies de Paulo Leite, de Mauricio et de Cardozo, je ne me préoccuperais plus de de me faire construire un chalet rustique dans la banlieue de Pará pour y faire quelque peu de science en y écrivant quelques impressions et quelques souvenirs”. 170 Ibid., p.101 (tradução nossa). No original: “Moreira commence à établir des prairies artificielles pour l'élevage du bétail”. 171 Ibid. No original: “ont valu parfois I' épithete de ‘tuxaua’de la part de quelques voisins civilisés qui enviaient ses modestes succes de linguiste américaniste et d' aviador de Caras- Pretas”. 62 O viajante não procurou saber o processo de coleta desses objetos ou, se soube, não declarou em Voyage au Tapajoz. É possível imaginar que os artefatos foram pilhados de alguma aldeia ou acampamento Parintintin (Kagwahiva) e posteriormente ofertados a Moreira por algum indígena. No livro de Coudreau, as informações sobre esses objetos resumem-se a algumas linhas, sem menção à quantidade, ao estado de conservação, ao local onde foram obtidos, à forma de coleta, ao uso e aos significados para a comunidade criadora. O viajante informa apenas que eram “alguns machados e flechas muito ‘bravas’” e que enriqueceriam, “por modesto que seja o óbolo, a seção Parintintins do Museu do Pará”172. Figura 5. Machado e ponta de flecha Parintintin. Fonte: COUDREAU, 1897a. O presente dado por Moreira chegou ao museu três anos após a aquisição, em 1898, formando o que atualmente aparece na instituição como Coleção Henri Coudreau, com dez objetos. Além da ponta de flecha e do machado representados na Figura 5, há também enfeites de taboca, capacete, arco, cinto de tala e pulseira de pena (ver Tabela 2). Convém observar que, mesmo não tendo tido contato algum com os Parintintin (Kagwahiva), Coudreau os definiu como “sóbrios, honestos, repletos de qualidades”173. O elogio parece atrelado às crenças pessoais do viajante, sobretudo no ideal do “bom selvagem”174. O viajante era partidário de uma crença que creditava qualidades especiais aos 172 COUDREAU, 1897a,p.101. No original: “L'excellent Moreira me remet d'ailleurs quelques haches et quelques flèches très ‘bravas’qui enrichiront, pour modeste que soit l’obole, la section Parintintins du Musée de Pará”. 173 COUDREAU, 1897a, p.9 (tradução nossa). No original: “Enfin ils seraient sobres, honnêtes, remplis de qualités...”. 174 SOUZA FILHO, 2008; FERRETI, 2011. 63 índios isolados, que sabiam preservar sua liberdade e que viviam longe da “civilização” que tudo corrompia175. No entanto, o isolamento e o distanciamento dos civilizados não deveriam levar à hostilidade e à violência, motivo pelo qual Coudreau rechaçava os Tapayuna (Kajkwakratxi), vizinhos dos Parintintin (Kagwahiva), como destacaremos mais à frente. A concepção de Coudreau acerca do bom selvagem não eliminou a categorização dos índios em “mansos” e “bravos”, comuns no Brasil do século XIX176. O primeiro grupo era valorizado por uma suposta natureza pacífica e pela capacidade de integrar-se mais facilmente à sociedade nacional, obviamente de maneira submissa; e o segundo, era depreciado com a fama de “violento” e “traiçoeiro” por evitar o contato com a vida “civilizada” e não se submeter aos ditamos do “progresso” – passando a ser considerado um empecilho para o desenvolvimento social e econômico da Amazônia. Além dos índios “bravos”, Coudreau não poupava críticas aos ditos “indígenas civilizados”, aqueles que conviviam com os brancos e assimilavam os valores e as mercadorias do Velho Mundo. Para ele, “o selvagem que tenta se civilizar rápida e artificialmente é infalivelmente condenado a perder a essência de sua grandeza e o seu saber, para adotar o que tem de mais perverso no branco”177. Os Parintintin (Kagwahiva), segundo o viajante, viviam dispersos em pequenos grupos, tática usada para fugir dos seus inimigos Munduruku(Wuyjuyu), com quem viviam em contínua guerra, e dos “civilizados”. Todavia, Coudreau assinalava que o estado de “bom selvagem” poderia ter fim em razão do apreço que tinham pelos objetos da dita “civilização” e do interesse que despertavam nos “civilizados” que pretendiam controlar o interflúvio XinguTapajós178. Os comentários de Coudreau foram feitos, provavelmente, com base em relatos de moradores da região, pois o viajante não entrou em contato com os Parintintin (Kagwahiva), apesar de ter percorrido o território onde viviam, entre os rios Juruena e São Manuel (Teles Pires), formadores do Tapajós. A fragilidade desses comentários foi objeto de críticas na própria época da publicação do relato de viagem ao Tapajós. Por exemplo, o uso de fontes secundárias foi desaprovado por Arthur Vianna, intelectual paraense e diretor da Biblioteca e do Arquivo Público do Pará, grande crítico da contratação de Coudreau pelo governo do estado. 175 SOUZA FILHO, Op. Cit., 2008. TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. À Luz da “civilização”: representações indígenas nas narrativas dos viajantes (MT, séc XIV-XX). Revista Espacialidades [online],, v. 15, n. 2, pp. 71-85, 2019. 177 SOUZA FILHO, p.51. 178 COUDREAU, 1897a. 176 64 Em artigos no jornal O Pará, Vianna criticou a falta de rigor científico nas obras de Coudreau, como é o caso do referido trecho sobre os Parintintin (Kagwahiva), Vianna destacou as seguintes passagens de Coudreau: “Segundo alguns habitantes do Jauamaxim e do Crépory179, os Parintintins seriam mais susceptíveis de civilização que os Mudurucús, teriam demais o gosto pelos nossos costumes”; “(...) Os Parintintins passam todos os anos, parece, pelas estradas de borracha dos civilizados do Crépory, do Cadery, e também, parece, do Tapajoz”180. Ao final das citações, Vianna indagou: “haverá por ventura sciencia quando se firma o que se escreve com diz-se, parece, segundo as pessôas, etc.?”181. Não se conhece as razões da falta de contato do viajante com os indígenas, mas é certo que, para os seus contemporâneos, isso não era aceitável. Coudreau talvez tenha evitado os Parintintin em razão do contato que estabeleceu com os aviadores dos Munduruku, como Moreira. As divergências entre esses povos eram antigas. O viajante fez alusões, em algumas passagens, à inimizade entre os indígenas, como no trecho em que trata do “sertão bravo” do Tapajós, acima da cachoeira das Sete Quedas. Segundo Coudreau, quando de sua passagem pela área, alguns Munduruku “civilizados”, de uma “maloca” abaixo da queda d’água, estavam se preparando para atacar uma aldeia “dos Parintintins da costa ocidental” e coletar algumas “cabeças defumadas”182. Gonçalves Tocantins183, durante sua viagem de 1875 ao Tapajós, menciona que “entre as tribos mundurucu e parintintin reina desde longos anos odio de morte, e fazem-se guerras de extermínio”184, inclusive citando um presente pitoresco que recebeu: “um d’estes bárbaros [Munduruku], de vinte e cinco a trinta anos de idade, expansivo e desembaraçado, orador verboso, no dia seguinte me fez presente da cabeça mumificada de uma moça da tribu Parintintin”185. Souza e Martins,186 em estudo contemporâneo a respeito da prática de mumificação de cabeças pelos Munduruku, as “cabeças-troféus” apontaram os Parintintin, juntamente com os 179 Tradução e grifos de Arthur Vianna. O Pará, Belém, 16 de junho de 1898, p.1. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 181 Ibid. 182 COUDREAU, Op. Cit, 1897a , p. 88 (tradução nossa). No original: “Les Mundurucús civilisés d'une maloca un peu en aval de la Cachoeira das Sete Quédas, se préparaient, comme je revenais, à aller faire à quelques jours au-dessus de la Cachoeira limite, une récolte de têtes à boucaner chez des Parintinlins de la rive occidentale” . 183 TOCANTINS, Antonio Manuel Gonçalves. Estudo sobre a tribu Mundurucu. Revista Trimensal do Instituto Histórico Geographico e Ethnographico Brasileiro, tomo XL. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877, p. 73-161. 184 Ibid., p. 84 185 Ibid, p. 85. 186 SOUZA, Sheila Mendonça; MARTINS, Maria Rosário. A cabeça troféu Munduruku do Museu Antropológico da Universidade de Coimbra: análise do objecto e os seus desafios. Antropologia Portuguesa, v. 20, p. 155-181, 2004. 180 65 Mura, Maué e Arara, como os principais alvos dos ataques. A maior parte das “cabeçatroféus” salvaguardadas em instituições museológicas é proveniente do primeiro povo citado187, demonstrando assim a inimizade histórica entre os dois grupos indígenas habitantes do Tapajós e do São Manuel. Os frequentes ataques certamente possibilitavam que os Munduruku obtivessem objetos fabricados pelos seus inimigos. Tratemos, agora, da Coleção Lauro Sodré, de 1897, que possui objetos Yudjá/Juruna e Tapayuna (Kajkwakratxi). O único objeto dos Tapayuna, o machado de pedra encabado, representado na Figura 6 é a peça que levanta as maiores dúvidas sobre a procedência e o processo de coleta. Em Voyage au Tapajoz, não há informações a respeito da sua coleta ou do envio a alguma instituição museológica. Há apenas a sua representação em desenho, com os seguintes dizeres em francês: “o cabo em madeira se retira facilmente”. A frase ressalta uma das características desse tipo de objeto, o cabo feito de lenho secundário morto e removível188. Figura 6. Machado Tapayuna. Fonte: COUDREAU, 1897a. No Catálogo das coleções etnográficas do Museu Goeldi189, organizado por Curt Nimuendajú em 1921, quando ocupava o cargo de chefe interino da Seção de Etnologia, Arqueologia e Antropologia da instituição, consta a seguinte informação no campo referente à procedência do machado: “H. Coudreau 1895 – V. Voyage au Tapajoz p. 91. Obtido pelos Apiacá”. Na referida página de Coudreau, contudo, não se encontra o relato da doação ou compra dos objetos, como ocorreu no caso de Moreira e dos artefatos Parintintin 187 SANTOS, Sheila Ferreira dos; SALLES, Adilson Dias; SOUZA, Sheila Maria Ferraz Mendonça de; NASCIMENTO, Fátima Regina. Os Mundurukus e as “cabeças-troféu”. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 17, p. 365-380, 2007.. 188 RIBEIRO, Berta Gleizer. Dicionário do Artesanato Indígena. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. 189 NIMUENDAJÚ, Curt. Catálogo das coleções etnográficas do Museu Goeldi: cópia do 1º Catálogo do Sr. Curt Nimuendajú. Belém, 1921. (Não publicado) 66 (Kagwahiva), mas apenas a imagem do machado e uma descrição das táticas de ataque dos Tapayuna. É possível que Nimuendajú tenha deduzido que o objeto havia sido obtido pelos Apiaká, pois Coudreau não entrou em contato com os Tapayuna, mas fez um parecer negativo sobre o grupo baseado nas informações dadas pelos Apiaká, como se pode perceber no seguinte trecho: “os Tapanhunas são, ao que parece, da língua geral, os Apiacás teriam, ao que dizem, compreendido perfeitamente sua língua nos raros encontros que tiveram desde a migração dos Apiacás para o norte”190. É importante destacar que o trabalho realizado por Coudreau não pode ser encarado como uma pesquisa etnográfica. É, antes, um apanhado de informações coletadas com pouca ou nenhuma sistematização. Ele parece apenas reportar, sem crítica ou método, o que vê ou escuta, sem problematizar as fontes ou compará-las a fim de providenciar um estudo rigoroso dos povos indígenas das regiões visitadas. As considerações e descrições acerca dos indígenas, volumosas nos livros de Coudreau, muitas vezes incorrem em erros, o que deve despertar a necessária atenção e crítica de quem se debruça sobre sua obra. Lima191, em seu estudo sobre os Tapayuna, levantou a hipótese de que os indígenas relatados por Coudreau eram, na verdade, Kayapi, baseada na região percorrida pelo viajante e no recorte temporal da expedição ao Tapajós. Segundo Lima, até o início do século XX, eram os Kayapi que residiam nos rios Arinos, dos Peixes e Teles Pires, visitados e descritos por Coudreau. Não se pode, contudo, validar essa hipótese por falta de fontes históricas, razão pela qual o povo indígena encontrado pelo viajante continuará sendo aqui considerado como Tapayuna. Apesar de não ter conhecido pessoalmente os Tapayuna, Coudreau não apreciou suas táticas de guerra por não revelarem “um alto valor militar ou moral”. Essas táticas consistiam em emboscadas ou, nas palavras de Coudreau, em “assassinato por traição”. Escreveu o viajante: 190 COUDREAU, 1897a, p.91 (tradução nossa). No original: ‘les Tapanhunas sont, parait-il, de língua geral, les Apiacás auraient, disentils, parfaitement compris leur langue dans les rencontres d'ailleurs fort rares qu'ils ont eues avec eux depuis la migration des Apiacás vers le nord”. 191 LIMA, D. B. Os Tapayuna na História. Campos – Revista de Antropologia, v.15, n.2, p.43-69, 2014. 67 Eles esperam os viajantes que vão passando pelo rio. Os Tapanhunas estão em alguma praia, em alguma margem, em ângulo tal que os viajantes sejam obrigados a agir de imediato, sem muito tempo para reflexão. Eles surgem, portanto, todos sem flechas, riem, conversando alto, e fazendo aqueles que chegam sinais amigáveis para convidar-los a atracar. Ao que os viajantes imprudentes ao aproximar-se do alcance de suas flechas e de repente nossos Tapaunhas fazem chover suas “tacuaras" sobre suas vítimas despreocupadas192. Os Tapayuna, apesar de serem índios resistentes ao contato com outros povos, foram concebidos por Coudreau como “bandidos hereditários e profissionais”. Estes indígenas mantinham relativo isolamento, característica do bom selvagem, todavia, tendiam para ações de guerra que eram censuradas pelo viajante francês193. Os Tapayuna, resistentes aos impositivos da civilização, não se encaixavam no ideal do “bom selvagem” buscado pelo viajante nos sertões amazônicos. As atitudes, os ataques aos “civilizados” e o uso da tática do “assassinato por traição” fizeram com que fossem interpretados como índios “bravos”, antagônicos aos exemplos de virtuosidade dos “mansos”. A primeira categoria era execrada por Coudreau, merecendo a seguinte avaliação: “em quinze anos viajando com os índios, cheguei à convicção de que os índios ‘bravos’ são pura e simplesmente bandidos hereditários e profissionais, em relação aos quais a filantropia é uma ilusão”194. Além do machado de pedra Tapayuna, a Coleção Lauro Sodré é formada também por 36 objetos Yudjá/Juruna (ver Tabela 1). Diferentemente do que ocorreu no caso dos Tapayuna (Kajkwakratxi) e Parintintin (Kagwahiva), Coudreau conviveu com algumas pessoas desse povo durante a expedição ao rio Xingu, em 1896, legando, no livro Voyage au Xingu, informações sobre os indígenas e o processo de colecionamento, inclusive fotografias de alguns índios (Figura 7) e dos lugares de coleta (Figura 8)195. 192 COUDREAU, Op. Cit.,1897a, p.91 (tradução nossa). No original: “Ils attendent les voyageurs qui s'en vont passant par la rivière. Les Tapanhunas sont là sur quelque plage, sur quelque berge, à un angle autant que possible pour que les voyageurs soient forcés à agir de suite sans avoir trop le temps de réfléchir. Ils surgissent ainsi tout à du paysage sans are ni flèche, riant, parlant fort, et faisant à ceux qui viennent force signes d'amitiés pour les inviter à accoster. Que les imprudents voyageurs s'approchent à portée des fleches et soudain nos Tapanhunas font pleuvoir leurs “tacuaras” sur leurs confiantes victimes”. 193 COUDREAU, Op. Cit., 1897a. 194 Ibid., p.91 (tradução nossa). No original: “En quinze années de voyage chez les lndiens je suis arrivé à me faire cette conviction que les Indiens “bravos” sont purement et simplement des bandits héréditaires et professionnels à l'endroit desquels la philanthropie est un leurre”. 195 COUDREAU, 1897c. 68 Figura 7. Joaquim Pena e sua família. Fonte: COUDREAU, 1897c. Figura 8. Maloca Abandonada. Fonte: COUDREAU,1897c. Os Yudjá/Juruna, segundo Coudreau, viviam na região entre a Praia Grande e a Pedra Seca, ao longo do Xingu. Haviam sido numerosos uns vinte anos antes da sua expedição, mas naquele momento viviam em apenas 18 malocas, cujos tuxauas eram “Dâmaso, Murutú, Nunes, Curambé, Cancan, Triendé, Tababacú, Tabaratá, Tabão, Aribá, Macaïri, Joaquim Pena, Ignacio; Day, Tamaricú, Turià, Pacharicú”. Segundo Coudreau, “hoje eles são 69 reduzidos em número: se podemos contar, no máximo uns 150 – mansos, civilizados ou errantes”.196 Os Yudjá/Juruna passavam por processo de decréscimo populacional e viviam em constante fuga, com medo dos “civilizados” e dos inimigos indígenas, sobretudo os Karajá, que buscavam explorar o seu trabalho ou matá-los, respectivamente. Nesse contexto ocorreu a primeira coleta de objetos, seguindo um padrão praticado por outros viajantes mundo afora: os objetos foram levados sem o consentimento dos indígenas produtores, sem qualquer negociação ou troca material. Coudreau estava percorrendo o rio Xingu, quando observou “malocas abandonadas” (Figura 8) dos Yudjá/Juruna, que fugiam da ação dos “civilizados”. Recolheu, então, os objetos (Figura 9), como relatou com algum sarcasmo: “em uma dessas malocas abandonadas, a de Turiá, ao que me dizem, coleciono várias bugigangas e utensílios que os Jurunas, ao se mudarem, deixaram ali, não obviamente para o Museu Paraense”.197 Figura 9 – Brinquedo-Ubá do povo Yudjá/Juruna. Fonte: “Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendajú MCTI/ Museu Paraense Emílio Goeldi” (2016). Foto: Fabio Jacob, 2016. 196 COUDREAU, 1897c, p. 33 (Tradução nossa). No original: “Ils sont aujourd’hui réduits em nombre: c’est tout au plus si l’on peut em compter 150, - mansos, civilisés ou vagabonds”. 197 COUDREAU, 1897c, p.66(tradução nossa). No original: “Dans une de ces malocas abandonnées, celle de Turiá, à ce qu’on me dit, je fais collection de differérents bibelots et ustensiles que les Jurunas, em déménageant, on laissé là, non évidemment à l’intention du Musée Paraense”. 70 Figura 10 – Objetos possivelmente da coleção etnográfica Lauro Sodré de 1897. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Negativo MPEG000435, Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica. O que ocorreu no Xingu não foi uma exceção no processo de formação de coleções etnográficas. Várias foram constituídas com peças retiradas do seu contexto original por meio do extravio e furto, ação legitimada pelos mais diversos pressupostos colecionistas, científicos e civilizatórios. Muitos viajantes, naturalistas e etnólogos pensavam os objetos como inertes, a-históricos, sem levar em conta a importância, a agência, os significados que marcavam a vida social das comunidades produtoras. A segunda coleta seguiu o mesmo padrão, em uma ilhota a montante do Travessão da Capivara, sobre uma dúzia de “ajoupas” repartidas em dois acampamentos “na mirrada floresta”. Coudreau reportou: “coleciono 22 objetos da indústria de Juruna, alguns até artísticos: entalhes de madeira!”. Ainda entre os objetos apropriados, havia uma “ponta de lança em pedra cortada, sem dúvida, proveniente das regiões centrais do sul”, peça que o viajante, possivelmente, imaginou ser um achado arqueológico. Coudreau, contudo, se absteve de discutir “sobre a probabilidade ou não da existência indígena da pedra talhada na América”198. Essa ponta de lança, originalmente incorporada na coleção etnográfica do Museu 198 COUDREAU,1897c, p.70-71. No original: “Une curiosité à propôs de laquelle je ne m’astreindrai point à discuter les théories ayant cours au sujet de la probabilité ou de la non-probabilité de l’existence autochtone de la pierre taillée en Amérique”. 71 Paraense, foi posteriormente, talvez nos anos 1980-1990, transferida para a coleção arqueológica da instituição199. A maneira como Coudreau se referiu aos Yudjá/Juruna alterou-se ao longo do livro Voyage au Xingu, à medida em que ia convivendo com os índios. Nos primeiros capítulos, os Yudjá/Juruna foram descritos como guerreiros, traiçoeiros e que, caso atacassem a expedição, não titubearia em alvejá-los com tiros de rifles. O receio transformou-se em uma espécie de compaixão pelo estado de penúria em que os índios “mansos” eram jogados ao fugir dos “civilizados” e de outros indígenas inimigos. O contato mais próximo e intenso com os Yudjá/Juruna se deu com Laurinda, Xambi e o antigo tuxaua Joaquim Pena (Figura 7). Os dois primeiros foram, como afirmou o viajante, “juntamente com a carta de Steinen, nossos guias de viagem [...]”200. Entretanto, seu papel se sobrepõe ao de simples guias, pois foram também fundamentais fontes de conhecimento tradicional dos Yudjá/Juruna e dos Karajá. O êxito da expedição em vários momentos, os conhecimentos acerca da navegação e dos costumes dos povos habitantes do Xingu, relatados em Voyage au Xingu, são devidos aos saberes tradicionais compartilhados pelo casal Yudjá/Juruna201. Joaquim Pena, “o pobre rei exilado” do alto Xingu, havia sido um antigo líder de uma importante aldeia Yudjá/Juruna. Ele aparece com frequência na narrativa de Voyage au Xingu devido ao diálogo que estabeleceu com Coudreau, o que gerou observações do viajante recheadas de crítica social. Ao longo do livro, o único indígena com fala direta transcrita é Pena, possivelmente pela admiração que causou no autor. Quando do encontro entre o viajante e o líder indígena, em uma situação assimétrica, mas não permeada pela submissão do nativo, ocorreu um monólogo em tom de lamento, que denuncia o nomadismo em que os Yudjá/Juruna foram obrigados a viver e a miséria em que foram jogados, causada pelos senhores proprietários que os obrigavam a fugir para preservar sua liberdade: [...] Nossa sina é a de estarmos sempre em fuga. Antigamente, a gente fugia dos índios bravos e agora, dos civilizados, nossos queridos protetores. Mas logo estes senhores não poderão proteger quem quer que seja dos nossos: o último dos Juruna não demorará a levar para sempre a alma da raça, em qualquer cova rasa, sob alguns punhados de terra natal202. 199 Cf. Livros de Tombo da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi. COUDREAU, Op. Cit.,1897c, p.50. 201 COELHO; BENCHIMOL; MIRANDA, 2019. 202 COUDREAU, 1897c, p.81 (tradução nossa). No original: “[...] Notre destinée est d’être toujours en fuite. Autrefois nous fuyions les Indiens bravos et maintenant les civilisés, nos chers protecteurs. Mais bientòt ces messieurs n’auront plus à proteger personne d’entre nous: le dernier des Juruna ne tardera pas à emporter pour jamais l’âme de la race dans quelque trou peu profond, sous quelques poignées de terre natale”. 200 72 O tom pessimista de Pena, ou de Coudreau interpretando Pena, não se sabe, é uma reflexão acerca da penúria e da péssima condição social em que se encontravam os indígenas da região. Antes um líder de uma grande aldeia, agora Pena era alguém que fugia pela mata, em busca da liberdade ou de melhores condições de vida. Os objetos coletados por Coudreau eram os vestígios dessas fugas, reação ao medo e, simultaneamente, ação da agência indígena. Para Coudreau, os principais responsáveis por essa moléstia eram os comerciantes, que adentravam as matas e retiravam os índios do seu estado de “bom selvagem”, movidos pela lógica capitalista, extremamente desigual, e interessados apenas em vender suas mercadorias e explorar a mão de obra indígena.203 1.3 A TRANSFERÊNCIA DAS COLEÇÕES PARA O MUSEU PARAENSE A expedição de Coudreau ao Tapajós iniciou em 28 de julho 1895 e findou em 7 de janeiro do ano seguinte. No dia 22 de janeiro de 1896, Coudreau retornou a Belém para apresentar a Lauro Sodré “o relatorio e depois o autographo da obra denominada ‘Voyage au Tapajos’ contendo desenvolvida narração e estudo do territorio explorado, grande carta do rio e interessantes fotografias de paysagens e de costumes indígenas”204. Em 1897, ocorreu outro encontro entre os dois, novamente para apresentar os resultados dos trabalhos de campo, dessa vez da expedição realizada no Xingu entre maio e outubro do ano anterior. Os relatos de ambas as viagens foram remetidos ao embaixador brasileiro em Paris, Gabriel de Piza, com a finalidade de serem impressos pela casa Lahure. Formadas as duas coleções, pouco se sabe sobre seu trânsito até o Museu Paraense. O primeiro catálogo da coleção etnográfica dessa instituição data de 1921, o que foi organizado por Nimuendajú, portanto o processo de musealização dessas coleções a partir de 1896 tem muitas lacunas. No relatório de Albuquerque Mendonça, do qual foram retiradas as informações acerca dos encontros entre Coudreau e Sodré, não há alusão à entrega dos objetos. É provável que eles tenham sido levados a Sodré durante a estadia de Coudreau em Belém, durante a qual ele não apenas finalizou e entregou seus escritos, como também planejou as expedições seguintes. 203 COUDREAU, Op. Cit., 1897c. MENDONÇA, Albuquerque. Administração do Dr. Lauro Sodré. Belém: Typ. do Diário Official, 1897, p. 37. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil 204 73 As primeiras referências aos objetos coletados no Tapajós e Xingu são encontradas nos boletins do Museu Paraense, particularmente, nos relatórios do diretor ao governador. As doações ao museu eram registradas anualmente nos boletins, no segmento denominado “Donativos”. Nessas listas aparecem o nome completo das pessoas que, de alguma forma, contribuíram para as coleções da instituição e, por vezes, os objetos doados. Foi o caso de Lauro Sodré. No relatório de 1896, Emílio Goeldi menciona que, naquele ano, foram feitos diversos “donativos importantes, relativos á parte ethnographica” por parte do governador do estado, como “arcos, flechas, remos, fotografias do Indios “Gaviões” do Tocantins”205. No entanto, não há armas indígenas na coleção Lauro Sodré, datada de 1897, tão pouco objetos dos índios “Gaviões”. Arcos e flechas (nº 5571 a 5574206) compõem a coleção de objetos Parintintin, que Coudreau doaria apenas no ano posterior207. As peças referidas por Goeldi provavelmente foram adquiridas pela autoridade estadual por outro meio, sobre o qual não temos informações. No mesmo relatório (1896), está escrito que o Museu Paraense recebeu doações de lepidópteros e coleópteros provindos do Tapajós, da expedição realizada por Coudreau, mas doados pelo governador. Isso permite pensar que Coudreau não entregou pessoalmente a Goeldi os objetos Tapayuna e Parintintin, mas sim por intermédio de Sodré, que recebeu o crédito dos donativos. De acordo com o relatório, a entrega dos objetos coletados no Tapajós deve ter ocorrido entre os primeiros dias de 1896 e o início de 1897, mas eles só foram tombados, por razões desconhecidas, em 1898 (Tabela 2). No relatório de Goeldi referente ao ano de 1897, há menção a novos incrementos de objetos etnográficos. Uma doação mereceu “menção nominal”: a coleção do senador Lauro Sodré, já ex-governador do Pará. Segundo Goeldi, uma “bella collecção de armas, banquinhos e outras obras de madeira de uso entre Indios do Tapajós” foi enviada ao Museu Paraense antes da mudança de Sodré para o Rio de Janeiro208. Esses donativos são, certamente, os que compõem a atual Coleção Lauro Sodré (Tabela 1), cuja data de tombamento é o mesmo ano 205 GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado ao exmo. Sr. Dr. Lauro Sodré, governador do Pará, pelo diretor do Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia v. 2, n. 3, 1898, p.280. 206 Número do objeto no livro de tombo da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi. 207 Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); A Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia (1955); Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi e da Universidade Federal do Pará (1982). 208 GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado ao exmo. Sr. Dr. José Paes de Carvalho, governador do Pará, pelo diretor do Museu Paraense [ano de 1897]. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, v.3, n. 1-2, 1902, p.50. 74 de 1897. Além da coincidência de datas, há predominância de artefatos de madeira na referida coleção, como o citado banco (nº 5553). No entanto, o texto de Goeldi informa que os artefatos de madeira foram produzidos por índios do Tapajós, e não pelos Yudjá/Juruna do Xingu (além do machado Tapayuna, do Tapajós). Isso suscita três hipóteses: a primeira consiste numa possível mistura das duas coleções quando da chegada à instituição, entre 1896 e 1897, as quais podem ter sido posteriormente separadas e reorganizadas, ganhando a estrutura que se conhece atualmente; a segunda seria a existência de mais artefatos, inclusive bélicos, produzidos por indígenas do Tapajós, extraviados ao passar do tempo; a última seria um possível engano de Goeldi, que pode ter redigido o relatório sem ter feito uma análise do material ou sem ter recebido informações corretas e completas sobre os objetos. No levantamento documental realizado para essa pesquisa, não foram encontradas as listas dos objetos coletados por Coudreau e doados ao Museu Paraense, o que dificulta a análise do processo de musealização, particularmente, a maneira como ocorreu a transferência dos objetos do campo para os armários e as vitrines do museu. Goeldi era, além de diretor, o chefe da Seção de Antropologia, Etnologia e Arqueologia, mas não era um especialista nesses campos e não dedicou muito tempo ao estudo das coleções etnográficas e arqueológicas. As peças só foram inventariadas e descritas mais detalhadamente por Nimuendajú, em 1921, quando organizou o primeiro Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi.209 Nessa primeira listagem, 37 objetos de três etnias (Yudjá/Juruna, Tapayuna (Kajkwakratxi) e Parintintin (Kagwahiva) são atribuídos a Coudreau, divididos entre a coleção que recebeu o nome do viajante e a que foi batizada com o nome de Lauro Sodré, em 1898 e 1897, respectivamente. Na lista, constam o local de procedência, a etnia e algumas informações sobre as circunstâncias de coleta. O segundo catálogo da coleção etnográfica do Museu Goeldi data dos anos de 1939 e 1940. Ele também foi elaborado por Nimuendajú, com o auxílio de Evalda Xavier Falcão. No documento, os objetos estão divididos de acordo com os respectivos povos indígenas, apresentando os números da listagem anterior e os novos, que lhes foram atribuídos nessa ocasião. Na década seguinte, em 1955, Eduardo Galvão produziu o Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia, dividido em oito livros de tombo, com informações atualizadas a respeito dos objetos existentes na reserva técnica e o estado de conservação. No livro, são mencionados 46 objetos coletados por Coudreau, dos três povos já referidos. 209 BENCHIMOL, Alegria. Informação e objeto etnográfico: percurso interdisciplinar no Museu Paraense Emílio Goeldi. 2009. 124 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação)-Universidade Federal Fluminense e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (PPGCI/UFF/IBICT), Rio de Janeiro, 2009. 75 A razão da diferença entre o número de objetos coletados por Coudreau no primeiro catálogo de Curt Nimuendajú e no Registro do Material de Eduardo Galvão é a omissão de nove artefatos Parintintin (Kagwahiva) na primeira listagem, mas que aparecem na segunda lista de Nimuendajú, de 1939. Dessa forma, consolidamos o número de 46 objetos etnográficos coletados e acondicionados no Museu Paraense Emílio Goeldi210. 1.4 COLECIONAMENTO E AGÊNCIA INDÍGENA: REDES DE CIRCULAÇÃO Ao iniciarmos a leitura das fontes documentais, da bibliografia e da cultura material, a noção de que a coleção é resultado principalmente da ação do seu coletor211 parecia corresponder ao caso analisado nesse capítulo: a desconexão dos objetos que formam as duas coleções (Henri Coudreau e Lauro Sodré), a falta de informações sobre a procedência, o local da coleta, o uso e o significado dos objetos podem ser atribuídos ao amadorismo e à falta de preocupação de Coudreau com o trabalho etnográfico. Todavia, a partir dos próprios livros do viajante e de outros documentos, percebe-se que outros atores participaram ativamente da formação e musealização das referidas coleções. Como afirmou Byrne, “as coleções etnográficas manifestam um conjunto complexo de relações sociais, negociações e processos”212. Mais do que frutos da iniciativa e da apreciação do coletor, são produtos das relações entre diferentes sujeitos, humanos e não-humanos, entre mercadorias, entre informações e ideologias, viajantes e indígenas, diretores de museus e colecionadores, entre outros. Nesse sentido, uma coleção pode ser considerada para além da ação do coletor, pois é também resultado da interação de outros agentes, que participam igualmente do processo de seleção e rejeição dos objetos. Sem as demandas de Goeldi, que buscava ampliar a coleção etnográfica do Museu Paraense, as duas coleções talvez não tivessem sido formadas. Foram também importantes a subordinação do viajante às ordens do governador do Pará, uma vez que Coudreau desejava trabalhar no Brasil depois de um conturbado passado nas Guianas Francesa e Brasileira; as ideias que ele tinha sobre o colecionamento e sua experiência na formação de coleções para outra instituição museológica; o contexto histórico vivido pelos 210 COELHO, Matheus C..; BENCHIMOL, Alegria.; MIRANDA, Elis de Araújo. As Contribuições de Henri Coudreau à Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi. Museologia & Interdisciplinaridade, [S. l.], v. 9, n. 17, p. 202–219, 2020. DOI: 10.26512/museologia.v9i17.19690. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/19690. Acesso em: 21 mai. 2021. 211 Ibid. 212 BYRNE, Sarah. Trials and Traces: A. C. Haddon’s Agency as Museum Curator. In: BYRNE et al., 2011, p.307. 76 moradores dos rios Tapajós e Xingu e as relações do viajante com as redes sociais locais, como foram os casos de José Francisco Moreira e dos Apiaká, ambos determinantes para que objetos produzidos por terceiros (Parintintin e Tapayuna) chegassem às mãos de Coudreau depois de percorrerem outras redes de apropriação e ressignificação. A aquisição dos objetos Tapayuna e Parintintin demonstra que havia no Tapajós uma circulação de artefatos indígenas, algo comum em diversos espaços amazônicos, reportado desde os primeiros textos europeus sobre a região213. Velthem, ao tratar das trocas ameríndias, sublinhou dois pressupostos em relação ao objeto: o primeiro é que ele “é passível de circular através de círculos que ele determina e nos quais ele é determinante”214; o segundo é que, “ao se deslocar, um objeto o faz tanto geográfica como socialmente e que essa circulação ocorre, portanto, tanto no tempo como no espaço”215. O primeiro pressuposto diz respeito aos artefatos negociados e que são frutos da “especialização artesanal” que se desenvolveu em áreas como as Guianas, o alto Xingu e o rio Negro. Segundo Velthem, no noroeste amazônico, os raladores, cestos cargueiros e bancos dirigem os sistemas de trocas e são ativos importantes na região. A segunda assertiva refere-se às mudanças conceituais e práticas, não somente geográficas, pelas quais os objetos passam ao entrarem nas redes de circulação. As peças são manipuladas socialmente, podem ser utilizadas de formas distintas pelos entes que as possuem, além de assumir novos significados e sentidos a partir dos valores de crença. A mesma autora cita o exemplo do espelho ocidental, presente na coleção de Henri Coudreau conservada no Musée du Quai Branly, mas que está ornamentado com grafismos Wayana. Nesse ponto, é lícito levantar um questionamento: houve agência indígena na montagem das duas coleções associadas a Coudreau? A pergunta pode ser feita em razão da falta de contato entre Coudreau e as comunidades produtoras dos objetos, não havendo negociações diretas entre eles. Esse ponto é comum em diversas coleções etnográficas, afinal, muitos colecionadores não eram etnógrafos, não tinham formação acadêmica ou não estavam interessados em fazer estudos acerca das populações autóctones. No entanto, se não podemos assumir que as comunidades criadoras agenciaram diretamente a escolha dos objetos que compõem as duas coleções, podemos pelo menos afirmar que elas delimitaram quais não deveriam entrar nas redes de circulação. 213 GALLOIS, Dominique. Migração, guerra e comércio: os Waiãpi na Guiana. São Paulo: FFLCH/USP, 1986 apud VELTHEM, Lucia Hussak van. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 7, n. 1, jan.-abr. 2012. 214 VELTHEM, Op. Cit., 2012, p. 59. 215 Ibid., p.60. 77 Pieter ter Keurs, ao discutir os vários papéis das populações locais, dos políticos e dos intermediários no processo de coleta de objetos na Indonésia e no Mediterrâneo por holandeses no século XIX, notou a ausência de objetos rituais nas coleções. Baseado nas ideias de Nicholas Thomas,216 de que os objetos coletados por europeus no Pacífico estavam enredados nos valores e nas normas culturais locais, Keurs chegou à conclusão de que o mesmo deve ter ocorrido na coleta feita pelos holandeses: “os objetos rituais mais importantes não eram mostrados para os visitantes e, portanto, não poderiam ser obtidos”217. Nessa perspectiva, é possível levantar a hipótese de que os objetos que chegaram às mãos de José Francisco Moreira e dos Apiaká, através das redes interculturais de circulação, foram selecionados pelos indígenas produtores. Comumente, objetos rituais ou religiosos não são negociados e são especialmente protegidos, como demonstram os estudos de Keurs e Thomas, por estarem intrincados em complexos sistemas culturais que não permitem que sejam vendidos, trocados e até mesmo vistos por pessoas de outras culturas. Essa é uma explicação plausível para o fato das duas coleções associadas a Coudreau serem formadas apenas por objetos comuns (utilitários, brinquedos, adornos e armas), que certamente tinham maior circulação e podiam ser facilmente negociados ou pilhados. Pode-se assumir, portanto, que objetos rituais ou de uso especial não foram incorporados porque não circulavam com frequência – e não circulavam com frequência porque eram mais protegidos ou cuidados pelas comunidades produtoras218. Essa hipótese continuará a ser testada nesta pesquisa, pois as redes de circulação de objetos e a agência indígena são elementos importantes para pensar a formação e a musealização de coleções etnográficas. Veremos, no próximo capítulo, a participação da rede de colaboradores indígenas e não-indígenas na formação e aquisição, pelo Museu Paraense, da coleção de Theodor Koch-Grünberg em 1905. 216 THOMAS, Nicholas. Entangled objects: exchange, material culture and colonialism in the Pacific. Cambridge: Harvard University Press, 1991. 217 KEURS, Pieter ter. Agency, Prestige and Politics: Dutch Collecting Abroad and Local Responses. In: BYRNE et al., 2011, p. 173. No original: “It is also likely – at least in the beginning of the nineteenth century – that the most important ritual objects were not shown to the European visitors and therefore they could not be obtained” 218 VELTHEM, Op. Cit., 2012. 78 Capítulo 2 – A coleção Theodor Koch-Grünberg de 1905: um Völkerkundler na Amazônia O presente capítulo investigará a musealização da coleção etnográfica formada por Theodor Koch-Grünberg para o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). O capítulo será dividido em quatro subitens, intitulados: 1– Os americanistas e a Volkerkünde; 2– As expedições de um Volkerkundler (1899-1924); 3– A Volkerkünde percorre o rio Negro: a formação da coleção etnográfica de Koch-Grünberg; 4– A aquisição das “duplicatas” pelo Museu Goeldi. O primeiro tópico aborda brevemente o contexto da teoria etnológica e dos museus etnográficos alemães do final do século XIX e início do XX, aos quais KochGrünberg foi filiado. O segundo tópico apresenta resumidamente a trajetória do etnólogo, as suas expedições e produções científicas, e analisa suas concepções e representações acerca das populações ameríndias. O terceiro tópico investiga a formação da coleção de KochGrünberg durante a expedição pelo alto rio Negro e seus afluentes e a participação das redes de colaboradores indígenas e não-indígenas no processo de negociação, seleção e aquisição dos objetos. O quarto e último tópico trata do processo de compra e catalogação pelo Museu Goeldi da coleção formada pelo americanista. 2.1– Os americanistas e a Volkerkünde Entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, ocorreram diversas expedições chefiadas por etnólogos e exploradores alemães praticantes da Völkerkunde219 na América do Sul. Conhecidos como americanistas, esses homens – sob a influência decisiva dos trabalhos de Adolf Bastian (1826-1905) e dos interesses das instituições museológicas de seu país – realizaram expedições a campo com a finalidade coletar e estudar a cultura material e aspectos culturais, religiosos, sociais e linguísticos das sociedades ameríndias220. 219 Destaco que a utilização dos termos “antropologia”, “etnologia” e “etnografia” não é uniforme em todo mundo. Na Alemanha, e em países que comungam da língua alemã, o termo Anthropologie era utilizado para designar antropologia biológica e Völkerkunde – termo empregado pelos intelectuais e pesquisadores alemães para tratar da “ciência dos povos” ou “ciência do estudo dos povos” – abarca as atuais antropologia social, antropologia cultura e etnologia. In: VIERTLER, Renate Brigitte. Os fundamentos da teoria antropológica alemã: etnologia e antropologia em países de língua alemã: 1700-1950. São Paulo: Annablume, 2017. 220 Para mais informações acerca da Etnologia alemã da segunda metade do XIX e inicio do XX e suas relações com a História da Ciência no Brasil, ver a tese de doutoramento de Eric Petschelies intitulada As redes da etnografia alemã no Brasil (1884-1929) e o já citado livro de Renata Viertler. 79 Figura 11 – Museu Real de Etnologia (Königliches Museum für Völkerkunde). Fonte: http://www.zeno.org/nid/20000572284 O desenvolvimento da pesquisa etnológica alemã nesse período aconteceu quase que integralmente no ambiente museológico, sob a predominante influência intelectual de Bastian, Friedrich Ratzel, Rudolf Virchow e Wilhem Wundot221. O ambiente universitário era dominado por um grupo restrito de acadêmicos, restando aos americanistas – mesmo com formações universitárias clássicas, como ciências jurídicas, filologia e medicina – ocupar cargos, prestar serviços e analisar suas coleções nos museus etnológicos, como o Museu Real de Etnologia (Königliches Museum für Völkerkunde) (Figura 11), sediado em Berlim222. O grupo de americanistas estava ligado ao museu berlinense, que por sua vez estava vinculado ao projeto etnológico de Bastian, fundador e diretor da instituição entre os anos de 1873 e 1905. De acordo com Petschelies223, de forma geral, o objetivo maior da obra etnológica de Bastian consistia em compreender a “essência da racionalidade humana e como esta se expressava em contextos culturais diversos”. O acesso ao pensamento humano poderia se dar pela linguagem, mitos, símbolos religiosos e cultura material. Nesse sentido, os etnólogos, os Völkerkundler, eram incentivados a recolher a maior quantidade de dados sobre a cultura, as relações sociais, políticas e religiosas dos povos224. O museu seria o repositório do material etnográfico – cultura material, fotografias, gravações de áudio e vídeo, e anotações dos mitos – coletado na pesquisa de campo e o laboratório no qual 221 PETSCHELIES, Eric. As redes da etnografia alemã no Brasil (1884-1929). 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019. 222 PENNY, H. Glenn. Ethnology and Ethnographic Museums in Imperial Germany. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2002. 223 PETSCHELIES, Op. Cit., p. 76. 224 FRANK, Erwin. Objetos, imagens e sons: a etnográfica de Theodor Koch-Grünberg (1872- 1924). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 5, n. 1, 2010. 80 os cientistas estudariam e traduziriam a cultura contida nos objetos e nas anotações para textos legíveis pelos seus pares225. É necessário abrir um parêntese para demarcar uma diferenciação importante nos trabalhos etnológicos e antropológicos da época. Os citados americanistas do museu berlinense não podem ser colocados no mesmo pacote de estudos culturais dos antropólogos da corrente evolucionista social, como os anglófonos Lewis Henry Morgan (1818-1881), Edward Burnett Tylor (1832-1917) e James George Frazer (1854-1941). Como salienta Petschelies, a ligação entre os dois grupos se deu apenas no interesse em compreender “as condições sociais, jurídicas, culturais, econômicas, religiosas e mentais das ‘sociedades primitivas’, em demonstrar de quais formas a humanidade alcançou o estado ontológico atual” e no emprego comum de determinados termos acadêmicos da época, mas com significações distintas – como o termo “civilizado”, por exemplo, que poderia simbolizar para os Volkerkundler algo além do contrário de “selvagem”, pois distinguiria uma espécie de “detentor de princípios de civilidade, como cortesia e polidez”226. A escola evolucionista social – principalmente os trabalhos de Frazer, Tylor e Morgan – advogou o postulado de que o desenvolvimento humano, em todas as partes do mundo, teria se dado em estágios sucessivos e obrigatórios, num percurso fundamentalmente “unilinear e ascendente”. Nessa perspectiva, toda sociedade humana seguiria uma contínua marcha “do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado”227. O antropólogo americano Lewis Harry Morgan, por exemplo, em texto a respeito da importância dos estudos antropológicos, ressaltou a unicidade da trajetória humana, que seguia “[...] por canais diferentes, mas uniformes, em todos os continentes, e muito semelhantes em todas as tribos e nações da humanidade que se encontram no mesmo status de desenvolvimento”. Por esse motivo, para o americano, analisar a história e a experiência das sociedades ameríndias representaria, em certa medida, também compreender “a história e experiência de nossos próprios ancestrais remotos, quando em condições correspondentes”228. Na contramão da unicidade da trajetória da humanidade, conforme Baldus, a obra de Bastian aponta para um desenvolvimento humano multilinear, “espiralado”229. Viertler 225 PETSCHELIES, 2019. Ibid., p.136. 227 CASTRO, Celso. “Introdução”. In: CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural/textos de Morgan, Tylor e Frazer; textos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.14. 228 MORGAN, Lewis Henry. A sociedade antiga. Ou investigações sobre as linhas do progresso humano desde a selvageria, através da barbárie, até a civilização. In: CASTRO, Celso. Op. Cit., p.22. 229 BALDUS, Herbert. Adolf Bastian. In: Revista de Antropologia, v.14, São Paulo, 1966, p. 127. 226 81 acrescentou que não havia na interpretação do etnólogo germânico leis gerais de evolução cultural, mas sim: Uma maior ou menor frequência de processos determinados por conjunturas psicossociais (combinações de ideias elementares), condições de ambiente físico e contextos históricos – isto é, processos de grande complexidade e que devem ser inseridos no processo mais amplo da história humana230. Em suma, a abordagem de Bastian tendia a ser de natureza histórica cujo relativismo impediu que ele formulasse ‘leis’ de desenvolvimento humano progressivo, algo que exigiria que todos os povos da Terra já tivessem sido documentados231. Além da citada análise multilinear, outra marca importante do pensamento e trabalho dos americanistas foi a importância dada à formação de coleções etnográficas. Para além de representar os modos de vida de populações distantes, na perspectiva de Bastian e do museu berlinense, os objetos produzidos pelos povos ditos “primitivos” serviriam para o estudo da diversidade do pensamento humano. Em artigo póstumo, Frank afirmou que os objetos etnográficos eram entendidos como a expressão real da cultura dos seus criadores, a “cultura materializada”, e possibilitavam a apreensão dos modos de viver e pensar das comunidades produtoras, pois: [...] ao contrário das demais expressões dessa natureza (como as [inter]-ações das pessoas e as suas falas), tinham a inestimável vantagem de não perder nada com a separação espacial e temporal do contexto histórico e geográfico da sua origem, isto é, com o seu transporte e a conservação em algum museu na longínqua Alemanha. Pelo contrário, nos museus, os objetos podiam ser vistos, estudados, manipulados, analisados e expostos, para não somente ilustrar, mas reproduzir nas pessoas (devidamente ‘preparadas’ [gebildet] para tal, é claro) uma experiência da alteridade cultural de povos distantes, em geral, reservada ao próprio etnógrafo232. A prática de coletar artefatos etnográficos não era casual, mas baseada na metodologia e no pensamento científico da Völkerkunde. Por conta disso, encontramos grande diversidade de objetos nas coleções dos etnólogos alemães, que não encontramos nas montagens de outros coletores, como o francês Henri Coudreau. Bastian julgava os objetos coletados como dados, como portadores de significados. Dessa forma, era possível, através dos métodos científicos da linguística, alcançar o modo de pensar dos povos não alfabetizados233. A linguística também teve grande importância para a compreensão das relações, das semelhanças e das distinções entre os povos estudados. São comumente encontradas nas obras dos etnólogos 230 Grifos da autora. VIETLER, 2017. 232 FRANK, 2010, p.166. 233 KRAUS, Michael. Philological Embedments – Ethnological research in South America in the ambiance of Adolf Bastian. In: FISCHER, Manuela; BOLZ, Peter; KARNEL, Susan (eds.), Adolf Bastian and his Universal Archive of Humanity: The origins of German Anthropology. Hildesheim: Olms, 2007, pp. 140-152. 231 82 alemães listas de palavras, trechos de canções e mitos, que eram utilizados como fontes para a comparação, classificação e análise das relações entre os povos estudados234. No século XIX, assistiu-se na Alemanha um aumento expressivo no volume de objetos etnográficos nos museus. Além do projeto de Bastian de formar, nas instituições museológicas, um arquivo universal das sociedades humanas, o histórico colecionista de intelectuais alemães, a concorrência entre museus dentro e fora do território germânico – como os de Hamburgo, Leipzig, Munique e as instituições britânicas e francesas – e a “etnografia da salvação” concorreram para a expansão do volume e para o aprimoramento das coleções etnográficas235. A etnografia da salvação, em particular, articula dois argumentos da época, a proposta etnológica de Adolf Bastian e o pressuposto de que as culturas locais estariam fadadas ao desaparecimento com a expansão das sociedades nacionais. Se o avanço da “civilização” poderia acarretar o desaparecimento dos povos indígenas, para o fundador do museu berlinense e os demais americanistas, era necessário colecionar a maior quantidade de artefatos para salvaguardá-los nos museus, onde estariam preservados e poderiam ser estudados oportunamente236. Ao tratar das expedições científicas que percorreram o território brasileiro com o intuito de coletar artefatos indígenas, Grupioni237 ressaltou que elas se revestiam de um “caráter humanista”, pois “era preciso preservar a cultura dos povos indígenas que fatalmente iriam se extinguir, daí a significação ganha, neste período, pelo recolhimento de artefatos por eles produzidos”. Os evolucionistas sociais e racialistas, inclusive brasileiros238, também compartilhavam da concepção a respeito do desaparecimento dos povos ameríndios e também 234 FRANK, Erwin. Viajar é preciso: Theodor Koch-Grünberg e a Völkerkunde alemã do século XIX. Revista de Antropologia, v. 48, n. 2, p. 559-584, 2005. 235 PETSCHELIES, 2019. 236 PETSCHELIES, Op. Cit., 2019; FISCHER, Manuela. “La Mision de Max Uhle para el Museo Real de Etnología en Berlin (1892-1895): entre las ciências humboldtianas y la arqueología americana”. In: KAULICKE, Peter et al. Max Uhle (1856-1944): Evaluaciones de sus investigaciones y obras. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2010; HAAS, Richard et al. Las colecciones del alto río Negro en el Ethnologisches Museum de Berlín: aproximaciones recientes a una colección antigua. In: KRAUS, Michael; HALBMAYER, Ernst; KUMMELS, Ingrid. Objetos como testigos del contacto cultural: perspectivas interculturales de la historia y del presente de las poblaciones indígenas del alto río Negro (Brasil/Colombia), p. 135-153, 2018. 237 GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Os museus etnográficos, os povos indígenas e a antropologia: reflexões sobre a trajetória de um campo de relações. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. Suplemento 7, 2008, p.22. 238 CARULA, Karoline. Darwinismo, raça e gênero: projetos modernizadores da nação em conferências e cursos públicos (Rio de Janeiro, 1870-1889. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016; MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Raça como questão: História Ciência e Identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010; FAULHABER, Priscila. Etnografia na Amazônia e Tradução Cultural: comparando Constant Tastevin e Curt Nimuendaju. Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum., Belém , v. 3, n. 1, p. 15- 83 ressaltavam a necessidade de colecionar a cultura material, recolher dados linguísticos e os mitos dos povos autóctones. Seu objetivo não era viabilizar estudos acerca do pensamento humano, mas sim, evidenciar o processo de evolução das sociedades humanas, estabelecendo genealogias e hierarquias. Segundo Ribeiro e Velthem239, os objetos etnográficos, no século XIX, eram valorizados por muitos cientistas por “sua capacidade de testemunhar a respeito de estágios primitivos da cultura humana, assim como de um passado comum que confirmava o triunfo e a superioridade europeia”. Afora a crença no extermínio ou na incorporação dos ameríndios pelos civilizados,240 pode-se explicar o ímpeto colecionista de objetos indígenas também pelo interesse que estes artefatos despertavam em Bastian para o estudo da sua “teoria das províncias geográficas”. A respeito da citada teoria, Fischer explicou241: Essas “províncias geográficas” eram para Bastian entidades territoriais onde se detectavam as variações do ser humano devido às condições do habitat. Através da análise das causas imanentes nas diversas representações dos artefatos deveria ser possível entender os efeitos dos agentes em jogo e, por consequência, descobrir os pensamentos elementares comuns a todos os seres humanos. De acordo com a teoria, mediante o estudo do material etnográfico provindo dos povos da América do Sul, era possível compreender a influência do meio ambiente nas culturas locais. O próprio Bastian viajou entre maio de 1875 e agosto de 1876 para o subcontinente e coletou cerca de 2.000 objetos originários de países como Colômbia, Equador, Peru e Guatemala242. Apesar do ávido desejo em colecionar objetos da América, Bastian pouco os estudou. Segundo Ficher, de seus quase 300 trabalhos publicados, apenas 20 se dedicaram aos temas americanos. Em contrapartida, utilizou-se de outros etnólogos para realizar essa tarefa, que passaram a trabalhar no Museu Etnológico de Berlim e realizar expedições à América para reunir material etnográfico. A primeira geração de etnólogos, que chegou antes da virada do século, foi composta de Karl von den Steinen (1855–1929), Paul Ehrenreich (1855–1914) e 29, abr. 2008; KODAMA, Kaori. Os estudos etnográficos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (18401860): história, viagens e questão indígena. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum., Belém , v. 5, n. 2, p. 253-272, Aug. 2010. 239 RIBEIRO, Berta G; VELTHEM, Lucia H. Coleções Etnográficas, documentos materiais para a História Indígena e o Indigenismo. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos Índios no Brasil.São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.114. 240 KRAUS, 2007. 241 FISCHER, 2010, p. 49-50. No original: “Estas ‘provincias geográficas’ eran para Bastian entidades territoriales donde se detectaban las variaciones del ser humano debido a las condiciones do hábitat. A través del análisis de las causas inmanentes en las representaciones diversas de los artefactos debía de ser posible entender los efectos de los agentes en juego y por consecuencia descubrir los pensamientos elementales comunes en todos los seres humanos” 242 Ibid. 84 Max Schmidt (1874–1950). Com a chegada do século XX, outros etnólogos foram contratados, como Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) e Wilhem Kissenberth(1878-1944). Outros exploradores também prestaram serviços à instituição, formando coleções na América do sul, como Max Uhle (1856-1944), Alberto Vojtěch Frič (1882-1944) e Emil Heinrich Snethlage (1897-1939). Nas décadas finais do século XIX, a Etnologia alemã girava ao redor de Adolf Bastian e do Königliches Museum für Völkerkunde. Bastian teve um papel importante na inserção dos americanistas no campo etnológico através do museu berlinense, na construção de interpretações sobre a diversidade cultural da humanidade, no desenvolvimento de uma metodologia de trabalho de campo e na ênfase do colecionismo etnográfico para o conhecimento antropológico243. 2.2– As expedições de um Volkerkundler (1899-1924) Theodor Koch-Grünberg244 (Figura 12) fez parte da segunda geração de americanistas alemães ligados ao Museum für Völkerkunde e ao seu diretor, Adolf Bastian, e que expedicionaram pela Amazônia a partir do século XIX. Filho de um pastor luterano, KochGrünberg nasceu em Grünberg em 9 de abril de 1872. Formou-se em Filologia Clássica em 1896 pela Universidade de Gießen com a pretensão de se voltar para a docência, como o fez ao assumir, no mesmo ano, o cargo de professor de ensino básico245. Figura 12 – Theodor Koch-Grünberg. Fonte: ZERRIES, 1972. 243 KRAUS, 2007. Inicialmente assinava seus trabalhos, e era conhecido, como Theodor Koch. Após 1905, ele acrescentou o nome de seu lugar de origem ao sobrenome. 245 KRAUS, Michael. Y cuándo finalmente pueda proseguir, eso solo lo saben los dioses: Theodor KochGrünberg y la exploración del alto Río Negro. Boletín de Antropología Universidad de Antioquia, v. 18, n. 35, p. 192-210, 2004a. 244 85 Como os outros americanistas de sua geração, Koch-Grünberg era membro da burguesia letrada (Bildungsbürgertum), que prosperava desde o começo dos oitocentos, principalmente depois da proclamação do Império Alemão (Reich)246. Essa camada social era formada por funcionários públicos, médicos, juízes, professores, jornalistas, artistas, pastores evangélicos e era prestigiada pelo seu capital cultural e pelos conhecimentos humanísticos e clássicos. Como assinala Petschelies, “os espaços públicos culturais e educacionais eram significativamente ocupados pela burguesia letrada, seja como produtora ou consumidora de conhecimento”247. Nesse sentido, museus, escolas e universidades eram os locais preferencialmente ocupados por essa burguesia, que não detinha títulos nobiliários, mas que possuía respeito e estatuto social pelos conhecimentos intelectuais248. Em aspectos culturais, a burguesia letrada podia ser caracterizada, entre outras coisas, por “uma atitude positiva frente ao trabalho, ênfase na educação, respeito pela ciência, conceitos fixos de vida familiar e de distribuição de papéis conforme o sexo. Assim como, ideias determinadas sobre ordem autoridade, limpeza, sexualidade e etc”249. Para Kraus250, a dedicação à leitura durante a juventude, a profissão de pastor protestante de seu pai e as ocupações de Koch-Grünberg como professor e etnólogo remetem ao ambiente burguês letrado da Alemanha no século XIX. Além do exposto, Kraus também observa que as experiências de campo, o pensamento social burguês alemão e a trajetória acadêmica moldaram a sua compreensão e conduta com os indígenas e as suas respectivas culturas materiais e imateriais. Os traços de “diligência, limpeza, ordem e obediência” nos índios e nas aldeias que visitou foram valorizados por Koch-Grünberg251. Um bom exemplo disso é o comentário que fez sobre o comportamento dos indígenas da aldeia de Cururú-cuára, no rio Aiarý, durante a sua segunda expedição à América do Sul entre 1903 e 1905. Koch-Grünbeg costumava receber em sua barraca a gente da aldeia para mostrar seus instrumentos de trabalho, sua 246 PETSCHELIES, 2019. Ibid., p.101. 248 Ibid., 2019. 249 KRAUS, Michael. Una composición de diferentes factores: la imagen del indígena entre teorías científicas, experiencias personales y contextos sociales en la obra de Th. Koch-Grünberg. In: CIPOLLETTI, María Susana (Coord.). Los Mundos de Bajo y Los Mundos de Arriba: Individuo y Sociedad en las Tierras Bajas, en los Andes y más allá. Quito: Abya-Yala, 2004b, p. 401-423. 250 Ibid., p. 412. No original: “Uma actitud positiva frente al trabajo, el énfasis em la educación, el respeto de las ciências, conceptos fijos de la vida familiar y de la distribución de los roles según el sexo, como también ideas determinadas sobre orden y autoridade, limpeza y sexualidade etc”. 251 Ibid., p. 413. No original: “Diligencia, limpeza, orden y obediencia”. 247 86 espingarda, um livro de gravuras de animais de outras partes do mundo e a câmera fotográfica. A conduta indígena foi exposta assim: Apesar do seu entusiasmo por todas essas novidades inauditas, os indígenas comportavam-se muito mais urbanamente do que os nossos habitantes das cidades grandes, em condições semelhantes. Não havia empurrões, nenhuma briga feia perturbava o aconchego. Tudo corria segundo certa ordem e regradamente. Os objetos iam de mão em mão e voltavam a mim pelo mesmo caminho. Mesmo quando o primeiro recebedor já se tinha afastado, eles corriam atrás dele para lhe entregar objeto, a fim de que ele o colocasse em minhas mãos252. Na descrição acima, tomamos conhecimento do comportamento e da valorosa moralidade dos indígenas de Cururú-cuára, que mesmo demonstrando verdadeiro entusiasmo com as novidades tecnológicas, eram sempre ordeiros e honestos nos encontros com o alemão. Para além do enaltecimento do indígena e de sua moralidade, ponto marcante na obra do americanista alemão, a passagem demonstra as marcas do pensamento burguês do período imperial alemão. Figura 13 – Dança do Falo, Rio Aiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1909. O puritanismo burguês também influenciou a descrição de manifestações da sexualidade dos indígenas. Para não chocar os leitores, rituais com conotações sexuais eram narrados com delicadeza, buscando “naturalizar” as práticas indígenas. Ao citar uma cena que presenciou numa maloca no rio Aiarý, a “dança fálica” (Figura 13), na qual os dançantes simulavam movimentos do ato sexual, Koch-Grünberg ressaltou a seriedade com que os 252 KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Dois anos entre os indígenas: viagem ao noroeste do Brasil (1903-1905). Manaus: EDUA/FSDB, 2005, p. 104. 87 espectadores assistiam à exibição, sem notas de “indecência”, pois aquele ritual visava espalhar fertilidade para toda gente, incluindo animais e plantas que ali viviam – ou seja, tinha um caráter nobre e fraterno. Era, como comentou o etnólogo, “um pensamento de profundo significado moral e livre de qualquer indecência no nosso ponto de vista”253. Distante das teorias que buscavam inferiorizar a intelectualidade e a moralidade dos indígenas frente ao homem branco civilizado, o etnólogo alemão buscava equalizar a moralidade indígena e a burguesa. Os espectadores e dançantes do ritual não participavam de uma cena perversa ou pecaminosa, mas de uma cerimônia com um significado amplo e que beneficiaria toda a aldeia. Não eram indecentes, “sua moralidade situa-se em alto nível, embora muitas famílias convivam em um só e mesmo espaço”, escreveu o americanista. Apesar da formação em filologia, conhecer os indígenas e viajar por territórios distantes de sua terra natal eram sonhos de infância e juventude de Koch254. Acompanhava as crônicas de viagem e os estudos etnológicos e geográficos publicados na revista Globus255, um dos periódicos mais populares da Alemanha nas décadas finais do século XIX256, e era familiarizado com as propostas e metodologias da etnologia que estavam em desenvolvimento neste período. No livro Dois anos entre os índios [Zwei Jahre unter den Indianern]257, publicado originalmente em 1909, o americanista relembrou as gravuras apresentadas nos relatos de viagem de Paul Marcoy e Jules Creveux, publicados na revista francesa Le tour du Monde, e relacionou essas leituras ao despertar de seu sonho de conhecer países longínquos. Como admirador das explorações do século XIX, Koch-Grünberg foi um leitor de viajantes de diversas nacionalidades. Nos seus textos menciona obras do brasileiro Antonio Manuel Gonçalves Tocantins, do britânico Robert Schomburgk, do padre espanhol Joseph Gumilla e dos franceses Charles Marie de La Condamine, Paul Rivet e Henri Coudreau. Esse último foi lembrado por Koch-Grünberg quando da passagem por Óbidos, cidade localizada um pouco acima da foz do rio Trombetas, local onde Coudreau havia sido enterrado. Segundo Koch, “na sombra das árvores da beira-rio dorme seu último sono o pesquisador do Amazonas, Henri Coudreau, depois de uma vida incansável, cheia de esforços e trabalhos”258. 253 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.161. KRAUS, Michael. De la teoría al indio. Experiencias de investigación de Theodor Koch-Grünberg. Maguaré, n. 24, p. 13-36, 2010. 255 FRANK, 2005, p. 564. 256 Para mais informações acerca do periódico, ver: WELPER, Elena. Etnografia e ficção nos relatos de viagens para a América do Sul publicados na revista Globus (1862-1910). Indiana, v. 35, n. 1, p. 191-204, 2018. 257 KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., 2005, p. 177. 258 Ibid., p. 26. Quando da publicação da monografia em 1909, o corpo de Henri Coudreau já não estava mais depositado nas margens do rio Trombetas, pois em 1904 a viúva Octavie Coudreau retirou os restos mortais e os 254 88 Por meio de Globus, tomou conhecimento da expedição de Herrmann Meyer ao Alto Xingu e da notícia de que ele procurava um especialista em linguística comparativa. Koch se candidatou ao trabalho e conseguiu fazer parte da comitiva formada pelo botânico Robert Pilger e pelo médico Alfred Mansfeld, ocupando a função de fotógrafo e assumindo os seus próprios custos durante a viagem. A missão científica de Meyer adaptou um modelo de viagem utilizado na África, que objetivava prioritariamente obter recursos financeiros e prestígio pessoal às lideranças da expedição. As pretensões científicas eram pequenas e apoiadas no desejo de descobrir e conquistar novos territórios259. O efeito disso foi uma expedição pomposa e inadaptada às condições locais, conforme descreveu Petschelies: Enquanto von den Steinen carregou produtos locais para dentro do mato, como carne seca, farinha, feijão e cachaça, Meyer também trouxe da Alemanha carregamentos de produtos de luxo, como champagne, aspargos em conserva, compotas e geleias de frutas silvestres para serem apreciados confortavelmente sentados a mesinhas dobráveis. Para servir as iguarias, Meyer levou consigo seu mordomo particular Walter, e, para amenizar o clima de tensão típico das expedições, seu cão de estimação, da raça Dachshund, chamado Reinhardt, também cruzou o oceano. Evidentemente isso acarretou em um aumento significativo dos custos e do número de animais de transporte, contribuindo para a vagarosidade característica das expedições tropeiras260. Todos os detalhes elencados acima contribuíram para o insucesso da expedição. A liderança de Meyer privilegiou aspectos elitistas e burgueses, inapropriados para a realidade dos territórios percorridos, gerando um aumento significativo dos custos da viagem e o adoecimento dos membros da comitiva por malária e disenteria. Outro grande obstáculo para o êxito da expedição foi o descontrole emocional de Meyer, que criou tensões e discussões violentas com Koch, Masfeld e Walter261. Os resultados científicos foram mínimos, pois diários, coleções etnográficas, dados geográficos foram perdidos ou se deterioram ao longo da viagem fluvial por conta dos diversos naufrágios das canoas abarrotas com os alimentos e materiais coletados e pela implacável umidade262. Certamente, as lembranças e a experiência frustrada na missão de Meyer ao Xingu não foram olvidadas no planejamento das expedições futuras de Koch-Grünberg. Ele buscou não levou para a França, para serem enterrados em definitivo no Cemitério de Bardines em Angoulême. Sobre o processo de exumação, transporte para Paris e enterro dos restos de Coudreau, ver a matéria do periódico de Angoulême: “Une exploratrice charentaice”, La Charente. 19 de março de 1904 – Source gallica.BnF.fr. 259 KRAUS, Michael. “Am Anfang war das Scheitern. Theodor Koch-Grünberg und die ‘zweite Meyer’sche Schingú-Expedition’”. In: KRAUS, Michael (Org.). Theodor Koch-Grünberg. Die Xingu-Expedition (18981900): Ein Forschungstagebuch. Köln / Weimar / Wien: Böhlau Verlag, 2004. apud PETSCHELIES, Op. Cit., 2019. 260 PETSCHELIES, 2019, p. 310-311. 261 Ibid. 262 KRAUS, Op. Cit., 2004a. 89 cometer os mesmos erros na relação com os membros da comitiva, no contato com moradores e com indígenas e na adaptação das excursões científicas às condições locais dos territórios visitados263. Além disso, o ofício de fotógrafo na expedição contribuiu para o aprimoramento do seu domínio sobre a tecnologia e de seu olhar fotográfico sobre o campo de pesquisa e as comunidades locais, que marcariam a sua produção científica. A produção fotográfica de Koch-Grünberg foi marcada pelo seu trabalho de campo, pelos seus interesses de pesquisa e os da Volkerkünde. O esplendor da natureza amazônica não é o principal alvo de suas fotografias, mas os indígenas e suas produções materiais. Nesse sentido, Frank264 ressalta quatro categorias de fotos do etnólogo: os indígenas em movimento (as atividades rotineiras e os rituais nas aldeias); os grupos autóctones (famílias de todos os habitantes da localidade e visitantes); os “tipos” indígenas; a cultura material. Para Petschelies265, a divisão em quatro conjuntos de fotografias feita por Frank dá conta apenas do acervo geral, mas o estudo mais detalhado de livros do americanista, como Zwei Jahre unter den Indianern [Dois anos entre os índios], lança luz, na verdade, sobre oito classes, a saber: “situações cotidianas no campo; paisagens naturais; tipos indígenas; objetos e peças etnográficas; índios exibindo ornamentos; técnicas indígenas; fotos de grupos; e os expedicionários em meio aos índios”. Dessa forma, diversas categorias de fotografias coexistem nos livros e artigos do americanista, visando demonstrar diferentes aspectos da experiência etnográfica durante as expedições. Duas categorias de fotografias foram destacadas por Frank, por sua recorrência e importância na obra do americanista: as de tipos indígenas e de cultura material. No primeiro caso (Figura 14), mulheres ou homens indígenas posam, geralmente, em um fundo branco, com os braços estendidos para baixo, cabeça levantada e o olhar fixo à câmera. Para o autor, Koch-Grünberg parece não querer retratar “indivíduos”, mas “exemplares ou tipos”. É comum que, na legenda, não constem os nomes das pessoas e a identificação ser apenas o nome do povo indígena266 – como se pode observar na legenda da Figura 14, na qual se lê “Makú do Curicuriarý”. 263 PETSCHELIES, 2019. FRANK, 2010. 265 PETSCHELIES, Op. Cit., p.422. 266 FRANK, Op. Cit., p. 158. 264 90 Figura 14 – Índio do Curicuriarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1909. Outra categoria importante de fotografia é a de cultura material indígena, a representar, em sua maioria, artefatos que compõem as coleções negociadas com o Königliches Museum für Völkerkunde e o Museu Goeldi. Artefatos aparecem separados ou em conjuntos, também em fundo branco, destacando aspectos estéticos ou da matéria-prima utilizada. O uso comum ou ritual – e também a fabricação – dos objetos são evidenciados em imagens com índios em movimento (Figura 13) ou em descrições textuais267. É o caso dos bastões de ambaúva para dança (Figura 15), que Koch-Grünberg relata serem “adornados com motivos queimados e pintados e tinham cabos esculpidos. Os dançantes batem ritmicamente com estes bastões no chão. Os diâmetros diferentes destes bastões produzem sons diferentes”268. Figura 15 – Bastões de ambaúba para dança, dos Kauá. Rio Aiarý269. Fonte: KOCHGRÜNBERG, 1909. 267 FRANK, 2010. KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.102. 269 Objetos depositados no Fiel Museum of Natural em Chicago, coleção Koch-Grünberg. 268 91 Após a expedição de Meyer, Koch-Grünberg retornou para as suas atividades de magistério em Hesse270. O etnólogo publicou em 1899 seu primeiro ensaio, intitulado Die Anthropophagie der südamerikanischen Indianer, tratando sobre a antropofagia nos índios sul-americanos.271 No ano seguinte, publicou um trabalho mais volumoso, denominado Zum Animismus der süderamerikanischen Indianer, acerca do animismo nos povos originários do referido continente272. Esses dois trabalhos, baseados nos relatos de outros americanistas e viajantes e nas suas primeiras notas etnográficas, buscam lançar luz sobre as práticas indígenas e não as condenar – mesmo que ainda estejam repletos de generalizações e compreensões evolucionistas273. Em 1901, Koch-Grünberg decidiu renunciar a docência, que lhe rendia 2.200 marcos alemães ao ano, em favor do cargo de auxiliar voluntário no Königliches Museum für Völkerkunde274. A mudança de função foi mediada pelo diretor do Museu, Bastian, e pelo chefe da seção americanista, Karl von den Steinen, que acreditavam no preparo e na experiência adquirida por Koch na viagem e na pesquisa etnológica. No ano subsequente, ele se doutorou Etnologia pela Universidade de Würzburg, estudando o grupo linguístico Guaikuru da região do Chaco a partir de suas próprias anotações feitas durante a viagem ao Xingu e as de von den Steinen275. Koch nutria expectativas de exercer profissionalmente a etnologia e de realizar uma expedição à América do Sul. Isso foi efetivado em 1903, quando lhe foram oferecidos seis mil marcos pelo Comitê Etnológico de Ajuda para uma expedição de coleta de objetos etnográficos durante um ano pelos rios Ucayali, Juruá e Purús276. Com destino à Amazônia pela segunda vez, ele partiu no dia 20 de abril de 1903 da Alemanha. O etnólogo não chegou a percorrer o Ucayali nem o Purus. Viajou mais ao norte, pelo alto rio Negro, Japurá e afluentes, entre os territórios do Brasil e da Colômbia. A expedição de dois anos teve um saldo positivo para a carreira de Koch e para as aspirações do Museu berlinense. Anos depois do fim da expedição, o etnólogo elencou os resultados no proêmio do livro Dois anos entre os indígenas: viagens ao noroeste do Brasil (1903 –1905): 270 PETSCHELIES, 2019. KOCH, Theodor. Die Anthropophagie der südamerikanischen Indianer. Internationales Archiv für Ethnographie, Leiden, v. 12, p. 78-110, 1899. 272 KOCH, Theodor. “Zum Animismus der süderamerikanischen Indianer”. Internationales Archiv für Ethnographie, Leiden, v. 13, suplemento, 1900. 273 KRAUS, 2004b. 274 KRAUS, 2004a. 275 Uma versão da tese de doutorado foi publicada no periódico Globus, ver: KOCH-GRÜNBERG. “Die Guaikurustämme”. Globus. Illustrierte Zeitschrift für Länder- und Völkerkunde, Braunschweig, v. 81, p. 1-7, 39-46, 69-78, 105-112, 1902. 276 KRAUS, Op. Cit., 2004a. 271 92 Foi percorrida uma grande região, em parte pouco conhecida e, em parte, completamente desconhecida; foi constatado o curso de cada rio e sua influência nos territórios Orinoco, Guaviare, Negro, Yapurá, permitindo estabelecer certas conclusões sobre as migrações de tribos indígenas; Rico material linguístico, abrangendo mais de 40 línguas e dialetos, até agora desconhecidos, permitindo corrigir em muitos pontos a classificações das tribos; mais de 1000 fotografias, reveladas imediatamente no lugar, reproduzem fielmente a grandiosa natureza, suas belezas e seus medos, a vida da expedição, tipos de cada tribo, os trabalhos dos indígenas em casa e na roça, suas diversões, danças; minha grande coleção de objetos etnográficos encontra-se agora no Real Museu de Etnologia, em Berlim. Uma coleção menor entreguei-a ao Museu Goeldi no Pará277. A expedição foi considerada um sucesso, com mais de 1.800 artefatos indígenas coletados, sendo cerca de 1.300 vendidos ao Königliches Museum für Völkerkunde e 503 para o Museu Goeldi em Belém, a título de “duplicatas”. Além disso, foram recolhidos um rico acervo de fotografias, dados etnográficos e linguísticos acerca das populações autóctones – algumas até então não registradas – e que foram publicados em livros e artigos posteriores, como Südamerikanische Felszeichnungen278 [Petroglifos suramericanos], Zwei Jahre unter den Indianern, Reisen in Nordwest-Brasilien279 [Dois anos entre os indígenas], Anfänge der Kunst im Urwald280 [Começo da arte na selva] e Indianer typen aus dem Amazonasgebiet281 [Tipos indígenas da região amazônica]. Apesar do êxito profissional com a expedição ao rio Negro, Koch-Grünberg permaneceu até 1909 como auxiliar científico no Königliches Museum für Völkerkunde. A falta de perspectivas na carreira o levou a trocar o cargo no museu berlinense pela docência na Universidade de Friburgo, função que exerceu até 1915. Todavia, não abandonou as viagens científicas. Entre 1911 e 1913, realizou uma terceira expedição para a América, de Roraima ao Orinoco, entre o norte do Brasil e o sul da Venezuela, por meio do financiamento pelo Instituto Baessler282, que resultou na publicação dos cinco volumes da obra Vom Roraima zum Orinoco. Em 1915, ele aceitou o posto de diretor científico do Museu Linden em Stuttgart. A situação financeira da instituição museológica não ia bem e foi se agravando com o passar dos anos. No derradeiro ano de 1924, Koch-Grünberg renunciou à direção do museu e embarcou na expedição empreendida pelo explorador norte-americano A. Hamilton Rice com o objetivo 277 KOCH-GRÜNBERG, 2005. _________________. Südamerikanische Felszeichnungen. Berlim: Ernst Wasmuth, 1907. 279 KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Zwei Jahre unter den Indianern: Reisen in Nordwest-Brasilien 1903-1905 (2 vols). Sttutgart: Strecker & Schröder, 1919/1910. 280 _________________________. Anfänge der Kunst im Urwald. Indianer Handzeichnungen auf seinen Reisen in Brasilien gesammelt von Dr. Theodor Koch-Grünberg. Berlim: Ernst Wasmuth, 1905. 281 ________________________.Indianertypen aus dem Amazonasgebiet. Nach eigenen Aufnahmen während seiner Reise in Brasilien von Dr. Theodor Koch-Grünberg. Berlim: Ernst Wasmuth, 1906/1911. 282 KRAUS, 2004a. 278 93 de conhecer a região da nascente do rio Orinoco. Os planos dos exploradores fracassaram, pois em 8 de outubro o etnólogo morreu vitimado pela malária em Vista Alegre, no Médio Rio Branco. Koch-Grünberg empreendeu quatro expedições à América do Sul, que resultaram na publicação de artigos, em uma tese de doutorado, em livros e na formação de grandes coleções etnográficas depositadas em diversos museus, na Europa e na América. Em artigo sobre a obra científica do americanista, Schaden283 ressaltou que em toda a produção intelectual de Koch não há um escrito “que não trate exclusivamente de questões relativas à terra descoberta por Colombo”. O americanista demonstrou por intermédio de suas obras verdadeiro interesse e entusiasmo pelo continente americano e pelos povos indígenas que aqui viviam – em especial os habitantes da Amazônia. Mediante a venda de coleções etnográficas para museus, Koch-Grünberg cobriu os custos das viagens e tornou viáveis suas pesquisas sobre os ameríndios. No entanto, na perspectiva do americanista, o colecionamento de objetos indígenas não era o principal propósito das suas viagens. Seus interesses estavam voltados para a compreensão da cultura e do modo de viver dos povos indígenas, como esclareceu: [...] para mim, o objetivo principal da minha viagem não era o de um colecionador. Frequentemente demorando-me semanas, até meses em cada tribo, e em cada aldeia, participando intimamente da vida dos indígenas, eu pretendia essencialmente conviver e aprofundar mais a visão das suas concepções, pois o visitante que passa rapidamente pela região de suas pesquisas consegue apenas impressões passageiras e 284 frequentemente falsas . Apesar da necessidade de acumular grande quantidade de artefatos de diferentes povos indígenas para a manutenção de suas pesquisas e viagens, o contato e as relações firmadas com os índios não eram fugazes ou superficiais. Ao contrário, ele almejava conviver com os habitantes das aldeias, geralmente passava dias ou semanas em sua companhia, recolhendo vocabulários, trocando informações com os anciões e líderes das comunidades e observando – e algumas vezes participando – de celebrações e rituais. Para Koch-Grünberg, os indígenas não eram inferiores aos civilizados, pelo contrário, eram iguais em sua individualidade – e muitas vezes até melhores. O indígena livre, na visão de Koch-Grünberg, apenas externa ser arredio e desconfiado por conta do histórico de ameaças e massacres praticados por brancos “aventureiros, suspeitos dos mais variados países, o lixo da humanidade”. Na convivência com um estrangeiro que o tratasse bem e com respeito, o indígena manifestaria sua natureza afável e retribuía com “uma total confiança à 283 284 SCHADEN, Egon. A obra científica de Koch-Grünberg. Revista de Antropologia, v.1, n.2, 1953, p. 133. KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.7. 94 bondade do branco”285. De forma geral, os índios, na obra do americanista, foram representados como “seres humanos em plena individualidade”, em sua maioria de natureza amável, inócuos, honestos e fiéis com seus amigos286. Figura 16 – Theodor Koch-Grünberg e seu pequeno amigo Tarú, no rio Aiarý. Fonte: KochGrünberg, 1909. Vê-se, na Figura 16, Koch-Grünberg descalço e com chapéu de explorador, posando com o caderno de campo em mãos – provavelmente adicionando notas sobre a aldeia, seus habitantes ou os intercursos da viagem – ao lado do pequeno Tarú, considerado por ele “o mais querido entre os companheiros”287, que repousa a mão em seu ombro. O retrato visa representar a experiência etnográfica, a atividade do etnógrafo e a relação afetuosa e próxima com os indígenas que marcou as expedições e a produção intelectual do americanista. 2.3 – A Volkerkünde percorre o rio Negro: a formação das coleções etnográficas de Koch-Grünberg Cerca de um mês após partir rumo à América do Sul, Theodor Koch-Grünberg aportou em Belém do Pará, em 23 de maio de 1903, de onde partiu depois para Manaus. A cidade 285 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.7. Ibid., proêmio. 287 Ibid., p. 219. 286 95 passava por muitas transformações nos espaços públicos, na vida privada e nas relações das classes sociais, possibilitadas pelo excedente de capital originário da economia da borracha288. Durante sua breve estadia em Belém, Koch-Grünberg conheceu o Museu Goeldi289, que o surpreendeu positivamente. Recebido por Emílio Goeldi e Jacques Huber, respectivamente, diretor e chefe do setor de botânica, o americanista passeou e conheceu todos os setores da instituição e constatou o rigor científico que dominava o parque zoobotânico e as coleções. A experiência resultou em generoso parecer acerca do museu, considerado um modelo “que tranquilamente pode ser posto ao lado de qualquer museu europeu”290. Chamou-lhe a atenção o parque zoobotânico e as coleções de zoologia, botânica, paleontologia e etnografia. Por conta de seu ofício de etnólogo, a rica coleção de artefatos etnográficos, que sofria com a falta de espaço, lhe gerou bastante interesse. Destacou as peças das “tribos Karayá do Araguaya-Tocantins e as tribos dos rios Negro e Uaupés” e a coleção de urnas funerárias provindas das ilhas “do delta do Amazonas, Marajó, Mexiana e outras, em parte às margens do rio Maracá e de outros rios, e parcialmente na região de Curianý, nas costas fronteiriças franco-brasileiras” 291. A parada em Belém não foi ocasional. A capital paraense, no início do século XX, era o lugar de entrada na região amazônica e ponto de apoio das redes científicas internacionais, em especial o Museu Goeldi292. Como afirmou Sanjad, durante a gestão de Emílio Goeldi, a instituição buscou firmar relações com museus e universidades da Europa Central: Goeldi alinhou a nova instituição à rede de universidades e museus da Europa Central, o que significa dizer que lá residiam seus principais interlocutores, que os funcionários mais graduados foram ali contratados, que seus principais trabalhos científicos foram lá publicados (em alemão) e que o intercâmbio de coleções, sobretudo a remessa de duplicatas, teve como destino principal instituições daquela região293. 288 WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: Hucitec/ EdUSP, 1993; SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo a Belle Époque. Belém: PakaTatu, 2002. 289 Em 1901, o Museu Paraense trocou de nome para Museu Goeldi em homenagem ao seu então diretor, Emílio Goeldi. 290 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 23. 291 Ibid., p. 24. 292 SANJAD, Nelson. Nimuendajú, a Senhorita Doutora e os ‘etnógrafos berlineses’: rede de conhecimento e espaços de circulaçâo na configuraçâo da etnologia alemâ na Amazônia no início do século XX. Asclepio, [S.l.], v. 71, n. 2, p. p273, nov. 2019. ISSN 1988-3102. Disponível em: <http://asclepio.revistas.csic.es/index.php/asclepio/article/view/901>. Acesso em: 14 ago. 2020. doi:http://dx.doi.org/10.3989/asclepio.2019.14. 293 Ibid., p.4. 96 Nesse período, houve grande fluxo de informações, objetos, espécimes, publicações e pesquisadores entre a instituição paraense e museus da Europa Central. Nas primeiras décadas do século XX, o Museu Goeldi se tornou uma referência para cientistas, museus e universidades europeias interessados na Amazônia. Seguindo essa lógica, quando esteve em Belém, Koch-Grünberg buscou o auxílio do Museu Goeldi para realizar sua expedição. No relato do diretor da instituição, o americanista chegou à cidade munido de “cartas de amigos do mundo scientifico de além-mar, que nos são caros, recomendando-o e pedindo o nosso auxilio moral na missão etnográfica [...]”294. No mesmo relato recorda que o projeto inicial da empreitada era “atingir principalmente certos povos indígenas localisados entre o alto rio Purús e o Ucayale”, mas que foi abortado por conta das “commoções politicas e bellicas” que afetavam justamente o Purús e o Acre, estendendo-se ao Juruá. Conforme Goeldi, Koch-Grünberg, observando a necessidade de alterar o seu programa inicial de explorações, o consultou a respeito de “qual outro dos rios do alto Amazonas ofereceria especial interesse para a exploração ethnographica”295, o que o diretor não vacilou em apontar o Uaupés e outros afluentes do rio Negro. De fato, Koch-Grünberg modificou seus planos para a região indicada, apesar de omitir que as sugestões partiram do diretor do Museu Goeldi no livro Dois anos entre os Indígenas e no relato escrito originalmente para o Jornal do Commercio em 1905296. Uma possível explicação para a omissão da informação está na desaprovação dos seus superiores do Museu Etnológico de Berlim com as mudanças. Criou-se uma tensão entre o americanista e Karl von den Steinen, o responsável pelo financiamento da viagem. Steinen relatou diversas vezes em cartas a Koch-Grünberg a sua contrariedade em relação à exploração do Alto rio Negro – mesmo com as melhores expectativas etnográficas – e manteve, durante algum tempo da expedição, esperanças de que o americanista conseguiria ainda contatar e obter material dos índios Pano da região do Purus297. Com a finalidade de dar andamento a sua exploração ao Rio Negro, Koch-Grünberg partiu de Belém para Manaus, onde aportou no começo de junho de 1903. Nessa cidade, logo 294 GOELDI, Emilio. Duas cartas do Dr. Theodor Koch, relativas à sua actual expedição ethnographica entre os índios do alto rio Negro, dirigidas ao Director do Museu. Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de História Natural e Ethnographia,v. 4, n. 2-3, p. 482, 1904. 295 Ibid. 296 Em 12 de maio 1905, o Jornal do Commercio de Manaus comunicou aos leitores o recebimento de uma carta do explorador Theodor Koch-Grünberg acompanhada de um resumo de sua viagem de três anos. O jornal afirmava que o americanista enviara o texto “como prova de estima e consideração” e recomendava a publicação do texto, caso interessasse – o que o jornal fez no dia seguinte, com tradução direta do alemão feito Henr. J. Moers. In: Explorações no rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 12 de maio de 1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 297 PETSCHELIES, 2019. 97 foi inserido na rede de falantes de alemão298 – como Georg Huebner, fotógrafo e proprietário do estúdio Photographia Allemã, que desempenhou papel importante na inserção do americanista no círculo alemão e na troca de informações valiosas para êxito da expedição299. Os planos de iniciar a expedição na metade de junho foram frustrados pelas formalidades aduaneiras, a necessidade de adquirir mais equipamentos e objetos para a viagem e para câmbio e a forte febre300 que o deixou, conforme o próprio Koch-Grünberg “pendendo por vários dias entre a vida e a morte”301. Para realizar seus planos etnográficos, Koch-Grünberg contratou Otto Schimidt, brasileiro e filho de pais alemães, como acompanhante na expedição. Schimidt seguiu o americanista durante os dois anos de viagem e desempenhou papel importante em algumas negociações de artefatos, nas socializações com os indígenas e no transporte das mercadorias, sendo um “fiel e útil companheiro”302. No final de junho de 1903, o americanista e seu acompanhante embarcaram a bordo do navio a vapor “Solimões”, pertencente à casa comercial Araujo Rozas &Co. de Manaus, que navegava pelo rio Negro com destino a Trindade. No vapor, Koch-Grünberg entrou em contato com uma diversidade de gente, venezuelanos e brasileiros, que compunha o rol de passageiros: indígenas, negociantes, funcionários públicos, políticos e caucheiros. Figuras influentes na sociedade e política da região figuravam nos conveses superiores, destacando-se o general e ex-governador de um território venezuelano Dom André Level, o comerciante Salvador Garrido e Ricardo Vicente Cluny, Superintendente de São Gabriel. No lotado convés intermediário, onde as pessoas armavam suas redes umas acima das outros, se encontravam alguns Bará e Baniwa303 do alto rio Negro que trabalhavam como serventes dos passageiros do convés superior. O americanista recolheu ali material linguístico e conhecimentos para a expedição. Por meio deles, ele foi informado sobre os povos livres do rio Uapés, o que gerou relativa curiosidade e entusiasmo, como explicitou: “considerando tudo isso, estas regiões pareciam-me um Eldorado etnológico, bem merecendo uma aprofundada exploração” 304. Koch-Grünberg desembarcou no vilarejo de Trindade, onde se deteve alguns dias esperando a chegada do batelão que o levaria rio acima, para São Gabriel e posteriormente 298 PETSCHELIES, 2019. KOCH-GRÜNBERG, 2005. 300 KRAUS, Op. Cit., 2004. 301 KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., p. 29. 302 Ibid., p. 35. 303 Desde o período colonial, o nome Baniwa é usado para designar todos os povos que falam línguas da família Aruak ao longo do Rio Içana e seus afluentes. A autodenominação atual é Walimanai. Esse povo é dividido em várias fratrias. Para mais, ver: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Baniwa. 304 KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., p. 40. 299 98 São Felipe. Nesse período aproveitou para estudar os indígenas Uanána e Nadëhup305. Petschelies salienta que esses encontros anteriores à expedição, ou nos preparativos para o início do trabalho de campo, revelam, em certa medida, “os representantes da área etnolinguística à qual Koch-Grünberg dedicaria seu estudo: povos de língua Aruaque, Tukano e Makú”306. Em carta a Goeldi em julho de 1903307, quando em Trindade, o americanista conta que o tempo na capital amazonense e a bordo do vapor foi profícuo para tomar “quer dos Ipurinás do rio Ituxy, quer dos Barés, Baniwas e Urekéna do alto rio Negro e do rio Issana”, vocabulários extensos e “photographias typicas de interesse anthropologico”308. Ainda na correspondência com seu contato em Belém, o etnólogo relatou seus planos de deixar com o intendente de São Gabriel sua bagagem, pois tinha cartas de recomendação do governador, e suas projeções para os próximos dois anos: [...] Depois irei com meu companheiro Otto Schmidt, [...] e com duas pequenas canôas, ao alto rio Isanna, para estudar ali as tribos de indios selvagens, Uarekéna e outras, e para fazer collecções que levarei até S. Gabriel. Farei depois uma segunda viagem ao rio Uapés e aos seus afluentes, talvez Caiari ou diari onde vive uma multidão de tribus ainda não estudadas nos seus antigos costumes e usos. [...] Todas as collecções tenciono levar, em janeiro ou fevereiro de 1904, pelas cachoeiras abaixo, em diversas canôas, até Santa Izabel no meio rio Negro, onde as embarcarei no vapor de Manáos [...]. Depois voltarei ao rio Uapés para ficar ainda diversos mezes n’este El-dorado. – Em julho de 1904 espero estar de volta a Manáos. Após uma curta pausa de recreio irei ao rio Ituxy e depois pelo alto Juruá ao Ucayali, de onde voltarei, por Iquitos, a Manáos. Caso o permita o meu estado de saúde, desejo fazer uma digressão a Santarem e ao rio Tapajós, para onde estou convidado. No verão de 1905 calculo estar de volta na minha terra309. Por meio dessa carta, podemos perceber a organização e o aspecto meticuloso do trabalho de Koch-Grünberg, assim como o seu interesse por índios não contatados e a cultura material deles. Certamente, ele não contava com as dificuldades que teria de enfrentar e que atrasariam bons dias de sua viagem e arruinariam o plano de ir ao Ucayali, a Santarém e ao rio Tapajós. Retomando a trajetória da viagem, a visita a São Gabriel da Cachoeira e São Felipe objetivou estabelecer um local de apoio para a expedição, posto de repouso e local para 305 Autodenominação reivindicada pelos Hupd’äh, Yuhupdëh e Dâw. PETSCHELIES, 2019, p. 374. 307 Koch, Theodor. Duas cartas do Dr. Theo dor Koch, relativas à sua actual expedição ethnographica entre os índios do alto rio Negro, dirigidas ao Director do Museu. Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de História Natural e Ethnographia,v. 4, n. 2-3, p. 483, 1904. 308 Na Alemanha, e em países que comungam da língua alemã, o termo Anthropologie é utilizado para designar antropologia biológica. Presumimos que o americanista tratava acerca das fotografias de “tipos indígenas” e que o interesse dessas era de natureza física e biológica. Para saber acerca das teorias socioculturais e biológicas da Antropologia e Etnologia de língua alemã entre o século XVIII e o fim do XIX, ver: VIERTLER, 2017. 309 KOCH, Op. Cit., p.484. 306 99 manter os objetos colecionados. A primeira vila, que era então a sede do governo no alto rio Negro, foi preterida por conta do seu estado miserável, com habitações abandonadas e parcos recursos para alimentação. De acordo com Koch-Grünberg, no vilarejo “os habitantes não oferecem sustento aos viajantes, mas esperam que esses lhes tragam alimentos”310. Além disso, em pouco tempo se iniciaria o período de exploração do caucho, o que esvaziaria o local, deixando o americanista futuramente sem suporte311. Convidado pelos amigos conhecidos no navio, que garantiram todo auxílio necessário para as viagens, Koch-Grünberg partiu, em embarcação fornecida pelo superintendente, para São Felipe (Figura 17). Na vila, conheceu Dom Germano Otero y Garrido (Figura 18), seringalista de origem espanhola, que ali residia com seus dois filhos mais velhos e com suas respectivas famílias. Figura 17 – Vila de São Felipe. Fonte: Koch-Grünberg, 1909. Segundo Meira312, nas primeiras décadas do século XX, duas famílias de comerciantes concentravam grandes poderes na região do alto rio Negro e seus afluentes, os Garrido e os Albuquerque, e ambas praticavam o sistema de aviamento. Esse sistema, que sobrevive ainda hoje, assentou-se na Amazônia ainda nos séculos XVII e XVIII, mas ganhou força com a 310 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 54. Ibid. 312 MEÍRA, Márcio. A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no Noroeste Amazônico. Tese (Doutorado em Memória Social), Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2017. 311 100 economia da borracha a partir da segunda metade do XIX. Ele se baseia no adiantamento de mercadorias a crédito, gerando relações assimétricas de dependência, como conceitua Meira: O sistema de aviamento constituiu-se na Amazônia como um modelo que implica a formação de uma cadeia de escambo entre, de um lado, comerciantes/patrões e, de outro, produtores/fregueses, ambos situados, respectivamente, como elos de uma corrente, entre dois polos sociopolíticos hierárquicos, marcados por relações de dominação e dependência em função da dívida estabelecida313. Koch-Grünberg foi acolhido pela família Garrido com generosidade e cordialidade, escolhendo então São Felipe como porto seguro para a sua empreitada etnográfica, pela ordem e bem-estar do local e pela amizade firmada com o Dom Germano. Koch-Grünberg descreveu as ações do seringalista sempre com elogios e sentimento de gratidão, e os justificava desta forma: Se demoro mais aqui descrevendo o melhor dos meus amigos brasileiros, faço isto porque sinto de coração um dever de gratidão para com ele, quem em grande parte contribuiu para o sucesso de minhas viagens. [...] Dom Germano interessou-se muitíssimo pelos meus estudos e procurou sempre aplainar-me os caminhos, nunca esquecerei a sua ilimitada hospitalidade e auxílio desinteressado que nunca negava, seu amor verdadeiramente paternal314. Vê-se no trecho o caráter material e emocional que envolvia a relação travada entre Koch-Grünberg e Dom Germano. Além de apoiar moralmente as realizações da expedição, o seringalista ofertava embarcações, mão-de-obra, guias, alimentos e armazenava em seu sítio as coleções formadas nas aldeias indígenas. Em outro documento, o americanista reafirma o sentimento de fraternidade e gratidão que envolvia os dois: “o sr. Germano foi, durante estes 2 annos, para mim, um verdadeiro pai. A todos elles [Germano e seus filhos] confesso-me aqui mais uma vez sumamente grato”315. 313 MEIRA, 2017, p.33. KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 55-56. 315 KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de 1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 314 101 Figura 18 – Dom Germano Garrido y Otero. In: Koch-Grünberg, Op. Cit., 1910. Para além da amizade, Petschelies316 argumenta que a relação firmada entre o americanista e Dom Germano revela uma “ambiguidade sustentada pelo etnólogo perante o contexto social em que seu campo seria realizado” e uma improvisação intelectual para se adequar à realidade vivenciada nos sertões amazônicos. A despeito de possíveis contradições entre a conduta do americanista e o pensamento etnológico e humanista ao qual era afiliado, a expedição dependeu da capacidade de se aliar às forças militares e policiais da região e aos exploradores da força de trabalho indígena. Koch-Grünberg tinha consciência do sistema de aviamento e da dura realidade vivenciada pelos indígenas no noroeste amazônico, como se pode observar no trecho abaixo: Para viajar continuamente para lá e para cá com grandes botes a remo e para explorar as matas de caucho é necessário dispor durante o ano inteiro de muita mão de obra, que em São Felipe é proveniente, em primeiro lugar do baixo Içana. Os indígenas de lá, assim como uma grande parte dos indígenas do baixo Caiary, dependem da Casa Garrido como uma espécie de escravos por endividamento. Tal relacionamento para com os nativos é mantido pelos brancos, donos da terra e negociantes, em todo o rio Negro. O branco fornece fiado ao indígena toda a mercadoria que quiser, e a avalia, dependendo de sua honestidade, com preços correspondentes. O devedor tem que trabalhar para pagar essas, frequentemente muito altas somas, fornecendo farinha de mandioca, salsaparrilha e outros produtos regionais, ou trabalhando nas matas de caucho. Às vezes, fica empregado durante vários meses perto do patrão, como caçador e pescador. Ao fazer as contas sempre se dá um jeito para que o indígena não se livre da dívida, e mesmo que a tivesse pago toda, ainda receberia aviada outra vez tanta mercadoria nova, que ficaria sempre dependente317. O excerto apresenta a complexidade dos problemas sociais desse sistema, que aprisionava os indígenas ao trabalho por conta das dívidas contraídas, e salienta a violência do aviamento que o americanista teve de negligenciar para manter a associação com Dom 316 317 PETSCHELIES, 2019, p.373. KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.56-57. 102 Germano. Mesmo sendo um defensor dos indígenas, o etnólogo julgou ainda que o “sistema de escravidão por endividamento, do ponto de vista moral, certamente deve ser rejeitado, mas nestas regiões é um mal inteiramente necessário”. A necessidade residia, segundo ele, na escassez de mão de obra e na indolência dos índios contra o trabalho, o que faria do sistema uma forma de incentivo ao “trabalho regrado”318. O sistema de aviamento desencadeou inúmeras transformações nas sociedades e no território do noroeste amazônico, tais como: a proliferação de doenças, deslocamentos compulsórios dos sujeitos indígenas e outras violências perpetradas contra aldeias inteiras319. Obviamente, os indígenas não foram agentes passivos ao longo do processo histórico, pelo contrário, muitas vezes confrontaram veementemente o avanço do poder econômico no sertão amazônico, negociaram com outros atores buscando melhores condições, adaptaram suas antigas tradições à estrutura econômica-social e reelaboraram identidades. Como já dito, o etnólogo alemão tinha consciência das mazelas vivenciadas pelos indígenas e condenou outros negociantes e colonos que “sem escrúpulos frequentemente aproveitam-se deste sistema e exploram os pobres indígenas de maneira irresponsável”320. No entanto, fez do tratamento de Dom Germano com seus subordinados um contraponto a essa exploração, afirmando que o seringalista “trata os seus indígenas com rigor patriarca, mas com a bondade de um pai para com seus filhos”. Em trabalho acerca da história indígena do alto rio Negro, Wright321 afirmou que o poder de Dom Germano se expandia por todo o rio Içana e alto rio Negro, e essa influência se fez por meio do controle não só do comércio da borracha, como também do tráfico de mão de obra indígena. O seringalista tinha em seu controle a polícia e os militares do Forte de São Gabriel e sustentava um sistema, em parceria com o Estado, de “inspetores” no baixo Içana, que mantinha chefes e intermediários na organização do trabalho indígena. Além disso, ele detinha o controle do carregamento da borracha para as empresas que exportavam em Manaus. Seringalistas, comerciantes, autoridades regionais e estaduais, e líderes indígenas formavam uma rede de colaboradores que se estendia por todo o noroeste amazônico. O poder que homens como Dom Germano possuíam na região era um recurso obtido pelas redes que 318 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.57. MEÍRA, 2017. 320 KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., p. 57. 321 WRIGHT, Robin M. História indígena e do indigenismo no Alto Rio Negro. Campinas: Mercado das Letras / São Paulo: Instituto Socioambiental – ISA, 2005. 319 103 controlavam e que eram fundamentais para o bom funcionamento dos negócios e da política322. A análise de redes de colaboradores na formação de coleções etnográficas também foi feita por Santos323 na sua pesquisa acerca das práticas colecionistas de Johann Natterer em sua viagem ao Brasil (1817-1835). A historiadora reafirma a necessidade de pensar o colecionismo etnográfico a partir das relações estabelecidas no campo. Santos, inclusive, empregou a abordagem de João Pacheco de Oliveira Filho, denominando “situações etnográficas”324 o estudo do colecionismo como um sistema de relações sociais, para além de aprofundamentos de natureza individualista. Manter boas relações com essas redes e manter muitos aliados aumentava a força frente aos inimigos e imprevistos. Como analisou Lopes325, o campo enseja práticas distintas dos laboratórios, onde todos os fenômenos podem ser rigorosamente controlados. O êxito de uma expedição não exige apenas o conhecimento técnico, depende também da capacidade do explorador para se adequar ou improvisar a partir de uma série de regras de sociabilidade locais e condições variáveis. Koch-Grünberg tinha ciência da necessidade de se aliar a uma rede de colaboradores que incluía caucheiros, comerciantes, políticos, diplomatas, indígenas e cientistas. Uma rede que se estendia de Belém até o noroeste amazônico. Em sua tese, Petschelies arrola alguns aliados do americanista que forneceram suporte na empreitada pela floresta: As relações com o consulado alemão eram muito importantes para o suporte das expedições. O cônsul alemão em Manaus, Oscar Dusendschön, era proprietário de uma empresa de exportação de borracha, e em Manaus ele [Theodor KochGrünberg] também conheceu Alfredo Stockmann, um empresário teuto-americano, em busca de negócios ligados à borracha. O americanista ainda teve relação mais próxima com Miguel Pecil, outro empresário do setor borracheiro. Ele chegou a visitá-lo em seu sítio em julho de 1904. Que o contato com caucheros seria fundamental, era uma colocação previamente dada. Assim, ainda em 1903, o etnógrafo Felix Stegelmann recomendou a Koch-Grünberg que ele conhecesse Carlos Scharff, um barão da borracha peruano, responsável por violentos ataques contra os povos indígenas. Disseram a Koch-Grünberg que Scharff poderia auxiliar 322 AGNEW, John A. Making Political Geography. Oxford: Oxford University Press, 2002. SANTOS, Rita de Cássia Melo. Sobre crânios, idiomas e artefatos indígenas: o colecionismo e a História Natural na viagem de Johann Natterer ao Brasil (1817-1835). Sociedade e Cultura, v. 21, n. 1, 2018. 324 A noção de situação etnográfica, segundo o próprio autor, “designa as “condições sociais específicas que envolvem a produção de dados etnográficos”, tomando como seu foco de atenção a relação entre pesquisador e pesquisados, privilegiando como áreas estratégicas os modos de interdependência e as formas de superação de conflitos [...]. Ou seja, trata-se de resgatar a ‘comunidade de comunicação’ [...] concretamente envolvida na produção de cada conhecimento específico” In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de janeiro: Contra Capa, 2016, p. 33. 325 LOPES, Maria Margaret. Viajante pelo campo e pelas coleções: aspectos de uma controvérsia paleontológica. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 2001, p. 881-897. 323 104 na contratação de índios para a expedição. Scharff acabou se envolvendo em conflitos e o contato não ocorreu326. As relações firmadas com os sujeitos citados acima podem ser explicadas pela necessidade de segurança e de obtenção de mão de obra indígena327. A expedição dependia essencialmente do conhecimento, da sociabilidade e da força dos braços dos nativos para percorrer com segurança os rios e as matas. Todavia, na região do rio Negro à época, encontrar trabalhadores e embarcações disponíveis para tal empreitada era dificílimo, “nem por muito dinheiro, nem com palavras bondosas”, como relatou o americanista328. As razões para isso eram a ocupação dos habitantes na extração da borracha e a total disponibilidade deles para com os patrões – lembramos aqui a relação de dependência inerente à cadeia de aviamento. A solução para esses problemas residia nas amizades e nas alianças firmadas, que ofertavam segurança numa região de conflito, embarcações, suprimentos e mão de obra329. Além do apoio moral e material, Dom Germano também era consultado para tratar da viabilidade de execução dos planos de exploração. Koch obteve dele o aval para iniciar sua jornada pelo rio Içana, especificamente entre os grupos Arawaks, e também recebeu uma tripulação de índios para lhe acompanhar na subida do rio. Todavia, a saída dos expedicionários foi atrasada por um incidente com o comandante de Cucuhý. De acordo com Koch, o comandante praticava intenso contrabando com comerciantes da Venezuela e mandou seus soldados para arregimentar no baixo Içana remadores para suas embarcações, “prendendo e maltratando brutalmente os indígenas”. A notícia da violência perpetrada contra os índios logo se difundiu por toda a região, e muitos habitantes fugiram para a floresta, deixando suas casas e pertences. Durante o tempo de espera em São Felipe, o americanista aproveitou para aprimorar seus conhecimentos de Língua Geral, o que lhe foi de grande serventia na comunicação com diversos grupos indígenas, e para tomar notas quanto às condições de navegação e da meteorologia do alto rio Negro e do Orinoco. A viagem pelo alto rio Negro e seus afluentes durou dois anos e foi dividida em quatro partes. A primeira etapa, que durou de setembro de 1903 a janeiro de 1904, consistiu na exploração dos rios Negro, Içana, Aiari e uma parte da região do alto Caiary-Uapés – por terra. Depois, de fevereiro a junho de 1904, Koch subiu o rio Curicuriari, o baixo CaiaryUapés e o rio Tiquié. Na terceira etapa, de agosto de 1904 a janeiro de 1905, explorou os rios 326 PETSCHELIES, 2019, p. 376. Ibid. 328 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 58. 329 KOCH-GRÜNBERG, 2005. 327 105 Negro, Caiary-Uapés e Cuduiary. E a quarta e última, de janeiro do mesmo ano até cerca de abril, consistiu na exploração dos rios Uapés, Tiquié, Pira-Paraná, Apaporís, Japurá e Solimões. Figura 19 – Mapa elaborado por Koch-Günberg do percurso da sua expedição de 1903 a 1905. Fonte: Koch-Grünberg, 1909. O percurso da expedição foi longo, como podemos ver em vermelho na Figura 19, e com paradas a cada fim e no começo de uma nova etapa em São Felipe. Veremos, nos tópicos a seguir, as práticas colecionistas de Koch-Grünberg, as relações travadas com os povos indígenas e a participação de diversos atores na montagem da coleção depositada no Museu Paraense Emílio Goeldi. 2.3.1 A primeira etapa das coletas: rios Negro, Içana e Aiarý (setembro de 1903 a janeiro de 1904) Koch-Grünberg e seu assistente Schmidt iniciaram somente no dia 28 de setembro a primeira parte da expedição em um batelão, com uma tripulação de seis remadores e um piloto. Ao longo da viagem, Koch-Grünberg visou obter objetos para as suas coleções por meio das relações com os inspetores ou chefes das aldeias. Conforme reportou, viajou sempre 106 abastecido com mercadorias – “tabaco, pequenas facas, anzóis, fósforos, espelhos, miçangas” – que serviriam nas possíveis trocas330. A primeira troca reportada ocorreu em uma casa simples, uma choça de palha de palmeiras, com uma roça de mandioca próxima à aldeia de Tunuhý, no rio Içana, onde foi levado por um dos membros da comitiva chamado Timotheo. Os moradores daquela aldeia, segundo Koch-Grünberg, se autodenominavam Baniwa – mas eram chamados pelos Siusí331 de Katapolitani. Falavam a Língua Geral, utilizada pelo americanista para se comunicar, e um dialeto Arawak. Além dos moradores, coabitavam na citada choça alguns “indescritíveis utensílios indígenas: caixas, maletas, vasilhas belissimamente pintadas, cestos, armas de fogo, carauatanas, cultura e selvageria em uma confusão completa”332. Os objetos atiçaram o desejo colecionista de Koch-Grünberg, que adotou a estratégia de presentear uma criança com uma grande pérola azul para atrair a atenção dos adultos e apresentar as possibilidades de troca. O método empregado por Koch-Grünberg para atrair a atenção e negociar objetos não era uma novidade, como aponta o texto de Henrique acerca da leitura que os indígenas faziam dos brindes que recebiam de missionários, autoridades provinciais e viajantes no século XIX. Analisando o relato de viagem de Alfred Russel Wallace, o historiador aponta o quanto a recepção dos viajantes e missionários nas aldeias indígenas estava relacionada com a posse e disponibilidade de brindes. Os índios queriam sempre ter conhecimento prévio das mercadorias a receber e as vantagens das trocas. Por conta disso, “era necessário [...] ter conhecimento do tipo de item que interessava a eles, sem o qual o acesso aos produtos do trabalho indígena poderia ser impossível”333. Nesse sentido, é provável que os aliados do americanista em Manaus e em São Gabriel o tenham informado a respeito da necessidade dessas mercadorias nas trocas e de algumas preferências dos grupos em cada região percorrida. Para Kraus334, as mercadorias levadas por americanistas nas explorações pelas terras baixas da América do Sul desempenhavam função central nas associações entre etnólogos e 330 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 72. Os Siusí se autodenominam atualmente Walipere-dakenai e são uma das fátrias do grande grupo Baniwa. 332 KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., p.73 333 HENRIQUE, Márcio Couto. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia no século XIX. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018. 334 KRAUS, Michael. Perspectivas múltiples. El intercambio de objetos entre etnólogos e indígenas en las tierras bajas de América del Sur. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [online], Débats, mis em ligne le 20 septembre 2014, p. 4. Acesso em 18 de nov. de 2020. Disponível em < http://journals.openedition.org/nuevomundo/67209>. No original: “los objetos fungían como regalo, intercambio o pago para canalizar, premiar o consolidar las formas de relación deseadas” 331 107 os indígenas – obviamente, considerando também que a conduta pessoal, a adaptação e a interação com a vida indígena colaboravam na estabilização das relações. O autor afirma que “os objetos serviam de presente, troca ou pagamento para canalizar, premiar ou consolidar as formas de relacionamento desejadas”. No seu relato de viagem, Koch-Günberg, ao arrolar os vencimentos de seus quatros remeiros no rio Tiquié em 1904, parece compreender a importância dos produtos trocados como elos no contato interétnico: Renardo: 4m de chita, 1 faca de cozinha, 50 anzóis pequenos, 4 caixinhas de fósforos; Henrique: 4m de chita, 1 pente para mulher, de ebonite, 50 anzóis pequenos, 4 caixinhas de fósforos; Candido: 2,20m pano forte, azul para as calças, 1 pacotinho de tabaco, 4 caixinhas de fósforos; Lino: 1 faca de cozinha, 25 anzóis pequenos; 1 pacotinho de tabaco; 12 caixinhas de fósforos. Na hora de tais pagamentos, cada um tem seus desejos especiais, e a gente deve atendê-los tanto quanto possível. Os remadores foram sempre pagos com mercadorias europeias ou alimentos de produção local, não sendo mencionados pagamentos em papel-moeda. A remuneração dos trabalhadores variou de armas, tecidos, facas e terçados, fumo e demais produtos industrializados a víveres como peixe, farinha e caças, com a finalidade de atender as necessidades e os interesses dos indígenas e a disponibilidade material do agente europeu. A inserção desses produtos e ferramentas europeus, evidentemente, não pode ser compreendida como uma forma de aculturação do indígena. As mercadorias dos brancos eram interpretadas e utilizadas pelos índios a partir de seus próprios termos, visões e interesses335. Ao mudarem de proprietário, os significados atribuídos aos objetos poderiam ser igualmente transformados, consoante as noções culturais dos novos donos336. Exemplo disso é o relato de Koch-Grünberg a respeito de uma festa dançante em Ätiaru, maloca dos Huhúteni, na qual os índios, inclusive convidados, estavam especialmente adornados com pinturas corporais e desenhos na face. Segundo Koch, “muitos, especialmente a gente do Caiarý, tinham adornos de prata pendurados no pescoço, em parte simples moedas, em parte peças lisas triangulares, feitas de moedas de prata, martelando e alisando-as”337. O referido adereço, que aparece em fotografia sendo utilizado por um índio Siusí (Figura 20), era chamado de makálu, borboleta na língua dos Siusí, em razão da sua configuração física. 335 HENRIQUE, 2018. VELTHEM, Lúcia Hussak van. “‘Feito por inimigos’: Os brancos e seus bens nas representações Wayana do contato”. In: ALBERT, Bruce e RAMOS, Alcida Rita. Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, pp. 61-83. 337 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 109. 336 108 Figura 20– Índio Siusí com makálu (adorno de prata pendurado no pescoço). Rio Aiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1909. As moedas de prata não foram assimiladas pelos indígenas por seu valor monetário ou pelo uso recorrente entre os brancos, num possível processo de aculturação. Pelo contrário, elas foram redefinidas esteticamente e apropriados nos termos dos valores culturais indígenas. Howard338 denomina esse processo de “des-construção do capital simbólico do colonizador e sua reconstrução à imagem da sociedade indígena”. Retomando o processo de coleta na aldeia de Tunuhý, no rio Içana, Koch-Grünberg se sentiu livre para vasculhar os objetos guardados na palhoça e montar uma coleção. Descreveu a coleta dessa forma: Ajuntei logo uma pequena, mas valiosa coleção de camutis (potes para água) e pratos em forma de taça que tinham apreciáveis desenhos de vermelho, balaios que tinham semelhantes desenhos trançados em preto; uma gigantesca carauatana (tubo para soprar flechinhas) de 3m, com as correspondentes flechinhas enfiadas em uma aljava que também estava traçada com lindos desenhos; alguns potezinhos com pernicioso veneno de curare e ainda outras belas coisas. Tudo isso cederam sem hesitações, a mim, em troca de ninharias europeias. Esta boa gentinha sacudia-se de tanto rir, por causa desse entranho negócio. Eles aparentemente me consideravam um pouco doido, porque até então nenhum branco tinha ido ao meio deles, desejoso de tal tralha, e a seu ver pagando tão excessivamente339. O americanista citou os objetos coletados e demonstrou que as trocas não se resumiam às transferências geográficas, mas a mudanças nos valores e nos significados dos objetos. 338 HOWARD, Catherine V. A domesticação das mercadorias: estratégias Waiwai. In: ALBERT; RAMOS, Op. Cit., 2002, p.29. 339 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 73. 109 Além disso, nas negociações com os indígenas eram manifestados os significados atribuídos aos objetos por ambas as partes340. Para o coletor, e para os interesses dos museus etnográficos que ele representava, os artefatos indígenas eram apreciados por uma combinação de fatores, como a manifestação do espírito humano nas peças, o impacto visual artístico e a beleza, a significância para as sociedades produtoras e, claro, a percepção subjetiva a respeito da importância daquele artefato para o conjunto de sua coleção341 – por uma suposta representação do modo de vida “primitivo” e pela aura de “exotismo”. Em contrapartida, para os indígenas, as mercadorias europeias, como armas, ferramentas e produtos industrializados, possuíam valor pela sua utilidade, pela sua qualidade como adorno ou pelo prestígio conferido a quem as possuísse342. De acordo com o relato de Koch, os indígenas zombaram do interesse pelos seus objetos e do valor pago por eles, dando a entender que o achavam excessivo. Todavia, parece que em pouco tempo compreenderam a lógica do colecionista e logo souberam tirar proveito dela. Como contou o viajante, no dia seguinte a uma negociação, todas as pessoas de Tunuhý apareceram na porta de sua hospedagem com abundante mobília caseira para ser negociada343. Ainda em Tunuhý, Koch-Grünberg fez outros negócios em troca de objetos etnográficos. Para tanto, contou com a ajuda de Diogo, inspetor indígena atuante na região, que cumpriu o papel de mediador entre o americanista e os interesses indígenas por mercadorias europeias. Koch-Grünberg o convenceu a trazer-lhe potes ornamentados e outras peças, e logo o citado índio e mais três jovens partiram de volta para suas casas “com umas poucas ninharias, presentes para mulheres e criancinhas”344. Por volta do meio-dia do dia subsequente, Diogo retornou acompanhado de quase trinta índios Siusí, provindos da localidade de Tucüimarapecúma, numa dúzia de canoas abarrotadas de objetos caseiros (Figura 21). O americanista descreveu assim os visitantes Siusí e as trocas por eles realizadas: [...] Os homens estavam vestidos com camisa e calça, as mulheres na maioria meio nuas e, como as crianças nuas, pintadas com pontos vermelhos, em todo corpo [...]. Eles nos venderam uma quantidade de objetos etnográficos. Seus potes belamente adornados, pratos, cestos distinguiam-se por serem muito finamente confeccionados. Grandes peneiras chatas, que serviam para peneirar a massa seca de mandioca, também estavam traçados com padrões de vermelhos e pretos. Em troca de algumas 340 THOMAS, Nicholas. Entangled objects: exchange, material culture and colonialism in the Pacific. Cambridge: Harvard University Press, 1991. 341 PETSCHELIES, Erik. From Berlin to Belém: Theodor Koch-Grünberg’s Rio Negro collections. Museum History Journal, v. 12, n. 1, p. 29-51, 2019. 342 KRAUS, 2014. 343 KOCH-GRÜNBERG, 2005. 344 Ibid., p. 74. 110 peças de chita, sabão para as mulheres, munição para os homens. Obtivemos toda a 345 tralha. O negócio era rápido e ordeiro. Ambas as partes ficaram satisfeitas . No relato, o americanista esclarece que não houve exploração dos índios; aconteceram, ao contrário, trocas justas e satisfatórias para ambas as partes. A justificativa possivelmente buscava atender a seus princípios indigenistas, que tratamos anteriormente, de proteção e respeito aos autóctones. Além disso, a descrição de um negócio feito de forma ordeira, rápida e justa revela novamente os traços do pensamento burguês alemão na atividade etnográfica de Koch-Grünberg e sua tentativa de valorizar os elementos de limpeza e ordem entre os índios. Figura 21 – Objetos do povo Siusí adquiridos no Rio Içana. Fonte: Koch-Grünberg, 1909. As mercadorias trocadas não foram disponibilizadas aleatoriamente, pois, como já dito, o acesso à produção indígena estava relacionado ao interesse dos produtores pelos itens disponibilizados pelo coletor. Nesse sentido, podemos levantar a hipótese de que há uma relação entre as peças trocadas e as demandas internas do grupo – manifestadas, principalmente, pelas mulheres – e também com o contexto político local. A necessidade de despertar o interesse feminino para viabilizar as trocas e manter relações com as comunidades fica evidente quando o americanista disponibiliza para Diogo presentes destinados às mulheres e crianças, em troca de utensílios domésticos. E também nas negociações travadas 345 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 75 111 com os Siusí, quando Koch parece atender à demanda das mulheres por peças de chita e sabão. A munição negociada com os homens, provavelmente, estava relacionada à autoproteção desses grupos em relação à violência que lhes era dirigida pelos brancos brasileiros e colombianos – comerciantes, seringalistas, jagunços e militares. Dessa forma, as mercadorias não eram ofertadas aleatoriamente, mas obedeciam ao desejo das mulheres e às necessidades dos índios em se protegerem num ambiente de tensão e conflito. Em Tunuhý, Koch tomou conhecimento de que o rio Aiary concentraria uma abundância de grupos Arawak. Ali também conheceu outro inspetor Katapolitani, chamado Antonio, um índio experiente da região e falante de português. Essas qualidades eram essenciais para a expedição, e logo o indígena foi convencido – depois de um longo aconselhamento com os outros remadores e a garantia de uma boa recompensa – a leva-los até a maior aldeia dos Siusí no rio Aiarý346. Figura 22- Antonio, índio Katapolitani, porta-voz e guia do americanista. Fonte: KochGrünberg, 1909. Na Figura 22, Antonio posa para uma típica foto dos “tipos indígenas”, com “uma camisa ofuscamente branca”, a qual, segundo o próprio americanista, era mais branca que a sua. Muitos colaboradores indígenas da expedição ou inspetores posavam para fotos dessa categoria, mas esse inspetor, em particular, teve certo destaque na primeira etapa da 346 KOCH-GRÜNBERG, 2005. 112 expedição, pois não apenas cumpriu o papel de guia, mas atuou também como porta-voz, tradutor e até como negociador de objetos indígenas347. A tensão entre índios e brancos e a época de extração do caucho pareciam afetar a paisagem dos rios Içana e Aiarý. Koch visitou muitas aldeias indígenas esvaziadas e cabanas abandonadas nas margens dos rios, pois seus moradores buscavam refúgio mata adentro, longe dos brancos, ou haviam partido para a exploração das seringueiras. Durante a viagem, o americanista relatou ter aproveitado esse estado de abandono na paisagem dos rios Içana e Aiarý para apreciar a cultura material dos habitantes locais e, às vezes, para adquirir objetos em trocas nem sempre justas. Foi o caso da aquisição feita em 20 de outubro no Miriti-Igarapé, um afluente do Aiarý. A expedição encontrou ali uma casa abandonada com diversos utensílios caseiros. A coleta foi descrita assim: “tomei um feixe de grandes flechas, cujas pontas de lenho estavam envenenadas e enfiadas em uma aljava bem trançada para proteger seu portador. Como presente, deixei em troco duas caixinhas de fósforos”. O coletor ainda afirmou querer deixar quatro recipientes, mas Antonio achou um exagero348. Evidente que a noção de justiça em uma troca não é algo objetivo. Ela depende de diversos fatores, como o contexto político e econômico, a força das associações, os desejos e as necessidades das partes envolvidas. No entanto, se não há a presença de um dos lados implicados e o valor do negócio é estabelecido por um único sujeito, podemos concluir que não houve uma troca. Após esse evento, os expedicionários seguiram o curso do rio em direção à maior aldeia dos Siusí. Ao longo do percurso, cada membro adicionado à expedição exercia um papel nas tentativas de aquisição de objetos. Em uma das paradas, numa maloca dos Huhúteni, Antonio desempenhou o papel de “empresário e porta-voz” do americanista, narrando “com as cores mais róseas” os méritos do explorador para os moradores. A tentativa de persuasão do inspetor estava relacionada ao desejo de adquirir panelas pintadas, cestos ornamentados e outros utensílios domésticos em “troca de miçangas, facas e outras maravilhas”. No entanto, não houve trato. Aquela família não estava disposta a negociar os objetos sob a justificativa de que os reais donos daquelas peças estavam participando de uma festa em Cururú-cuará, a grande aldeia Siusí. Esse respeito à propriedade alheia chamou a atenção de Koch-Grünberg, que assinalou ser evidente que, na região, ninguém vendia nada sem o consentimento do proprietário e não aceitava “pagamento destinado a outrem”349. 347 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.74 Ibid., p. 82-83. 349 Ibid., p.83. 348 113 A expedição prosseguiu pelo rio Aiarý até aportar em Cururú-cuará, também conhecida como Dorátauanumána. Quando da chegada de Koch ao local, ocorria uma grande festa com muitos convidados e com ingestão generalizada do caxirí, bebida alcoólica produzida pelos povos indígenas da região. Até mesmo o anfitrião, o pajé da aldeia, estava inteiramente embriagado. Figura 23. Schmidt com seus amigos indígenas na hospedagem em Cururú-cuará. KochGrünberg, 1909. No dia seguinte, os hospedeiros ofertaram aos expedicionários uma pequena cabana para guardarem seus bens e descansarem (Figura 23). A festa continuou o dia inteiro e o pajé aparentava estar mais embriagado do que os outros participantes. Nesse contexto, o etnólogo adotou uma estratégia aparentemente contraditória em relação aos seus ideais indigenistas. Ele se aproveitou da embriaguez do pajé e adquiriu um grande montante dos apetrechos mágicos do seu anfitrião, alguns até importados de outras regiões – dos quais nenhum parece ter sido enviado para o Museu Goeldi em Belém. Ou seja, se aproveitou da vulnerabilidade dos seus amigos indígenas para obter artefatos que não conseguiria obter normalmente, dado o seu caráter ritualístico. No dia seguinte, já sóbrio, o pajé tentou desfazer o negócio, mas o coletor foi irredutível. Apesar do fato ocorrido na primeira noite, a relação dos expedicionários com os residentes de Cururú-cuará foi amistosa. Os moradores faziam de tudo para os hóspedes se 114 sentirem bem e eram solícitos com as demandas por fotografias e por trocas de mercadorias por alimentos. Schmidt era adorado pelas crianças e pelos jovens pelas suas brincadeiras. Os dois não-índios, como já narrado, costumavam receber o povo da aldeia para mostrar os instrumentos náuticos, as câmeras, as armas e livros de gravuras. A estadia foi proveitosa para o americanista e seus planos, porque conseguiu estabelecer, em troca de boas considerações sobre a aldeia e sobre o seu chefe para o governo, uma associação com o tuxaua Mandú. O líder indígena, falante de português e da língua geral, conseguiu uma embarcação e gente para o prosseguimento da viagem. Koch relata que “havia muito pouca indústria em Cururú-cuára”. De acordo com ele, cabia somente às mulheres provindas do Içana confeccionar potes, panelas e ralos, para quem tentou encomendar as peças, mas de quem não obteve êxito. Segundo ele, “as pessoas absolutamente não estavam dispostas a trabalhos supérfluos”. Apenas de alguns rapazes adquiriu cestarias bem ornamentadas que lhes haviam sido encomendadas350. Figura 24 – Mulher idosa Siusí, em Cururú-cuára, confeccionando um ralo para ralar mandioca. Fonte: Koch-Grünberg, 1909. Apesar disso, o americanista fotografou e narrou a confecção dos ralos para mandioca (Figura 24). As peças eram fabricadas apenas por mulheres do Içana, de origem Karútana e Katapolitani – ou seja, não eram naturais da aldeia no Aiarý. Eram utilizadas pedras de granito ou quartzito na elaboração, que provinham da cachoeira de Tunuhý ou da região das cachoeiras do alto Içana e Aiarý. Além disso, os ralos eram comercializados pelo Tiquié, 350 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 100. 115 Caiarý, Yapurá e pelos já citados rios, revelando grande circulação de pessoas e objetos pelos rios da região. As mulheres indígenas do Içana foram admiradas pelo coletor por conta de seu trabalho na produção de potes pintados e vasos, cestos ornamentados e aljavas trançadas. Diferentemente dos Siusí que apareceram em Tunuhý, o povo de Cururú-cuára parecia não estar tão disposto e ansioso por vender seus objetos. Indo pelas casas e vasculhando os pertences domésticos, o coletor conseguiu adquirir um jirau e duas máscaras que representavam animais351. As peças provinham dos Káua-tapuio que viviam rio acima, o que despertou o interesse de um colecionista sedento por mais aquisições e que logo subiria o Aiarý atrás de objetos semelhantes. Ali, também coletou bastões de dança (Figura 25) utilizados nas festas e enviados posteriormente ao Field Museum of Natural History, em Chicago. No dia 26 de outubro, os expedicionários partiram com todos os habitantes de Cururúcuára e os hospédes da redondeza, entre eles alguns Uanána do Caiarý, para uma festa de dança em Ätiaru, a próxima maloca dos Huhúteni acima no Aiarý. O festejo começou ao pôrdo-sol, quando dois dançantes, com diademas de penas coloridas na cabeça e chocalhos amarrados nos tornozelos direitos, passaram a se movimentar na frente da casa de festa. Amparavam uma mão no ombro do vizinho e com a outra seguravam grandes flautas feitas de paxiúba, denominadas de Yapurutú (Figura 25), de 1,0 a 1,5 metros de comprimento. Os instrumentos produziam diferentes sons, de acordo com a força do sopro, e cada par estava afinado entre si. A ornamentação dos objetos consistia em desenhos gravados na sua parte inferior, esfregados com barro branco, e pingentes de fibras brancas de curauá, como podemos observar na figura abaixo. Figura 25 – Grandes flautas chamadas de Yapurutú, nas descrições do etnólogo, pertencentes aos Kauá e aos Siusí do Rio Aiarý352. 351 352 KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., 2005. Originalmente a fotografia estava na vertical no livro de 1909, de onde foi retirada a imagem. 116 No livro de viagem353, originalmente publicado em 1909, encontram-se fotografias em fundo branco de três diademas de penas e oito flautas (Yapurutú), o que nos permite pressupor que os artefatos foram adquiridos pelo etnólogo. Todavia, apenas na legenda das flautas há indicação dos povos produtores: Kawá e Siusí. Na coleção etnográfica comprada pelo Museu Goeldi estão preservadas quatro flautas “de Iapurutú” (n.º 330, 331, 332 e 333354), produzidas pelo povo Siusí do rio Aiarí355, sem menção aos Kawá. Não é fácil precisar qual povo produziu as flautas depositadas na instituição. A documentação museológica não apresenta muitas informações a respeito do processo de fabricação e da coleta de objetos e não há outros testemunhos do contato. Tendo em vista que a coleção do museu é composta pelo que Koch considerou “duplicatas”, é possível que no arranjo feito pelo americanista encontravam-se apenas instrumentos de origem Siusí. Isso confirmaria os dados apresentados nos catálogos e no Livro de Tombo da coleção. Outra possibilidade é a de que os objetos de origem distinta estão misturados, havendo objetos do já citado povo e dos Kawá. A resolução dessa questão demanda um reconhecimento pelos descendentes desses povos e uma análise mais técnica quanto à matéria-prima utilizada e às tecnologias de fabricação empregadas. Na documentação da coleção do Museu Goeldi, há referências também a outros objetos dos Siusí mencionados pelo americanista na descrição das danças em Ätiaru. Dois cintos com chocalhos, três maracás e seis outras flautas (n.º 319 a 329) estão com a procedência assinalada como sendo o rio Aiarý, aldeia Cururú-cuára. Diferentemente de outros objetos, não há nenhuma narrativa acerca da negociação feita por Koch com os indígenas locais, e tampouco há uma explicação do americanista para essa omissão. Encontram-se apenas fotografias de alguns objetos em fundo branco, um indício de que os artefatos haviam sido adquiridos pelo coletor. A estadia em Ätiaru durou apenas um dia e logo os expedicionários retornaram a Cururú-cuára para se preparar para o prosseguimento da expedição rio Aiarý acima. O americanista logo se encarregou de pagar os tripulantes Katapolitani da comitiva para que eles pudessem retornar à terra deles. Eles levariam consigo a coleção obtida na aldeia para guardála na casa de Antônio. 353 KOCH-GRÜNBERG, 2005. Número do objeto no livro de tombo da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi. 355 Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); A Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia (1955). 354 117 Além dos instrumentos musicais, as armas empregadas na caça pelos índios do Aiarý chamaram a atenção de Koch. As flechas guardadas na aljava, o veneno colocado nas setas e a carauatana foram descritos detalhadamente. Essa última, mais conhecida como zarabatana, era muito apreciada pelos índios, zelosos e relutantes em se desfazer dos seus instrumentos de ataque, “assim como um caçador entre nós não quer ceder uma boa espingarda com a qual está treinado de atirar e à qual ele deve tanta presa”356. Figura 26 – Índio Kawá atirando com carautana. Rio Aiarý. Fonte: KOCH GRÜNBERG, 1909. A Figura 26 é um belo exemplo das fotografias de índios em movimento feitas por Koch-Grünberg. Sua narrativa demonstra o valor que os indígenas davam para as suas carautanas e as estratégias empregadas para a manutenção delas. Conforme relata o americanista, com regularidade os proprietários escondiam essa arma das “vistas cobiçosas de colecionadores”, mas o autor desejava fotografar um Kawá atirando com ela. Para tanto, o fotógrafo foi obrigado a prometer que não iria comprá-la. Enfim, trouxeram-na para o retrato, e logo depois de feito, rapidamente a arma desapareceu357. Apesar do grande zelo dos índios por suas armas, a coleção do Museu Goeldi dispõe de alguns exemplares de aljava com flechas envenenadas, potinhos com veneno para as setas e uma zabaratana dos Siusí (n.º 343, 356 357 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 127. Ibid. 118 344 e 345), adquiridos, possivelmente, numa troca feita com um jovem desejoso de agradar sua esposa com alguns metros de chita358. Depois de dez dias, Koch-Grünberg, Schmidt, Mandú e mais quatro remadores partiram, em 2 de novembro, de Cururú-cuará em um barco maior de um Huhúteni, trocado por uma espingarda. Na aldeia, o etnólogo conviveu com diversos povos indígenas e coletou grande quantidade de material etnográfico – como a já citada máscara da “dança do falo” (Figura 13). A coleção foi incrementada com novos objetos Siusí, Huhúteni e Kawá, que, de acordo com o etnólogo, constituíam “o componente principal da população do Aiarý”. Os objetos do citado rio representam parte expressiva da coleção Koch-Grünberg (1905) do Museu Goeldi. Atualmente, são noventa e cinco artefatos coletados nesse rio, sendo dois Huhúteni, dez Kawá e oitenta e três Siusí, depositados na Reserva Técnica Curt Nimuendajú359. O final da primeira etapa consistiu numa trilha percorrida a pé em busca da passagem terrestre ao Caiary-Uaupés. O não prosseguimento da expedição pelo Aiarý foi uma decisão tomada pelo americanista a partir das suas fontes indígenas, que lhe garantiram que não havia habitantes acima da cachoeira Yacaré. Além da falta de interesse etnográfico e científico em seguir navegando pelo rio, existia também o risco de perder bagagens e despender muito tempo na viagem. Logo, no dia 26 de novembro, o americanista partiu de uma maloca Siusí a pé, com três remadores, Mandú, o chefe dos Kawá e a esposa deste último. Schmidt foi mandado de volta para Cururú-cuára. Caminhando para a conexão do Caiary-Uaupés, encontraram uma aldeia Uanána chamada Yutíca. O americanista definiu a partir da língua que o povo Uanána pertencia ao grupo Betóya, possuindo uma língua muito diferente das línguas Arawak do Içana-Aiarý e mais próxima do dialeto Tukano. A comunicação se deu numa língua intermediária, formada a partir do Arawak, da língua Uanána e da Língua geral. No entanto, os moradores da aldeia possuíam características que pareciam desvirtuar os ideais indígenas divulgados pelo americanista anteriormente. Eles sempre buscavam tirar proveito das mercadorias da comitiva, como escreveu: “os habitantes de Yutíca infelizmente não observam muito exatamente a honestidade. [...] Frequentemente, negociando as trocas, eles levavam à parte qualquer objeto que pegavam com as mãos”. Até mesmo o tuxaua procurou tirar vantagens nas negociações realizadas com o etnólogo, trocando as faixas de fios de fibras de curuá 358 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 128. Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); A Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia (1955). 359 119 vendidas por outras de qualidade inferior360. Apesar dos abusos dos índios, que o incomodavam, o americanista considerou impossível se zangar, pois, assim que flagrados, “eles davam uma gargalhada dissentida e logo devolviam o objeto que eu reclamava”. Essa mesma gente conduziu a comitiva pelas cachoeiras de Yacaré, Tapira-girao e Matapý até Carutú, a maior aldeia dos Uanána. Distintos dos habitantes de Yutíca, os habitantes da grande aldeia foram elogiados pela sua cordialidade e decência. Durante a estadia, Koch incrementou a coleção com mais objetos, apesar da limitação quanto ao tamanho e ao peso, para não sobrecarregar o grupo no retorno a Carurú-cuára: Recebi entre outras, alguns chocalhos feitos de cabaça e adornos com padrões riscados na casca e machados de pedra bem conservados, relíquias dos tempos dos pais. [...] Eu pagava, por quase todas as coisas, com pérolas de miçangas. Também as minhas grossas miçangas “da Baviera”, refugo alemão, especialmente as de cor azul-escura, atraíam muitíssimo aos indígenas. Normalmente eles pediam somente as miçangas pequenas, brancas que eu felizmente tinha adquirido em Manáos. As minhas miçangas finais, de cor azul clara e as “venezianas” de cor vermelho não encontravam apreço nos seus olhos; não aceitavam nem dando-as de graça. Até na selva, a gente está sujeita à moda361. Diferente da visão estereotipada acerca dos índios como agentes passivos e ingênuos, os Uanána atuavam ativamente nas negociações e determinavam a partir de suas predileções as condições das trocas. Coube ao coletor apenas se adaptar aos diferentes termos e estar sempre suprido de uma diversidade de mercadorias para agradar aos diferentes anseios dos grupos encontrados. Depois de alguns dias na aldeia, todos partiram novamente para Cururú-cuará no Aiarý, onde se hospedaram por mais algum tempo antes de retornar a São Felipe. No último dia na grande aldeia dos Siusí, o americanista adquiriu preciosos objetos utilizados em uma dança, na qual os indígenas se açoitavam enquanto tocavam flautas gigantes. Os chicotes de koaí foram facilmente adquiridos mediante pagamento, mas os donos das flautas pareciam relutantes em vendê-las. Então, o americanista, para obter as flautas, utilizou de sua relação com o governador de Manaus, alegando que a autoridade “gostaria de ver todas as coisas”. Mandú então confessou ter em posse três desses instrumentos e consentiu em vendê-los, após Koch garantir que eles seriam levados com todo o cuidado e que a esposa dele próprio não iria vê-los em nenhuma hipótese. No dia 22 de dezembro, despediram-se novamente dos moradores de Cururú-Cuára e partiram de volta a São Felipe. Como sempre, durante o percurso, o americanista buscou incrementar a coleção e assim o fez em Yapú-Rapecúma, no Içana, obtendo três trombetas de 360 361 KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., 2005, p. 171. Ibid., p. 174. 120 dança, denominadas de Kulirína em Siusí e na língua Katapolitani. Alguns exemplares dessas trombetas já haviam sido descritos e coletados por Johann Natterer em 1831. No dia 30 de dezembro, em Tunuhý, o americanista recebeu de volta sua coleção das mãos do inspetor Antônio, que recebeu como pagamento um machado americano Collins. Na aldeia, Koch adquiriu ainda mais alguns objetos, como uma cuia oblonga em forma de colher utilizada para coar o mel. Seguindo adiante, em Pirayauára, em troca de uma faca, obteve meia dúzia de uána e o bastão do chefe de dança dos Karútana. Nenhum desses objetos foi colocado na coleção do Museu Goeldi, demonstrando os critérios de coletor para separar as coleções destinadas a essa instituição e ao museu berlinense. Em 8 de janeiro de 1904, Koch desembarcou em São Felipe, onde foi recebido novamente pelo seu estimado amigo Dom Germano. O vilarejo estava “sob signo da colheita de caucho”, com exceção de Hildebrando, que ficou com o pai, e Salvador, nomeado Prefeito do alto rio Negro e seus afluentes. Outros três filhos do seringalista (Chico, Valentino, Antonio) estavam nas matas em busca das seringueiras ou percorrendo os rios comprando o látex. A consequência dessa temporada de extração do caucho era a dificuldade em encontrar índios para trabalhar, o que se refletiu na continuidade da expedição, pois Koch já havia dispensado toda a tripulação que lhe acompanhou pelo Aiarý e Içana, inclusive Mandú362. De toda forma, o intervalo em São Felipe marca a primeira etapa e a preparação para a próxima excursão. Nesse ínterim, ele gastou seu tempo organizando as anotações feitas em campo, empacotando em caixotes e embalagens os objetos indígenas e obtendo suprimentos e informações para a nova etapa da viagem. Apesar de algumas atribulações, a primeira etapa da expedição foi considerada bemsucedida por conta de alguns fatores elencados por Petschelies: “uma rica coleção etnográfica, abundância de dados etnográficos, relações pacíficas com os povos indígenas, mas, primeiramente por ter sobrevivido”363. Essas conquistas fomentaram o desejo do americanista de prolongar a expedição por mais um ano, a despeito dos primeiros acordos firmados com o museu berlinense e com seu superior von den Steinen. Os planos de ir ao Ucayali-Purus, que foram postergados em 1903, no ano seguinte foram completamente abandonados. Karl von den Steinen, também explorador e seu superior direto no Museu Etnológico de Berlim, não ficou satisfeito com essa decisão. Os excertos de cartas apresentados na tese de Petchelies, trocadas entre Koch, o mesoamericanista Konrad Theodor Preuss e o antropólogo físico Felix von Luschan, demonstram a chateação do chefe 362 363 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 227. PETSCHELIES, 2019, p.395. 121 em Berlim e as recomendações feitas pelos amigos para retornar à Europa com uma grande coleção etnográfica e abundantes dados, condição para ser perdoado. Preuss chegou a escrever: “St.[Steinen] ficou bastante irritado com a mudança dos seus planos de viagem, e toda hora começava outra vez com o assunto. Mas eu não duvido que, por fim, tudo dependa do sucesso. Então todas as vozes terão que calar-se” 364. 2.3.2 Segunda etapa da expedição: rio Curicuriari, baixo Caiary-Uapés e rio Tiquié (fevereiro a junho de 1904) Em fevereiro de 1904, Thedoro Koch-Grünberg já estava determinado a partir de São Felipe com destino ao rio Curicuriarý, com a finalidade de conhecer os Nadëhup e tentar escalar a serra perto da boca do rio. Com a dificuldade em conseguir remadores por conta do período de extração do caucho, o americanista e Schmidt planejaram desbravar por conta própria o referido rio. Apesar de não consentir com a ideia dos expedicionários, Dom Germano cedeu alguns indígenas escravizados por dívidas para acompanha-los, em virtude das perigosas cachoeiras. Os novos membros da comitiva eram o Kuruará-tapuyo João Grande e os Nadëhup Ignacio e Nasario, pai e filho, respectivamente. Os acompanhantes não satisfizeram as pretensões do americanista e receberam algumas críticas a respeito de sua moral e do seu aspecto físico. Segundo Koch, “da ‘civilização’ europeia eles assimilaram o que havia de pior. Em toda a circunvizinhança eles eram conhecidos como os piores cachaceiros”. Além disso, a compleição física dos dois indígenas foi avaliada negativamente pelo etnólogo em razão de serem “Makú pretos”, representados da seguinte forma: “cor da pele muito escura, e o tipo semelhante ao negro com nariz largo e achatado, e o queixo muito protruso, frequentemente de uma conformação animalesca”. Como veremos a seguir, essa representação a respeito dos “Makú” como animais – que destoa das perspectivas do americanista de humanizar os indígenas e suas sociedades por meio da sua etnografia – são reiteradas em outros documentos do autor. Em uma carta destinada a Goeldi, de 19 de junho de 1904, o americanista comunica que no dia 7 de fevereiro do mesmo ano partiu de São Felipe, seguido por Otto Schmidt e mais três tripulantes indígenas com destino ao rio Curicuriary, afluente da margem direita do rio Negro. Ainda no mesmo documento, Koch-Grünberg comunica que, seguindo a viagem, então nas margens do rio Curicuriary, encontrou poucos índios Tukano, “que se refugiaram 364 Konrad Theodor Preuss a Theodor Koch-Grünberg, 04.02.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K5 apud Petschelies, Op. Cit., 2019, p. 398. 122 para esta solidão das intemperies da tal ‘civilisação’”. Na margem direita daquele curso d’água, observou ainda alguns índios Nadëhup que ali vagueavam e os retratou para o diretor do museu paraense como “bravos, perseguidos, acossados e odiados de outras tribos, sem residências fixas e em fuga continua, como animaes selvagens pela mata” 365 . Descrição similar desse povo aparece em outras publicações do autor, como o artigo intitulado Die Makú366, que inicia da seguinte forma: Entre o rio Negro e Yapura perambulam inúmeros índios sem habitação permanente pela floresta. Estes são “indios do matto” [sic], como dizem os brasileiros, brutos caçadores nômades, que não tem roça, não conhecem rede e canoa, porém, tem um primoroso conhecimento da floresta. Eles vivem da caça, da pesca e das frutas da floresta. São odiados e perseguidos pelas tribos vizinhas, superiores e sedentárias, como se fossem animais silvestres. Eles devem servi-los como escravos no trabalho doméstico e na roça e são, vez ou outra, vendidos a troco de espingardas e outras mercadorias europeias para comerciantes brancos. Na escravidão, eles recebem um tratamento relativamente bom, um tanto compassivo367. O relato do americanista a respeito dos Nadëhup, à época chamados de Makú, não era uma excentricidade, outros viajantes e etnógrafos desde o século XIX também os caracterizaram como índios do mato, nômades, rudimentares e servos de outros grupos indígenas. Atualmente, por conta do tom pejorativo do termo Makú, seis grupos indígenas – Nukak, Bara, Hupda, Yuhupde, Dow e Nadöb – reivindicam o abandono desse nome e lutam pelo reconhecimento de suas autodenominações368. Na análise de Münzel, a descrição do americanista relativa à animalidade dos “Makú” está embasada numa tradição etnográfica de outros viajantes e pesquisadores que o precederam no alto rio Negro e nas fontes Tukano, dada a impossibilidade de contato e comunicação diretos com os referidos nativos369. A relação entre os dois povos – “Makú” e Tukano – pode ser entendida como uma luta de representação entre os nômades “indios do matto” e os sedentários “indios do rio”. Koch-Grünberg foi testemunha disso, reportando inclusive a escravidão dos Makú nas aldeias Tukano do rio Tiquié, onde repousou durante a 365 KOCH, Theodor. Duas cartas do Dr. Theodor Koch, relativas à sua actual expedição ethnographica entre os índios do alto rio Negro, dirigidas ao Director do Museu. In: Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de História Natural e Ethnographia,v. 4, n. 2-3, p. 485, 1904. 366 O artigo Die Maku foi originalmente publicado por Theodor Koch-Grünberg em 1906 na revista internacional de etnologia e linguística Anthropos, fundada no mesmo ano por Wilhelm Schmidt (1868-1954). No entanto, no presente trabalho utilizamos a primeira tradução do texto ao português feita por Danilo Paiva Ramos e Karolin Obert publicada no volume 60, número 2, da Revista de Antropologia da USP. In: RAMOS, Danilo Paiva; OBERT, Karolin. Uma tradução do artigo “Die Makú” de Theodor Koch-Grünberg (1906). Revista de Antropologia (São Paul, online), v. 60, n. 2, p. 588-633, 2017. 367 Ibid., p. 601. 368 POZZOBON, Jorge. Hupda. In: Instituto Socioambiental: Povos Indígenas no Brasil. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Hupda#Fontes_de_informa.C3.A7.C3.A3o>. Acesso em: 7 de dezembro de 2020. 369 MÜNZEL, M. Notas preliminares sobre os Kaborí (Makú entre o Rio Negro e o Japurá). Revista de Antropologia, São Paulo: USP, v. 17/20, p. 137-81, 1969- 1972. 123 expedição, e a tentativa permanente dos anfitriões de representarem os escravizados como “não-humanos”. Retomando a trajetória da segunda etapa da expedição, Koch-Grünberg julgou que a viagem pelo Curicuriary havia sido parca em resultados etnográficos. Então decidiu subir o rio Tiqué, um dos afluentes da margem direita do Caiary, até suas nascentes. Nesse rio entrou em contato com diversos povos indígenas, que, segundo ele próprio, “ainda não conheciam o homem branco”370. De forma geral, a passagem pelo Tiquié foi profícua e agradável para a expedição. No seu relato, inclusive, chegou a escrever que “todas as tribos do Tiquié eram boas, somente os Makú não prestavam”371. Para além da aversão explícita aos Nadëhup, a boa recepção entre os autóctones e o grande volume de objetos adquiridos no transcurso são alguns dos fatos que explicam a avaliação positiva do rio Tiquié. A coleção remetida ao Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) tem atualmente no seu inventário cento e nove peças provenientes do afluente, a maior parte do povo Tukano (91) e uma parte menor de outros três, Desana (8), Baré (4) e Tuyuka (6)372. As primeiras aquisições no Tiquié foram em aldeias Desana. Segundo o relato de Koch, as negociações envolveram um adorno de quartzo e três chocalhos para os pés em troca de um grande terçado grande. Toda a transação foi interpelada por uma senhora idosa, “que aos gritos, grasnando, se sobrepôs aos homens”373. A mesma influência da mulher na região foi considerada notável pelo etnólogo, que reportou as muitas “intromissões das mulheres nas falas” durante as trocas e a influência delas no ambiente doméstico, como quando tentou adquirir algum peixe moqueado e o marido não consentiu, pois “a mulher dele tinha que decidir, pois o peixe lhe pertencia”374. Durante a hospedagem nas aldeias do rio Tiquié, com a ajuda de seus colaboradores indígenas e de Schmidt, Koch vasculhava os cantos das casas em busca de tesouros etnográficos e ali mesmo negociava com os produtores ou detentores das peças. Nas mesmas circunstâncias, mas em outras malocas no Samaúma-Igarapé, foram obtidos alguns escudos ritualísticos dos Dêsana e buzinas de barro dos Tukano. Alguns exemplares desses objetos estão atualmente na coleção do MPEG. 370 KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de 1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 371 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 264. 372 Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); A Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia (1955). 373 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 261. 374 Ibid., p.272-273. 124 Seguindo a viagem, adquiriu também uma vasta coleção de objetos de um idoso chefe, não nomeado, na aldeia Iraïtí, o centro dos Mirití-Tapuyo. Sem especificar a origem de cada objeto e o meio pelo qual que as peças passaram à posse do ancião, o americanista elencou os itens comprados: Adornos para a dança, belas e largas faixas para a cabeça com penazinhas de arara, um magnifico adorno de quartzo, cinturão de dança com dentes de macaco enfiados, chocalhos feitos de cabaças, adornadas com desenhos riscados, um bastão artisticamente esculpido duma madeira pesada, marrom, com um punho, que é usado pelos chefes nas festas de dança, como distintivo da dignidade, ao lado de lanças rituais com entalhes semelhantes, e duas pequenas buzinas singulares de madeira que se abrem em dois lados como em funis, completamente simétricos, e são enrolados expressamente com cordas de fibras de curauá, passadas com breu375. Apesar da ausência de informações relativas à comunidade produtora dos citados objetos, é possível observar coincidências entre os itens listados pelo americanista e os catalogados na documentação da seção Tukano do MPEG (n.º 215 a 310376), e a procedência geográfica de ambos: o rio Tiquié. É provável, portanto, que as singulares cangataras com penas de arara, buzinas de barro, enfeites corporais com dentes ou pelo de macaco e maracás depositados na Reserva Técnica Curt Nimuendajú tenham sido comprados pelo coletor na aldeia Iraïtí. No dia 12 de abril de 1904, a coleção foi incrementada com o desejado “Trocano” – grande tambor para sinalização dos Tukano da aldeia Parý-Cachoeira – no rio Tiquié. Schmidt foi quem tomou a frente da negociação com o tuxaua, em razão da sua serenidade e por não partilhar do mesmo “entusiasmo etnográfico” de Koch – o qual, se exposto, poderia dificultar e encarecer a troca. Depois de demorada negociação, foi acertado o pagamento de quatro terçados, cinco machados, cem anzóis e um pacote de fósforos pelo cilindro de madeira. Por ser o único e cobiçado exemplar, descrito pela primeira vez no século XVIII por Joseph Gumilla, foi remetido ao museu berlinense. Na missiva que Koch enviou a Goeldi, o objeto é destacado como um troféu para provar o êxito da segunda etapa da expedição377. Prosseguindo a viagem, por volta do final do mês de abril e início de maio, a expedição atingiu algumas aldeias Tuyuka e Baré. Permanecendo de um a oito dias, o americanista e sua comitiva observavam o cotidiano desses lugares, os festejos, a fabricação e os usos da cultura material. Essa forma de interação com as comunidades permitia uma melhor etnografia e uma maior facilidade na troca de objetos, como Koch o fez adquirindo adornos de dança, instrumentos musicais e até utensílios para aspirar paricá (Figura 27). 375 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 278. Alguns artefatos foram extraviados durante os anos, logo há alguns lapsos nos números de Tombo. 377 GOELDI, 1904, p. 482. 376 125 Figura 27 – Cabaça para paricá e instrumento para tomar do povo Tukano, da coleção Theodor Koch-Grünberg (1905) do Museu Paraense Emílio Goeldi. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica, Negativo MPEG00436. O paricá é um pó de cor cinzenta, feito de sementes de uma árvore, estimulante, aspirado pelo nariz, como rapé. O pó era depositado em recipientes esféricos, em conchas, e aspirado por dois ossos de aves, como vemos na fotografia acima (Figura 27). Na coleção etnográfica de Koch-Grünberg, do MPEG, constam cabaças e aparelhos para uso dos povos Tukano (n.º 294 a 296) e Baré (n.º 535 a 538). A expedição só regressou para São Felipe em 14 de junho de 1904, depois de longa estadia em aldeias Tukano, Tuyuka, Desana e Baré dos rios Curicuriari, baixo Caiary-Uapés e Tiquié. Na segunda parte da viagem, Koch reuniu grande vocabulário indígena, muitos dados sobre os povos visitados, chapas fotográficas e artefatos que logo seriam remetidos aos museus. 2.3.3 Terceira etapa da expedição: rios Negro, Caiary-Uapés e Cuduiary (agosto de 1904 a janeiro 1905) Como feito nas etapas anteriores, Theodor Koch-Grünberg e sua comitiva retornaram para São Felipe e fizeram uma pausa de dois meses nas viagens. Nesse período, o americanista despachou cartas e parte da coleção ao museu de Berlim, adquiriu mais chapas fotográficas e mercadorias para trocas e aproveitou para visitar Miguel Pencil, seu amigo e seringalista, em sua propriedade na margem esquerda do rio Negro, em frente da boca do rio Xié. De volta a São Felipe, em 13 de julho de 1904, teve contato com dois indivíduos do Caiary que contaram negociar com indígenas no alto curso do rio, mas retornaram com medo 126 dos Kubeo, que há pouco tempo haviam matado dois coletores de caucho colombianos. No entanto, esse era um dos destinos da viagem planejada para acontecer no mês seguinte. Os dois homens desaconselharam o trajeto, mas o americanista relatou estar resoluto quanto ao percurso da expedição e disse que não desistiria da viagem e ainda minimizou os perigos para si, pois, na sua visão, os Kubeo “não eram feras e bem distinguiam entre brancos bons e maus”378. A expedição partiu de São Felipe em 3 de agosto de 1904. Dom Germano cedeu cinco pessoas, que acompanharam Koch até Bella Vista, onde o sub-prefeito Manoel Antonio Albuquerque residia. Em troca de reconhecimento no trânsito com o governador do Estado do Amazonas, ele cedeu quatro remadores e um piloto para acompanhá-lo até a aldeia Ipanoné, localizada nas margens ascendentes do Caiarý. A viagem prosseguiu pelo Caiarý-Uaupés, onde entrou em contato com diversos povos – Tukano, Pira-Tapuyo, Arapáso, Tariana – até chegar na aldeia Yauareté, dos Tariana, no rio Papurý, onde passou três dias. No relato de viagem, a descrição da terceira etapa da expedição é intercalada por dois capítulos (III e VII do volume 2), que detalham e examinam as práticas de pesca, lavoura e a indústria de trançados, tecidos, cerâmica e de ornamentação das casas. Nota-se o grande esforço do etnólogo para documentar as ações, as técnicas, as ideias, a língua, a mitologia e a cultura material dos povos visitados, numa premissa de tornar acessível aos estudos etnológicos a maior quantidade de informações essenciais aos estudos do pensamento universal379. No capítulo sobre a pesca, o americanista utiliza-se de dados empíricos e os exemplifica com objetos por ele colecionados, o que nos dá algumas pistas sobre a procedência das coleções e o interesse dele pelos citados artefatos. Por exemplo, ele cita duas flechas dos Yahúna adquiridas no baixo Apaporís, arcos e flechas dos Kueretú no Yapurá, perto da boca do Apaporis, e uma rede obtida no alto Aiari de povo não identificado. Além disso, apresenta diversas fotografias de redes de apanhar peixes menores, apetrechos para tecê-las e matapís, todos do rio Aiari(Figura 28). 378 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 366. Para uma leitura mais completa dos pressupostos epistêmicos da etnografia de Theodor Koch-Grünberg e a relação de suas viagens ao projeto científico da Völkerkunde, consultar: FRANK, 2005. 379 127 Figura 28 – Redes e matapí do rio Aiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1910. No esforço para recontextualizar a coleção feita por Koch, confrontamos as informações e as fotografias do relato de viagem com a documentação do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). Entre os materiais de pesca coletados pelo americanista, existem quatro itens que combinam com as descrições e partilham da mesma procedência descrita em Dois anos entre os indígenas. São eles: três redes, duas fibras de tucum de procedência duvidosa do Caiarý e uma dos Siusí do Aiarý (n.º 350), e um matapí do mesmo povo no Aiari (n.º 354). Não é possível atestar se os artefatos encontrados no MPEG são os mesmos que foram fotografados por Koch-Grünberg, apenas é lícito afirmar que o interesse do coletor pelas práticas de caça e pesca e o desejo de documentar diversos aspectos culturais dos ameríndios estão representados na coleção. Seguindo viagem pelo Uaupés, a expedição enfrentou grandes dificuldades para atravessar as cachoeiras e correntezas, mas encontrou abrigo em uma aldeia Uanána, onde obtiveram mais dois escudos dos Desana do Papurý pertencentes ao chefe. Na mesma aldeia, conheceu um índio Kubeo, chamado Uaíkumu Kdyu, que concordou em acompanhar KochGrünberg até sua aldeia no Cuduiarú e apresenta-lo para sua gente. No dia 5 de setembro, partiram da aldeia Uanána com destino aos Kubeo. Passando por algumas corredeiras, chegaram à maloca Matapý, ainda no rio Caiarý-Uaupés. Lá viviam juntos Uanána e Desana e alguns visitantes Kubeo, que participavam de uma dança de mascarados, cujos trajes o americanista chegou a comprar. Essa não foi a única aldeia Uanána em que a coleção foi incrementada. Em outra, denominada Uruárapecúma, foram negociadas novas peças, entre elas bastões de dança de madeira de ambaúva. 128 Figura 29– Surubiróca, maloca dos Kubeo no rio Cuduiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1910. Novos bastões de madeira foram comprados no dia 23 de setembro, mas dessa vez em uma maloca Korokoró-Tapuya – segundo o americanista, era um subgrupo dos Kubeo e partilhava da mesma língua – já no rio Caduiarý. Subindo o flume, pernoitaram na maloca Surubiróca dos Kubeo, onde viviam três irmãos e suas famílias (Figura 29). No interior da choça decorada com motivos coloridos380, Koch-Grünberg encontrou alguns chicotes utilizados em festas e corpetes de máscara, ainda novos e bem pintados, usados numa recente festa fúnebre, e algumas lâminas de machados de pedra, que provavelmente enriqueceram a coleção formada nesse rio. A expedição prosseguiu navegando por todos os meses de setembro e outubro pelo Caduiarý, com algumas estadias em malocas de diversos povos situadas às margens. As atividades nas aldeias eram muito similares, o que Petschelies resumiu muito bem: “descanso e alimentação, festas e caxiri, estudos linguísticos e etnológicos, montagem da coleção etnográfica e fotográfica” 381. 380 Observando a arte decorativa das casas indígenas, Theodor Koch-Grünberg escreveu: “[...] assim estamos vendo que na vida caseira do indígena absolutamente não há falta de poesia, e que a casa é para eles não apenas um abrigo, mas um lar em verdadeiro sentido da palavra, que eles decoram e adornam, como podendo”. In: KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 558. 381 PETSCHELIES, 2019, p. 411. 129 Figura 30– Negociando com os Bahúna. Fonte: Koch-Grünberg, 1910. Na Figura 30, observamos uma cena do processo de negociação travado entre os índios e Koch-Grünberg. Na representação, um grupo Bahúna visitou o americanista em Túibö, maloca do mesmo povo, com o objetivo de vender alimentos, lâminas de machados de pedra, colares de sementes e de dentes de animais, e peles de galos-da-serra. Esse interesse dos indígenas por negociar objetos locais com produtos europeus foi registrado também em outras partes do globo, como observou Torrence e Clarke382. Ao analisar o acervo etnográfico do Australian Museum, os autores observaram uma série de estratégias empregadas pelas comunidades da Nova Guiné Britânica para atrair e aumentar as trocas com viajantes, comerciantes, missionários e funcionários dos governos ocidentais: “fabricação de cópias de objetos conhecidos; conceber mudanças aceitáveis para bens populares; itens convidativos que agradariam aos gostos ocidentais; realçar os artefatos tradicionais para atrair a atenção”383. 382 TORRENCE, Robin; CLARKE, Anne. Creative colonialism: Locating indigenous strategies in ethnographic museum collections. In: HARRISON, Rodney; BYRNE, Sarah; CLARKE, Anne (orgs.). HARRISON, Rodney. Reassembling the collection: ethnografic museums and indigenous agency. New Mexico: SAR Press, p. 171195, 2013. 383 Ibid., p. 179-180, tradução nossa. No original: “manufacturing copies of well-known objects; devising acceptable substitutions for popular goods; inveting items that would appel to western tastes and enhancing tradicional artifacts to attract atention”. 130 A visita dos Bahúna revela que a fama do colecionista antecedia a sua chegada e gerava interesse nos produtores para vender seus objetos com a finalidade de obter outras mercadorias. Seguindo a perspectiva apresentada por Torrence e Clarke, é possível que as comunidades criadoras – não somente do citado grupo, como também de outros povos contatados na expedição – que tiveram seus objetos colecionados também utilizassem de estratégias criativas para atrair a atenção do colecionador, como, por exemplo, interferir na criação de artefatos domésticos e ritualísticos com a finalidade de despertar o desejo colecionista dos forasteiros. Durante as visitas às malocas Bahúna, Koróa, Pisá-tapuyo, Uanána, Umauá, o americanista registrou não só informações relevantes para a sua pesquisa etnográfica, mas a tensão e animosidade entre os indígenas e os colombianos – conjuntura que interferia diretamente no seu trabalho e no estado psicológico dos nativos, e que demandava grande esforço do pesquisador para administrar a situação e manter os elos. Relatos de assassinatos, vinganças, invasões, sequestros de mulheres, mutilações e fugas foram compartilhados pelos ameríndios ao “dotoro”, como ele costumeiramente era chamado na região, e os expedicionários foram testemunhas das novas doenças que acometiam os habitantes locais. Nesse contexto angustiante, ter aliados influentes foi fundamental, fossem eles indígenas ou não. As cartas de recomendação obtidas com seringalistas, oficiais, autoridades regionais ou estaduais e a fama que possuía como amigo dos índios permitiram conseguir guarida nas aldeias e nos acampamentos, arregimentar remeiros, angariar alimentos, navegar pelos rios e salvaguardar a vida dos membros da comitiva. No dia 11 de novembro, após ultrapassar as longas cachoeiras, eles chegaram em Namocolíba, aldeia dos Kubeo. A estadia com esse povo foi longa e harmoniosa, cerca de um mês com curtos intervalos enquanto visitava outras aldeias próximas. O americanista, por meio da observação pessoal e das fontes orais dos habitantes, realizou um minucioso exame dos costumes, usos e conceitos locais. Ele descreveu não só a cultura material, como também a “arte e petróglifos, [...] e técnicas de produção, relações interétnicas (guerra e comércio), relações com animais, divisão sexual do trabalho, ciclo da vida, casamentos, xamanismo e endocanibalismo, além da mitologia [...]”384. Evidentemente, maior destaque foi dado aos processos de feitura (Figura 31) e uso das máscaras (Figura 32), afinal, um grande montante desses objetos foi coletado e destinado aos museus berlinense e paraense. Em Belém, há atualmente quase noventa máscaras e outros artefatos relacionados de origem Kubeo. 384 PETSCHELIES, 2019, p. 414. 131 Figura 31- Sequências de fotografias do processo de confecção das máscaras de dança dos Kubeo, no rio Cudiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1910. O processo de preparação das máscaras foi acompanhado de perto em Namocolíba e foi registrado conjuntamente por meio de uma sequência de fotografias (Figura 31) e pela descrição textual, que detalham a extração da casca de troncos de média grossura, o espancamento, a costura, a lavagem e a secagem da entrecasca, como é possível ver na sequência acima. Figura 32 - Dança das máscaras dos Kubeo no Rio Cudiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1910. 132 Koch-Grünberg adquiriu mais de 50 máscaras diferentes, cada uma representando um distinto espírito (demônio385) ou animal. Muitas delas haviam sido utilizadas em festas fúnebres. De acordo com ele, os festejos de finados iniciavam de tarde e se alongavam até de manhã, quando os indígenas amarravam as máscaras pelas mangas sobre varetas no centro da aldeia e então as queimavam. Após inquirir alguns Kubeo, o americanista conseguiu uma explicação melhor acerca da alma invisível das peças: Quando os Kubeo quiseram explicar-me do melhor modo esta parte invisível da máscara, eles chamaram-na, com a palavra da Língua Geral, “máscara-anga” (alma da máscara). Como a alma humana está invisível dentro do corpo, o vivifica e, depois da morte, vai para Mkölmi, o Além das almas dos Kubeo, assim depois da “morte”, isto é, depois de ser queimada a máscara, a força invisível que durante a festa vivia na máscara, seu invólucro visível, volta para a sua residência própria. Esta força invisível é o demônio. ‘Todas as máscaras são abóxökö (demônios); todos os abóxökö são senhores (donos) das máscaras”, disseram os Kubeo386. Dessa forma, as máscaras não só representavam espíritos de toda a conformação humana e diferentes espécies de insetos, aves e mamíferos, como eram habitadas por eles. Para Koch-Grünberg, então, a cremação das peças depois da festa em homenagem aos mortos “justificava-se pelo medo de que o demônio volte e com o qual não querem mais nada ter que haver”387. De todo modo, o fato certamente transformou os objetos em itens raros e, consequentemente, era um motivo de entusiasmo para o colecionista. No dia 12 de dezembro acabou a estadia entre os Kubeo. O tempo na aldeia, nas palavras de Koch-Grünberg, foi “inesquecivelmente belo” em razão da acertada relação de confiança e concórdia. O objetivo final da expedição nesse momento era São Felipe, para uma despedida definitiva. A terceira etapa da expedição foi desgastante para toda a comitiva, com a carestia de alimentos, entre eles a farinha – item fundamental na dieta amazônica – e casos reincidentes de febres e desânimo. Ademais, houve severas avarias nas embarcações causadas por choques com as pedras nas corredeiras, como na travessia da Cachoeira Yurupirý, quando a embarcação rachou quase que inteiramente no meio. Essa travessia foi registrada na icônica fotografia abaixo (Figura 33), na qual os remeiros indígenas descem com esmero o pesado bote, representando uma ideia geral de que, nas palavras de Petschelies, o “trabalho de campo é uma batalha contra a natureza”388. 385 O americanista utiliza comumente esse termo para descrever os seres representados nas máscaras. KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 506 387 Ibid., p.507. 388 PETSCHELIES, 2019, p. 422. 386 133 Figura 33 – Remadores indígenas descendo a embarcação na Cachoeira Yurupirý. Fonte: Koch-Grünberg, 1910. Após alcançar uma maloca Makú e ter realizado alguns estudos complementares, a viagem viveu um hiato entre os dias 22 e 25 de dezembro por falta de remadores, problema que só foi resolvido depois de longas negociações. Os expedicionários, então, passaram o natal na cachoeira Yaureté, no rio Uaupés, terra dos Tariana. Ali compraram mais objetos etnográficos, entre eles instrumentos e máscaras usadas por diversos povos indígenas nas festas de Yuruparý e um tambor de sinalização. Esse último artefato, também chamado de “trocano”, e seus acessórios foram adquiridos na aldeia Castanha-capuáma e foram remetidos ao MPEG. No entanto, a presença do tambor (n.º 529) na Reserva Técnica está confirmada apenas na listagem de 1939. Nas conferências feitas a partir de 1988 ele não foi localizado, enquanto os outros apetrechos listados ainda estão atualmente na instituição (n.º 530 a 533). No regresso para São Felipe, encontraram Hildebrando e Salvador, que viajavam para Ipanoré. Os dois filhos de Dom Germano expuseram a notícia de que no dia 8 de novembro a casa da família e as barracas situadas ao lado foram destruídas por um incêndio. O fogo atingiu um tanto de haveres do americanista, entre eles, armas e mercadorias para as trocas, “em valor de mais de um mil marcos alemães”. Preocupações sobre o destino dos diários, dos vocabulários e da coleção etnográfica tomaram conta da cabeça do etnólogo, que relatou ter perdido algumas noites de sono. A aflição só teve termo quando a comitiva alcançou o vilarejo no primeiro dia de janeiro de 1905. Por sorte, os “tesouros insubstituíveis” estavam acomodados na única habitação que ficou livre do fogo e estavam intactos389. 389 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 568. 134 Em São Felipe, o americanista tomou conhecimento das cartas de Oscar Dusendschön e Karl von den Stein, recebidas durante o período em que esteve ausente. Por meio das missivas, o cônsul alemão confirmou o envio das coleções etnográficas para Belém e Berlim e também para sua noiva, Elsa Wasmuth, e informou que o pesquisador estava autorizado a ausentar-se do museu berlinense até abril de 1905, com o adiantamento de 500$000390. Na outra carta, Steinen fundamentou sua opinião quanto à exploração do Purus, mas concordava com a escolha feita por Koch-Grünberg. Além disso, elogiou o material Baniwa e Tukano que já havia chegado a Berlim, com menção especial ao grande tambor391. A estadia em São Felipe se prolongou até o começo de fevereiro de 1905. Esse tempo foi suficiente para os expedicionários se recuperaram da fadiga da viagem antecedente e se prepararem para a quarta e última etapa. No vilarejo conseguiram empacotar e entregar as coleções ao atravessador Antonio Garrido e consertar a montaria, que estava bastante avariada depois das travessias pelas cachoeiras. Essa prolongada relação entre Koch-Grünberg e a família Garrido y Otero não foi esquecida no resumo de viagem publicado em um periódico amazonense. Ganhou, pelo contrário, palavras de imensa gratidão para com todos. O americanista sentenciou como “feliz acaso” a escolha de São Felipe como centro de suas operações, e assim justificou: “digo feliz porque o meu estimado amigo, o sr. Germano Garrido y Oterro, assim como seus dignos filhos, me auxiliaram bastante, por todos os meios ao seu alcance e devo a esses amigos uma grande parte dos bons êxitos das minhas viagens”. Após esse discurso, ele, assim como fez em Dois anos entre os índios, afirmou que o seringalista havia sido um “verdadeiro pai”392. 2.3.4 Quarta etapa da viagem: rios Uaupés, Tiquié, Pira-Paraná, Apaporís, Japurá e Solimões (fevereiro a abril de 1905) No dia 6 de fevereiro partiram Theodor Koch-Grünberg, seu inseparável companheiro Otto Schmidt e mais alguns remeiros indígenas, entre eles, o Nadëhup Ignacio e o KurauáTapuio João Grande. Por meio de uma rota não usual, os expedicionários pretendiam chegar ao rio Amazonas subindo o Tiquié e depois descendo pelo Japurá. A quarta etapa da viagem, segundo o americanista, teve o objetivo claro de “regressar por caminhos ainda não pisados e 390 Oscar Dusendschön a Theodor Koch-Grünberg, 29.07.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K6; Oscar Dusendschön a Theodor Koch-Grünberg, 30.07.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K6; Oscar Dusendschön a Theodor Koch-Grünberg, 31.08.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K6; Oscar Dusendschön a Theodor Koch-Grünberg, 20.09.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K6 apud PETSCHELIES, Op. Cit., 2019. 391 Karl von den Steinen a Theodor Koch-Grünberg, 27.10.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K7 apud PETSCHELIES, Op. Cit., 2019. 392 KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de 1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 135 por algumas regiões ainda não conhecidas e chegar ao Yapurá e aproximar-se outra vez da ‘soi-disant’393 civilisação em busca das pátrias terras”394. Os expedicionários então subiram pela segunda vez o rio Tiquié até um “caminho dos índios” já navegado na segunda etapa da viagem, em maio de 1904. Com a ajuda de informantes, encontraram um igarapé que desaguava no rio Japurá. A travessia no estreito curso d’água foi penosa nos primeiros dias, por conta dos empecilhos naturais das árvores caídas. No dia 12 de março, chegaram à maloca dos Tsola, situada na margem esquerda do igarapé Tamíya. Os moradores foram todos cordiais com os expedicionários, apesar dos visitantes, segundo o americanista, serem os primeiros brancos a pisarem ali – certamente, umas das grandes satisfações para um etnólogo no início do século XX. Ainda na aldeia, mostraram a eles um grande terçado que, no ano anterior, foi dado como pagamento em Pinókoaliro, mas que por meio da circulação intercultural chegou às mãos dos Tsola. Seguindo viagem, no dia 15 de março, na Iraïti-Cachoeira, uma das canoas afundou, perdendo-se ali alguns objetos indígenas, uma espingarda recarregável pela boca, terçado, toda a farinha e todo o sal. As mercadorias para troca foram salvas por um Tuyuca. No dia seguinte, a comitiva foi esvaziada, pois os Tuyuka tomaram o caminho de volta para casa com receio dos povos que moravam rio abaixo, seus inimigos antigos que mataram seus pais. O etnólogo então decidiu seguir a viagem apenas com Schmidt na canoa que se salvou no desastre. Apenas no dia 20 de março entraram no rio Apaporis, o maior afluente do Japurá, na margem esquerda. Durante três dias remaram, com parca alimentação, até encontrarem gente novamente: primeiramente, o caucheiro colombiano Tomás Prata e sua comitiva e, depois, alguns índios moradores das nascentes do Apaporis e, em seguida, um pouco mais abaixo, outros habitantes de malocas. Após viajar mais um pouco, chegaram à maloca dos Makúna no rio Apaporis. A aldeia e seus habitantes logo atraíram a atenção do etnólogo por suas particularidades, que, admirado, reportou: “a gente, suas armas, seus instrumentos, tudo era algo diferente do que encontramos no Caiarý e no Yaucáca-Igarapé, influenciado pelo jeito do Caiari”395. Em outro momento, disse sobre a experiência com esse povo: “são eles homens de bom coração e eram 393 A expressão francesa empregada por Koch-Grünberg dá ideia de “suposta”, “alegada”, ou melhor, “assim chamada”. 394 KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de 1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 395 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 593. 136 muitos meus amigos, como assim todos os demais índios, chamados bravios, [...] passando [...] dias aprazíveis e de inestimável valor pra mim, em virtude das muitas novidades que colhi para os meus estudos”396. Figura 34 – O americanista com os Makúna, Yabahána, Yahúna, no baixo Apaporis. Fonte: Koch-Grünberg, 1910. O interesse fez com que os expedicionários demorassem até o dia 28 de março entre os Makúna e seus vizinhos Yahúna e Yabahána, como podemos observar na Figura 34, na qual os indígenas e Koch-Grünberg parecem segurando suas respectivas armas. A estadia na maloca possibilitou reunir vocabulário, informações acerca de seus costumes e usos da cultura material e negociar objetos desses povos. De acordo com Koch-Grünberg, as negociações na maloca dos Makúna eram simples, os produtores não colocavam empecilhos para trocar mercadorias e não eram tão exigentes. O Museu Goeldi recebeu pelo menos vinte objetos – três dos Makúna e dezessete Yahúna – adquiridos durante a estadia no rio Apaporis. Entre eles, destacamos os característicos adornos masculinos de braço Yahúna, feitos de sementes de tucumã (n.º 575 a 577), e o escarificador de dentes do peixe cachorra (n.º 571 a 574), instrumento medicinal para riscar a pele e livrar-se de possíveis doenças. A viagem continuou por mais alguns dias, com indígenas Yabahána e Yahúna como remadores, com destino ao rio Amazonas. Passaram por algumas malocas, como a de KuxiítaYahúna, na margem direita do Apaporis, onde o americanista encontrou índios com maior 396 KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de 1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 137 influência europeia. Ele assinalou que a estadia ali marcava o último dia entre os indígenas livres. O americanista ainda toparia com outros povos indígenas, como os Uitóto, Miránya, Hianákoto, Opaina, Kokáma, mas a impressão que registrou, navegando até o caminho de casa, foi a exploração dos índios no contexto de extração do caucho, tanto entre brasileiros como entre colombianos. Depois de dois anos de viagem, os expedicionários se despediram dos seus amigos indígenas ao encontrar uma lancha, que os levou até a cidade de Tefé. Da cidade amazonense partiram no vapor “Lauro Sodré” até a capital, onde chegaram no dia 4 de maio. Em Manaus, Otto Schmidt e Koch-Grünberg se despediram para sempre e esse último embarcou a bordo do navio “Patagonia”, da linha Hamburgo-Amérika, de volta à Alemanha. Quando da primeira edição de Dois anos entre os Índios, cinco anos após o fim da expedição, Koch, de modo saudosista, declarou que o paraíso encontrado por ele na floresta amazônica não poderia ser mais avistado em razão do reencontro com a suposta civilização: O sopro pestilento de uma pseudo-civilização anda por sobre os povos morenos, que não possuem direitos. Como enxames de gafanhotos que tudo destroem, penetram os bandos de desalmados coletores de caucho sempre mais adiante. Os colombianos já se fixaram na boca do Cuduiary e conduzem os meus amigos para longe, nas mortíferas matas de caucho. Atos de violência bruta estão na ordem do dia. No baixo Caiary, os brasileiros não fazem melhor. As praças das aldeias estão ficando desoladas, as casas tornam-se cinzas, e a selva retoma a sua posse das roças, que não recebem a atenção de mão cuidadosas. Assim se destrói uma raça forte, um povo com excelentes disposições de espírito e coração. Um material humano, capaz de desenvolver-se, fica aniquilado pelas brutalidades desta moderna cultura da barbárie. O trecho acima é uma contundente denúncia contra essa torrente de “civilização” que adentrava as matas e explorava, e muitas vezes dizimava, os povos indígenas. A percepção de Koch-Grünberg acerca dos índios, como aponta Pinto, não estava dissociada dos processos sociais e políticos que coexistiam na Amazônia nas primeiras décadas do século XX. Pelo contrário, a etnografia feita pelo americanista descreveu as culturas e as “condições de existência de uma população indígena sofrendo o efeito do contato com os valores da civilização”397. 2.4 A aquisição das “duplicatas” pelo Museu Goeldi A longa convivência entre os indígenas e a interação com as comunidades produtoras resultaram no acúmulo de grande quantidade de material etnográfico por parte de KochGrünberg, um volume maior do que as expectativas iniciais. Quando em São Felipe, no início de 1904, preparando e empacotando peças no intervalo entre a primeira e a segunda etapa da 397 PINTO, Renan Freitas. Vida e Obra de Koch-Grünberg. In: KOCH-GRÜNBERG, 2005. 138 expedição, o americanista parece ter vislumbrado a possibilidade de negociar uma parte menor da coleção com o Museu Goeldi398. Em correspondência a Koch datada de 16 de março de 1904, citada por Petchelies, Emílio Goeldi, o diretor da instituição, consentiu com a ideia “amigável de agora nos dispor eventualmente de uma série de duplicatas da sua coleção etnográfica do Içana e do Uaupés”399. Koch-Grünberg não registrou a quantidade exata de objetos que tinha em posse até aquele momento em São Felipe. No entanto, pode-se ter uma ideia do volume da coleção pelos relatos a respeito das dificuldades encontradas para preparar e empacotar as frágeis peças. No vilarejo, Dom Germano disponibilizou todos os caixotes e embalagens que dispunha; porém, não atendiam a totalidade das necessidades de acondicionamento e proteção do material, sobretudo das cerâmicas, durante o deslocamento fluvial e terrestre até os museus. Improvisações foram feitas e os indígenas da vila tiveram de “cortar capim e secá-lo no sol, mas este era um fraco recurso de emergência e não podia substituir a palha de madeira elástica, mas ao mesmo tempo firme”400. O desabafo do etnólogo parece dar conta da falta de equipamentos e das suas preocupações com as coleções: Os que visitam um museu e admiram as coleções nos armários de vidro nem sequer desconfiam quais são os caminhos pelos quais tantas peças quebradiças devem percorrer até que cheguem ao seu destino. Com tristeza despede-se um pesquisador dos objetos que ele ajuntou com amor e acompanhou feliz através dos empecilhos da viagem e agora deve entrega-los ao seu destino incerto e às mãos inexperientes e frequentemente rudes. Se, porém a metade das vasilhas chegar quebrada, dizem: “sim, veneradíssimo Senhor, por que fizeste a embalagem tão descuidada?” A gente nem pensa ou até se esquece completamente até nisto há uma diferença entre uma cidade grande, onde tudo o que é necessário pode ser obtido em breve tempo, e a selva, onde se deve contentar com o pouco que aí se encontra401. As preocupações do americanista naquele momento não se resumiam em coletar objetos raros, vistosos ou desejados, mas fazer também com que todas as peças chegassem aos museus com condições de serem analisadas pelos pesquisadores e expostas aos visitantes. Empacotar e enviar o material de campo para a metrópole era responsabilidade do coletor. Todavia, nem sempre o profissional encontrava no campo os recursos para embalar perfeitamente um artefato, mas era cobrado pelo estado de conservação pelos curadores das instituições museológicas. 398 PETSCHELIES, 2019, p. 395. Emílio Goeldi a Theodor Koch-Grünberg, 16.03.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K6.Apud PETSCHELIES, Op. Cit., 2019, p. 395. 400 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 230. 401 Ibid., pp. 230-231. 399 139 Conforme assinala Kury402, “o viajante ideal deveria saber desenhar, embalar corretamente produtos de história natural, empalhar animais, confeccionar herbários, recolher sementes, dissecar animais e plantas”. Esse conjunto de tarefas fazia parte dos domínios necessários para o êxito de uma expedição, assim como a capacidade de estabelecer relações com agentes locais, haja vista que as trocas simbólicas ou materiais permitiam obter a matéria-prima das caixas e dos cestos que acondicionariam os objetos coletados. O americanista, no relato de viagem, chegou a dar conselhos aos pesquisadores acerca das obrigações de transportarem consigo, da Europa para a América do Sul, o material necessário às embalagens. Segundo ele, deveriam trazer consigo “três ou quatro caixas revestidas de zinco por dentro [...]. A caixa central deveria estar cheia, entupida de palha de madeira. Acrescente-se material para fazer sacos, alguns rolos de corda forte, de barbante e umas agulhas para costurar sacos”403. Como assegura Antunes404, para muitos viajantes o aprendizado das habilidades necessárias para o ofício não era inerente, mas apreendido por meio das experiências cotidianas das viagens. Os comentários feitos pelos viajantes são testemunhos desse desenvolvimento, do fazer-se naturalista ou etnólogo. Apesar das dificuldades em obter material no campo para empacotar as peças, a coleção foi remetida ainda no segundo semestre de 1904 ao Museu Goeldi. Em carta de agosto do mesmo ano, o intermediário Oscar Dusendschön, cônsul alemão em Manaus, informou ao diretor da instituição sobre o envio de nove caixas carregadas de material etnográfico para Belém por meio da companhia germânica Cmook & Pook pelo custo de 59$350 réis405. A chegada do material no museu paraense foi confirmada por Jacques Huber, então diretor interino, no seu relatório ao Secretário de Estado da Justiça, Interior e Instrução Pública referente ao ano de 1904406. No relatório, Huber reportou o recebimento das “primeiras remessas de uma collecção ethnographica que o Dr. Theodor Koch, do Museu ethnographico de Berlim, reuniu, a pedido da Directoria, para este Museu durante as suas viagens aos afluentes do rio Negro”. Apesar de noticiar a chegada dos objetos, o documento 402 KURY, Lorelai. As artes da imitação nas viagens científicas do século XIX. In: VERGARA, Moema de Rezende; ALMEIDA, Marta de (orgs.). Ciência, História e Historiografia. São Paulo: Via Lettera; Rio de Janeiro: MAST, 2008, p. 322. 403 KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 231. 404 ANTUNES, Anderson Pereira. Um naturalista e seus colaboradores na Amazônia: a expedição de Henry Walter Bates ao Brasil (1848-1859). Tese (Doutorado em História das ciências e da saúde – Fiocruz). Casa de Oswaldo Cruz, 2019, p. 161. 405 Oskar Dusendschön to Emil Goeldi, 18.08.1904, FPMEG, Correspondência passiva, 1904. 406 HUBER, Jacques. Relatorio apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Secretário do Estado da Justiça, Interior e Insctrução Publica pelo director interino do Museu Goeldi Dr. Jacques Huber relativo ao anno de 1904. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Etnographia, Belém, v. 5, fasc. 1 e 2 1, pp.23-42, 1909. 140 não apresentou informações alusivas à quantidade, descrição, procedência geográfica e estado de conservação, nem o valor pago. Nos relatórios dos anos posteriores (1905 a 1909) do diretor do Museu Goeldi, publicados no Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnographia, as remessas de Koch não foram mencionadas, embora a presença, na coleção da instituição, de artefatos Makúna (n.º 524 a 526) e Yahúna (n.º 570 a 586), adquiridos durante a passagem do americanista pelo rio Apaporis em 1905, ateste o envio de objetos em data posterior à do primeiro envio. O preço da compra foi revelado por Emílio Goeldi em correspondência oficial ao secretário de Justiça, Interior e Instrução Pública do Pará em 2 de março de 1906407. No documento, o diretor do museu – declarando inicialmente que o governador tinha ciência dos fatos – solicitou o valor de 5:760$000 ou cerca de 8.000 marcos, que seriam destinados à “aquisição das importantes coleções etnográficas feitas pelo Dr. Theodor Koch, de Berlim, durante a sua memorável expedição entre os índios dos rios Negro e Uaupés nos anos de 1903 e 1904”.408 O pagamento pela referida coleção ocorreu na forma de parcelas entre dezembro de 1906 e março de 1907, sendo a primeira quantia de 3.000 marcos409. Consultando o Diário Official do Estado do Pará – veículo de comunicação oficial no qual são publicados decretos, atos normativos, despesas e orçamentos, como o do Museu Goeldi na época, entre o primeiro semestre de 1906 e o segundo do ano subsequente, não encontramos informações alusivas à importância remetida a Koch-Grünberg pela sua coleção. Existem apenas no periódico alguns informativos das secretarias da Fazenda e da Justiça, Interior e Instrução Pública do Pará, tratando do envio de quantias, que variavam entre 4:000$000 a 9:760$000, para o custeio do estabelecimento e o pagamento de eventuais despesas, sem maiores informações sobre como a verba era aplicada.410 Não é possível, no momento, precisar o total de objetos coletados por Koch-Grünberg e remetidos ao Museu Goeldi, nem quantos desses chegaram a Belém, após a longa viagem do noroeste amazônico à capital, em condições de serem acondicionados no acervo da instituição. O primeiro documento encontrado que detalha a coleção do americanista é o 407 Ofício de Emílio Goeldi ao Secretário da Justiça, Interior e Instrução Pública do Pará. Belém, 2 de março de 1906. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Fundo Museu Paraense Emílio Goeldi (doravante, FMPEG), Gestão Emílio Goeldi, Livro de cópias de ofícios enviados. 408 Emílio Goeldi se equivocou em relação aos anos da expedição. Na verdade, a expedição tem seu fim em 1905. 409 SANJAD, 2019. 410 Diário Official [do estado do Pará]. Período: de 30 de junho de 1906 à 27 de março de 1907. 141 Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi,411 preparado por Curt Nimuendajú, chefe interino da Seção de Etnografia da instituição a partir de 1920. Nessa listagem, datada de 1921, Nimuendajú arrola 497 artefatos de dezenove povos indígenas. No entanto, não anotou quantas unidades haviam sido extraviadas ou remetidas a outras instituições desde a chegada, ainda em 1904. No final do mesmo documento, há uma lista assinada por Evalda Xavier Falcão, datada 1939, que identifica as peças ausentes na recontagem feita naquela data, em comparação com a primeira lista feita por Nimuendajú. Entre elas, quatro artefatos produzidos pelos Tukano e coletados por Koch-Grünberg. Ademais, com base em uma nota escrita por Nimuendajú, datada de 3 de abril de 1921 e anexada no início do Catálogo, é possível saber que uma parte da coleção estava em exposição permanente nas duas salas da Seção Etnográfica: na primeira, “as tribos dos afluentes septentrionaes do Amazonas”; na segunda, “as dos afluentes meridionais”. Todos os artefatos exibidos podiam ser facilmente identificados pelos rótulos explicativos em cada uma das vitrines que representavam os rios e seus respectivos povos. O restante da coleção, incluindo o material coletado por Koch-Grünberg, foi guardado em sete caixas, com exceção das “peças de louça Cunivo, R. Caiarí, Jurúna, Quichua e mais algumas outras peças por demais volumosas”. A Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi, elaborada entre 1939 e 1940, apresenta, com novos números de registro, 495 objetos da coleção de Koch-Grünberg. Em comparação com o documento feito em 1921, há quatro ausências, como já foi mencionado, e a adição de dois objetos registrados pela primeira vez – uma panela do povo Siusí e um par de mangas de máscara dos Kubeo. No Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia412, elaborado por Eduardo Galvão na década de 1950, verificamos 491 objetos da coleção Koch Grünberg. Nota-se que quatro objetos – um Tukano e três Kubeo – são registrados pela primeira vez, não constando nas listas de 1921 e 1939-40. Além disso, oito objetos catalogados na Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi não foram encontrados no livro de tombo. 411 Em razão do estado deteriorado e frágil do catálogo original de 1921, consultei a cópia da listagem feita em 1939. A cópia está manchada de água e não há a assinatura de Nimuendajú na primeira página e a parte final da lista foi digitada em máquina de escrever, diferentemente da versão de 1921, na qual o registro dos últimos objetos foi feito de forma manuscrita. In: BENCHIMOL, 2009. 412 Consultamos uma cópia não datada do Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia disponível na Reserva Técnica Curt Nimuendajú para a consulta de pesquisadores e funcionários da instituição. 142 Como é possível observar, ao longo dos anos e dos inventários, houve uma diminuição no número de objetos pertencentes à coleção de Koch-Grünberg de 1905. As razões para divergência na quantidade nos três catálogos residem na revisão no montante de artefatos da coleção do MPEG por Nimuedanjú, Evalda Falcão e Galvão e os problemas relativos à documentação dos acervos. Os três inventários da coleção, notavelmente, foram idealizados, como enfatizaram Guerra e Benchimol, num período em que “as normas e padrões sobre documentação museológica tanto nacionais como internacionais ainda não tinham sido estabelecidos”413, como são nos dias de hoje. Logo, apresentam diferentes entendimentos do que deve e como deve ser registrado, entre os três há diferentes números de registros, estrutura dos documentos e vocabulário de registros de informações utilizadas na base de dados; o que gera, consequentemente, dentre outras coisas, perdas de informação e dificuldades na identificação rápida e precisa do objeto. Como já dito, os dois primeiros inventários da coleção foram produzidos por Nimuendajú e o terceiro elaborado por Eduardo Galvão. No catálogo de 1921, todos os objetos da coleção da instituição estão listados em ordem crescente do número 1 ao 2.619 e identificados a partir dos seguintes campos, nessa ordem: número de registro, povo indígena, procedência geográfica, coletor ou coleção e nome do objeto. O segundo de 19391940, de modo diferente do antecedente, está dividido por povo indígena e conta com uma nova numeração. Em cada seção, relativa a cada povo, os objetos são listados por nome e enumerados em ordem crescente e constam informações acerca da coleção de origem, do número no catálogo anterior e o lugar de coleta. Dessa forma, é possível observar a trajetória dos objetos na documentação, seu aparecimento ou desaparecimento nas listas – assim como as mudanças nos dados disponíveis acerca do contexto, coletor ou lugar de origem. No entanto, o Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia da década de 1950, produzido por Eduardo Galvão, rompe com as numerações anteriores, apresentando assim novo número de registro – ainda utilizado na coleção. Apesar de também dividido por povo indígena, como o último elaborado por Nimuendajú, não há referência às numerações anteriores e nem todos contam com alguma alusão a coleção a qual pertencem. Essas questões dificultam a identificação, comparação e análise das coleções e dos seus respectivos objetos. 413 GUERRA, Claudia; BENCHIMOL, Alegria. Dois momentos da coleção Aparai no Museu Paraense Emílio Goeldi: Curt Nimuendajú em 1915 e Otto Schulz-Kampfhenkel em 1935-37. Museologia e Patrimônio, Brasília, v. 10, n. 2, 2017, p. 111. Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/ view/600/588. Acesso em: 12 de jul. 2021. 143 No presente trabalho, para investigar o catálogo de 1955, sem poder identificar e acompanhar a trajetória dos objetos a partir das referências às listas anteriores, tivemos de recorrer às denominações das peças e aos povos indígenas produtores. Por conta do grande volume de peças e a diversidade de povos indígenas produtores da coleção Koch-Grünberg, inclusive alguns de procedência duvidosa, não foi possível distinguir a permanência de todos no acervo do Museu Goeldi. A título de exemplo, citamos o caso do artefato da coleção Koch-Grünberg identificado nos respectivos inventários elaborados por Nimuendajú com as numerações 2023 e 732. Denominado primeiramente como “cinturão de embira para homem”, e corrigido na listagem de 1939-1940 como “envira”, ele é descrito como de procedência duvidosa quanto a comunidade produtora e tem como possível origem geográfica o rio Apaporis. No entanto, ao consultar o Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia na seção relativa aos objetos de procedência duvidosa do rio Apaporis da coleção do americanista não encontramos nenhuma peça assinalada com nome análogo. Logo, esse artefato foi computado na presente pesquisa no rol dos não identificados com outros onze. O paradeiro do citado artefato é incerto por falta de informações na própria documentação museológica. Surgem então outras possibilidades além do extravio da peça, ou seja, que não signifiquem apenas que ele se perdeu. É possível que tenha ocorrido uma mudança na denominação da peça, ou reagrupamento com outro conjunto, ou mistura com outras coleções. Nessa perspectiva, o cinturão de embira ou envira para homem, de número 732 na Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi, pode ter experimentado uma transformação no seu nome para “Peça de vestimenta de fibra” (n.º 815 e 816), nome que a peça 731 recebe tanto nos inventários de 1939-1940 quanto no de 1955, ou ter sido agrupado em outra coleção. Contudo, não podemos confirmar essa mudança com apenas com as fontes consultadas por isso optamos por listar como não identificados. Dessa forma, essa descontinuidade na documentação, as mudanças de nome, numeração e estrutura dos catálogos podem ser as causas do suposto desaparecimento e surgimento de novos objetos. Pares de objetos, com registros individuais, podem ter passado por um reagrupamento e passados a ser numerados com um só, ou o contrário. Como aconteceu com a peça denominada “par de Mangas de máscaras” (n.º 493) que no primeiro catálogo de Nimuendajú não estava separada da “Máscara de Dança (n.º419) e apenas ganhou um número de identificação próprio na lista posterior. Além do inventário da coleção, os livros de tombo guardam informações preenchidas de forma manuscrita pelos curadores e técnicos da instituição a respeito do estado de 144 conservação, dos empréstimos para exposições e outros museus, dos desaparecimentos e da recuperação de artefatos. Por conta desses dados, conseguimos identificar que, dos 491 objetos registrados por Galvão, 29 foram extraviados, não foram encontrados em inventários posteriores ou foram reunidos a outros objetos, sob nova numeração. Somando os dados apresentados nos três catálogos mencionados, chegamos ao total de 503 objetos registrados ao longo do tempo na coleção de Theodor Koch-Grünberg preservada no Museu Goeldi. Deste montante, 41 foram extraviados ou reagrupados. Em uma nova contagem, que levou em consideração o cruzamento de dados existentes nos três catálogos, chegamos a um número de 462 artefatos da citada coleção, como detalha a Tabela 3. Tabela 3. A coleção de Theodor Koch-Grünberg (1905) do Museu Paraense Emílio Goeldi. Povo Localização Quantidade indígena de Quantidade de Objetos objetos objetos não encontrados/ registrados entre atualmente não 1921 a 1955?414 identificados 415 Tukano Rio Tiquié 100 91 9 Siusí Rio Aiarí – Aldeia Cururuquara; Rio Aiarí; Porto para o Caiarí; Aldeia Tucumá-rapecuma; Cax. Araripira. 67 62 5 Kubeo Rio Caiarí; Caduiary. Rio 116 110 6 Korokoró Rio Cuduiarí Surubiroca416; Içana. – Rio 10 10 0 Katapolitaní Rio Içana; 417 Tunuhy Rio 19 19 0 414 Os objetos aqui destacados foram registrados nas três documentações museológicas. Os objetos destacados aqui foram artefatos que não foram identificados no inventário de 1955 ou estão assinalados como ausentes nas verificações realizadas entre 1984 e 2011 pelos técnicos e curadores da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi. As peças podem ter sido extraviadas, descartadas, emprestadas e não devolvidas, ou ainda, podem ter sido reagrupadas ou etiquetadas como pertencentes a outras coleções. 416 No catálogo de 1939-40 e No livro de Tombo aparece “Rio Içana”. 417 No catálogo de 1939-40 e No livro de Tombo aparece “Rio Içana”. 415 145 Tariana Rio Caiarí – Castanha Rapecuma 5 4 1 Huhúteni Rio Aiarí 2 2 0 Ipéka Rio Içana; C. Iuruparí. 2 2 0 Desana Rio Tiquié 8 8 0 Uanána Rio Caiarí 20 18 2 Tuyuka Rio Tiquié 6 6 0 Kawá Rio Aiarí 11 9 2 Bará Rio Tiquié 4 4 0 Bahuna Rio Cuduiary 1 1 0 Yahúna Rio Apaporis 17 17 0 Makúna Rio Apaporis 3 3 0 Yabahána Rio Apaporis 1 1 0 Yukúna Rio Apaporis 2 2 0 Kueretú Rio Iapurá 3 3 0 Procedência duvidosa Total Rio Querarí; Rio Caiarí; Rio Caduiary 106 90 16418 503 462 41 Fontes: Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia (1955?). 418 Além dos 10 artefatos extraviados, não conseguimos identificar seis objetos de procedência duvida que aparecem nas listas de 1921 e 1939-1940 no Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia. 146 Para além do deslocamento físico, os objetos, ao serem deslocados do campo para o museu, passam por um processo de ressignificação que lhes atribui novas funções e sentidos – como evocar realidades ausentes, ser repositório de informações e testemunho de um povo ou época419. A partir do deslocamento do contexto primário para o secundário, agências podem ser ocultadas, informações podem ser perdidas ou misturadas – gerando, assim, confusões no inventário e na classificação – e novos valores são atribuídos às peças. A coleção Theodor Koch-Grünberg não foi isenta desse processo: a identificação (etnônimos e procedência geográfica) dos povos criadores dos objetos sofreu transformação na documentação museológica da Reserva Técnica Curt Nimuendajú, que não preservou os dados relacionados à participação das redes colaborativas indígenas e não-indígenas que atuaram na formação da coleção. No tocante ao primeiro ponto, destacamos como exemplo a mudança na identificação da procedência geográfica das máscaras Kubeo e Korokoró-Tapuya, ocorrida nos três mencionados catálogos. No de 1921, o nome “Surubiróca”, no rio Caduiarý, aparece algumas vezes como local de origem de vinte e sete máscaras dos dois referidos povos. Sem explicação ou menção a alguma retificação, o termo desapareceu no documento de 19391940. Em seu lugar, os rios Caiarí e Içana foram registrados como o lugar de origem dos artefatos. O registro de 1955 manteve os dados do documento anterior. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA),420 os Kubeo habitam atualmente o rio Uaupés, o maior tributário do rio Negro e antes chamado de Caiari. Pedroso assinala que o termo “Kubeo” dá conta de uma “vasta nuvem de grupos e comunidades distribuídas pelos rios Uaupés, Querari e Cuduiarí”, sem alusão aos Korokoró-Tapuya ou a migrações de subgrupos Kubeo ao rio Içana. Nos limites da presente pesquisa histórica, apontamos aqui alguns desencontros nas informações acerca da procedência geográfica atribuída aos objetos dos dois povos indígenas na documentação museológica da Reserva Técnica Curt Nimuendajú e nas fontes documentais e bibliográficas citadas anteriormente. Para atestar a origem dos objetos no Caduaiarý, Uaupés ou Içana, se levanta a necessidade de futuras investigações multidisciplinares que envolvam o campo, os arquivos, a coleção e os descendentes das comunidades produtoras. 419 LOUREIRO, Maria Lucia de Niemeyer Matheus; LOUREIRO, José Mauro Matheus. Documento e musealização: entretecendo conceitos. MIDAS – Museus e estudos interdisciplinares, Évora, v. 1, n. 1, p. 111, 2013 e musealização: entretecendo conceitos. MIDAS. Museus e estudos interdisciplinares, n. 1, 2013. 420 PEDROSO, Diego Rosa. O que faz um nome: etnografia dos Kubeo do alto Uaupés (AM). 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-graduação em Antropologia social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. 147 Acerca do segundo ponto, recorremos primeiramente à fala de Kieffer-Døssing a respeito da documentação museológica de uma coleção etnográfica: Nos registros que museus produzem sobre suas coleções, os processos de aquisição – e, deste modo, as agências indígenas envolvidas – são com frequência ocultados. Muitos registros não oferecem impressões das negociações de valores, das seleções deliberadas e das limitações quanto ao tipo de objeto coletado em campo, embora tudo isso também afete a maneira como uma coleção é construída. Ademais, sem este material, resta impossível investigar a transformação dos objetos coletados em coleções museológicas. Quando analisamos os três catálogos históricos da Reserva Técnica Curt Nimuendajú, não encontramos o registro da participação das redes colaborativas, evidentemente porque essa é uma exigência contemporânea. O que encontramos nesses catálogos são inventários das peças do acervo, nos quais estão registrados o nome da coleção, a data de entrada no museu, o povo produtor e a procedência geográfica. É necessário, então, que ao registrar novas coleções, os catálogos dos museus – além de catalogar o número de registro, data e tipo da aquisição, estado de conservação e descrição intrínseca – contemplem também na descrição extrínseca o processo histórico envolto na formação das coleções, isto é, a atuação das comunidades indígenas produtoras nas trocas interculturais, os contextos sociais e políticos que concorreram para a musealização e a participação dos diversos atores que direta ou indiretamente participaram das negociações e aquisição do material. No presente trabalho buscou-se pensar a musealização da coleção Theodor KochGrünberg para além do protagonismo do coletor e do Museu Goeldi, investigando os sujeitos, os contextos e as redes envolvidas nos processos de montagem e salvaguarda da citada coleção. Essas redes incluíam os funcionários dos museus, as autoridades públicas, diplomatas, as lideranças indígenas, os seringalistas e caucheiros, os carregadores, remadores e proprietários de embarcações, todos fundamentais para que os objetos fossem reunidos, embalados e transportados para Belém e Berlim. No próximo capítulo, veremos como se deu a musealização da coleção Frei Gil de Vilanova no contexto missionário do final do século XIX. 148 Capítulo 3 – A Coleção Frei Gil de Vilanova: colecionismo e catequese no início do século XX Neste último capítulo, trataremos da musealização da coleção de Frei Gil de Vilanova, em 1902. Diferentemente dos casos investigados anteriormente, o coletor foi um frade dominicano atuando na catequização das populações indígenas na fronteira entre Goiás e o Pará. Por conta disso, estudaremos nesta seção a interação da esfera religiosa, da política indigenista do século XIX e do colecionismo etnográfico para a produção da coleção. O capítulo será dividido em quatro tópicos. O primeiro, “As missões religiosas no Araguaia do século XIX”, aborda o contexto de instalação de missões religiosas no rio Araguaia, as políticas indigenistas dos presidentes de província e a presença da Ordem dos Pregadores na região durante o século XIX. No segundo, intitulado “Frei Gil de Vilanova e a missão de Conceição do Araguaia”, apresento brevemente a trajetória de Frei Gil de Vilanova e os seus projetos de catequese indígena em Goiás e, depois, no Pará, com a fundação do povoado e missão religiosa de Conceição do Araguaia. O terceiro subitem, “Objetos indígenas para a manutenção da fé”, investiga a formação da coleção de Frei Gil de Vilanova e a interação entre o contexto religioso, político e social, bem como a agência indígena na seleção e rejeição dos objetos que a compõem. Por fim, o quarto e último tópico, “Aquisição da coleção Frei Gil de Vilanova (1902) pelo Museu Goeldi”, trata do processo de aquisição da coleção pelo Museu Goeldi em 1902 e da catalogação no acervo da instituição. 3.1 As missões religiosas no rio Araguaia do século XIX Durante os séculos XVII e XVIII, algumas expedições portuguesas adentraram o rio Araguaia, principalmente nos setecentos, quando foram encontrados depósitos de ouro nas nascentes.421 Nesse período, a capitania de Goiás vivia o auge da mineração. A coroa portuguesa, com o intuito de evitar o contrabando aurífero, desautorizou a circulação pelos rios Araguaia e Tocantins. A navegação só voltaria a ser permitida após o declínio da economia mineradora no final do século XVIII. Nessa ocasião, a capitania de Goiás viveu uma profunda crise econômica e social, que se estenderia até os oitocentos. Logo, o governo local passou a enxergar como soluções para as mazelas enfrentadas o incentivo à navegação, ao comércio e à ocupação dos principais rios. De acordo com Batista, o recomeço da circulação fluvial deu origem a um novo cenário 421 HEMMING, John. Fronteira Amazônica: a derrota dos Índios Brasileiros; tradução de Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 149 econômico, “porém as cicatrizes deixadas por mais de quatro décadas de bloqueio à navegação e o descaso com a ocupação das margens já eram notáveis, evidenciando as dificuldades que viriam ao retomar esse processo”422. No princípio do século XIX, o translado Araguaia-Belém enfrentava dificuldades relativas à falta de apoio para a navegação, em razão da baixa ocupação das margens por nãoindígenas – além dos ataques de indígenas às embarcações. A solução mais viável para o governo central foi a fundação, em 1812, de um presídio militar ao norte da Ilha do Bananal, batizado de Santa Maria. A prática de criação de presídios persistiu por mais algumas décadas, não só no Araguaia, mas também em outros rios de Goiás, como o Tocantins, onde foram criados os presídios de Santo Antônio, Santa Cruz e Santa Bárbara. De acordo com Cunha, esses presídios consistiam em “praças-fortes com destacamentos militares” e pretendiam se converter em futuros núcleos de povoação, meios de combater os indígenas insurgentes e aliciar outros em aldeamentos, tal “como uma reserva de remeiros, de agricultores e, mais tarde, de fornecedores de lenha para os vapores”423. Mesmo após a abertura dos portos às nações amigas, a região ainda era descrita por viajantes e políticos como um “vazio demográfico”, ocupada majoritariamente por povos indígenas e animais silvestres. O político e escritor Couto de Magalhães chegou a lamentar dramaticamente a falta de cidades e a baixa ocupação da civilização branca nas margens dos rios de Goiás: “quando é que se verá o homem arrancar da posse das feras e das tribos selvagens dos índios tanta riqueza que aí jaz sepultada!”424. Ao longo do século XIX, a ocupação das margens e o incentivo à navegação do Araguaia suscitaram muitos debates e propostas nos relatórios dos presidentes de província, sobretudo os de Goiás. Para as autoridades provinciais, os principais entraves ao desenvolvimento da região consistiam na dificuldade de encontrar uma boa área elevada nas margens, que ficasse livre de inundações no tempo das grandes cheias do rio, na falta de água potável e de madeira para construção, e nos ataques de nativos a embarcações e povoamentos425. 422 BATISTA, Alcides. Entre corredeiras, remansos e meandros: os desafios na conquista do Araguaia. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente) – Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2015, p. 38. 423 CUNHA, Manuela Carneiro. Política indigenista no século XIX. In: CUNHA, M. C. (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 138. 424 MAGALHÃES, José Couto de; SOBRINHO, Couto de Magalhães. Viagem ao Araguaya. São Paulo: Espíndola – Siqueira & Companhia, 1902, p.80. 425 SANTOS, Carcius Azevedo dos. Araguaia-natureza, Araguaia-projeto: paisagens socioambientais em Couto de Magalhães, século XIX. 2007. Dissertação (Mestrado em História), Universidade de Brasília, Brasília – DF, 2007. 150 Esse último ponto, a questão indígena, era um dos assuntos mais debatidos pelas instituições imperiais, às quais se demandava a elaboração de instrumentos legais para catequizar, civilizar e inserir os indígenas nas dinâmicas de trabalho da sociedade nacional. O discurso de alguns presidentes de província defendiam a dominação dos povos indígenas insubmissos aos ditames da civilização, seja pela guerra justa ou pela catequese e educação426. Próximo à metade do século XIX, a catequese passou a ser considerada o meio mais eficaz para transformar os indígenas em trabalhadores e desenvolver as províncias – o que não diminuiria os conflitos envolvendo colonos e indígenas. De modo geral, como categorizou Cunha427, no século XIX, os índios eram divididos em “bravos” e “domésticos ou mansos, terminologia que não deixa dúvidas quanto à ideia subjacente de animalidade e de errância”. Os índios pacificados ou domesticados eram sedentarizados em aldeamentos, sob o auspício das leis indigenistas. Quanto ao termo “índios bravos”, foi empregado para designar os grupos que agiam contra as autoridades regionais e o comércio, e que resistiam ao avanço das fronteiras do Império, como os “grupos dos afluentes do rio Amazonas, do Araguaia que se quer agora abrir à navegação, do Madeira, do Purus, do Jauaperi, e de outros tantos rios”428. O governo imperial, já em 1843, iniciaria o processo de retomada da catequese a partir do decreto n.º 285, de 21 de junho, que autorizou a entrada de missionários capuchinhos nas províncias. Em 24 de julho de 1845, uma nova legislação entraria em vigor pelo Decreto Imperial n.º 426, o qual passou a reger o trabalho dos missionários no país, o Regulamento acerca das Missões de catequese e civilização dos Índios429. Esse documento prevaleceu até o advento da República, em 1889, e foi a legislação indigenista central do Império. De acordo com Sampaio: A nova legislação criou uma estrutura de aldeamentos indígenas, distribuídos por todo o território, sob a gestão de um Diretor Geral de Índios, nomeado pelo 426 CHAVES, Carlos Eduardo. Nas trilhas Irã Ãmrãnh: sobre história e cultura material Mebêngôkre. 2012. 176 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal do Pará, Belém. 2012. 427 CUNHA, 1992, p. 136. 428 Ibid. 429 Para alguns autores, como Manuela Carneiro da Cunha, o Regulamento acerca das Missões de catequese e civilização dos Índios colocou fim a um período de “vácuo legal”, iniciado com a extinção do Diretório dos índios, em razão de não ter havido uma legislação geral neste período para regulares ações e políticas indigenistas no Brasil. Todavia, como aponta Sampaio, apesar de não apresentar uma lei geral para todo o Império brasileiro, entre 1798 a 1845 não houve num período de vazio legislativo. Pelo contrário, o citado intervalo consistiu numa fase marcada por uma abundância de normas, leis, decretos e outros documentos normativos de abrangência limitada aos espaços das províncias, mais adequadas às distintas realidades locais. In: SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil Imperial. In: GRINBERG, K. & SALLES, R.(Org.). O Brasil Imperial (1808-1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 151 Imperador para cada província. Cada aldeamento seria dirigido por um Diretor de Aldeia, indicado pelo Diretor Geral, além de um pequeno corpo de funcionários. Cabia aos missionários a tarefa relativa à catequese e à educação dos índios, enquanto que os outros funcionários imperiais se encarregariam da vida cotidiana, incentivando o cultivo de alimentos, monitorando os contratos de trabalho, mantendo a tranquilidade e polícia dos aldeamentos, regulando o acesso de comerciantes, contactando índios ainda não-aldeados e controlando as terras indígenas, dentre muitas outras atividades prevista430. No Regulamento, há uma intricada associação entre civilização e religião. Ele estipulava que o trabalho de atração, catequese e educação dos indígenas era papel dos religiosos, enquanto aos laicos e representantes estatais cabia a responsabilidade da administração – apesar de muitas vezes, na falta de pessoal, o missionário atuar também como diretor do aldeamento431. Como apontou Paraíso432, a mencionada legislação era “uma clara manifestação da retomada do controle da administração indígena pelo Governo central e da implantação de um projeto estatal como forma de solucionar os conflitos entre índios e colonos e entre a Igreja”. Entre 1845 e o início do século XX, o Estado brasileiro compartilhou os deveres da questão indígena com as ordens religiosas. Segundo Amoroso, nesse período, “o indigenismo brasileiro viveu uma fase de total identificação com a missão católica”433. A religião estava associada à civilização e ao trabalho. O missionário deveria não só converter o indígena, mas apresentá-lo aos preceitos da vida social e aos instrumentos da civilização. Por intermédio da educação, o indígena deveria ser convertido não só em fiel católico, mas também em trabalhador. Tanto que no texto da lei havia uma recomendação para que fossem construídas oficinas de arte e para que fossem incentivados o trabalho agrícola e o treinamento militar434. Henrique afirma que a “noção de trabalho”, nos discursos e nas práticas a favor dos aldeamentos e da catequese, “estava associada à ordem social, à manutenção das estruturas de poder”435. O trabalho, nessa perspectiva, submeteria os homens aos ditames das leis e da civilidade, evitando revoltas, formaria um corpo “saudável e disciplinado”, livrando os indígenas da ociosidade infrutífera. Num contexto de pós-cabanagem e ataques indígenas a 430 SAMPAIO, 2009, p.2. CUNHA, 1992. 432 PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Formando trabalhadores: missões e missionamentos capuchinhos na Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo (1845-1890). In: NEGRO, Antônio L.; SOUZA, Evergton S.; BELLINI, Lígia (Ed.). Tecendo histórias; espaço, política e identidade. SciELO-EDUFBA, 2009, p. 25. 433 AMOROSO, Marta. Mudança de hábito: Catequese e educação para índios nos aldeamentos capuchinhos. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.13, n.37, p.101-114, 1998. 434 Ibid. 435 HENRIQUE, Márcio Couto. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia no século XIX. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018, p. 81. 431 152 aldeamentos e fazendas, era fundamental algum mecanismo para doutrinar a população do sertão brasileiro. Em Goiás, quase um ano após a lei entrar em vigor, o governador Joaquim Ignacio Ramalho reclamou acerca das “incursões dos Indigenas, especialmente do Canoeiro contra os pacíficos habitantes dela [a província]”436. Como solução paliativa, ele tentou reunir agrupamentos militares nas regiões onde viviam esses indígenas com o intuito de impedir novas hostilidades e “[...]procurar pelos meios brandos e suasivos convence-los das vantagens da vida social e ensinar-lhes os princípios saudáveis da nossa Santa Religião, para que sejao hum dia uteis a si e á sociedade”. Ainda no relatório, Ramalho atribui menos responsabilidade pelos ataques aos possíveis traços de agressividade indígena, ou outros lugares-comuns, do que “aos methodos improfícuos com os quaes se tem pertendido domestica-los, e longe de se ter conseguido interessantes fins, tem resultado ficarem inimigos irreconciliáveis da classe civilisada”437. A fala era uma crítica evidente às expedições punitivas empregadas pelos colonos nas aldeias indígenas, que geravam grandes massacres e novas vinganças. Nessa perspectiva, a melhor solução residiria no atrelamento das noções de trabalho, religião e civilização, concretizadas no sistema de aldeamento tal como proposto no Decreto n.º 426, mencionado nominalmente pelo governante. Ramalho era favorável a um sistema de aldeamento que fundasse aldeias onde os indígenas residissem, e não em novas localidades – como era executado no passado colonial. O método antigo de “descimento” e aldeamento foi avaliado como ineficaz e o sugerido foi tido como superior para que os indígenas adquirissem novos hábitos e “para que gradual, e insensivelmente [sic] adquirao necessidades sociaes”438. O projeto político do governador goiano sucedeu à fundação de três aldeias no Araguaia, ainda em 1846, contando com o serviço dos capuchinhos italianos recém-chegados ao Brasil. Ao longo das décadas seguintes, alguns missionários capuchinhos atuaram entre os povos da região. Entre eles estavam Frei Segismundo de Taggia, entre os Karajá e Xavante; Frei Rafael de Taggia, entre os Krahô em Pedro Afonso; Frei Antôno de Ganges, entre os Xerente em Piabanha; Frei Savino de Rimini, entre os Karajá-Xambioá; e Frei Francisco do Monte São Vítor, entre os Apinajé, em Boa Vista439. 436 RAMALHO, Joaquim Ignácio. Relatório que à Assembleia Legislativa de Goyaz apresentou na sessão ordinária de 1846 o exm. Presidente da mesma província doutor Joaquim Ignacio Ramalho. Goiás: Tipografia Provincial, 1846, p.7. 437 RAMALHO, 1846, p. 14. 438 Ibid, p.15. 439 GIRALDIN, Odair. Catequese e civilização: os capuchinhos “entre” os “selvagens” do Araguaia e Tocantins. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, v. 18, p. 27-42, 2002. 153 Amoroso assinala as três ideias principais que estavam sempre presentes na atividade de catequese dos Capuchinhos: a) a premissa de que os índios não detinham capacidade intelectual para o aprendizado de valores exteriores a suas culturas originais; (b) a constatação de que os índios eram irredutíveis, não mudariam nunca, mesmo vivendo a situação de aldeamento e; (c) a avaliação de que o estágio de selvageria em que se encontravam não permitia o aprendizado, somente a imitação. A resposta dos frades diante do diagnóstico da "incapacidade mental" dos índios foi a construção de uma "pedagogia da imitação e do exemplo edificante" voltada para as populações indígenas aldeadas. Os índios não raciocinavam, mas conseguiam imitar comportamentos desejáveis440. Ao avaliar os indígenas como portadores de capacidades infantis, os capuchinhos acreditavam que só através da convivência com não-indígenas os nativos assimilariam positivamente os preceitos da religião católica e da civilização; abandonando, dessa forma, “seus maus costumes”. Para tanto, os indígenas conviveriam nos aldeamentos com outros católicos e seriam influenciados a largar seus velhos hábitos e aprender a trabalhar. Todavia, o método da Ordem dos Frades Menores, baseado na presença de “civilizados” e na convivência forçada com outras etnias, não solucionaria os problemas enfrentados, mas sim mostraria novas adversidades: maior vulnerabilidade dos índios ao contágio de epidemias e maior incidência de guerras intertribais. O problema da pequena população não-indígena nas margens do rio Araguaia, causado pelos sucessivos confrontos, era uma questão importante nos planos de governo. Durante as três décadas que se seguiram, as tentativas de catequizar e de civilizar os indígenas prosseguiram no Araguaia e afluentes, assim como prosseguiu a resistência indígena a essa política e também os conflitos com colonos. De acordo com Hemming, gradualmente, o trabalho dos capuchinhos passou a ser questionado pela inadequação ao trato com os povos da fronteira e pela relutância “em viver no mato, mostrando-se o mais das vezes teimosos e arrogantes para com as tribos que tentavam converter”441. Além disso, os próprios missionários desencadearam ou foram alvos de conflitos fundiários e interétnicos442. Conforme assinalou Henrique443, nas vésperas da República, “período de forte influência do Positivismo e do Cientificismo, poucos defendiam a atividade catequética como meio de civilizar os índios”, o que acabaria por desencorajar a criação de novas aldeias. Apenas duas foram criadas no período: São Francisco de Taraquá, dos índios Tariana e Tukano, em 1880; e a missão Tiquié, de 1884, dos índios Tukano. No entanto, a catequese 440 AMOROSO, 1998, p.104. HEMMING, 2009, p. 488. 442 Em 1873, ocorreu um conflito envolvendo o missionário capuchinho Savino de Rimini e índios Xambioá, que resultou num massacre desse povo. Para saber mais, ver: GIRALDIN, 2002; HEMMING, 2009. 443 HENRIQUE, 2018, p. 91. 441 154 como meio de pacificação dos indígenas não havia sido totalmente apagada dos ideários culturais vigentes, como mostra o seguinte apelo do jornal O Publicador Goyano em 1886, ao comentar a respeito da situação do município de Jataí, que sofria com rotineiros ataques de indígenas às fazendas: Convém que o governo mande fundar neste município, nas margens do Araguaya, uma colônia ou aldeamento, dirigido por missionário, e garantido por força militar, a fim de promover à catechese e evitar-se as correrias do indios, que tanto males tem causado em toda esta zona da província. [...] Cada dia se torna mais necessária uma providencia qualquer em referencia aos indios, que constantemente cometem os mais horrorosos assassinatos com o fim de saquear as fazendas444. Os conflitos envolvendo colonos e indígenas perduraram mesmo depois da chegada dos religiosos. Contudo, para as autoridades e para os jornais, a catequese, aliada à força militar, ainda parecia ser a maneira mais razoável de solucionar essa questão. As tensões continuaram em razão das disputas territoriais que os indígenas passaram a sofrer com a inserção da navegação a vapor nos rios amazônicos, do aumento da exploração da borracha e de outros produtos da floresta e da introdução da pecuária nas margens dos rios. No decorrer do século XIX na região, os conflitos entre colonos e índios acirraram-se, sobretudo envolvendo o povo Mebêngokre-Kayapó445, pois, como pontua Hemming, “a fronteira brasileira avançou até chocar-se com os caiapós do norte”446. Como exemplo, em 1886, os habitantes do rio Claro, um dos afluentes do Araguaia, organizaram uma ação armada em grupo para vingar-se dos constantes ataques dos Kayapó, que comumente resultavam em mortes. Os indígenas esvaziaram três de suas aldeias em fuga, deixando para trás apenas crianças, idosos e doentes incapazes de acompanhar a debandada. O resultado da excursão dos colonos foi o morticínio terrível dos abandonados – com exceção de uma moça lactante e de seus dois filhos, que conseguiram fugir e narrar para seu povo “a terrível execução que acabara de testemunhar, exortando os companheiros à vingança”447 – como efetivamente ocorreu nos anos subsequentes. 444 O Publicador Goyano, Goiás, 2 de outubro de 1886, edição 84, p.2. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional –Rio de Janeiro- Brasil. 445 No presente trabalho, escolhemos utilizar Mebêngôkre -Kayapó, iniciando com a autodenominação e o nome atribuído em seguida, seguindo o mesmo nome utilizado por Turner. No entanto, ao longo das diversas fontes históricas e bibliografia encontramos diversas grafias e nomes: Caiapo, Cayapo, Pau D’arco, etc. Quando necessário, empregaremos a autodenominação dos grandes grupos que compõe o citado povo, como os Irã Ãmrãnh, povo autor da coleção estudada no presente capítulo, seguindo a grafia apontada por Chaves (2012). Para a História desse povo e de sua cultura, ver em: TURNER, Terence. Os Mebêngôkre Kayapó: história e mudança social, de comunidades autônomas para a coexistência interétnica. In: História dos Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1992; CHAVES, 2012. 446 HEMMMING, 2009, p. 491. 447 GALLAIS, Estevão. O Apóstolo do Araguaia: Frei Gil missionário dominicano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1942, p. 57. 155 Os conflitos entre colonos e o povo Mebêngokre-Kayapó se estendiam por toda a região do Araguaia e afluentes, o que aumentava as demandas às autoridades provinciais e religiosas por catequização e civilização dos indígenas. Nesse contexto, o bispo de Goiás, em 1888, recorreu ao missionário dominicano Frei Gil de Vilanova, recém-chegado ao país, para aldear e catequizar o aludido povo, o que concretamente executou nas margens do Araguaia na década seguinte. A Ordem dos Frades Pregadores (OP448), mais conhecida pelo nome de ordem dominicana, foi criada pelo clérigo Domingos de Gusmão em 1216, na França. Diferentemente da realidade da América espanhola e de parte do continente africano, a instituição não teve presença tão notável e estruturada em terras brasileiras durante o período colonial. Foi apenas na segunda metade do século XIX, durante o reinado de Dom Pedro II, que ocorreu a chegada de frades dominicanos, com uma ação sistemática e a fundação de casas conventuais e missões religiosas449. A chegada dos dominicanos estava atrelada ao incentivo da Igreja católica para a expansão da fé para além do território europeu, à atração de religiosos para trabalhar no Brasil e à crise interna vivenciada pela ordem, que viu diminuir a quantidade de membros e sua influência na Europa. Basta lembrar que, em 1880, a ordem foi expulsa da França pelo governo e transferida para Salamanca, na Espanha450. A primeira leva de missionários chegou ao país em 1878, após a autorização do governo brasileiro. Segundo Santos, “as leis do Brasil imperial, além de outros obstáculos, vedavam expressamente a entrada de religiosos estrangeiros”451. Conforme o mesmo autor, o motivo dos embargos para a vinda da ordem era a influência do liberalismo na política imperial, tal como na França, que tinha certa ojeriza aos dominicanos por carregarem a fama de inquisidores nos meios liberais. Apesar dos obstáculos, os freis Damião Segnerin e Benedito Sans desembarcaram no Rio de Janeiro no começo de 1878 “em busca”, de acordo com Gallais452, “de um campo de ação apostólica a explorar”. Essa primeira experiência não contemplou os objetivos da ordem, pois os dois frades não conseguiram ultrapassar as negociações com o bispo diocesano e iniciar a atividade missionária. Além disso, os dois freis sofreram com os sintomas da febre 448 Em latim é denominada Ordo Prædicatorum, por conta disso, decidiu-se utilizar da sigla OP. SANTOS, Edivaldo Antonio dos. Os dominicanos em Goiás e Tocantins (1881-1930): fundação e consolidação da missão dominicana no Brasil. Dissertação (Mestrado em História das Sociedades Agrárias), Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1996. 450 Ibid. 451 Ibid., p. 25. 452 GALLAIS, 1942, p. 57. 449 156 amarela, mas apenas Segnerin teve um fim trágico, vindo a falecer em março de 1878 na capital do Império. Sans conseguiu retornar para a França. No entanto, na narrativa desenvolvida por Gallais453, a breve estadia no Rio de Janeiro, em especial a convivência com os padres lazaristas no Seminário do Rio Comprido, na capital imperial, não foi totalmente inútil para os planos da ordem. Entre os professores do referido seminário, encontrava-se o padre Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão, de origem nobre na Bahia e afilhado do Imperador Pedro II, que seria peça fundamental para a chegada e permanência dos dominicanos no país. Alguns anos depois, no dia 7 de janeiro de 1881, Dom Cláudio foi nomeado bispo da diocese de Goiás454. De acordo com Gallais, sob seu domínio estava uma diocese de grandes extensões e parcos recursos, o que o fez buscar “auxiliares com que pudesse contar”455. Logo, convidou os dominicanos, ordem que conheceu por meio dos missionários hospedados anos antes entre os lazaristas do Rio Comprido, para se fixarem na diocese e se incumbirem da evangelização, “sobretudo por meio das missões paroquiais a serem pregadas periodicamente, e, um pouco mais tarde, com a fundação de centros de catequese para os índios”. No mesmo ano, chegam três missionários ao país – os sacerdotes Raimundo Madré e Lázaro Mélizam e o frei Gabriel Mole –, que se instalaram na cidade de Uberaba, Minas Gerais. Na época, a diocese de Goiás ultrapassava os limites territoriais do estado, incluindo em sua jurisdição eclesiástica o chamado Triângulo Mineiro, razão pela qual a cidade mineira foi escolhida como primeira sede dos dominicanos, considerada um ponto estratégico entre o Brasil central e o Rio de Janeiro. A Ordem dos Pregadores durante o final do século XIX montou uma rede de conventos, missões e igrejas no sertão. Em 1883, adentrou a província de Goiás e fundou um convento na capital e sede da diocese. De Goiás, prosseguiu ao centro-norte e fundou, em 1886, um convento em Porto Nacional. Avançando mais algumas dezenas de quilômetros ao norte, em 1896, os dominicanos fundaram o Centro Catequético indígena liderado por Frei Gil de Vilanova, que viria a se transformar na cidade de Conceição do Araguaia. Em 1905, foi fundada a Casa de Formosa, que visava ligar Goiás a Porto Nacional456. A ordem se difundiu pelo centro-oeste brasileiro e sul do Pará, espalhando, assim, missões no sertão do país. 453 Ibid. O Apostolo: periódico religioso, moral e doutrinário, consagrado aos interesses da religião e da sociedade, Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1881, p. 2. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 455 GALLAIS, 1942, p. 59. 456 SANTOS, 1996. 454 157 3.2 – Frei Gil de Vilanova e a missão de Conceição do Araguaia De acordo com Gallais457, Julio Vilanova nasceu em Marselha, na França, em 25 de dezembro de 1851, de mãe francesa e pai catalão. Formou-se bacharel em Direito e serviu ao exército francês como voluntário, atuando no posto de sargento. Em 1875, aos vinte e três anos, candidatou-se ao noviciado de São Maximiliano e, em 13 de maio do mesmo ano, envergou o hábito de São Domingos, adotando o nome de Frei Egídio, que no Brasil transformou-se em Gil de Vilanova (Figura 35). Nos seus anos de formação no convento, destacou-se como aplicado estudante e grande leitor da Suma Teológica de Tomás de Aquino. Ordenou-se sacerdote em 1879, com apenas quatro anos de convento, pois, “em virtude da sua idade, sobretudo das garantias que dava sob o ponto de vista da virtude, resolveram fazê-lo ascender ao sacerdócio tão depressa quanto possível”458. Figura 35 – Frei Gil de Vilanova. Fonte: Gallais,1942. Apesar do desejo incessante de viver a vocação missionária em outros continentes, o religioso foi escolhido em 1882 para ser professor de Dogmática do curso de São Tomás de Aquino no Convento de Salamanca. A atividade docente do frei seguiu até o ano de 1887; contudo, conforme Gallais, que também era dominicano, Gil de Vilanova estava tocado pelo 457 GALLAIS, 1942. GALLAIS, 1942, p.33. 458 158 desejo de exercer o “apostolado conquistador”, tradição da Ordem dos Frades Pregadores, “que consiste em ir para longe estender as fronteiras do reino de Deus, anexar-lhe novas províncias”, e submeteu novamente aos seus superiores sua vontade de partir para as missões. A demanda foi consentida pelos superiores, que o consideram para ir à diocese de Goiás, no Brasil, para “consolidar as obras começadas e que estavam dando resultados animadores”. Ainda em 1887, Frei Gil de Vilanova partiu de Bordeaux junto com outros religiosos459. Após dezoito dias de viagem, a embarcação aportou na capital do império, onde os missionários permaneceram algum tempo hospedados com os Lazaristas. A chegada em Goiás aconteceu no final do mesmo ano, como registrou o periódico Correio Official de Goyas de 17 de dezembro: “em dias da presente semana, chegarão a esta capital os ilustres Dominicanos Frei Estevão, Rosario, Villa Nova e Gil, e tres estudantes para o seminario”460. Para a Ordem dos Pregadores, os missionários não eram enviados apenas para evangelizar as populações cristãs das cidades e dos povoados da diocese de Goiás, mas também para fundar missões indígenas. Entre o final de 1887 e o início de 1888, Frei Gil e outro companheiro foram os escolhidos para “explorar o terreno, escolher logar para fundação e estudar as condições em que deveria ela [a obra] ser feita”461. Em princípios de janeiro, os dois exploradores partiram com a intenção de buscar indígenas Mebêngokrê-Kayapó para o empreendimento. Conforme relata Gallais, no período dessa primeira excursão, os Mebêngokrê-Kayapó estavam fazendo ataques nas povoações do alto Araguaia e em outras regiões circunvizinhas, o que pressionava as autoridades por providências, de modo a “acalmar a turbulência destes perigosos selvagens”. Em negociação com o bispo e os missionários dominicanos, decidiu-se pela urgência da expedição, que sairia de Rio Bonito e que dali seguiria para a margem goiana do alto Araguaia, sem sair dos limites da diocese de Goiás462. No relatório de 1889, reportando os acontecimentos ocorridos no ano anterior, o vicepresidente da província de Goiás, Felicissimo do Espirito Santo, confirmou a versão dada por Gallais, pois afirma que o Alferes Comandante da Colônia Macedina havia informado, por ofícios dos dias 3 e 17 de janeiro, que os indígenas que viviam nas imediações de Rio Bonito prosseguiam fazendo suas “correrias”, causando prejuízos aos colonos e às fazendas 459 GALLAIS, 1942. Correio Official de Goyas,17 de dezembro de 1887, p. 4 – Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional 461 GALLAIS, 1942, p.72. 462 Ibid., p. 77 460 159 circunvizinhas463. A autoridade enviou, então, cópia da documentação ao bispo da Diocese, como narrou abaixo: [...] Enviando copia desses officios ao Exm.º Bispo Diocesano, e conferenciado particulamento com o mesmo Exmo Sr. pedi-lhe que se dignasse mandar a aquellas paragens alguns dos Frades Dominicanos existentes nesta Capital. S. Ex.ª Revem.º repondeo-me por officio de 22 de Fevereiro ultimo que passava a dar providencias, enviando para li dous Reverendos Padres Missionários, os quaes effectivamente partirão no dia 3 do corrente mez. Para seguir também para a referida Colonia afim de servir de interpetre àquelles selvícolas que são da tribu Caiapó, mandei contractar o índio de nome Joaquim da mesma tribu, percebendo a gratificação de 8$000rs. Mensais, e mais o abono por uma só vez, de dous parelhos de roupa e uma jampona que mandei fornecer pelo Thesouro Provincial e bem assim adiantar-lhe a gratificação correspondente a dous meses, entregando-se a importância ao Reverendo Frei Gil da Villa Nova, um dos Missionarios que seguirão464. No trecho acima, observa-se a associação feita pelas autoridades estatais entre a evangelização e a pacificação indígena. Os missionários deveriam ser os arautos da civilização. Apesar da coincidência dos fatos que apressaram a excursão dos missionários, há divergências na data de partida e no nome, origem e função do ajudante: no relatório, a partida se deu em 3 de fevereiro de 1888 e os missionários foram acompanhados por um indígena Kayapó de nome Joaquim, que serviria de intérprete; enquanto na biografia, a viagem começou em janeiro do mesmo ano e eles foram acompanhados por um caboclo de nome José, que deveria tratar das montarias e dos animais que levariam as bagagens, descrito como “meio negro meio índio [...] era melhor que um selvagem civilizado e melhor tambem que um negro de sangue puro” – sem referência a uma possível descendência ou familiaridade com a língua dos Kayapó. É possível que tenha ocorrido uma desistência ou a troca de ajudantes, sem que o presidente da província tenha tido conhecimento, ou que ambos, Joaquim e José, tenham viajado juntos. Contudo, as diferenças nos relatos são significativas para o desfecho malsucedido da excursão. A missão não conseguiu atender ao objetivo de estabelecer contato com os Kayapó, pois não contava com um elo para se aproximar do povo. Pode-se dizer que, provavelmente, se os missionários contassem com um intermediário do referido povo, as chances de serem exitosos teriam aumentado consideravelmente. De qualquer forma, não encontramos outras fontes históricas que revelem a real identidade desse auxiliar, do qual sabemos apenas sobre seu triste final, uma morte súbita depois de um tombo, no meio da floresta. 463 ESPIRITO SANTO, Felicissimo do. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de Goyaz pelo exm. sr. vice-prezidente, brigadeiro Felicissimo do Espirito Santo, no acto de sua installação em 6 de março de 1889. Goiás: Tipografia provincial, s/d. 464 ESPÍRITO SANTO, s/d, p. 20-21. 160 Em Rio Bonito, os moradores partilharam suas experiências sobre os indígenas que os expedicionários buscavam. Deram-se conta, então, das dificuldades do trabalho que haviam sido encarregados, pois “a maior parte dos que foram vítimas das depredações a que eles se entregavam jamais tinham visto um só selvagem”465. Os ataques – ou contra-ataques, haja vista que os territórios dos povoados goianos eram tradicionalmente de ocupação Mebêngokrê-Kayapó – eram furtivos. Os colonos tomavam conhecimento da passagem dos indígenas por meio de vestígios, rastos e depredações que deixavam para trás. Essas ações dos Kayapó em defesa de seus territórios geravam revolta entre os colonos, o que parece ter justificado muitas das excursões punitivas e arbitrariedades dos chamados “civilizados”. Segundo Gallais, durante os sermões proferidos pelos missionários, era difícil fazer o povo aceitar que “o quinto mandamento da lei de Deus, que proíbe matar o próximo, tanto se aplica aos Caiapós como aos outros membros da humanidade”. A resposta dos colonos parecia ser sempre a mesma: “o Índio é um bicho mau”466. Esse sentimento hostil foi observado em outros tantos povoados por onde passaram os missionários. Como antecipado, os missionários, apesar de longas andanças pelo sertão de Goiás, não instituíram contato com os índios. Voltaram da excursão “sem sequer se haverem aproximado de um só”. No entanto, segundo Gallais, a demorada busca pelos índios – a primeira de um total de quatro excursões que ocorreram em 1890, 1896 e 1897 – resultou na reflexão de que era impossível realizar uma obra evangélica nas regiões percorridas, onde indígenas e colonos estavam em conflito constante. O biógrafo assim relatou o pensamento dos dominicanos: Fundar um centro de catequese numa região onde só se apresentam como invisíveis salteadores, onde suas preocupações estão voltadas unicamente para a guerra, onde tudo os leva à desconfiança e ao ódio para com os cristãos, cuja fé querem que eles abracem é perder tempo e trabalho. Os Caiapós do Alto Araguaia não podem ser utilmente catequizados senão no território de Mato Grosso, numa região onde ainda são os únicos ocupantes e onde vivem em paz. Só ali é que o missionário poderá apanhá-los, amansá-los, como se diz no Brasil, isto é, civilizá-los cristianizando-os 467 . Além de pontuar a necessidade de ultrapassar as fronteiras de Goiás para fugir dos conflitos ali existentes, buscando territórios onde os indígenas ainda viviam em paz, como o alto rio Araguaia, no Mato-Grosso, o autor apresenta um entendimento persistente, que ultrapassou o século XIX com novas roupagens, acerca da relação intrínseca entre evangelizar 465 GALLAIS, 1942, p. 84. GALLAIS, 1942, p. 85. 467 Ibid., p. 104-105. 466 161 e civilizar. Por meio da cristianização, os índios seriam “amansados”, isto é, poderiam largar seus hábitos “selvagens” e aderir ao trabalho e às práticas da “civilização”. Em 1890, Frei Gil e Frei Miguel Berthe organizaram nova expedição, segundo Gallais, “para os lados de Piabanhas e do rio do Sono, com o fim de avistar com os Cherentes e os Carahós”, dessa vez não para estabelecer um aldeamento, mas com o plano de conviver algum tempo com eles e tentar convencê-los a entregar crianças para serem educadas em Porto Nacional468. É válido mencionar que há novamente um desencontro entre as informações publicadas pelo biógrafo e por outras fontes históricas: no ano da expedição, o jornal católico A Cruz reportou a notícia da viagem dos dois padres missionários, Vilanova e Berthe, do convento dominicano de Porto Nacional, com o objetivo de “reconhecer as povoações ou aldeamentos dos Indios situados nas margens do Rio Xingú”469. No entanto, de acordo com dados do Instituto Socioambiental, os Xerente habitaram, de fato, nas proximidades do rio do Sono, como afirmou Gallais, um local bem distante do rio Xingu.470. Na segunda excursão, os dominicanos contaram com o auxílio do chefe de uma aldeia indígena, chamado de Coronel Raimundo, que cumpriu o papel de intermediário entre os religiosos e os índios. O primeiro contato com o intermediário seguiu o costume das ordens religiosas no século XIX: os missionários ofereceram brindes – pólvora, tabaco e continhas de vidro – para manifestar “o desejo de uma aproximação amistosa”471. Então, conforme escreveu Gallais, os religiosos e o chefe estabeleceram um diálogo acerca da mercadoria e dos interesses envolvidos, mas a quantidade de brindes parece não ter agradado o recebedor, que se queixou: “é tudo o que o senhor me oferece? Não chega a haver uma colher de pólvora para cada um dos homens! Teria feito melhor se me trouxesse alguns sacos de sal. Há aqui perto um homem que o vende. Dê-me o dinheiro, e eu mandarei buscá-lo”472. Com o intuito de agradar ao chefe, Frei Gil decidiu por comprar dois bois da posse da aldeia, que seriam mortos e divididos em quatro partes, sendo que uma porção ficaria com o frade e seus auxiliares e o restante deveria ser distribuído para os habitantes. O fragmento da fala do Coronel Raimundo demonstra que não bastava oferecer produtos usuais, era essencial conhecer as demandas e os gostos das comunidades indígenas para poder ter êxito nos objetivos. O chefe indígena não se conformou com os tipos nem a 468 Ibid., 1942, p.128. A Cruz: Revista Catholica, 31 de Dezembro de 1890, p. 264. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 470 PAULA, Luís Roberto de. Xerente. Povos indígenas no Brasil – https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xerente#Hist.C3.B3rico_do_contato. Acessado em: 19 de maio de 2021. 471 HENRIQUE, 2018, 78. 472 GALLAIS, 1942, p.133. 469 162 quantidade de mercadorias disponibilizadas pelos missionários, fazendo com que Frei Gil rapidamente tivesse que se articular para atender a solicitação e disponibilizar carne vermelha para todos. Desde os tempos coloniais, os presentes ou brindes eram uma das principais maneiras de estabelecer contato e angariar a confiança dos índios no processo de catequese e civilização. Contudo, como destacam diversos autores473, esse recurso não deve ser pensado nos termos da aculturação, longe de analisar os indígenas como recebedores ingênuos e fáceis vítimas da sedução por objetos fúteis. Em geral, os índios eram conscientes das intenções dos missionários, comerciantes e viajantes, e se aproveitavam da situação para se apropriar de mercadorias, armas e utensílios que ansiavam. Ademais, os sujeitos nativos conferiam sentidos singulares aos bens que eram negociados, realizando-se tanto uma apropriação comercial ou prática – que garante a satisfação do desejo por produtos –, como simbólica; os objetos conquistados por eles passavam por transformações nos significados e valores. Retomando a narrativa do contato com os Carahós, percebe-se que a agência indígena não apenas se manifestou na reclamação do Coronel sobre as mercadorias, mas nas exigências para que os indígenas cedessem crianças a ser catequizadas e cuidadas pelos missionários. As reservas consistiram na proibição de castigos violentos para corrigir os meninos e o compromisso de alimentá-los muito bem – o que foi aceito por Frei Gil de Vilanova. Apesar da relativa confiança que o dominicano angariou entre os índios, ninguém da aldeia quis ceder seus filhos para a obra evangélica, mas se comprometeram de levá-lo a outra localidade onde haveria muitas crianças474. Dessa outra aldeia, da qual não conhecemos os residentes, Vilanova regressou para Porto Nacional na companhia de três pupilos, Marco, Abocsú e Aquedi – o primeiro de quinze anos e os outros dois de oito e dez anos. Na cidade, ele ensinou às crianças os valores católicos, os dogmas e as rezas, a educação formal, o trabalho manual e as regras de etiqueta. Porém, os conflitos políticos de 1892, que ameaçaram a vida de Frei Gil, impeliram os pais a retomarem a guarda dos garotos e levá-los de volta para a floresta, sem possibilidade de retorno. No referido ano, Frei Gil, em conjunto com Frei Domingos Carrerot, foi pregar em Boa Vista do Tocantins, que vivia uma agitação em razão de um conflito violento entre dois 473 HENRIQUE, Op. Cit., 2018; ALBERT, Bruce. Introdução: cosmologias do contato no Norte-Amazônico. In: ALBERT, Bruce e RAMOS, Alcida Rita. Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa oficial do Estado, 2002; HOWARD, Catherine. A domesticação das mercadorias: estratégias Waiwai. In: ALBERT; RAMOS, Op. Cit., 2002. 474 GALLAIS, 1942. 163 coronéis, um chamado Perna, chefe do partido conservador, e o coronel Carlos Gomes Leitão, chefe do partido liberal. O propósito dos missionários era reconciliar os adversários e pacificar o povoado. Atuaram, então, como mediadores, decidindo por ter uma palestra com as duas facções, levando o Cel. Leitão para a morada de Perna. No entanto, as circunstâncias eram mais dramáticas e adversas do que podiam avaliar os dominicanos: em pouco tempo de diálogo, o irmão de Leitão foi atingido por uma bala, morrendo de imediato, o que precipitou mais agressões e tumulto. Tiroteio, urros, ameaças de morte eram lançados pelos dois lados antagônicos; logo, os parentes e amigos da vítima canalizaram seu ódio para a figura dos missionários, acusando-os de planejar a conversa para assassinar um dos coronéis. Por fim, a cidade foi esvaziada e os frades conseguiram fugir, mas não sem receberem ameaças de emboscadas no percurso475. Com o advento da República, a relação entre Estado e Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) no Brasil passou por mudanças em sua sustentação. O novo regime, a partir do Decreto 199-A e da Constituição de 1891, colocou fim ao sistema de padroado, instaurou um Estado laico e a liberdade de culto no país. No entanto, o Estado tomou ações de transição nessa mudança de regime, visto que foram mantidas as propriedades da ICAR e assumidas pelo poder público, por mais um ano, as despesas e os pagamentos eclesiásticos. O Estado republicano brasileiro expressou-se laico na Constituição de 1891, mas não instituiu um caráter antirreligioso ou anticonfessional na sua política. De acordo com Aquino, o governo assumiu uma “laicidade pragmática”, onde, ao garantir a separação do civil e do eclesiástico, reconheceu social e juridicamente diversas confissões religiosas no território nacional, o que possibilitou “alianças, omissões, negociações e perseguições segundo os interesses próprios do Estado, ou melhor, daqueles que o controlavam”476. Exemplificou então o historiador: 475 GALLAIS, 1942. AQUINO, Maurício de. Modernidade republicana e diocesanização do catolicismo no Brasil: as relações entre Estado e Igreja na Primeira República (1889-1930). Revista Brasileira de História, v. 32, n. 63, 2012, p. 152. 476 164 Foi que aconteceu, por exemplo, no tocante às missões religiosas no norte do país, região que demandou enorme atenção administrativa e revelou os desafios e os limites do novo regime político. O governo provisório já havia considerado indispensáveis os trabalhos de missionários naquelas plagas distantes da Capital Federal. Em 1891, o primeiro governo republicano constitucional, seguindo políticas postas em ação durante o Império, contatou monsenhor Spolverini para solicitar oficialmente o auxílio dos capuchinhos no norte de Amazonas assegurando pleno apoio e todos os meios necessários para a realização do projeto. Em 1895, o mesmo aconteceria quanto ao Mato Grosso envolvendo os padres salesianos que fizeram desse Estado o seu centro missionário477. A catequese, contudo, antes tão valorizada pelas autoridades provinciais e pela imprensa, já não usufruía dos mesmos privilégios. Na mensagem dirigida ao Congresso de Goiás em 1891, o governador major Rodolpho Gustavo Paixão afirmou estar “convencido da improficuidade da catechese”478, que absorvia, desde 1845, grande montante de dinheiro do tesouro publico. Em outra passagem do mesmo relatório, Paixão demonstrou estar esperançoso com a chegada das locomotivas no estado, símbolo da modernidade, para pacificar e civilizar os povos indígenas: “o índio cruel e indolente, considerado fera pelos sertanejos, graças à improficuidade da catechese em tão remotas paragens, há de ser chamado ao convívio social, tornando-se elemento apreciável á lavoura”479. Quando lhe convinha, o governo acionava as instituições eclesiásticas para ajudarem na solução de problemas localizados, como aconteceu com o aldeamento instituído por Frei Gil de Vilanova no Araguaia. Depois de algumas críticas feitas nos relatórios governamentais e nos periódicos locais à educação religiosa entre os índios, considerada ineficaz ou dispendiosa, o próprio Estado republicano apoiou e custeou novos aldeamentos e o trabalho dos missionários nos rios da Amazônia, como discutiremos mais a frente. A despeito do insucesso das expedições anteriores, dois meses após as primeiras expedições, já em 1891, Frei Gil empreendeu novamente excursão à procura dos índios, dessa vez, em direção ao Araguaia, pelo oeste. A parte final do roteiro da viagem consistia em subir o Araguaia até a Ilha do Bananal para chegar na desembocadura do rio das Mortes, onde tentariam contato com os Xavante. No entanto, os planos de Vilanova foram frustrados pela recusa dos colaboradores de subir o rio, motivados pelo medo que o citado povo despertava na gente da região. Os acontecimentos em Boa Vista repercutiram negativamente na cidade de Porto Nacional, onde frei Gil de Vilanova exercia a função de vigário da Paróquia. Em razão disso, 477 Ibid., p.153. PAIXÃO, Rodolpho Gustavo. Mensagem dirigida à Camara Legislativa de Goyaz pelo governador do estado major Dr. Rodolpho Gustavo da Paixão no dia 5 de Dezembro de 1891. Typographia Perseverança de Tocantins & Aranha: Goyas, 1891, p.8. 479 PAIXÃO, 1891, p.34 478 165 após o fim do mandato na freguesia em 1893, o religioso retornou para o lar da Ordem de São Domingos em Uberaba. Ele retomaria o projeto de catequese dos índios do Araguaia apenas em 1896480. Nesse ano, ocorreu em Bordeaux um capítulo intermediário, uma assembleia geral dos superiores para tratar de assuntos de interesse da Ordem dos Pregadores. O padre Vilanova enviou aos membros da reunião um pedido para a criação de uma catequese para evangelizar os índios ainda não cristianizados. As autoridades consentiram com o pedido e o encarregaram de organizar essa fundação. Entretanto, determinaram, “como se receassem que o seu gênio aventuroso e o seu ousado zelo o arrebatassem para muito longe”481, que não deveria ultrapassar os limites da diocese de Goiás e ofereceram-lhe como companheiro o Padre Ângelo Dargaignaratz. Em outubro do mesmo ano, Frei Gil e seu companheiro partiram em uma quarta expedição. Passaram por Leopoldina, desceram o rio Araguaia e encontraram o arraial de Sant’Ana da Barreira482 (Figura 36), ou simplesmente Barreira, cuja população era constituída, em sua maioria, de migrantes fugidos dos conflitos em Boa Vista. O pequeno povoado mantinha boa relação com as aldeias indígenas das proximidades, fato que despertaria o interesse de Vilanova e o desejo de se aproximar dos nativos. Figura 36 – Casas em Sant’Anna da Barreira. Fonte: COUDREAU, 1897. 480 GALLAIS, 1942. Ibid., p. 143. 482 Atual Santa Maria da Barreira, pertencente ao estado do Pará. 481 166 Figura 37 – Índios Kayapó fotografados por Coudreau, incluindo o chefe Pacarantí. Fonte: COUDREAU, 1897 Entre o final de novembro e o final de dezembro, ocorreram as aproximações entre os missionários e os nativos por meio da tradicional oferta de banquetes e brindes para seduzir e conquistar confiança. Gallais descreveu o encontro com as lideranças indígenas Paracantí (Figura 37), Beca e Fontoura: Padre Vilanova mandou matar um boi, presenteou generosamente seus novos amigos e expôs-lhes os motivos da missão que ali o levava. Deu a conhecer o projeto de construção de uma grande casa, uma “quicré” [sic] como jamais tinham visto, dentro da qual reuniria todas as crianças da tribu, para ensinar a bem viverem. Paracantí e Beca, chefe de uma aldeia vizinha, aceitaram sem dificuldade os propósitos do Padre e mostraram-se dispostos a contar-lhe no mesmo instante todas as crianças de suas tribos. Foi preciso que o Padre, que em geral tão dificilmente admitia delongas na execução de seus planos acalmasse o açodamento dos Índios, e fez-lhes ver que a construção da grande casa pediria mais tempo que a de suas modestas cabanas. Para o momento, já se contentava em ter a palavra deles [...]. Logo que voltou a Barreira, o Padre Vilanova vê chegar um terceiro chefe, Fontoura, que lhe leva cincoenta crianças. [...] Foi necessário mostrar a Fontoura que ele devia levar de volta esse mundo de crianças483. Os índios contactados por Frei Gil eram chamados à época de “Cayapó do Norte” ou “Caiapó do Pau d’Arco”. Atualmente utiliza-se o etnônimo Irã Ãmrãnh para se referir a esse grupo, um dos três que formavam o povo Kayapó no século XIX, juntamente com os Goroti Kumrenhtx e os Porekry. Os dois primeiros possuíam uma população estimada em três mil pessoas cada e o último, em torno de mil, totalizando cerca de sete mil indivíduos. Eles habitavam originalmente a região do curso inferior do rio Tocantins. Contudo, com o avanço 483 GALLAIS, 1942, p. 183. 167 da fronteira colonial e os massacres perpetrados pelos “brancos” no começo do século XIX, abandonaram o seu território tradicional em direção ao oeste, passando a viver nas margens do rio Araguaia e afluentes484. Figura 38 – A missa em Barreira. Fonte: COUDREAU, 1897. O êxito no contato com os índios e a acolhida de Barreira, que seria preliminarmente o local ideal para estabelecer a obra de catequese, certamente, contentaram Vilanova e Dargaignaratz. Parecia não ser fácil encontrar um local que atendesse a todas as demandas dos frades. Gallais, no livro Uma catechese entre os Indios do Araguaya, menciona as exigências dos missionários franceses: “era preciso encontrar um logar salubre, um espaço bastante vasto, não só para n’elle se formar uma povoação, mas ainda para fazer plantações, crear pastagens, em uma palavra para iniciar os indios nos trabalhos da agricultura”485. A partir desse excerto, fica evidente que o trabalho indígena ocupava também um importante lugar no programa de evangelização dos dominicanos. Apesar das pretensões iniciais dos missionários, Sant’ana da Barreira demonstrou ser um lugar inapropriado para o projeto em razão das cheias do rio Araguaia. Em dia que estavam ausentes do povoado, o rio encheu de maneira surpreendente e invadiu a habitação dos dominicanos, estragando vestuários, ornamentos e acessórios do altar (Figura 38). Tornou-se urgente abandonar Barreira e procurar um novo local para os habitantes. 484 VERSWIJVER, Gustaaf; GORDON, CESAR. Mebêngôkre (Kayapó). Povos Índigenas do Brasil – https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Meb%C3%AAng%C3%B4kre_(Kayap%C3%B3). Acesso em 24 de maio de 2021. 485 GALLAIS, Estevão Maria. Entre os índios do Araguaia. Tradução de Otaviano Esselin. São Paulo: Escola Typographica Salesiana, 1903, p.10. 168 Durante esse período, Henri Coudreau explorava a região do Araguaia a serviço do governo do Pará. Logo, Coudreau estabeleceria um relacionamento com os missionários, em especial com Vilanova, a quem descreveu como o homem que mais conhecia a região de Goiás do Norte e os territórios vizinhos a leste do Tocantins e oeste do Araguaia486. Os dois compatriotas cumpririam importantes papeis nos objetivos de cada um: o frade foi fonte de informações e conhecimentos acerca da região e do povo Kayapó para Coudreau; por outro lado, o explorador resolveria o problema da localização do novo aldeamento. Segundo Coudreau, o encontro com o frade beneficiou a ciência, pois ambos formariam importante compêndio de conhecimentos nas páginas do livro Voyage au Tocantins-Araguaya. Ele comentou sobre a fecundidade do encontro e da troca de saberes da seguinte forma: “Gil e eu pudemos lançar alguma luz sobre esta grande província, sobre a qual o Pará tinha até agora apenas noções incertas, comparando as nossas informações sobre a região entre Araguaya e Xingú”487. O viajante e sua comitiva chegaram a Sant’Anna da Barreira em abril de 1897 e permaneceram algum tempo por lá. De acordo com ele, o lugar era o último aglomerado paraense do alto Araguaia – o que denota certa insubordinação de Frei com as ordens de seus superiores a respeito de não ultrapassar os limites da diocese de Goiás. O povoado abrigava 499 pessoas, divididas em 111 famílias488, de maior parte “pertencente à raça branca pura”. Os moradores, na avaliação de Coudreau, eram trabalhadores, honestos e pacíficos, e pareciam “viver em profunda paz”489. 486 COUDREAU, Henri. Voyage au Tocantins-Araguaya: 31 decembre 1896 - 23 mai 1897b. Paris:A. Lahure, 1897b. 487 Ibid., p. 1, tradução nossa. No original: “En comparant ensemble ce que nous avions de renseignements sur la région située entre Araguaya et Xingú, nous sommes arrivés, le P. Gil et moi, à Faire quelque lumière à l’endroit de cette grande province au sujet de laquelle Pará ne possédait jusqu’à ce jour que des notions bien incertaines”. 488 Na citada obra, Coudreau publicou algumas tabelas tratando da quantidade de habitantes e famílias de Barreira, inclusive nomeando os chefes, apenas homens, das casas. O que aponta relativo interesse do governo do Pará pelo povoado e pelos moradores. 489 COUDREAU, 1897b, p. 144, tradução nossa. No original: “La très grande majorité de ces familles appartient à lar ace blanche purê. Cette population laborieuse, honnête, pacifique, paraît vivre em paix profonde”. 169 Figura 39 – Indígenas Kayapó visitados por Coudreau e Vilanova em 1897. Fonte: COUDREAU, 1897. Frei Gil de Vilanova, Coudreau e alguns colonos conversaram com lideranças indígenas, quando então foram feitas diversas fotografias, publicadas no livro de Coudreau e aqui reproduzidas (Figura 39). Também foram coletados materiais etnográficos e linguísticos. O explorador garantiu um capítulo inteiro para tratar da cultura, dos costumes, das armas, da história, das festas e da religião do referido povo indígena e do seu contato com os nãoindígenas. O número de páginas e o detalhamento da descrição exprimem o interesse de Coudreau e do patrocinador, o governo do Pará, pela região e os seus habitantes. Em relação aos nativos, ele escreveu: Os Cayapós não são verdadeiramente índios inoportunos. Os três chefes são perfeitamente discretos e seus homens são silenciosos e bem elegantes. Não há uma mulher jovem que não esteja perfeitamente vestida, isto é, sem referência ao seu traje...490 Coudreau desfrutou de uma boa experiência com os indígenas e o missionário dominicano. Ele, a partir dos ideais apropriados de Rousseau e das suas leituras libertárias, era um entusiasta do “bom selvagem” e da relação entre os índios e a natureza. Foi a partir dessa lente cultural que representou os Kayapó nas páginas de Voyage au Tocantins-Araguaya. 490 COUDREAU, 1897b, p. 221, tradução nossa. No original “Les Cayapós ne sont véritablement pas Indiens importuns, Les trois chefs sont d’une discrétion parfaite et leurs hommes sont silencieux et bien stylés.Il n'est pas jusqu'à la jeune femme qui ne soit d'une parfaite tenue, ceci soit dit sans allussion à son costume”. 170 Coudreau permaneceu com o missionário até 9 de maio de 1897, trocando informações de natureza geográfica, hidrográfica e etnográfica. Apesar das transformações na região, do aumento de propriedades agrárias e do maior trânsito de embarcações a vapor, as cheias do rio Araguaia, que inundavam as margens onde Barreira havia se estabelecido, eram uma das principais dificuldades para a prosperidade e estabilidade de vilas e empreendimentos. Na sua passagem, Coudreau não conviveu com as enchentes, apenas enfrentou os famosos e perigosos travessões e quedas d’água, mas seus conhecimentos geográficos e sua experiência de campo na Amazônia o fizeram orientar a mudança do povoado para um lugar seguro, fora do alcance das águas, vinte léguas rio abaixo491. O local indicado era um pequeno planalto de fácil acesso, abrigado das inundações e com uma grande área de planície, entre uma cadeia de serras, onde seria fácil colocar em prática a agricultura nos campos. Após conhecer e analisar o local, os dois freis dominicanos decidiram que estabeleceriam ali a sua catequese e deixaram Barreira. Alguns colonos decidiram acompanhar os missionários e formar o embrião do novo povoado, mais tarde chamado de Conceição do Araguaia492. Além disso, utilizando-se da sua relação já estabelecida com os Irã Ãmrãnh, e, claro, associando-se com os interesses da comunidade, Frei Gil convenceu os chefes Fontoura, Pacarantí e Gongrí de que os três grupos, que somavam cerca de 500 pessoas, deveriam reunir-se e estabelecer-se juntos numa nova e única aldeia, a cerca de um ou dois quilômetros de Conceição do Araguaia. Desde o início, Frei Gil tinha planos de construir a missão de Conceição de forma mista, isto é, habitada por índios e não-índios – como tenta retratar a Figura 40. Conforme Chaves, com esse convívio forçado “seria mais fácil mesclar a população através de inúmeros casamentos, ocasionando a entrada da população Irã Ãmrãnh à sociedade brasileira e sua integração à ‘civilização’”. O programa do missionário estava inserido em uma lógica assimilacionista, característica dos oitocentos, que visava incorporar os indígenas na sociedade nacional através do processo de civilização e mestiçagem493. 491 GALLAIS, Op. Cit., 1942. GALLAIS, Op. Cit., 1903. 493 ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na História do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo. Revista História Hoje, v. 1, n. 2, p. 21-39, 2012; CUNHA, Op. Cit., 1992. 492 171 Figura 40 – Missão de Conceição do Araguaia. Fonte: PARÁ, 1908. A nova povoação, situada na margem esquerda do rio Araguaia, encontrava-se no território paraense, fora, portanto, dos limites da diocese de Goiás. Sair das fronteiras do território goiano ia contra as diretrizes dos superiores dos missionários; mas, em contrapartida, isso era vantajoso na obtenção de recursos para a obra evangélica. Gallais narra que a ideia de se aproximar do governo do Pará foi motivada por um homem chamado Inocêncio, que partiu em 1897 para a capital paraense em razão da precária situação econômica da missão. Ele teria convencido o Padre Vilanova de que a salvação para a missão estava em Belém, não em Goiás; e fez o convite ao frade com o seguinte argumento: “Dou-lhe lugar na minha canoa. No Pará encontrará Coudreau. Ele falará a seu respeito com o Presidente, dar-lhe-á a conhecer sua obra. É impossível que não venham em seu socorro”494. Em Belém, Frei Gil se reuniu com o bispo, apresentando-se e narrando a situação precária de sua obra de catequese no Araguaia. O prelado então se dispôs a pedir pessoalmente o auxílio do governador do Pará, José Paes de Carvalho. A audiência entre as partes aconteceu no palácio episcopal, sem informações sobre a presença de Henri Coudreau, provavelmente ainda em viagem pelo interior do território paraense. De qualquer forma, a missão dominicana interessou ao governador e se enquadrou completamente em seu programa de governo. A conferência resultou na concessão de vinte contos de réis como subsídio e, 494 GALLAIS, 1942, p.193. 172 ainda, de “grande sortimento de tecidos e roupas para vestir os índios e um carregamento de machados, enxadas, instrumentos de trabalho e outros do mesmo gênero”495. O patrocínio estatal apareceu em texto do periódico Minas Geraes em 21 de maio de 1897, originalmente publicado no Jornal de Uberaba de 16 do mesmo mês, que tratou do trabalho de catequese indígena executado pelos missionários Vilanova e Dargaignaratz desde outubro de 1896 na margem esquerda do Araguaia. Diz o artigo: Dispondo de poucos recursos que puderam obter de algumas almas generosas e confiando no auxílio divino, elles emprehenderam a grande obra da catechese, sem cogitarem das dificuldades innumeras que surgem e das agruras de uma vida cheia de sacrifícios. Em redor da nova missão já vão se agrupando os indios caiapós desejosos de tomar parte no convívio social. O governo do Estado do Pará tendo, por intermédio do exm. Sr. Antonio de Castilho Brandão, Bispo daquella Diocese, conhecimento dos trabalhos dos dous missionários mandou-lhes um auxilio de quatro contos e quinhentos mil reis. O operoso e patriótico dr. Paes de Carvalho, governador daquelle Estado, emprenhase seriamente em favor da catechese por saber quaes os benefícios que trará áquella circumscrição da Republica a civilização dos indios que povoam os vales do Tocantins e Amazonas496. Efetuou-se, por conseguinte, uma combinação de interesses envolvendo o governo paraense, preocupado com o controle das fronteiras e dos povos indígenas do território, e os missionários dominicanos, desejosos de evangelizar os nativos. Havia um nítido contraste entre as unidades federativas: o estado de Goiás tentava firmar-se economicamente e diminuíra o número de investimentos na catequese, como tratamos anteriormente; o Pará, por outro lado, vivia o auge da exploração da borracha. O excedente de capital dessa economia possibilitava ao governo estadual aumentar o investimento em diversos setores, como o de infraestrutura, de instrução pública e de ocupação das fronteiras497. A escolha da nova sede da missão estava mais relacionada ao apoio estadual do que às demais questões, como a obediência às diretrizes das dioceses. Em carta a respeito da fundação de um segundo centro de catequese, alguns anos depois, Frei Gil escreveu: 495 GALLAIS, 1942, p.194. Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estados, Minas Gerais, 21 de maio de 1897, p.6. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 497 WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: Hucitec/ EdUSP, 1993; SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo a Belle Époque. Belém: PakaTatu, 2002. 496 173 Contando que a Catequese dos Carajás se funde, pouco importa como. Saber como ela deve ser estabelecida no território de Goiás ou no do Pará, não passa de um pequeno aspeto da questão [sic]. Se o governo de Goiás pode e quer auxiliar essa obra, é fácil funda-la na Ilha do Bananal, que incontestavelmente pertence a Goiás. No caso contrário, não vejo porque havemos de privar do apoio do Pará. Parece que não havemos de embaraçar com esta questão de limites entre os dois Estados. Que nos importa? Os grandes do mundo que se arrumem nesse ponto!498 Como podemos ler no trecho acima, o religioso expressa que sua maior preocupação era principalmente tornar o projeto exequível, e não respeitar os limites territoriais da diocese. Para Grigório, a posição de Frei Gil frente à questão da localização das missões indígenas “demonstra a independência da missão dominicana em relação ao Estado no trabalho de civilização dos índios após o fim do Padroado”499. A autora interpretou que o trabalho missionário era realizado de acordo com os interesses e as necessidades da Ordem dos Pregadores e da Igreja, embora dependesse dos recursos do Estado. A catequização e a civilização feitas pelas missões religiosas tornaram-se pontos de interesse para a esfera política, que almejava a transformação dos índios em trabalhadores, povoadores das áreas remotas, que se desenvolveriam economicamente por meio da agricultura e da pecuária. A par disso, os religiosos, a partir de seus próprios interesses e necessidades, acionavam os estados da federação para angariar fundos, presentes e materiais para os seus projetos. A verba recebida por Frei Gil do governo do Pará foi empregada na construção de uma nova igreja, de novos edifícios para a comunidade e para os alunos da missão, assim como de um dormitório e de um refeitório500. Os brindes foram distribuídos para atrair novos indígenas. Logo após a aprovação do subsídio do governo do Pará e da chegada de um novo colaborador, padre Guilherme Vigneau, Frei Gil começou a receber mais indígenas em Conceição. Nos primeiros três anos, a quantidade flutuava em virtude das constantes fugas, deserções, do retorno às antigas aldeias e da entrada de novos aldeados501. No colégio, dirigido por Vigneau, os alunos tinham uma rotina exigente, durante a qual aprendiam os ritos católicos, recebiam a educação formal em português, se preparavam para o batismo e aprendiam alguns ofícios. É possível que o desagrado pelas práticas e pelo rigor dos padres tenha sido o motivo da evasão dos pequenos, que, desgostosos com o ensino, regressavam às aldeias e ao convívio de seus familiares. 498 GALLAIS, 1942, p.278. GRIGÓRIO, Patrícia C. A professora Leolinda Daltro e os missionários: disputas pela catequese indígena em Goiás (1896-1910). 2012. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro–UFRJ, Rio de Janeiro, RJ. 500 GALLAIS, Op. Cit., 1903. 501 GALLAIS, Op. Cit., 1942. 499 174 No entanto, a partir de 1900, com a chegada de novos colaboradores e o recebimento de novo subsídio do governo do Pará, a média de crianças aumentou, entre trinta e cinquenta. Figura 41 – Alunos da Escola da Missão de Conceição do Araguaia e missionário dominicano. Fonte: PARÁ, 1908. O trabalho missionário focava na educação das crianças, como visto acima na Figura 41, em que crianças indígenas, trajadas de roupas “civilizadas”, posam para a fotografia com um missionário dominicano ao centro. Gallais afirmou que os dominicanos assentavam suas esperanças “mais na educação christã dada ás creanças do que na conversão dos adultos”. O trabalho com os adultos consistia em estimula-los a abandonarem o nomadismo e adquirirem os costumes dos “civilizados”, transformando-os em trabalhadores. O mesmo autor explicou o programa dos religiosos: O plano dos missionários seria, pois, de subtrahir bem cedo as creanças de ambos os sexos da influencia do meio em que nasceram, impedil-as de contrahirem os habitos da vida selvagem e de lhes incutir ao contrario, os da vida christã, de lhes dar, com a instrucção religiosa, o ensino elementar que se dá nas escolas primárias, e depois quando estiverem na idade de casar, formarem famílias christãs que se fundam à massa da população já civilizada. D’esta maneira, o elemento selvagem se extinguirá por si mesmo, e depois de duas ou tres gerações, a tribo se achará incorporada, ao mesmo tempo, não só a sociedade como á Egreja502. As crianças indígenas eram consideradas uma tábula rasa, “seriam as receptoras de um novo tipo de pensamento e as responsáveis pela formação de famílias cristãs e civilizadas”503. Elas eram vistas como os mais suscetíveis à influência do programa religioso e civilizatório 502 503 GALLAIS, 1903, p. 50-51. GRIGÓRIO, 2012, p.74. 175 pregado pelos padres e também com maior capacidade de se adaptarem à sociedade nacional, aos preceitos católicos e ao mundo do trabalho. E assim foi feito ao longo dos anos, com um aumento significativo do número de crianças Irã Ãmrãnh sob responsabilidade dos missionários em Conceição. Figura 42 – Crianças indígenas da Catequese e seus pais. Fonte: GALLAIS, 1906504. Burke chama atenção aos historiadores que pretendem, por impulsão, visualizar os retratos como representações fidedignas da realidade, argumentando que as imagens são, na verdade, elaboradas de acordo com um sistema de convenções ligadas ao seu tempo histórico: “As posturas e gestos modelos e os acessórios e objetos representados à sua volta seguem um padrão e estão frequentemente carregados de sentido simbólico”505. A Figura 42, por exemplo, é uma representação do contraste entre a ação cristã-civilizatória simbolizada pelas crianças e a natureza do indígena selvagem, materializada na presença dos pais. No segundo plano, os adultos, aparentemente nus, com cortes de cabelo tradicionais e segurando objetos de sua indústria; em primeiro plano, as crianças do colégio missionário, todas vestidas. Essa mesma ideia não se concentrava apenas nos centros católicos, mas também aparecia nas falas da esfera política, como a de José Paes de Carvalho em relatório a Augusto Montenegro, seu sucessor no governo do Pará em 1901. Paes de Carvalho506 incentivava a atividade missionária com as crianças – pois os adultos teriam mais dificuldade em se sujeitar 504 GALLAIS, Etienne-Marie. Un Missionnaire chez les sauvages de l'Araguaya, au Brésil: le P. Gil Vilanova, des Frères prêcheurs. Toulosse: Imprimerie et librairie Édouard Privat, 1906 – Source gallica.bnf.fr / Bibliothèque nationale de France. 505 BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Florianópolis: Edusc, 2004, p.31. 506 CARVALHO, José Paes. Relatório apresentado ao governador do Estado Exmº srº Dr. Augusto Montenegro pelo Dr. José Paes de Carvalho ao deixar a administração em 1º de fevereiro de 1901. Belém: Imprensa Official,1901, p.79 176 ao trabalho regular e em abandonar os seus costumes tradicionais –, educando-as “de acordo com as regras impostas pela civilisação christã”, que consistiam no “trabalho methodico, estavel das artes e industrias e a educação intelectual”. A prosperidade desse tipo de empreendimento beneficiaria não só a eles, pois esses indivíduos amadureceriam e constituiriam, mais tarde, “núcleos de famílias morigeradas, activas e, portanto, factores poderosos do progresso do Estado”. Figura 43 – Conceição do Araguaia em 1901. Fonte: GALLAIS, 1906. A proposta assimilacionista foi, de fato, colocada em prática, com a atração crescente de indígenas e não indígenas para a Conceição do Araguaia. Houve o aumento significativo da população, o que também acarretou a expansão do povoado (Figura 43), chegando, em 1902, a duas mil pessoas na vila. Entre elas havia cinquenta meninos no colégio e mais de 400 indígenas adultos a alguns quilômetros. De acordo com Chaves, um dos aspectos centrais do programa de Frei Gil era a integração, não apenas a incorporação dos indígenas em práticas classificadas como civilizadas, mas o contato e a agregação de outros grupos Mebêngôkre na obra de catequese507. Para Hemming508 e Chaves, nessa perspectiva, os planos do dominicano foram executados com sucesso em relação aos Irã Ãmrãnh, pois o grupo foi incorporado às tradições católicas e mesclou-se com a população de colonos da região, sendo aos poucos 507 508 CHAVES, 2012. HEMMING, 2009. 177 “assimilados à sociedade civil enquanto os que não aceitaram partiram para outras aldeias, provavelmente Mebengôkrê”509. Não podemos perder de vista que os Irã Ãmrãnh tinham seus próprios interesses para se aproximarem dos brancos. Eles, desde os primeiros encontros com não indígenas, rapidamente se adaptaram às novas situações e estabeleceram um sistema de trocas comerciais. Para Gordon510, a estratégia de se associar com não indígenas, até mesmo antes da fundação da missão de Conceição, estava relacionada diretamente com o desejo de obter bens manufaturados. Hemming, por sua vez, salientou que colonos, viajantes e religiosos viam como eficaz a oferta de ferramentas de metal como meio para ganhar a amizade de povos indígenas hostis ou ainda não contatados, pois essas peças não eram fabricadas pelos nativos brasileiros, e sua obtenção só era possível por meio de trocas e guerras intercomunitárias. Logo, os indígenas, como Irã Ãmrãnh, possuíam capacidade de associar práticas, discursos, performances como recurso para conquistar os objetos manufaturados de que precisavam sem grandes esforços ou conflitos com outras aldeias, ou povoados. Contudo, para Gordon, essa estratégia mostrou-se “uma escolha sem volta para os Irã’ãmranhre511, haja vista o rápido declínio populacional e finalmente o desaparecimento do grupo”512. Em 1940, Curt Nimuendajú, etnólogo alemão, esteve no Araguaia e afluentes para entrar em contato com os últimos Irã Ãmrãnh. Encontrou em uma missão dominicana do rio Arraias, que reunia indígenas Mebêngôkre de várias aldeias, os seis últimos descendentes do povo: dois homens, Santana Kukrit-Kãe e Cícero Bepkrit, e quatro mulheres, não nomeadas. Logo depois, em relatório, Nimuendajú decretaria a extinção do povo513. Chaves faz uma ressalva acerca da análise de Gordon sobre a estratégia dos Irã Ãmrãnh, de que não podemos perder de vista a agência indígena nessas relações e da capacidade desses atores sociais de resistir, assimilar e transformar fatos externos em termos de sua própria cultura. Esclarece o autor: 509 CHAVES, 2012, p.49. GORDON, Cesar. Economia Selvagem: Ritual e mercadoria entre os índios Xikrin-Mebêngôkre. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006. 511 Grafia utilizada por Gordon para se referir aos Irã Ãmrãnh. 512 Ibid., p. 129. 513 CHAVES, Op. Cit., 2012. 510 178 Por mais que Gordon argumente que a necessidade de bens manufaturados teria sido um campo fértil para a catequese e ação civilizatória dos dominicanos, não acredito que isso tenha se dado sem mínima resistência. Os Mebengokre falam deles mesmo como vencedores, e isso mesmo quando se encontram dois últimos “remanescentes”, como Bepkrit e Kukrut-Kae A perspectiva de Chaves é inspirada pelos novos estudos de história indígena, que buscam retirar os índios dos papéis secundários e da posição de vítimas passivas para uma perspectiva focada no protagonismo, cujas “ações passam a ser entendidas como fruto de escolhas próprias condizentes com as lógicas de suas sociedades e com as possibilidades disponíveis”514. De acordo com Almeida, “na condição de colaboradores ou mesmo de vencidos, os índios buscavam seus próprios ganhos, ainda que fosse através da negociação das perdas”515. Nessa perspectiva, ao escolher pelos aldeamentos, pela convivência com colonos e missionários, os indígenas respondiam a uma pressão externa, mas essa situação gerava novas oportunidades de ganhos, negociações e resistências. Para Chaves, é possível enxergar os Irã Ãmrãnh para além das concepções de vítimas da assimilação ou perdedores, compreendendoos como sujeitos que atuaram no contexto histórico e resistiram à ação civilizatória. Uma das formas dessa resistência pode ser analisada na formação da coleção depositada atualmente no acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi516, que trataremos a seguir. 3.3 – Objetos indígenas para a manutenção da fé A formação da coleção Irã Ãmrãnh de Frei Gil de Vilanova se deu em um contexto de busca por recursos para a manutenção do projeto missionário em Conceição do Araguaia. Conforme Gallais, a partir de 1900, o número de crianças a cargo dos padres dominicanos aumentou de trinta a cinquenta, o que resultou em gastos mais pesados. A população não indígena de Conceição, no mesmo período, vivia em estado paupérrimo e buscava sempre o auxílio dos religiosos para angariar alimentos e donativos e conseguir trabalho remunerado na construção das suas edificações ou no cultivo das roças. Segundo Gallais, “no capítulo de esmolas, os Padres tinham muito mais que distribuir do que receber” 517. Afora a alimentação, havia a necessidade de artefatos sacros e suprimentos religiosos, como farinha de trigo e vinho, e mercadorias manufaturadas – tais como tecidos, material escolar, ferramentas de trabalho e, ainda nas palavras de Gallais, “mil objetos miúdos que se tornam cada vez mais de uso corrente, à medida que se vai ingressando na vida civilizada”. A 514 ALMEIDA, Maria Regina Celestino. A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas. Revista Brasileira de História, vol. 37, n.º 75, 2017, pp. 17-38. 515 ____________________________. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013, p. 81. 516 CHAVES, 2012. 517 GALLAIS, 1942, p. 218. 179 situação de escassez em Conceição impôs a Frei Gil o hábito de viajar anualmente a Belém para “obter recursos, interessar em sua obra a caridade pública e particular, reabastecer-se e trazer consigo socorros em dinheiro e em espécie”518. A maior parte desses socorros encontrados em Belém provinha do governo do Pará, em especial no de José Paes de Carvalho, cujo mandato encerrou em fevereiro de 1901. Paes de Carvalho, como já dito anteriormente, desejava favorecer as obras de catequese e a ação civilizatória em Conceição, motivo pelo qual ofertou somas consideráveis e mercadorias, além de investir em infraestrutura na região. A missão era verdadeiramente dependente do capital do estado, não dispondo de meios suficientes de sustento. No entanto, em 1901, o patrocínio da obra de catequese escasseou em virtude da crise econômica que envolveu o comércio de borracha e, consequentemente, diminuiu as receitas do estado. Crises econômicas e de abastecimento eram frequentes no Brasil e no Pará.519. A de 1901 já havia sido prenunciada por Paes de Carvalho na mensagem que enviou ao Congresso Estadual em 15 de abril de 1898: Tem-me preoccupado bastante a situação do Pará diante da crise monetaria e economica, que o Brazil vai atravessando. É indubitavel que a prosperidade d'esta região não é só devida ao crescimento de sua producção, mas tambem á desvalorisação do papel. Esta desvalorisação do papel, sendo acompanhada de uma alta nos preços do seu principal genero de exportação, e a importação não tendo excedido o valor em ouro dos generos exportados, trouxe em resultado uma grande actividade nos negocios e crescimento dos lucros oriundos do movimento commercial. [...] Tenho reflectido sobremodo a respeito do que acontecerá ao Thesouro Paraense, caso o cambio entre em um período de marcha ascendente. Com quase todos os nossos compromissos em papel, com a infalível baixa da receita pela diminuição de valor em papel da borracha, é inevitável a fallencia de nossas finanças, maximé[sic], porque esta crise do Thesouro corresponderá a uma grande crise do commercio, para o qual aquelle ficará impedido de appellar. [...] Afigura-seme, porém, que o perigo está mais proximo do que póde parecer aos menos cautos. A situação economica e financeira do Brazil é profundamente anormal; esta anormalidade não póde perdurar sem que venha affectar a propria estructura da nação.520 É evidente no excerto a apreensão do então governador do Pará com a situação financeira do Brasil e as consequências da crise para o tesouro estadual e o comércio local. Em 1901, Augusto Montenegro, governador recém-eleito, também em mensagem ao Congresso de 10 de setembro, citou o excerto de Paes de Carvalho acerca do panorama que se afigurava no horizonte e confirmou a previsão do seu antecessor: 518 GALLAIS, 1942, p. 219. BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.1850c.1870. Belém: Açaí, 2014. 520 CARVALHO, José Paes de Carvalho. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José Paes de Carvalho, governador do Estado, em 15 de Abril de 1898, apresentando a proposta da receita e despeza para o exercicio de 1898-1899. Belém: Typ. do “Diario Official”, 1898, p. 3-4. 519 180 Deu-se o que a previsão do homem eminente que escreveu estas palavras descortinára e talvez mais cedo do que elle proprio suppuzesse. [...] os lucros foram em igual proporção substituidos por prejuisos. Sem capitaes para resistir, sem estabelecimentos bancarios que no desastre lhe servissem de amparo, como na prosperidade não souberam exercer a sua função de freios, o comercio soffreu fatalmente e de um modo extraordinario e continuará a soffrer si uma baixa rasoavel de taxa não lhe vier suavisar os prejuizos. [...] Era certo, pois, que a crise que vamos atravessando tinha fatalmente de dar-se; infelizmente, accumularam-se muitas causas para tornal-a ainda mais seria e tremenda. A baixa do cambio, a diminuição da producção, a queda do preço do proprio producto, base de todos os negocios, nos mercados consumidores, e por fim a maneira brusca por que foram abalados todos os negocios com o Estado visinho, de modo a tornar incerta a realisação de enormes capitaes que a nossa praça possue espalhados por todos os seus rios [...]. Para termos uma idéa do que foram para o Pará os terríveis mezes que vamos transcorrendo, basta dizer: foram abertas em juiso no período de 1 de julho de 1900 a 30 de junho de 1901, 66 falencias; trinta delas representam um activo de 34.007:863$919, e um passivo de 32.505:414$606521. Fica explicitada nas falas dos governadores a crise nas finanças do Pará, o que justificou, para as autoridades, uma política de austeridade que alcançaria diversos setores da administração pública. Em março de 1901, ao chegar a Belém com o propósito de receber os incentivos financeiros do governador do Pará, como fazia anualmente desde 1897, Frei Gil de Vilanova tomou conhecimento de que Montenegro não poderia prosseguir com o auxílio à obra dominicana, apesar de apoiar a causa de catequese entre os índios. O subsídio de cinquenta contos recebido em 1900 e prometido para o ano seguinte não havia sido reduzido, mas suspenso totalmente522. Frei Gil, cuja missão consistia, principalmente, “em gerir os negócios do exterior, em administrar o património, em obter para os seres confiados á sua solicitude os meios de vida”523, precisou, segundo Gallais, buscar novos meios para a manutenção do projeto dominicano. Certamente, a ausência dos recursos estaduais foi duramente sentida por ele, que contava com o valor para saldar as dívidas da Missão. Vilanova, ainda em Belém, tentou outras formas de arrecadação, apelando principalmente para a caridade privada, por exemplo: realização de pregações e peditórios para as obras de catequese em diversas igrejas da capital; festas de caridade; loteria; concerto para doações de particulares, com o envolvimento de Octavie Coudreau; doação de dinheiro pelo bispo do Pará, Dom Antônio Brandão; engajamento com os comerciantes locais para a obtenção de “objetos de pouco valor, mas 521 MONTENEGRO, Augusto. Mensagem ao congresso legislativo do Pará em 10 de setembro de 1901 pelo Dr. Augusto Montenegro governador do estado do Pará. Belém: Imprensa Oficial, 1901, p.4-5. 522 GALLAIS, 1942. 523 Ibid., p. 247. 181 preciosos para os Índios, a quem eram destinados”; e, por fim, o estabelecimento de uma instituição permanente para angariar recursos524. De acordo com Gallais, os donativos privados conseguiram suprir parcialmente as necessidades da Missão, chegando em 1902 ao valor de seis mil francos. Todavia, Vilanova almejava não mais depender do auxílio privado e alcançar a autonomia da missão religiosa. Uma das formas escolhidas para arrecadar recursos foi a venda de objetos fabricados pelos próprios índios Irã Ãmrãnh. Gallais assim relatou a decisão do frade dominicano: Para colocar no prato das receitas alguma coisa que contrabalançasse as despesas, o Padre Vilanova começou recorrendo à própria indústria índia. Fez com que os selvagens fabricassem objetos de uso corrente entre eles: armas, arcos, flechas, lanças, cacetes; ornamentos, braceletes de plumas, objetos de fantasia, etc. Quando de sua viagem ao Pará, em 1902, levou consigo um carregamento desses produtos de arte selvagem. A municipalidade comprou-lhe tudo por 2.500 francos. Isso não passava, porém, de um expediente [...]525. No trecho acima, o autor foi bem claro ao explicar que a fabricação de objetos para a venda foi um dos meios utilizados para a manutenção da missão de Conceição. O que o texto não manifesta é a razão da escolha dessa modalidade para angariar fundos ao invés de outras, como a venda de objetos da fé católica ou de livros da lavra dos dominicanos. Gallais não apresenta os fundamentos que embasaram a ideia de que os artefatos Irã Ãmrãnh poderiam atrair o interesse da sociedade belenense e nem os procedimentos adotados para a feitura dos artefatos e montagem da coleção. Essas são as questões sobre as quais nos debruçaremos a partir de agora. Para Chaves, o plano de Frei Gil não era inovador, pois desde o século XV os europeus levavam do Novo Mundo objetos produzidos pelos ameríndios para serem depositados em gabinetes e museus, com a finalidade de “agradar reis ou grandes personalidades onde eram vistos mais pelo valor de exotismo e pela raridade ou pelo valor dos materiais constituintes do que pelas suas qualidades estéticas”526. De fato, durante todo o contato entre os ameríndios e os europeus a prática colecionista esteve presente, apropriandose e ressignificando os artefatos do Outro, compreendidos como testemunhas da vida cultural alheia, ou como a materialização dos aspectos bélicos, selvagens ou idólatras das populações locais527. Torrence e Byrne explicam o desenvolvimento do colecionismo e sua relação, no século XIX, com os museus científicos e com coleções privadas: 524 GALLAIS, 1942, p. 230. Ibid., p. 231. 526 CHAVES, 2012, p. 64. 527 GIL, Laura Pérez. Colecionismo, colonialismo e museus: Ensaio sobre duas exposições. Campos-Revista de Antropologia, v. 16, n. 2, p.113-127, 2017. 525 182 Uma consequência da expansão comercial e colonial ocidental em terras desconhecidas para além da Europa, foi o desenvolvimento de um mercado para objetos etnográficos ou "curiosos", como eram comumente rotulados. A partir dos séculos XV e XVI, as antiguidades clássicas eram uma mercadoria desejável para a coleção e exibição, especialmente entre as elites ricas da Europa, mas no final do século XIX, literalmente dezenas de milhares de objetos obtidos de produtores indígenas (frequentemente descritos como “tribais”) de artefatos nas Américas, África, Ásia, Austrália e região do Pacífico eram vendidos a museus e colecionadores privados frequentemente através dos catálogos produzidos e distribuídos por leilões e casas de venda528. Como assinalam os autores acima, houve no final do século XIX um consumo maior de objetos indígenas por membros das elites locais, colecionadores privados e museus científicos. Como consequência, a demanda pela coleta etnográfica tornou-se também crescente em todo o mundo529. Além disso, não podemos olvidar que, no mesmo período e até mesmo durante as primeiras décadas do século XX, uma lógica salvacionista somou-se ao desejo colecionista, uma nítida resposta ao temor da desaparição dos povos indígenas com o avanço da “civilização”530. No Brasil, as instituições museológicas, como o Museu Goeldi, eram os principais locais de destinação de coleções etnográficas, seja através de eventuais compras ou de doações, para serem classificadas e salvaguardadas. Os missionários, de acordo com Harju531, “desempenharam claramente um papel central como produtores e mediadores do material etnográfico”532, pois tinham maiores oportunidades de adquirir artefatos devido à sua convivência diária e integração maior com as aldeias indígenas, condição que os coletores profissionais e viajantes não dispunham 528 TORRENCE, Robin; CLARKE, Anne. “Suitable for Decoration of Halls and Billiard Rooms”: Finding Indigenous Agency in Historic Auction and Sale Catalogues. In: BYRNE, S; CLARKE, A; HARRISSON, R; TORRENCE, R. (orgs). Unpacking the Collection. Networks of Material and Social Agency in the Museum. New York, Heidelberg, Dordrecht & London: Springer, p. 29-30, 2011. No original: “One consequence of western commercial and colonial expansion into the uncharted lands beyond Europe was the development of a market for ethnographic objects or ‘curios’ as they were commonly labelled. Beginning in the fifteenth and sixteenth centuries, classical antiquities were a desirable commodity for collection and display, especially amongst the wealthy elites of Europe, but by the end of the nineteenth century literally tens of thousands of objects obtained from indigenous (frequently described as ‘tribal’) artefact producers in the Americas, Africa, Asia, Australia and the Pacific region were sold to museums and private collectors often through the catalogues produced and distributed by auction and sale houses”. 529 O'HANLON, Michael; WELSCH, Robert L. (Ed.). Hunting the gatherers: ethnographic collectors, agents, and agency in Melanesia 1870s-1930s. Berghahn Books, 2001. 530 RIBEIRO, Berta; VELTHEM, Lucia H. Van. Coleções Etnográficas: documentos materiais para a história indígena e do indigenismo. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: FAPESP, 1992. p. 103-112. 531 A autora, no artigo que investiga a formação da coleção Karl Emil Liljeblad da Cultura Ovambo do norte da Namíbia, refere-se a missionários protestantes, mas entendemos que os mesmos papéis foram exercidos pelos missionários católicos no final do XIX e início do XX em outras partes do mundo em relação à formação de coleções etnográficas, com suas devidas assimetrias de poder e peculiaridades. 532 HARJU, Kaisa. Mission, Relationships and Agendas Embodied in Objects: Formation of the Karl Emil Liljeblad Collection of Ovamboland (1900–1932). Nordic Journal of African Studies, v. 27, n. 1, 2018, p. 8. 183 normalmente em suas breves passagens pelas comunidades533. Na mesma perspectiva, Amoroso afirma que os missionários tiveram particular importância na coleta de artefatos indígenas no século XIX e que as missões atuavam como fornecedoras nacionais de material para colecionadores, museus e exposições534. Como já demonstramos em outros capítulos, as coleções etnográficas possuem as marcas profundas dos contextos históricos e sociais nos quais foram constituídas. É improvável que Frei Gil de Vilanova, ao decidir formar coleções para a venda, estivesse alienado do interesse de museus e colecionadores por artefatos ameríndios ou mesmo de um mercado mundial por esse tipo de objeto. Como exemplo, podemos tomar a conferência feita por Frei Gil na Associação Auxiliadora da Catechese, em 1902, com a finalidade de angariar recursos para a catequese. Na sua fala, Vilanova conclamou a beneficência da população local, apelando dramaticamente para o possível destino dos índios: “A caridade, senhores, vos oferece hoje meus nobres indios – tomae-os debaixo de vossa proteção, afagae-os com vosso amor para que não venham a perecer”535. Vilanova não escolheu outras formas de angariar fundos, como escrever livros ou vender objetos sagrados, por ter ciência do valor e dos sentidos que a sociedade e os museus científicos da época atribuíam aos artefatos indígenas, incluindo os produzidos pelos grupos Mebêngôkre, fortemente ameaçados pelo avanço da fronteira agrícola.536 Ele certamente sabia da existência de um mercado consumidor desses artefatos e tinha consciência do seu lugar privilegiado de intermediário entre colecionadores e a comunidade produtora. No presente trabalho adotamos a perspectiva apresentada por Torrence e Clark, segundo a qual as coleções etnográficas decorrem da “interação social construída através do intercâmbio transcultural”537. Nesse quadro, a formação da coleção Frei Gil de Vilanova não foi um simples e casual evento, como pode parecer pela narrativa de Gallais; longe disso, ela consiste em um produto do contexto histórico, dos interesses, das ideologias e ações de diferentes sujeitos em contato. As concepções acerca de colecionismo etnográfico no início do 533 HARJU, 2018; O’HANLON, 2001. AMOROSO, M. Crânios e cachaça: coleções ameríndias e exposições no século XIX. Revista de História, n. 154, p. 119-150, 2006. 535 Catechese dos indios. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de março de 1902, p. 3. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 536 CHAVES, 2012. 537 TORRENCE, Robin; CLARKE, Anne. Excavating ethnographic collections: negotiations and ross-cultural exchange in Papua New Guinea. In: World Archaeology , 48(2), 2016, p. 182 apud Harju, Op. Cit., 2018, p.6. No original: “Ethnographic collections resulted from social interaction constructed through cross-cultural exchange”. Outros estudos adotam perspectiva semelhante, como os de BYRNE, Sarah. Trials and Traces: A. C. Haddon’s Agency as Museum Curator. In: BYRNE et al., 2011, p.307; e KEURS, Pieter ter. Agency, Prestige and Politics: Dutch Collecting Abroad and Local Responses. In: BYRNE et al., 2011. 534 184 século XX, a política assimilacionista do regime republicano brasileiro, a busca obstinada dos missionários por recursos para as atividades de catequese, o desenvolvimento dos museus e as decisões, motivações e cultura dos Irã Ãmrãnh construíram a coleção. Figura 44 – Fotografia da Seção de Etnografia do Museu Goeldi, com destaque às flechas e bodurnas dos Irã Ãmrãnh. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica. Conforme as nossas análises dos inventários de 1921 e 1939538, já citados nessa dissertação, a coleção Frei Gil de Vilanova de 1902 possui 669 itens539. Os 441 objetos bélicos – tais como flechas, lanças, cassetetes, arcos – compõem a maior parte da coleção e o restante consiste em artefatos de uso rotineiro e ritual. Para Chaves, trata-se de uma coleção temática em razão do predomínio de armas em seu arranjo, Além disso, de acordo com esse autor, artigos de uso masculino preponderam na coleção, compondo mais da metade dos artefatos. Alguns exemplares de bodurnas e flechas da citada coleção, podem ser observados 538 Em razão da pandemia de Covid-19, o Arquivo Guilherme de La Penha e a Reserva Técnica Curt Nimuendajú foram fechados para consultas externas e assim permaneceram até a data da defesa dessa dissertação. Por esse motivo, não pudemos analisar com mais atenção os documentos referentes à coleção etnográfica Frei Gil de Vilanova, como o livro tombo de 1955 – que chegou a ser manuseado para a preparação dos capítulos anteriores. 539 O número diverge das 685 peças propostas por Chaves no estudo da mesma coleção em 2012. Por não termos acesso as listagens e relatórios produzidos pelo citado autor, não é possível compreender o motivo da discrepância. 185 na Figura 44 da Seção Etnografia do Museu Goeldi em data não identificada. O domínio de objetos bélicos e masculinos é intrigante, assim como a ausência de tipos específicos na coleção, e pode sinalizar a agência indígena na seleção e rejeição dos objetos que os representavam. Ao adentrarmos no estudo mais detalhado da feitura dos objetos e das ideias, dos contextos e das ideologias enredadas na relação entre o missionário e a comunidade produtora, mais restrita se torna a variedade de fontes à nossa disposição. Frei Gil de Vilanova, apesar de fazer uma oportuna leitura do colecionismo vigente, não era um coletor profissional de objetos indígenas, tão pouco produziu relato ou material analítico da prática etnográfica. Da mesma forma, os Irã Ãmrãnh não legaram para a posteridade alguma narrativa escrita. Portanto, os objetos e a estrutura da coleção são as únicas fontes históricas desse processo que chegaram até o presente. É por meio deles, considerando toda a limitação desse tipo de documento, e apoiados na bibliografia pertinente, que analisaremos algumas hipóteses acerca da predominância de artefatos bélicos e masculinos na coleção, assim como da ausência de tipos específicos de artefato. Antes de analisar a coleção, não se pode perder de vista que ela resultou do contato e das transações sociais entre a comunidade indígena e o missionário no espaço da missão de catequese – e que sua concepção estava condicionada pela venda na capital paraense. Para os produtores, certamente os objetos reproduzidos na coleção tinham um significado e a escolha não foi aleatória. A coleção, portanto, enquanto documento e monumento, resultou da ação da comunidade produtora para resguardar e impor ao futuro, de forma consciente ou não, uma imagem de si própria. Frei Gil acompanhou a preparação e a montagem da coleção, logo, não podemos descartar o olhar e a intenção do missionário nesse processo. Provavelmente, os objetos apreciados pelo coletor tinham características que agradavam ao seu gosto estético e sua concepção religiosa, e que impactariam os possíveis compradores. A esse respeito, Chaves levantou algumas hipóteses: Frei Gil não poderia apenas acreditar na extinção dos Irã Ãmrãnh e sim crer na sua redenção e evolução espiritual. Talvez Vilanova pretendesse com isso fazer uso da imagem “selvagem” do índio, tirando proveito do exotismo e perplexidade que tais objetos causavam. Assim em grande parte, o valor atribuído a esses objetos, por frei Gil, era a sua capacidade de testemunhar a respeito dos estágios primitivos do homem, e assim confirmar o triunfo e a superioridade da “Civilização”. Talvez ainda, Frei Gil de Vilanova pretendesse mostrar o valor de seu trabalho, enfocando o quanto o índio poderia ser selvagem sem a devida catequese e sem os louros da civilização. Ao fazer uso desse estereótipo, mostrando para a cidade de Belém os “objetos primitivos” de seres igualmente primitivo, o frei ressaltava a importância de se investir na catequização às autoridades da província, assim como, da população 186 “civilizada da cidade” ao mostrar o estágio primevo da evolução humana e cada vez mais obter apoio para as suas causas540. No excerto acima, o autor ressalta o papel de Frei Gil na formação da coleção, pensando a sua montagem a partir da imagem dos Irã Ãmrãnh como seres pertencentes a um estágio primário da evolução humana. Compreendendo o objeto como forma de apreensão de ideologias que desvelam aspectos da coleta e do contato, Velthem compreendeu as coleções missionárias como formas de representar a realidade social, geográfica e cultural vivenciada pelos missionários, mas também “espelhos que refletem uma desesperada busca por alteração ou mesmo por aniquilamento cultural dos povos indígenas, entre os quais obram os catequistas”541. Nessa perspectiva, as peças que representavam aspectos rituais da sociedade indígena não podiam ser aceitas pelos padres. Elas teriam, certamente, menores possibilidades de integrar uma coleção. Por outro lado, os artefatos de impacto visual artístico e que representassem uma suposta natureza ou o modo de vida “primitivo”, “selvagem” e “exótico” dos povos indígenas agradariam mais facilmente os possíveis consumidores – e naturalmente atenderiam aos desejos de missionários. Evidentemente, os Irã Ãmrãnh tinham seus próprios interesses para acolher as demandas de Frei Gil pela criação e venda de objetos e também para empregar estratégias na sua fabricação e customização, de maneira a atrair a atenção para certos aspectos de sua cultura ou agradar aos gostos dos “civilizados”. Seguramente, os indígenas eram conhecedores das intenções de Vilanova, da necessidade da venda da coleção para a manutenção da missão, das novas perspectivas de estabelecer relações com outras comunidades exógenas e, por fim, da qualidade da coleção como representação da identidade do grupo, como documento/monumento. Acerca desse último ponto, podemos explicar a presença volumosa de armas como um exemplo da expressão de autoimagem, pois os artefatos bélicos – tipologia de peças das quais os Mebêngôkre já eram reconhecidos como especialistas – possuem uma grande importância na cultura desse grupo, como “representação física do ethos de guerreiro” 542. Os artefatos bélicos são comumente produzidos por homens para uso predominantemente masculino543. 540 CHAVES, 2012, p. 67. VELTHEM, Lucia Hussak van. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 7, n. 1, jan.-abr. 2012, p. 53. 542 SHEPARD JR., Gleen H.; GARCÉS, Claudia Leonor Lópes; ROBERTI, Pascale de; CHAVES, Carlos Eduardo. Objeto, sujeito, inimigo, vovô: um estudo em etnomuseologia comparada entre os MebêngôkreKayapó e Baniwa do Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. V. 12, 2017, p. 773. 543 Ibid.; Chaves, 2012. 541 187 Figura 45 – Irã Ãmrãnh posam para o retrato com suas flechas e bodurnas, representações do ethos guerreiro. Fonte: PARÁ, 1908. Na figura 45 observamos cinco Irã Ãmrãnh segurando suas flechas e bodurnas e encarando a câmera e desempenhando sua valentia e braveza. A fotografia é uma nítida representação do anteriormente citado “ethos guerreiro”, da autoimagem que o povo pretendia apresentar aos “civilizados”. Dessa forma, em consonância com a tese de Chaves, a coleção etnográfica Irã Ãmrãnh obtida pelo Museu Goeldi em 1902 é fruto também da ação do grupo produtor. A citada coleção representou para o grupo uma forma de se apresentar ao mundo, nas palavras de Chaves, “como só um Mebêngôkre sabe fazer – através de sua performance de valentia”544. Por meio de sua indústria, os Irã Ãmrãnh iriam colaborar ou reerguer a obra do frei dominicano, mas sem se afastar de suas próprias interpretações e autoimagem de guerreiros e valentes. 3.4 – A aquisição da coleção e catalogação pelo Museu Goeldi Em 15 de março de 1902, o Jornal do Brasil publicou uma matéria transcrita da Província do Pará, do mesmo mês, a respeito de um evento em favor da catequese indígena no Pará, tida pelo autor desconhecido como uma “grande obra de caridade, patriotismo e de humanidade”545. A aludida cerimônia, realizada no palácio episcopal da capital paraense, foi 544 Chaves, 2012, p.73. Catechese dos indios. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de março de 1902, p. 3. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 545 188 organizada pela Associação Auxiliadora da Catequese – organização sobre a qual temos poucas informações – para tratar da manutenção da “apostólica obra de civilização e patriotismo” de Frei Gil de Vilanova com os Kayapó no rio Araguaia. O próprio Vilanova estava presente no evento. Após a abertura da sessão, feita pelo presidente da associação, monsenhor Muniz, o frade dominicano leu um discurso em que pontuou as duas “empresas que solicitaram os esforços dos missionários diretores da colônia” e as dificuldades vigentes do trabalho apostólico no rio Araguaia. O primeiro empreendimento foi a criação e o desenvolvimento da “colonização christã” daquelas terras por migrantes brasileiros, que já em princípios de 1901 somavam quase duas mil pessoas. O segundo era “uma outra obra, mais cara ainda ao coração dos missionários: a da catequese” dos índios Mebêngôkre-Kayapó546. De acordo com Frei Gil, a catequese, no mesmo ano, chegou a receber cinquenta crianças em seu pequeno colégio e 400 índios adultos, aldeados a poucos quilômetros do povoado, que se “transformavam visivelmente, pelo trabalho e por sua convivência pacífica com os christãos”. Ademais, o trabalho apostólico planejava atrair outras comunidades Mebêngôkre nos rios Pau D’Arco, Xingu e Fresco para irem morar nas cercanias de Conceição, além da construção de um novo estabelecimento para receber as meninas e uma igreja. Todavia, após a estadia em Belém, em fevereiro de 1901, os planos de expandir a catequese foram abandonados e alguns dos gastos da missão tiveram de ser suprimidos, como as escolas, por falta de pagamento aos professores. Na exposição oral, Vilanova não explicitou o motivo da renúncia do projeto de expandir a missão – a negativa de Augusto Montenegro em fornecer novos subsídios –, somente elogiou o movimento de simpatia do povo pela “causa dos pobres indios” e convocou os presentes para novas atividades: “a caridade, que vos inspirou o anno passado tão admirável enthusiasmo, vos animará ainda a tentar os últimos esforços para salvar minha catechese”. Havia, de fato, um interesse geral da elite paraense, do clero e dos governantes pela catequese dos índios, a contar pela presença de pessoas renomadas no salão episcopal e pelo apoio que Frei Gil conseguiu. A reunião resultou na formação de diversas comissões para apelar ao auxílio dos poderes públicos e para a propaganda da catequese na imprensa e nas tribunas, e também na doação de 219$000 em favor dos índios. Além disso, garantiu-se o apoio político e midiático de Antônio Lemos, intendente municipal e proprietário do jornal A 546 Catechese dos indios. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de março de 1902, p. 3. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. 189 Província do Pará, reconhecido pelas práticas assistencialistas na administração pública, como fez em 1903 ao repassar cinco contos de réis à citada associação547. O último ponto que gostaríamos de mencionar da matéria acerca da reunião da Associação Auxiliadora da Catequese é a descrição da ornamentação das paredes durante o evento. Os objetos feitos pelos indígenas Irã Ãmrãnh foram espalhados pela sala e despertaram o interesse de Emílio Goeldi e Jacques Huber, do Museu Goeldi, presentes à reunião. A referida matéria assim os descreveu: Devemos observar que as paredes do salão estavam completamente ornadas por objetos de diversíssimas e caprichosas formas – armas e utensílios, de que se servem os cayapos nos seus combates e festas – os quaes foram por frei Gil oferecidos á Associação Auxiliadora da Catechese. Tão numerosa, rica e importante é a dita coleção, que o sábio dr. Goeldi e seu companheiro dr. Hubert (sic), que estavam presentes não se cançaram de admiral-a e encarecel-a. Nesse trecho, fica evidente que os objetos indígenas expostos no salão foram “oferecidos” à citada associação por Frei Gil de Vilanova, certamente uma maneira de dizer que estavam à venda. É possível que esse tenha sido o primeiro contato dos cientistas do Museu Goeldi com a cultura material Mebêngôkre-Kayapó e o ponto de partida para o processo de aquisição da coleção. Segundo Chaves, sem citar as fontes, “os dois cientistas ‘encantaram-se’ com as peças indígenas expostas [...], e com o patrocínio do Intendente de Belém, Antônio Lemos, adquiriram os objetos para o acervo do Museu”. Na referida matéria de jornal não há menção de que Lemos tenha adquirido a coleção com verba pública ou privada para depositá-la no museu. Lemos estava na reunião e, pela documentação, parece ter sido um entusiasta das obras de catequese no Pará, mas não encontramos referências a respeito de uma possível aquisição da coleção de Frei Gil. Emílio Goeldi, no seu relatório referente ao ano de 1901, comentou a aquisição da coleção de Vilanova: [...] resolveu o Governo estadoal adquirir para o Museu, pela quantia de R.s 2:500$000 a importante collecção de artefactos dos indios Cayapós do rio Araguaya, reunida e trazida pelo Rev. frei Gil de Villanova para a “Associação de Catechese e Civilisação dos Indios”, rica sobretudo em objetos bellicos (arcos, flechas, lanças, maças, etc.) e trabalhos de pennas548. 547 SARGES, Maria de Nazaré dos Santos. Memórias do "velho" intendente: Antonio Lemos, 1869-1973. 1998. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998. 548 GOELDI, Emílio Augusto. Relatorio sobre o Museu, relativo aao anno de 1901 apresentado ao Exm. Sr. Dr. Secretario de Estado da Justiça, interior e instrucção publica pelo Dr. Emilio Augusto Goeldi, director do mesmo Museu. Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de Historia Natural e Ethnographia, Belém, 4(1/4), 1906, p.18. 190 Goeldi confirmou, portanto, que Frei Gil montou a coleção para a Associação Auxiliadora da Catequese e esclareceu que a compra foi feita pela administração estadual, cujo representante era Augusto Montenegro – o mesmo governante que, um ano antes, negou o auxílio ao missionário, mas que era partidário de Lemos, um declarado entusiasta da obra de Vilanova no Araguaia e que pode ter influenciado na aquisição. Chama à atenção a disparidade de datas entre o ano a que se refere o relatório do diretor do Museu Goeldi (1901) e o do evento realizado no salão episcopal (fevereiro de 1902). A última data é a mais aceita entre os estudiosos da coleção etnográfica do Museu Goeldi549 em razão das matérias publicadas em A Província do Pará e no Jornal do Brasil, mas o fato de Goeldi ter anunciado a aquisição da coleção no seu relatório de 1901, entregue ao governo do Pará em janeiro de 1902, como de praxe, é um forte indício de que a coleção já estava em negociação antes do evento promovido pela Associação Auxiliadora da Catequese. É possível que ela estivesse em Belém há mais tempo e que já tivesse sido inspecionada por Goeldi, talvez ainda em 1901. Ao antecipar o anúncio da aquisição, Goeldi talvez quisesse deixar claro para possíveis interessados que os objetos a serem exibidos na Associação Auxiliadora da Catequese já tinham dono e seriam depositados no museu local. Portanto, se a data da aquisição é reconhecida como sendo o ano de 1902, é certo que esse processo teve início bem antes. Figura 46 – Indígenas Irã Ãmrãnh em visita ao Museu Goeldi. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica, Negativo MPEG00486. 549 SHEPARD et al, 2012; Chaves, Op. Cit., 2012; VELTHEM, Lucia Hussak van et al. A coleção etnográfica do Museu Goeldi: memória e conservação. MUSAS, Brasília, v. 1, n. 1, p. 121-134, 2004.. 191 Figura 47 - Grupo de Irã Ãmrãnh no Museu Goeldi. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica, Negativo MPEG00503. Ainda em 1902, um grupo de indígenas Irã Ãmrãnh visitou o Museu Goeldi acompanhado de Frei Gil de Vilanova.550 A visita foi registrada por meio de fotografias feitas no parque zoobotânico, com alguns indígenas trajando roupas dos “civilizados”, outros descalços e com o peito nu, como podemos observar nas Figuras 46 e 47. Conforme López e Karipuna551, a partir da visita desse grupo, o Museu Goeldi firmou relações com diversos povos indígenas – principalmente Mebêngôkre-Kayapó, Tikuna, Ka’apor, Galibi Kalinã, Wayana-Aparai, Krenak, Gavião-Parkatejá e Baniwa – “por meio da tarefa de adquirir, organizar e guardar coleções de objetos indígenas”, atividade que estava na agenda da instituição desde sua fundação e que prosseguiu ao longo dos anos por intermédio “das pesquisas etnológicas e do colecionismo antropológico efetuado pelos pesquisadores da instituição, dentre os quais destacamos o próprio Curt Nimuendajú, bem como pesquisadores de outras instituições brasileiras e do exterior”. Apesar da descrição dos objetos musealizados, como o predomínio de armas e a presença de plumária, encontrada nas fontes históricas citadas anteriormente, o número exato 550 CHAVES, 2012. LÓPEZ, Claudia Lopez Garcéz; KARIPUNA, Suzana Primo dos Santos. “Curadorias do invisível”: conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi. Museologia & Interdisciplinaridade, v. 10, n. 2021, p. 103. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/35492. Acesso em: 14 jun. 2021. 551 192 de objetos só foi registrado no Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi de 1921. Nessa lista, Nimuendajú arrolou 647 artefatos, todos atribuídos aos “Cayapó”. No segundo inventário, a Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi, elaborado entre 1939 e 1940, a Coleção Frei Gil de Vilanova aparece com 665 artefatos, todos recebendo novos números de registro. Nos dois catálogos, no campo relativo “ao povo indígena” não há menção à autodenominação do grupo. Ao confrontar os dois catálogos, observamos no segundo um acréscimo de vinte e uma peças que não constavam na lista anterior e também a ausência de quatro lanças de ponta de osso, presentes no inventário de 1921. Dessa forma, chegamos ao total de 669 artefatos originalmente pertencentes à referida coleção. Mais da metade, quase 67%, é formada por utensílios bélicos e acessórios, tais como lanças, arcos, flechas, bordunas e bainhas. O restante é formado por diademas, artefatos de plumagem, buzinas, tipoias, cintos de buriti e outros enfeites de material diverso. É importante salientar que, por mais diversa e numerosa uma coleção etnográfica possa parecer, ela não pode ser entendida como completa. Como aponta Cury: [...] A cultura não se constitui em algo estático, parado no tempo, mas configura um processo e, como tal, é dinâmico, sujeita a transformação. Assim, as coleções refletem momentos ou períodos históricos-culturais determinados, condicionados que estão a presença de um agente coletor e as particulares socioculturais dos contextos de origem552. Por mais que se pretenda abordar a totalidade de uma cultura, ou explorar ao máximo um aspecto de um povo, como o guerreiro dos Mebêngôkre-Kayapó, uma coleção representa apenas um momento da cultura desse povo, refletindo o contexto histórico e suas relações sociais, muitas vezes assimétricas. Cabe ao pesquisador, por meio do estudo histórico do processo de musealização, tornar visíveis as peculiaridades, os sentidos, as interações sociais, a agência das comunidades produtoras, as redes de circulação e os contextos sociais e políticos 552 que construíram a trajetória da coleção. CURY, Marília Xavier. “A arte de Comunicar”. In: DORTA, Sonia Ferraro & CURY, Maria Xavier. A plumária indígena brasileira no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: EDUSP, MAE/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p.26-27. 193 Considerações finais Quatro coleções etnográficas formadas entre o final do século XIX e o início do século XX por diferentes colecionadores e comunidades produtoras vivenciando distintos contextos sociais e políticos. Elas possuem em comum os fatos de estarem salvaguardadas na Reserva Técnica Curt Nimuendajú do MPEG, de participarem – e de serem resultados – de um contexto colecionista global e de adentrarem o museu durante a gestão de Emílio Goeldi (1894-1907), período de reorganização da instituição e de suas coleções. Em cada capítulo desta dissertação buscou-se estudar o processo de musealização de cada uma das coleções, compreendendo-as a partir de suas próprias particularidades, razões práticas, contextos e significados para coletores e povos indígenas. Das coleções estudadas, as primeiras a chegarem ao Museu Paraense foram as denominadas Lauro Sodré, de 1897, e Henri Coudreau, de 1898. Ambas são compostas por artefatos recolhidos por Coudreau nos rios Xingu e Tapajós, somando 46 peças dos povos Yudjá/Juruna, Tapayuna (Kajkwakratxi) e Parintintin (Kagwahiva). Estudar a formação dessas coleções nos permitiu constatar a influência das tendências profissionais e das experiências anteriores do coletor nas práticas de coleta, assim como do contexto social e político em que atuava, sua participação em uma rede que envolvia diversos atores e, por fim, a agência indígena na seleção e rejeição dos objetos. Coudreau foi um explorador, não um etnógrafo profissional. Seu trabalho, portanto, tinha as peculiaridades de sua formação, de seu amadorismo como coletor e das experiências pretéritas como colecionador de artefatos indígenas para o Musée d’Ethnographie du Trocadéro. As características do trabalho etnográfico do viajante francês podem ser resumidas na coleta não sistemática de objetos, na obtenção das peças por meio de intermediários, no desapreço pela história, pela fabricação e pelo uso dos artefatos pelos nativos, nos poucos registros fotográficos das comunidades criadoras e das suas coleções, na descrição sumária do contexto da coleta e dos povos que conheceu e, por último, na preferência pelo exotismo. Além da ação do coletor, podem-se destacar outras forças que possibilitaram a formação e musealização da coleção, como as demandas de Emílio Goeldi pela ampliação da coleção etnográfica do Museu Paraense; a obediência do explorador francês a Lauro Sodré; o contexto museológico global no final do XIX; as relações do viajante com as redes locais, formadas por proprietários de terra, seringalistas, comerciantes, colonos, indígenas e missionários; e ainda as redes de apropriação e de circulação de objetos indígenas. 194 Henri Coudreau não entrou em contato diretamente com os três povos indígenas produtores dos artefatos. Ele os obteve através das citadas redes de circulação intercultural que existiam no Tapajós e da apropriação indevida no Xingu. A partir da análise da documentação, dos objetos e dos estudos de Keurs553 e Thomas554, levantou-se a hipótese de que houve agência indígena nesse contexto através da seleção prévia dos objetos que circulariam nas redes utilizadas pelo viajante e dos que não circulariam por estarem enredados em complexos sistemas culturais e por serem mais protegidos ou cuidados. Outra coleção estudada foi a do alemão Theodor Koch-Grünberg, formada por objetos provenientes do alto rio Negro e afluentes, coletados em 1905. Koch-Grünberg fez parte da segunda geração de americanistas alemães ligados Museum für Völkerkunde, que expedicionaram pela Amazônia a partir do século XIX. Etnólogo de formação e experiente na coleta etnográfica, ele custeou suas pesquisas acerca das sociedades ameríndias a partir das coleções etnográficas vendidas para o museu berlinense, que tinha grande interesse por esse tipo de “cultura materializada”. Koch-Grünberg foi encarregado pelo museu berlinense de formar coleções, coletar material linguístico e dados etnográficos das populações indígenas durante uma expedição à Amazônia brasileira. Para obter êxito na viagem, o etnólogo procurou integrar-se, a partir do contato com o influente comerciante Dom Germano, uma rede de colaboração que se estendia por todo o noroeste amazônico e envolvia seringalistas, autoridades públicas, políticos, comerciantes e lideranças indígenas. Essa rede compartilhava mercadorias, influência política, recursos, trabalhadores e informações. Durante dois anos viajando pelo rio Negro e seus afluentes, Koch coletou mais de 1.800 objetos, dos quais 510 foram destinados ao Museu Goeldi a título de “duplicatas”. A prática etnográfica de Koch-Grünberg era distinta da de Coudreau, bem como suas ideias e conduta com os povos indígenas. As razões disso residiam nas experiências com os próprios nativos, no pensamento burguês alemão do final do XIX e início do século XX e na trajetória acadêmica de Koch. Permanecendo muitas vezes longos períodos nas aldeias, o etnólogo alemão conseguiu não só fazer coleções etnográficas volumosas e diversas, como também documentar hábitos, rituais, técnicas, ideias, cosmovisões e vocabulários das comunidades visitas, seguindo a premissa de tornar acessível aos estudos museológicos a 553 THOMAS, Nicholas. Entangled objects: exchange, material culture and colonialism in the Pacific. Cambridge: Harvard University Press, 1991. 554 KEURS, Pieter ter. Agency, Prestige and Politics: Dutch Collecting Abroad and Local Responses. In: BYRNE et al., 2011. 195 maior quantidade de informações sobre cada povo visitado – inclusive, registrando as relações sociais e negociações travadas entre o coletor e os produtores. As mercadorias, a conduta pessoal com os nativos e a adaptação ao meio desempenharam importante papel na associação do etnólogo com os povos indígenas e na obtenção da cultura material desses. As mercadorias usadas nas trocas não eram levadas ao campo e oferecidas de forma aleatória. Pelo contrário, elas eram escolhidas antecipadamente a partir de conhecimentos preliminares sobre os gostos, as necessidades e os interesses dos produtores que residiam nas regiões visitadas. Ao longo da narrativa de Koch, encontram-se diversas passagens que registram o fato de as mercadorias oferecidas pelo coletor terem relação com as demandas internas dos grupos e com o contexto político local. Os indígenas encontrados pelo etnólogo, diferentemente da visão estereotipada, foram descritos como agentes ativos e conscientes das trocas em que participavam. Ao visitante, cabia apenas se amoldar aos diferentes termos e ter uma diversidade de produtos para as trocas. O caso de Koch-Grünberg demonstra que, para os museus etnográficos e para o coletor, os artefatos indígenas eram estimados por uma associação de fatores, tais como: a materialização da cultura humana em artefatos; o impacto visual e aspectos da qualidade estética; valores e importância para as comunidades produtoras; e o caráter exótico e primitivo. Para os indígenas, as mercadorias europeias possuíam valor em razão da utilidade, do prestígio que conferiam ao possuidor e dos atributos estéticos. A última coleção é a de artefatos Irã Ãmrãnh, grupo Mebêngôkre-Kayapó, formada pelo missionário dominicano Frei Gil de Vilanova em 1902, constituída por 669 peças. Diferentemente dos demais, o coletor acompanhou todo o processo de feitura e seleção dos objetos. A origem da coleção reside na busca do missionário por recursos necessários à manutenção da catequese em Conceição do Araguaia, projeto bastante afetado pela suspensão do patrocínio estatal no início do século XX, motivado pela crise econômica que envolveu todo o estado do Pará à época. Através da venda de artefatos indígenas em Belém do Pará, Frei Gil tentou angariar fundos e tornar-se mais independente da caridade privada e estatal. O plano não era arrojado. Longe disso, o colecionismo de artefatos ameríndios é um fenômeno que acompanha a trajetória humana desde o século XVI, tornando-se mais acentuado com a criação dos museus etnográficos e de história natural. Aquilo que era colecionado pelas instituições museológicas e exibido nas vitrines, além de ser alvo de estudos etnológicos, era interpretado como testemunho da vida cultural do Outro e da manifestação de características idólatras, bélicas e selvagens das populações autóctones. No final do século XIX, acrescentou-se a esse 196 fenômeno uma lógica salvacionista dos indígenas, que poderiam desaparecer com o avanço da fronteira econômica no sertão brasileiro. Na cadeia colecionista do período, os missionários executavam o papel central de mediadores na circulação de objetos, ou seja, atuavam como fornecedores de artefatos indígenas. Afinal, eles, em geral, eram os atores mais próximos das lideranças indígenas e que viviam em maior integração com as comunidades produtoras. Frei Gil tinha ciência do valor e do sentido que a sociedade nacional e as instituições museais atribuíam aos artefatos indígenas – ainda mais dos Mebêngôkre, que na época possuíam uma aura de exóticos e violentos. Ele certamente aproveitou-se disso para escolher peças de impacto visual e que representavam o suposto estágio “primitivo” e “selvagem” dos índios. A coleção Frei Gil de Vilanova, então, foi um produto do contexto histórico, dos interesses e das ações dos diferentes atores que participaram do intercâmbio cultural. Destacamos, além do colecionismo, a política assimilacionista da República brasileira, que incentivava a catequese indígena, o desenvolvimento do Museu Goeldi e as ações e decisões dos Irã Ãmrãnh. Encarando o conjunto de objetos como uma forma de se apresentar ao mundo, a comunidade produtora empregou aspectos rituais e de autorrepresentação na customização das peças e na estrutura da coleção, a despeito das considerações e intenções do missionário. O grupo reuniu sobretudo artefatos bélicos e masculinos na coleção, tipologia de objetos que os Mebêngôkre dominavam e que está entrelaçada na vida cotidiana e ritual do grupo, principalmente na autoimagem de guerreiros e valentes. A coleção foi adquirida pelo Museu Goeldi com verba estadual em 1902, certamente depois de uma negociação conduzida pelo diretor da instituição. Coincidentemente, o governador que autorizou a compra foi Augusto Montenegro, o mesmo que, no ano anterior, interrompeu os subsídios disponibilizados ao missionário pelo governo do Pará desde 1897. Goeldi atuou diretamente no processo de musealização das quatro coleções. De maneira distinta com cada montagem, em períodos distintos, atuou para viabilizar as negociações e a salvaguarda. O zoólogo suíço possuía um bom trânsito com os governadores do estado, com a elite regional, com os meios científicos e intelectuais locais. Sabia mobilizar diferentes forças e recursos para beneficiar a instituição que dirigia e suas próprias pretensões científicas. Isso aconteceu com Lauro Sodré, quando demandou que Coudreau coletasse objetos para o museu durante suas viagens de exploração pelos rios Xingu e Tapajós; com Koch-Grünberg, quando mobilizou uma rede científica mais ampla para ter acesso a uma parte dos objetos coletados no rio Negro; e com Frei Gil, quando mediou a relação entre o 197 Estado e a diocese do Pará, articulação necessária à compra da coleção formada no rio Araguaia. Por fim, é importante destacar que, no processo de musealização, um objeto etnográfico é ressignificado. Se antes ele era avaliado a partir de sua funcionalidade, utilidade ou valor simbólico-cosmológico, ao ser introduzido em um museu passa a ser avaliado por sua capacidade de documentar e evocar realidades ausentes. Essa questão foi amplamente discutida por diversos autores, mas no presente trabalho evidenciamos que, durante esse processo de musealização, a agência indígena e o contexto de produção e coleta podem ser ocultados, assim como intermediários podem ser apagados e informações podem ser perdidas ou misturadas nos catálogos e nas fichas preservados nos museus. Cabe ao pesquisador, por meio de uma pesquisa bibliográfica e documental, investigar os atores, os contextos e os significados envolvidos na produção de cada coleção, destacando não só o protagonismo do coletor, como também a atuação das redes e das comunidades produtoras. 198 REFERÊNCIAS Periódicos A Cruz: Revista Catholica, 31 de Dezembro de 1890, p. 264. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil. A Província do Pará, 2 de maio de 1895, p. 1. Acervo da Biblioteca Pública Arthur Vianna Fundação Cultural Presidente Tancredo Neves. Boletim da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Tomo II, 1886, p. 114. 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