UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DA
AMAZÔNIA
MATHEUS CAMILO COELHO
OBJETOS ENTRE CONTEXTOS E SIGNIFICADOS: AS COLEÇÕES
ETNOGRÁFICAS DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI ENTRE 1894 E 1905
BELÉM
2021
2
MATHEUS CAMILO COELHO
Objetos entre contextos e significados:
as coleções etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi entre 1894 e 1905
Dissertação de mestrado apresentada à
Banca Examinadora do Programa de PósGraduação em História Social da
Amazônia da Universidade Federal do
Pará, como requisito para obtenção do
título de Mestre em História Social da
Amazônia.
Orientador: Prof. Dr. Nelson Rodrigues
Sanjad.
BELÉM
2021
3
Objetos entre contextos e significados:
as coleções etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi entre 1894 e 1905
MATHEUS CAMILO COELHO
Dissertação de mestrado apresentada à
Banca Examinadora do Programa de PósGraduação em História Social da
Amazônia da Universidade Federal do
Pará, como requisito para obtenção do
título de Mestre em História Social da
Amazônia.
Orientador: Prof. Dr. Nelson Rodrigues
Sanjad.
Aprovada em: __/__/____
Banca examinadora:
__________________________________________________
Prof. Dr. Nelson Rodrigues Sanjad (Orientador - UFPA)
__________________________________________________
Prof. Dr. Filipe Pinto Monteiro (Avaliador interno- UFPA)
__________________________________________________
Profa. Dra. Lúcia Hussak van Velthem (Avaliadora externa à Instituição – MPEG)
BELÉM
2021
4
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Pará
Gerada automaticamente pelo módulo Ficat, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
C672o
Coelho, Matheus Camilo.
Objetos entre contextos e significados: as coleções etnográficasdo
Museu Paraense Emílio Goeldi entre 1894 e 1905 / Matheus Camilo
Coelho. — 2021.
213 f. : il.
Orientador(a): Prof. Dr. Nelson Rodrigues Sanjad Dissertação
(Mestrado) - Universidade Federal do Pará,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de PósGraduação em História, Belém, 2021.
1. Coleção Etnográfica. 2. Viajantes. 3. Museu Paraense
Emílio Goeldi. I. Título.
CDD 981.15
5
Agradecimentos
Primeiramente, a Deus e à Espiritualidade, por terem me acompanhado sempre e pela
força para suportar as tribulações da jornada.
Aos meus pais, Francisco e Edilene pela educação e formação e por não pouparem
amor ao longo da minha vida. A eles agradeço o que sou como ser humano, os ensinamentos
sobre vida e trabalho, a torcida incondicional e o acolhimento nos momentos mais difíceis. À
minha irmã, Paula Yasmin, pelo amor envolvido, o incentivo e por estar sempre pronta para
me ajudar e fazer superar os obstáculos do meu caminho.
Ao prof. Dr. Nelson Sanjad, pela confiança, pelo tempo dedicado à pesquisa, pelo
rigor e atenção nos apontamentos e a gentileza em todas as orientações.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo
financiamento para a realização do presente trabalho.
À Universidade Federal do Pará e ao Programa de Pós-Graduação em História Social
da Amazônia que acolheu o meu projeto de pesquisa. Agradeço às professoras e professores
do PPHIST pelos debates, trocas e aprendizados acadêmicos. Em especial, aos professores
David Ramirez, Filipe Pinto, Magda Ricci e Aldrin Figueiredo pelos diálogos nas disciplinas
e pelas contribuições concedidas a este trabalho.
À Alegria Benchimol, minha primeira orientadora, que me apresentou ao tema das
coleções etnográficas e do viajante Henri Coudreau. Agradeço sempre pela oportunidade de
aprendizado durante a Iniciação Científica, pelas orientações sempre firmes e rigorosas e pelo
incentivo e profissionalismo que tanto me auxiliou desde 2016.
À Elis de Araújo Miranda, pela parceria nos artigos publicados e por todo auxílio e
orientação durante os dois anos de Iniciação Científica no Museu Paraense Emílio Goeldi.
Aos meus novos e velhos amigos do PPHIST. Em especial, agradeço a Luís Augusto e
Daniel Lapola pela amizade, pela ajuda com as fontes e pelas interlocuções sobre nossos
trabalhos. Aos amigos Andrey e Rebeca, pela amizade, leitura do projeto de pesquisa e auxílio
na captação de fontes e bibliografias essenciais para a escrita desta dissertação. Com medo de
esquecer algum nome, sou grato a todos os amigos que me ofereceram palavras, suportes e
gestos valiosos para este trabalho.
Por fim, mas não menos importante, à minha família também – tios, tias, primas e
primos – e amigos de casa, que são também família, por toda a generosidade e solidariedade
nos momentos difíceis e por proporcionar ocasiões de descontração necessárias para manter o
equilíbrio emocional. Em particular, a José Camilo (in memoriam), meu tio, meu amigo e meu
6
herói. Por todos os ensinamentos ofertados ao longo dos anos, pela generosidade ao nos
acolher em sua casa e ao nos oferecer o riso como possível antídoto a todo tipo de dor. A
morte, como o senhor sempre nos advertiu, não existe e o amor prossegue além dos limites
físicos. Gratidão eterna, meu tio.
7
Resumo
A presente pesquisa investiga o processo de musealização de quatro coleções etnográficas do
Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), denominadas Lauro Sodré (1897), Henri Coudreau
(1898), Frei Gil Vilanova (1902) e Theodor Koch-Grünberg (1905). Não apenas centrada no
protagonismo do coletor/colecionador e compreendendo o colecionamento como uma prática
polissêmica, a pesquisa considera o contexto social e político, os interesses dos museus, a
agenda científica da época, a trajetória e as concepções das comunidades produtoras e dos
colecionadores, as redes de colaboração e circulação de objetos na região amazônica. As
quatro coleções possuem relevância para a Reserva Técnica Curt Nimuendajú do MPEG em
razão de terem sido adquiridas durante um período de reestruturação e reorganização da
instituição, e também, de certa forma, por representarem três contextos diferentes de coleta de
artefatos indígenas na Amazônia do final do século XIX e início do XX, protagonizados por
um explorador francês, um missionário dominicano e um etnólogo alemão. O estudo dessas
coleções certamente permite analisar como diferentes contextos políticos, sociais e culturais,
incluindo princípios religiosos, filosóficos, científicos e as relações entre povos indígenas e
coletores, atuaram na seleção (e rejeição) dos objetos que compõem as aludidas coleções.
Palavras-chave: Coleção Etnográfica; Viajantes; Museu Paraense Emílio Goeldi; Rio Negro;
Rio Araguaia; Rio Tapajós; Rio Xingu.
8
Abstract
This study aims to investigate the process of musealization of ethnographic collection placed
in the Museum Paraense Emílio Goeldi (MPEG), named Lauro Sodré (1897), Henri Coudreau
(1898), Frei Gil Vilanova (1902) and Koch-Grünberg (1905). Not only centered in the
collector’s protagonism but comprehending the collection processes as a polysemic practice,
this research intent to comprehend its role in social and political context, interests of the
museums, their scientific agenda, trajectory and conceptions of the producing communities
and collectors, the collaboration and circulation networks on Amazon region.. The four
collections are relevant to Curt Nimuendaju Technical Reserve Ethnographic Collection at the
Goeldi Museum due to their acquisitions during a restructuring and reorganization period, and
also, in a way, represent three distinct contexts of collecting indigenous artefacts in Amazon
at the end of 19th century and 20th century beginning, led by a French explorer, a Dominican
missionary, and a German ethnologist. Their study certainly allows us to analyse how
different political and social contexts, religious, philosophical, cultural, scientific thoughts
and the relationships between indigenous peoples and collectors acted in objects selection and
rejection that make up the aforementioned collections.
Keywords: Ethnographic Collection; Travellers; Museu Paraense Emílio Goeldi; Negro
River. Araguaia River; Tapajós River; Xingu River;
9
Lista de Figuras
Figura 1. Trecho do mapa do rio Tapajós e São Manuel elaborado por Henri Coudreau.
(COUDREAU, 1897)................................................................................................................50
Figura 2. Um “seco” no alto Parauapebas (COUDREAU, 1898)............................................52
Figura 3. A comitiva da expedição ao Tapajós em frente à tenda do viajante (COUDREAU,
1897a)........................................................................................................................................59
Figura 4. Henri Coudreau, Cardozo e moradores da casa desse último (COUDREAU,
1897a)........................................................................................................................................60
Figura 5. Machado e ponta de flecha Parintintin (Kagwahiva) (COUDREAU,
1897a)........................................................................................................................................62
Figura 6. Machado Tapayuna (COUDREAU, 1897a).............................................................65
Figura 7. Joaquim Pena e sua família (COUDREAU, 1897c).................................................66
Figura 8. Maloca Abandonada (COUDREAU,1897c)............................................................68
Figura 9. Brinquedo-Ubá do povo Yudjá/Juruna. Fonte: “Coleção Etnográfica Reserva
Técnica
Curt
Nimuendajú
MCTI/
Museu
Paraense
Emílio
Goeldi”
(2016)........................................................................................................................................69
Figura 10. Objetos possivelmente da coleção etnográfica Lauro Sodré de 1897. Fonte:
Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La
Penha, Coleção Fotográfica......................................................................................................70
Figura 11. Museu Real de Etnologia (Königliches Museum für Völkerkunde).
http://www.zeno.org/nid/20000572284)...................................................................................79
Figura 12. Theodor Koch-Grünberg (ZERRIES, 1972)………………..................................84
Figura 13. Dança do Falo, Rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909).......................................86
Figura 14. Índio do Curicuriarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909)...............................................90
Figura 15. Bastões de ambaúba para dança, dos Kauá. Rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG,
1909).........................................................................................................................................90
Figura 16. Theodor Koch-Grünberg e seu pequeno amigo Tarú, no rio Aiarý (KOCHGRÜNBERG, 1909).................................................................................................................94
Figura 17. Vila de São Felipe (KOCH-GRÜNBERG, 1909)................................................100
Figura 18. Dom Germano Garrido y Otero (KOCH-GRÜNBERG, 1910)...........................101
10
Figura 19. Mapa elaborado por Koch-Günberg do percurso da sua expedição de 1903 a 1905
(KOCH-GRÜNBERG, 1909).................................................................................................105
Figura 20. Índio Siusí com makálu (adorno de prata pendurado no pescoço). Rio Aiarý
(KOCH-GRÜNBERG, 1909).................................................................................................108
Figura 21. Objetos do povo Siusí adquiridos no Rio Içana(KOCH-GRÜNBERG, 1909)...110
Figura 22. Antonio, índio Katapolitani, porta-voz e guia do americanista (KOCHGRÜNBERG, 1909)...............................................................................................................111
Figura 23. Schmidt com seus amigos indígenas na hospedagem em Cururú-cuará (KOCHGRÜNBERG, 1909)...............................................................................................................113
Figura 24. Mulher idosa Siusí, em Cururú-cuára, confeccionando um ralo para ralafir
mandioca (KOCH-GRÜNBERG, 1909).................................................................................114
Figura 25. Grandes flautas chamadas de Yapurutú, nas descrições do etnólogo, pertencentes
aos Kauá e aos Siusí do Rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909)..........................................115
Figura 26. Índio Kawá atirando com carautana. Rio Aiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1909)...117
Figura 27. Cabaça para paricá e instrumento para tomar do povo Tukano, da coleção Theodor
Koch-Grünberg (1905) do Museu Paraense Emílio Goeldi. Fonte: Fotógrafo e data não
identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção
Fotográfica..............................................................................................................................125
Figura
28.
Redes
e
matapí
do
rio
Aiarý
(KOCH-GRÜNBERG,
1910).......................................................................................................................................127
Figura 29. Surubiróca, maloca dos Kubeo no rio Cuduiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1910)..128
Figura 30. Negociando com os Bahúna (KOCH-GRÜNBERG, 1910).................................129
Figura 31. Sequências de fotografias do processo de confecção das máscaras de dança dos
Kobeo, no rio Cudiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1910)............................................................131
Figura 32. Dança das máscaras dos Kobeo no Rio Cudiarý (KOCH-GRÜNBERG, 1910)..131
Figura 33. Remadores indígenas descendo a embarcação em Yurupirý-Cachoeira (KOCHGRÜNBERG, 1910)...............................................................................................................133
Figura 34. O americanista com os Makúna, Yabahána, Yahúna, no baixo Apaporis. Fonte:
Koch-Grünberg, 1910.............................................................................................................136
Figura 35. Frei Gil de Vilanova (GALLAIS, 1942)..............................................................157
Figura 36. Casas em Sant’Anna da Barreira. (COUDREAU, 1897).....................................165
11
Figura 37. Índios Kayapó fotografados por Coudreau, incluindo o chefe Pacarantí
(COUDREAU, 1897)..............................................................................................................166
Figura 38. A missa em Barreira (COUDREAU, 1897).........................................................167
Figura 39. Indígenas Kayapó visitados por Coudreau e Vilanova em 1897 (COUDREAU,
1897).......................................................................................................................................169
Figura 40. Missão de Conceição do Araguaia (PARÁ, 1908)...............................................171
Figura 41. Alunos da Escola da Missão de Conceição do Araguaia e missionário dominicano
(PARÁ, 1908).........................................................................................................................174
Figura 42. Crianças indígenas da Catequese e seus pais (GALLAIS, 1906).........................175
Figura 43. Conceição do Araguaia em 1901 (GALLAIS, 1906)...........................................176
Figura 44. Fotografia da Seção de Etnografia do Museu Goeldi, com destaque às flechas e
bodurnas dos Irã Ãmrãnh. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio
Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica.............................................184
Figura 45. Irã Ãmrãnh posam para o retrato com suas flechas e bodurnas, representações do
ethos guerreiro (PARÁ, 1908)................................................................................................187
Figura 46. Indígenas Irã Ãmrãnh em visita ao Museu Goeldi em 1902. Fonte: Fotógrafo e
data não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha,
Coleção Fotográfica................................................................................................................190
Figura 47. Grupo de Irã Ãmrãnh no Museu Goeldi em 1901. Fonte: Fotógrafo e data não
identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção
Fotográfica..............................................................................................................................191
12
Lista de Tabela
Tabela 1. Coleção Lauro Sodré (1897)....................................................................................55
Tabela 2. Coleção Henri Coudreau (1898)..............................................................................56
Tabela 3. A coleção de Theodor Koch-Grünberg (1905) do Museu Paraense Emílio
Goeldi......................................................................................................................................144
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................14
CAPÍTULO 1 – Henri Coudreau: um coletor ocasional a serviço do Estado do
Pará............................................................................................................................................32
1.1 As expedições de Henri Coudreau: das Guianas ao Pará....................................................32
1.2 Objetos em rede: a formação das coleções de Henri Coudreau no Pará.............................53
1.3 A Transferência das coleções para o Museu Paraense........................................................72
1.4 Colecionamento e agência indígena: redes de circulação...................................................75
CAPÍTULO 2 – A coleção Theodor Koch-Grünberg de 1905: um Völkerkundler na
Amazônia..................................................................................................................................78
2.1– Os americanistas e a Volkerkünde.....................................................................................78
2.2– As expedições de um Volkerkundler (1899-1924)............................................................84
2.3 – A Volkerkünde percorre o rio Negro: a formação das coleções etnográficas de KochGrünberg...................................................................................................................................94
2.4
–
A
aquisição
das
“duplicatas”
pelo
Museu
Goeldi......................................................................................................................................137
CAPÍTULO 3 – A Coleção Frei Gil de Vilanova: colecionismo e catequese no início do
século XX................................................................................................................................148
3.1 – As missões religiosas no Araguaia do século XIX........................................................148
3.2 – Frei Gil Vilanova e a missão de Conceição do Araguaia..............................................157
3.3 – Objetos indígenas para a manutenção da fé...................................................................178
3.4 – Aquisição da coleção Frei Gil de Vilanova de 1902 pelo Museu Goeldi......................187
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................193
REFERÊNCIAS....................................................................................................................198
14
Introdução
Durante o século XIX o processo de institucionalização das ciências no Brasil foi
acelerado e os museus de História Natural tiveram importante papel no desenvolvimento
científico nacional1. Essas instituições se firmaram como locais de referência na produção e
difusão do conhecimento, na circulação de pesquisadores e na formação de coleções da flora,
da fauna, dos recursos geológicos e da cultura material das populações originárias.
Segundo Margaret Lopes2, a origem desses museus está relacionada aos gabinetes de
curiosidades da Europa nos séculos XVII e XVIII, que abrigavam não apenas objetos locais,
mas novos saberes e artefatos de povos distantes trazidos pelos viajantes e aventureiros
durante a expansão ultramarina europeia. Gradualmente, esses locais de curiosidades e de
cunho enciclopédico foram substituídos pelos Museus de História Natural, com um caráter
científico mais especializado — onde, então, os objetos não eram apenas acondicionados, mas
também descritos, examinados, agrupados “objetivamente” por traços comuns.
No Brasil, a formação dos primeiros museus desse gênero remonta ao final do século
XVIII. A criação do Museu Real (depois Imperial e Nacional), em 1818, é um marco
importante, que teria consequências em diversos campos científicos e em diversas províncias
do nascente Império do Brasil. O Grão-Pará foi uma delas, onde intelectuais conectados, a um
só tempo, com a administração central do império e com redes internacionais de instituições e
viajantes criaram, em 1866, o Museu Paraense (MP), atual Museu Paraense Emílio Goeldi
(MPEG). De acordo com Sanjad, a visita de Louis Agassiz à Amazônia e a organização da
Segunda Exposição Provincial de Produtos Agrícolas e Industriais foram definitivas para a
fundação do MP3. O cientista suíço radicado nos Estados Unidos, convidado de honra da
exposição, sugestionou a pertinência de um museu de história natural na região, ideia essa que
foi acolhida e relançada ao debate público por Domingos Soares Ferreira Pena. Formou-se,
1
O tema da institucionalização das ciências no Brasil possui uma vasta bibliografia. Citamos alguns trabalhos:
FIGUEIRÔA, Silvia F. de M. Mundialização da ciência e respostas locais: sobre a institucionalização das
ciências naturais no Brasil (de fins do século XVIII à transição ao século XX). Asclepio, v. 50, n. 2, p. 107-123,
1998; GUALTIERI, Regina Cândida Ellero. Evolucionismo no Brasil: ciências e educação nos museus, 18701915. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2008; LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa
científica. Brasília: Editora UnB, 2009; SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos,
bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro. Editora Fiocruz. 2006; CARULA, Karoline.
Darwinismo, raça e gênero: projetos modernizadores da nação em conferências e cursos públicos (Rio de
Janeiro, 1870-1889). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016; MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo
Ventura. Raça como questão: História, Ciência e Identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ,
2010.
2
LOPES, Op. Cit., 2009.
3
SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907).
Brasília: Instituto Brasileiro de Museus; Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2010.
15
então, em outubro de 1866, a Associação Filomática, cujo objetivo consistia na criação de um
museu de história natural e de “artefatos indígenas” no Pará – que servisse à instrução
pública.
A aliança com o presidente da província Pedro Leão Vellozo e com o vice-presidente
Antonio Lacerda Chermont foi fundamental para a instalação do Museu Paraense. À época, o
argumento que sustentava o financiamento público à instituição museológica baseava-se no
progresso econômico, no sentido de que a “divulgação dos produtos naturais da província
contribuiria para incentivar a agricultura e a diversificação das exportações”.4 Ferreira Penna
e seu grupo também usaram pressupostos de cunho regionalista que pretendiam manter em
Belém um local de referência para a conservação e exposição de coleções, como reação aos
interesses estrangeiros pelos produtos regionais5.
Após cinco anos da fundação da Associação, o presidente da província Joaquim Pires
Machado Portella transformou o Museu Paraense em instituição pública, contando com o
naturalista Ferreira Penna no cargo de diretor. Em março de 1871, ocorreu a instalação oficial
do Museu Paraense e da Biblioteca Pública, na qualidade de departamentos públicos, no
prédio do Liceu Paraense. O acervo do museu, quando da abertura, resumia-se a artefatos
etnográficos e arqueológicos reunidos pelo próprio diretor, uma coleção de minerais da
Europa, uma coleção de serpentes e vários objetos doados pelo naturalista Joseph Beal Steere.
O acervo incipiente do Museu Paraense foi incrementado ao longo de alguns anos
mediante coletas feitas em viagens pelo interior do Pará pelo próprio Ferreira Pena e por
doações de intendentes de cidades e vilas amazônicas, governos provinciais, de membros da
elite e de outros museus de história natural – sofrendo também descréscimos por conta de
empréstimos a instituições nacionais6. Todavia, como outras instituições brasileiras,
atravessou dificuldades para a sua manutenção nos últimos anos do Império, como a carência
de pessoal qualificado, falta de verbas, problemas nas instalações etc. Em 1889, o museu foi
declarado extinto pela Assembleia Provincial, mas a lei votada não foi aplicada em razão da
proclamação da República, em novembro.
4
SANJAD, 2010, p.57.
SANJAD, Nelson. “Ciência de potes quebrados”: nação e região na arqueologia brasileira do século
XIX. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 19, n. 1, p. 133-164, 2011.
6
Conferir: MELO, Josiane Martins. Objetos em Trânsito: A Musealização de Artefatos Arqueológicos no
Museu Paraense Emílio Goeldi (1866-1907). 2017. Dissertação (Mestrado em História Social) - Programa de
Pós-graduação em História, Universidade Federal do Pará, Belém, 2017; AMORIM, Lilian Bayma de. Dois
Museus e Uma Coleção: deslocamentos, disputas e identidades na trajetória de objetos arqueológicos da cultura
marajoara. Tese (Doutorado em Museologia e Patrimônio) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, 2019.
5
16
Após o advento da República, o Museu Paraense foi reinstalado em um novo prédio. A
reabilitação da instituição foi motivada por seu papel político e pedagógico para a “reforma
do povo”, liderada pelo então diretor de Instrução Pública José Veríssimo, que procurava
infundir na população paraense preceitos de patriotismo, cientificidade e civilidade, os ideais
do novo regime republicano. Na reinauguração do Museu Paraense em 1891, Verissimo
discursou perante o governador Bacellar Pinto Guedes, fixando de forma nítida a instituição
como parte dos ideais republicanos, como ao declarar que, “como elemento de instrucção
popular, um Museu é uma eloqüente, instructiva e interessante, para falar a linguagem
pedagógica, lição das coisas”7.
Em outubro de 1893, Lauro Sodré escreveu para Veríssimo, que estava no Rio de
Janeiro, solicitando que convidasse para assumir a direção do Museu Paraense o zoólogo
suíço Emílio Goeldi (1859-1917), que já havia trabalhado no Museu Nacional do Rio de
Janeiro e de onde se afastou em 1890. A negociação perdurou até o ano seguinte, quando
Sodré anunciou na Mensagem enviada ao Congresso do Pará, no dia 7 de abril de 1894, a
contratação de Goeldi8.
A partir 1894, com o apoio do governo republicano de Sodré e de seus sucessores, e
com a chegada do zoólogo suíço Emílio Goeldi para assumir o cargo de diretor, a instituição
passou por um período de reformas físicas e administrativas, de ampliação e qualificação no
quadro de pesquisadores e de grande expansão de suas coleções. Essa reestruturação do
museu atendeu ao desejo do meio acadêmico internacional, principalmente centro-europeu,
que buscava ter acesso à região amazônica para formar coleções e abrir campo para realizar
seus trabalhos9 e também aos anseios políticos de uma elite local, enriquecida pelo boom da
borracha10, por modernização e por progresso.
7
VERÍSSIMO, José. Discurso pronunciado por José Veríssimo, Diretor geral da Instrução Pública perante o
Governador do Estado, Capitão Tenente Bacellar Pinto Guedes, por ocasião de se inaugurar o museu, restaurado
em 13 de maio de 1891. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, Belém, v. 1, n. 14, 1896, p.7.
8
SODRÉ, Lauro. Mensagem dirigida pelo Sr. Governador Dr. Lauro Sodré ao Congresso do Estado do Pará em
7 de abril de 1894. Belém: Typ. do Diário Official, 1894a.
9
SANJAD, Op. Cit., 2010; ____. Nimuendajú, a Senhorita Doutora e os “etnógrafos berlinenses”: rede de
conhecimento e espaços de circulação na configuração da etnologia alemã na Amazônia no início do século
XX. Asclepio, [S.l.], v. 71, n. 2, p. p273, nov. 2019. ISSN 1988-3102. Disponível em:
<http://asclepio.revistas.csic.es/index.php/asclepio/article/view/901>.
Acesso
em:
14
ago.
2020.
doi:http://dx.doi.org/10.3989/asclepio.2019.14.
10
A partir da década de 1870 até primeiras décadas do XX ocorreu o auge da exploração da borracha na
Amazônia. O excedente de capital fruto dessa economia possibilitou o estado do Pará de aumentar os
investimentos em diversos setores, como os de infraestrutura e instrução pública. A capital paraense, nesse
período, era o maior porto de escoação da goma elástica da região amazônica, e passou por muitas
transformações nos espaços públicos, na vida privada e nas relações das classes sociais, possibilitadas pelo
originário da economia da borracha In: WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e
17
Sanjad11 defendeu a tese de que o advento da República e o regime federalista
implementados no país foram fundamentais para a história do Museu Paraense Emílio Goeldi.
O historiador argumenta que o ambiente político possibilitou que
uma instituição estadual, com graves dificuldades de manutenção, fisicamente
distante do centro político do país e desde sua origem especializada nos estudos
sobre uma região que já se configurava, na segunda metade do século XIX, como
12
fronteira econômica, se destacasse no cenário científico brasileiro .
Emílio Goeldi modificou o nome da instituição para Museu Paraense de História
Natural e Etnografia e foi seu diretor de 1894 a 1907. Teve autonomia e recebeu o apoio dos
governos republicanos no Pará para conectar a instituição com os principais centros
científicos europeus e norte-americanos. Desde o período colonial, a capital paraense era
porta de entrada de naturalistas e viajantes estrangeiros na região amazônica. No entanto, a
partir dos anos finais do século XIX e durante as primeiras décadas do século XX, tornou-se
também um ponto de conexão relevante nas redes científicas internacionais, em razão da
ligação do Museu Paraense como as instituições congêneres do Velho Mundo. Por conta
disso, houve um intercâmbio de informações, pesquisadores, publicações científicas,
espécimes da fauna e flora amazônicas e cultura material entre a instituição paraense e outros
museus.
Além de inserir o MP nas redes científicas internacionais e arregimentá-lo nos ditames
vigentes da ciência do final do XIX e início do XX, Goeldi buscou consolidar um programa
de estudos científicos dedicados à História Natural, à Etnografia e Arqueologia da
Amazônia13. Conforme o novo Regulamento do Museu Paraense, os meios para um projeto
científico claro e coerente residiriam em três pilares: realização de conferências públicas pelos
pesquisadores do museu; divulgação dos trabalhos por meio de publicações; e por fim,
formação de coleções cientificamente organizadas14. No mesmo documento, as seções
científicas foram divididas em quatro: 1ª Zoologia e ciências anexas (anatomia e embriologia
comparadas); 2ª Botânica e ramos anexos; 3ª – Geologia, paleontologia e mineralogia; 4ª
Etnologia, arqueologia e antropologia.
O Museu seguiria um perfil regional, voltado para estudos amazônicos, o que estava
em conformidade com a Lei nº 199, de 26 de junho de 1894, e o Regulamento do mesmo ano,
decadência (1850-1920). São Paulo: Hucitec/ EdUSP, 1993; SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo
a Belle Époque. Belém: PakaTatu, 2002.
11
SANJAD, 2010.
12
Ibid., p. 17.
13
GUALTIERI, 2008; SANJAD, 2010.
14
SODRÉ, 1894a, p. 205.
18
ambos instituídos pelo governador Lauro Sodré. O primeiro artigo deste último assinalou os
objetivos do museu: “[...] o estudo, o desenvolvimento e a vulgarização da História Natural e
Etnologia do Estado do Pará e da Amazônia em particular e do Brasil, da América do Sul e do
continente americano em geral”15. De acordo com Goeldi16, o Museu Paraense não almejava
“[...] nem o elefante da India, nem a girafa do continente negro. Queremos o que é nosso, o
amazônico, o paraense [...]”.
No entanto, como aponta Gualtieri17, o enfoque regional no museu estava apenas nas
populações, na fauna e na flora, “tudo o mais seria construído ou concebido com base em
referenciais europeus”. Como exemplo, a instituição teve vinte e nove cientistas e técnicos em
seu corpo científico, a maior parte de naturalidade centro-europeia e com alto grau de
formação acadêmica, que foram arregimentados nas universidades de Basel, na Suíça, e em
outras quatro do Império Alemão, tais como Strassburg, Giessen, München e Freiburg18.
O artigo 19 do citado regulamente requeria um pesquisador com formação completa
em “[...] universidades onde o ensino das sciencias naturaes ocupe um lugar notoriamente
proeminente”. Essa exigência estabelecia uma preferência por cientistas estrangeiros, pois,
como argumentou Corrêa19, “a formação exigida pelo regulamento só poderia ser encontrada
fora do país e especialmente na Europa”.
As tendências teóricas dos pesquisadores do museu, incluindo seu diretor, estavam em
clara sintonia com a ciência praticada em estabelecimentos congêneres centro-europeus, não
raro, se distanciando de debates em voga no meio intelectual e museológico nacional20.
Contudo, em razão do período de trabalho, fim do século XIX e início do XX, há por parte de
alguns estudos historiográficos certa tentativa de conectar diferentes tradições científicas a um
ideário em voga no país, o que tem gerado distorções e problemas na interpretação histórica,
como incluir Emílio Goeldi entre os naturalistas seguidores do darwinismo social21.
15
SODRÉ, Lauro. Regulamento do Museu Paraense, 2 de julho 1894. Boletim do Museu Paraense de História
Natural e Etnografia, v. 1, n. 1, set. 1894b,p.22.
16
GOELDI, Emílio. Relatório apresentado pelo Director do Museu Paraense ao Sr. Dr. Lauro Sodré, Governador
do Estado do Pará. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, v. 1, n. 3, 1895, p.222.
17
GUALTIERI, 2010, p. 143.
18
SANJAD, 2019.
19
CORRÊA, Igor Nazareno da Conceição. A ciência da floresta: a institucionalização das ciências naturais no
estado do Pará (1894-1907). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo
Cruz,Casa de Oswaldo Cruz, 2017.
20
Ibid.; SANJAD, 2010.
21
De acordo Domingues, o darwinismo social, cujas ideias pouco seguiam os princípios apresentadas pelo autor
de A origem das espécies, “pretendia que os mecanismos da seleção darwiniana pudessem ser transferidos de
maneira válida às sociedades humanas (com ideias, tais como a de concorrência vital, a de luta pela vida ou a de
seleção natural)”. In: DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. O Darwinismo no Brasil, nas Ciências Naturais e na
Sociedade. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 21, n. 1 e 2, p. 114-137,2014.
19
Goeldi não era um seguidor desses pressupostos, tão pouco escreveu sobre temas
como miscigenação, raça e a possibilidade de civilização nos trópicos. Ele era um seguidor da
teoria do “recapitulacionismo” desenvolvida pelo evolucionista Ernst Haeckel, de quem havia
sido aluno em Jena, Alemanha. A influência desse autor sobre Goeldi pode ser observada nas
pesquisas publicadas no Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, como
no caso do artigo acerca da ave Cigana, no qual Goeldi especula sobre as possibilidades de
comprovar a citada teoria a partir do estudo do animal:
Porque damos importancia a esta descoberta de um par de garras nas azas da jovem
“Cigana”? – Respondemos com toda consciencia de nossa responsabilidade
scientifica, que é porque representa irrefutavelmente uma herança antiquissima dos
primeiros tempos da independencia, da individualisação da classe das Aves do
tronco comum entre Aves e Repteis. [...] É um dos documentos phylogeneticos dos
mais interessantes – nova e inesperada pedra de toque para a verdade da evolução e
da transformação, portanto logo [sic] tambem um objecto de justo embaraço e
perplexidade para aquelles, que julgam, que a sociedade humana lucra com a crença
22
na eterna e perpetua rigidez da especie .
Apesar disso, no livro O espetáculo das raças, Schwarcz23 chega a afirmar que o
diretor do Museu Paraense, enquanto naturalista, “era sobretudo um evolucionista convicto,
defensor da ideia da ‘perfectabilidade’ humana” e “seduzido pelas conclusões poligenistas”.
Essas hipóteses foram criticadas por Sanjad24 e Ferreira25, pois a antropóloga, além de atribuir
erroneamente um discurso feito por José Verissímo a Goeldi, apontou alguns autores como
sendo influentes no seu trabalho, mas que não podem ser encontrados em nenhum dos textos
publicados por Goeldi, tais como Lewis Henry Morgan, Herbert Spencer, Edward Burnett
Tylor e James George Frazer.
De tradição germânica, Emílio Goeldi dialogou, em seus trabalhos etnológicos, com
Adolf Bastian, Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Max Schmidt e Theodor KochGrünberg, autores que não podem ser colocados no mesmo pacote das proposições racistas e
evolucionistas sociais26. As ideias de Bastian e de outros americanistas arrolados estavam na
contramão do ideário desenvolvido pelos antropólogos franceses, norte-americanos e ingleses
do mesmo período. Diferentemente de outras vertentes científicas, nos trabalhos destes
etnólogos alemães a questão racial não era um problema central, mas sim o desenvolvimento
22
GOELDI, 1895b. p. 172-173.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 18701930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.113.
24
SANJAD, Nelson. Emílio Goeldi (1859-1917): a ventura de um naturalista entre a Europa e o Brasil. Rio de
Janeiro: EMC, 2009.
25
FERREIRA, Lúcio Menezes. Território Primitivo: a institucionalização da arqueologia no Brasil (18701917). Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2010.
26
SANJAD, 2009.
23
20
das culturas – que, para os autores, não era hierarquizado, mas multilinear, “espiralado”27. A
tradição bastiniana ressaltou as particularidades de cada cultura humana, com certo
relativismo, comparando-as no fundamento analítico.
Para os autores da Völkerkunde28, a etnologia alemã, era fundamental reunir a maior
quantidade de informações acerca dos povos por meio dos relatos de viagem, fotografias,
gravações de áudio e, em especial, da formação de coleções de cultura material. Os objetos
etnográficos e arqueológicos tinham um papel fundamental como expressão real da cultura
dos seus criadores, uma espécie de “cultura materializada”. Esta pesquisa parte do
pressuposto de que a etnologia alemã e as redes museológicas vigentes no século XIX e início
do XX influenciaram a formação do acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi até
o final do que Sanjad considerou como “anos germânicos” na instituição (1894-1921).29
A coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi
A formação da coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi está
intimamente ligada à história da instituição30. Os primeiros objetos etnográficos foram
adquiridos ainda na fase de Associação Filomática, após a publicação de cartas pedindo a
colaboração aos membros da elite das cidades e vilas do interior do Pará para a ampliação das
coleções da instituição31. Os artefatos que inauguraram a coleção abarcavam “vestimentas de
pennas e plumas, adufos ou tamborins, trombetas e tibicinas; armas de guerra; instrumentos
de caça e pesca, machados de pedra, tembetás de quartzo branco; ídolos de argila, e vasos de
barro”32. Ao logo do Império, outras peças foram recebidas pela instituição e acondicionadas
na sede, mas poucas chegaram à República em razão do confisco feito pelo Museu Nacional
por ocasião da Exposição Antropológica de 1882.33
27
BALDUS, Herbert. Adolf Bastian. In: Revista de Antropologia, v.14, São Paulo, 1966, p. 127; VIERTLER,
2017.
28
A utilização dos termos “antropologia”, “etnologia” e “etnografia” não é uniforme em todo o mundo. Na
Alemanha e em países que comungam da língua alemã, o termo Anthropologie era utilizado para designar
antropologia biológica e Völkerkunde – termo empregado pelos intelectuais e pesquisadores alemães para tratar
da “ciência dos povos” ou “ciência do estudo dos povos” – abarca as atuais antropologia social, antropologia
cultural e etnologia. In: VIERTLER, Renate Brigitte. Os fundamentos da teoria antropológica alemã:
etnologia e antropologia em países de língua alemã: 1700-1950. São Paulo: Annablume, 2017.
29
Cf. SANJAD ,2019.
30
VELTHEM, Lúcia Hussak van; TOLEDO, Franciza; BENCHIMOL, Alegria; ARRAES, Rosa; SOUZA,
Ruth. A coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi: memória e conservação. MUSAS: revista
brasileira de Museus e Museologia, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 121-134, 2004.
31
PENNA, Domingos Soares Ferreira. Archeologia e Ethnografia no Brazil. Boletim do Museu Paraense de
História Natural e Ethnografia, Belém, tomo 1, p.28-31, 1894.
32
Ibid., p. 19.
33
SANJAD, 2019; MELO, 2017; AMORIM, 2019.
21
Desde o século XVI, artefatos ameríndios vinham sendo alvo de coleta e
colecionamento. Os gabinetes de curiosidade, precursores dos museus de história natural e
etnografia, acumulavam espécimes dos três reinos da natureza e objetos da cultura humana
provindos de diversos continentes e separados, comumente, em duas categorias: naturalia,
produtos da natureza, e artificialia, objetos do engenho humano34. Nesse período, os artefatos
de cultura material “eram apreciados [...] muito mais por seu exotismo e pela raridade dos
materiais constituintes do que por suas qualidades estéticas”35. No século XIX, com a
disciplinarização da antropologia e a formação dos departamentos de antropologia e
etnografia nos museus, essa categoria de artefatos passa a ser chamada de etnográfica –
transformando seu status, sentido e funções no espaço museológico – e passam a ocupar mais
espaço nos museus36.
Foi o que ocorreu com o Museu Paraense. Em 1894, no início da gestão de Goeldi, o
acervo etnográfico contava com 291 peças e foi definido como pequeno e caótico. Goeldi o
criticou pela falta de organização no relatório ao Governador:
Mas encontrar umas 150 flechas, perto de uma dúzia de arcos, além de maracás,
remos, enfeites, de pennas, collares, machados de pedra, etc., tudo sem letreiro, nem
indicação alguma de proveniência? Isto é mais que funesto e quase disperta a
suspeição que houve quem tivesse um interesse especial de produzir
intencionalmente este estado chaotico, valendo-se do conhecimento da
circumstancia, que objetos ethnographicos de origem incerta pouco ou nenhum valor
37
possuem .
O diretor, por conta da sua experiência em outras instituições museais nacionais e
estrangeiras, enxergou a necessidade de enquadrar as coleções nas leis sistemáticas de
classificação da Etnografia e Antropologia do período. No mesmo relatório, ele confessou
que, dados o descaso e a desorganização em que se encontrava a coleção etnográfica, julgouse forçado “[...] em prol da probidade scientifica a encostar a maioria d'estes instrumentos de
índios ou a degradal-os a um uso meramente ornamental e principiar de novo”. Esse processo
de descarte e preocupação com o acervo do diretor pode ser compreendido como um
“‘esboço’ de política de preservação, pois Goeldi colocou em pauta questões cruciais para
entender o museu e as coleções naquele momento”, como destacou Josyane Mello38.
34
THOMPSON, Analucia. Objetos indígenas: do artificial ao imaterial. Antíteses, v. 7, n. 14, p. 258-281, 2014.
RIBEIRO, Bertha; VELTHEM, Lúcia H. van. Coleções etnográficas: Documentos materiais para a história
indígena e a etnologia. In: CUNHA, M. C. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1992,p.103.
36
THOMPSON, Op. Cit., 2014.
37
GOELDI, Emílio Augusto. Relatório sobre o estado do Museu Paraense apresentado a S. Exa. o Sr. Dr.
Governador do estado do Pará pelo diretor do museu, 28 de junho de 1894. Boletim do Museu Paraense de
História Natural e Etnografia, Belém,v. 1, n. 1, set. 1894, p.15.
38
MELO, 2017., p.89.
35
22
A partir de 1894, a coleção etnográfica passou a ser de responsabilidade da Seção
Etnográfica e Arqueológica, chefiada por Goeldi por falta de profissionais da área, como
lamentou em relatório de 1898:
Ainda está sem chefe scientifico próprio a quarta secção, a de Etnographia e
Archeologia, tendo sido até agora infructiferos os meus esforços para encontrar um
profissional de todo idôneo e disposto a vir para o Pará. Continuam vigorando,
porém, em conformidade com as instrucções do Governo relativamente a este
assumpto, as minhas incumbências e não perco a esperança, que esta Directoria
consiga ainda preencher a dita vaga com um elemento apropriado39
Durante quase toda a sua gestão, 1894 a 1907, ao elencar nos relatórios aos
governadores o pessoal científico do Museu, o zoólogo deixava claro o caráter provisório de
seu trabalho ao escrever que o chefe da aludida seção era “o diretor (provisoriamente)”40,
mesmo com anos na chefia do departamento, e a preocupação em obter um profissional
qualificado para o cargo em questão, que realizasse uma obra “melhor do que um mero
aglomerado fragmentario, debaixo do domínio do cego acaso”41. Dessa forma, o empenho não
residia apenas na obtenção de material, mas também no tratamento científico e metodológico
das coleções salvaguardadas.
Goeldi privilegiou, na alocação de recursos e postos de trabalho, a zoologia e a
botânica. Entretanto, ele realizou investigações de caráter etnológico, atendendo aos anseios
do governo e de intelectuais paraenses42, e empenhou-se no trabalho de ampliação da coleção,
incrementando novos objetos por meio de doações de políticos, viajantes, militares,
sertanistas, coletas dos próprios colaboradores da instituição e eventuais aquisições. É nesse
período que se inicia a prática, que perdura até o presente na instituição, de se referir às
coleções pelos nomes dos doadores. São os casos das coleções de Henri Coudreau (1898),
Lauro Sodré (1897), Paes de Carvalho (1898), Frei Gil de Vilanova (1902), Hugo Berta
(1905) e Theodor Koch-Grünberg (1905), todas incorporadas na gestão de Goeldi.
A Seção de Etnografia e Arqueologia teria seu primeiro chefe especializado apenas
com a contratação de Curt Unkel Nimuendajú em 1920, etnológo alemão residente em Belém
39
GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado ao Exmº Sr. Dr. Lauro Sodré, governador do estado do Pará, pelo
director do Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia, Belém, 2(1/4),
1898,p.270.
40
GOELDI, Emílio Augusto. Relatorio apresentado ao Sr. Dr. Secretario da justiça, interior e instrucção publica,
referente ao anno de 1902, pelo director do Museu. Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de Historia
Natural e Ethnographia, Belém, 4(1/4), 1906, p.508.
41
GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado pelo Director do Museu Paraense ao sr. Dr. Lauro Sodré, governador
do Estado do Pará, Janeiro de 1895. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia,v.1,
n.3,1896, p. 223.
42
SANJAD, Nelson; SILVA, João Batista Poça. Três contribuições de Emílio Goeldi (1859-1917) à arqueologia
e etnologia amazônica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 4, n. 1, p.,
jan.-abr. 2009.
23
desde 1913, atraído por um convite da então diretora Emília Snethlage para um exame das
coleções etnográficas e arqueológicas. Em 1921, Nimuendajú elaborou o primeiro inventário
das coleções da referida seção, o Catálogo das coleções etnográficas do Museu Goeldi,
listando ao todo 2.662 peças.43 Em outro inventário, também feito por Nimuendajú, com o
auxílio de Evalda Xavier Falcão, entre 1939 e 1940, contou-se 6.744 objetos. Na década de
1950, Eduardo Galvão reordenou a coleção, resultando no livro de Registro do material
etnográfico da Divisão de Antropologia, calculando 9.000 peças etnográficas e
arqueológicas44.
Conforme Benchimol, desde 1938, o acervo etnográfico e arqueológico do Museu
Paraense Emílio Goeldi é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), passando a pertencer à categoria de “Patrimônio arqueológico, etnográfico e
paisagístico”. Desde então, a coleção etnográfica vem sendo ampliada, chegando a mais de
15.000 objetos atualmente,45 todos acondicionados na Reserva Técnica Curt Nimuendajú.46
Coleções etnográficas e musealização
A presente dissertação é um trabalho historiográfico, mas buscou-se fundamentar
teórica e metodologicamente a investigação a partir do diálogo com a Museologia e a
Antropologia. Ao longo da pesquisa, alguns conceitos emergiram a partir das fontes
examinadas e outros instrumentalizaram a análise dos objetos, muitas vezes não familiares aos
historiadores. No âmbito das questões examinadas nesse empreendimento, cabe explicitar,
mesmo que superficialmente, os conceitos de coleção, objeto etnográfico e musealização que
nortearam diversas reflexões nessa escrita.
O termo coleção, de modo geral, “designa um conjunto ou reunião de objetos da
mesma natureza ou que têm qualquer relação entre si”47. No entanto, como salienta Pearce,
“[...] coletar é uma atividade tão complexa e tão humana para ser tratada sumariamente
43
BENCHIMOL, Alegria. Informação e objeto etnográfico: percurso interdisciplinar no Museu Paraense
Emílio Goeldi. 2009. 124 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação)-Universidade Federal Fluminense
e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (PPGCI/UFF/IBICT), Rio de Janeiro, 2009.
44
É importante frisar, as coleções arqueológicas e etnográficas somente foram separadas por Eduardo Galvão na
década de 1960.
45
GARCÉS, Claudia Leonor Lópes. “Las colecciones etnográficas del alto río Negro en el Museu Paraense
Emílio Goeldi: notas históricas y diálogos contemporâneos”. In: KRAUS, Michael; HALBMAYER, Ernst;
KUMELS, Ingrid (orgs.), Objetos como testigos del contacto cultural: perspectivas interculturales de la
historia y del presente de las poblaciones indígenas del alto río Negro (Brasil/Colombia). Berlim: IberoAmerikanisches Institut, 2018.
46
Reserva Técnica consiste no espaço dedicado ao armazenamento de artefatos museológicos não expostos “sob
rígido controle para sua conservação e salvaguarda”. In: VELTHEM et al, Op. Cit., 2004, p.123.
47
LOUREIRO, Maria L. N. M. Fragmentos, Modelos, Imagens: processos de musealização nos domínios da
ciência. Datagramazero - Revista da Ciência da Informação, v. 8, n. 2, paginação irregular, abr. 2007, p. 3
24
através de definições”, pois há diversos atributos significativos que compõem uma coleção48.
No presente trabalho, distante de visões universalistas e ahistóricas acerca do ato de
colecionar, compreende-se as coleções como “práticas polissêmicas”49. Essa noção possibilita
observar que a aludida prática, “apesar de recorrente em diversas culturas e tempos, tem
significado diverso, bem como diferentes razões práticas”50. Nessa perspectiva, o
colecionismo não é um fato natural, mas uma prática associada a contextos históricos e
sociais, ideologias, projetos e propósitos51. Passamos, então, ao conceito de objeto
etnográfico, sendo vinculado ao de coleção.
Velthem conceitou, a partir das ideias de Savary, e explicou o que representa esse tipo
de cultura material:
Para a compreensão do que representa um objeto etnográfico, é preciso destacar que
ele é criado em um contexto particular, referente a uma sociedade humana específica
onde está inserido em muitos planos: técnico, produtivo, estético, simbólico. Apesar
de possuir elementos de ligação, pois se trata igualmente de uma coisa, não se
confunde com o objeto industrial devido a determinadas características. Um objeto
etnográfico é o resultado de um trabalho manual, elaborado de acordo com materiais
e técnicas locais e cujo aspecto formal obedece a parâmetros da sociedade que o
produziu (Savary, 1989)52.
Nessa perspectiva, o objeto etnográfico é um artefato criado em um determinado
contexto, por uma sociedade humana específica, resultando do trabalho artesanal humano,
com técnicas específicas da comunidade produtora, a partir de elementos e matéria-prima
locais. Esses artefatos podem ser analisados por diferentes aspectos, considerando a matériaprima de que se originaram, os procedimentos de confecção, os significados artísticos e
cosmológicos para as culturas artífices, a vida social do campo ao museu e outros mais53.
O objeto etnográfico consolidou-se como tal, e assumiu o status que possui
atualmente, a partir do seu trânsito do contexto primário para o museu54, onde passou a ser
preservado e é recontextualizado e re-significado, desvencilhando-se de “de uma realidade
48
PEARCE, Susan M. Interpreting objects and collections. New York: Routledge, 2003, p.159.
MAGALHÃES, Aline M; BEZERRA, Rafael Z. (Orgs.) Coleções e colecionadores: a polissemia das práticas.
Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2012.
50
Ibid., p. 10.
51
OLIVEIRA, Ana Cristina Audebert Ramos de. Colecionismo a partir da Perspectiva de Gênero. Museologia &
Interdisciplinaridade, [S.
l.],
v.
7,
n.
13,
p.
15–30,
2018..
Disponível
em:
https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/17753. Acesso em: 15 jun. 2021.
52
VELTHEM, Lucia Hussak van. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises.
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 7, n. 1, jan.-abr. 2012, p.53.
53
ABREU, Regina. Tal Antropologia, qual museu? In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário; SANTOS, Myrian
Sepúlveda (Org.). Museus, coleções e patrimônios: narrativas polifônicas. Rio de Janeiro: MinC; IPHAN;
DEMU, 2007
54
PEARCE, Op. Cit., 2003.
49
25
imediata para remeter e evocar realidades ausentes”55. De acordo com Desvallées e
Mairesse56, o conceito tradicional de objeto museológico relaciona-se necessariamente ao
processo de musealização, tema importante da Museologia, entendido como “extração, física
e conceitual, de uma coisa do seu meio natural ou cultural de origem”, o que opera “uma
mudança do estatuto do objeto”. E, “uma vez dentro do museu, assume o papel de evidência
material ou imaterial do homem e do seu meio, e uma fonte de estudo [...]”. Loureiro57
também salienta a transformação do objeto em documento durante a musealização, que, para a
autora, consiste no “conjunto de ações caracterizadas pela separação/deslocamento do
contexto original e privação das funções de uso de alguns objetos, que passariam a
desempenhar a função de documentos”.
Nesse mesmo sentido, comenta Analucia Thompson:
O estudo histórico da formação e da trajetória de uma coleção sob a guarda de um
museu permite tornar visíveis sua singularidade e seu sentido, ao explicitar as
relações sociais e políticas que a tornaram possível. E, ao mesmo tempo, abre espaço
para que aquilo que estava esquecido possa ser lembrado em novas situações, em
outros usos e por outros sujeitos, cuja memória pode ser acionada, não só pelos
objetos guardados no museu, mas também pelas histórias que neles estão penetradas
e, ao mesmo tempo, esquecidas58.
Como destacado, os objetos e as coleções etnográficas são documentos, testemunhos
das relações interculturais que as originaram, dos sentidos e das práticas envoltas em sua
fabricação e seleção. Ao estuda-las, deve-se investigar os agentes participantes – produtores,
intermediários, financiadores, diretores de museus, políticos etc –, os contextos políticos e
sociais do campo, as redes e os sentidos presentes durante a coleta e o registro e exposição
dos objetos, assim como as mudanças de significado e status que ocorrem no processo59.
Museus e coleções como objetos da história
Nas últimas três décadas, estudos acerca das instituições e expedições científicas na
Amazônia da segunda metade do século XIX e início do XX têm ganhado destaque face às
muitas possibilidades da pesquisa histórica. Desde a década de 1990, o Museu Paraense e seus
pesquisadores têm sido cada vez mais analisados em artigos, dissertações e teses por diversos
55
LOUREIRO, Maria Lucia de Niemeyer Matheus; LOUREIRO, José Mauro Matheus. Documento e
musealização: entretecendo conceitos. MIDAS. Museus e estudos interdisciplinares, n. 1, 2013,p.7.
56
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos chave da museologia. Paris: Armand Colin, ICOM.
2013, p. 57.
57
LOUREIRO, Op. Cit., 2007.
58
THOMPSON, Analucia. Coleções Etnográficas e Patrimônio Indígena. In: XXVII Simpósio Nacional de
História da ANPUH: Conhecimento histórico e diálogo social. Natal, Brasil, 2013, p. 1
59
Byrne, S; Clarke, A; Harrison, R; Torrence, R. (orgs). Unpacking the Collection. Networks of Material and
Social Agency in the Museum. New York, Heidelberg, Dordrecht & London: Springer, p. 3–26, 2011.
26
pesquisadores, com a finalidade de responder a problemas diversos. Destacam-se,
primeiramente, os estudos de Lopes60 e Gualtieri,61 que investigam – por meio de abordagens
comparativas de museus brasileiros – os modelos institucionais e a recepção das teorias
evolucionistas nesses espaços. Sanjad também tem realizado investigações no campo da
História da Ciência a respeito da construção institucional, da agenda científica, das relações
sociais, da circulação de conhecimentos e das contribuições dos pesquisadores que atuaram no
Museu Paraense no final do século XIX e início do XX62. Apontamos, ainda, trabalhos mais
recentes que investigaram a produção científica e o acervo do Museu Paraense, como os de
Corrêa63 e Machado,64 que investigaram, nessa ordem, a institucionalização e o ensino das
Ciências Naturais no Pará a partir da produção científica da instituição.
A história da coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi não é um tema novo. As
coleções etnográficas e arqueológicas da instituição têm sido estudadas, do ponto de vista
histórico, com alguma regularidade, desde os anos 1970. Contudo, mais recentemente
ganharam em amplitude e complexidade, sobretudo a partir das análises de Velthem et al.65,
Velthem, Pereira e Galucio66, Velthem e Guapindaia67, Benchimol,68 Melo,69 Amorim,70
López-Garcés71 e López-Garcés e Karipuna72. Benchimol,73 por exemplo, visou compreender
60
LOPES, 2009.
GUALTIERI, 2008.
62
Nelson Sanjad possui uma grande produção acerca da História da Ciência na Amazônia e sobre o Museu
Paraense, destacamos: SANJAD, 2010; _____, 2019; ;____; SILVA, J. B. P. Op. Cit., 2009.
63
CORRÊA, Igor Nazareno da Conceição. A ciência da floresta: a institucionalização das ciências naturais no
estado do Pará (1894-1907). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo
Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, 2017.
64
MACHADO, Diego Ramon Silva. A “lição de coisas”: o Museu Paraense e o ensino da história natural
(1889-1900). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Educação Matemática e
Científica, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática, Belém, 2010.
65
VELTHEM et al, 2004.
66
VELTHEM, Lúcia H. van; PEREIRA, Edithe; GALÚCIO, Ana Vilacy. Acervos culturais do Museu Paraense
Emílio Goeldi: 150 anos de história e perspectivas futuras. In: GALÚCIO, Ana Vilacy; PRUDENTE, Ana Lucia
(org). Museu Goeldi:150 anos de ciência na Amazônia, p. 274-292, 2019.
67
VELTHEM, Lucia Hussak Van; GUAPINDAIA, Vera. Patrimônios entrelaçados: coleções arqueológica e
etnográfica. In: VELTHEM, Lucia Hussak Van et al. Reencontros: Emílio Goeldi e o Museu Paraense. Belém:
MPEG, 2006. p. 26-37.
68
BENCHIMOL, 2009.
69
MELO, 2017.
70
AMORIM, 2019.
71
GARCÉS, Claudia Leonor Lópes. “Las colecciones etnográficas del alto río Negro en el Museu Paraense
Emílio Goeldi: notas históricas y diálogos contemporâneos”. In: KRAUS, Michael; HALBMAYER, Ernst;
KUMELS, Ingrid (orgs.), Objetos como testigos del contacto cultural: perspectivas interculturales de la
historia y del presente de las poblaciones indígenas del alto río Negro (Brasil/Colombia). Berlim: IberoAmerikanisches Institut, 2018.
72
GARCÉS, Claudia Leonor Lópes; KARIPUNA, Suzana Primo dos Santos. “Curadorias do invisível”:
conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi. Museologia &
Interdisciplinaridade,
v.
10,
n.
2021,
p.
103.
Disponível
em:
https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/35492. Acesso em: 14 jun. 2021.
73
BENCHIMOL, 2009.
61
27
a organização da coleção etnográfica do Museu Goeldi em três momentos da sua história –
quando esteve sob a gerência de Nimuendajú, Galvão e Velthem. Em outro trabalho,
Benchimol e Guerra74 estudaram a gênese coleção Aparai de Curt Nimuendajú. Por sua vez,
Domingues-Lopes75, Velthem76 e Chaves77 analisaram as coleções Xikrín do Cateté,
Mebêngôkre-Kayapó e Tukano, respectivamente. Todavia, por conta da sua perspectiva
antropológica, López-Garcés, Domingues-Lopes, Velthem e Chaves desvelaram os usos e os
significados de objetos etnográficos não só para sociedades do passado, mas para as
populações atuais dos povos estudados.
Mais próximo do estudo que Melo78 realizou sobre a coleção arqueológica do Museu
Paraense, o presente trabalho trata da musealização da coleção etnográfica da instituição entre
1894 e 1905, buscando contribuir, como um todo, para os estudos acerca da etnografia
indígena no século XIX e início do XX. O tema é aqui abordado como prática científica
composta por diversos sentidos, contextos e significados, distante das teorias totalizantes e
longe de ser protagonizada apenas pelo coletor/colecionador. Essa prática está inserida em
redes colaborativas e em contextos políticos e sociais distintos, associada a diferentes
perspectivas religiosas, filosóficas e científicas.
A compreensão das coleções como um empreendimento coletivo segue uma tendência
das últimas décadas nos estudos históricos e sociais, no sentido de ressaltar a prática e a
sociabilidade como aspectos fundamentais na produção de conhecimento, revisitando a
atuação de agentes e redes antes invisíveis ou colocados em segundo plano79. De acordo com
Burke80, essa mudança de enfoque se relaciona com o surgimento da Nova História Cultural,
74
GUERRA, Claudia Bucceroni; BENCHIMOL, Alegria. Dois momentos da coleção Aparai no Museu
Paraense Emílio Goeldi: Curt Nimuendajú em 1915 e Otto Schulz-Kampfhenkel em 1935-37.Museologia e
Patrimônio. vol.10, no2, p.92-116. 2017.
75
DOMINGUES-LOPES, Rita de Cássia. Desvendando significados: contextualizando a Coleção Etnográfica
Xikrín do Cateté. Dissertação de Mestrado em Antropologia/UFPA, Belém, 2002.
76
VELTHEM, Lúcia Hussak. Plumária Tukano: tentativa de análise. Boletim do Museu Paraense Emílio
Goeldi. Nova Série, Antropologia. Belém, p. 1-29, fev. 1975.
77
CHAVES, Carlos Eduardo. Nas trilhas de Irã Ãmrãnh: sobre história e cultura material Mebêngôkre. 2012.
176 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2012.
78
MELO, 2017.
79
Alguns estudos recentes que abordam a temática: RAJ, Kapil. Networks of knowledge, or spaces of
circulation? The birth of British cartography in colonial south Asia in the late eighteenth century. Global
Intellectual History, v. 2, n. 1, p. 49-66, 2017; RAJ, Kapil. Relocating and the Construction of Knowledge in
South Asia and Europe, 1650-1900. New York: Palgrave Macmiliam, 2007; ANTUNES, Anderson Pereira.
Um naturalista e seus colaboradores na Amazônia: a expedição de Henry Walter Bates ao Brasil (18481859). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde – Fiocruz). Casa de Oswaldo Cruz, 2019;
SANTOS, Rita de Cássia Melo. Sobre crânios, idiomas e artefatos indígenas: o colecionismo e a História Natural
na viagem de Johann Natterer ao Brasil (1817-1835). Sociedade e Cultura, v. 21, n. 1, 2018; CAMERINI, Jane.
Wallace in the field. Osiris, 2nd series, v. 11, Science in the field. p. 44-65, 1996.
80
BURKE, Peter. O que é história cultural? 2ª edição revista e ampliada. Tradução de Sérgio Goes de Paula.
Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
28
isto é, a atenção vem se movendo “dos indivíduos heroicos e suas grandes ideias” em direção
às “contribuições dos artesãos que fizeram os instrumentos científicos e dos assistentes de
laboratório que, na verdade, realizaram os experimentos”81.
Nesse sentido, a formação e a musealização das coleções etnográficas não podem ser
compreendidas como simples frutos das singulares escolhas estéticas dos coletores ou das
demandas das instituições financiadoras. Elas são, de fato, um empreendimento coletivo,
desenvolvido em diferentes etapas, em contextos complexos e com a contribuição de diversos
sujeitos que interagem em relações assimétricas, muitas vezes tornados invisíveis ou
secundarizados nas publicações científicas e na historiografia.
Objetivo
O objetivo do presente trabalho é estudar o processo de musealização de quatro
coleções etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), denominadas Lauro Sodré
(1897), Henri Coudreau (1898), Frei Gil de Vilanova (1902) e Theodor Koch-Grünberg
(1905). Essas quatro coleções foram escolhidas pela importância que possuem no acervo
etnográfico do MPEG e por terem sido adquiridas em um período em que a instituição visava
se consolidar no cenário científico internacional, sob a liderança de Emílio Goeldi. Essas
coleções, de certa maneira, representam três realidades distintas vivenciadas por viajantes e
povos indígenas na Amazônia do final do século XIX e início do XX: as duas primeiras foram
formadas por um explorador francês a serviço do governo do Pará; a terceira, por um frade
dominicano que criou uma missão religiosa no rio Araguaia com a finalidade de evangelizar
os indígenas locais; e a quarta, por um etnólogo alemão a serviço do Königliches Museum für
Völkerkunde, o mais importante museu etnográfico da época. Os três coletores estiveram em
contato com distintos povos indígenas, em contextos complexos, mas que estão conectados
por pessoas, ideias e instituições.
O recorte temporal desta pesquisa justifica-se pela importância da gestão de Emílio
Goeldi no Museu Paraense, o qual teve relevante papel na reestruturação e no aumento
quantitativo da coleção etnográfica da instituição. Ele inicia com a chegada de Goeldi ao
museu, em 1894, e finda com a entrada, em 1905, da última grande coleção adquirida em sua
gestão, a de Theodor Koch-Grünberg. Goeldi participou diretamente da aquisição das três
coleções, seja solicitando a intervenção de Lauro Sodré junto a Henri Coudreau, seja
81
BURKE, 2008, p. 81-82.
29
angariando e negociando recursos financeiros para a compra das grandes coleções de Frei Gil
de Vilanova e de Koch-Grünberg, ambas com mais de 500 peças.
Metodologia
Marc Bloch82, no livro Apologia da História, foi conclusivo ao escrever que “em
contraste com o conhecimento do presente, o do passado seria necessariamente indireto”. O
historiador investiga o passado por meio de testemunhas e vestígios, entendidos como fontes
históricas. As fontes consistem não apenas de documentos oficiais ou escritos. O próprio
Bloch dilatou as possibilidades metodológicas da pesquisa histórica quando afirmou: “tudo o
que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre
ele”83. À medida em que ocorreram novas propostas teóricas e metodologias no campo
historiográfico, houve igualmente o alargamento dos tipos de fontes a serem utilizados.
No entanto, os documentos históricos não falam e não respondem problemas por si
mesmos, assim como não são testemunhos integrais e puros dos eventos tais como
aconteceram; são, de fato, representações dos eventos históricos. É ofício do historiador se
deslocar aos arquivos com suas questões e problemas e desenvolver o conhecimento histórico
através da interpretação e da crítica documental84.
É o que este trabalho pretende fazer a partir de uma pesquisa qualitativa de caráter
documental e bibliográfico. Em razão das questões levantadas a respeito da musealização das
coleções etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e do recorte temporal, na
presente dissertação são usadas, principalmente, fontes históricas produzidas no final do
século XIX e início do XX, como o Boletim do Museu Paraense de História Natural e
Etnografia; cartas dos diretores e colaboradores do MPEG; jornais; relatórios e ofícios
governamentais; livros de viagem, como os de Henri Coudreau e Theodor Koch-Grünberg;
biografias, como a de Frei Gil de Vilanova, escrita por Gallais;85 artigos publicados em
revistas científicas estrangeiras; e os inventários da coleção etnográfica da referida instituição.
As coleções também foram pensadas como fontes históricas, analisando e comparando as
diferentes formas de coleta, as suas estruturas e a diversidade de artefatos que as compõem86.
82
BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001. p. 69.
83
Ibid., p.79
84
REIS, José Carlos. O lugar da teoria-metodologia na cultura histórica. Revista de Teoria da História, ano 3,
n. 6, dez/2011, pp. 4-26.
85
GALLAIS, Estevão. O Apóstolo do Araguaia: Frei Gil missionário dominicano. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1942.
86
Em razão do fechamento do Arquivo Guilherme de La Penha e da Reserva Técnica Curt Nimuendajú para
consulta local de fevereiro de 2020 até o presente momento, junho de 2021, não foi possível realizar uma
pesquisa empírica das coleções Frei Gil de Vilanova e Theodor Koch-Grünberg como intencionávamos, bem
como ao Livro de Tombo da Coleção Etnográfica.
30
As fontes acima destacadas foram utilizadas a partir da crítica documental e do
cruzamento com a bibliografia pertinente. Nesse trabalho, compreendo que os documentos
históricos são também monumentos. Como afirmou Le Goff87, todo documento, enquanto
evidência de uma realidade, é um monumento, visto que há uma intenção de perpetuação –
voluntária ou não – de uma memória coletiva. Nessa perspectiva, compreendo que as fontes
utilizadas na pesquisa, enquanto documentos e monumentos, resultam da ação das sociedades
humanas para resguardar e impor ao futuro, de forma consciente ou não, as imagens de si
mesmas.
Estrutura da dissertação
A presente dissertação desenvolveu-se em três capítulos, cada um tratando de uma
coleção. No primeiro capítulo, intitulado “Henri Coudreau: um coletor ocasional a serviço do
Estado do Pará”, foi analisado o processo de formação e musealização das coleções
etnográficas formadas por Henri Coudreau, viajante francês, durante as expedições a serviço
do Estado do Pará aos rios Xingu e Tapajós, entre 1895 e 1896, e que foram doadas mais
tarde ao Museu Paraense. Coudreau pertencia a uma geração de viajantes que transitaram pela
Amazônia no século XIX financiados pela elite e pelos governos locais. Objetiva-se no
capítulo compreender como a trajetória do coletor, sua participação em redes colaborativas, a
agência indígena e a interação dos agentes nos espaços sociais de contato concorreram para a
formação, aquisição e catalogação das coleções denominadas “Lauro Sodré” (1897) e “Henri
Coudreau” (1898) pelo MPEG.
O segundo capítulo, denominado “A coleção Theodor Koch-Grünberg (1905): um
Völkerkunder na Amazônia”, investiga a coleção formada pelo etnólogo alemão para o Museu
Paraense Emílio Goeldi (MPEG). No primeiro momento, aborda-se de forma sintética o
contexto etnológico e museológico alemão no final do século XIX e a trajetória, as
concepções e a produção científica de Koch-Grünberg. No segundo momento, tenciona-se
investigar a formação e musealização da coleção para além do protagonismo do etnólogo, mas
trazendo à luz os processos de negociação, as redes de colaboradores e a circulação de objetos
entre as populações ameríndias no Alto Rio Negro.
O último capítulo, intitulado “A Coleção Frei Gil de Vilanova: colecionismo e
catequese no início do século XX”, investiga a musealização de uma coleção formada por um
coletor não ligado aos museus ou à ciência, como os anteriores, e em circunstâncias também
87
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 547.
31
distantes. A coleção foi formada por um frade dominicano junto aos indígenas Irã Ãmranh
com o objetivo de vendê-la, visando à manutenção da catequização em Conceição do
Araguaia no início do século XX. Em razão disso, investigaremos a interação da esfera
religiosa, da política indigenista e do contexto econômico do Pará no período, assim como da
cultura Mebêngôkre-Kayapó e do colecionismo etnográfico vigente. A catalogação e o
inventário da coleção também são estudados.
32
Capítulo 1 – Henri Coudreau: um coletor ocasional a serviço do Estado do
Pará
Este capítulo abordará a musealização das coleções etnográficas formadas por Henri
Coudreau durante suas viagens a serviço do estado do Pará aos rios Xingu e Tapajós entre
1895 e 1896. As duas coleções foram doadas ao Museu Paraense de História Natural e
Etnografia durante a gestão de Emílio Goeldi (1894-1907) e atualmente são denominadas
coleções Lauro Sodré (1897) e Henri Coudreau (1898). O capítulo está dividido em quatro
tópicos. O primeiro objetiva apresentar brevemente a trajetória de Coudreau pelas Guianas e
pelo Pará, o envolvimento dele com o Contestado Franco-Brasileiro e aspectos das suas
expedições e produção científica. O segundo tópico abordará como as coleções de Coudreau
foram formadas, a participação das redes de colaboradores na aquisição dos objetos e também
quais os itens que as compõem atualmente. O terceiro tópico visa tratar do processo de
aquisição e catalogação, pelo Museu Paraense, das coleções formadas pelo viajante francês. O
quarto tópico analisará as coleções para além do protagonismo concentrado no coletor,
ressaltando a agência indígena e a interação de outros atores no processo de seleção e rejeição
dos objetos.
1.1 As expedições de Henri Coudreau: das Guianas ao Pará
Os relatos de Henri Coudreau tornaram o viajante francês conhecido nacional e
internacionalmente. Coudreau foi um homem preocupado com o trabalho em campo,
executando o papel do explorador-viajante e divulgador dos povos e da natureza amazônicos.
Esteve por quase vinte anos expedicionando pelos rios e pelas terras da região, entrando em
contato com quilombolas, ribeirinhos, coronéis, seringueiros e índios, merecedores de páginas
importantes de suas obras.
Como afirmou seu biógrafo, Sebastian Benoit88, a vontade de viajar pelo mundo
acompanhou Coudreau desde muito cedo. Nascido em 6 de maio de 1859, em Sonnac, região
de Charentes-Maritimes, tentou por inúmeras vezes uma vaga para alguma expedição
científica, inclusive na Missão de Paul Flatters89, desejo que só pode executar após ser aceito
88
BENOIT, Sébastien. Henri Anatole Coudreau (1859-1899): dernier explorateur français en Amazonie. Paris:
L’Harmattan, 2000.
89
Em 1879, o governo francês iniciou o projeto que ligaria a Argélia ao Sudão Francês, atual Mali. O tenentecoronel Paul Flatters conduziu duas missões entre 1880 e 1881. As duas expedições fracassaram após sucessivos
ataques da sociedade Kel Tamacheque. Flatters foi morto e, dos 97 membros da missão, apenas dez chegaram
vivos (e nenhum deles era francês). Para saber mais, ver: ADNANE, Mahfouz Ag. Pulular sob o rolo
33
para lecionar História e Geografia no Lycée de Cayenne, atual “Collége Eugène Nonnon”, em
1881, aos 21 anos.
A formação de Coudreau deu-se na École Normale Spéciale de Cluny, na França.
Contudo, o cargo de professor era só um meio para atingir seus objetivos maiores, como ele
mesmo narrou: “no dia em que entrei na Escola Normal Especial, eu discorri longamente ao
diretor que o meu destino não apontava à educação. Ensinar é nada mais que um meio para
mim. O objetivo vislumbrado são as missões científicas. E isto se passou em novembro de
1877!”90.
Entre 1883 e 1885, autorizado pelo subsecretário de Estado para as colônias, realizou a
sua primeira missão científica, que deveria se deter na região do Contestado FrancoBrasileiro, entre os rios Oiapoque e Araguari, mas que, por sua indisciplina, se estendeu a
Macapá e ao rio Amazonas até o rio Uaupés, na fronteira com a Colômbia. De 1887 até 1889,
duas missões encomendadas pelo Ministério de Instrução Pública possibilitaram que
Coudreau explorasse as nascentes dos rios Maroni e Oiapoque. Em 1888, chegou ao
Tumucumaque, região aurífera considerada o éden guianense, conhecida até então apenas
pelas descrições de Walter Raleigh e Jules Nicolas Crevaux91. Outras expedições foram
realizadas, ainda patrocinadas pelo governo francês, pelos rios Branco e alto Trombetas. Essas
excursões resultaram todas na publicação de livros, artigos e mapas, que foram difundidos no
meio político e científicos europeus.
Coudreau pertenceu a uma geração de viajantes exploradores franceses que, a partir do
século XIX, adentrou o território amazônico, financiada pelo governo daquele país, pelas
elites locais ou ainda por instituições científicas, com os mais diversos objetivos, como a
demarcação de fronteiras, a identificação e o estudo de aspectos geográficos, zoológicos,
botânicos, mineralógicos e da população da região, principalmente a indígena.
Não havia formação acadêmica para se tornar um explorador, logo, era um trabalho
que se aprendia na prática e que se vinculava a múltiplos interesses, não estando,
necessariamente, ligado a uma área científica92. Além de serem movidos pela curiosidade e
compressor: sobre a resistência Kel Tamacheque à agressão colonial francesa (1881-1919). Anos 90, v. 26, p. 117, 2019.
90
COUDREAU, Henri Anatole. La France Équinoxiale: Voyages à travers les Guyanes et l’Amazonie. Paris:
Challamed Ainé Ed., 1887, p. 7. No original: “Le jour de mon entrée à l’École Normale Spéciale, j’expose
longuement au directeur que je ne me destine point à l’enseignement. Le professorat n’est pour moi qu’um
moyen. Le but entrevu, ce sont les missions scientifiques. Et cela se passait em novembre 1877!”.
91
SOUZA FILHO, Durval de. Os retratos dos Coudreau: índios e miscigenação através das lentes de um casal
de visionários que percorreu a Amazônia em busca do “Bom Selvagem” (1884-1899). 2008. 219 f. Dissertação
(Mestrado em História), Universidade Federal do Pará, Belém, 2008.
92
FERRETTI, Federico. Tropicality, the unruly Atlantic and social utopias: the French explorer Henri Coudreau
(1859− 1899). Singapore Journal of Tropical Geography, v. 38, n. 3, p. 332-349, 2017b.
34
pelo desejo de aventura, esses profissionais deviam observar e narrar a natureza e as
populações das regiões percorridas, ter noções de botânica, etnologia, geografia e
meteorologia. A generalidade do trabalho dos viajantes e a rapidez com que elaboravam seus
relatórios e suas publicações geravam, com frequência, distorções nas informações veiculadas
e representações preconceituosas acerca das populações nativas93.
Esses atores estavam inseridos em contextos de circulação de informação e cultura
impressa, de práticas colonialistas e de relações assimétricas com as populações locais94. É
evidente que o racismo e etnocentrismo podem ser, e muitas vezes o são, encontrados nas
práticas e nas páginas dos exploradores, mas há elementos distintos e complexos que marcam
a originalidade de cada um deles: a visão de mundo peculiar de cada autor e as relações
complexas vivenciadas com os povos indígenas e a rede local nas expedições.
Em recente artigo, Ferretti contrariou as visões estabelecidas sobre Coudreau, como
um exemplo de explorador dos grandes impérios, enxergando também no trabalho do viajante
francês um exemplo da complexidade e diversidade do campo intelectual naquele período, por
conta de suas ideias inovadoras e utópicas sobre uma Amazônia independente do controle das
nações então existentes, incluindo o Brasil, com comunidades locais livres e fortalecidas95.
Segundo Ferretti, a experiência com os povos ameríndios e a relação com o
anarquismo anti-colonialista de Elisée Reclus distanciaram o pensamento de Coudreau de
outros viajantes franceses:
Meu principal argumento é que Coudreau, quando começou suas explorações aos
vinte e três anos de idade, estava imerso em todo tipo de eurocentrismo,
etnocentrismo e estereótipos racistas, e que ele perdeu gradualmente a maioria deles,
em virtude de duas experiências importantes, a saber, sua estadia por anos entre as
comunidades ameríndias na floresta tropical (compartilhando sua comida, nudez e
costumes sociais), e seu contato, durante suas curtas estadias na Europa, com
anarquistas anticolonialistas como Elisée Reclus (1830-1905), o geógrafo francês e
protagonista do questionamento radical do colonialismo, racismo e eurocentrismo da
Era dos Impérios96.
93
FRANCO, Stella Maris Scatena. Relatos de viagem: reflexões sobre seu uso como fonte
documental. Cadernos de Seminários de Pesquisa, v. 2, p. 62-86, 2011; KURY, Lorelai; SÁ, Magali Romero;
LIMA, Nísia Trindade. A ciência dos viajantes: natureza, populações e saúde em 500 anos de interpretações do
Brasil. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 2000.
94
DRIVER, Felix. Imagining the tropics: views and visions of the tropical world. Singapore Journal of
Tropical Geography, v. 25, n. 1, p. 1-17, 2004.
95
FERRETTI, Op. Cit. 2017, p.333 (Tradução Nossa). No original: “My main argument is that Coudreau, when
he began his explorations at the age of twenty-three, was immersed in all kinds of eurocentric, ethnocentric and
racist stereotypes, and that he gradually lost most of them thanks to two main experiences, i.e., his living for
years among Amerindian communities in the tropical forest (sharing their food, nakedness and social customs),
and his acquaintance, during his shorts stays in Europe, with anarchist anti-colonialists like Elisée Reclus (18301905), the French geographer and protagonist of a radical questioning of colonialism, racism and Eurocentrism
in the Age of Empire”.
96
Ibid.
35
Embasado principalmente nos textos produzidos por Coudreau entre 1883 e 1895, a
partir de suas experiências patrocinadas pelo governo francês, Ferretti sustenta que o
explorador foi um agente complexo e inovador, por vezes distante das concepções de outros
viajantes franceses contemporâneos a ele, mas apresentando ainda traços do colonialismo e
racialismo vigentes. Vivendo os prazeres e as dificuldades de expedicionar na Amazônia na
segunda metade do século XIX e entrando em contato com anarquistas como Elisée Reclus,
Coudreau, progressivamente, abandonou certos pressupostos eurocêntricos e racistas, e
passou a questionar os ideais positivistas de civilização e progresso97.
Ferretti demonstra, ainda, por meio do estudo de caso de Coudreau, a diversidade do
pensamento social entre viajantes no século XIX, a influência das experiências vividas além
das fronteiras coloniais e da agência indígena, sem deixar de tratar das contradições entre a
viagem em si e a produção textual. O viajante francês foi um entusiasta das noções de
liberdade e igualdade entre os indígenas, apoiador da República de viés anarquista de Cunani
e um incentivador da miscigenação entre brancos e índios.
A interpretação de Ferreti é importante, mas faço ressalvas às supostas “ideias
inovadoras” a partir da própria obra de Coudreau. Compreendo que o pensamento de
Coudreau é complexo e que não se deve colocar esse viajante na mesma categoria de
geógrafos anarquistas como Reclus, uma vez que não se afastou totalmente das amarras
ideológicas e políticas de seu tempo.
Coudreau foi um viajante que serviu a estados nacionais e se relacionou com pessoas
de diversas classes sociais, apesar do seu evidente apreço pelos indígenas. O trabalho de
explorador, além das capacidades intelectuais, dependia da boa relação com as autoridades e
também das redes de contato com as comunidades locais, capazes de fornecer suprimentos e
conhecimentos sobre os lugares percorridos98. Nesse sentido, a experiência de campo permitiu
ao viajante francês criticar os estatutos da civilização e as relações capitalistas que
adentravam o sertão amazônico e exploravam o trabalho indígena, como também o tornou
mais habilidoso no trato com as relações de poder.
É possível perceber que as ideias libertárias de Coudreau – próximas, mas não
completamente inseridas no campo anarquista – foram modificadas pelas suas experiências de
campo, pelo contato com os indígenas e pelas polêmicas em que se envolveu e que o fizeram,
97
FERRETTI, 2017.
ANTUNES, Anderson Pereira. Um naturalista e seus colaboradores na Amazônia: a expedição de Henry
Walter Bates ao Brasil (1848-1859). Tese (Doutorado em História das ciências e da saúde – Fiocruz). Casa de
Oswaldo Cruz, 2019.
98
36
anos mais a frente, abandonar as missões francesas e passar a trabalhar para o governo do
Estado do Pará.
O radicalismo de suas ideias e as críticas duras ao positivismo explicitados no livro La
France Équinoxiale, publicado entre 1886 e 1887, foram amenizados no trabalho subsequente
no Brasil. Por exemplo, a rejeição aos positivistas – chamados de “fanáticos da muito
debatida doutrina do progresso infinito”99 – por vezes desaparece ou ganha tons suaves a
partir do acordo que Coudreau firmou com o governador do estado do Pará, Lauro Sodré, um
entusiasta das ideias evolucionistas e positivistas.
Esse acordo previa uma série de expedições a serem realizadas no território paraense,
o que se efetivou entre 1895 e 1899. Nesses anos, a rejeição de Coudreau às noções de
“civilização”, destacada por Ferretti, não teve o mesmo entusiasmo e não foi tão explícita,
pois o viajante dependia do apoio de comerciantes, proprietários de terra e agricultores,
hospedando-se em suas residências. Muitos ganharam notas de agradecimento nas páginas
dos livros de Coudreau. Faziam parte da rede local que permitia arregimentar indígenas e
ribeirinhos para as expedições, que emprestava embarcações e que fornecia hospedagem e
suprimentos para a comitiva. Além disso, as obras publicadas pelo viajante possuíam a
evidente finalidade de divulgar o estado do Pará no exterior. Dessa forma, uma imagem do
estado como um lugar de exploração e massacre das populações nativas não era adequada aos
patrocinadores das expedições.
Apesar disso, encontram-se, nos textos de Coudreau originados das expedições
paraenses, traços de seus antigos ideais. Por exemplo, ao percorrer o rio Xingu, ele se deparou
com a penúria e a precariedade das condições de vida dos povos indígenas da região. Na visão
dele, os responsáveis por essa situação eram os comerciantes que se embrenhavam pela
floresta, retirando os indígenas da sua harmonia com a natureza e os colocando na lógica
capitalista desigual, o que conduzia as populações locais a uma situação miserável100: “O
baneane101 e o mascate se assentam nas covas funerárias dos índios recentemente mortos,
mortos para ou por eles. E eles estão rindo”.
Em outro momento, comentando sobre a situação de Joaquim Pena e sua família,
índios Yudjá/Juruna também do Xingu, Coudreau refletiu acerca da ilusão de que o comércio
99
COUDREAU, Henri Anatole.La France Équinoxiale: Voyages à travers les Guyanes et l’Amazonie. Paris:
Challamed Ainé Ed., 1887, p. 365.
100
COUDREAU, Henri. Voyage au Xingu: 30 mai 1896, 26 octobre 1896. Paris: Lahure, 1897c, p. 87. No
original: “Le Banian, le Mascate s'asseyent sur les trous funéraires de Indiens récemment morts, morts pour ou
par eux. Ils ricanent”.
101
Termo utilizado para designar um comerciante indiano, do sânscrito vaig-jana (homem de negócios).
"baneane", in: <https://dicionario.priberam.org/baneane>. Acesso em: 22 jan. 2020.
37
era benéfico para a população indígena, como uma forma de civilizá-los, e ironizou: “Qual é o
filósofo que declara que o comércio suaviza e controla a moral? Porque não o tráfico de
escravos!”102.
Apesar de ter falecido com apenas quarenta anos, a produção intelectual de Coudreau
foi volumosa, mas pode ser dividida em duas partes, marcadas pelos trabalhos que executou
para dois países que então viviam uma crise diplomática, o Brasil e a França103. Os livros La
France Équinoxiale (três volumes), Voyage au Rio Branco, Les Français en Amazonie,
Dialectes indien de la Guyane e Chez nos indiens fazem parte dos escritos produzidos em
Caiena, a partir das já citadas expedições sob o patrocínio e os interesses do governo francês.
Todos possuem as marcas de um olhar colonialista francês acerca da região amazônica.
La France Équinoxial é uma das obras mais conhecidas de Coudreau pelas
informações compiladas nos três volumes, pelo incidente diplomático envolto na sua
produção (a suposta República do Cunani) e pelo apelo nacionalista francês e colonialista
acerca da questão do Contestado Franco-Brasileiro. O livro foi fruto, segundo o autor, de
quatro anos de estudos, entre 1881 e 1885, “como funcionário e missionário científico na
Guiana francesa e na Amazônia; - estudos feitos tanto nas bibliotecas, às vezes com os
colonos, às vezes no meio dos selvagens”104.
Na referida obra, Coudreau reporta as riquezas naturais da Guiana Francesa, a
biodiversidade, comenta sobre a migração europeia no território, sobre o histórico da disputa
com o Brasil, defendendo uma posição favorável à França, como assinalou na introdução: “Eu
sou grande partidário da expansão francesa. Talvez os fatos que relato pareçam ir contra
minhas teorias. Sou, no entanto, um colonial convicto”105.
102
Coudreau, 1897c, p. 82 (tradução nossa). No original: “Quel est done le philosophe qui prétend que c’est le
commerce qui adouci et policé les moeurs? Pourquoi pas la traite des nègres!”
103
O Contestado Franco-Brasileiro também é conhecido como Questão do Amapá. Foi uma disputa entre a
França e o Brasil pelo território que se estende entre os rios Oiapoque e Araguari, no norte do atual Amapá, antes
parte do estado do Pará. As disputas sobre a fronteira que dividiria os dois países iniciaram ainda no século XVII
e se estenderam por mais de duzentos anos. O estopim da questão foi o conflito ocorrido no dia 15 de maio de
1895 na vila de Amapá, situada próximo à foz do rio Amapá Grande, no litoral norte da Guiana Brasileira, entre
franceses e os habitantes locais, resultando em sequências de atos violentos, entre os quais assassinatos e o
incêndio de casas. A questão envolveu políticos, diplomatas e cientistas – do lado francês, Henri Coudreau e
Paul Vidal de La Blache; do lado brasileiro, Emílio Goeldi, Jacques Huber e outros. A questão foi resolvida em
1900 por um árbitro estrangeiro, o presidente da Suíça, que decidiu a favor do Brasil. In: SANJAD, Nelson. A
Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Brasília: Instituto Brasileiro
de Museus; Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2010.
104
COUDREAU, Op. Cit., 1886, p. 15 (tradução nossa). No original: “comme fonctionnaire et comme
missionaire scientifique dans la Guyane française et dans l’Amazonie; - études faites tantòt dans les
bibliothèques, tantôt auprès des colon, tantôt au milieu des sauvages”
105
Idem (tradução nossa). No original. “Je suis grand partisan de l’expansion française. Peut-être les faits que je
relate paraîtront-ils aller à l’encontre de mês théories. Je n’en demeure pas moins un colonial convaincu”.
38
Como já dito, Coudreau foi contratado pelo governo francês para fazer um estudo da
região do Contestado e o resultado deste trabalho é um capítulo destinado à questão, uma
compilação de dados que visavam comprovar o direito da nação europeia sobre a região e a
necessidade de uma política colonial mais efetiva por parte dela. Para justificar os direitos da
França sobre o território, o viajante recorreu à história diplomática do Contestado e à
identidade dos moradores.
Coudreau tentou utilizar dados e argumentos sérios para dar credibilidade às suas
colocações acerca do direito francês sobre o território contestado. Seu objetivo era popularizar
a disputa entre os dois países – que poderia ter uma solução pacífica que fortaleceria a
amizade de ambas as nações – e o próprio território, considerado “a parte mais bela e mais útil
das nossas possessões americanas”106.
Recorrendo ao histórico diplomático, afirmou que a região entre o Orenoco e o
Amazonas havia sido inicialmente ocupada pela França no século XVI, mas o descuido do
governo francês em proteger o território fez com que fosse dividido com outros países
europeus. O viajante alegou que o Tratado de Utrecht, de 1713, não solucionou o problema
dos limites, pois os soberanos francês e português aceitaram como fronteira o rio “Japoc ou
Vicente Pinçon”, sem indicação de longitude e latitude e que nunca foi localizado com
precisão nos mapas. Após anos de abandono, os portugueses voltaram a sua atenção ao
território das Guianas após a emancipação dos escravizados, em 1792, pois se sentiram
ameaçados pela revolta decorrente da Revolução Francesa. Segundo Coudreau, os lusos
avançaram no território contestado, destruindo as fortificações e missões indígenas francesas
que teriam existido no atual estado do Amapá107.
A história diplomática exposta no capítulo dedicado ao Contestado foi oposta à
defendida pelo diplomata e professor do colégio Pedro II, Joaquim Caetano da Silva, no livro
L’Oyapoc et l’Amazone, question brésilienne et française, publicado em 1861. Essa obra
defendia, e por isso inspirou a diplomacia brasileira, que o Tratado de Utrecht deveria ser a
base jurídica inicial da disputa, haja vista que o mesmo era o mais antigo pacto entre os dois
países108.
O segundo ponto de destaque na obra é a afirmação de Coudreau de que os habitantes
da região do contestado não se identificavam como brasileiros ou franceses. Segundo
Coudreau, “as populações desse território vivem hoje em estado anárquico, fora das
106
COUDREAU, 1886, p. 217. No original: “la partie la plus belle, la plus utile de nos possession américaines”.
Ibid.
108
SANJAD, 2010.
107
39
influências francesas e brasileiras”109, apesar de possuírem uma preferência pelos franceses,
pois haviam sido oprimidos e escravizados pelos brasileiros.
O envio da “missão científica” ao contestado e as declarações do jovem Coudreau na
região, que invocavam os habitantes locais a aderirem à causa francesa, geraram um incidente
diplomático entre as duas nações soberanas. Ele chegou até mesmo a recolher em algumas
aldeias um abaixo-assinado pedindo a anexação da região à França110.
Em 1883, o ministro brasileiro Marcos Antônio de Araújo, o barão de Itajubá, acusou
formalmente Coudreau de ser um agente infiltrado no território contestado em longa carta de
protesto:
Ele chamou a atenção, não apenas por causa das atividades a que se dedicou durante
a sua viagem, mas também pelas informações que dava sobre a sua missão [...] pelas
suas maquinações no território de Amapá declarando aos habitantes desta região que
fariam bem em aderir à causa francesa [...] e assegurando que Oiapoque e Conani
[sic] pertenciam a partir desse momento à Guiana francesa111.
O protesto do governo brasileiro a respeito do caráter da missão do viajante ao
contestado, como parte do projeto francês de anexar a região, foi amplamente divulgado na
imprensa, principalmente a paraense. Alguns jornais locais, como o Diário de Notícias,
consideravam Coudreau um espião112.
Três anos após os protestos do barão de Itajubá, Coudreau, em La France Equinoxiale,
afirmou que lidava com reservas com a questão da disputa franco-brasileira e que pagava
ainda o preço pelo seu envolvimento enquanto um patriota:
Sabe-se o quão intimamente estive envolvido nas últimas circunstâncias
diplomáticas que ele [Contestado franco-brasileiro] deu origem e o quanto trabalhei
para este fim. A questão, mesmo que seja secundária, não deixa de ser interessante, e
o papel que me fiz desempenhar recentemente poderá levar a crer que eu forço
intencionalmente estes resultados. Contudo, tenho demasiado patriotismo para fazer
outra coisa que não seja uma apresentação puramente científica e desinteressada dos
factos, que são suficientemente interessantes em si mesmos, e suficientemente
sérios113.
109
COUDREAU, 1886, p.217 (tradução nossa). No original: “les populations de cette contrée vivent aujourd’hui
dans um état anarchique, em dehors des influences française et brésilienne”.
110
SOUZA FILHO, 2008.
111
Carta do barão de Itajuba, agente diplomático do Brasil em Paris ao ministro dos Negócios estrangeiros, 24 de
dezembro de 1883, apud PUYO, Jean-Yves. Henri Coudreau e a questão do contestado franco-brasileiro – a
exploração de 1883-1884. In: JOBIM, José Luíz et al (orgs.). Diálogos França-Brasil : circulações,
representações, imaginários. Rio de Janeiro: Makunaima, 2019, pp. 55-56.
112
Diário de Notícias, Belém, 9 de maio de 1884, p. 2. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional –Rio de
Janeiro- Brasil.
113
Coudreau, 1886, p.216 (tradução nossa). No original: “On sait combien intimement j’ai été mélé aux derniers
événemets diplomatiques auxquels elle a donné lieu, et combien j’ai payé pour la connaitre. La question, pour
étre secondaire, ne cesse pas d’étre brûlante, et le rôle qu’elle m’a fait jouer, récemment pourrait faire croire que
je force intentionellement la note. Cependant j’ai trop de patriotisme pour faire autre chose qu’un exposé
purement scientifique et désintéressé des faits, d’ailleurs assez intéressants em eux-mémes, et assez graves”.
40
A afirmação de Coudreau acerca das preferências dos habitantes do contestado pelos
franceses foi posteriormente questionada por Emilio Goeldi. De acordo com Sanjad, em 1895,
após o incidente que resultou em mortes no território disputado, o diretor do Museu Paraense
foi enviado para “checar a veracidade das informações divulgadas por Coudreau e sustentadas
por Reclus sobre o Cunani; e proceder a um inventário científico da região, à maneira como o
explorador francês havia feito doze anos antes”114.
Em relatório para o ministro de Relações Exteriores, Carlos de Carvalho, de 21 de
novembro de 1895, Emílio Goeldi assinalou:
O território contestado é – folgo poder afirmar do modo o mais positivo – habitado
na sua maior superfície por brazileiros [...]. A língua usada é o portuguêz; o modo de
vida, os costumes, a educação – tudo é tal qual como no Pará, porque quase todos
são Paraenses. Nas ditas localidades ha, quando muito, um total de meia dúzia de
estrangeiros, sendo talvez uns três somente crioulos de Cayenna.115
As palavras de Goeldi deixavam claro que os moradores do território contestado eram
de origem brasileira e mais, que almejavam pertencer ao Brasil, rompendo com a tese
francesa, forjada por Coudreau, de que os habitantes falavam francês e queriam pertencer à
França. Nesse sentido, de acordo com Goeldi, os escritos de Coudreau não eram verídicos: “o
que o Senhor Henri Coudreau escreveu acerca das sympathias para a França é grossa mentira;
a gente de Counany ficou indignada quando li os respectivos trechos do livro de
Coudreau!”116.
Em outro documento, Goeldi novamente reforçou que a nacionalidade dos moradores
do território contestado era “brasileira” e questionou a credibilidade de Coudreau como um
homem da ciência, afirmando ser ele “um agente político, asserção que posso affirmar hoje
com innumeras provas coligidas no proprio contestado”117.
O diretor do Museu Paraense afirmou que, a partir das suas excursões a campo, obteve
valorosos resultados científicos, que colocavam à prova o trabalho cartográfico de Coudreau.
Segundo Goeldi, havia nesse trabalho “numerosissimos erros nos mapas actualmente
existentes; assim, por exemplo, são muito defeituosas e levianas as cartas contidas na obra de
114
SANJAD, 2010, p. 307.
GOELDI, Emílio. Cópia de um ofício reservado enviado por Emílio A. Goeldi ao Ministro Carlos de
Carvalho, relantando a situação dos territórios contestado entre o Brasil e Guiana Francesa doc. 8, 21 de
novembro de 1895. In: GOMES, Flávio dos Santos; QUEIROS, Jonas Marçal de; COELHO, Mauro Cezar
(Orgs.). Relatos de Fronteiras: Fontes para a História da Amazônia séculos XVIII E XIX. Belém: Editora
Universitária, 1999, p.97.
116
Ibid.
117
GOELDI, Emílio. Exposição sumária da viagem realizada ao Territorio contestado Franco-Brazileiro pelo
Muzeu Paraense de Historia Natural e Etnographia, Doc. 14, 7 de outubro a 14 de novembro de 1895. In:
GOMES, Flávio dos Santos; QUEIROS, Jonas Marçal de; COELHO, Mauro Cezar, Op. Cit., 1999, p. 100.
115
41
H. Coudreau”118. No entanto, Francinete Cardoso ressalta que a exposição do suíço também
estava repleta de subjetividade, pois o diretor do Museu Paraense “já parte para o Contestado
com uma visão pré-concebida e, ao entrar em contato com os sujeitos históricos do Cunani,
confirma o que ele queria: são brasileiros de natureza e de coração”119.
As críticas de Goeldi, mesmo comprometidas também com demandas políticas,
revelam um processo em curso em fins do século XIX e a compreensão da obra e do lugar
social de Coudreau para os contemporâneos. Como aponta o estudo de Sá120, em fins do
século XIX, ocorreu um processo de profissionalização e especialização das ciências em
detrimento da cultura intelectual generalista e bacharelesca. O estudo da realidade passou a
exigir trabalho de campo, desenvolvimento de métodos práticos e experimentais, observação
empírica, estudo em laboratório e uma padronização mais específica da linguagem das
ciências.
Como Ferretti121 apontou, Coudreau não estava realmente interessado numa pesquisa
cuidadosa, na exatidão do método científico, era primordialmente um explorador, um homem
de campo. Nos livros de viagem que escreveu – com uma linguagem mais próxima da
literatura do que da ciência, “resultante de uma simplicidade máxima reduzida a signos fixos e
impessoais”122 –, combinava sua própria experiência in loco com suposições e dados
coligidos, de forma não rigorosa, entre povos indígenas, missionários, seringalistas,
moradores locais, proprietários de terra e comerciantes.
Emílio Goeldi, certamente, ao criticar Henri Coudreau, não apenas censurou os erros
geográficos e as imprecisões, mas pontuou a existência de duas éticas de trabalho. Coudreau,
nessa concepção, pertencia a uma tradição generalista, não especializada e sem o rigor
metodológico das ciências emergentes do século, comprometida com ideais estéticos e
políticos. No outro lado, o grupo dos cientistas/homens da ciência, mais especializados, com
mais alto grau de escolaridade, com domínio da “técnica” e da escrita rigorosa e objetiva da
ciência. Esses últimos exaltavam-se não poucas vezes como “modernos” e “autoridades” em
detrimento das outras tradições.
Evidentemente, a filiação a esses grupos não pode ser tida de forma tão ferrenha e
fixa, sendo muito mais fruto de uma exaltação de autoimagem e de discursos performativos
118
Ibid., p. 101.
CARDOSO, Francinete do Socorro Santos. “O poder das autoridades e representações sobre o contestado
franco-brasileiro”. In: COELHO, Mauro et al. (Orgs). Meandros da história: trabalho e poder no Pará e
Maranhão – séculos VXIII e XIX. Belém: UNAMAZ, 2005, p. 303.
120
SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (18951935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
121
FERRETTI, 2017.
122
SÁ, Op. Cit., p. 128.
119
42
do que de um enquadramento objetivo123. Existia, de fato, um trânsito de intelectuais de um
grupo a outro, por diversas circunstâncias, e também as mesmas notas críticas poderiam
desaparecer nas análises da produção de conhecimento de outros personagens. No entanto,
essa divisão imposta pelos próprios atores esclarece a razão das críticas feitas não apenas por
Goeldi, mas também por outros autores, como Arthur Vianna, ao trabalho do viajante.
De volta aos escritos de Coudreau, destacam-se alguns projetos para a expansão
francesa na região amazônica, como a utilização da mão-de-obra local para empreendimentos
agrícolas coloniais e a implantação de uma grande penitenciária para os criminosos franceses,
o que garantiria a exploração do território mediante trabalho forçado. Essa ideia foi difundida
também em outros trabalhos – como La France Equinoxiale – e em palestras, como a
proferida em 30 de novembro de 1885 na Sociedade de Geografia Comercial de Bordeaux,
publicada no Boletim da Sociedade Geographica do Rio de Janeiro. Na comunicação, o autor
tratou sobre “os territorios contestados entre a França e o Brasil e o do Valle do Amazonas, os
quaes percorreu em todos os sentidos em differentes viagens de exploração, que fez,
commissionado por Mr. Chessé, governador da Guyana Francesa”124.
O viajante alegou que o acréscimo de território para a França seria importante para
colocar em prática a lei francesa sobre os criminosos reincidentes transportados para a
Guiana. Para Coudreau, se eles fossem enviados para a região do contestado, encontrariam
um clima sadio e terras propícias à agricultura, e seriam ótimas ferramentas para a
colonização. Além do mais, as riquezas da flora faziam da Amazônia, segundo Coudreau, um
local ótimo para a realização de atividades econômicas lucrativas.
Coudreau, durante longo tempo, foi defensor de uma política colonialista francesa na
região. O envolvimento com o contestado franco-brasileiro tornou notório o trabalho do
explorador francês, que passou a ser elogiado pelo levantamento cartográfico e pela descrição
geográfica da Amazônia, como também criticado por cientistas e intelectuais, brasileiros e
estrangeiros, que se envolveram na disputa internacional pelo território contestado.
A aproximação de Coudreau com o Brasil, especialmente com o governo do estado do
Pará, iniciou em 1895, quando abandonou definitivamente as missões francesas e passou a dar
entrevistas em periódicos paraenses e cariocas com a finalidade de desvincular a sua imagem
de defensor da causa francesa no território contestado e se identificar cada vez mais como um
“colono brasileiro”. Em uma entrevista publicada no Jornal do Brasil em 14 de abril de
123
SÁ, 2006.
COUDREAU, Henri. Boletim da sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, tomo II, 1886,
p. 114. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
124
43
1895125, Coudreau comentou sobre um possível arbítrio internacional do Contestado francobrasileiro. Eis a opinião do ex-funcionário francês na região:
Em virtude dos recentes manejos do governo da Guyane no território contestado, o
governo francez deliberou agir como convinha ao caso. Ora, não resta duvida que se
a questão for submettida a arbitramento, o Brasil terá ganho de causa. Esta é minha
opinião.
Apesar de não negar o direito francês ao território, Coudreau deu ganho de causa ao
Brasil em razão dos excessos cometidos pelo governo de Caiena, o que remete a mudanças
nas suas opiniões políticas e a um desapego das ideias colonialistas que defendia. A
declaração de Coudreau foi surpreendente em razão do trabalho que realizara estar sendo
usado na argumentação da diplomacia francesa.
Na mesma entrevista, que buscou distanciar o viajante do governo francês, Coudreau
foi tratado como um agente nacional, que “fala o portuguez e que passou um terço de sua
existência no Brasil”. Podia, portanto, “ser considerado quase que nosso compatriota”. Seus
arroubos nacionalistas foram minimizados da seguinte maneira: “como o seu ilustre amigo
Elisée Reclus e como o grande Camões, ele [Coudreau] pensa que toda a terra é pátria para o
forte”. Coudreau não discordou e afirmou que era “apenas um colono do Brasil”126.
No momento da publicação da reportagem, Coudreau ainda não estava a serviço do
governo do Pará. Todavia, suas declarações apontam que já vinha conversando com Lauro
Sodré e que tinha interesse em explorar os sertões do norte do Brasil. O próprio jornalista
apoia essa ideia e conclui que “o governo do Pará deverá compreender que há certas boas
vontades que são convenientes não desanimar. Coudreau é uma delas e muitas vezes repete:
eu não sou mais do que um colono do Brasil”127.
O jornalista e talvez muitos de seus leitores sabiam da importância de ter um viajante
como Coudreau a serviço do Brasil naquele momento delicado de arbitragem internacional.
Coudreau era, afinal, um ex-funcionário da França e até então divulgador de ideias
colonialistas na Amazônia. Suas críticas às autoridades francesas e o abandono de parte de
suas ideias jogariam seus escritos anteriores no descrédito. Coudreau certamente tinha ciência
dos interesses brasileiros que estavam em jogo e soube se utilizar disso muito bem para dar
prosseguimento aos seus planos de viajar pela região e, dessa maneira, manter sua situação
financeira.
125
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de abril de 1895, p.3. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional –Rio
de Janeiro- Brasil.
126
Ibid.
127
Ibid.
44
A partir de 1895, as declarações ufanistas e favoráveis à colonização francesa ganham
um tom mais diplomático, possivelmente pelo interesse de Coudreau em trabalhar no Brasil.
É o que se depreende de uma entrevista publicada no mês seguinte, no dia 2 de maio de 1895,
pelo jornal Província do Pará, na qual Coudreau respondeu sobre diversos temas, como a sua
opinião sobre o Contestado, sua amizade com o Barão do Rio Branco e a recepção negativa de
suas conferências e livros no Brasil. Vejamos um trecho:
[O jornalista] - Mas, desculpae a franqueza, nós brasileiros temo-vos na conta do
mais implacavel adversário na nossa questão de limites com a França, pois as vossas
explorações e as vossas conferencias, dizem ter sido n’estes últimos dez anos um
enorme entrave a um ajuste amigável franco-brasileiro.
Coudreau – Ha muito exagero n’esta apreciação. A minha mais recente opinião
exarada n’uma conferencia que fiz em Paris, em princípios d’este anno, é toda de
Paz e concordia.
Penso que por qualquer ajuste amigavel a França deve acabar para sempre com esta
desconfiança que em vosso paiz se nota contra ella. Nós somos da mesma raça, e
devemos confederar-nos, como latinos, para continuar na America do Sul as
tradições gloriosas dos nossos avós comuns. [..] O contestado territorial da Guyana é
uma insignificância comparativamente com os enormes resultados que advirão aos
dois paizes de uma liga intelectual e comercial128.
Coudreau evita adentrar nas suas teses anteriores a respeito do Contestado, preferindo
um tom moderado sobre as questões envolvendo as duas nações. Não satisfeito com a
resposta ponderada do francês, o repórter, não identificado, insiste no assunto e Coudreau
responde que não pode explicitar a sua posição por ser hóspede em território brasileiro e por
contar com alguns amigos no meio político parisiense. Lança, contudo, frases irônicas,
consideradas pela diplomacia francesa como agressivas: “faço-vos a vontade, já que tanto
instais. Nós temos frequentes ‘nervositis’ politicas em nosso paiz. É-nos talvez preciso um
outro ‘Fernando de Noronha’ e vós sabeis que, como “guilhotini séchre” [sic] a Guyana
Cayennense é excelente”129.
Coudreau tinha intenções de trabalhar para as autoridades brasileiras, em especial no
Pará, e deixa isso explícito ao responder se tinha a intenção de fixar residência na Amazônia,
“á sombra da bandeira brasileira”, fazendo um claro pedido ao governo paraense:
Exactissímo. Sei que tendes acesso ante os poderes públicos, e na opinião publica;
podeis pois garantir a lisura de minhas intenções. Peço ao vosso eminente
governador me considere cidadão o mais humilde da Amazonia. Fallo em altas
vozes e que o éco repercuta até as barreiras do Tabatinga. “C’est fait”130.
Com base no excerto acima, percebe-se que Coudreau já estava em negociação com
Lauro Sodré. Não é possível afirmar se Sodré hesitou em contratar o explorador, mas
128
A Província do Pará, 2 de maio de 1895, p. 1. Acervo da Biblioteca Pública Arthur Vianna - Fundação
Cultural Presidente Tancredo Neves.
129
Ibid.
130
Ibid.
45
certamente Coudreau tentou veementemente convencer as autoridades acerca da lisura de suas
intenções e de que havia se convertido à causa brasileira, ou pelo menos abandonado a causa
francesa – não seria um espião francês em território nacional.
As declarações “do colono do Brasil”, como Coudreau passou a se caracterizar, foram
acompanhadas pelas autoridades francesas, como podemos ler nas cartas trocadas entre o
ministro Gabriel Hanotaux e o encarregado de Negócios franceses no Rio de Janeiro, Eugène
Daubigny, publicadas no livro Barão do Rio Branco: Caderno de Notas. A Questão entre o
Brasil e a França (maio de 1895 a abril de 1901)131, do embaixador Affonso José Santos.
Daubigny, no dia 6 de junho de 1895, enviou um oficio a Hanotaux, no qual
comunicava o desembarque de Coudreau no Pará, juntamente com as suas novas declarações
e pretensões no estado brasileiro. O encarregado anexou ainda um recorte do Jornal do
Commercio de 3 de junho, que reproduzia a entrevista concedida para A Província do Pará, já
citada. Nela, Coudreau fez críticas ao governador de Caiena e manifestou o seu desejo de
fixar-se no norte do Brasil. No excerto abaixo, após falar sobre as intenções do geógrafo,
Daubigny comenta as declarações que fez sobre o futuro do território contestado:
[...] então, resumindo suas impressões em uma piada de gosto muito medíocre, o Sr.
Coudreau acrescenta: "Eu tenho a idéia que nosso rei destronado de Dahomey, pobre
Behauzin, será nomeado governador de Cayenne. Está no espírito de nossa política
colonial” [traduzido ao francês]. Eu não teria feito, com Vossa Excelência, o eco
dessa linguagem que parece inspirar ressentimento pessoal, se não tivesse sido aqui
o assunto de comentários persistentes hostis ao nosso país e sua política e se não
tivesse uma certa ressonância. O explorador solicitado, além disso, que expressasse
a sua opinião sobre a questão do Contestado, reservou-se ao silêncio. Mas o tom
deplorável de suas apreciações em geral, a parcialidade com que ele tem defendido a
colonização brasileira, próximo aos ecos que nos chegaram de suas conversas
anteriores, dão o significado e a interpretação de que esse silêncio é suscetível. Pedi
ao Gerente do nosso Consulado em Belém, que acabou de me enviar o texto original
da entrevista publicada pela Provincia do Pará, para me manter informado dos fatos
e gestos do Sr. Coudreau e eu não faltarei de transmitir a Vossa Excelência as
informações que poderia me falar sobre isso132.
131
SANTOS, Affonso José. Barão do Rio Branco: Caderno de Notas. A Questão entre o Brasil e a França
(maio de 1895 a abril de 1901. Brasília: FUNAG, 2017.
132
Ibid., p. 95 (Tradução nossa e de Alegria Benchimol). No original: “Puis résumant ses impressions dans une
plaisanterie du goût le plus médiocre, M. Coudreau ajoute: “J’ai idée que notre roi détroné du Dahomey, le
pauvre Béhauzin, va être nommé Gouverneur de Cayenne. C’est dans l’esprit de notre politique coloniale. Je ne
me serais pas fait, auprès de Votre Excellence, l’écho d’un tel langage que semble inspirer des ressentiments
personnels, s’il n’avait été ici l’objet de commentaires persistants hostiles à notre pays et à sa politique et s’il
n’avait eu un certain retentissement. L’explorateur sollicité, d’ailleurs, d’exprimer son opinion sur la question du
Contesté, s’est renfermé dans le mutisme. Mais le ton déplorable de ses appréciations en général, la partialité
avec laquelle il a défendu la colonisation brésilienne, rapprochés des échos, arrivés jusqu’à nous, de ses
précédentes conversations, donnent le sens et l’interprétation dont ce silence est susceptible. J’ai prié le Gérant
de notre Consulat à Belém, qui vient de m’adresser le texte original de l’interview publiée par la Provincia do
Pará, de me tenir au courant des faits et gestes de M. Coudreau et je ne manquerai pas de transmettre à Votre
Excellence les renseignements qui pourraient me parvenir à son sujet”.
46
Daubigny traduziu para o seu superior as declarações de Coudreau, sobretudo os
trechos polêmicos, omitindo os trechos com tons mais ponderados. Portanto, compreendo o
que foi escrito na carta como uma tradução cultural133, não elaborada de forma direta ou
mesmo isenta, mas adaptada ou montada a partir das necessidades e dos interesses da
diplomacia francesa e dos governantes em Caiena.
Não somente a fala de Coudreau foi alvo da atenção e preocupação de Daubigny, mas
também o silêncio em relação ao Contestado e os ecos vindouros que as declarações teriam no
Brasil. A partir das entrevistas de Coudreau, o então encarregado francês declarou que havia
uma campanha local organizada para fazer o Brasil lucrar com os ressentimentos do
explorador em relação ao governo de Caiena134.
Além de comentar as entrevistas e reportagens sobre Coudreau, Daubigny fazia
também as suas próprias apreciações sobre as ações do viajante na imprensa nacional, como
uma espécie de contextualização e tradução dos recortes enviados. A interpretação de
Daubigny corroborava a ideia de que Coudreau estava traindo a causa francesa, como
demonstra um ofício enviado do Rio de Janeiro a Paris no dia 27 de julho de 1895:
Ministro, de acordo com as informações que me chegaram hoje e cuja autenticidade
não resta dúvida, o Sr. Coudreau teria abraçado definitivamente a causa do Brasil.
Este explorador fornece ao governo do Rio todas as informações que acredita servir
de nossos interesses e é notavelmente o autor da lista de ‘Brésiliens Massacrés’ em
Mapá, que aparece em francês na sequência do discurso proferido pelo senhor
Serzedello Correa na sessão da Câmara dos Deputados de 16 de julho e da qual
Vossa Excelência vai encontrar em anexo o texto. Esta lista que o ex-ministro das
Relações Externas do Marechal Peixoto apresento em apoio a suas reivindicações
contra nós, na tribuna da Câmara, é, parece, uma das peças da "investigação" pessoal
que o Sr. Coudreau empreendeu no território contestado sobre os incidentes recentes
e cujas conclusões mais do que suspeitas dirigidas ao Governo de Pará, foram
publicados pelos jornais de Belém135.
A despeito das acusações de Daubigny, não se pode confirmar se Coudreau entregou
informações sigilosas ao governo brasileiro sobre o território ou se foi contratado para servir
de delator dos interesses franceses na região em disputa. Contudo, cada vez mais as opiniões
133
BURKE, Peter. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna. In: BURKE, Peter; HSIA, R. Pochia(Org.). A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: UNESP, 2009, pp.13-46.
134
SANTOS, 2017.
135
Ibid., p. 157 (tradução nossa). No original: “D’après les renseignements qui me parviennent aujourd’hui et de
l’authenticité desquelles il n’y a pas lieu de douter, M. Coudreau aurait définitivement embrassé la cause du
Brésil. Cet explorateur fournit au Gouvernement de Rio toutes les informations qu’il croit de nature à desservir
nos intérêts, il est notamment l’auteur de la liste des ‘Brésiliens Massacrés’ à Mapá qui figure, en français, à la
suite du discours prononcé par M. Serzedello Correa dans la séance de la Chambre des Députés du 16 juillet et
dont Votre Excellence trouvera ci-joint le texte. Cette liste que l’ancien ministre des Relations Extérieures du
Maréchal Peixoto fait figurer à l’appui de ses revendications contre nous, à la tribune de la Chambre, est, paraîtil, une des pièces de “l’enquête” personnelle que M. Coudreau a entreprise au territoire Contesté sur les récents
incidents et dont les conclusions plus que suspectes adressées au Gouvernement de Pará, ont été publiées par les
journaux de Belém”.
47
de Coudreau tornaram-se polêmicas, sobretudo após o chamado massacre da Vila do
Amapá136, fato que comoveu a população brasileira e repercutiu bastante na imprensa
nacional. Em 6 de junho de 1895, foi divulgada uma carta de Coudreau endereçada a Manoel
Antonio Gonçalves Tocantins, engenheiro e membro do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), publicada no Diário de Notícias, que se refere ao acontecido:
Ilmo Sr. Dr. Tocantins, encarregado de missões científicas.
Meu caro colega, acabo de ler atentamente vosso relatório sobre o massacre do
Amapá. Relata um conjunto de fatos que desgraçadamente não podem ser postos em
dúvida mesmo nos detalhes. Assisti ao inquérito que fizestes no Amapá e cotejei-o
com o outro contra-inquérito feito por mim mesmo e minha convicção é completa:
os fatos são exatos no seu conjunto.
Peço-vos somente que distingais, nesse lamentável acontecimento, duas fontes de
responsabilidade:
1º - A responsabilidade do Governo Francês – O governo foi iludido em sua boa fé
por um pequeno bando de indivíduos, mais ou menos comprometidos em
“camarinha”, que eu observo há alguns anos e cuja entrada próxima nas galés espero
com paciência;
2º - A responsabilidade do bando de indivíduos em questão – Por hoje não marcarei
na espádua senão o odioso instigador do massacre do Amapá, o célebre Charvein,
grande jacobino, anticolonial, que dá realmente a mão ao seu negro nas pequenas
combinações auríferas do Contestado. Não determino por ora porque não estou na
França; mas fá-lo-ei nos jornais de meu país.
Falarei! Não consentirei que se diga que Caiena, a Caiena que conheceis, a Caiena
com sentimento antifrancês, vós mesmo o tendes verificado, provocou um
rompimento entre França e Brasil.
O coração e o bom senso das duas grandes nações amigas prevalecerão contra as
patifarias dos negros e a raiva dos concessionários137.
A carta divulgada no Diário de Notícias, e que foi anexada em correspondência de
Daubigny, não está isenta de intencionalidade. Como destacou Le Goff138, todo documento,
enquanto prova de uma realidade, é um monumento, visto que há uma intenção de
perpetuação - voluntária ou não - de uma memória coletiva. As opiniões de Coudreau, ao
mesmo tempo em que validavam os protestos brasileiros sobre o massacre e sobre o domínio
da região, amenizavam a responsabilidade francesa sobre o acontecido, culpando os negros
mocambeiros que transitavam na região. Não seria isso uma evidência da apropriação do
ideário racista no discurso de Coudreau?
Como visto, Coudreau era um sujeito atuante nas tramas que envolviam o contestado
franco-brasileiro e suas opiniões ganhavam destaque na imprensa brasileira. Todo esse longo
contexto apresentado no presente capítulo serviu para explicar o quão complexa foi a
136
Conflito ocorrido em 15 de maio de 1895 na Vila do Amapá, no território disputado entre Brasil e França,
entre os soldados comandados pelo capitão Lumier, da Guiana Francesa, e os homens armados comandados por
Francisco Xavier da Veiga Cabral, que resultou no incêndio da vila e na morte de soldados franceses e de muitos
habitantes locais, além do aprisionamento de brasileiros acusados de colaborarem com Cabral.
137
Diário de Notícias, Belém, 9 de maio de 1884, p. 2. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional –Rio de
Janeiro- Brasil.
138
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
48
contratação de Henri Coudreau pelo governo do Estado do Pará. Em um ofício, Daubigny
explica as motivações que envolveram o acordo firmado entre o explorador e Sodré:
Sr. Lauro Sodré pensou que tinha que recompensar um zelo tão bonito e ele usou o
talento e conhecimento do viajante, confiando-lhe a missão de explorar o alto
Tapajóz, um dos afluentes do Amazonas. Eu gostaria de ter esperança de que esta
excursão, muito longe, forneça alimentos necessários para a atividade do Sr.
Coudreau, uma distração para seus ressentimentos e que nos liberte do medo das
manifestações barulhentas que sua presença pudesse provocar à [ilegível] [...]139.
A explicação de Daubigny, segundo a qual a contratação de Coudreau pelo governo do
Pará foi uma forma de recompensá-lo pelas informações repassadas às autoridades brasileiras,
está repleta de ressentimento pela “traição” da causa francesa, mas não pode ser julgada como
falsa. Não se pode negar que a adoção da identidade “brasileira” por Coudreau, o que tantas
vezes ele evidenciou, foi fundamental para a sua contratação. Todavia, não é possível afirmar,
pois não há documentos que o comprove, que Coudreau agiu como um espião ou delator dos
interesses franceses no território contestado.
Além dessa questão geopolítica, outras interferiram na decisão de Lauro Sodré em
contratar Coudreau, como as perspectivas de divulgação do estado do Pará140 e o renome de
Coudreau nas sociedades científicas europeias e norte-americanas.141 O sucessor de Sodré no
governo do Pará, José Paes de Carvalho, em mensagem dirigida ao Congresso do Estado no
dia 15 de abril de 1898, apresentou o plano de exploração de Coudreau no Pará, quando o
viajante já havia sido contratado. Carvalho afirmou que as publicações de Coudreau iriam
concorrer “efficazmente para vulgarisarem-se em nosso paiz e fora d’elle conhecimentos
correctos ácerca do Pará, mal conhecido e mal julgado ainda”142. Além disso, continuou o
governador, seriam um repositório de importantes dados para a confecção de carta geodésica
e cadastral do estado.
139
SANTOS, 2017, p. 157 (tradução nossa). No original: “M. Lauro Sodré a cru d’ailleurs devoir récompenser
un si beau zêle et il utilize les talents et les connaissances du voyageur en lui confiant la mission d’explorer le
haut Tapajóz, un des affluents de l’Amazone. Je me plais à espérer que cette excursion assez lointaine offrira un
aliment nécessaire à l’activité de M. Coudreau, une diversion à ses rancunes, et, nous délivrera de la crainte de
manifestations bruyantes que sa présence pouvait provoquer à [ilegível]”.
140
COELHO, Matheus Camilo; BENCHIMOL, Alegria; MIRANDA, Elis de Araújo. Henri Coudreau e a
“vulgarização” amazônica: os índios Juruna, Tapayuna e Parintintin (1895-1896). Novos Cadernos NAEA,
[S.l.],
v.
22,
n.
3,
dez.
2019.
ISSN
2179-7536.
Disponível
em:
<https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/6969>. Acesso em: 02 jan. 2020
141
Em 1886, Coudreau recebeu uma medalha de ouro da Sociedade de Geografia comercial de Paris e, em 1892,
uma medalha de ouro da Sociedade de Geografia de Paris em retribuição aos seus dez anos de pesquisa nas
Guianas. Em 1887, já havia ganhado o prêmio trienal da Sociedade dos Estudos Colonial Marítimos. Além disso,
teve palestras e artigos seus publicados em periódicos de grande alcance, como o Le tour du Monde.
142
CARVALHO, J. P. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José Paes de Carvalho,
Governador do Estado, em 15 de Abril de 1898, apresentando a proposta a de orçamento da receita e
despeza para o exercicio de 1898-1899. Belém: Typ. do Diário Official, 1898, p.22.
49
Carvalho acreditava que, graças à notoriedade de Coudreau e aos livros publicados em
francês na Europa, financiados pelo governo do Pará, os negócios locais ganhariam maior
relevância internacional, atraindo mais investimentos e imigrantes143. Esse plano é evidente
no livro Voyage au Tapajós, publicado em 1897. Além de descrições da vegetação,
hidrografia, topografia, população e línguas faladas ao longo do rio, o livro possui páginas
dedicadas às possibilidades de ocupação da terra, aos modos de aprimorar o comércio e
dinamizar o transporte fluvial, além de uma ode ao Pará e da análise das disputas territoriais
do estado. Coudreau também defendeu suas ideias para o desenvolvimento da região
amazônica, como a construção da ferrovia Chile-Pará e a atração de imigrantes para colonizar
as regiões inabitadas do estado144.
Coudreau realizou, ao todo, seis expedições pelo território paraense, passando por
alguns dos principais rios do estado – Tapajós, Xingu, Tocantins, Araguaia, Itaboca,
Itacaiúnas, Nhamundá e Trombetas – e narrando as aventuras de sua viagem, as riquezas
naturais, os povos que habitavam as terras percorridas. Dessas excursões ao interior
amazônico, de 1895 a 1899, resultaram seis livros em francês, todos patrocinados pelo
governo do Pará e impressos em Paris, contendo o relato da viagem, dados meteorológicos,
vocabulários indígenas e mapas.
A primeira missão de Coudreau, ao rio Tapajós, teve como objetivos oficiais checar
informações geográficas e estudar as riquezas e os habitantes da região, como reporta o
governador do Pará:
(A) verificação das coordenadas geographicas dos pontos, que tinham sido fixados
pelo Conde de Castelnau; (B) exploração do rio S. Manoel ou das Tres Barras até á
cachoeira das Sete Quedas; (C) indicação precisa das posses situadas nas margens
do rio Tapajós, a partir do ponto chamado – Bacabal,- e do rio S. Manoel até as suas
maiores cachoeiras; (D) noticia detalhada acerca da população indigena dos
referidos rios, especialmente sobre os mundurucus e apiacás; (E) indicação da
natureza do solo, e descriptação das riquezas naturaes da região estudada; (F) estudo
dos melhores meios de comunicação entre o alto e o baixo Tapajós.145
143
Mesmo não sendo sua intenção, Coudreau também atraiu para a Amazônia alguns cientistas. Um dos
melhores exemplos é Wilhelm Kissenberth, vinculado ao Königliches Museum für Völkerkunde, de Berlim. Em
carta a Jacques Huber, botânico suíço e pesquisador do Museu Paraense entre 1895 e 1914, Theodor KochGrünberg, também vinculado ao museu etnológico de Berlim, informa que a viagem de Kissenberth ao rio
Araguaia, em 1908, havia sido inspirada pelos escritos de Coudreau. Ver: Carta de Theodor Koch-Grünberg a
Jacques Huber. Berlim, 16 de dezembro de 1907. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La
Penha, Fundo Jacques Huber, Dossiê Theodor Koch-Grünberg.
144
COUDREAU, Henri. Voyage au Tapajoz, 28 juillet 1895- 7 janvier 1896. Paris: Lahure, 1897a.
145
SODRÉ, Lauro. Mensagem dirigida pelo Sr. Governador Dr. Lauro Sodré ao Congresso do Estado do
Pará. Belém: Diário Official,1895, p. 48. Embora não explicitada, a questão dos limites territoriais do estado
está presente nos itens “B” e “C”, pois a fronteira contestada com o Mato Grosso estava entre o rio São Manuel
(Teles Pires) e a cachoeira das Sete Quedas.
50
Em 1896, Coudreau viajou pelo rio Xingu. Em seguida, entre o mesmo ano e 1897,
pelo Tocantins e Araguaia. Ainda em 1897, seguiu para os rios Itaboca e Itacaiúnas. Em 1898,
novamente pelo Tocantins e Xingu, e em parte do Nhamundá. No ano seguinte, entre agosto e
novembro, Coudreau realizou sua derradeira expedição. Ele faleceu no alto Trombetas,
próximo ao lago Tampagem, no dia 9 de novembro de 1899146. A obra Voyage au Trombetas
foi finalizada e publicada por sua esposa e companheira de viagens, Octavie Coudreau.
Todos os livros de Coudreau apresentam a mesma estrutura. Descrevem a vegetação,
hidrografia, demografia, economia, costumes e línguas faladas nos vários rios que percorreu.
As informações foram apresentadas em textos, tabelas populacionais e meteorológicas,
vocabulários de línguas indígenas, fotografias, gravuras e mapas.
Figura 1. Trecho do mapa do rio Tapajós e São Manuel elaborado por Henri Coudreau. Fonte:
COUDREAU, 1897.
146
COUDREAU, Octavie. Voyage au Trombetas.Paris: A. Lahure, 1900.
51
A Figura 1 representa um dos resultados das viagens de Coudreau pelo Pará. Esse
mapa dos rios Tapajós e São Manuel (atualmente conhecido como Teles Pires, afluente do
Tapajós), percorridos pelos viajantes entre 1895 e 1896, foi desenhado por Octavie em uma
escala de 1:600.000, com legendas que informam a localização de igarapés, braços de rios,
rochas, barragens, habitações e serras.147 Ele foi publicado na obra Voyage au Tapajós, de
1897.
Octavie Coudreau foi uma figura fundamental nas expedições do casal, sendo
responsável pelas fotografias, pelos primeiros-socorros, pela administração da viagem, pela
cartografia. Ela acompanhou o marido em todas as expedições, inclusive estava com ele
quando da sua morte. Tinha domínio sobre o roteiro a percorrer, tanto que deu
prosseguimento aos planos de exploração do alto Trombetas e foi responsável pela publicação
do livro. Acerca da sua importância, Henri escreveu: “Madame Coudreau é para nós o
emblema da família em viagem, o bom gênio de nossa casa errante. Eu creio que se
Livingstone tem uma carreira de grande dimensão, madame Livingstone nisto esteve muito
envolvida, não há dúvidas”148.
O êxito e os conhecimentos resultantes dessas viagens não podem ser pensados
unicamente pela ação individual do viajante que liderava as excursões, mas são frutos de uma
série de agentes, negociações e conflitos que envolviam líderes políticos, outros cientistas e
grupos locais. É claro que as ações do viajante, sua expertise em vários campos científicos e a
habilidade física e mental para superar as dificuldades inerentes de viagens longas por
territórios sem infraestrutura, altamente suscetíveis a doenças, como a malária, são
importantes para o cumprimento da sua tarefa.
Convém, no entanto, lembrar que exploradores, como Coudreau, necessitam de um
grupo de pessoas e de instrumentos que os auxiliem em seus objetivos, assim como devem
manter boas relações com uma rede local de apoio. Essas redes eram formadas por
proprietários e comerciantes influentes nas regiões percorridas, que hospedavam os viajantes,
ajudavam a arregimentar colaboradores, forneciam suprimentos e barcos, complementavam o
financiamento e, na maioria das vezes, intermediavam o contato dos viajantes com povos
indígenas e populações ribeirinhas. Sem a ajuda desses intermediários seria difícil ou
147
Sobre Octavie, ver: FERRETTI, Federico. Imperial ambivalences. Histories of lady travellers and the French
explorer Octavie Renard-Coudreau (1867-1938). Geografiska Annaler: Series B, Human Geography, Londres,
v. 99, n. 3, p. 238-255, Jun. 2017.
148
COUDREAU, Henri. Voyage au Tocantins et Xingu, 3 avril 1898-3 novembre 1898. Lahure: Paris, 1899,
p.56-57. No original: “Madame [Coudreau] est pour nous l’emblème de la famille en voyage, le bon génie de
notre foyer errant. Je crois que si Livingstone a pu fournir une si longue carrière, Mme Livingstone y a été pour
beaucoup plus qu’il n’en est ordinairement question”.
52
impossível executar completamente as excursões e realizar a coleta de dados, espécimes e
objetos. Por essa razão, manter boas relações com a comunidade local e respeitar os contextos
sociais específicos dos lugares onde realizavam o trabalho de campo eram habilidades
fundamentais para os viajantes, como pontuou Lopes149. As expedições de Coudreau não
fugiram à regra e contaram com a ajuda de remeiros, guias indígenas, ribeirinhos,
comerciantes e seringalistas.
Figura 2. Um “seco” no alto Parauapebas. Fonte: Coudreau, 1898.
A Figura 2 representa o cotidiano das viagens realizadas por Coudreau no Pará. Na
fotografia, certamente tirada por Octavie, Henri atravessa um “seco” no alto Parauapebas,
numa canoa, sendo conduzido por membros da expedição, remeiros e mateiros habitantes da
região. Na embarcação, o geógrafo está com a vestimenta e acessórios de um explorador do
século XIX – chapéu, casaco e um caderno de campo –, contemplando e analisando o local.
Essa imagem apresenta algo bem comum nas viagens do casal Coudreau: a dificuldade
de transpor as barreiras naturais dos rios e a fundamental participação de remeiros e guias
locais, em sua maioria miscigenados, negros e indígenas. Seus nomes não são lembrados por
Coudreau, mas ele cita a sua participação e declara sua presença (e função) nas fotografias.
No caso da Figura 2, o “elemento civilizador”, estrangeiro, cientista, ocupava um lugar mais
importante do que os nativos que se sacrificam para transportá-lo. Dentro da canoa, Coudreau
exerce uma atividade intelectual, evidenciada pelo olhar distante e pelo caderno de campo,
enquanto os demais membros da expedição exercem o trabalho braçal. Imagens como essa,
149
LOPES, Maria Margaret. Viajante pelo campo e pelas coleções: aspectos de uma controvérsia paleontológica.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 2001, p. 881-897.
53
que povoam os relatos de Coudreau, são poderosas evidencias do etnocentrismo, das
hierarquias sociais e raciais, das escolhas estéticas associadas a elas e também de concepções
características do final do século XIX.
1.2 OBJETOS EM REDE: A FORMAÇÃO DAS COLEÇÕES DE HENRI
COUDREAU NO PARÁ
Na mensagem de Lauro Sodré ao Congresso do Pará, em 1895, Emílio Goeldi ganhou
menções elogiosas pelo trabalho realizado e pelo impulso “de fazer dele [Museu Paraense]
cousa digna de nossa civilisação e na altura dos institutos congêneres”150. Os elogios vieram
acompanhados de uma solicitação de verbas para completar a organização do
estabelecimento, considerado útil para o Pará, pois “servindo diretamente aos interesses da
sciencia pelo muito que pode produzir o estudo do nosso meio physico, concorrerá bastante
para os progressos do Estado, sob o ponto de vista moral e até material”151.
No mesmo documento, Sodré assinalou que seriam contratados especialistas para as
seções de Botânica, Geologia e Mineralogia e Etnografia, Antropologia e Arqueologia152.
Apesar das promessas de contratação de um chefe específico para essa última seção, foi
Emílio Goeldi quem se responsabilizou por ampliar e reestruturar as coleções arqueológicas e
etnográficas da instituição. Goeldi se utilizou da rede de apoio composta por políticos,
intelectuais, viajantes, militares, etnólogos, missionários e comerciantes. Entre eles, o próprio
Sodré e o seu novo aliado, Henri Coudreau.
Em 24 de junho de 1895, Goeldi enviou uma carta ao governador, assumindo saber da
contratação de Coudreau e da missão a ele confiada. Apesar de não comentar como tomou
conhecimento do assunto, é possível que o diretor do museu tenha lido em jornais ou nas
publicações oficias, afinal, o acordo entre o viajante francês e Sodré foi bastante divulgado.
Tendo ciência de que Coudreau estava “incumbido da comissão official de exploração da
zona limitrophe entre os Estados do Pará e Matto-Grosso e Amazonas”153 e ainda de que
pretendia estudar os índios Apiacá e Munduruku, pareceu-lhe oportuno pedir providencias ao
governador:
150
SODRÉ, Lauro. Mensagem dirigida pelo Sr. Governador Dr. Lauro Sodré ao Congresso do Estado do
Pará em 7 de Abril de 1895. Belém: Diario Official, 1895, p. 38.
151
Ibid., p.39.
152
Ibid.
153
Carta de Emílio Goeldi a Lauro Sodré. Belém, 24 de julho de 1895. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo
Guilherme de La Penha, Fundo MPEG, Gestão: Emílio Goeldi, Série: Correspondência ativa.
54
[...] afim que os objetos ethonographicos e de historia natural, que por ventura sejam
encontrados durante a comissão [de Coudreau] sejam reservados para o Museu
Paraense e que revertam para este Estabelecimento estadoal collecções feitas em
comissões pagas pelo Estado. [...] tomo a liberdade enviar a V. Exma. dois
exemplares das “Instrucções praticas” como afim de serem transmitidas na mesma
[ilegível] ao Sr. Henri Coudreau.
Coudreau não fazia parte da rede de Goeldi. Não há correspondência entre eles, apenas
citações nada elogiosas nos relatórios do diretor sobre o Contestado franco-brasileiro e fortes
críticas nos vários trabalhos que Goeldi publicou sobre a Guiana Brasileira, feitas com a
finalidade de lançar a obra de Coudreau no descrédito154. Isso pode explicar o envio da carta a
Sodré, com quem Goeldi mantinha uma boa relação. Além do mais, a carta objetivava
estabelecer um acordo para que outras expedições e comissões, de outros viajantes pagos pelo
estado, formassem coleções reservadas ao Museu Paraense.
Outro elemento importante da carta foi o envio das “Intrucções praticas sobre o modo
de colligir productos da natureza para o Museu Paraense de História Natural e
Ethnographia”155, um documento publicado no Boletim da instituição, no Diário Oficial do
Estado e em jornais do interior do Pará com o propósito de incentivar e orientar possíveis
colaboradores na coleta de espécimes e objetos para o museu.
As “Instrucções praticas” não versam sobre a cultura material indígena, tratando
principalmente da coleta de espécimes da fauna e flora e da geologia. Dessa forma, não
inspiraram o viajante a formar coleções etnográficas, mas serviram, provavelmente, de base
para a coleção de lepidópteros156 e coleópteros157 doada ao Museu Paraense, como informado
no Boletim da instituição:
Obteve o Museu Paraense como presente da parte de S. Exc. o Sr. Dr. Lauro Sodré,
Governador do Estado, uma collecção de lepidópteros e coleópteros do Tapajoz –
viagem Coudreau – importando em 549 especimens – Lepidoptera 142, Coleoptera
401, Hemiptera 2, Orthoptera 1, Hymenoptera 3. Infelizmente, porém o seu estado
de conservação equivaleu a um desastre completo já no momento da entrega e pouco
proporcionalmente pôde-se salvar talvez 10%. É pena, porque como collecção local
de zona circumscripta teria tido valor158.
154
SANJAD, 2010.
GOELDI, Emílio. Instrucções praticas sobre o modo de colligir productos da natureza para o Museu Paraense
de História Natural e Etnographia. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, Belém,
1(1/4): 239-256, 1894/96.
156
Ordem
de
insetos
que
inclui
Borboletas
e
Mariposas.
Disponível
em:
<http://www.insecta.ufv.br/Entomologia/cien/sistematica/resumo/comuns.html> Acesso em 6 de junho de 2018.
157
Ordem
de
inseto
que
inclui
besouros.
Disponível
em:
<http://www.insecta.ufv.br/Entomologia/cien/sistematica/resumo/comuns.html> Acesso em 6 de junho de 2018.
158
GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado ao Exmº Sr. Dr. Lauro Sodré, governador do estado do Pará, pelo
director do Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia, Belém,
2(1/4):, 1898, p. 278-279.
155
55
De toda maneira, Coudreau já havia formado coleções de objetos indígenas antes de
trabalhar no Brasil, como aponta o estudo de Louise Deglin sobre a coleção que o viajante
destinou ao Musée d’Ethnographie du Trocadéro (MET), atualmente conservada no Musée du
Quai Branly. Segundo a pesquisadora francesa, o envio de coleções guianenses estava
relacionado ao interesse pessoal de Coudreau em expor seu trabalho numa instituição
parisiense e ao desejo de contribuir com uma importante instituição, cujo fundador e diretor,
Ernest Hamy, a quem Coudreau nutria simpatia e admiração, enfrentava dificuldades
financeiras159.
Possivelmente, a experiência de coleta nas Guianas e a aquisição da coleção pelo MET
incentivaram Coudreau e deram margem ao trabalho realizado posteriormente, a pedido de
Goeldi. O desinteresse pela história das peças e dos povos criadores, a preferência pelo
exotismo, a utilização de intermediários para a obtenção de objetos são elementos comuns nas
coleções de Coudreau depositadas tanto no Musée du Quai Branly quanto no Museu Paraense
Emílio Goeldi (MPEG).
Entre 1895 e 1896, durante suas primeiras excursões a serviço do governo paraense,
Coudreau coletou 46 objetos – este é o número documentado na Reserva Técnica Curt
Nimuendajú, do MPEG. Esse total está dividido em duas coleções, denominadas Lauro Sodré
(1897) e Henri Coudreau (1898). A primeira é formada por um objeto Tapayuna
(Kajkwakratxi), obtido no rio Tapajós, e 35 objetos Yudjá/Juruna, do rio Xingu (Tabela 1). A
coleção Coudreau é formada por dez objetos Parintintin (Kagwahiva) provenientes da
primeira expedição realizada no Pará, pelo rio Tapajós160 (Tabela 2).
Tabela 1. Coleção Lauro Sodré (1897)
Item
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
159
Nº de Procedência
registro
845
Rio Arinos
5519
5520
5521
5522
5523
5524
5525
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Objeto
Machado de pedra encabado
Brinquedo, Cachorro
Brinquedo, Quadrúpede
Brinquedo, Quadrúpede
Brinquedo, Quadrúpede
Brinquedo, Jacaré?
Brinquedo, Pássaro?
Brinquedo, Zoomorfo?
Povo
Indígena
Tapayuna
(Kajkwakratxi)
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
DEGLIN, Louise. La collection Henri Coudreau au Musée du Quai Branly Vestige d'une destinée
singulière et controversée. Mémoire d'étude. Écoule du Louvre. 2015.
160
Livros de Tombo da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi.
56
9.
5526
Alto Xingu
10.
5527
Rio Xingu
11.
5528
Rio Xingu
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
5531
5532
5533
5534
5535
5536
5537
5538
5539
5540
5541
5542
5543
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Alto Xingu
25.
26.
27.
28.
29.
30.
31.
32.
33.
34.
35.
36.
5544
5545
5546
5547
5548
5549
5550
5551
5552
5553
5554
5555
Alto Xingu
Alto Xingu
Alto Xingu
Rio Xingu
Alto Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Rio Xingu
Alto Xingu
Alto Xingu
Alto Xingu
Alto Xingu
Instrumento para abrir ou
fechar os fios dos tecidos
Fragmento de instrumento
de música
Bambús para cavinhas
auriculares
Brinquedo, Tatu
Brinquedo, Cachorro
Brinquedo, Macaco
Brinquedo, Jacaré
Brinquedo, Jabotí
Brinquedo, Pássaro?
Brinquedo, Pássaro?
Brinquedo, Pássaro?
Brinquedo, Ubá
Brinquedo, Zoomorfo
Espátula
Espátula
Instrumento para abrir ou
fechar fios dos tecidos
Cabaça para azeite de coco
Cabaça para azeite de coco
Cesto
Apito? De taboca
Ponta de Lança de pedra
Maracá
Diadema de penas
Pente
Colar de dentes diversos
Banco
Panela
Tigela
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Yudjá/Juruna
Tabela 2. Coleção Henri Coudreau (1898)
Item
1.
Nº de Procedência
registro
5169
Rio
Madeira
2.
5170
3.
5171
4.
5172
5.
5173
Alto S.
Manuel
Rio
Madeira
Rio Maici –
Madeira –
Amazonas
Rio
Madeira
Objeto
Capacete
Povo
Indígena
Parintintin
(Kagwahiva)
Machado de Pedra
Parintintin
(Kagwahiva)
Arco
Parintintin
(Kagwahiva)
Flecha com ponta de taquara Parintintin
(Kagwahiva)
Flecha com ponta de taquara
Parintintin
(Kagwahiva)
57
6.
5174
7.
5175
8.
5176
9.
5177
10.
5178
Rio
Madeira
Rio
Madeira
Rio
Madeira
Rio
Madeira
Rio
Madeira
Flecha com ponta de taquara
Parintintin
(Kagwahiva)
Cinto de tala
Parintintin
(Kagwahiva)
Enfeite de taboca com penas Parintintin
(Kagwahiva)
Enfeite de taboca com penas Parintintin
(Kagwahiva)
Pulseira de palha com
Parintintin
pingente de penas
(Kagwahiva)
Coudreau não era um etnólogo ou etnógrafo profissional. As duas coleções do MPEG,
comprovadamente formadas pelo viajante francês, têm similitudes com a coleção do MET.
Não há informações detalhadas sobre a origem dos objetos, nem fotografias ou descrições a
respeito do uso e dos respectivos significados para as comunidades produtoras – elementos
substanciais no trabalho etnológico. Tampouco houve, por parte do coletor, tentativa de
representar, por meio de artefatos, as diferentes manifestações da cultura dos povos
Yudjá/Juruna, Tapayuna (Kajkwakratxi) e Parintintin (Kagwahiva).
A prática colecionista de Coudreau, a sua despreocupação com o tratamento das
informações e dos objetos, era oposta aos ideais vicejados por Goeldi. No relatório
apresentado ao governador do Pará em janeiro de 1895, o diretor argumentou que o Museu
Paraense deveria planejar um estudo mais aprofundado e sistemático dos índios, como faziam
os museus na América do Norte. Segundo Goeldi, não era suficiente “obter-se uma flecha de
Tembé de uma pessoa, um arco de Urubú de outra e juntar-lhes mais uma buzina de
Parintintins ou um colar de Mundurucús, etc., tudo com autenticidade problemática ou como
presente de terceira ou quarta mão”.161 Não era possível imaginar que isso significava um
bom trabalho de etnografia. Pelo contrário, para Goeldi:
É uma imperiosa necessidade, estudar-se metodicamente uma tribo depois da outra,
debaixo dos múltiplos pontos de vista de sua historia, de sua atual residência e
extensão, do seu numero, dos seus costumes em paz e em guerra, da sua vida
domestica e expedicionária, do seu intelecto e de suas crenças, dos seus utensílios e
armas, da sua configuração física, da sua língua, etc. É preciso demorar-se entre
eles, para obter-se um estudo monográfico aprofundado162.
Apesar dos limites apontados na coleção etnográfica formada por Coudreau, esse
conjunto de objetos também pode ser pensado de outra maneira. Tomemos como referência os
161
GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado pelo Director do Museu Paraense ao sr. Dr. Lauro Sodré, governador
do Estado do Pará, Janeiro de 1895. Boletim do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia, v. 1,
n.3 Pará-Brazil 1896. p. 220.
162
Ibid.
58
estudos publicados no livro Unpacking the Collection163, largamente influenciados pela Actor
Network Theory (ANT) de Bruno Latour. De acordo com essa abordagem, os coletores de
museus fazem parte de uma rede composta por diferentes atores humanos e não humanos, que
trabalham em escalas e temporalidades distintas, e que possuem agência. Ou seja, não é
possível compreender que alguém possa reunir uma coleção isoladamente. É necessário o
suporte de outras pessoas e objetos para dar cabo nesse objetivo. Segundo Byrne e
colaboradores,
No caso dos colecionadores de museus do século XIX, por exemplo, é impossível
pensar neles trabalhando isoladamente. Eles dependem não apenas das tecnologias
que permitem a viagem, dos objetos com os quais negociam com as comunidades
criadoras que produzem os itens e, de fato, dos próprios itens, mas também
necessitam do próprio museu como local de armazenamento e na série de ideias que
sustentam a necessidade de desenvolver tais coleções. […] Todos esses objetos e
pessoas diferentes trabalham juntos para definir o colecionista de museu como tal164.
Como assinalou o excerto acima, diversos atores fazem parte do processo de formação
das coleções. No caso das coleções formadas por Coudreau no Pará, os povos indígenas, os
intermediários (go-betweens), as demandas do Museu Paraense e seu diretor, os proprietários
de terras e comerciantes que auxiliaram o viajante, o governador do estado e as ideias acerca
do colecionismo de artefatos indígenas são alguns dos elementos que atuaram no processo de
seleção e rejeição de objetos.
Os objetos Tapayuna (Kajkwakratxi) e Parintintin (Kagwahiva), por exemplo,
chegaram às mãos de Coudreau por meio de um intermediário, que era parte da rede de apoio
que o ajudou em toda a excursão pelo Tapajós e sem a qual o viajante encontraria muitas
dificuldades para atender os objetivos propostos pelas autoridades estatais e pelo diretor do
Museu Paraense. Esse intermediário se chamava José Francisco Moreira, arrolado por
Coudreau entre as várias pessoas que o guiaram naquela região, da seguinte maneira:
Que pessoas afáveis são a maior parte dos habitantes do Tapajós. Cardozo me
conduziu até próximo da causa de Mauricio, Mauricio me levou até a casa de Paulo
Leite, Paulo Leite subiu comigo até o Salto Augusto e depois desceu comigo até a
casa de Mauricio. Mauricio me restabeleceu à Saturnino que me levou até Sete
Quedas e me desceu até Moreira. Moreira me trouxe de volta até a casa de Mauricio
que me conduziu até a casa de Cardozo, Cardoso prosseguiu comigo até a casa de
163
BYRNE, S., CLARKE, A., HARRISSON, R., TORRENCE, R. Networks, Agents and Objects: Frameworks
for Unpacking Museum Collections. In: Byrne, S; Clarke, A; Harrison, R; Torrence, R. (orgs). Unpacking the
Collection. Networks of Material and Social Agency in the Museum. New York, Heidelberg, Dordrecht &
London: Springer, pp. 3–26, 2011.
164
BYRNE; CLARKE; HARRISSON; TORRENCE, Op. Cit, 2011, p.11 (tradução nossa). No original: “In the
case of nineteenth century museum collectors, for example, it is impossible to think of them as working in
isolation. They rely not only on the technologies which enable travel and the objects with which they trade, the
creator communities who produce the items and indeed the items themselves but also on the museum itself as a
storage facility and the series of ideas that underpin the need to develop such collections [...] All of these
different objects and people work together to define the museum collector as such”.
59
Tartaruga que me envia até a casa de Thiago, que me levou de volta até a casa de
Pinto, com quem cheguei no Brasil e ao vapor. De certo que seria a última
impropriedade de não sabermos reconhecer, a não ser por meio de platônicos
agradecimentos tanta boa vontade, tanto desinteressada quanto espontânea [...].165
No fragmento acima, Coudreau identifica alguns nomes da rede que lhe deram
guarida, compartilharam suprimentos e embarcações, ajudaram a conseguir colaboradores
para a comitiva e foram seus intermediários nas relações travadas com outros sujeitos.
Entretanto, na apreciação de gratidão, os nomes elencados pertencem em maior parte às
camadas mais abastadas e influentes da elite política e financeira do Tapajós, apesar de outros
atores, de classes e origens distintas, e geralmente não nomeados, também terem auxiliado o
viajante a cumprir seus objetivos, como membros da comitiva (Figura 3).
Figura 3 – a comitiva da expedição ao Tapajós em frente à tenda do viajante. Fonte:
Fonte: Coudreau, 1897a.
A omissão dos nomes das camadas populares e das populações indígenas não é um
simples erro ou equívoco da memória, mas resultado das relações sociais no campo de
trabalho e da conveniência. Sobre a primeira razão, é importante destacar que havia na
Amazônia, durante o século XIX, regras de sociabilidade que instituíam que os viajantes, ao
165
COUDREAU, 1897a, p.149 (tradução nossa). No original: “Quelles obligeantes personnes que la plupart de
ces habitants du Tapajoz! Cardozo me conduit près de chez Mauricio, Mauricio m'emmène chez Paulo Leite,
Paulo Leite me monte à Salto Augusto puis me descend chez Mauricio, Mauricio me remet à Saturnino qui me
pousse jusqu'à Sete Quédas et me fait descendre chez Moreira; Moreira me fait ramener chez Mauricio qui me
fait conduire chez Cardozo, Cardozo me fait poursuivre mon chemin jusque chez Tartaruga qui me fait remettre
à Thiago, lequel me fait remettre à Pinto avec qui j'arrive chez Brazil et au vapeur. Certes, il serait de la derniere
inconvenance de ne pas savoir reconnaitre autrement que par de platoniques remercîments tant de bonnes
volontés aussi désiritéressées que spontanées [...]”.
60
avançar no território, deveriam se apresentar não só aos postos oficiais de comando, mas
também aos membros da elite local166. Essas normas contribuíam para o importante contato e
para a troca de informações entre a elite local e os viajantes. As pessoas citadas por Coudreau
possuíam recursos, informações, trabalhadores e prestígio, que permitiam a expedição ser
bem sucedida, portanto, havia um real sentimento de gratidão por essas pessoas – bem como
algum interesse.
Figura 4 – Henri Coudreau, Cardozo e moradores da casa desse último. Fonte: Coudreau,
1897a.
Além disso, não se pode perder de vista que as obras de Henri Coudreau entre 1895 e
1899 tinham um nítido objetivo de divulgar o Pará ao mundo, inclusive para despertar a
imigração de colonos europeus e o interesse do capital internacional. Logo, ao elencar e
apresentar a vida de alguns moradores proeminentes do Tapajós, o viajante estava mostrando
ao leitor que é possível prosperar na região. Quando da expedição, José Lourenço Cardozo
(Figura 4) era um proprietário de terra em Chacorão e Tapucú e um dos principais criadores
de gado da região; Mauricio Rodrigues da Silva era então ex-sargento do destacamento de
Itaituba e tinha relativa influência e sucesso na região pela exploração da borracha; Paulo
Leite, cunhado de Mauricio, era seringalista e possuía o título de “patrão e protetor dos
166
ANTUNES, 2019.
61
Apiácas”167 – designação conferida por comandar uma aldeia indígena que vivia próxima de
sua casa – e à época tentava “reunir à sua volta todos os Apiácas e entregar-se à pecuária nos
prados artificiais que começou a criar entre a sua cachoeira e o Salto São Simão”168. Como
prova desse argumento, citamos uma fala do próprio autor sobre a fortuna desses personagens
em terras paraenses:
Mesmo para os mais qualificados – ou os mais interessados – seria difícil conhecer a
produção total de muitos dos mais importantes exploradores de borracha [do
Tapajós]. Os seus números de produção são cuidadosamente escondidos. Tenho
visto pequenas fortunas em casas. Eu descobri o tesouro: nunca me foi mostrado
ostensivamente. Além disso, esta estatística não é da minha responsabilidade.
Contudo, não hesito em afirmar que se eu tivesse uma produção anual equivalente
apenas às reunidas por Paulo Leite, Mauricio e Cardozo, eu não teria outra
preocupação além de mandar construir uma casa rústica nos subúrbios do Pará para
ali dedicar-me a alguma ciência, escrevendo algumas impressões e algumas
memórias 169.
Outra figura elencada por Coudreau é José Francisco Moreira, paraense e morador do
São Manuel, mas que provavelmente circulava por todo o Tapajós e afluentes. Ele era ligado à
rede composta por Leite, Cardozo, Maurício, Tartaruga, Thiago, Pinto e os povos indígenas
da região. Quando da expedição de Coudreau, Moreira começava a “estabelecer prados
artificiais para a criação de gado” na ilha de Nova Olinda170 e fazia comércio com os
Munduruku. Recebeu dos seus vizinhos “civilizados” o epíteto de “tuxaua”, por conta de seus
“modestos sucessos de linguista americanista e aviador de Caras-pretas”. Residia próximo às
“malocas mundurucú”.171 Moreira, portanto, também não deve ter conhecido os Parintintin
(Kagwahiva), pois a aliança dele com os inimigos históricos desse povo, os Munduruku,
afastaria qualquer possibilidade de aproximação.
Os objetos Parintintin (Kagwahiva), entre os quais se encontram o machado de pedra e
a ponta de flecha representados na Figura 5, foram oferecidos a Coudreau como um presente.
167
COUDREAU,1897a, p.61 (tradução nossa). No original: “Voici six années qu'il s'est établi à Todos os
Santos, portier du Alto Tapajoz, patron et protecteurs des Apiacás”.
168
Ibid. No original: “Il se propose maintenant de réunir autour de luis tous les Apiacás et de se livrer en grand à
l'élevage dans les prairies artificielles qu'il a commencé à créer entre sa cachoeira et la Salto São Simão”.
169
COUDREAU, 1897a, p.207 (tradução nossa). No original: “Il serait difficile peut-être, même pour les plus
qualifiés, - ou les plus intéressés - il serait difficile de connaître la production totale de beaucoup des plus
importants exploiteurs de borracha. On cache soigneusement son chiffre de production. J'ai vu de petites fortunes
dans des maisons. Je découvrais le trésor: on ne me le montrait jamais ostentation. Cette statistique n'est
d'ailleurs pas de mon ressort. Pourtant je n'hésite pas à affirmer que si j'avais une production anuelle équivalente
seulement à celles réunies de Paulo Leite, de Mauricio et de Cardozo, je ne me préoccuperais plus de de me faire
construire un chalet rustique dans la banlieue de Pará pour y faire quelque peu de science en y écrivant quelques
impressions et quelques souvenirs”.
170
Ibid., p.101 (tradução nossa). No original: “Moreira commence à établir des prairies artificielles pour
l'élevage du bétail”.
171
Ibid. No original: “ont valu parfois I' épithete de ‘tuxaua’de la part de quelques voisins civilisés qui enviaient
ses modestes succes de linguiste américaniste et d' aviador de Caras- Pretas”.
62
O viajante não procurou saber o processo de coleta desses objetos ou, se soube, não declarou
em Voyage au Tapajoz. É possível imaginar que os artefatos foram pilhados de alguma aldeia
ou acampamento Parintintin (Kagwahiva) e posteriormente ofertados a Moreira por algum
indígena. No livro de Coudreau, as informações sobre esses objetos resumem-se a algumas
linhas, sem menção à quantidade, ao estado de conservação, ao local onde foram obtidos, à
forma de coleta, ao uso e aos significados para a comunidade criadora. O viajante informa
apenas que eram “alguns machados e flechas muito ‘bravas’” e que enriqueceriam, “por
modesto que seja o óbolo, a seção Parintintins do Museu do Pará”172.
Figura 5. Machado e ponta de flecha Parintintin. Fonte: COUDREAU, 1897a.
O presente dado por Moreira chegou ao museu três anos após a aquisição, em 1898,
formando o que atualmente aparece na instituição como Coleção Henri Coudreau, com dez
objetos. Além da ponta de flecha e do machado representados na Figura 5, há também enfeites
de taboca, capacete, arco, cinto de tala e pulseira de pena (ver Tabela 2).
Convém observar que, mesmo não tendo tido contato algum com os Parintintin
(Kagwahiva), Coudreau os definiu como “sóbrios, honestos, repletos de qualidades”173. O
elogio parece atrelado às crenças pessoais do viajante, sobretudo no ideal do “bom
selvagem”174. O viajante era partidário de uma crença que creditava qualidades especiais aos
172
COUDREAU, 1897a,p.101. No original: “L'excellent Moreira me remet d'ailleurs quelques haches et
quelques flèches très ‘bravas’qui enrichiront, pour modeste que soit l’obole, la section Parintintins du Musée de
Pará”.
173
COUDREAU, 1897a, p.9 (tradução nossa). No original: “Enfin ils seraient sobres, honnêtes, remplis de
qualités...”.
174
SOUZA FILHO, 2008; FERRETI, 2011.
63
índios isolados, que sabiam preservar sua liberdade e que viviam longe da “civilização” que
tudo corrompia175. No entanto, o isolamento e o distanciamento dos civilizados não deveriam
levar à hostilidade e à violência, motivo pelo qual Coudreau rechaçava os Tapayuna
(Kajkwakratxi), vizinhos dos Parintintin (Kagwahiva), como destacaremos mais à frente.
A concepção de Coudreau acerca do bom selvagem não eliminou a categorização dos
índios em “mansos” e “bravos”, comuns no Brasil do século XIX176. O primeiro grupo era
valorizado por uma suposta natureza pacífica e pela capacidade de integrar-se mais facilmente
à sociedade nacional, obviamente de maneira submissa; e o segundo, era depreciado com a
fama de “violento” e “traiçoeiro” por evitar o contato com a vida “civilizada” e não se
submeter aos ditamos do “progresso” – passando a ser considerado um empecilho para o
desenvolvimento social e econômico da Amazônia. Além dos índios “bravos”, Coudreau não
poupava críticas aos ditos “indígenas civilizados”, aqueles que conviviam com os brancos e
assimilavam os valores e as mercadorias do Velho Mundo. Para ele, “o selvagem que tenta se
civilizar rápida e artificialmente é infalivelmente condenado a perder a essência de sua
grandeza e o seu saber, para adotar o que tem de mais perverso no branco”177.
Os Parintintin (Kagwahiva), segundo o viajante, viviam dispersos em pequenos
grupos, tática usada para fugir dos seus inimigos Munduruku(Wuyjuyu), com quem viviam
em contínua guerra, e dos “civilizados”. Todavia, Coudreau assinalava que o estado de “bom
selvagem” poderia ter fim em razão do apreço que tinham pelos objetos da dita “civilização” e
do interesse que despertavam nos “civilizados” que pretendiam controlar o interflúvio XinguTapajós178.
Os comentários de Coudreau foram feitos, provavelmente, com base em relatos de
moradores da região, pois o viajante não entrou em contato com os Parintintin (Kagwahiva),
apesar de ter percorrido o território onde viviam, entre os rios Juruena e São Manuel (Teles
Pires), formadores do Tapajós. A fragilidade desses comentários foi objeto de críticas na
própria época da publicação do relato de viagem ao Tapajós. Por exemplo, o uso de fontes
secundárias foi desaprovado por Arthur Vianna, intelectual paraense e diretor da Biblioteca e
do Arquivo Público do Pará, grande crítico da contratação de Coudreau pelo governo do
estado.
175
SOUZA FILHO, Op. Cit., 2008.
TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. À Luz da “civilização”: representações indígenas nas narrativas
dos viajantes (MT, séc XIV-XX). Revista Espacialidades [online],, v. 15, n. 2, pp. 71-85, 2019.
177
SOUZA FILHO, p.51.
178
COUDREAU, 1897a.
176
64
Em artigos no jornal O Pará, Vianna criticou a falta de rigor científico nas obras de
Coudreau, como é o caso do referido trecho sobre os Parintintin (Kagwahiva), Vianna
destacou as seguintes passagens de Coudreau: “Segundo alguns habitantes do Jauamaxim e
do Crépory179, os Parintintins seriam mais susceptíveis de civilização que os Mudurucús,
teriam demais o gosto pelos nossos costumes”; “(...) Os Parintintins passam todos os anos,
parece, pelas estradas de borracha dos civilizados do Crépory, do Cadery, e também, parece,
do Tapajoz”180. Ao final das citações, Vianna indagou: “haverá por ventura sciencia quando
se firma o que se escreve com diz-se, parece, segundo as pessôas, etc.?”181. Não se conhece as
razões da falta de contato do viajante com os indígenas, mas é certo que, para os seus
contemporâneos, isso não era aceitável.
Coudreau talvez tenha evitado os Parintintin em razão do contato que estabeleceu com
os aviadores dos Munduruku, como Moreira. As divergências entre esses povos eram antigas.
O viajante fez alusões, em algumas passagens, à inimizade entre os indígenas, como no trecho
em que trata do “sertão bravo” do Tapajós, acima da cachoeira das Sete Quedas. Segundo
Coudreau, quando de sua passagem pela área, alguns Munduruku “civilizados”, de uma
“maloca” abaixo da queda d’água, estavam se preparando para atacar uma aldeia “dos
Parintintins da costa ocidental” e coletar algumas “cabeças defumadas”182. Gonçalves
Tocantins183, durante sua viagem de 1875 ao Tapajós, menciona que “entre as tribos
mundurucu e parintintin reina desde longos anos odio de morte, e fazem-se guerras de
extermínio”184, inclusive citando um presente pitoresco que recebeu: “um d’estes bárbaros
[Munduruku], de vinte e cinco a trinta anos de idade, expansivo e desembaraçado, orador
verboso, no dia seguinte me fez presente da cabeça mumificada de uma moça da tribu
Parintintin”185.
Souza e Martins,186 em estudo contemporâneo a respeito da prática de mumificação de
cabeças pelos Munduruku, as “cabeças-troféus” apontaram os Parintintin, juntamente com os
179
Tradução e grifos de Arthur Vianna.
O Pará, Belém, 16 de junho de 1898, p.1. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
181
Ibid.
182
COUDREAU, Op. Cit, 1897a , p. 88 (tradução nossa). No original: “Les Mundurucús civilisés d'une maloca
un peu en aval de la Cachoeira das Sete Quédas, se préparaient, comme je revenais, à aller faire à quelques jours
au-dessus de la Cachoeira limite, une récolte de têtes à boucaner chez des Parintinlins de la rive occidentale” .
183
TOCANTINS, Antonio Manuel Gonçalves. Estudo sobre a tribu Mundurucu. Revista Trimensal do
Instituto Histórico Geographico e Ethnographico Brasileiro, tomo XL. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877,
p. 73-161.
184
Ibid., p. 84
185
Ibid, p. 85.
186
SOUZA, Sheila Mendonça; MARTINS, Maria Rosário. A cabeça troféu Munduruku do Museu
Antropológico da Universidade de Coimbra: análise do objecto e os seus desafios. Antropologia Portuguesa, v.
20, p. 155-181, 2004.
180
65
Mura, Maué e Arara, como os principais alvos dos ataques. A maior parte das “cabeçatroféus” salvaguardadas em instituições museológicas é proveniente do primeiro povo
citado187, demonstrando assim a inimizade histórica entre os dois grupos indígenas habitantes
do Tapajós e do São Manuel. Os frequentes ataques certamente possibilitavam que os
Munduruku obtivessem objetos fabricados pelos seus inimigos.
Tratemos, agora, da Coleção Lauro Sodré, de 1897, que possui objetos Yudjá/Juruna e
Tapayuna (Kajkwakratxi). O único objeto dos Tapayuna, o machado de pedra encabado,
representado na Figura 6 é a peça que levanta as maiores dúvidas sobre a procedência e o
processo de coleta. Em Voyage au Tapajoz, não há informações a respeito da sua coleta ou do
envio a alguma instituição museológica. Há apenas a sua representação em desenho, com os
seguintes dizeres em francês: “o cabo em madeira se retira facilmente”. A frase ressalta uma
das características desse tipo de objeto, o cabo feito de lenho secundário morto e removível188.
Figura 6. Machado Tapayuna. Fonte: COUDREAU, 1897a.
No Catálogo das coleções etnográficas do Museu Goeldi189, organizado por Curt
Nimuendajú em 1921, quando ocupava o cargo de chefe interino da Seção de Etnologia,
Arqueologia e Antropologia da instituição, consta a seguinte informação no campo referente à
procedência do machado: “H. Coudreau 1895 – V. Voyage au Tapajoz p. 91. Obtido pelos
Apiacá”. Na referida página de Coudreau, contudo, não se encontra o relato da doação ou
compra dos objetos, como ocorreu no caso de Moreira e dos artefatos Parintintin
187
SANTOS, Sheila Ferreira dos; SALLES, Adilson Dias; SOUZA, Sheila Maria Ferraz Mendonça de;
NASCIMENTO, Fátima Regina. Os Mundurukus e as “cabeças-troféu”. Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia, n. 17, p. 365-380, 2007..
188
RIBEIRO, Berta Gleizer. Dicionário do Artesanato Indígena. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1988.
189
NIMUENDAJÚ, Curt. Catálogo das coleções etnográficas do Museu Goeldi: cópia do 1º Catálogo do Sr. Curt
Nimuendajú. Belém, 1921. (Não publicado)
66
(Kagwahiva), mas apenas a imagem do machado e uma descrição das táticas de ataque dos
Tapayuna. É possível que Nimuendajú tenha deduzido que o objeto havia sido obtido pelos
Apiaká, pois Coudreau não entrou em contato com os Tapayuna, mas fez um parecer negativo
sobre o grupo baseado nas informações dadas pelos Apiaká, como se pode perceber no
seguinte trecho: “os Tapanhunas são, ao que parece, da língua geral, os Apiacás teriam, ao
que dizem, compreendido perfeitamente sua língua nos raros encontros que tiveram desde a
migração dos Apiacás para o norte”190.
É importante destacar que o trabalho realizado por Coudreau não pode ser encarado
como uma pesquisa etnográfica. É, antes, um apanhado de informações coletadas com pouca
ou nenhuma sistematização. Ele parece apenas reportar, sem crítica ou método, o que vê ou
escuta, sem problematizar as fontes ou compará-las a fim de providenciar um estudo rigoroso
dos povos indígenas das regiões visitadas. As considerações e descrições acerca dos
indígenas, volumosas nos livros de Coudreau, muitas vezes incorrem em erros, o que deve
despertar a necessária atenção e crítica de quem se debruça sobre sua obra. Lima191, em seu
estudo sobre os Tapayuna, levantou a hipótese de que os indígenas relatados por Coudreau
eram, na verdade, Kayapi, baseada na região percorrida pelo viajante e no recorte temporal da
expedição ao Tapajós. Segundo Lima, até o início do século XX, eram os Kayapi que
residiam nos rios Arinos, dos Peixes e Teles Pires, visitados e descritos por Coudreau. Não se
pode, contudo, validar essa hipótese por falta de fontes históricas, razão pela qual o povo
indígena encontrado pelo viajante continuará sendo aqui considerado como Tapayuna.
Apesar de não ter conhecido pessoalmente os Tapayuna, Coudreau não apreciou suas
táticas de guerra por não revelarem “um alto valor militar ou moral”. Essas táticas consistiam
em emboscadas ou, nas palavras de Coudreau, em “assassinato por traição”. Escreveu o
viajante:
190
COUDREAU, 1897a, p.91 (tradução nossa). No original: ‘les Tapanhunas sont, parait-il, de língua geral, les
Apiacás auraient, disentils, parfaitement compris leur langue dans les rencontres d'ailleurs fort rares qu'ils ont
eues avec eux depuis la migration des Apiacás vers le nord”.
191
LIMA, D. B. Os Tapayuna na História. Campos – Revista de Antropologia, v.15, n.2, p.43-69, 2014.
67
Eles esperam os viajantes que vão passando pelo rio. Os Tapanhunas estão em
alguma praia, em alguma margem, em ângulo tal que os viajantes sejam obrigados a
agir de imediato, sem muito tempo para reflexão. Eles surgem, portanto, todos sem
flechas, riem, conversando alto, e fazendo aqueles que chegam sinais amigáveis para
convidar-los a atracar. Ao que os viajantes imprudentes ao aproximar-se do alcance
de suas flechas e de repente nossos Tapaunhas fazem chover suas “tacuaras" sobre
suas vítimas despreocupadas192.
Os Tapayuna, apesar de serem índios resistentes ao contato com outros povos, foram
concebidos por Coudreau como “bandidos hereditários e profissionais”. Estes indígenas
mantinham relativo isolamento, característica do bom selvagem, todavia, tendiam para ações
de guerra que eram censuradas pelo viajante francês193.
Os Tapayuna, resistentes aos impositivos da civilização, não se encaixavam no ideal
do “bom selvagem” buscado pelo viajante nos sertões amazônicos. As atitudes, os ataques aos
“civilizados” e o uso da tática do “assassinato por traição” fizeram com que fossem
interpretados como índios “bravos”, antagônicos aos exemplos de virtuosidade dos “mansos”.
A primeira categoria era execrada por Coudreau, merecendo a seguinte avaliação: “em quinze
anos viajando com os índios, cheguei à convicção de que os índios ‘bravos’ são pura e
simplesmente bandidos hereditários e profissionais, em relação aos quais a filantropia é uma
ilusão”194.
Além do machado de pedra Tapayuna, a Coleção Lauro Sodré é formada também por
36 objetos Yudjá/Juruna (ver Tabela 1). Diferentemente do que ocorreu no caso dos Tapayuna
(Kajkwakratxi) e Parintintin (Kagwahiva), Coudreau conviveu com algumas pessoas desse
povo durante a expedição ao rio Xingu, em 1896, legando, no livro Voyage au Xingu,
informações sobre os indígenas e o processo de colecionamento, inclusive fotografias de
alguns índios (Figura 7) e dos lugares de coleta (Figura 8)195.
192
COUDREAU, Op. Cit.,1897a, p.91 (tradução nossa). No original: “Ils attendent les voyageurs qui s'en vont
passant par la rivière. Les Tapanhunas sont là sur quelque plage, sur quelque berge, à un angle autant que
possible pour que les voyageurs soient forcés à agir de suite sans avoir trop le temps de réfléchir. Ils surgissent
ainsi tout à du paysage sans are ni flèche, riant, parlant fort, et faisant à ceux qui viennent force signes d'amitiés
pour les inviter à accoster. Que les imprudents voyageurs s'approchent à portée des fleches et soudain nos
Tapanhunas font pleuvoir leurs “tacuaras” sur leurs confiantes victimes”.
193
COUDREAU, Op. Cit., 1897a.
194
Ibid., p.91 (tradução nossa). No original: “En quinze années de voyage chez les lndiens je suis arrivé à me
faire cette conviction que les Indiens “bravos” sont purement et simplement des bandits héréditaires et
professionnels à l'endroit desquels la philanthropie est un leurre”.
195
COUDREAU, 1897c.
68
Figura 7. Joaquim Pena e sua família. Fonte: COUDREAU, 1897c.
Figura 8. Maloca Abandonada. Fonte: COUDREAU,1897c.
Os Yudjá/Juruna, segundo Coudreau, viviam na região entre a Praia Grande e a Pedra
Seca, ao longo do Xingu. Haviam sido numerosos uns vinte anos antes da sua expedição, mas
naquele momento viviam em apenas 18 malocas, cujos tuxauas eram “Dâmaso, Murutú,
Nunes, Curambé, Cancan, Triendé, Tababacú, Tabaratá, Tabão, Aribá, Macaïri, Joaquim
Pena, Ignacio; Day, Tamaricú, Turià, Pacharicú”. Segundo Coudreau, “hoje eles são
69
reduzidos em número: se podemos contar, no máximo uns 150 – mansos, civilizados ou
errantes”.196
Os Yudjá/Juruna passavam por processo de decréscimo populacional e viviam em
constante fuga, com medo dos “civilizados” e dos inimigos indígenas, sobretudo os Karajá,
que buscavam explorar o seu trabalho ou matá-los, respectivamente. Nesse contexto ocorreu a
primeira coleta de objetos, seguindo um padrão praticado por outros viajantes mundo afora:
os objetos foram levados sem o consentimento dos indígenas produtores, sem qualquer
negociação ou troca material. Coudreau estava percorrendo o rio Xingu, quando observou
“malocas abandonadas” (Figura 8) dos Yudjá/Juruna, que fugiam da ação dos “civilizados”.
Recolheu, então, os objetos (Figura 9), como relatou com algum sarcasmo: “em uma dessas
malocas abandonadas, a de Turiá, ao que me dizem, coleciono várias bugigangas e utensílios
que os Jurunas, ao se mudarem, deixaram ali, não obviamente para o Museu Paraense”.197
Figura 9 – Brinquedo-Ubá do povo Yudjá/Juruna. Fonte: “Coleção Etnográfica Reserva
Técnica Curt Nimuendajú MCTI/ Museu Paraense Emílio Goeldi” (2016). Foto: Fabio Jacob,
2016.
196
COUDREAU, 1897c, p. 33 (Tradução nossa). No original: “Ils sont aujourd’hui réduits em nombre: c’est tout
au plus si l’on peut em compter 150, - mansos, civilisés ou vagabonds”.
197
COUDREAU, 1897c, p.66(tradução nossa). No original: “Dans une de ces malocas abandonnées, celle de
Turiá, à ce qu’on me dit, je fais collection de differérents bibelots et ustensiles que les Jurunas, em déménageant,
on laissé là, non évidemment à l’intention du Musée Paraense”.
70
Figura 10 – Objetos possivelmente da coleção etnográfica Lauro Sodré de 1897. Fonte:
Fotógrafo e data não identificados. Negativo MPEG000435, Museu Paraense Emílio Goeldi,
Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica.
O que ocorreu no Xingu não foi uma exceção no processo de formação de coleções
etnográficas. Várias foram constituídas com peças retiradas do seu contexto original por meio
do extravio e furto, ação legitimada pelos mais diversos pressupostos colecionistas, científicos
e civilizatórios. Muitos viajantes, naturalistas e etnólogos pensavam os objetos como inertes,
a-históricos, sem levar em conta a importância, a agência, os significados que marcavam a
vida social das comunidades produtoras.
A segunda coleta seguiu o mesmo padrão, em uma ilhota a montante do Travessão da
Capivara, sobre uma dúzia de “ajoupas” repartidas em dois acampamentos “na mirrada
floresta”. Coudreau reportou: “coleciono 22 objetos da indústria de Juruna, alguns até
artísticos: entalhes de madeira!”. Ainda entre os objetos apropriados, havia uma “ponta de
lança em pedra cortada, sem dúvida, proveniente das regiões centrais do sul”, peça que o
viajante, possivelmente, imaginou ser um achado arqueológico. Coudreau, contudo, se
absteve de discutir “sobre a probabilidade ou não da existência indígena da pedra talhada na
América”198. Essa ponta de lança, originalmente incorporada na coleção etnográfica do Museu
198
COUDREAU,1897c, p.70-71. No original: “Une curiosité à propôs de laquelle je ne m’astreindrai point à
discuter les théories ayant cours au sujet de la probabilité ou de la non-probabilité de l’existence autochtone de la
pierre taillée en Amérique”.
71
Paraense, foi posteriormente, talvez nos anos 1980-1990, transferida para a coleção
arqueológica da instituição199.
A maneira como Coudreau se referiu aos Yudjá/Juruna alterou-se ao longo do livro
Voyage au Xingu, à medida em que ia convivendo com os índios. Nos primeiros capítulos, os
Yudjá/Juruna foram descritos como guerreiros, traiçoeiros e que, caso atacassem a expedição,
não titubearia em alvejá-los com tiros de rifles. O receio transformou-se em uma espécie de
compaixão pelo estado de penúria em que os índios “mansos” eram jogados ao fugir dos
“civilizados” e de outros indígenas inimigos.
O contato mais próximo e intenso com os Yudjá/Juruna se deu com Laurinda, Xambi e
o antigo tuxaua Joaquim Pena (Figura 7). Os dois primeiros foram, como afirmou o viajante,
“juntamente com a carta de Steinen, nossos guias de viagem [...]”200. Entretanto, seu papel se
sobrepõe ao de simples guias, pois foram também fundamentais fontes de conhecimento
tradicional dos Yudjá/Juruna e dos Karajá. O êxito da expedição em vários momentos, os
conhecimentos acerca da navegação e dos costumes dos povos habitantes do Xingu, relatados
em Voyage au Xingu, são devidos aos saberes tradicionais compartilhados pelo casal
Yudjá/Juruna201.
Joaquim Pena, “o pobre rei exilado” do alto Xingu, havia sido um antigo líder de uma
importante aldeia Yudjá/Juruna. Ele aparece com frequência na narrativa de Voyage au Xingu
devido ao diálogo que estabeleceu com Coudreau, o que gerou observações do viajante
recheadas de crítica social. Ao longo do livro, o único indígena com fala direta transcrita é
Pena, possivelmente pela admiração que causou no autor.
Quando do encontro entre o viajante e o líder indígena, em uma situação assimétrica,
mas não permeada pela submissão do nativo, ocorreu um monólogo em tom de lamento, que
denuncia o nomadismo em que os Yudjá/Juruna foram obrigados a viver e a miséria em que
foram jogados, causada pelos senhores proprietários que os obrigavam a fugir para preservar
sua liberdade:
[...] Nossa sina é a de estarmos sempre em fuga. Antigamente, a gente fugia dos
índios bravos e agora, dos civilizados, nossos queridos protetores. Mas logo estes
senhores não poderão proteger quem quer que seja dos nossos: o último dos Juruna
não demorará a levar para sempre a alma da raça, em qualquer cova rasa, sob alguns
punhados de terra natal202.
199
Cf. Livros de Tombo da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi.
COUDREAU, Op. Cit.,1897c, p.50.
201
COELHO; BENCHIMOL; MIRANDA, 2019.
202
COUDREAU, 1897c, p.81 (tradução nossa). No original: “[...] Notre destinée est d’être toujours en fuite.
Autrefois nous fuyions les Indiens bravos et maintenant les civilisés, nos chers protecteurs. Mais bientòt ces
messieurs n’auront plus à proteger personne d’entre nous: le dernier des Juruna ne tardera pas à emporter pour
jamais l’âme de la race dans quelque trou peu profond, sous quelques poignées de terre natale”.
200
72
O tom pessimista de Pena, ou de Coudreau interpretando Pena, não se sabe, é uma
reflexão acerca da penúria e da péssima condição social em que se encontravam os indígenas
da região. Antes um líder de uma grande aldeia, agora Pena era alguém que fugia pela mata,
em busca da liberdade ou de melhores condições de vida. Os objetos coletados por Coudreau
eram os vestígios dessas fugas, reação ao medo e, simultaneamente, ação da agência indígena.
Para Coudreau, os principais responsáveis por essa moléstia eram os comerciantes, que
adentravam as matas e retiravam os índios do seu estado de “bom selvagem”, movidos pela
lógica capitalista, extremamente desigual, e interessados apenas em vender suas mercadorias e
explorar a mão de obra indígena.203
1.3 A TRANSFERÊNCIA DAS COLEÇÕES PARA O MUSEU PARAENSE
A expedição de Coudreau ao Tapajós iniciou em 28 de julho 1895 e findou em 7 de
janeiro do ano seguinte. No dia 22 de janeiro de 1896, Coudreau retornou a Belém para
apresentar a Lauro Sodré “o relatorio e depois o autographo da obra denominada ‘Voyage au
Tapajos’ contendo desenvolvida narração e estudo do territorio explorado, grande carta do rio
e interessantes fotografias de paysagens e de costumes indígenas”204. Em 1897, ocorreu outro
encontro entre os dois, novamente para apresentar os resultados dos trabalhos de campo, dessa
vez da expedição realizada no Xingu entre maio e outubro do ano anterior. Os relatos de
ambas as viagens foram remetidos ao embaixador brasileiro em Paris, Gabriel de Piza, com a
finalidade de serem impressos pela casa Lahure.
Formadas as duas coleções, pouco se sabe sobre seu trânsito até o Museu Paraense. O
primeiro catálogo da coleção etnográfica dessa instituição data de 1921, o que foi organizado
por Nimuendajú, portanto o processo de musealização dessas coleções a partir de 1896 tem
muitas lacunas. No relatório de Albuquerque Mendonça, do qual foram retiradas as
informações acerca dos encontros entre Coudreau e Sodré, não há alusão à entrega dos
objetos. É provável que eles tenham sido levados a Sodré durante a estadia de Coudreau em
Belém, durante a qual ele não apenas finalizou e entregou seus escritos, como também
planejou as expedições seguintes.
203
COUDREAU, Op. Cit., 1897c.
MENDONÇA, Albuquerque. Administração do Dr. Lauro Sodré. Belém: Typ. do Diário Official, 1897, p.
37. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil
204
73
As primeiras referências aos objetos coletados no Tapajós e Xingu são encontradas
nos boletins do Museu Paraense, particularmente, nos relatórios do diretor ao governador. As
doações ao museu eram registradas anualmente nos boletins, no segmento denominado
“Donativos”. Nessas listas aparecem o nome completo das pessoas que, de alguma forma,
contribuíram para as coleções da instituição e, por vezes, os objetos doados. Foi o caso de
Lauro Sodré.
No relatório de 1896, Emílio Goeldi menciona que, naquele ano, foram feitos diversos
“donativos importantes, relativos á parte ethnographica” por parte do governador do estado,
como “arcos, flechas, remos, fotografias do Indios “Gaviões” do Tocantins”205. No entanto,
não há armas indígenas na coleção Lauro Sodré, datada de 1897, tão pouco objetos dos índios
“Gaviões”. Arcos e flechas (nº 5571 a 5574206) compõem a coleção de objetos Parintintin, que
Coudreau doaria apenas no ano posterior207. As peças referidas por Goeldi provavelmente
foram adquiridas pela autoridade estadual por outro meio, sobre o qual não temos
informações.
No mesmo relatório (1896), está escrito que o Museu Paraense recebeu doações de
lepidópteros e coleópteros provindos do Tapajós, da expedição realizada por Coudreau, mas
doados pelo governador. Isso permite pensar que Coudreau não entregou pessoalmente a
Goeldi os objetos Tapayuna e Parintintin, mas sim por intermédio de Sodré, que recebeu o
crédito dos donativos. De acordo com o relatório, a entrega dos objetos coletados no Tapajós
deve ter ocorrido entre os primeiros dias de 1896 e o início de 1897, mas eles só foram
tombados, por razões desconhecidas, em 1898 (Tabela 2).
No relatório de Goeldi referente ao ano de 1897, há menção a novos incrementos de
objetos etnográficos. Uma doação mereceu “menção nominal”: a coleção do senador Lauro
Sodré, já ex-governador do Pará. Segundo Goeldi, uma “bella collecção de armas, banquinhos
e outras obras de madeira de uso entre Indios do Tapajós” foi enviada ao Museu Paraense
antes da mudança de Sodré para o Rio de Janeiro208. Esses donativos são, certamente, os que
compõem a atual Coleção Lauro Sodré (Tabela 1), cuja data de tombamento é o mesmo ano
205
GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado ao exmo. Sr. Dr. Lauro Sodré, governador do Pará, pelo diretor do
Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia v. 2, n. 3, 1898, p.280.
206
Número do objeto no livro de tombo da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi.
207
Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); A Relação do Material Etnográfico do Museu
Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia (1955);
Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Paraense Emílio Goeldi e da Universidade Federal do Pará
(1982).
208
GOELDI, Emílio. Relatorio apresentado ao exmo. Sr. Dr. José Paes de Carvalho, governador do Pará, pelo
diretor do Museu Paraense [ano de 1897]. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia,
v.3, n. 1-2, 1902, p.50.
74
de 1897. Além da coincidência de datas, há predominância de artefatos de madeira na referida
coleção, como o citado banco (nº 5553). No entanto, o texto de Goeldi informa que os
artefatos de madeira foram produzidos por índios do Tapajós, e não pelos Yudjá/Juruna do
Xingu (além do machado Tapayuna, do Tapajós). Isso suscita três hipóteses: a primeira
consiste numa possível mistura das duas coleções quando da chegada à instituição, entre 1896
e 1897, as quais podem ter sido posteriormente separadas e reorganizadas, ganhando a
estrutura que se conhece atualmente; a segunda seria a existência de mais artefatos, inclusive
bélicos, produzidos por indígenas do Tapajós, extraviados ao passar do tempo; a última seria
um possível engano de Goeldi, que pode ter redigido o relatório sem ter feito uma análise do
material ou sem ter recebido informações corretas e completas sobre os objetos.
No levantamento documental realizado para essa pesquisa, não foram encontradas as
listas dos objetos coletados por Coudreau e doados ao Museu Paraense, o que dificulta a
análise do processo de musealização, particularmente, a maneira como ocorreu a transferência
dos objetos do campo para os armários e as vitrines do museu. Goeldi era, além de diretor, o
chefe da Seção de Antropologia, Etnologia e Arqueologia, mas não era um especialista nesses
campos e não dedicou muito tempo ao estudo das coleções etnográficas e arqueológicas. As
peças só foram inventariadas e descritas mais detalhadamente por Nimuendajú, em 1921,
quando organizou o primeiro Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi.209 Nessa
primeira listagem, 37 objetos de três etnias (Yudjá/Juruna, Tapayuna (Kajkwakratxi) e
Parintintin (Kagwahiva) são atribuídos a Coudreau, divididos entre a coleção que recebeu o
nome do viajante e a que foi batizada com o nome de Lauro Sodré, em 1898 e 1897,
respectivamente. Na lista, constam o local de procedência, a etnia e algumas informações
sobre as circunstâncias de coleta.
O segundo catálogo da coleção etnográfica do Museu Goeldi data dos anos de 1939 e
1940. Ele também foi elaborado por Nimuendajú, com o auxílio de Evalda Xavier Falcão. No
documento, os objetos estão divididos de acordo com os respectivos povos indígenas,
apresentando os números da listagem anterior e os novos, que lhes foram atribuídos nessa
ocasião. Na década seguinte, em 1955, Eduardo Galvão produziu o Registro do Material
Etnográfico da Divisão de Antropologia, dividido em oito livros de tombo, com informações
atualizadas a respeito dos objetos existentes na reserva técnica e o estado de conservação. No
livro, são mencionados 46 objetos coletados por Coudreau, dos três povos já referidos.
209
BENCHIMOL, Alegria. Informação e objeto etnográfico: percurso interdisciplinar no Museu Paraense
Emílio Goeldi. 2009. 124 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação)-Universidade Federal Fluminense
e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (PPGCI/UFF/IBICT), Rio de Janeiro, 2009.
75
A razão da diferença entre o número de objetos coletados por Coudreau no primeiro
catálogo de Curt Nimuendajú e no Registro do Material de Eduardo Galvão é a omissão de
nove artefatos Parintintin (Kagwahiva) na primeira listagem, mas que aparecem na segunda
lista de Nimuendajú, de 1939. Dessa forma, consolidamos o número de 46 objetos
etnográficos coletados e acondicionados no Museu Paraense Emílio Goeldi210.
1.4 COLECIONAMENTO E AGÊNCIA INDÍGENA: REDES DE CIRCULAÇÃO
Ao iniciarmos a leitura das fontes documentais, da bibliografia e da cultura material, a
noção de que a coleção é resultado principalmente da ação do seu coletor211 parecia
corresponder ao caso analisado nesse capítulo: a desconexão dos objetos que formam as duas
coleções (Henri Coudreau e Lauro Sodré), a falta de informações sobre a procedência, o local
da coleta, o uso e o significado dos objetos podem ser atribuídos ao amadorismo e à falta de
preocupação de Coudreau com o trabalho etnográfico. Todavia, a partir dos próprios livros do
viajante e de outros documentos, percebe-se que outros atores participaram ativamente da
formação e musealização das referidas coleções.
Como afirmou Byrne, “as coleções etnográficas manifestam um conjunto complexo de
relações sociais, negociações e processos”212. Mais do que frutos da iniciativa e da apreciação
do coletor, são produtos das relações entre diferentes sujeitos, humanos e não-humanos, entre
mercadorias, entre informações e ideologias, viajantes e indígenas, diretores de museus e
colecionadores, entre outros.
Nesse sentido, uma coleção pode ser considerada para além da ação do coletor, pois é
também resultado da interação de outros agentes, que participam igualmente do processo de
seleção e rejeição dos objetos. Sem as demandas de Goeldi, que buscava ampliar a coleção
etnográfica do Museu Paraense, as duas coleções talvez não tivessem sido formadas. Foram
também importantes a subordinação do viajante às ordens do governador do Pará, uma vez
que Coudreau desejava trabalhar no Brasil depois de um conturbado passado nas Guianas
Francesa e Brasileira; as ideias que ele tinha sobre o colecionamento e sua experiência na
formação de coleções para outra instituição museológica; o contexto histórico vivido pelos
210
COELHO, Matheus C..; BENCHIMOL, Alegria.; MIRANDA, Elis de Araújo. As Contribuições de Henri
Coudreau à Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi. Museologia & Interdisciplinaridade, [S.
l.], v. 9, n. 17, p. 202–219, 2020. DOI: 10.26512/museologia.v9i17.19690. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/19690. Acesso em: 21 mai. 2021.
211
Ibid.
212
BYRNE, Sarah. Trials and Traces: A. C. Haddon’s Agency as Museum Curator. In: BYRNE et al., 2011,
p.307.
76
moradores dos rios Tapajós e Xingu e as relações do viajante com as redes sociais locais,
como foram os casos de José Francisco Moreira e dos Apiaká, ambos determinantes para que
objetos produzidos por terceiros (Parintintin e Tapayuna) chegassem às mãos de Coudreau
depois de percorrerem outras redes de apropriação e ressignificação.
A aquisição dos objetos Tapayuna e Parintintin demonstra que havia no Tapajós uma
circulação de artefatos indígenas, algo comum em diversos espaços amazônicos, reportado
desde os primeiros textos europeus sobre a região213. Velthem, ao tratar das trocas ameríndias,
sublinhou dois pressupostos em relação ao objeto: o primeiro é que ele “é passível de circular
através de círculos que ele determina e nos quais ele é determinante”214; o segundo é que, “ao
se deslocar, um objeto o faz tanto geográfica como socialmente e que essa circulação ocorre,
portanto, tanto no tempo como no espaço”215.
O primeiro pressuposto diz respeito aos artefatos negociados e que são frutos da
“especialização artesanal” que se desenvolveu em áreas como as Guianas, o alto Xingu e o rio
Negro. Segundo Velthem, no noroeste amazônico, os raladores, cestos cargueiros e bancos
dirigem os sistemas de trocas e são ativos importantes na região. A segunda assertiva refere-se
às mudanças conceituais e práticas, não somente geográficas, pelas quais os objetos passam
ao entrarem nas redes de circulação. As peças são manipuladas socialmente, podem ser
utilizadas de formas distintas pelos entes que as possuem, além de assumir novos significados
e sentidos a partir dos valores de crença. A mesma autora cita o exemplo do espelho
ocidental, presente na coleção de Henri Coudreau conservada no Musée du Quai Branly, mas
que está ornamentado com grafismos Wayana.
Nesse ponto, é lícito levantar um questionamento: houve agência indígena na
montagem das duas coleções associadas a Coudreau? A pergunta pode ser feita em razão da
falta de contato entre Coudreau e as comunidades produtoras dos objetos, não havendo
negociações diretas entre eles. Esse ponto é comum em diversas coleções etnográficas, afinal,
muitos colecionadores não eram etnógrafos, não tinham formação acadêmica ou não estavam
interessados em fazer estudos acerca das populações autóctones. No entanto, se não podemos
assumir que as comunidades criadoras agenciaram diretamente a escolha dos objetos que
compõem as duas coleções, podemos pelo menos afirmar que elas delimitaram quais não
deveriam entrar nas redes de circulação.
213
GALLOIS, Dominique. Migração, guerra e comércio: os Waiãpi na Guiana. São Paulo: FFLCH/USP, 1986
apud VELTHEM, Lucia Hussak van. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises.
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 7, n. 1, jan.-abr. 2012.
214
VELTHEM, Op. Cit., 2012, p. 59.
215
Ibid., p.60.
77
Pieter ter Keurs, ao discutir os vários papéis das populações locais, dos políticos e dos
intermediários no processo de coleta de objetos na Indonésia e no Mediterrâneo por
holandeses no século XIX, notou a ausência de objetos rituais nas coleções. Baseado nas
ideias de Nicholas Thomas,216 de que os objetos coletados por europeus no Pacífico estavam
enredados nos valores e nas normas culturais locais, Keurs chegou à conclusão de que o
mesmo deve ter ocorrido na coleta feita pelos holandeses: “os objetos rituais mais importantes
não eram mostrados para os visitantes e, portanto, não poderiam ser obtidos”217.
Nessa perspectiva, é possível levantar a hipótese de que os objetos que chegaram às
mãos de José Francisco Moreira e dos Apiaká, através das redes interculturais de circulação,
foram selecionados pelos indígenas produtores. Comumente, objetos rituais ou religiosos não
são negociados e são especialmente protegidos, como demonstram os estudos de Keurs e
Thomas, por estarem intrincados em complexos sistemas culturais que não permitem que
sejam vendidos, trocados e até mesmo vistos por pessoas de outras culturas. Essa é uma
explicação plausível para o fato das duas coleções associadas a Coudreau serem formadas
apenas por objetos comuns (utilitários, brinquedos, adornos e armas), que certamente tinham
maior circulação e podiam ser facilmente negociados ou pilhados. Pode-se assumir, portanto,
que objetos rituais ou de uso especial não foram incorporados porque não circulavam com
frequência – e não circulavam com frequência porque eram mais protegidos ou cuidados pelas
comunidades produtoras218.
Essa hipótese continuará a ser testada nesta pesquisa, pois as redes de circulação de
objetos e a agência indígena são elementos importantes para pensar a formação e a
musealização de coleções etnográficas. Veremos, no próximo capítulo, a participação da rede
de colaboradores indígenas e não-indígenas na formação e aquisição, pelo Museu Paraense,
da coleção de Theodor Koch-Grünberg em 1905.
216
THOMAS, Nicholas. Entangled objects: exchange, material culture and colonialism in the Pacific.
Cambridge: Harvard University Press, 1991.
217
KEURS, Pieter ter. Agency, Prestige and Politics: Dutch Collecting Abroad and Local Responses. In:
BYRNE et al., 2011, p. 173. No original: “It is also likely – at least in the beginning of the nineteenth century –
that the most important ritual objects were not shown to the European visitors and therefore they could not be
obtained”
218
VELTHEM, Op. Cit., 2012.
78
Capítulo 2 – A coleção Theodor Koch-Grünberg de 1905: um
Völkerkundler na Amazônia
O presente capítulo investigará a musealização da coleção etnográfica formada por
Theodor Koch-Grünberg para o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). O capítulo será
dividido em quatro subitens, intitulados: 1– Os americanistas e a Volkerkünde; 2– As
expedições de um Volkerkundler (1899-1924); 3– A Volkerkünde percorre o rio Negro: a
formação da coleção etnográfica de Koch-Grünberg; 4– A aquisição das “duplicatas” pelo
Museu Goeldi. O primeiro tópico aborda brevemente o contexto da teoria etnológica e dos
museus etnográficos alemães do final do século XIX e início do XX, aos quais KochGrünberg foi filiado. O segundo tópico apresenta resumidamente a trajetória do etnólogo, as
suas expedições e produções científicas, e analisa suas concepções e representações acerca
das populações ameríndias. O terceiro tópico investiga a formação da coleção de KochGrünberg durante a expedição pelo alto rio Negro e seus afluentes e a participação das redes
de colaboradores indígenas e não-indígenas no processo de negociação, seleção e aquisição
dos objetos. O quarto e último tópico trata do processo de compra e catalogação pelo Museu
Goeldi da coleção formada pelo americanista.
2.1– Os americanistas e a Volkerkünde
Entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, ocorreram diversas
expedições chefiadas por etnólogos e exploradores alemães praticantes da Völkerkunde219 na
América do Sul. Conhecidos como americanistas, esses homens – sob a influência decisiva
dos trabalhos de Adolf Bastian (1826-1905) e dos interesses das instituições museológicas de
seu país – realizaram expedições a campo com a finalidade coletar e estudar a cultura material
e aspectos culturais, religiosos, sociais e linguísticos das sociedades ameríndias220.
219
Destaco que a utilização dos termos “antropologia”, “etnologia” e “etnografia” não é uniforme em todo
mundo. Na Alemanha, e em países que comungam da língua alemã, o termo Anthropologie era utilizado para
designar antropologia biológica e Völkerkunde – termo empregado pelos intelectuais e pesquisadores alemães
para tratar da “ciência dos povos” ou “ciência do estudo dos povos” – abarca as atuais antropologia social,
antropologia cultura e etnologia. In: VIERTLER, Renate Brigitte. Os fundamentos da teoria antropológica
alemã: etnologia e antropologia em países de língua alemã: 1700-1950. São Paulo: Annablume, 2017.
220
Para mais informações acerca da Etnologia alemã da segunda metade do XIX e inicio do XX e suas relações
com a História da Ciência no Brasil, ver a tese de doutoramento de Eric Petschelies intitulada As redes da
etnografia alemã no Brasil (1884-1929) e o já citado livro de Renata Viertler.
79
Figura 11 – Museu Real de Etnologia (Königliches Museum für Völkerkunde). Fonte:
http://www.zeno.org/nid/20000572284
O desenvolvimento da pesquisa etnológica alemã nesse período aconteceu quase que
integralmente no ambiente museológico, sob a predominante influência intelectual de Bastian,
Friedrich Ratzel, Rudolf Virchow e Wilhem Wundot221. O ambiente universitário era
dominado por um grupo restrito de acadêmicos, restando aos americanistas – mesmo com
formações universitárias clássicas, como ciências jurídicas, filologia e medicina – ocupar
cargos, prestar serviços e analisar suas coleções nos museus etnológicos, como o Museu Real
de Etnologia (Königliches Museum für Völkerkunde) (Figura 11), sediado em Berlim222.
O grupo de americanistas estava ligado ao museu berlinense, que por sua vez estava
vinculado ao projeto etnológico de Bastian, fundador e diretor da instituição entre os anos de
1873 e 1905. De acordo com Petschelies223, de forma geral, o objetivo maior da obra
etnológica de Bastian consistia em compreender a “essência da racionalidade humana e como
esta se expressava em contextos culturais diversos”. O acesso ao pensamento humano poderia
se dar pela linguagem, mitos, símbolos religiosos e cultura material.
Nesse sentido, os etnólogos, os Völkerkundler, eram incentivados a recolher a maior
quantidade de dados sobre a cultura, as relações sociais, políticas e religiosas dos povos224. O
museu seria o repositório do material etnográfico – cultura material, fotografias, gravações de
áudio e vídeo, e anotações dos mitos – coletado na pesquisa de campo e o laboratório no qual
221
PETSCHELIES, Eric. As redes da etnografia alemã no Brasil (1884-1929). 2019. Tese (Doutorado em
Antropologia Social). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.
222
PENNY, H. Glenn. Ethnology and Ethnographic Museums in Imperial Germany. Chapel Hill: University
of North Carolina Press, 2002.
223
PETSCHELIES, Op. Cit., p. 76.
224
FRANK, Erwin. Objetos, imagens e sons: a etnográfica de Theodor Koch-Grünberg (1872- 1924). Boletim
do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 5, n. 1, 2010.
80
os cientistas estudariam e traduziriam a cultura contida nos objetos e nas anotações para
textos legíveis pelos seus pares225.
É necessário abrir um parêntese para demarcar uma diferenciação importante nos
trabalhos etnológicos e antropológicos da época. Os citados americanistas do museu
berlinense não podem ser colocados no mesmo pacote de estudos culturais dos antropólogos
da corrente evolucionista social, como os anglófonos Lewis Henry Morgan (1818-1881),
Edward Burnett Tylor (1832-1917) e James George Frazer (1854-1941). Como salienta
Petschelies, a ligação entre os dois grupos se deu apenas no interesse em compreender “as
condições sociais, jurídicas, culturais, econômicas, religiosas e mentais das ‘sociedades
primitivas’, em demonstrar de quais formas a humanidade alcançou o estado ontológico atual”
e no emprego comum de determinados termos acadêmicos da época, mas com significações
distintas – como o termo “civilizado”, por exemplo, que poderia simbolizar para os
Volkerkundler algo além do contrário de “selvagem”, pois distinguiria uma espécie de
“detentor de princípios de civilidade, como cortesia e polidez”226.
A escola evolucionista social – principalmente os trabalhos de Frazer, Tylor e Morgan
– advogou o postulado de que o desenvolvimento humano, em todas as partes do mundo, teria
se dado em estágios sucessivos e obrigatórios, num percurso fundamentalmente “unilinear e
ascendente”. Nessa perspectiva, toda sociedade humana seguiria uma contínua marcha “do
mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado”227. O
antropólogo americano Lewis Harry Morgan, por exemplo, em texto a respeito da importância
dos estudos antropológicos, ressaltou a unicidade da trajetória humana, que seguia “[...] por
canais diferentes, mas uniformes, em todos os continentes, e muito semelhantes em todas as
tribos e nações da humanidade que se encontram no mesmo status de desenvolvimento”. Por
esse motivo, para o americano, analisar a história e a experiência das sociedades ameríndias
representaria, em certa medida, também compreender “a história e experiência de nossos
próprios ancestrais remotos, quando em condições correspondentes”228.
Na contramão da unicidade da trajetória da humanidade, conforme Baldus, a obra de
Bastian aponta para um desenvolvimento humano multilinear, “espiralado”229. Viertler
225
PETSCHELIES, 2019.
Ibid., p.136.
227
CASTRO, Celso. “Introdução”. In: CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural/textos de Morgan, Tylor e
Frazer; textos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.14.
228
MORGAN, Lewis Henry. A sociedade antiga. Ou investigações sobre as linhas do progresso humano desde a
selvageria, através da barbárie, até a civilização. In: CASTRO, Celso. Op. Cit., p.22.
229
BALDUS, Herbert. Adolf Bastian. In: Revista de Antropologia, v.14, São Paulo, 1966, p. 127.
226
81
acrescentou que não havia na interpretação do etnólogo germânico leis gerais de evolução
cultural, mas sim:
Uma maior ou menor frequência de processos determinados por conjunturas
psicossociais (combinações de ideias elementares), condições de ambiente físico e
contextos históricos – isto é, processos de grande complexidade e que devem ser
inseridos no processo mais amplo da história humana230. Em suma, a abordagem de
Bastian tendia a ser de natureza histórica cujo relativismo impediu que ele
formulasse ‘leis’ de desenvolvimento humano progressivo, algo que exigiria que
todos os povos da Terra já tivessem sido documentados231.
Além da citada análise multilinear, outra marca importante do pensamento e trabalho
dos americanistas foi a importância dada à formação de coleções etnográficas. Para além de
representar os modos de vida de populações distantes, na perspectiva de Bastian e do museu
berlinense, os objetos produzidos pelos povos ditos “primitivos” serviriam para o estudo da
diversidade do pensamento humano. Em artigo póstumo, Frank afirmou que os objetos
etnográficos eram entendidos como a expressão real da cultura dos seus criadores, a “cultura
materializada”, e possibilitavam a apreensão dos modos de viver e pensar das comunidades
produtoras, pois:
[...] ao contrário das demais expressões dessa natureza (como as [inter]-ações das
pessoas e as suas falas), tinham a inestimável vantagem de não perder nada com a
separação espacial e temporal do contexto histórico e geográfico da sua origem, isto
é, com o seu transporte e a conservação em algum museu na longínqua Alemanha.
Pelo contrário, nos museus, os objetos podiam ser vistos, estudados, manipulados,
analisados e expostos, para não somente ilustrar, mas reproduzir nas pessoas
(devidamente ‘preparadas’ [gebildet] para tal, é claro) uma experiência da alteridade
cultural de povos distantes, em geral, reservada ao próprio etnógrafo232.
A prática de coletar artefatos etnográficos não era casual, mas baseada na metodologia
e no pensamento científico da Völkerkunde. Por conta disso, encontramos grande diversidade
de objetos nas coleções dos etnólogos alemães, que não encontramos nas montagens de outros
coletores, como o francês Henri Coudreau. Bastian julgava os objetos coletados como dados,
como portadores de significados. Dessa forma, era possível, através dos métodos científicos
da linguística, alcançar o modo de pensar dos povos não alfabetizados233. A linguística
também teve grande importância para a compreensão das relações, das semelhanças e das
distinções entre os povos estudados. São comumente encontradas nas obras dos etnólogos
230
Grifos da autora.
VIETLER, 2017.
232
FRANK, 2010, p.166.
233
KRAUS, Michael. Philological Embedments – Ethnological research in South America in the ambiance of
Adolf Bastian. In: FISCHER, Manuela; BOLZ, Peter; KARNEL, Susan (eds.), Adolf Bastian and his Universal
Archive of Humanity: The origins of German Anthropology. Hildesheim: Olms, 2007, pp. 140-152.
231
82
alemães listas de palavras, trechos de canções e mitos, que eram utilizados como fontes para a
comparação, classificação e análise das relações entre os povos estudados234.
No século XIX, assistiu-se na Alemanha um aumento expressivo no volume de objetos
etnográficos nos museus. Além do projeto de Bastian de formar, nas instituições
museológicas, um arquivo universal das sociedades humanas, o histórico colecionista de
intelectuais alemães, a concorrência entre museus dentro e fora do território germânico –
como os de Hamburgo, Leipzig, Munique e as instituições britânicas e francesas – e a
“etnografia da salvação” concorreram para a expansão do volume e para o aprimoramento das
coleções etnográficas235.
A etnografia da salvação, em particular, articula dois argumentos da época, a proposta
etnológica de Adolf Bastian e o pressuposto de que as culturas locais estariam fadadas ao
desaparecimento com a expansão das sociedades nacionais. Se o avanço da “civilização”
poderia acarretar o desaparecimento dos povos indígenas, para o fundador do museu
berlinense e os demais americanistas, era necessário colecionar a maior quantidade de
artefatos para salvaguardá-los nos museus, onde estariam preservados e poderiam ser
estudados oportunamente236. Ao tratar das expedições científicas que percorreram o território
brasileiro com o intuito de coletar artefatos indígenas, Grupioni237 ressaltou que elas se
revestiam de um “caráter humanista”, pois “era preciso preservar a cultura dos povos
indígenas que fatalmente iriam se extinguir, daí a significação ganha, neste período, pelo
recolhimento de artefatos por eles produzidos”.
Os
evolucionistas
sociais
e
racialistas,
inclusive
brasileiros238,
também
compartilhavam da concepção a respeito do desaparecimento dos povos ameríndios e também
234
FRANK, Erwin. Viajar é preciso: Theodor Koch-Grünberg e a Völkerkunde alemã do século XIX. Revista
de Antropologia, v. 48, n. 2, p. 559-584, 2005.
235
PETSCHELIES, 2019.
236
PETSCHELIES, Op. Cit., 2019; FISCHER, Manuela. “La Mision de Max Uhle para el Museo Real de
Etnología en Berlin (1892-1895): entre las ciências humboldtianas y la arqueología americana”. In: KAULICKE,
Peter et al. Max Uhle (1856-1944): Evaluaciones de sus investigaciones y obras. Lima: Fondo Editorial de la
Pontificia Universidad Católica del Perú, 2010; HAAS, Richard et al. Las colecciones del alto río Negro en el
Ethnologisches Museum de Berlín: aproximaciones recientes a una colección antigua. In: KRAUS, Michael;
HALBMAYER, Ernst; KUMMELS, Ingrid. Objetos como testigos del contacto cultural: perspectivas
interculturales de la historia y del presente de las poblaciones indígenas del alto río Negro (Brasil/Colombia), p.
135-153, 2018.
237
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Os museus etnográficos, os povos indígenas e a antropologia: reflexões
sobre a trajetória de um campo de relações. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, n. Suplemento 7,
2008, p.22.
238
CARULA, Karoline. Darwinismo, raça e gênero: projetos modernizadores da nação em conferências e
cursos públicos (Rio de Janeiro, 1870-1889. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016; MAIO, Marcos Chor;
SANTOS, Ricardo Ventura. Raça como questão: História Ciência e Identidades no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2010; FAULHABER, Priscila. Etnografia na Amazônia e Tradução Cultural: comparando
Constant Tastevin e Curt Nimuendaju. Bol. Mus. Para. Emilio Goeldi Cienc. Hum., Belém , v. 3, n. 1, p. 15-
83
ressaltavam a necessidade de colecionar a cultura material, recolher dados linguísticos e os
mitos dos povos autóctones. Seu objetivo não era viabilizar estudos acerca do pensamento
humano, mas sim, evidenciar o processo de evolução das sociedades humanas, estabelecendo
genealogias e hierarquias. Segundo Ribeiro e Velthem239, os objetos etnográficos, no século
XIX, eram valorizados por muitos cientistas por “sua capacidade de testemunhar a respeito de
estágios primitivos da cultura humana, assim como de um passado comum que confirmava o
triunfo e a superioridade europeia”.
Afora a crença no extermínio ou na incorporação dos ameríndios pelos civilizados,240
pode-se explicar o ímpeto colecionista de objetos indígenas também pelo interesse que estes
artefatos despertavam em Bastian para o estudo da sua “teoria das províncias geográficas”. A
respeito da citada teoria, Fischer explicou241:
Essas “províncias geográficas” eram para Bastian entidades territoriais onde se
detectavam as variações do ser humano devido às condições do habitat. Através da
análise das causas imanentes nas diversas representações dos artefatos deveria ser
possível entender os efeitos dos agentes em jogo e, por consequência, descobrir os
pensamentos elementares comuns a todos os seres humanos.
De acordo com a teoria, mediante o estudo do material etnográfico provindo dos povos
da América do Sul, era possível compreender a influência do meio ambiente nas culturas
locais. O próprio Bastian viajou entre maio de 1875 e agosto de 1876 para o subcontinente e
coletou cerca de 2.000 objetos originários de países como Colômbia, Equador, Peru e
Guatemala242.
Apesar do ávido desejo em colecionar objetos da América, Bastian pouco os estudou.
Segundo Ficher, de seus quase 300 trabalhos publicados, apenas 20 se dedicaram aos temas
americanos. Em contrapartida, utilizou-se de outros etnólogos para realizar essa tarefa, que
passaram a trabalhar no Museu Etnológico de Berlim e realizar expedições à América para
reunir material etnográfico. A primeira geração de etnólogos, que chegou antes da virada do
século, foi composta de Karl von den Steinen (1855–1929), Paul Ehrenreich (1855–1914) e
29, abr. 2008; KODAMA, Kaori. Os estudos etnográficos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (18401860): história, viagens e questão indígena. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum., Belém , v. 5, n. 2, p.
253-272, Aug. 2010.
239
RIBEIRO, Berta G; VELTHEM, Lucia H. Coleções Etnográficas, documentos materiais para a História
Indígena e o Indigenismo. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos Índios no Brasil.São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, p.114.
240
KRAUS, 2007.
241
FISCHER, 2010, p. 49-50. No original: “Estas ‘provincias geográficas’ eran para Bastian entidades
territoriales donde se detectaban las variaciones del ser humano debido a las condiciones do hábitat. A través del
análisis de las causas inmanentes en las representaciones diversas de los artefactos debía de ser posible entender
los efectos de los agentes en juego y por consecuencia descubrir los pensamientos elementales comunes en todos
los seres humanos”
242
Ibid.
84
Max Schmidt (1874–1950). Com a chegada do século XX, outros etnólogos foram
contratados, como Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) e Wilhem Kissenberth(1878-1944).
Outros exploradores também prestaram serviços à instituição, formando coleções na América
do sul, como Max Uhle (1856-1944), Alberto Vojtěch Frič (1882-1944) e Emil Heinrich
Snethlage (1897-1939).
Nas décadas finais do século XIX, a Etnologia alemã girava ao redor de Adolf Bastian
e do Königliches Museum für Völkerkunde. Bastian teve um papel importante na inserção dos
americanistas no campo etnológico através do museu berlinense, na construção de
interpretações sobre a diversidade cultural da humanidade, no desenvolvimento de uma
metodologia de trabalho de campo e na ênfase do colecionismo etnográfico para o
conhecimento antropológico243.
2.2– As expedições de um Volkerkundler (1899-1924)
Theodor Koch-Grünberg244 (Figura 12) fez parte da segunda geração de americanistas
alemães ligados ao Museum für Völkerkunde e ao seu diretor, Adolf Bastian, e que
expedicionaram pela Amazônia a partir do século XIX. Filho de um pastor luterano, KochGrünberg nasceu em Grünberg em 9 de abril de 1872. Formou-se em Filologia Clássica em
1896 pela Universidade de Gießen com a pretensão de se voltar para a docência, como o fez
ao assumir, no mesmo ano, o cargo de professor de ensino básico245.
Figura 12 – Theodor Koch-Grünberg. Fonte: ZERRIES, 1972.
243
KRAUS, 2007.
Inicialmente assinava seus trabalhos, e era conhecido, como Theodor Koch. Após 1905, ele acrescentou o
nome de seu lugar de origem ao sobrenome.
245
KRAUS, Michael. Y cuándo finalmente pueda proseguir, eso solo lo saben los dioses: Theodor KochGrünberg y la exploración del alto Río Negro. Boletín de Antropología Universidad de Antioquia, v. 18, n.
35, p. 192-210, 2004a.
244
85
Como os outros americanistas de sua geração, Koch-Grünberg era membro da
burguesia letrada (Bildungsbürgertum), que prosperava desde o começo dos oitocentos,
principalmente depois da proclamação do Império Alemão (Reich)246. Essa camada social era
formada por funcionários públicos, médicos, juízes, professores, jornalistas, artistas, pastores
evangélicos e era prestigiada pelo seu capital cultural e pelos conhecimentos humanísticos e
clássicos.
Como assinala Petschelies, “os espaços públicos culturais e educacionais eram
significativamente ocupados pela burguesia letrada, seja como produtora ou consumidora de
conhecimento”247. Nesse sentido, museus, escolas e universidades eram os locais
preferencialmente ocupados por essa burguesia, que não detinha títulos nobiliários, mas que
possuía respeito e estatuto social pelos conhecimentos intelectuais248. Em aspectos culturais, a
burguesia letrada podia ser caracterizada, entre outras coisas, por “uma atitude positiva frente
ao trabalho, ênfase na educação, respeito pela ciência, conceitos fixos de vida familiar e de
distribuição de papéis conforme o sexo. Assim como, ideias determinadas sobre ordem
autoridade, limpeza, sexualidade e etc”249.
Para Kraus250, a dedicação à leitura durante a juventude, a profissão de pastor
protestante de seu pai e as ocupações de Koch-Grünberg como professor e etnólogo remetem
ao ambiente burguês letrado da Alemanha no século XIX. Além do exposto, Kraus também
observa que as experiências de campo, o pensamento social burguês alemão e a trajetória
acadêmica moldaram a sua compreensão e conduta com os indígenas e as suas respectivas
culturas materiais e imateriais.
Os traços de “diligência, limpeza, ordem e obediência” nos índios e nas aldeias que
visitou foram valorizados por Koch-Grünberg251. Um bom exemplo disso é o comentário que
fez sobre o comportamento dos indígenas da aldeia de Cururú-cuára, no rio Aiarý, durante a
sua segunda expedição à América do Sul entre 1903 e 1905. Koch-Grünbeg costumava
receber em sua barraca a gente da aldeia para mostrar seus instrumentos de trabalho, sua
246
PETSCHELIES, 2019.
Ibid., p.101.
248
Ibid., 2019.
249
KRAUS, Michael. Una composición de diferentes factores: la imagen del indígena entre teorías científicas,
experiencias personales y contextos sociales en la obra de Th. Koch-Grünberg. In: CIPOLLETTI, María Susana
(Coord.). Los Mundos de Bajo y Los Mundos de Arriba: Individuo y Sociedad en las Tierras Bajas, en los
Andes y más allá. Quito: Abya-Yala, 2004b, p. 401-423.
250
Ibid., p. 412. No original: “Uma actitud positiva frente al trabajo, el énfasis em la educación, el respeto de las
ciências, conceptos fijos de la vida familiar y de la distribución de los roles según el sexo, como también ideas
determinadas sobre orden y autoridade, limpeza y sexualidade etc”.
251
Ibid., p. 413. No original: “Diligencia, limpeza, orden y obediencia”.
247
86
espingarda, um livro de gravuras de animais de outras partes do mundo e a câmera
fotográfica. A conduta indígena foi exposta assim:
Apesar do seu entusiasmo por todas essas novidades inauditas, os indígenas
comportavam-se muito mais urbanamente do que os nossos habitantes das cidades
grandes, em condições semelhantes. Não havia empurrões, nenhuma briga feia
perturbava o aconchego. Tudo corria segundo certa ordem e regradamente. Os
objetos iam de mão em mão e voltavam a mim pelo mesmo caminho. Mesmo
quando o primeiro recebedor já se tinha afastado, eles corriam atrás dele para lhe
entregar objeto, a fim de que ele o colocasse em minhas mãos252.
Na descrição acima, tomamos conhecimento do comportamento e da valorosa
moralidade dos indígenas de Cururú-cuára, que mesmo demonstrando verdadeiro entusiasmo
com as novidades tecnológicas, eram sempre ordeiros e honestos nos encontros com o
alemão. Para além do enaltecimento do indígena e de sua moralidade, ponto marcante na obra
do americanista alemão, a passagem demonstra as marcas do pensamento burguês do período
imperial alemão.
Figura 13 – Dança do Falo, Rio Aiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1909.
O puritanismo burguês também influenciou a descrição de manifestações da
sexualidade dos indígenas. Para não chocar os leitores, rituais com conotações sexuais eram
narrados com delicadeza, buscando “naturalizar” as práticas indígenas. Ao citar uma cena que
presenciou numa maloca no rio Aiarý, a “dança fálica” (Figura 13), na qual os dançantes
simulavam movimentos do ato sexual, Koch-Grünberg ressaltou a seriedade com que os
252
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Dois anos entre os indígenas: viagem ao noroeste do Brasil (1903-1905).
Manaus: EDUA/FSDB, 2005, p. 104.
87
espectadores assistiam à exibição, sem notas de “indecência”, pois aquele ritual visava
espalhar fertilidade para toda gente, incluindo animais e plantas que ali viviam – ou seja, tinha
um caráter nobre e fraterno. Era, como comentou o etnólogo, “um pensamento de profundo
significado moral e livre de qualquer indecência no nosso ponto de vista”253.
Distante das teorias que buscavam inferiorizar a intelectualidade e a moralidade dos
indígenas frente ao homem branco civilizado, o etnólogo alemão buscava equalizar a
moralidade indígena e a burguesa. Os espectadores e dançantes do ritual não participavam de
uma cena perversa ou pecaminosa, mas de uma cerimônia com um significado amplo e que
beneficiaria toda a aldeia. Não eram indecentes, “sua moralidade situa-se em alto nível,
embora muitas famílias convivam em um só e mesmo espaço”, escreveu o americanista.
Apesar da formação em filologia, conhecer os indígenas e viajar por territórios
distantes de sua terra natal eram sonhos de infância e juventude de Koch254. Acompanhava as
crônicas de viagem e os estudos etnológicos e geográficos publicados na revista Globus255,
um dos periódicos mais populares da Alemanha nas décadas finais do século XIX256, e era
familiarizado com as propostas e metodologias da etnologia que estavam em desenvolvimento
neste período.
No livro Dois anos entre os índios [Zwei Jahre unter den Indianern]257, publicado
originalmente em 1909, o americanista relembrou as gravuras apresentadas nos relatos de
viagem de Paul Marcoy e Jules Creveux, publicados na revista francesa Le tour du Monde, e
relacionou essas leituras ao despertar de seu sonho de conhecer países longínquos.
Como admirador das explorações do século XIX, Koch-Grünberg foi um leitor de
viajantes de diversas nacionalidades. Nos seus textos menciona obras do brasileiro Antonio
Manuel Gonçalves Tocantins, do britânico Robert Schomburgk, do padre espanhol Joseph
Gumilla e dos franceses Charles Marie de La Condamine, Paul Rivet e Henri Coudreau. Esse
último foi lembrado por Koch-Grünberg quando da passagem por Óbidos, cidade localizada
um pouco acima da foz do rio Trombetas, local onde Coudreau havia sido enterrado. Segundo
Koch, “na sombra das árvores da beira-rio dorme seu último sono o pesquisador do
Amazonas, Henri Coudreau, depois de uma vida incansável, cheia de esforços e trabalhos”258.
253
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.161.
KRAUS, Michael. De la teoría al indio. Experiencias de investigación de Theodor Koch-Grünberg. Maguaré,
n. 24, p. 13-36, 2010.
255
FRANK, 2005, p. 564.
256
Para mais informações acerca do periódico, ver: WELPER, Elena. Etnografia e ficção nos relatos de viagens
para a América do Sul publicados na revista Globus (1862-1910). Indiana, v. 35, n. 1, p. 191-204, 2018.
257
KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., 2005, p. 177.
258
Ibid., p. 26. Quando da publicação da monografia em 1909, o corpo de Henri Coudreau já não estava mais
depositado nas margens do rio Trombetas, pois em 1904 a viúva Octavie Coudreau retirou os restos mortais e os
254
88
Por meio de Globus, tomou conhecimento da expedição de Herrmann Meyer ao Alto
Xingu e da notícia de que ele procurava um especialista em linguística comparativa. Koch se
candidatou ao trabalho e conseguiu fazer parte da comitiva formada pelo botânico Robert
Pilger e pelo médico Alfred Mansfeld, ocupando a função de fotógrafo e assumindo os seus
próprios custos durante a viagem.
A missão científica de Meyer adaptou um modelo de viagem utilizado na África, que
objetivava prioritariamente obter recursos financeiros e prestígio pessoal às lideranças da
expedição. As pretensões científicas eram pequenas e apoiadas no desejo de descobrir e
conquistar novos territórios259. O efeito disso foi uma expedição pomposa e inadaptada às
condições locais, conforme descreveu Petschelies:
Enquanto von den Steinen carregou produtos locais para dentro do mato, como
carne seca, farinha, feijão e cachaça, Meyer também trouxe da Alemanha
carregamentos de produtos de luxo, como champagne, aspargos em conserva,
compotas e geleias de frutas silvestres para serem apreciados confortavelmente
sentados a mesinhas dobráveis. Para servir as iguarias, Meyer levou consigo seu
mordomo particular Walter, e, para amenizar o clima de tensão típico das
expedições, seu cão de estimação, da raça Dachshund, chamado Reinhardt, também
cruzou o oceano. Evidentemente isso acarretou em um aumento significativo dos
custos e do número de animais de transporte, contribuindo para a vagarosidade
característica das expedições tropeiras260.
Todos os detalhes elencados acima contribuíram para o insucesso da expedição. A
liderança de Meyer privilegiou aspectos elitistas e burgueses, inapropriados para a realidade
dos territórios percorridos, gerando um aumento significativo dos custos da viagem e o
adoecimento dos membros da comitiva por malária e disenteria. Outro grande obstáculo para
o êxito da expedição foi o descontrole emocional de Meyer, que criou tensões e discussões
violentas com Koch, Masfeld e Walter261. Os resultados científicos foram mínimos, pois
diários, coleções etnográficas, dados geográficos foram perdidos ou se deterioram ao longo da
viagem fluvial por conta dos diversos naufrágios das canoas abarrotas com os alimentos e
materiais coletados e pela implacável umidade262.
Certamente, as lembranças e a experiência frustrada na missão de Meyer ao Xingu não
foram olvidadas no planejamento das expedições futuras de Koch-Grünberg. Ele buscou não
levou para a França, para serem enterrados em definitivo no Cemitério de Bardines em Angoulême. Sobre o
processo de exumação, transporte para Paris e enterro dos restos de Coudreau, ver a matéria do periódico de
Angoulême: “Une exploratrice charentaice”, La Charente. 19 de março de 1904 – Source gallica.BnF.fr.
259
KRAUS, Michael. “Am Anfang war das Scheitern. Theodor Koch-Grünberg und die ‘zweite Meyer’sche
Schingú-Expedition’”. In: KRAUS, Michael (Org.). Theodor Koch-Grünberg. Die Xingu-Expedition (18981900): Ein Forschungstagebuch. Köln / Weimar / Wien: Böhlau Verlag, 2004. apud PETSCHELIES, Op. Cit.,
2019.
260
PETSCHELIES, 2019, p. 310-311.
261
Ibid.
262
KRAUS, Op. Cit., 2004a.
89
cometer os mesmos erros na relação com os membros da comitiva, no contato com moradores
e com indígenas e na adaptação das excursões científicas às condições locais dos territórios
visitados263. Além disso, o ofício de fotógrafo na expedição contribuiu para o aprimoramento
do seu domínio sobre a tecnologia e de seu olhar fotográfico sobre o campo de pesquisa e as
comunidades locais, que marcariam a sua produção científica.
A produção fotográfica de Koch-Grünberg foi marcada pelo seu trabalho de campo,
pelos seus interesses de pesquisa e os da Volkerkünde. O esplendor da natureza amazônica
não é o principal alvo de suas fotografias, mas os indígenas e suas produções materiais. Nesse
sentido, Frank264 ressalta quatro categorias de fotos do etnólogo: os indígenas em movimento
(as atividades rotineiras e os rituais nas aldeias); os grupos autóctones (famílias de todos os
habitantes da localidade e visitantes); os “tipos” indígenas; a cultura material.
Para Petschelies265, a divisão em quatro conjuntos de fotografias feita por Frank dá
conta apenas do acervo geral, mas o estudo mais detalhado de livros do americanista, como
Zwei Jahre unter den Indianern [Dois anos entre os índios], lança luz, na verdade, sobre oito
classes, a saber: “situações cotidianas no campo; paisagens naturais; tipos indígenas; objetos e
peças etnográficas; índios exibindo ornamentos; técnicas indígenas; fotos de grupos; e os
expedicionários em meio aos índios”. Dessa forma, diversas categorias de fotografias
coexistem nos livros e artigos do americanista, visando demonstrar diferentes aspectos da
experiência etnográfica durante as expedições.
Duas categorias de fotografias foram destacadas por Frank, por sua recorrência e
importância na obra do americanista: as de tipos indígenas e de cultura material. No primeiro
caso (Figura 14), mulheres ou homens indígenas posam, geralmente, em um fundo branco,
com os braços estendidos para baixo, cabeça levantada e o olhar fixo à câmera. Para o autor,
Koch-Grünberg parece não querer retratar “indivíduos”, mas “exemplares ou tipos”. É comum
que, na legenda, não constem os nomes das pessoas e a identificação ser apenas o nome do
povo indígena266 – como se pode observar na legenda da Figura 14, na qual se lê “Makú do
Curicuriarý”.
263
PETSCHELIES, 2019.
FRANK, 2010.
265
PETSCHELIES, Op. Cit., p.422.
266
FRANK, Op. Cit., p. 158.
264
90
Figura 14 – Índio do Curicuriarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1909.
Outra categoria importante de fotografia é a de cultura material indígena, a
representar, em sua maioria, artefatos que compõem as coleções negociadas com o
Königliches Museum für Völkerkunde e o Museu Goeldi. Artefatos aparecem separados ou em
conjuntos, também em fundo branco, destacando aspectos estéticos ou da matéria-prima
utilizada. O uso comum ou ritual – e também a fabricação – dos objetos são evidenciados em
imagens com índios em movimento (Figura 13) ou em descrições textuais267. É o caso dos
bastões de ambaúva para dança (Figura 15), que Koch-Grünberg relata serem “adornados com
motivos queimados e pintados e tinham cabos esculpidos. Os dançantes batem ritmicamente
com estes bastões no chão. Os diâmetros diferentes destes bastões produzem sons
diferentes”268.
Figura 15 – Bastões de ambaúba para dança, dos Kauá. Rio Aiarý269. Fonte: KOCHGRÜNBERG, 1909.
267
FRANK, 2010.
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.102.
269
Objetos depositados no Fiel Museum of Natural em Chicago, coleção Koch-Grünberg.
268
91
Após a expedição de Meyer, Koch-Grünberg retornou para as suas atividades de
magistério em Hesse270. O etnólogo publicou em 1899 seu primeiro ensaio, intitulado Die
Anthropophagie der südamerikanischen Indianer, tratando sobre a antropofagia nos índios
sul-americanos.271 No ano seguinte, publicou um trabalho mais volumoso, denominado Zum
Animismus der süderamerikanischen Indianer, acerca do animismo nos povos originários do
referido continente272. Esses dois trabalhos, baseados nos relatos de outros americanistas e
viajantes e nas suas primeiras notas etnográficas, buscam lançar luz sobre as práticas
indígenas e não as condenar – mesmo que ainda estejam repletos de generalizações e
compreensões evolucionistas273.
Em 1901, Koch-Grünberg decidiu renunciar a docência, que lhe rendia 2.200 marcos
alemães ao ano, em favor do cargo de auxiliar voluntário no Königliches Museum für
Völkerkunde274. A mudança de função foi mediada pelo diretor do Museu, Bastian, e pelo
chefe da seção americanista, Karl von den Steinen, que acreditavam no preparo e na
experiência adquirida por Koch na viagem e na pesquisa etnológica. No ano subsequente, ele
se doutorou Etnologia pela Universidade de Würzburg, estudando o grupo linguístico
Guaikuru da região do Chaco a partir de suas próprias anotações feitas durante a viagem ao
Xingu e as de von den Steinen275.
Koch nutria expectativas de exercer profissionalmente a etnologia e de realizar uma
expedição à América do Sul. Isso foi efetivado em 1903, quando lhe foram oferecidos seis mil
marcos pelo Comitê Etnológico de Ajuda para uma expedição de coleta de objetos
etnográficos durante um ano pelos rios Ucayali, Juruá e Purús276. Com destino à Amazônia
pela segunda vez, ele partiu no dia 20 de abril de 1903 da Alemanha.
O etnólogo não chegou a percorrer o Ucayali nem o Purus. Viajou mais ao norte, pelo
alto rio Negro, Japurá e afluentes, entre os territórios do Brasil e da Colômbia. A expedição de
dois anos teve um saldo positivo para a carreira de Koch e para as aspirações do Museu
berlinense. Anos depois do fim da expedição, o etnólogo elencou os resultados no proêmio do
livro Dois anos entre os indígenas: viagens ao noroeste do Brasil (1903 –1905):
270
PETSCHELIES, 2019.
KOCH, Theodor. Die Anthropophagie der südamerikanischen Indianer. Internationales Archiv für
Ethnographie, Leiden, v. 12, p. 78-110, 1899.
272
KOCH, Theodor. “Zum Animismus der süderamerikanischen Indianer”. Internationales Archiv für
Ethnographie, Leiden, v. 13, suplemento, 1900.
273
KRAUS, 2004b.
274
KRAUS, 2004a.
275
Uma versão da tese de doutorado foi publicada no periódico Globus, ver: KOCH-GRÜNBERG. “Die
Guaikurustämme”. Globus. Illustrierte Zeitschrift für Länder- und Völkerkunde, Braunschweig, v. 81, p. 1-7,
39-46, 69-78, 105-112, 1902.
276
KRAUS, Op. Cit., 2004a.
271
92
Foi percorrida uma grande região, em parte pouco conhecida e, em parte,
completamente desconhecida; foi constatado o curso de cada rio e sua influência nos
territórios Orinoco, Guaviare, Negro, Yapurá, permitindo estabelecer certas
conclusões sobre as migrações de tribos indígenas; Rico material linguístico,
abrangendo mais de 40 línguas e dialetos, até agora desconhecidos, permitindo
corrigir em muitos pontos a classificações das tribos; mais de 1000 fotografias,
reveladas imediatamente no lugar, reproduzem fielmente a grandiosa natureza, suas
belezas e seus medos, a vida da expedição, tipos de cada tribo, os trabalhos dos
indígenas em casa e na roça, suas diversões, danças; minha grande coleção de
objetos etnográficos encontra-se agora no Real Museu de Etnologia, em Berlim.
Uma coleção menor entreguei-a ao Museu Goeldi no Pará277.
A expedição foi considerada um sucesso, com mais de 1.800 artefatos indígenas
coletados, sendo cerca de 1.300 vendidos ao Königliches Museum für Völkerkunde e 503 para
o Museu Goeldi em Belém, a título de “duplicatas”. Além disso, foram recolhidos um rico
acervo de fotografias, dados etnográficos e linguísticos acerca das populações autóctones –
algumas até então não registradas – e que foram publicados em livros e artigos posteriores,
como Südamerikanische Felszeichnungen278 [Petroglifos suramericanos], Zwei Jahre unter
den Indianern, Reisen in Nordwest-Brasilien279 [Dois anos entre os indígenas], Anfänge der
Kunst im Urwald280 [Começo da arte na selva] e Indianer typen aus dem Amazonasgebiet281
[Tipos indígenas da região amazônica].
Apesar do êxito profissional com a expedição ao rio Negro, Koch-Grünberg
permaneceu até 1909 como auxiliar científico no Königliches Museum für Völkerkunde. A
falta de perspectivas na carreira o levou a trocar o cargo no museu berlinense pela docência na
Universidade de Friburgo, função que exerceu até 1915. Todavia, não abandonou as viagens
científicas. Entre 1911 e 1913, realizou uma terceira expedição para a América, de Roraima
ao Orinoco, entre o norte do Brasil e o sul da Venezuela, por meio do financiamento pelo
Instituto Baessler282, que resultou na publicação dos cinco volumes da obra Vom Roraima zum
Orinoco.
Em 1915, ele aceitou o posto de diretor científico do Museu Linden em Stuttgart. A
situação financeira da instituição museológica não ia bem e foi se agravando com o passar dos
anos. No derradeiro ano de 1924, Koch-Grünberg renunciou à direção do museu e embarcou
na expedição empreendida pelo explorador norte-americano A. Hamilton Rice com o objetivo
277
KOCH-GRÜNBERG, 2005.
_________________. Südamerikanische Felszeichnungen. Berlim: Ernst Wasmuth, 1907.
279
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Zwei Jahre unter den Indianern: Reisen in Nordwest-Brasilien 1903-1905
(2 vols). Sttutgart: Strecker & Schröder, 1919/1910.
280
_________________________. Anfänge der Kunst im Urwald. Indianer Handzeichnungen auf seinen
Reisen in Brasilien gesammelt von Dr. Theodor Koch-Grünberg. Berlim: Ernst Wasmuth, 1905.
281
________________________.Indianertypen aus dem Amazonasgebiet. Nach eigenen Aufnahmen während
seiner Reise in Brasilien von Dr. Theodor Koch-Grünberg. Berlim: Ernst Wasmuth, 1906/1911.
282
KRAUS, 2004a.
278
93
de conhecer a região da nascente do rio Orinoco. Os planos dos exploradores fracassaram,
pois em 8 de outubro o etnólogo morreu vitimado pela malária em Vista Alegre, no Médio
Rio Branco.
Koch-Grünberg empreendeu quatro expedições à América do Sul, que resultaram na
publicação de artigos, em uma tese de doutorado, em livros e na formação de grandes
coleções etnográficas depositadas em diversos museus, na Europa e na América. Em artigo
sobre a obra científica do americanista, Schaden283 ressaltou que em toda a produção
intelectual de Koch não há um escrito “que não trate exclusivamente de questões relativas à
terra descoberta por Colombo”. O americanista demonstrou por intermédio de suas obras
verdadeiro interesse e entusiasmo pelo continente americano e pelos povos indígenas que aqui
viviam – em especial os habitantes da Amazônia.
Mediante a venda de coleções etnográficas para museus, Koch-Grünberg cobriu os
custos das viagens e tornou viáveis suas pesquisas sobre os ameríndios. No entanto, na
perspectiva do americanista, o colecionamento de objetos indígenas não era o principal
propósito das suas viagens. Seus interesses estavam voltados para a compreensão da cultura e
do modo de viver dos povos indígenas, como esclareceu:
[...] para mim, o objetivo principal da minha viagem não era o de um colecionador.
Frequentemente demorando-me semanas, até meses em cada tribo, e em cada aldeia,
participando intimamente da vida dos indígenas, eu pretendia essencialmente
conviver e aprofundar mais a visão das suas concepções, pois o visitante que passa
rapidamente pela região de suas pesquisas consegue apenas impressões passageiras e
284
frequentemente falsas .
Apesar da necessidade de acumular grande quantidade de artefatos de diferentes povos
indígenas para a manutenção de suas pesquisas e viagens, o contato e as relações firmadas
com os índios não eram fugazes ou superficiais. Ao contrário, ele almejava conviver com os
habitantes das aldeias, geralmente passava dias ou semanas em sua companhia, recolhendo
vocabulários, trocando informações com os anciões e líderes das comunidades e observando –
e algumas vezes participando – de celebrações e rituais.
Para Koch-Grünberg, os indígenas não eram inferiores aos civilizados, pelo contrário,
eram iguais em sua individualidade – e muitas vezes até melhores. O indígena livre, na visão
de Koch-Grünberg, apenas externa ser arredio e desconfiado por conta do histórico de
ameaças e massacres praticados por brancos “aventureiros, suspeitos dos mais variados
países, o lixo da humanidade”. Na convivência com um estrangeiro que o tratasse bem e com
respeito, o indígena manifestaria sua natureza afável e retribuía com “uma total confiança à
283
284
SCHADEN, Egon. A obra científica de Koch-Grünberg. Revista de Antropologia, v.1, n.2, 1953, p. 133.
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.7.
94
bondade do branco”285. De forma geral, os índios, na obra do americanista, foram
representados como “seres humanos em plena individualidade”, em sua maioria de natureza
amável, inócuos, honestos e fiéis com seus amigos286.
Figura 16 – Theodor Koch-Grünberg e seu pequeno amigo Tarú, no rio Aiarý. Fonte: KochGrünberg, 1909.
Vê-se, na Figura 16, Koch-Grünberg descalço e com chapéu de explorador, posando
com o caderno de campo em mãos – provavelmente adicionando notas sobre a aldeia, seus
habitantes ou os intercursos da viagem – ao lado do pequeno Tarú, considerado por ele “o
mais querido entre os companheiros”287, que repousa a mão em seu ombro. O retrato visa
representar a experiência etnográfica, a atividade do etnógrafo e a relação afetuosa e próxima
com os indígenas que marcou as expedições e a produção intelectual do americanista.
2.3 – A Volkerkünde percorre o rio Negro: a formação das coleções etnográficas de
Koch-Grünberg
Cerca de um mês após partir rumo à América do Sul, Theodor Koch-Grünberg aportou
em Belém do Pará, em 23 de maio de 1903, de onde partiu depois para Manaus. A cidade
285
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.7.
Ibid., proêmio.
287
Ibid., p. 219.
286
95
passava por muitas transformações nos espaços públicos, na vida privada e nas relações das
classes sociais, possibilitadas pelo excedente de capital originário da economia da borracha288.
Durante sua breve estadia em Belém, Koch-Grünberg conheceu o Museu Goeldi289,
que o surpreendeu positivamente. Recebido por Emílio Goeldi e Jacques Huber,
respectivamente, diretor e chefe do setor de botânica, o americanista passeou e conheceu
todos os setores da instituição e constatou o rigor científico que dominava o parque
zoobotânico e as coleções. A experiência resultou em generoso parecer acerca do museu,
considerado um modelo “que tranquilamente pode ser posto ao lado de qualquer museu
europeu”290.
Chamou-lhe a atenção o parque zoobotânico e as coleções de zoologia, botânica,
paleontologia e etnografia. Por conta de seu ofício de etnólogo, a rica coleção de artefatos
etnográficos, que sofria com a falta de espaço, lhe gerou bastante interesse. Destacou as peças
das “tribos Karayá do Araguaya-Tocantins e as tribos dos rios Negro e Uaupés” e a coleção
de urnas funerárias provindas das ilhas “do delta do Amazonas, Marajó, Mexiana e outras, em
parte às margens do rio Maracá e de outros rios, e parcialmente na região de Curianý, nas
costas fronteiriças franco-brasileiras” 291.
A parada em Belém não foi ocasional. A capital paraense, no início do século XX, era
o lugar de entrada na região amazônica e ponto de apoio das redes científicas internacionais,
em especial o Museu Goeldi292. Como afirmou Sanjad, durante a gestão de Emílio Goeldi, a
instituição buscou firmar relações com museus e universidades da Europa Central:
Goeldi alinhou a nova instituição à rede de universidades e museus da Europa
Central, o que significa dizer que lá residiam seus principais interlocutores, que os
funcionários mais graduados foram ali contratados, que seus principais trabalhos
científicos foram lá publicados (em alemão) e que o intercâmbio de coleções,
sobretudo a remessa de duplicatas, teve como destino principal instituições daquela
região293.
288
WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo:
Hucitec/ EdUSP, 1993; SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo a Belle Époque. Belém: PakaTatu,
2002.
289
Em 1901, o Museu Paraense trocou de nome para Museu Goeldi em homenagem ao seu então diretor, Emílio
Goeldi.
290
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 23.
291
Ibid., p. 24.
292
SANJAD, Nelson. Nimuendajú, a Senhorita Doutora e os ‘etnógrafos berlineses’: rede de conhecimento e
espaços de circulaçâo na configuraçâo da etnologia alemâ na Amazônia no início do século XX. Asclepio, [S.l.],
v.
71,
n.
2,
p.
p273,
nov.
2019.
ISSN
1988-3102.
Disponível
em:
<http://asclepio.revistas.csic.es/index.php/asclepio/article/view/901>.
Acesso
em:
14
ago.
2020.
doi:http://dx.doi.org/10.3989/asclepio.2019.14.
293
Ibid., p.4.
96
Nesse período, houve grande fluxo de informações, objetos, espécimes, publicações e
pesquisadores entre a instituição paraense e museus da Europa Central. Nas primeiras décadas
do século XX, o Museu Goeldi se tornou uma referência para cientistas, museus e
universidades europeias interessados na Amazônia. Seguindo essa lógica, quando esteve em
Belém, Koch-Grünberg buscou o auxílio do Museu Goeldi para realizar sua expedição. No
relato do diretor da instituição, o americanista chegou à cidade munido de “cartas de amigos
do mundo scientifico de além-mar, que nos são caros, recomendando-o e pedindo o nosso
auxilio moral na missão etnográfica [...]”294. No mesmo relato recorda que o projeto inicial da
empreitada era “atingir principalmente certos povos indígenas localisados entre o alto rio
Purús e o Ucayale”, mas que foi abortado por conta das “commoções politicas e bellicas” que
afetavam justamente o Purús e o Acre, estendendo-se ao Juruá.
Conforme Goeldi, Koch-Grünberg, observando a necessidade de alterar o seu
programa inicial de explorações, o consultou a respeito de “qual outro dos rios do alto
Amazonas ofereceria especial interesse para a exploração ethnographica”295, o que o diretor
não vacilou em apontar o Uaupés e outros afluentes do rio Negro. De fato, Koch-Grünberg
modificou seus planos para a região indicada, apesar de omitir que as sugestões partiram do
diretor do Museu Goeldi no livro Dois anos entre os Indígenas e no relato escrito
originalmente para o Jornal do Commercio em 1905296.
Uma possível explicação para a omissão da informação está na desaprovação dos seus
superiores do Museu Etnológico de Berlim com as mudanças. Criou-se uma tensão entre o
americanista e Karl von den Steinen, o responsável pelo financiamento da viagem. Steinen
relatou diversas vezes em cartas a Koch-Grünberg a sua contrariedade em relação à
exploração do Alto rio Negro – mesmo com as melhores expectativas etnográficas – e
manteve, durante algum tempo da expedição, esperanças de que o americanista conseguiria
ainda contatar e obter material dos índios Pano da região do Purus297.
Com a finalidade de dar andamento a sua exploração ao Rio Negro, Koch-Grünberg
partiu de Belém para Manaus, onde aportou no começo de junho de 1903. Nessa cidade, logo
294
GOELDI, Emilio. Duas cartas do Dr. Theodor Koch, relativas à sua actual expedição ethnographica entre os
índios do alto rio Negro, dirigidas ao Director do Museu. Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de
História Natural e Ethnographia,v. 4, n. 2-3, p. 482, 1904.
295
Ibid.
296
Em 12 de maio 1905, o Jornal do Commercio de Manaus comunicou aos leitores o recebimento de uma carta
do explorador Theodor Koch-Grünberg acompanhada de um resumo de sua viagem de três anos. O jornal
afirmava que o americanista enviara o texto “como prova de estima e consideração” e recomendava a publicação
do texto, caso interessasse – o que o jornal fez no dia seguinte, com tradução direta do alemão feito Henr. J.
Moers. In: Explorações no rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 12 de maio de 1905. Acervo da
Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
297
PETSCHELIES, 2019.
97
foi inserido na rede de falantes de alemão298 – como Georg Huebner, fotógrafo e proprietário
do estúdio Photographia Allemã, que desempenhou papel importante na inserção do
americanista no círculo alemão e na troca de informações valiosas para êxito da expedição299.
Os planos de iniciar a expedição na metade de junho foram frustrados pelas
formalidades aduaneiras, a necessidade de adquirir mais equipamentos e objetos para a
viagem e para câmbio e a forte febre300 que o deixou, conforme o próprio Koch-Grünberg
“pendendo por vários dias entre a vida e a morte”301. Para realizar seus planos etnográficos,
Koch-Grünberg contratou Otto Schimidt, brasileiro e filho de pais alemães, como
acompanhante na expedição. Schimidt seguiu o americanista durante os dois anos de viagem e
desempenhou papel importante em algumas negociações de artefatos, nas socializações com
os indígenas e no transporte das mercadorias, sendo um “fiel e útil companheiro”302.
No final de junho de 1903, o americanista e seu acompanhante embarcaram a bordo do
navio a vapor “Solimões”, pertencente à casa comercial Araujo Rozas &Co. de Manaus, que
navegava pelo rio Negro com destino a Trindade. No vapor, Koch-Grünberg entrou em
contato com uma diversidade de gente, venezuelanos e brasileiros, que compunha o rol de
passageiros: indígenas, negociantes, funcionários públicos, políticos e caucheiros. Figuras
influentes na sociedade e política da região figuravam nos conveses superiores, destacando-se
o general e ex-governador de um território venezuelano Dom André Level, o comerciante
Salvador Garrido e Ricardo Vicente Cluny, Superintendente de São Gabriel.
No lotado convés intermediário, onde as pessoas armavam suas redes umas acima das
outros, se encontravam alguns Bará e Baniwa303 do alto rio Negro que trabalhavam como
serventes dos passageiros do convés superior. O americanista recolheu ali material linguístico
e conhecimentos para a expedição. Por meio deles, ele foi informado sobre os povos livres do
rio Uapés, o que gerou relativa curiosidade e entusiasmo, como explicitou: “considerando
tudo isso, estas regiões pareciam-me um Eldorado etnológico, bem merecendo uma
aprofundada exploração” 304.
Koch-Grünberg desembarcou no vilarejo de Trindade, onde se deteve alguns dias
esperando a chegada do batelão que o levaria rio acima, para São Gabriel e posteriormente
298
PETSCHELIES, 2019.
KOCH-GRÜNBERG, 2005.
300
KRAUS, Op. Cit., 2004.
301
KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., p. 29.
302
Ibid., p. 35.
303
Desde o período colonial, o nome Baniwa é usado para designar todos os povos que falam línguas da família
Aruak ao longo do Rio Içana e seus afluentes. A autodenominação atual é Walimanai. Esse povo é dividido em
várias fratrias. Para mais, ver: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Baniwa.
304
KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., p. 40.
299
98
São Felipe. Nesse período aproveitou para estudar os indígenas Uanána e Nadëhup305.
Petschelies salienta que esses encontros anteriores à expedição, ou nos preparativos para o
início do trabalho de campo, revelam, em certa medida, “os representantes da área
etnolinguística à qual Koch-Grünberg dedicaria seu estudo: povos de língua Aruaque, Tukano
e Makú”306.
Em carta a Goeldi em julho de 1903307, quando em Trindade, o americanista conta que
o tempo na capital amazonense e a bordo do vapor foi profícuo para tomar “quer dos Ipurinás
do rio Ituxy, quer dos Barés, Baniwas e Urekéna do alto rio Negro e do rio Issana”,
vocabulários extensos e “photographias typicas de interesse anthropologico”308. Ainda na
correspondência com seu contato em Belém, o etnólogo relatou seus planos de deixar com o
intendente de São Gabriel sua bagagem, pois tinha cartas de recomendação do governador, e
suas projeções para os próximos dois anos:
[...] Depois irei com meu companheiro Otto Schmidt, [...] e com duas pequenas
canôas, ao alto rio Isanna, para estudar ali as tribos de indios selvagens, Uarekéna e
outras, e para fazer collecções que levarei até S. Gabriel. Farei depois uma segunda
viagem ao rio Uapés e aos seus afluentes, talvez Caiari ou diari onde vive uma
multidão de tribus ainda não estudadas nos seus antigos costumes e usos. [...] Todas
as collecções tenciono levar, em janeiro ou fevereiro de 1904, pelas cachoeiras
abaixo, em diversas canôas, até Santa Izabel no meio rio Negro, onde as embarcarei
no vapor de Manáos [...]. Depois voltarei ao rio Uapés para ficar ainda diversos
mezes n’este El-dorado. – Em julho de 1904 espero estar de volta a Manáos. Após
uma curta pausa de recreio irei ao rio Ituxy e depois pelo alto Juruá ao Ucayali, de
onde voltarei, por Iquitos, a Manáos. Caso o permita o meu estado de saúde, desejo
fazer uma digressão a Santarem e ao rio Tapajós, para onde estou convidado. No
verão de 1905 calculo estar de volta na minha terra309.
Por meio dessa carta, podemos perceber a organização e o aspecto meticuloso do
trabalho de Koch-Grünberg, assim como o seu interesse por índios não contatados e a cultura
material deles. Certamente, ele não contava com as dificuldades que teria de enfrentar e que
atrasariam bons dias de sua viagem e arruinariam o plano de ir ao Ucayali, a Santarém e ao rio
Tapajós.
Retomando a trajetória da viagem, a visita a São Gabriel da Cachoeira e São Felipe
objetivou estabelecer um local de apoio para a expedição, posto de repouso e local para
305
Autodenominação reivindicada pelos Hupd’äh, Yuhupdëh e Dâw.
PETSCHELIES, 2019, p. 374.
307
Koch, Theodor. Duas cartas do Dr. Theo dor Koch, relativas à sua actual expedição ethnographica entre os
índios do alto rio Negro, dirigidas ao Director do Museu. Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de
História Natural e Ethnographia,v. 4, n. 2-3, p. 483, 1904.
308
Na Alemanha, e em países que comungam da língua alemã, o termo Anthropologie é utilizado para designar
antropologia biológica. Presumimos que o americanista tratava acerca das fotografias de “tipos indígenas” e que
o interesse dessas era de natureza física e biológica. Para saber acerca das teorias socioculturais e biológicas da
Antropologia e Etnologia de língua alemã entre o século XVIII e o fim do XIX, ver: VIERTLER, 2017.
309
KOCH, Op. Cit., p.484.
306
99
manter os objetos colecionados. A primeira vila, que era então a sede do governo no alto rio
Negro, foi preterida por conta do seu estado miserável, com habitações abandonadas e parcos
recursos para alimentação. De acordo com Koch-Grünberg, no vilarejo “os habitantes não
oferecem sustento aos viajantes, mas esperam que esses lhes tragam alimentos”310. Além
disso, em pouco tempo se iniciaria o período de exploração do caucho, o que esvaziaria o
local, deixando o americanista futuramente sem suporte311.
Convidado pelos amigos conhecidos no navio, que garantiram todo auxílio necessário
para as viagens, Koch-Grünberg partiu, em embarcação fornecida pelo superintendente, para
São Felipe (Figura 17). Na vila, conheceu Dom Germano Otero y Garrido (Figura 18),
seringalista de origem espanhola, que ali residia com seus dois filhos mais velhos e com suas
respectivas famílias.
Figura 17 – Vila de São Felipe. Fonte: Koch-Grünberg, 1909.
Segundo Meira312, nas primeiras décadas do século XX, duas famílias de comerciantes
concentravam grandes poderes na região do alto rio Negro e seus afluentes, os Garrido e os
Albuquerque, e ambas praticavam o sistema de aviamento. Esse sistema, que sobrevive ainda
hoje, assentou-se na Amazônia ainda nos séculos XVII e XVIII, mas ganhou força com a
310
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 54.
Ibid.
312
MEÍRA, Márcio. A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no Noroeste Amazônico.
Tese (Doutorado em Memória Social), Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2017.
311
100
economia da borracha a partir da segunda metade do XIX. Ele se baseia no adiantamento de
mercadorias a crédito, gerando relações assimétricas de dependência, como conceitua Meira:
O sistema de aviamento constituiu-se na Amazônia como um modelo que implica a
formação de uma cadeia de escambo entre, de um lado, comerciantes/patrões e, de
outro, produtores/fregueses, ambos situados, respectivamente, como elos de uma
corrente, entre dois polos sociopolíticos hierárquicos, marcados por relações de
dominação e dependência em função da dívida estabelecida313.
Koch-Grünberg foi acolhido pela família Garrido com generosidade e cordialidade,
escolhendo então São Felipe como porto seguro para a sua empreitada etnográfica, pela
ordem e bem-estar do local e pela amizade firmada com o Dom Germano. Koch-Grünberg
descreveu as ações do seringalista sempre com elogios e sentimento de gratidão, e os
justificava desta forma:
Se demoro mais aqui descrevendo o melhor dos meus amigos brasileiros, faço isto
porque sinto de coração um dever de gratidão para com ele, quem em grande parte
contribuiu para o sucesso de minhas viagens. [...] Dom Germano interessou-se
muitíssimo pelos meus estudos e procurou sempre aplainar-me os caminhos, nunca
esquecerei a sua ilimitada hospitalidade e auxílio desinteressado que nunca negava,
seu amor verdadeiramente paternal314.
Vê-se no trecho o caráter material e emocional que envolvia a relação travada entre
Koch-Grünberg e Dom Germano. Além de apoiar moralmente as realizações da expedição, o
seringalista ofertava embarcações, mão-de-obra, guias, alimentos e armazenava em seu sítio
as coleções formadas nas aldeias indígenas. Em outro documento, o americanista reafirma o
sentimento de fraternidade e gratidão que envolvia os dois: “o sr. Germano foi, durante estes 2
annos, para mim, um verdadeiro pai. A todos elles [Germano e seus filhos] confesso-me aqui
mais uma vez sumamente grato”315.
313
MEIRA, 2017, p.33.
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 55-56.
315
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de
1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
314
101
Figura 18 – Dom Germano Garrido y Otero. In: Koch-Grünberg, Op. Cit., 1910.
Para além da amizade, Petschelies316 argumenta que a relação firmada entre o
americanista e Dom Germano revela uma “ambiguidade sustentada pelo etnólogo perante o
contexto social em que seu campo seria realizado” e uma improvisação intelectual para se
adequar à realidade vivenciada nos sertões amazônicos. A despeito de possíveis contradições
entre a conduta do americanista e o pensamento etnológico e humanista ao qual era afiliado, a
expedição dependeu da capacidade de se aliar às forças militares e policiais da região e aos
exploradores da força de trabalho indígena.
Koch-Grünberg tinha consciência do sistema de aviamento e da dura realidade
vivenciada pelos indígenas no noroeste amazônico, como se pode observar no trecho abaixo:
Para viajar continuamente para lá e para cá com grandes botes a remo e para
explorar as matas de caucho é necessário dispor durante o ano inteiro de muita mão
de obra, que em São Felipe é proveniente, em primeiro lugar do baixo Içana. Os
indígenas de lá, assim como uma grande parte dos indígenas do baixo Caiary,
dependem da Casa Garrido como uma espécie de escravos por endividamento. Tal
relacionamento para com os nativos é mantido pelos brancos, donos da terra e
negociantes, em todo o rio Negro. O branco fornece fiado ao indígena toda a
mercadoria que quiser, e a avalia, dependendo de sua honestidade, com preços
correspondentes. O devedor tem que trabalhar para pagar essas, frequentemente
muito altas somas, fornecendo farinha de mandioca, salsaparrilha e outros produtos
regionais, ou trabalhando nas matas de caucho. Às vezes, fica empregado durante
vários meses perto do patrão, como caçador e pescador. Ao fazer as contas sempre
se dá um jeito para que o indígena não se livre da dívida, e mesmo que a tivesse
pago toda, ainda receberia aviada outra vez tanta mercadoria nova, que ficaria
sempre dependente317.
O excerto apresenta a complexidade dos problemas sociais desse sistema, que
aprisionava os indígenas ao trabalho por conta das dívidas contraídas, e salienta a violência do
aviamento que o americanista teve de negligenciar para manter a associação com Dom
316
317
PETSCHELIES, 2019, p.373.
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.56-57.
102
Germano. Mesmo sendo um defensor dos indígenas, o etnólogo julgou ainda que o “sistema
de escravidão por endividamento, do ponto de vista moral, certamente deve ser rejeitado, mas
nestas regiões é um mal inteiramente necessário”. A necessidade residia, segundo ele, na
escassez de mão de obra e na indolência dos índios contra o trabalho, o que faria do sistema
uma forma de incentivo ao “trabalho regrado”318.
O sistema de aviamento desencadeou inúmeras transformações nas sociedades e no
território do noroeste amazônico, tais como: a proliferação de doenças, deslocamentos
compulsórios dos sujeitos indígenas e outras violências perpetradas contra aldeias inteiras319.
Obviamente, os indígenas não foram agentes passivos ao longo do processo histórico, pelo
contrário, muitas vezes confrontaram veementemente o avanço do poder econômico no sertão
amazônico, negociaram com outros atores buscando melhores condições, adaptaram suas
antigas tradições à estrutura econômica-social e reelaboraram identidades.
Como já dito, o etnólogo alemão tinha consciência das mazelas vivenciadas pelos
indígenas e condenou outros negociantes e colonos que “sem escrúpulos frequentemente
aproveitam-se deste sistema e exploram os pobres indígenas de maneira irresponsável”320. No
entanto, fez do tratamento de Dom Germano com seus subordinados um contraponto a essa
exploração, afirmando que o seringalista “trata os seus indígenas com rigor patriarca, mas
com a bondade de um pai para com seus filhos”.
Em trabalho acerca da história indígena do alto rio Negro, Wright321 afirmou que o
poder de Dom Germano se expandia por todo o rio Içana e alto rio Negro, e essa influência se
fez por meio do controle não só do comércio da borracha, como também do tráfico de mão de
obra indígena. O seringalista tinha em seu controle a polícia e os militares do Forte de São
Gabriel e sustentava um sistema, em parceria com o Estado, de “inspetores” no baixo Içana,
que mantinha chefes e intermediários na organização do trabalho indígena. Além disso, ele
detinha o controle do carregamento da borracha para as empresas que exportavam em
Manaus.
Seringalistas, comerciantes, autoridades regionais e estaduais, e líderes indígenas
formavam uma rede de colaboradores que se estendia por todo o noroeste amazônico. O poder
que homens como Dom Germano possuíam na região era um recurso obtido pelas redes que
318
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.57.
MEÍRA, 2017.
320
KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., p. 57.
321
WRIGHT, Robin M. História indígena e do indigenismo no Alto Rio Negro. Campinas: Mercado das
Letras / São Paulo: Instituto Socioambiental – ISA, 2005.
319
103
controlavam e que eram fundamentais para o bom funcionamento dos negócios e da
política322.
A análise de redes de colaboradores na formação de coleções etnográficas também foi
feita por Santos323 na sua pesquisa acerca das práticas colecionistas de Johann Natterer em sua
viagem ao Brasil (1817-1835). A historiadora reafirma a necessidade de pensar o
colecionismo etnográfico a partir das relações estabelecidas no campo. Santos, inclusive,
empregou a abordagem de João Pacheco de Oliveira Filho, denominando “situações
etnográficas”324 o estudo do colecionismo como um sistema de relações sociais, para além de
aprofundamentos de natureza individualista.
Manter boas relações com essas redes e manter muitos aliados aumentava a força
frente aos inimigos e imprevistos. Como analisou Lopes325, o campo enseja práticas distintas
dos laboratórios, onde todos os fenômenos podem ser rigorosamente controlados. O êxito de
uma expedição não exige apenas o conhecimento técnico, depende também da capacidade do
explorador para se adequar ou improvisar a partir de uma série de regras de sociabilidade
locais e condições variáveis.
Koch-Grünberg tinha ciência da necessidade de se aliar a uma rede de colaboradores
que incluía caucheiros, comerciantes, políticos, diplomatas, indígenas e cientistas. Uma rede
que se estendia de Belém até o noroeste amazônico. Em sua tese, Petschelies arrola alguns
aliados do americanista que forneceram suporte na empreitada pela floresta:
As relações com o consulado alemão eram muito importantes para o suporte das
expedições. O cônsul alemão em Manaus, Oscar Dusendschön, era proprietário de
uma empresa de exportação de borracha, e em Manaus ele [Theodor KochGrünberg] também conheceu Alfredo Stockmann, um empresário teuto-americano,
em busca de negócios ligados à borracha. O americanista ainda teve relação mais
próxima com Miguel Pecil, outro empresário do setor borracheiro. Ele chegou a
visitá-lo em seu sítio em julho de 1904. Que o contato com caucheros seria
fundamental, era uma colocação previamente dada. Assim, ainda em 1903, o
etnógrafo Felix Stegelmann recomendou a Koch-Grünberg que ele conhecesse
Carlos Scharff, um barão da borracha peruano, responsável por violentos ataques
contra os povos indígenas. Disseram a Koch-Grünberg que Scharff poderia auxiliar
322
AGNEW, John A. Making Political Geography. Oxford: Oxford University Press, 2002.
SANTOS, Rita de Cássia Melo. Sobre crânios, idiomas e artefatos indígenas: o colecionismo e a História
Natural na viagem de Johann Natterer ao Brasil (1817-1835). Sociedade e Cultura, v. 21, n. 1, 2018.
324
A noção de situação etnográfica, segundo o próprio autor, “designa as “condições sociais específicas que
envolvem a produção de dados etnográficos”, tomando como seu foco de atenção a relação entre pesquisador e
pesquisados, privilegiando como áreas estratégicas os modos de interdependência e as formas de superação de
conflitos [...]. Ou seja, trata-se de resgatar a ‘comunidade de comunicação’ [...] concretamente envolvida na
produção de cada conhecimento específico” In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O nascimento do Brasil
e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de janeiro: Contra Capa, 2016, p.
33.
325
LOPES, Maria Margaret. Viajante pelo campo e pelas coleções: aspectos de uma controvérsia paleontológica.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 2001, p. 881-897.
323
104
na contratação de índios para a expedição. Scharff acabou se envolvendo em
conflitos e o contato não ocorreu326.
As relações firmadas com os sujeitos citados acima podem ser explicadas pela
necessidade de segurança e de obtenção de mão de obra indígena327. A expedição dependia
essencialmente do conhecimento, da sociabilidade e da força dos braços dos nativos para
percorrer com segurança os rios e as matas. Todavia, na região do rio Negro à época,
encontrar trabalhadores e embarcações disponíveis para tal empreitada era dificílimo, “nem
por muito dinheiro, nem com palavras bondosas”, como relatou o americanista328. As razões
para isso eram a ocupação dos habitantes na extração da borracha e a total disponibilidade
deles para com os patrões – lembramos aqui a relação de dependência inerente à cadeia de
aviamento. A solução para esses problemas residia nas amizades e nas alianças firmadas, que
ofertavam segurança numa região de conflito, embarcações, suprimentos e mão de obra329.
Além do apoio moral e material, Dom Germano também era consultado para tratar da
viabilidade de execução dos planos de exploração. Koch obteve dele o aval para iniciar sua
jornada pelo rio Içana, especificamente entre os grupos Arawaks, e também recebeu uma
tripulação de índios para lhe acompanhar na subida do rio. Todavia, a saída dos
expedicionários foi atrasada por um incidente com o comandante de Cucuhý. De acordo com
Koch, o comandante praticava intenso contrabando com comerciantes da Venezuela e
mandou seus soldados para arregimentar no baixo Içana remadores para suas embarcações,
“prendendo e maltratando brutalmente os indígenas”. A notícia da violência perpetrada contra
os índios logo se difundiu por toda a região, e muitos habitantes fugiram para a floresta,
deixando suas casas e pertences.
Durante o tempo de espera em São Felipe, o americanista aproveitou para aprimorar
seus conhecimentos de Língua Geral, o que lhe foi de grande serventia na comunicação com
diversos grupos indígenas, e para tomar notas quanto às condições de navegação e da
meteorologia do alto rio Negro e do Orinoco.
A viagem pelo alto rio Negro e seus afluentes durou dois anos e foi dividida em quatro
partes. A primeira etapa, que durou de setembro de 1903 a janeiro de 1904, consistiu na
exploração dos rios Negro, Içana, Aiari e uma parte da região do alto Caiary-Uapés – por
terra. Depois, de fevereiro a junho de 1904, Koch subiu o rio Curicuriari, o baixo CaiaryUapés e o rio Tiquié. Na terceira etapa, de agosto de 1904 a janeiro de 1905, explorou os rios
326
PETSCHELIES, 2019, p. 376.
Ibid.
328
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 58.
329
KOCH-GRÜNBERG, 2005.
327
105
Negro, Caiary-Uapés e Cuduiary. E a quarta e última, de janeiro do mesmo ano até cerca de
abril, consistiu na exploração dos rios Uapés, Tiquié, Pira-Paraná, Apaporís, Japurá e
Solimões.
Figura 19 – Mapa elaborado por Koch-Günberg do percurso da sua expedição de 1903 a
1905. Fonte: Koch-Grünberg, 1909.
O percurso da expedição foi longo, como podemos ver em vermelho na Figura 19, e
com paradas a cada fim e no começo de uma nova etapa em São Felipe. Veremos, nos tópicos
a seguir, as práticas colecionistas de Koch-Grünberg, as relações travadas com os povos
indígenas e a participação de diversos atores na montagem da coleção depositada no Museu
Paraense Emílio Goeldi.
2.3.1 A primeira etapa das coletas: rios Negro, Içana e Aiarý (setembro de 1903 a
janeiro de 1904)
Koch-Grünberg e seu assistente Schmidt iniciaram somente no dia 28 de setembro a
primeira parte da expedição em um batelão, com uma tripulação de seis remadores e um
piloto. Ao longo da viagem, Koch-Grünberg visou obter objetos para as suas coleções por
meio das relações com os inspetores ou chefes das aldeias. Conforme reportou, viajou sempre
106
abastecido com mercadorias – “tabaco, pequenas facas, anzóis, fósforos, espelhos, miçangas”
– que serviriam nas possíveis trocas330.
A primeira troca reportada ocorreu em uma casa simples, uma choça de palha de
palmeiras, com uma roça de mandioca próxima à aldeia de Tunuhý, no rio Içana, onde foi
levado por um dos membros da comitiva chamado Timotheo. Os moradores daquela aldeia,
segundo Koch-Grünberg, se autodenominavam Baniwa – mas eram chamados pelos Siusí331
de Katapolitani. Falavam a Língua Geral, utilizada pelo americanista para se comunicar, e um
dialeto Arawak.
Além dos moradores, coabitavam na citada choça alguns “indescritíveis utensílios
indígenas: caixas, maletas, vasilhas belissimamente pintadas, cestos, armas de fogo,
carauatanas, cultura e selvageria em uma confusão completa”332. Os objetos atiçaram o desejo
colecionista de Koch-Grünberg, que adotou a estratégia de presentear uma criança com uma
grande pérola azul para atrair a atenção dos adultos e apresentar as possibilidades de troca.
O método empregado por Koch-Grünberg para atrair a atenção e negociar objetos não
era uma novidade, como aponta o texto de Henrique acerca da leitura que os indígenas faziam
dos brindes que recebiam de missionários, autoridades provinciais e viajantes no século XIX.
Analisando o relato de viagem de Alfred Russel Wallace, o historiador aponta o quanto a
recepção dos viajantes e missionários nas aldeias indígenas estava relacionada com a posse e
disponibilidade de brindes. Os índios queriam sempre ter conhecimento prévio das
mercadorias a receber e as vantagens das trocas. Por conta disso, “era necessário [...] ter
conhecimento do tipo de item que interessava a eles, sem o qual o acesso aos produtos do
trabalho indígena poderia ser impossível”333. Nesse sentido, é provável que os aliados do
americanista em Manaus e em São Gabriel o tenham informado a respeito da necessidade
dessas mercadorias nas trocas e de algumas preferências dos grupos em cada região
percorrida.
Para Kraus334, as mercadorias levadas por americanistas nas explorações pelas terras
baixas da América do Sul desempenhavam função central nas associações entre etnólogos e
330
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 72.
Os Siusí se autodenominam atualmente Walipere-dakenai e são uma das fátrias do grande grupo Baniwa.
332
KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., p.73
333
HENRIQUE, Márcio Couto. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia no século XIX. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2018.
334
KRAUS, Michael. Perspectivas múltiples. El intercambio de objetos entre etnólogos e indígenas en las tierras
bajas de América del Sur. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [online], Débats, mis em ligne le 20 septembre 2014,
p. 4. Acesso em 18 de nov. de 2020. Disponível em < http://journals.openedition.org/nuevomundo/67209>. No
original: “los objetos fungían como regalo, intercambio o pago para canalizar, premiar o consolidar las formas de
relación deseadas”
331
107
os indígenas – obviamente, considerando também que a conduta pessoal, a adaptação e a
interação com a vida indígena colaboravam na estabilização das relações. O autor afirma que
“os objetos serviam de presente, troca ou pagamento para canalizar, premiar ou consolidar as
formas de relacionamento desejadas”. No seu relato de viagem, Koch-Günberg, ao arrolar os
vencimentos de seus quatros remeiros no rio Tiquié em 1904, parece compreender a
importância dos produtos trocados como elos no contato interétnico:
Renardo: 4m de chita, 1 faca de cozinha, 50 anzóis pequenos, 4 caixinhas de
fósforos; Henrique: 4m de chita, 1 pente para mulher, de ebonite, 50 anzóis
pequenos, 4 caixinhas de fósforos; Candido: 2,20m pano forte, azul para as calças, 1
pacotinho de tabaco, 4 caixinhas de fósforos; Lino: 1 faca de cozinha, 25 anzóis
pequenos; 1 pacotinho de tabaco; 12 caixinhas de fósforos. Na hora de tais
pagamentos, cada um tem seus desejos especiais, e a gente deve atendê-los tanto
quanto possível.
Os remadores foram sempre pagos com mercadorias europeias ou alimentos de
produção local, não sendo mencionados pagamentos em papel-moeda. A remuneração dos
trabalhadores variou de armas, tecidos, facas e terçados, fumo e demais produtos
industrializados a víveres como peixe, farinha e caças, com a finalidade de atender as
necessidades e os interesses dos indígenas e a disponibilidade material do agente europeu.
A inserção desses produtos e ferramentas europeus, evidentemente, não pode ser
compreendida como uma forma de aculturação do indígena. As mercadorias dos brancos eram
interpretadas e utilizadas pelos índios a partir de seus próprios termos, visões e interesses335.
Ao mudarem de proprietário, os significados atribuídos aos objetos poderiam ser igualmente
transformados, consoante as noções culturais dos novos donos336. Exemplo disso é o relato de
Koch-Grünberg a respeito de uma festa dançante em Ätiaru, maloca dos Huhúteni, na qual os
índios, inclusive convidados, estavam especialmente adornados com pinturas corporais e
desenhos na face. Segundo Koch, “muitos, especialmente a gente do Caiarý, tinham adornos
de prata pendurados no pescoço, em parte simples moedas, em parte peças lisas triangulares,
feitas de moedas de prata, martelando e alisando-as”337. O referido adereço, que aparece em
fotografia sendo utilizado por um índio Siusí (Figura 20), era chamado de makálu, borboleta
na língua dos Siusí, em razão da sua configuração física.
335
HENRIQUE, 2018.
VELTHEM, Lúcia Hussak van. “‘Feito por inimigos’: Os brancos e seus bens nas representações Wayana do
contato”. In: ALBERT, Bruce e RAMOS, Alcida Rita. Pacificando o branco: cosmologias do contato no
norte-amazônico. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, pp. 61-83.
337
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 109.
336
108
Figura 20– Índio Siusí com makálu (adorno de prata pendurado no pescoço). Rio Aiarý.
Fonte: Koch-Grünberg, 1909.
As moedas de prata não foram assimiladas pelos indígenas por seu valor monetário ou
pelo uso recorrente entre os brancos, num possível processo de aculturação. Pelo contrário,
elas foram redefinidas esteticamente e apropriados nos termos dos valores culturais indígenas.
Howard338 denomina esse processo de “des-construção do capital simbólico do colonizador e
sua reconstrução à imagem da sociedade indígena”.
Retomando o processo de coleta na aldeia de Tunuhý, no rio Içana, Koch-Grünberg se
sentiu livre para vasculhar os objetos guardados na palhoça e montar uma coleção. Descreveu
a coleta dessa forma:
Ajuntei logo uma pequena, mas valiosa coleção de camutis (potes para água) e
pratos em forma de taça que tinham apreciáveis desenhos de vermelho, balaios que
tinham semelhantes desenhos trançados em preto; uma gigantesca carauatana (tubo
para soprar flechinhas) de 3m, com as correspondentes flechinhas enfiadas em uma
aljava que também estava traçada com lindos desenhos; alguns potezinhos com
pernicioso veneno de curare e ainda outras belas coisas. Tudo isso cederam sem
hesitações, a mim, em troca de ninharias europeias. Esta boa gentinha sacudia-se de
tanto rir, por causa desse entranho negócio. Eles aparentemente me consideravam
um pouco doido, porque até então nenhum branco tinha ido ao meio deles, desejoso
de tal tralha, e a seu ver pagando tão excessivamente339.
O americanista citou os objetos coletados e demonstrou que as trocas não se resumiam
às transferências geográficas, mas a mudanças nos valores e nos significados dos objetos.
338
HOWARD, Catherine V. A domesticação das mercadorias: estratégias Waiwai. In: ALBERT; RAMOS, Op.
Cit., 2002, p.29.
339
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 73.
109
Além disso, nas negociações com os indígenas eram manifestados os significados atribuídos
aos objetos por ambas as partes340.
Para o coletor, e para os interesses dos museus etnográficos que ele representava, os
artefatos indígenas eram apreciados por uma combinação de fatores, como a manifestação do
espírito humano nas peças, o impacto visual artístico e a beleza, a significância para as
sociedades produtoras e, claro, a percepção subjetiva a respeito da importância daquele
artefato para o conjunto de sua coleção341 – por uma suposta representação do modo de vida
“primitivo” e pela aura de “exotismo”. Em contrapartida, para os indígenas, as mercadorias
europeias, como armas, ferramentas e produtos industrializados, possuíam valor pela sua
utilidade, pela sua qualidade como adorno ou pelo prestígio conferido a quem as possuísse342.
De acordo com o relato de Koch, os indígenas zombaram do interesse pelos seus
objetos e do valor pago por eles, dando a entender que o achavam excessivo. Todavia, parece
que em pouco tempo compreenderam a lógica do colecionista e logo souberam tirar proveito
dela. Como contou o viajante, no dia seguinte a uma negociação, todas as pessoas de Tunuhý
apareceram na porta de sua hospedagem com abundante mobília caseira para ser negociada343.
Ainda em Tunuhý, Koch-Grünberg fez outros negócios em troca de objetos
etnográficos. Para tanto, contou com a ajuda de Diogo, inspetor indígena atuante na região,
que cumpriu o papel de mediador entre o americanista e os interesses indígenas por
mercadorias europeias. Koch-Grünberg o convenceu a trazer-lhe potes ornamentados e outras
peças, e logo o citado índio e mais três jovens partiram de volta para suas casas “com umas
poucas ninharias, presentes para mulheres e criancinhas”344.
Por volta do meio-dia do dia subsequente, Diogo retornou acompanhado de quase
trinta índios Siusí, provindos da localidade de Tucüimarapecúma, numa dúzia de canoas
abarrotadas de objetos caseiros (Figura 21). O americanista descreveu assim os visitantes
Siusí e as trocas por eles realizadas:
[...] Os homens estavam vestidos com camisa e calça, as mulheres na maioria meio
nuas e, como as crianças nuas, pintadas com pontos vermelhos, em todo corpo [...].
Eles nos venderam uma quantidade de objetos etnográficos. Seus potes belamente
adornados, pratos, cestos distinguiam-se por serem muito finamente confeccionados.
Grandes peneiras chatas, que serviam para peneirar a massa seca de mandioca,
também estavam traçados com padrões de vermelhos e pretos. Em troca de algumas
340
THOMAS, Nicholas. Entangled objects: exchange, material culture and colonialism in the Pacific.
Cambridge: Harvard University Press, 1991.
341
PETSCHELIES, Erik. From Berlin to Belém: Theodor Koch-Grünberg’s Rio Negro collections. Museum
History Journal, v. 12, n. 1, p. 29-51, 2019.
342
KRAUS, 2014.
343
KOCH-GRÜNBERG, 2005.
344
Ibid., p. 74.
110
peças de chita, sabão para as mulheres, munição para os homens. Obtivemos toda a
345
tralha. O negócio era rápido e ordeiro. Ambas as partes ficaram satisfeitas .
No relato, o americanista esclarece que não houve exploração dos índios;
aconteceram, ao contrário, trocas justas e satisfatórias para ambas as partes. A justificativa
possivelmente buscava atender a seus princípios indigenistas, que tratamos anteriormente, de
proteção e respeito aos autóctones. Além disso, a descrição de um negócio feito de forma
ordeira, rápida e justa revela novamente os traços do pensamento burguês alemão na atividade
etnográfica de Koch-Grünberg e sua tentativa de valorizar os elementos de limpeza e ordem
entre os índios.
Figura 21 – Objetos do povo Siusí adquiridos no Rio Içana. Fonte: Koch-Grünberg, 1909.
As mercadorias trocadas não foram disponibilizadas aleatoriamente, pois, como já
dito, o acesso à produção indígena estava relacionado ao interesse dos produtores pelos itens
disponibilizados pelo coletor. Nesse sentido, podemos levantar a hipótese de que há uma
relação entre as peças trocadas e as demandas internas do grupo – manifestadas,
principalmente, pelas mulheres – e também com o contexto político local. A necessidade de
despertar o interesse feminino para viabilizar as trocas e manter relações com as comunidades
fica evidente quando o americanista disponibiliza para Diogo presentes destinados às
mulheres e crianças, em troca de utensílios domésticos. E também nas negociações travadas
345
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 75
111
com os Siusí, quando Koch parece atender à demanda das mulheres por peças de chita e
sabão.
A munição negociada com os homens, provavelmente, estava relacionada à
autoproteção desses grupos em relação à violência que lhes era dirigida pelos brancos
brasileiros e colombianos – comerciantes, seringalistas, jagunços e militares. Dessa forma, as
mercadorias não eram ofertadas aleatoriamente, mas obedeciam ao desejo das mulheres e às
necessidades dos índios em se protegerem num ambiente de tensão e conflito.
Em Tunuhý, Koch tomou conhecimento de que o rio Aiary concentraria uma
abundância de grupos Arawak. Ali também conheceu outro inspetor Katapolitani, chamado
Antonio, um índio experiente da região e falante de português. Essas qualidades eram
essenciais para a expedição, e logo o indígena foi convencido – depois de um longo
aconselhamento com os outros remadores e a garantia de uma boa recompensa – a leva-los até
a maior aldeia dos Siusí no rio Aiarý346.
Figura 22- Antonio, índio Katapolitani, porta-voz e guia do americanista. Fonte: KochGrünberg, 1909.
Na Figura 22, Antonio posa para uma típica foto dos “tipos indígenas”, com “uma
camisa ofuscamente branca”, a qual, segundo o próprio americanista, era mais branca que a
sua. Muitos colaboradores indígenas da expedição ou inspetores posavam para fotos dessa
categoria, mas esse inspetor, em particular, teve certo destaque na primeira etapa da
346
KOCH-GRÜNBERG, 2005.
112
expedição, pois não apenas cumpriu o papel de guia, mas atuou também como porta-voz,
tradutor e até como negociador de objetos indígenas347.
A tensão entre índios e brancos e a época de extração do caucho pareciam afetar a
paisagem dos rios Içana e Aiarý. Koch visitou muitas aldeias indígenas esvaziadas e cabanas
abandonadas nas margens dos rios, pois seus moradores buscavam refúgio mata adentro,
longe dos brancos, ou haviam partido para a exploração das seringueiras. Durante a viagem, o
americanista relatou ter aproveitado esse estado de abandono na paisagem dos rios Içana e
Aiarý para apreciar a cultura material dos habitantes locais e, às vezes, para adquirir objetos
em trocas nem sempre justas.
Foi o caso da aquisição feita em 20 de outubro no Miriti-Igarapé, um afluente do
Aiarý. A expedição encontrou ali uma casa abandonada com diversos utensílios caseiros. A
coleta foi descrita assim: “tomei um feixe de grandes flechas, cujas pontas de lenho estavam
envenenadas e enfiadas em uma aljava bem trançada para proteger seu portador. Como
presente, deixei em troco duas caixinhas de fósforos”. O coletor ainda afirmou querer deixar
quatro recipientes, mas Antonio achou um exagero348. Evidente que a noção de justiça em
uma troca não é algo objetivo. Ela depende de diversos fatores, como o contexto político e
econômico, a força das associações, os desejos e as necessidades das partes envolvidas. No
entanto, se não há a presença de um dos lados implicados e o valor do negócio é estabelecido
por um único sujeito, podemos concluir que não houve uma troca.
Após esse evento, os expedicionários seguiram o curso do rio em direção à maior
aldeia dos Siusí. Ao longo do percurso, cada membro adicionado à expedição exercia um
papel nas tentativas de aquisição de objetos. Em uma das paradas, numa maloca dos
Huhúteni, Antonio desempenhou o papel de “empresário e porta-voz” do americanista,
narrando “com as cores mais róseas” os méritos do explorador para os moradores. A tentativa
de persuasão do inspetor estava relacionada ao desejo de adquirir panelas pintadas, cestos
ornamentados e outros utensílios domésticos em “troca de miçangas, facas e outras
maravilhas”. No entanto, não houve trato. Aquela família não estava disposta a negociar os
objetos sob a justificativa de que os reais donos daquelas peças estavam participando de uma
festa em Cururú-cuará, a grande aldeia Siusí. Esse respeito à propriedade alheia chamou a
atenção de Koch-Grünberg, que assinalou ser evidente que, na região, ninguém vendia nada
sem o consentimento do proprietário e não aceitava “pagamento destinado a outrem”349.
347
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p.74
Ibid., p. 82-83.
349
Ibid., p.83.
348
113
A expedição prosseguiu pelo rio Aiarý até aportar em Cururú-cuará, também
conhecida como Dorátauanumána. Quando da chegada de Koch ao local, ocorria uma grande
festa com muitos convidados e com ingestão generalizada do caxirí, bebida alcoólica
produzida pelos povos indígenas da região. Até mesmo o anfitrião, o pajé da aldeia, estava
inteiramente embriagado.
Figura 23. Schmidt com seus amigos indígenas na hospedagem em Cururú-cuará. KochGrünberg, 1909.
No dia seguinte, os hospedeiros ofertaram aos expedicionários uma pequena cabana
para guardarem seus bens e descansarem (Figura 23). A festa continuou o dia inteiro e o pajé
aparentava estar mais embriagado do que os outros participantes. Nesse contexto, o etnólogo
adotou uma estratégia aparentemente contraditória em relação aos seus ideais indigenistas.
Ele se aproveitou da embriaguez do pajé e adquiriu um grande montante dos apetrechos
mágicos do seu anfitrião, alguns até importados de outras regiões – dos quais nenhum parece
ter sido enviado para o Museu Goeldi em Belém. Ou seja, se aproveitou da vulnerabilidade
dos seus amigos indígenas para obter artefatos que não conseguiria obter normalmente, dado
o seu caráter ritualístico. No dia seguinte, já sóbrio, o pajé tentou desfazer o negócio, mas o
coletor foi irredutível.
Apesar do fato ocorrido na primeira noite, a relação dos expedicionários com os
residentes de Cururú-cuará foi amistosa. Os moradores faziam de tudo para os hóspedes se
114
sentirem bem e eram solícitos com as demandas por fotografias e por trocas de mercadorias
por alimentos. Schmidt era adorado pelas crianças e pelos jovens pelas suas brincadeiras. Os
dois não-índios, como já narrado, costumavam receber o povo da aldeia para mostrar os
instrumentos náuticos, as câmeras, as armas e livros de gravuras. A estadia foi proveitosa
para o americanista e seus planos, porque conseguiu estabelecer, em troca de boas
considerações sobre a aldeia e sobre o seu chefe para o governo, uma associação com o
tuxaua Mandú. O líder indígena, falante de português e da língua geral, conseguiu uma
embarcação e gente para o prosseguimento da viagem.
Koch relata que “havia muito pouca indústria em Cururú-cuára”. De acordo com ele,
cabia somente às mulheres provindas do Içana confeccionar potes, panelas e ralos, para quem
tentou encomendar as peças, mas de quem não obteve êxito. Segundo ele, “as pessoas
absolutamente não estavam dispostas a trabalhos supérfluos”. Apenas de alguns rapazes
adquiriu cestarias bem ornamentadas que lhes haviam sido encomendadas350.
Figura 24 – Mulher idosa Siusí, em Cururú-cuára, confeccionando um ralo para ralar
mandioca. Fonte: Koch-Grünberg, 1909.
Apesar disso, o americanista fotografou e narrou a confecção dos ralos para mandioca
(Figura 24). As peças eram fabricadas apenas por mulheres do Içana, de origem Karútana e
Katapolitani – ou seja, não eram naturais da aldeia no Aiarý. Eram utilizadas pedras de
granito ou quartzito na elaboração, que provinham da cachoeira de Tunuhý ou da região das
cachoeiras do alto Içana e Aiarý. Além disso, os ralos eram comercializados pelo Tiquié,
350
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 100.
115
Caiarý, Yapurá e pelos já citados rios, revelando grande circulação de pessoas e objetos pelos
rios da região.
As mulheres indígenas do Içana foram admiradas pelo coletor por conta de seu
trabalho na produção de potes pintados e vasos, cestos ornamentados e aljavas trançadas.
Diferentemente dos Siusí que apareceram em Tunuhý, o povo de Cururú-cuára parecia não
estar tão disposto e ansioso por vender seus objetos. Indo pelas casas e vasculhando os
pertences domésticos, o coletor conseguiu adquirir um jirau e duas máscaras que
representavam animais351. As peças provinham dos Káua-tapuio que viviam rio acima, o que
despertou o interesse de um colecionista sedento por mais aquisições e que logo subiria o
Aiarý atrás de objetos semelhantes. Ali, também coletou bastões de dança (Figura 25)
utilizados nas festas e enviados posteriormente ao Field Museum of Natural History, em
Chicago.
No dia 26 de outubro, os expedicionários partiram com todos os habitantes de Cururúcuára e os hospédes da redondeza, entre eles alguns Uanána do Caiarý, para uma festa de
dança em Ätiaru, a próxima maloca dos Huhúteni acima no Aiarý. O festejo começou ao pôrdo-sol, quando dois dançantes, com diademas de penas coloridas na cabeça e chocalhos
amarrados nos tornozelos direitos, passaram a se movimentar na frente da casa de festa.
Amparavam uma mão no ombro do vizinho e com a outra seguravam grandes flautas feitas de
paxiúba, denominadas de Yapurutú (Figura 25), de 1,0 a 1,5 metros de comprimento. Os
instrumentos produziam diferentes sons, de acordo com a força do sopro, e cada par estava
afinado entre si. A ornamentação dos objetos consistia em desenhos gravados na sua parte
inferior, esfregados com barro branco, e pingentes de fibras brancas de curauá, como
podemos observar na figura abaixo.
Figura 25 – Grandes flautas chamadas de Yapurutú, nas descrições do etnólogo, pertencentes
aos Kauá e aos Siusí do Rio Aiarý352.
351
352
KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., 2005.
Originalmente a fotografia estava na vertical no livro de 1909, de onde foi retirada a imagem.
116
No livro de viagem353, originalmente publicado em 1909, encontram-se fotografias em
fundo branco de três diademas de penas e oito flautas (Yapurutú), o que nos permite
pressupor que os artefatos foram adquiridos pelo etnólogo. Todavia, apenas na legenda das
flautas há indicação dos povos produtores: Kawá e Siusí. Na coleção etnográfica comprada
pelo Museu Goeldi estão preservadas quatro flautas “de Iapurutú” (n.º 330, 331, 332 e
333354), produzidas pelo povo Siusí do rio Aiarí355, sem menção aos Kawá.
Não é fácil precisar qual povo produziu as flautas depositadas na instituição. A
documentação museológica não apresenta muitas informações a respeito do processo de
fabricação e da coleta de objetos e não há outros testemunhos do contato. Tendo em vista que
a coleção do museu é composta pelo que Koch considerou “duplicatas”, é possível que no
arranjo feito pelo americanista encontravam-se apenas instrumentos de origem Siusí. Isso
confirmaria os dados apresentados nos catálogos e no Livro de Tombo da coleção. Outra
possibilidade é a de que os objetos de origem distinta estão misturados, havendo objetos do já
citado povo e dos Kawá. A resolução dessa questão demanda um reconhecimento pelos
descendentes desses povos e uma análise mais técnica quanto à matéria-prima utilizada e às
tecnologias de fabricação empregadas.
Na documentação da coleção do Museu Goeldi, há referências também a outros
objetos dos Siusí mencionados pelo americanista na descrição das danças em Ätiaru. Dois
cintos com chocalhos, três maracás e seis outras flautas (n.º 319 a 329) estão com a
procedência assinalada como sendo o rio Aiarý, aldeia Cururú-cuára. Diferentemente de
outros objetos, não há nenhuma narrativa acerca da negociação feita por Koch com os
indígenas locais, e tampouco há uma explicação do americanista para essa omissão.
Encontram-se apenas fotografias de alguns objetos em fundo branco, um indício de que os
artefatos haviam sido adquiridos pelo coletor.
A estadia em Ätiaru durou apenas um dia e logo os expedicionários retornaram a
Cururú-cuára para se preparar para o prosseguimento da expedição rio Aiarý acima. O
americanista logo se encarregou de pagar os tripulantes Katapolitani da comitiva para que eles
pudessem retornar à terra deles. Eles levariam consigo a coleção obtida na aldeia para guardála na casa de Antônio.
353
KOCH-GRÜNBERG, 2005.
Número do objeto no livro de tombo da Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi.
355
Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); A Relação do Material Etnográfico do Museu
Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia (1955).
354
117
Além dos instrumentos musicais, as armas empregadas na caça pelos índios do Aiarý
chamaram a atenção de Koch. As flechas guardadas na aljava, o veneno colocado nas setas e a
carauatana foram descritos detalhadamente. Essa última, mais conhecida como zarabatana, era
muito apreciada pelos índios, zelosos e relutantes em se desfazer dos seus instrumentos de
ataque, “assim como um caçador entre nós não quer ceder uma boa espingarda com a qual
está treinado de atirar e à qual ele deve tanta presa”356.
Figura 26 – Índio Kawá atirando com carautana. Rio Aiarý. Fonte: KOCH GRÜNBERG,
1909.
A Figura 26 é um belo exemplo das fotografias de índios em movimento feitas por
Koch-Grünberg. Sua narrativa demonstra o valor que os indígenas davam para as suas
carautanas e as estratégias empregadas para a manutenção delas. Conforme relata o
americanista, com regularidade os proprietários escondiam essa arma das “vistas cobiçosas de
colecionadores”, mas o autor desejava fotografar um Kawá atirando com ela. Para tanto, o
fotógrafo foi obrigado a prometer que não iria comprá-la. Enfim, trouxeram-na para o retrato,
e logo depois de feito, rapidamente a arma desapareceu357. Apesar do grande zelo dos índios
por suas armas, a coleção do Museu Goeldi dispõe de alguns exemplares de aljava com
flechas envenenadas, potinhos com veneno para as setas e uma zabaratana dos Siusí (n.º 343,
356
357
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 127.
Ibid.
118
344 e 345), adquiridos, possivelmente, numa troca feita com um jovem desejoso de agradar
sua esposa com alguns metros de chita358.
Depois de dez dias, Koch-Grünberg, Schmidt, Mandú e mais quatro remadores
partiram, em 2 de novembro, de Cururú-cuará em um barco maior de um Huhúteni, trocado
por uma espingarda. Na aldeia, o etnólogo conviveu com diversos povos indígenas e coletou
grande quantidade de material etnográfico – como a já citada máscara da “dança do falo”
(Figura 13). A coleção foi incrementada com novos objetos Siusí, Huhúteni e Kawá, que, de
acordo com o etnólogo, constituíam “o componente principal da população do Aiarý”. Os
objetos do citado rio representam parte expressiva da coleção Koch-Grünberg (1905) do
Museu Goeldi. Atualmente, são noventa e cinco artefatos coletados nesse rio, sendo dois
Huhúteni, dez Kawá e oitenta e três Siusí, depositados na Reserva Técnica Curt
Nimuendajú359.
O final da primeira etapa consistiu numa trilha percorrida a pé em busca da passagem
terrestre ao Caiary-Uaupés. O não prosseguimento da expedição pelo Aiarý foi uma decisão
tomada pelo americanista a partir das suas fontes indígenas, que lhe garantiram que não havia
habitantes acima da cachoeira Yacaré. Além da falta de interesse etnográfico e científico em
seguir navegando pelo rio, existia também o risco de perder bagagens e despender muito
tempo na viagem. Logo, no dia 26 de novembro, o americanista partiu de uma maloca Siusí a
pé, com três remadores, Mandú, o chefe dos Kawá e a esposa deste último. Schmidt foi
mandado de volta para Cururú-cuára.
Caminhando para a conexão do Caiary-Uaupés, encontraram uma aldeia Uanána
chamada Yutíca. O americanista definiu a partir da língua que o povo Uanána pertencia ao
grupo Betóya, possuindo uma língua muito diferente das línguas Arawak do Içana-Aiarý e
mais próxima do dialeto Tukano. A comunicação se deu numa língua intermediária, formada
a partir do Arawak, da língua Uanána e da Língua geral. No entanto, os moradores da aldeia
possuíam características que pareciam desvirtuar os ideais indígenas divulgados pelo
americanista anteriormente. Eles sempre buscavam tirar proveito das mercadorias da
comitiva, como escreveu: “os habitantes de Yutíca infelizmente não observam muito
exatamente a honestidade. [...] Frequentemente, negociando as trocas, eles levavam à parte
qualquer objeto que pegavam com as mãos”. Até mesmo o tuxaua procurou tirar vantagens
nas negociações realizadas com o etnólogo, trocando as faixas de fios de fibras de curuá
358
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 128.
Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); A Relação do Material Etnográfico do Museu
Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia (1955).
359
119
vendidas por outras de qualidade inferior360. Apesar dos abusos dos índios, que o
incomodavam, o americanista considerou impossível se zangar, pois, assim que flagrados,
“eles davam uma gargalhada dissentida e logo devolviam o objeto que eu reclamava”.
Essa mesma gente conduziu a comitiva pelas cachoeiras de Yacaré, Tapira-girao e
Matapý até Carutú, a maior aldeia dos Uanána. Distintos dos habitantes de Yutíca, os
habitantes da grande aldeia foram elogiados pela sua cordialidade e decência. Durante a
estadia, Koch incrementou a coleção com mais objetos, apesar da limitação quanto ao
tamanho e ao peso, para não sobrecarregar o grupo no retorno a Carurú-cuára:
Recebi entre outras, alguns chocalhos feitos de cabaça e adornos com padrões
riscados na casca e machados de pedra bem conservados, relíquias dos tempos dos
pais. [...] Eu pagava, por quase todas as coisas, com pérolas de miçangas. Também
as minhas grossas miçangas “da Baviera”, refugo alemão, especialmente as de cor
azul-escura, atraíam muitíssimo aos indígenas. Normalmente eles pediam somente
as miçangas pequenas, brancas que eu felizmente tinha adquirido em Manáos. As
minhas miçangas finais, de cor azul clara e as “venezianas” de cor vermelho não
encontravam apreço nos seus olhos; não aceitavam nem dando-as de graça. Até na
selva, a gente está sujeita à moda361.
Diferente da visão estereotipada acerca dos índios como agentes passivos e ingênuos,
os Uanána atuavam ativamente nas negociações e determinavam a partir de suas predileções
as condições das trocas. Coube ao coletor apenas se adaptar aos diferentes termos e estar
sempre suprido de uma diversidade de mercadorias para agradar aos diferentes anseios dos
grupos encontrados.
Depois de alguns dias na aldeia, todos partiram novamente para Cururú-cuará no
Aiarý, onde se hospedaram por mais algum tempo antes de retornar a São Felipe. No último
dia na grande aldeia dos Siusí, o americanista adquiriu preciosos objetos utilizados em uma
dança, na qual os indígenas se açoitavam enquanto tocavam flautas gigantes. Os chicotes de
koaí foram facilmente adquiridos mediante pagamento, mas os donos das flautas pareciam
relutantes em vendê-las. Então, o americanista, para obter as flautas, utilizou de sua relação
com o governador de Manaus, alegando que a autoridade “gostaria de ver todas as coisas”.
Mandú então confessou ter em posse três desses instrumentos e consentiu em vendê-los, após
Koch garantir que eles seriam levados com todo o cuidado e que a esposa dele próprio não iria
vê-los em nenhuma hipótese.
No dia 22 de dezembro, despediram-se novamente dos moradores de Cururú-Cuára e
partiram de volta a São Felipe. Como sempre, durante o percurso, o americanista buscou
incrementar a coleção e assim o fez em Yapú-Rapecúma, no Içana, obtendo três trombetas de
360
361
KOCH-GRÜNBERG, Op. Cit., 2005, p. 171.
Ibid., p. 174.
120
dança, denominadas de Kulirína em Siusí e na língua Katapolitani. Alguns exemplares dessas
trombetas já haviam sido descritos e coletados por Johann Natterer em 1831.
No dia 30 de dezembro, em Tunuhý, o americanista recebeu de volta sua coleção das
mãos do inspetor Antônio, que recebeu como pagamento um machado americano Collins. Na
aldeia, Koch adquiriu ainda mais alguns objetos, como uma cuia oblonga em forma de colher
utilizada para coar o mel. Seguindo adiante, em Pirayauára, em troca de uma faca, obteve
meia dúzia de uána e o bastão do chefe de dança dos Karútana. Nenhum desses objetos foi
colocado na coleção do Museu Goeldi, demonstrando os critérios de coletor para separar as
coleções destinadas a essa instituição e ao museu berlinense.
Em 8 de janeiro de 1904, Koch desembarcou em São Felipe, onde foi recebido
novamente pelo seu estimado amigo Dom Germano. O vilarejo estava “sob signo da colheita
de caucho”, com exceção de Hildebrando, que ficou com o pai, e Salvador, nomeado Prefeito
do alto rio Negro e seus afluentes. Outros três filhos do seringalista (Chico, Valentino,
Antonio) estavam nas matas em busca das seringueiras ou percorrendo os rios comprando o
látex. A consequência dessa temporada de extração do caucho era a dificuldade em encontrar
índios para trabalhar, o que se refletiu na continuidade da expedição, pois Koch já havia
dispensado toda a tripulação que lhe acompanhou pelo Aiarý e Içana, inclusive Mandú362. De
toda forma, o intervalo em São Felipe marca a primeira etapa e a preparação para a próxima
excursão. Nesse ínterim, ele gastou seu tempo organizando as anotações feitas em campo,
empacotando em caixotes e embalagens os objetos indígenas e obtendo suprimentos e
informações para a nova etapa da viagem.
Apesar de algumas atribulações, a primeira etapa da expedição foi considerada bemsucedida por conta de alguns fatores elencados por Petschelies: “uma rica coleção etnográfica,
abundância de dados etnográficos, relações pacíficas com os povos indígenas, mas,
primeiramente por ter sobrevivido”363. Essas conquistas fomentaram o desejo do americanista
de prolongar a expedição por mais um ano, a despeito dos primeiros acordos firmados com o
museu berlinense e com seu superior von den Steinen.
Os planos de ir ao Ucayali-Purus, que foram postergados em 1903, no ano seguinte
foram completamente abandonados. Karl von den Steinen, também explorador e seu superior
direto no Museu Etnológico de Berlim, não ficou satisfeito com essa decisão. Os excertos de
cartas apresentados na tese de Petchelies, trocadas entre Koch, o mesoamericanista Konrad
Theodor Preuss e o antropólogo físico Felix von Luschan, demonstram a chateação do chefe
362
363
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 227.
PETSCHELIES, 2019, p.395.
121
em Berlim e as recomendações feitas pelos amigos para retornar à Europa com uma grande
coleção etnográfica e abundantes dados, condição para ser perdoado. Preuss chegou a
escrever: “St.[Steinen] ficou bastante irritado com a mudança dos seus planos de viagem, e
toda hora começava outra vez com o assunto. Mas eu não duvido que, por fim, tudo dependa
do sucesso. Então todas as vozes terão que calar-se” 364.
2.3.2 Segunda etapa da expedição: rio Curicuriari, baixo Caiary-Uapés e rio Tiquié
(fevereiro a junho de 1904)
Em fevereiro de 1904, Thedoro Koch-Grünberg já estava determinado a partir de São
Felipe com destino ao rio Curicuriarý, com a finalidade de conhecer os Nadëhup e tentar
escalar a serra perto da boca do rio. Com a dificuldade em conseguir remadores por conta do
período de extração do caucho, o americanista e Schmidt planejaram desbravar por conta
própria o referido rio. Apesar de não consentir com a ideia dos expedicionários, Dom
Germano cedeu alguns indígenas escravizados por dívidas para acompanha-los, em virtude
das perigosas cachoeiras.
Os novos membros da comitiva eram o Kuruará-tapuyo João Grande e os Nadëhup
Ignacio e Nasario, pai e filho, respectivamente. Os acompanhantes não satisfizeram as
pretensões do americanista e receberam algumas críticas a respeito de sua moral e do seu
aspecto físico. Segundo Koch, “da ‘civilização’ europeia eles assimilaram o que havia de pior.
Em toda a circunvizinhança eles eram conhecidos como os piores cachaceiros”. Além disso, a
compleição física dos dois indígenas foi avaliada negativamente pelo etnólogo em razão de
serem “Makú pretos”, representados da seguinte forma: “cor da pele muito escura, e o tipo
semelhante ao negro com nariz largo e achatado, e o queixo muito protruso, frequentemente
de uma conformação animalesca”. Como veremos a seguir, essa representação a respeito dos
“Makú” como animais – que destoa das perspectivas do americanista de humanizar os
indígenas e suas sociedades por meio da sua etnografia – são reiteradas em outros documentos
do autor.
Em uma carta destinada a Goeldi, de 19 de junho de 1904, o americanista comunica
que no dia 7 de fevereiro do mesmo ano partiu de São Felipe, seguido por Otto Schmidt e
mais três tripulantes indígenas com destino ao rio Curicuriary, afluente da margem direita do
rio Negro. Ainda no mesmo documento, Koch-Grünberg comunica que, seguindo a viagem,
então nas margens do rio Curicuriary, encontrou poucos índios Tukano, “que se refugiaram
364
Konrad Theodor Preuss a Theodor Koch-Grünberg, 04.02.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K5 apud Petschelies,
Op. Cit., 2019, p. 398.
122
para esta solidão das intemperies da tal ‘civilisação’”. Na margem direita daquele curso
d’água, observou ainda alguns índios Nadëhup que ali vagueavam e os retratou para o diretor
do museu paraense como “bravos, perseguidos, acossados e odiados de outras tribos, sem
residências fixas e em fuga continua, como animaes selvagens pela mata”
365
. Descrição
similar desse povo aparece em outras publicações do autor, como o artigo intitulado Die
Makú366, que inicia da seguinte forma:
Entre o rio Negro e Yapura perambulam inúmeros índios sem habitação permanente
pela floresta. Estes são “indios do matto” [sic], como dizem os brasileiros, brutos
caçadores nômades, que não tem roça, não conhecem rede e canoa, porém, tem um
primoroso conhecimento da floresta. Eles vivem da caça, da pesca e das frutas da
floresta. São odiados e perseguidos pelas tribos vizinhas, superiores e sedentárias,
como se fossem animais silvestres. Eles devem servi-los como escravos no trabalho
doméstico e na roça e são, vez ou outra, vendidos a troco de espingardas e outras
mercadorias europeias para comerciantes brancos. Na escravidão, eles recebem um
tratamento relativamente bom, um tanto compassivo367.
O relato do americanista a respeito dos Nadëhup, à época chamados de Makú, não era
uma excentricidade, outros viajantes e etnógrafos desde o século XIX também os
caracterizaram como índios do mato, nômades, rudimentares e servos de outros grupos
indígenas. Atualmente, por conta do tom pejorativo do termo Makú, seis grupos indígenas –
Nukak, Bara, Hupda, Yuhupde, Dow e Nadöb – reivindicam o abandono desse nome e lutam
pelo reconhecimento de suas autodenominações368.
Na análise de Münzel, a descrição do americanista relativa à animalidade dos “Makú”
está embasada numa tradição etnográfica de outros viajantes e pesquisadores que o
precederam no alto rio Negro e nas fontes Tukano, dada a impossibilidade de contato e
comunicação diretos com os referidos nativos369. A relação entre os dois povos – “Makú” e
Tukano – pode ser entendida como uma luta de representação entre os nômades “indios do
matto” e os sedentários “indios do rio”. Koch-Grünberg foi testemunha disso, reportando
inclusive a escravidão dos Makú nas aldeias Tukano do rio Tiquié, onde repousou durante a
365
KOCH, Theodor. Duas cartas do Dr. Theodor Koch, relativas à sua actual expedição ethnographica entre os
índios do alto rio Negro, dirigidas ao Director do Museu. In: Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de
História Natural e Ethnographia,v. 4, n. 2-3, p. 485, 1904.
366
O artigo Die Maku foi originalmente publicado por Theodor Koch-Grünberg em 1906 na revista internacional
de etnologia e linguística Anthropos, fundada no mesmo ano por Wilhelm Schmidt (1868-1954). No entanto, no
presente trabalho utilizamos a primeira tradução do texto ao português feita por Danilo Paiva Ramos e Karolin
Obert publicada no volume 60, número 2, da Revista de Antropologia da USP. In: RAMOS, Danilo Paiva;
OBERT, Karolin. Uma tradução do artigo “Die Makú” de Theodor Koch-Grünberg (1906). Revista de
Antropologia (São Paul, online), v. 60, n. 2, p. 588-633, 2017.
367
Ibid., p. 601.
368
POZZOBON, Jorge. Hupda. In: Instituto Socioambiental: Povos Indígenas no Brasil. Disponível em:
<https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Hupda#Fontes_de_informa.C3.A7.C3.A3o>. Acesso em: 7 de dezembro
de 2020.
369
MÜNZEL, M. Notas preliminares sobre os Kaborí (Makú entre o Rio Negro e o Japurá). Revista de
Antropologia, São Paulo: USP, v. 17/20, p. 137-81, 1969- 1972.
123
expedição, e a tentativa permanente dos anfitriões de representarem os escravizados como
“não-humanos”.
Retomando a trajetória da segunda etapa da expedição, Koch-Grünberg julgou que a
viagem pelo Curicuriary havia sido parca em resultados etnográficos. Então decidiu subir o
rio Tiqué, um dos afluentes da margem direita do Caiary, até suas nascentes. Nesse rio entrou
em contato com diversos povos indígenas, que, segundo ele próprio, “ainda não conheciam o
homem branco”370. De forma geral, a passagem pelo Tiquié foi profícua e agradável para a
expedição. No seu relato, inclusive, chegou a escrever que “todas as tribos do Tiquié eram
boas, somente os Makú não prestavam”371.
Para além da aversão explícita aos Nadëhup, a boa recepção entre os autóctones e o
grande volume de objetos adquiridos no transcurso são alguns dos fatos que explicam a
avaliação positiva do rio Tiquié. A coleção remetida ao Museu Paraense Emílio Goeldi
(MPEG) tem atualmente no seu inventário cento e nove peças provenientes do afluente, a
maior parte do povo Tukano (91) e uma parte menor de outros três, Desana (8), Baré (4) e
Tuyuka (6)372.
As primeiras aquisições no Tiquié foram em aldeias Desana. Segundo o relato de
Koch, as negociações envolveram um adorno de quartzo e três chocalhos para os pés em troca
de um grande terçado grande. Toda a transação foi interpelada por uma senhora idosa, “que
aos gritos, grasnando, se sobrepôs aos homens”373. A mesma influência da mulher na região
foi considerada notável pelo etnólogo, que reportou as muitas “intromissões das mulheres nas
falas” durante as trocas e a influência delas no ambiente doméstico, como quando tentou
adquirir algum peixe moqueado e o marido não consentiu, pois “a mulher dele tinha que
decidir, pois o peixe lhe pertencia”374.
Durante a hospedagem nas aldeias do rio Tiquié, com a ajuda de seus colaboradores
indígenas e de Schmidt, Koch vasculhava os cantos das casas em busca de tesouros
etnográficos e ali mesmo negociava com os produtores ou detentores das peças. Nas mesmas
circunstâncias, mas em outras malocas no Samaúma-Igarapé, foram obtidos alguns escudos
ritualísticos dos Dêsana e buzinas de barro dos Tukano. Alguns exemplares desses objetos
estão atualmente na coleção do MPEG.
370
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de
1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
371
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 264.
372
Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); A Relação do Material Etnográfico do Museu
Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia (1955).
373
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 261.
374
Ibid., p.272-273.
124
Seguindo a viagem, adquiriu também uma vasta coleção de objetos de um idoso chefe,
não nomeado, na aldeia Iraïtí, o centro dos Mirití-Tapuyo. Sem especificar a origem de cada
objeto e o meio pelo qual que as peças passaram à posse do ancião, o americanista elencou os
itens comprados:
Adornos para a dança, belas e largas faixas para a cabeça com penazinhas de arara,
um magnifico adorno de quartzo, cinturão de dança com dentes de macaco enfiados,
chocalhos feitos de cabaças, adornadas com desenhos riscados, um bastão
artisticamente esculpido duma madeira pesada, marrom, com um punho, que é usado
pelos chefes nas festas de dança, como distintivo da dignidade, ao lado de lanças
rituais com entalhes semelhantes, e duas pequenas buzinas singulares de madeira
que se abrem em dois lados como em funis, completamente simétricos, e são
enrolados expressamente com cordas de fibras de curauá, passadas com breu375.
Apesar da ausência de informações relativas à comunidade produtora dos citados
objetos, é possível observar coincidências entre os itens listados pelo americanista e os
catalogados na documentação da seção Tukano do MPEG (n.º 215 a 310376), e a procedência
geográfica de ambos: o rio Tiquié. É provável, portanto, que as singulares cangataras com
penas de arara, buzinas de barro, enfeites corporais com dentes ou pelo de macaco e maracás
depositados na Reserva Técnica Curt Nimuendajú tenham sido comprados pelo coletor na
aldeia Iraïtí.
No dia 12 de abril de 1904, a coleção foi incrementada com o desejado “Trocano” –
grande tambor para sinalização dos Tukano da aldeia Parý-Cachoeira – no rio Tiquié. Schmidt
foi quem tomou a frente da negociação com o tuxaua, em razão da sua serenidade e por não
partilhar do mesmo “entusiasmo etnográfico” de Koch – o qual, se exposto, poderia dificultar
e encarecer a troca. Depois de demorada negociação, foi acertado o pagamento de quatro
terçados, cinco machados, cem anzóis e um pacote de fósforos pelo cilindro de madeira. Por
ser o único e cobiçado exemplar, descrito pela primeira vez no século XVIII por Joseph
Gumilla, foi remetido ao museu berlinense. Na missiva que Koch enviou a Goeldi, o objeto é
destacado como um troféu para provar o êxito da segunda etapa da expedição377.
Prosseguindo a viagem, por volta do final do mês de abril e início de maio, a
expedição atingiu algumas aldeias Tuyuka e Baré. Permanecendo de um a oito dias, o
americanista e sua comitiva observavam o cotidiano desses lugares, os festejos, a fabricação e
os usos da cultura material. Essa forma de interação com as comunidades permitia uma
melhor etnografia e uma maior facilidade na troca de objetos, como Koch o fez adquirindo
adornos de dança, instrumentos musicais e até utensílios para aspirar paricá (Figura 27).
375
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 278.
Alguns artefatos foram extraviados durante os anos, logo há alguns lapsos nos números de Tombo.
377
GOELDI, 1904, p. 482.
376
125
Figura 27 – Cabaça para paricá e instrumento para tomar do povo Tukano, da coleção
Theodor Koch-Grünberg (1905) do Museu Paraense Emílio Goeldi. Fonte: Fotógrafo e data
não identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção
Fotográfica, Negativo MPEG00436.
O paricá é um pó de cor cinzenta, feito de sementes de uma árvore, estimulante,
aspirado pelo nariz, como rapé. O pó era depositado em recipientes esféricos, em conchas, e
aspirado por dois ossos de aves, como vemos na fotografia acima (Figura 27). Na coleção
etnográfica de Koch-Grünberg, do MPEG, constam cabaças e aparelhos para uso dos povos
Tukano (n.º 294 a 296) e Baré (n.º 535 a 538).
A expedição só regressou para São Felipe em 14 de junho de 1904, depois de longa
estadia em aldeias Tukano, Tuyuka, Desana e Baré dos rios Curicuriari, baixo Caiary-Uapés e
Tiquié. Na segunda parte da viagem, Koch reuniu grande vocabulário indígena, muitos dados
sobre os povos visitados, chapas fotográficas e artefatos que logo seriam remetidos aos
museus.
2.3.3 Terceira etapa da expedição: rios Negro, Caiary-Uapés e Cuduiary (agosto de 1904
a janeiro 1905)
Como feito nas etapas anteriores, Theodor Koch-Grünberg e sua comitiva retornaram
para São Felipe e fizeram uma pausa de dois meses nas viagens. Nesse período, o
americanista despachou cartas e parte da coleção ao museu de Berlim, adquiriu mais chapas
fotográficas e mercadorias para trocas e aproveitou para visitar Miguel Pencil, seu amigo e
seringalista, em sua propriedade na margem esquerda do rio Negro, em frente da boca do rio
Xié. De volta a São Felipe, em 13 de julho de 1904, teve contato com dois indivíduos do
Caiary que contaram negociar com indígenas no alto curso do rio, mas retornaram com medo
126
dos Kubeo, que há pouco tempo haviam matado dois coletores de caucho colombianos. No
entanto, esse era um dos destinos da viagem planejada para acontecer no mês seguinte. Os
dois homens desaconselharam o trajeto, mas o americanista relatou estar resoluto quanto ao
percurso da expedição e disse que não desistiria da viagem e ainda minimizou os perigos para
si, pois, na sua visão, os Kubeo “não eram feras e bem distinguiam entre brancos bons e
maus”378.
A expedição partiu de São Felipe em 3 de agosto de 1904. Dom Germano cedeu cinco
pessoas, que acompanharam Koch até Bella Vista, onde o sub-prefeito Manoel Antonio
Albuquerque residia. Em troca de reconhecimento no trânsito com o governador do Estado do
Amazonas, ele cedeu quatro remadores e um piloto para acompanhá-lo até a aldeia Ipanoné,
localizada nas margens ascendentes do Caiarý.
A viagem prosseguiu pelo Caiarý-Uaupés, onde entrou em contato com diversos povos
– Tukano, Pira-Tapuyo, Arapáso, Tariana – até chegar na aldeia Yauareté, dos Tariana, no rio
Papurý, onde passou três dias. No relato de viagem, a descrição da terceira etapa da expedição
é intercalada por dois capítulos (III e VII do volume 2), que detalham e examinam as práticas
de pesca, lavoura e a indústria de trançados, tecidos, cerâmica e de ornamentação das casas.
Nota-se o grande esforço do etnólogo para documentar as ações, as técnicas, as ideias, a
língua, a mitologia e a cultura material dos povos visitados, numa premissa de tornar acessível
aos estudos etnológicos a maior quantidade de informações essenciais aos estudos do
pensamento universal379.
No capítulo sobre a pesca, o americanista utiliza-se de dados empíricos e os
exemplifica com objetos por ele colecionados, o que nos dá algumas pistas sobre a
procedência das coleções e o interesse dele pelos citados artefatos. Por exemplo, ele cita duas
flechas dos Yahúna adquiridas no baixo Apaporís, arcos e flechas dos Kueretú no Yapurá,
perto da boca do Apaporis, e uma rede obtida no alto Aiari de povo não identificado. Além
disso, apresenta diversas fotografias de redes de apanhar peixes menores, apetrechos para
tecê-las e matapís, todos do rio Aiari(Figura 28).
378
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 366.
Para uma leitura mais completa dos pressupostos epistêmicos da etnografia de Theodor Koch-Grünberg e a
relação de suas viagens ao projeto científico da Völkerkunde, consultar: FRANK, 2005.
379
127
Figura 28 – Redes e matapí do rio Aiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1910.
No esforço para recontextualizar a coleção feita por Koch, confrontamos as
informações e as fotografias do relato de viagem com a documentação do Museu Paraense
Emílio Goeldi (MPEG). Entre os materiais de pesca coletados pelo americanista, existem
quatro itens que combinam com as descrições e partilham da mesma procedência descrita em
Dois anos entre os indígenas. São eles: três redes, duas fibras de tucum de procedência
duvidosa do Caiarý e uma dos Siusí do Aiarý (n.º 350), e um matapí do mesmo povo no Aiari
(n.º 354). Não é possível atestar se os artefatos encontrados no MPEG são os mesmos que
foram fotografados por Koch-Grünberg, apenas é lícito afirmar que o interesse do coletor
pelas práticas de caça e pesca e o desejo de documentar diversos aspectos culturais dos
ameríndios estão representados na coleção.
Seguindo viagem pelo Uaupés, a expedição enfrentou grandes dificuldades para
atravessar as cachoeiras e correntezas, mas encontrou abrigo em uma aldeia Uanána, onde
obtiveram mais dois escudos dos Desana do Papurý pertencentes ao chefe. Na mesma aldeia,
conheceu um índio Kubeo, chamado Uaíkumu Kdyu, que concordou em acompanhar KochGrünberg até sua aldeia no Cuduiarú e apresenta-lo para sua gente.
No dia 5 de setembro, partiram da aldeia Uanána com destino aos Kubeo. Passando
por algumas corredeiras, chegaram à maloca Matapý, ainda no rio Caiarý-Uaupés. Lá viviam
juntos Uanána e Desana e alguns visitantes Kubeo, que participavam de uma dança de
mascarados, cujos trajes o americanista chegou a comprar. Essa não foi a única aldeia Uanána
em que a coleção foi incrementada. Em outra, denominada Uruárapecúma, foram negociadas
novas peças, entre elas bastões de dança de madeira de ambaúva.
128
Figura 29– Surubiróca, maloca dos Kubeo no rio Cuduiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1910.
Novos bastões de madeira foram comprados no dia 23 de setembro, mas dessa vez em
uma maloca Korokoró-Tapuya – segundo o americanista, era um subgrupo dos Kubeo e
partilhava da mesma língua – já no rio Caduiarý. Subindo o flume, pernoitaram na maloca
Surubiróca dos Kubeo, onde viviam três irmãos e suas famílias (Figura 29). No interior da
choça decorada com motivos coloridos380, Koch-Grünberg encontrou alguns chicotes
utilizados em festas e corpetes de máscara, ainda novos e bem pintados, usados numa recente
festa fúnebre, e algumas lâminas de machados de pedra, que provavelmente enriqueceram a
coleção formada nesse rio.
A expedição prosseguiu navegando por todos os meses de setembro e outubro pelo
Caduiarý, com algumas estadias em malocas de diversos povos situadas às margens. As
atividades nas aldeias eram muito similares, o que Petschelies resumiu muito bem: “descanso
e alimentação, festas e caxiri, estudos linguísticos e etnológicos, montagem da coleção
etnográfica e fotográfica” 381.
380
Observando a arte decorativa das casas indígenas, Theodor Koch-Grünberg escreveu: “[...] assim estamos
vendo que na vida caseira do indígena absolutamente não há falta de poesia, e que a casa é para eles não apenas
um abrigo, mas um lar em verdadeiro sentido da palavra, que eles decoram e adornam, como podendo”. In:
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 558.
381
PETSCHELIES, 2019, p. 411.
129
Figura 30– Negociando com os Bahúna. Fonte: Koch-Grünberg, 1910.
Na Figura 30, observamos uma cena do processo de negociação travado entre os
índios e Koch-Grünberg. Na representação, um grupo Bahúna visitou o americanista em
Túibö, maloca do mesmo povo, com o objetivo de vender alimentos, lâminas de machados de
pedra, colares de sementes e de dentes de animais, e peles de galos-da-serra. Esse interesse
dos indígenas por negociar objetos locais com produtos europeus foi registrado também em
outras partes do globo, como observou Torrence e Clarke382. Ao analisar o acervo etnográfico
do Australian Museum, os autores observaram uma série de estratégias empregadas pelas
comunidades da Nova Guiné Britânica para atrair e aumentar as trocas com viajantes,
comerciantes, missionários e funcionários dos governos ocidentais: “fabricação de cópias de
objetos conhecidos; conceber mudanças aceitáveis para bens populares; itens convidativos
que agradariam aos gostos ocidentais; realçar os artefatos tradicionais para atrair a
atenção”383.
382
TORRENCE, Robin; CLARKE, Anne. Creative colonialism: Locating indigenous strategies in ethnographic
museum collections. In: HARRISON, Rodney; BYRNE, Sarah; CLARKE, Anne (orgs.). HARRISON, Rodney.
Reassembling the collection: ethnografic museums and indigenous agency. New Mexico: SAR Press, p. 171195, 2013.
383
Ibid., p. 179-180, tradução nossa. No original: “manufacturing copies of well-known objects; devising
acceptable substitutions for popular goods; inveting items that would appel to western tastes and enhancing
tradicional artifacts to attract atention”.
130
A visita dos Bahúna revela que a fama do colecionista antecedia a sua chegada e
gerava interesse nos produtores para vender seus objetos com a finalidade de obter outras
mercadorias. Seguindo a perspectiva apresentada por Torrence e Clarke, é possível que as
comunidades criadoras – não somente do citado grupo, como também de outros povos
contatados na expedição – que tiveram seus objetos colecionados também utilizassem de
estratégias criativas para atrair a atenção do colecionador, como, por exemplo, interferir na
criação de artefatos domésticos e ritualísticos com a finalidade de despertar o desejo
colecionista dos forasteiros.
Durante as visitas às malocas Bahúna, Koróa, Pisá-tapuyo, Uanána, Umauá, o
americanista registrou não só informações relevantes para a sua pesquisa etnográfica, mas a
tensão e animosidade entre os indígenas e os colombianos – conjuntura que interferia
diretamente no seu trabalho e no estado psicológico dos nativos, e que demandava grande
esforço do pesquisador para administrar a situação e manter os elos. Relatos de assassinatos,
vinganças, invasões, sequestros de mulheres, mutilações e fugas foram compartilhados pelos
ameríndios ao “dotoro”, como ele costumeiramente era chamado na região, e os
expedicionários foram testemunhas das novas doenças que acometiam os habitantes locais.
Nesse contexto angustiante, ter aliados influentes foi fundamental, fossem eles indígenas ou
não. As cartas de recomendação obtidas com seringalistas, oficiais, autoridades regionais ou
estaduais e a fama que possuía como amigo dos índios permitiram conseguir guarida nas
aldeias e nos acampamentos, arregimentar remeiros, angariar alimentos, navegar pelos rios e
salvaguardar a vida dos membros da comitiva.
No dia 11 de novembro, após ultrapassar as longas cachoeiras, eles chegaram em
Namocolíba, aldeia dos Kubeo. A estadia com esse povo foi longa e harmoniosa, cerca de um
mês com curtos intervalos enquanto visitava outras aldeias próximas. O americanista, por
meio da observação pessoal e das fontes orais dos habitantes, realizou um minucioso exame
dos costumes, usos e conceitos locais. Ele descreveu não só a cultura material, como também
a “arte e petróglifos, [...] e técnicas de produção, relações interétnicas (guerra e comércio),
relações com animais, divisão sexual do trabalho, ciclo da vida, casamentos, xamanismo e
endocanibalismo, além da mitologia [...]”384. Evidentemente, maior destaque foi dado aos
processos de feitura (Figura 31) e uso das máscaras (Figura 32), afinal, um grande montante
desses objetos foi coletado e destinado aos museus berlinense e paraense. Em Belém, há
atualmente quase noventa máscaras e outros artefatos relacionados de origem Kubeo.
384
PETSCHELIES, 2019, p. 414.
131
Figura 31- Sequências de fotografias do processo de confecção das máscaras de dança dos
Kubeo, no rio Cudiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1910.
O processo de preparação das máscaras foi acompanhado de perto em Namocolíba e
foi registrado conjuntamente por meio de uma sequência de fotografias (Figura 31) e pela
descrição textual, que detalham a extração da casca de troncos de média grossura, o
espancamento, a costura, a lavagem e a secagem da entrecasca, como é possível ver na
sequência acima.
Figura 32 - Dança das máscaras dos Kubeo no Rio Cudiarý. Fonte: Koch-Grünberg, 1910.
132
Koch-Grünberg adquiriu mais de 50 máscaras diferentes, cada uma representando um
distinto espírito (demônio385) ou animal. Muitas delas haviam sido utilizadas em festas
fúnebres. De acordo com ele, os festejos de finados iniciavam de tarde e se alongavam até de
manhã, quando os indígenas amarravam as máscaras pelas mangas sobre varetas no centro da
aldeia e então as queimavam. Após inquirir alguns Kubeo, o americanista conseguiu uma
explicação melhor acerca da alma invisível das peças:
Quando os Kubeo quiseram explicar-me do melhor modo esta parte invisível da
máscara, eles chamaram-na, com a palavra da Língua Geral, “máscara-anga” (alma
da máscara). Como a alma humana está invisível dentro do corpo, o vivifica e,
depois da morte, vai para Mkölmi, o Além das almas dos Kubeo, assim depois da
“morte”, isto é, depois de ser queimada a máscara, a força invisível que durante a
festa vivia na máscara, seu invólucro visível, volta para a sua residência própria.
Esta força invisível é o demônio. ‘Todas as máscaras são abóxökö (demônios); todos
os abóxökö são senhores (donos) das máscaras”, disseram os Kubeo386.
Dessa forma, as máscaras não só representavam espíritos de toda a conformação
humana e diferentes espécies de insetos, aves e mamíferos, como eram habitadas por eles.
Para Koch-Grünberg, então, a cremação das peças depois da festa em homenagem aos mortos
“justificava-se pelo medo de que o demônio volte e com o qual não querem mais nada ter que
haver”387. De todo modo, o fato certamente transformou os objetos em itens raros e,
consequentemente, era um motivo de entusiasmo para o colecionista.
No dia 12 de dezembro acabou a estadia entre os Kubeo. O tempo na aldeia, nas
palavras de Koch-Grünberg, foi “inesquecivelmente belo” em razão da acertada relação de
confiança e concórdia. O objetivo final da expedição nesse momento era São Felipe, para uma
despedida definitiva. A terceira etapa da expedição foi desgastante para toda a comitiva, com
a carestia de alimentos, entre eles a farinha – item fundamental na dieta amazônica – e casos
reincidentes de febres e desânimo.
Ademais, houve severas avarias nas embarcações causadas por choques com as pedras
nas corredeiras, como na travessia da Cachoeira Yurupirý, quando a embarcação rachou quase
que inteiramente no meio. Essa travessia foi registrada na icônica fotografia abaixo (Figura
33), na qual os remeiros indígenas descem com esmero o pesado bote, representando uma
ideia geral de que, nas palavras de Petschelies, o “trabalho de campo é uma batalha contra a
natureza”388.
385
O americanista utiliza comumente esse termo para descrever os seres representados nas máscaras.
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 506
387
Ibid., p.507.
388
PETSCHELIES, 2019, p. 422.
386
133
Figura 33 – Remadores indígenas descendo a embarcação na Cachoeira Yurupirý. Fonte:
Koch-Grünberg, 1910.
Após alcançar uma maloca Makú e ter realizado alguns estudos complementares, a
viagem viveu um hiato entre os dias 22 e 25 de dezembro por falta de remadores, problema
que só foi resolvido depois de longas negociações. Os expedicionários, então, passaram o
natal na cachoeira Yaureté, no rio Uaupés, terra dos Tariana. Ali compraram mais objetos
etnográficos, entre eles instrumentos e máscaras usadas por diversos povos indígenas nas
festas de Yuruparý e um tambor de sinalização. Esse último artefato, também chamado de
“trocano”, e seus acessórios foram adquiridos na aldeia Castanha-capuáma e foram remetidos
ao MPEG. No entanto, a presença do tambor (n.º 529) na Reserva Técnica está confirmada
apenas na listagem de 1939. Nas conferências feitas a partir de 1988 ele não foi localizado,
enquanto os outros apetrechos listados ainda estão atualmente na instituição (n.º 530 a 533).
No regresso para São Felipe, encontraram Hildebrando e Salvador, que viajavam para
Ipanoré. Os dois filhos de Dom Germano expuseram a notícia de que no dia 8 de novembro a
casa da família e as barracas situadas ao lado foram destruídas por um incêndio. O fogo
atingiu um tanto de haveres do americanista, entre eles, armas e mercadorias para as trocas,
“em valor de mais de um mil marcos alemães”. Preocupações sobre o destino dos diários, dos
vocabulários e da coleção etnográfica tomaram conta da cabeça do etnólogo, que relatou ter
perdido algumas noites de sono. A aflição só teve termo quando a comitiva alcançou o
vilarejo no primeiro dia de janeiro de 1905. Por sorte, os “tesouros insubstituíveis” estavam
acomodados na única habitação que ficou livre do fogo e estavam intactos389.
389
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 568.
134
Em São Felipe, o americanista tomou conhecimento das cartas de Oscar Dusendschön
e Karl von den Stein, recebidas durante o período em que esteve ausente. Por meio das
missivas, o cônsul alemão confirmou o envio das coleções etnográficas para Belém e Berlim e
também para sua noiva, Elsa Wasmuth, e informou que o pesquisador estava autorizado a
ausentar-se do museu berlinense até abril de 1905, com o adiantamento de 500$000390. Na
outra carta, Steinen fundamentou sua opinião quanto à exploração do Purus, mas concordava
com a escolha feita por Koch-Grünberg. Além disso, elogiou o material Baniwa e Tukano que
já havia chegado a Berlim, com menção especial ao grande tambor391.
A estadia em São Felipe se prolongou até o começo de fevereiro de 1905. Esse tempo
foi suficiente para os expedicionários se recuperaram da fadiga da viagem antecedente e se
prepararem para a quarta e última etapa. No vilarejo conseguiram empacotar e entregar as
coleções ao atravessador Antonio Garrido e consertar a montaria, que estava bastante avariada
depois das travessias pelas cachoeiras.
Essa prolongada relação entre Koch-Grünberg e a família Garrido y Otero não foi
esquecida no resumo de viagem publicado em um periódico amazonense. Ganhou, pelo
contrário, palavras de imensa gratidão para com todos. O americanista sentenciou como “feliz
acaso” a escolha de São Felipe como centro de suas operações, e assim justificou: “digo feliz
porque o meu estimado amigo, o sr. Germano Garrido y Oterro, assim como seus dignos
filhos, me auxiliaram bastante, por todos os meios ao seu alcance e devo a esses amigos uma
grande parte dos bons êxitos das minhas viagens”. Após esse discurso, ele, assim como fez
em Dois anos entre os índios, afirmou que o seringalista havia sido um “verdadeiro pai”392.
2.3.4 Quarta etapa da viagem: rios Uaupés, Tiquié, Pira-Paraná, Apaporís, Japurá e
Solimões (fevereiro a abril de 1905)
No dia 6 de fevereiro partiram Theodor Koch-Grünberg, seu inseparável companheiro
Otto Schmidt e mais alguns remeiros indígenas, entre eles, o Nadëhup Ignacio e o KurauáTapuio João Grande. Por meio de uma rota não usual, os expedicionários pretendiam chegar
ao rio Amazonas subindo o Tiquié e depois descendo pelo Japurá. A quarta etapa da viagem,
segundo o americanista, teve o objetivo claro de “regressar por caminhos ainda não pisados e
390
Oscar Dusendschön a Theodor Koch-Grünberg, 29.07.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K6; Oscar Dusendschön a
Theodor Koch-Grünberg, 30.07.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K6; Oscar Dusendschön a Theodor Koch-Grünberg,
31.08.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K6; Oscar Dusendschön a Theodor Koch-Grünberg, 20.09.1904, VK Mr, A1,
K6 - 01K6 apud PETSCHELIES, Op. Cit., 2019.
391
Karl von den Steinen a Theodor Koch-Grünberg, 27.10.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K7 apud PETSCHELIES,
Op. Cit., 2019.
392
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de
1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
135
por algumas regiões ainda não conhecidas e chegar ao Yapurá e aproximar-se outra vez da
‘soi-disant’393 civilisação em busca das pátrias terras”394.
Os expedicionários então subiram pela segunda vez o rio Tiquié até um “caminho dos
índios” já navegado na segunda etapa da viagem, em maio de 1904. Com a ajuda de
informantes, encontraram um igarapé que desaguava no rio Japurá. A travessia no estreito
curso d’água foi penosa nos primeiros dias, por conta dos empecilhos naturais das árvores
caídas.
No dia 12 de março, chegaram à maloca dos Tsola, situada na margem esquerda do
igarapé Tamíya. Os moradores foram todos cordiais com os expedicionários, apesar dos
visitantes, segundo o americanista, serem os primeiros brancos a pisarem ali – certamente,
umas das grandes satisfações para um etnólogo no início do século XX. Ainda na aldeia,
mostraram a eles um grande terçado que, no ano anterior, foi dado como pagamento em
Pinókoaliro, mas que por meio da circulação intercultural chegou às mãos dos Tsola.
Seguindo viagem, no dia 15 de março, na Iraïti-Cachoeira, uma das canoas afundou,
perdendo-se ali alguns objetos indígenas, uma espingarda recarregável pela boca, terçado,
toda a farinha e todo o sal. As mercadorias para troca foram salvas por um Tuyuca. No dia
seguinte, a comitiva foi esvaziada, pois os Tuyuka tomaram o caminho de volta para casa com
receio dos povos que moravam rio abaixo, seus inimigos antigos que mataram seus pais. O
etnólogo então decidiu seguir a viagem apenas com Schmidt na canoa que se salvou no
desastre.
Apenas no dia 20 de março entraram no rio Apaporis, o maior afluente do Japurá, na
margem esquerda. Durante três dias remaram, com parca alimentação, até encontrarem gente
novamente: primeiramente, o caucheiro colombiano Tomás Prata e sua comitiva e, depois,
alguns índios moradores das nascentes do Apaporis e, em seguida, um pouco mais abaixo,
outros habitantes de malocas.
Após viajar mais um pouco, chegaram à maloca dos Makúna no rio Apaporis. A aldeia
e seus habitantes logo atraíram a atenção do etnólogo por suas particularidades, que,
admirado, reportou: “a gente, suas armas, seus instrumentos, tudo era algo diferente do que
encontramos no Caiarý e no Yaucáca-Igarapé, influenciado pelo jeito do Caiari”395. Em outro
momento, disse sobre a experiência com esse povo: “são eles homens de bom coração e eram
393
A expressão francesa empregada por Koch-Grünberg dá ideia de “suposta”, “alegada”, ou melhor, “assim
chamada”.
394
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de
1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
395
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 593.
136
muitos meus amigos, como assim todos os demais índios, chamados bravios, [...] passando
[...] dias aprazíveis e de inestimável valor pra mim, em virtude das muitas novidades que colhi
para os meus estudos”396.
Figura 34 – O americanista com os Makúna, Yabahána, Yahúna, no baixo Apaporis. Fonte:
Koch-Grünberg, 1910.
O interesse fez com que os expedicionários demorassem até o dia 28 de março entre os
Makúna e seus vizinhos Yahúna e Yabahána, como podemos observar na Figura 34, na qual
os indígenas e Koch-Grünberg parecem segurando suas respectivas armas. A estadia na
maloca possibilitou reunir vocabulário, informações acerca de seus costumes e usos da cultura
material e negociar objetos desses povos.
De acordo com Koch-Grünberg, as negociações na maloca dos Makúna eram simples,
os produtores não colocavam empecilhos para trocar mercadorias e não eram tão exigentes. O
Museu Goeldi recebeu pelo menos vinte objetos – três dos Makúna e dezessete Yahúna –
adquiridos durante a estadia no rio Apaporis. Entre eles, destacamos os característicos
adornos masculinos de braço Yahúna, feitos de sementes de tucumã (n.º 575 a 577), e o
escarificador de dentes do peixe cachorra (n.º 571 a 574), instrumento medicinal para riscar a
pele e livrar-se de possíveis doenças.
A viagem continuou por mais alguns dias, com indígenas Yabahána e Yahúna como
remadores, com destino ao rio Amazonas. Passaram por algumas malocas, como a de KuxiítaYahúna, na margem direita do Apaporis, onde o americanista encontrou índios com maior
396
KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Viagens ao alto rio Negro. Jornal do Commercio, Manaus, 13 de maio de
1905. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
137
influência europeia. Ele assinalou que a estadia ali marcava o último dia entre os indígenas
livres. O americanista ainda toparia com outros povos indígenas, como os Uitóto, Miránya,
Hianákoto, Opaina, Kokáma, mas a impressão que registrou, navegando até o caminho de
casa, foi a exploração dos índios no contexto de extração do caucho, tanto entre brasileiros
como entre colombianos.
Depois de dois anos de viagem, os expedicionários se despediram dos seus amigos
indígenas ao encontrar uma lancha, que os levou até a cidade de Tefé. Da cidade amazonense
partiram no vapor “Lauro Sodré” até a capital, onde chegaram no dia 4 de maio. Em Manaus,
Otto Schmidt e Koch-Grünberg se despediram para sempre e esse último embarcou a bordo
do navio “Patagonia”, da linha Hamburgo-Amérika, de volta à Alemanha.
Quando da primeira edição de Dois anos entre os Índios, cinco anos após o fim da
expedição, Koch, de modo saudosista, declarou que o paraíso encontrado por ele na floresta
amazônica não poderia ser mais avistado em razão do reencontro com a suposta civilização:
O sopro pestilento de uma pseudo-civilização anda por sobre os povos morenos, que
não possuem direitos. Como enxames de gafanhotos que tudo destroem, penetram os
bandos de desalmados coletores de caucho sempre mais adiante. Os colombianos já
se fixaram na boca do Cuduiary e conduzem os meus amigos para longe, nas
mortíferas matas de caucho. Atos de violência bruta estão na ordem do dia. No baixo
Caiary, os brasileiros não fazem melhor. As praças das aldeias estão ficando
desoladas, as casas tornam-se cinzas, e a selva retoma a sua posse das roças, que não
recebem a atenção de mão cuidadosas. Assim se destrói uma raça forte, um povo
com excelentes disposições de espírito e coração. Um material humano, capaz de
desenvolver-se, fica aniquilado pelas brutalidades desta moderna cultura da barbárie.
O trecho acima é uma contundente denúncia contra essa torrente de “civilização” que
adentrava as matas e explorava, e muitas vezes dizimava, os povos indígenas. A percepção de
Koch-Grünberg acerca dos índios, como aponta Pinto, não estava dissociada dos processos
sociais e políticos que coexistiam na Amazônia nas primeiras décadas do século XX. Pelo
contrário, a etnografia feita pelo americanista descreveu as culturas e as “condições de
existência de uma população indígena sofrendo o efeito do contato com os valores da
civilização”397.
2.4 A aquisição das “duplicatas” pelo Museu Goeldi
A longa convivência entre os indígenas e a interação com as comunidades produtoras
resultaram no acúmulo de grande quantidade de material etnográfico por parte de KochGrünberg, um volume maior do que as expectativas iniciais. Quando em São Felipe, no início
de 1904, preparando e empacotando peças no intervalo entre a primeira e a segunda etapa da
397
PINTO, Renan Freitas. Vida e Obra de Koch-Grünberg. In: KOCH-GRÜNBERG, 2005.
138
expedição, o americanista parece ter vislumbrado a possibilidade de negociar uma parte
menor da coleção com o Museu Goeldi398. Em correspondência a Koch datada de 16 de março
de 1904, citada por Petchelies, Emílio Goeldi, o diretor da instituição, consentiu com a ideia
“amigável de agora nos dispor eventualmente de uma série de duplicatas da sua coleção
etnográfica do Içana e do Uaupés”399.
Koch-Grünberg não registrou a quantidade exata de objetos que tinha em posse até
aquele momento em São Felipe. No entanto, pode-se ter uma ideia do volume da coleção
pelos relatos a respeito das dificuldades encontradas para preparar e empacotar as frágeis
peças. No vilarejo, Dom Germano disponibilizou todos os caixotes e embalagens que
dispunha; porém, não atendiam a totalidade das necessidades de acondicionamento e proteção
do material, sobretudo das cerâmicas, durante o deslocamento fluvial e terrestre até os
museus. Improvisações foram feitas e os indígenas da vila tiveram de “cortar capim e secá-lo
no sol, mas este era um fraco recurso de emergência e não podia substituir a palha de madeira
elástica, mas ao mesmo tempo firme”400. O desabafo do etnólogo parece dar conta da falta de
equipamentos e das suas preocupações com as coleções:
Os que visitam um museu e admiram as coleções nos armários de vidro nem sequer
desconfiam quais são os caminhos pelos quais tantas peças quebradiças devem
percorrer até que cheguem ao seu destino. Com tristeza despede-se um pesquisador
dos objetos que ele ajuntou com amor e acompanhou feliz através dos empecilhos da
viagem e agora deve entrega-los ao seu destino incerto e às mãos inexperientes e
frequentemente rudes. Se, porém a metade das vasilhas chegar quebrada, dizem:
“sim, veneradíssimo Senhor, por que fizeste a embalagem tão descuidada?” A gente
nem pensa ou até se esquece completamente até nisto há uma diferença entre uma
cidade grande, onde tudo o que é necessário pode ser obtido em breve tempo, e a
selva, onde se deve contentar com o pouco que aí se encontra401.
As preocupações do americanista naquele momento não se resumiam em coletar
objetos raros, vistosos ou desejados, mas fazer também com que todas as peças chegassem
aos museus com condições de serem analisadas pelos pesquisadores e expostas aos visitantes.
Empacotar e enviar o material de campo para a metrópole era responsabilidade do coletor.
Todavia, nem sempre o profissional encontrava no campo os recursos para embalar
perfeitamente um artefato, mas era cobrado pelo estado de conservação pelos curadores das
instituições museológicas.
398
PETSCHELIES, 2019, p. 395.
Emílio Goeldi a Theodor Koch-Grünberg, 16.03.1904, VK Mr, A1, K6 - 01K6.Apud PETSCHELIES, Op.
Cit., 2019, p. 395.
400
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 230.
401
Ibid., pp. 230-231.
399
139
Conforme assinala Kury402, “o viajante ideal deveria saber desenhar, embalar
corretamente produtos de história natural, empalhar animais, confeccionar herbários, recolher
sementes, dissecar animais e plantas”. Esse conjunto de tarefas fazia parte dos domínios
necessários para o êxito de uma expedição, assim como a capacidade de estabelecer relações
com agentes locais, haja vista que as trocas simbólicas ou materiais permitiam obter a
matéria-prima das caixas e dos cestos que acondicionariam os objetos coletados.
O americanista, no relato de viagem, chegou a dar conselhos aos pesquisadores acerca
das obrigações de transportarem consigo, da Europa para a América do Sul, o material
necessário às embalagens. Segundo ele, deveriam trazer consigo “três ou quatro caixas
revestidas de zinco por dentro [...]. A caixa central deveria estar cheia, entupida de palha de
madeira. Acrescente-se material para fazer sacos, alguns rolos de corda forte, de barbante e
umas agulhas para costurar sacos”403. Como assegura Antunes404, para muitos viajantes o
aprendizado das habilidades necessárias para o ofício não era inerente, mas apreendido por
meio das experiências cotidianas das viagens. Os comentários feitos pelos viajantes são
testemunhos desse desenvolvimento, do fazer-se naturalista ou etnólogo.
Apesar das dificuldades em obter material no campo para empacotar as peças, a
coleção foi remetida ainda no segundo semestre de 1904 ao Museu Goeldi. Em carta de
agosto do mesmo ano, o intermediário Oscar Dusendschön, cônsul alemão em Manaus,
informou ao diretor da instituição sobre o envio de nove caixas carregadas de material
etnográfico para Belém por meio da companhia germânica Cmook & Pook pelo custo de
59$350 réis405.
A chegada do material no museu paraense foi confirmada por Jacques Huber, então
diretor interino, no seu relatório ao Secretário de Estado da Justiça, Interior e Instrução
Pública referente ao ano de 1904406. No relatório, Huber reportou o recebimento das
“primeiras remessas de uma collecção ethnographica que o Dr. Theodor Koch, do Museu
ethnographico de Berlim, reuniu, a pedido da Directoria, para este Museu durante as suas
viagens aos afluentes do rio Negro”. Apesar de noticiar a chegada dos objetos, o documento
402
KURY, Lorelai. As artes da imitação nas viagens científicas do século XIX. In: VERGARA, Moema de
Rezende; ALMEIDA, Marta de (orgs.). Ciência, História e Historiografia. São Paulo: Via Lettera; Rio de
Janeiro: MAST, 2008, p. 322.
403
KOCH-GRÜNBERG, 2005, p. 231.
404
ANTUNES, Anderson Pereira. Um naturalista e seus colaboradores na Amazônia: a expedição de Henry
Walter Bates ao Brasil (1848-1859). Tese (Doutorado em História das ciências e da saúde – Fiocruz). Casa de
Oswaldo Cruz, 2019, p. 161.
405
Oskar Dusendschön to Emil Goeldi, 18.08.1904, FPMEG, Correspondência passiva, 1904.
406
HUBER, Jacques. Relatorio apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Secretário do Estado da Justiça, Interior e
Insctrução Publica pelo director interino do Museu Goeldi Dr. Jacques Huber relativo ao anno de 1904. Boletim
do Museu Paraense de Historia Natural e Etnographia, Belém, v. 5, fasc. 1 e 2 1, pp.23-42, 1909.
140
não apresentou informações alusivas à quantidade, descrição, procedência geográfica e estado
de conservação, nem o valor pago.
Nos relatórios dos anos posteriores (1905 a 1909) do diretor do Museu Goeldi,
publicados no Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnographia, as remessas de
Koch não foram mencionadas, embora a presença, na coleção da instituição, de artefatos
Makúna (n.º 524 a 526) e Yahúna (n.º 570 a 586), adquiridos durante a passagem do
americanista pelo rio Apaporis em 1905, ateste o envio de objetos em data posterior à do
primeiro envio.
O preço da compra foi revelado por Emílio Goeldi em correspondência oficial ao
secretário de Justiça, Interior e Instrução Pública do Pará em 2 de março de 1906407. No
documento, o diretor do museu – declarando inicialmente que o governador tinha ciência dos
fatos – solicitou o valor de 5:760$000 ou cerca de 8.000 marcos, que seriam destinados à
“aquisição das importantes coleções etnográficas feitas pelo Dr. Theodor Koch, de Berlim,
durante a sua memorável expedição entre os índios dos rios Negro e Uaupés nos anos de 1903
e 1904”.408
O pagamento pela referida coleção ocorreu na forma de parcelas entre dezembro de
1906 e março de 1907, sendo a primeira quantia de 3.000 marcos409. Consultando o Diário
Official do Estado do Pará – veículo de comunicação oficial no qual são publicados decretos,
atos normativos, despesas e orçamentos, como o do Museu Goeldi na época, entre o primeiro
semestre de 1906 e o segundo do ano subsequente, não encontramos informações alusivas à
importância remetida a Koch-Grünberg pela sua coleção. Existem apenas no periódico alguns
informativos das secretarias da Fazenda e da Justiça, Interior e Instrução Pública do Pará,
tratando do envio de quantias, que variavam entre 4:000$000 a 9:760$000, para o custeio do
estabelecimento e o pagamento de eventuais despesas, sem maiores informações sobre como a
verba era aplicada.410
Não é possível, no momento, precisar o total de objetos coletados por Koch-Grünberg
e remetidos ao Museu Goeldi, nem quantos desses chegaram a Belém, após a longa viagem do
noroeste amazônico à capital, em condições de serem acondicionados no acervo da
instituição. O primeiro documento encontrado que detalha a coleção do americanista é o
407
Ofício de Emílio Goeldi ao Secretário da Justiça, Interior e Instrução Pública do Pará. Belém, 2 de março de
1906. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Fundo Museu Paraense Emílio Goeldi
(doravante, FMPEG), Gestão Emílio Goeldi, Livro de cópias de ofícios enviados.
408
Emílio Goeldi se equivocou em relação aos anos da expedição. Na verdade, a expedição tem seu fim em
1905.
409
SANJAD, 2019.
410
Diário Official [do estado do Pará]. Período: de 30 de junho de 1906 à 27 de março de 1907.
141
Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi,411 preparado por Curt Nimuendajú,
chefe interino da Seção de Etnografia da instituição a partir de 1920. Nessa listagem, datada
de 1921, Nimuendajú arrola 497 artefatos de dezenove povos indígenas. No entanto, não
anotou quantas unidades haviam sido extraviadas ou remetidas a outras instituições desde a
chegada, ainda em 1904. No final do mesmo documento, há uma lista assinada por Evalda
Xavier Falcão, datada 1939, que identifica as peças ausentes na recontagem feita naquela
data, em comparação com a primeira lista feita por Nimuendajú. Entre elas, quatro artefatos
produzidos pelos Tukano e coletados por Koch-Grünberg.
Ademais, com base em uma nota escrita por Nimuendajú, datada de 3 de abril de 1921
e anexada no início do Catálogo, é possível saber que uma parte da coleção estava em
exposição permanente nas duas salas da Seção Etnográfica: na primeira, “as tribos dos
afluentes septentrionaes do Amazonas”; na segunda, “as dos afluentes meridionais”. Todos
os artefatos exibidos podiam ser facilmente identificados pelos rótulos explicativos em cada
uma das vitrines que representavam os rios e seus respectivos povos. O restante da coleção,
incluindo o material coletado por Koch-Grünberg, foi guardado em sete caixas, com exceção
das “peças de louça Cunivo, R. Caiarí, Jurúna, Quichua e mais algumas outras peças por
demais volumosas”.
A Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi, elaborada
entre 1939 e 1940, apresenta, com novos números de registro, 495 objetos da coleção de
Koch-Grünberg. Em comparação com o documento feito em 1921, há quatro ausências, como
já foi mencionado, e a adição de dois objetos registrados pela primeira vez – uma panela do
povo Siusí e um par de mangas de máscara dos Kubeo.
No Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia412, elaborado por
Eduardo Galvão na década de 1950, verificamos 491 objetos da coleção Koch Grünberg.
Nota-se que quatro objetos – um Tukano e três Kubeo – são registrados pela primeira vez, não
constando nas listas de 1921 e 1939-40. Além disso, oito objetos catalogados na Relação do
Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi não foram encontrados no livro de
tombo.
411
Em razão do estado deteriorado e frágil do catálogo original de 1921, consultei a cópia da listagem feita em
1939. A cópia está manchada de água e não há a assinatura de Nimuendajú na primeira página e a parte final da
lista foi digitada em máquina de escrever, diferentemente da versão de 1921, na qual o registro dos últimos
objetos foi feito de forma manuscrita. In: BENCHIMOL, 2009.
412
Consultamos uma cópia não datada do Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia
disponível na Reserva Técnica Curt Nimuendajú para a consulta de pesquisadores e funcionários da instituição.
142
Como é possível observar, ao longo dos anos e dos inventários, houve uma
diminuição no número de objetos pertencentes à coleção de Koch-Grünberg de 1905. As
razões para divergência na quantidade nos três catálogos residem na revisão no montante de
artefatos da coleção do MPEG por Nimuedanjú, Evalda Falcão e Galvão e os problemas
relativos à documentação dos acervos.
Os três inventários da coleção, notavelmente, foram idealizados, como enfatizaram
Guerra e Benchimol, num período em que “as normas e padrões sobre documentação
museológica tanto nacionais como internacionais ainda não tinham sido estabelecidos”413,
como são nos dias de hoje. Logo, apresentam diferentes entendimentos do que deve e como
deve ser registrado, entre os três há diferentes números de registros, estrutura dos documentos
e vocabulário de registros de informações utilizadas na base de dados; o que gera,
consequentemente, dentre outras coisas, perdas de informação e dificuldades na identificação
rápida e precisa do objeto. Como já dito, os dois primeiros inventários da coleção foram
produzidos por Nimuendajú e o terceiro elaborado por Eduardo Galvão. No catálogo de 1921,
todos os objetos da coleção da instituição estão listados em ordem crescente do número 1 ao
2.619 e identificados a partir dos seguintes campos, nessa ordem: número de registro, povo
indígena, procedência geográfica, coletor ou coleção e nome do objeto. O segundo de 19391940, de modo diferente do antecedente, está dividido por povo indígena e conta com uma
nova numeração. Em cada seção, relativa a cada povo, os objetos são listados por nome e
enumerados em ordem crescente e constam informações acerca da coleção de origem, do
número no catálogo anterior e o lugar de coleta. Dessa forma, é possível observar a trajetória
dos objetos na documentação, seu aparecimento ou desaparecimento nas listas – assim como
as mudanças nos dados disponíveis acerca do contexto, coletor ou lugar de origem.
No entanto, o Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia da década
de 1950, produzido por Eduardo Galvão, rompe com as numerações anteriores, apresentando
assim novo número de registro – ainda utilizado na coleção. Apesar de também dividido por
povo indígena, como o último elaborado por Nimuendajú, não há referência às numerações
anteriores e nem todos contam com alguma alusão a coleção a qual pertencem. Essas questões
dificultam a identificação, comparação e análise das coleções e dos seus respectivos objetos.
413
GUERRA, Claudia; BENCHIMOL, Alegria. Dois momentos da coleção Aparai no Museu Paraense Emílio
Goeldi: Curt Nimuendajú em 1915 e Otto Schulz-Kampfhenkel em 1935-37. Museologia e Patrimônio,
Brasília,
v.
10,
n.
2,
2017,
p.
111.
Disponível
em:
http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/ view/600/588. Acesso em: 12 de jul.
2021.
143
No presente trabalho, para investigar o catálogo de 1955, sem poder identificar e
acompanhar a trajetória dos objetos a partir das referências às listas anteriores, tivemos de
recorrer às denominações das peças e aos povos indígenas produtores. Por conta do grande
volume de peças e a diversidade de povos indígenas produtores da coleção Koch-Grünberg,
inclusive alguns de procedência duvidosa, não foi possível distinguir a permanência de todos
no acervo do Museu Goeldi.
A título de exemplo, citamos o caso do artefato da coleção Koch-Grünberg
identificado nos respectivos inventários elaborados por Nimuendajú com as numerações 2023
e 732. Denominado primeiramente como “cinturão de embira para homem”, e corrigido na
listagem de 1939-1940 como “envira”, ele é descrito como de procedência duvidosa quanto a
comunidade produtora e tem como possível origem geográfica o rio Apaporis. No entanto, ao
consultar o Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia na seção relativa aos
objetos de procedência duvidosa do rio Apaporis da coleção do americanista não encontramos
nenhuma peça assinalada com nome análogo. Logo, esse artefato foi computado na presente
pesquisa no rol dos não identificados com outros onze.
O paradeiro do citado artefato é incerto por falta de informações na própria
documentação museológica. Surgem então outras possibilidades além do extravio da peça, ou
seja, que não signifiquem apenas que ele se perdeu. É possível que tenha ocorrido uma
mudança na denominação da peça, ou reagrupamento com outro conjunto, ou mistura com
outras coleções. Nessa perspectiva, o cinturão de embira ou envira para homem, de número
732 na Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi, pode ter
experimentado uma transformação no seu nome para “Peça de vestimenta de fibra” (n.º 815
e 816), nome que a peça 731 recebe tanto nos inventários de 1939-1940 quanto no de 1955,
ou ter sido agrupado em outra coleção. Contudo, não podemos confirmar essa mudança com
apenas com as fontes consultadas por isso optamos por listar como não identificados.
Dessa forma, essa descontinuidade na documentação, as mudanças de nome,
numeração e estrutura dos catálogos podem ser as causas do suposto desaparecimento e
surgimento de novos objetos. Pares de objetos, com registros individuais, podem ter passado
por um reagrupamento e passados a ser numerados com um só, ou o contrário. Como
aconteceu com a peça denominada “par de Mangas de máscaras” (n.º 493) que no primeiro
catálogo de Nimuendajú não estava separada da “Máscara de Dança (n.º419) e apenas ganhou
um número de identificação próprio na lista posterior.
Além do inventário da coleção, os livros de tombo guardam informações preenchidas
de forma manuscrita pelos curadores e técnicos da instituição a respeito do estado de
144
conservação, dos empréstimos para exposições e outros museus, dos desaparecimentos e da
recuperação de artefatos. Por conta desses dados, conseguimos identificar que, dos 491
objetos registrados por Galvão, 29 foram extraviados, não foram encontrados em inventários
posteriores ou foram reunidos a outros objetos, sob nova numeração.
Somando os dados apresentados nos três catálogos mencionados, chegamos ao total de
503 objetos registrados ao longo do tempo na coleção de Theodor Koch-Grünberg preservada
no Museu Goeldi. Deste montante, 41 foram extraviados ou reagrupados. Em uma nova
contagem, que levou em consideração o cruzamento de dados existentes nos três catálogos,
chegamos a um número de 462 artefatos da citada coleção, como detalha a Tabela 3.
Tabela 3. A coleção de Theodor Koch-Grünberg (1905) do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Povo
Localização
Quantidade
indígena
de Quantidade de Objetos
objetos
objetos
não
encontrados/
registrados entre atualmente
não
1921 a 1955?414
identificados
415
Tukano
Rio Tiquié
100
91
9
Siusí
Rio Aiarí – Aldeia
Cururuquara; Rio Aiarí;
Porto para o Caiarí;
Aldeia
Tucumá-rapecuma; Cax. Araripira.
67
62
5
Kubeo
Rio
Caiarí;
Caduiary.
Rio
116
110
6
Korokoró
Rio
Cuduiarí
Surubiroca416;
Içana.
–
Rio
10
10
0
Katapolitaní
Rio
Içana;
417
Tunuhy
Rio
19
19
0
414
Os objetos aqui destacados foram registrados nas três documentações museológicas.
Os objetos destacados aqui foram artefatos que não foram identificados no inventário de 1955 ou estão
assinalados como ausentes nas verificações realizadas entre 1984 e 2011 pelos técnicos e curadores da Coleção
Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi. As peças podem ter sido extraviadas, descartadas, emprestadas e
não devolvidas, ou ainda, podem ter sido reagrupadas ou etiquetadas como pertencentes a outras coleções.
416
No catálogo de 1939-40 e No livro de Tombo aparece “Rio Içana”.
417
No catálogo de 1939-40 e No livro de Tombo aparece “Rio Içana”.
415
145
Tariana
Rio Caiarí – Castanha
Rapecuma
5
4
1
Huhúteni
Rio Aiarí
2
2
0
Ipéka
Rio Içana; C. Iuruparí.
2
2
0
Desana
Rio Tiquié
8
8
0
Uanána
Rio Caiarí
20
18
2
Tuyuka
Rio Tiquié
6
6
0
Kawá
Rio Aiarí
11
9
2
Bará
Rio Tiquié
4
4
0
Bahuna
Rio Cuduiary
1
1
0
Yahúna
Rio Apaporis
17
17
0
Makúna
Rio Apaporis
3
3
0
Yabahána
Rio Apaporis
1
1
0
Yukúna
Rio Apaporis
2
2
0
Kueretú
Rio Iapurá
3
3
0
Procedência
duvidosa
Total
Rio Querarí; Rio Caiarí;
Rio Caduiary
106
90
16418
503
462
41
Fontes: Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi (1921); Relação do Material Etnográfico do
Museu Paraense Emílio Goeldi (1939-1940); Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia
(1955?).
418
Além dos 10 artefatos extraviados, não conseguimos identificar seis objetos de procedência duvida que
aparecem nas listas de 1921 e 1939-1940 no Registro do Material Etnográfico da Divisão de Antropologia.
146
Para além do deslocamento físico, os objetos, ao serem deslocados do campo para o
museu, passam por um processo de ressignificação que lhes atribui novas funções e sentidos –
como evocar realidades ausentes, ser repositório de informações e testemunho de um povo ou
época419. A partir do deslocamento do contexto primário para o secundário, agências podem
ser ocultadas, informações podem ser perdidas ou misturadas – gerando, assim, confusões no
inventário e na classificação – e novos valores são atribuídos às peças. A coleção Theodor
Koch-Grünberg não foi isenta desse processo: a identificação (etnônimos e procedência
geográfica) dos povos criadores dos objetos sofreu transformação na documentação
museológica da Reserva Técnica Curt Nimuendajú, que não preservou os dados relacionados
à participação das redes colaborativas indígenas e não-indígenas que atuaram na formação da
coleção.
No tocante ao primeiro ponto, destacamos como exemplo a mudança na identificação
da procedência geográfica das máscaras Kubeo e Korokoró-Tapuya, ocorrida nos três
mencionados catálogos. No de 1921, o nome “Surubiróca”, no rio Caduiarý, aparece algumas
vezes como local de origem de vinte e sete máscaras dos dois referidos povos. Sem
explicação ou menção a alguma retificação, o termo desapareceu no documento de 19391940. Em seu lugar, os rios Caiarí e Içana foram registrados como o lugar de origem dos
artefatos. O registro de 1955 manteve os dados do documento anterior.
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA),420 os Kubeo habitam atualmente o rio
Uaupés, o maior tributário do rio Negro e antes chamado de Caiari. Pedroso assinala que o
termo “Kubeo” dá conta de uma “vasta nuvem de grupos e comunidades distribuídas pelos
rios Uaupés, Querari e Cuduiarí”, sem alusão aos Korokoró-Tapuya ou a migrações de
subgrupos Kubeo ao rio Içana. Nos limites da presente pesquisa histórica, apontamos aqui
alguns desencontros nas informações acerca da procedência geográfica atribuída aos objetos
dos dois povos indígenas na documentação museológica da Reserva Técnica Curt
Nimuendajú e nas fontes documentais e bibliográficas citadas anteriormente. Para atestar a
origem dos objetos no Caduaiarý, Uaupés ou Içana, se levanta a necessidade de futuras
investigações multidisciplinares que envolvam o campo, os arquivos, a coleção e os
descendentes das comunidades produtoras.
419
LOUREIRO, Maria Lucia de Niemeyer Matheus; LOUREIRO, José Mauro Matheus. Documento e
musealização: entretecendo conceitos. MIDAS – Museus e estudos interdisciplinares, Évora, v. 1, n. 1, p. 111, 2013 e musealização: entretecendo conceitos. MIDAS. Museus e estudos interdisciplinares, n. 1, 2013.
420
PEDROSO, Diego Rosa. O que faz um nome: etnografia dos Kubeo do alto Uaupés (AM). 2019. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-graduação em Antropologia social, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2019.
147
Acerca do segundo ponto, recorremos primeiramente à fala de Kieffer-Døssing a
respeito da documentação museológica de uma coleção etnográfica:
Nos registros que museus produzem sobre suas coleções, os processos de aquisição
– e, deste modo, as agências indígenas envolvidas – são com frequência ocultados.
Muitos registros não oferecem impressões das negociações de valores, das seleções
deliberadas e das limitações quanto ao tipo de objeto coletado em campo, embora
tudo isso também afete a maneira como uma coleção é construída. Ademais, sem
este material, resta impossível investigar a transformação dos objetos coletados em
coleções museológicas.
Quando analisamos os três catálogos históricos da Reserva Técnica Curt Nimuendajú,
não encontramos o registro da participação das redes colaborativas, evidentemente porque
essa é uma exigência contemporânea. O que encontramos nesses catálogos são inventários das
peças do acervo, nos quais estão registrados o nome da coleção, a data de entrada no museu, o
povo produtor e a procedência geográfica. É necessário, então, que ao registrar novas
coleções, os catálogos dos museus – além de catalogar o número de registro, data e tipo da
aquisição, estado de conservação e descrição intrínseca – contemplem também na descrição
extrínseca o processo histórico envolto na formação das coleções, isto é, a atuação das
comunidades indígenas produtoras nas trocas interculturais, os contextos sociais e políticos
que concorreram para a musealização e a participação dos diversos atores que direta ou
indiretamente participaram das negociações e aquisição do material.
No presente trabalho buscou-se pensar a musealização da coleção Theodor KochGrünberg para além do protagonismo do coletor e do Museu Goeldi, investigando os sujeitos,
os contextos e as redes envolvidas nos processos de montagem e salvaguarda da citada
coleção. Essas redes incluíam os funcionários dos museus, as autoridades públicas,
diplomatas, as lideranças indígenas, os seringalistas e caucheiros, os carregadores, remadores
e proprietários de embarcações, todos fundamentais para que os objetos fossem reunidos,
embalados e transportados para Belém e Berlim. No próximo capítulo, veremos como se deu
a musealização da coleção Frei Gil de Vilanova no contexto missionário do final do século
XIX.
148
Capítulo 3 – A Coleção Frei Gil de Vilanova: colecionismo e catequese no
início do século XX
Neste último capítulo, trataremos da musealização da coleção de Frei Gil de Vilanova,
em 1902. Diferentemente dos casos investigados anteriormente, o coletor foi um frade
dominicano atuando na catequização das populações indígenas na fronteira entre Goiás e o
Pará. Por conta disso, estudaremos nesta seção a interação da esfera religiosa, da política
indigenista do século XIX e do colecionismo etnográfico para a produção da coleção.
O capítulo será dividido em quatro tópicos. O primeiro, “As missões religiosas no
Araguaia do século XIX”, aborda o contexto de instalação de missões religiosas no rio
Araguaia, as políticas indigenistas dos presidentes de província e a presença da Ordem dos
Pregadores na região durante o século XIX. No segundo, intitulado “Frei Gil de Vilanova e a
missão de Conceição do Araguaia”, apresento brevemente a trajetória de Frei Gil de Vilanova
e os seus projetos de catequese indígena em Goiás e, depois, no Pará, com a fundação do
povoado e missão religiosa de Conceição do Araguaia. O terceiro subitem, “Objetos indígenas
para a manutenção da fé”, investiga a formação da coleção de Frei Gil de Vilanova e a
interação entre o contexto religioso, político e social, bem como a agência indígena na seleção
e rejeição dos objetos que a compõem. Por fim, o quarto e último tópico, “Aquisição da
coleção Frei Gil de Vilanova (1902) pelo Museu Goeldi”, trata do processo de aquisição da
coleção pelo Museu Goeldi em 1902 e da catalogação no acervo da instituição.
3.1 As missões religiosas no rio Araguaia do século XIX
Durante os séculos XVII e XVIII, algumas expedições portuguesas adentraram o rio
Araguaia, principalmente nos setecentos, quando foram encontrados depósitos de ouro nas
nascentes.421 Nesse período, a capitania de Goiás vivia o auge da mineração. A coroa
portuguesa, com o intuito de evitar o contrabando aurífero, desautorizou a circulação pelos
rios Araguaia e Tocantins. A navegação só voltaria a ser permitida após o declínio da
economia mineradora no final do século XVIII.
Nessa ocasião, a capitania de Goiás viveu uma profunda crise econômica e social, que
se estenderia até os oitocentos. Logo, o governo local passou a enxergar como soluções para
as mazelas enfrentadas o incentivo à navegação, ao comércio e à ocupação dos principais rios.
De acordo com Batista, o recomeço da circulação fluvial deu origem a um novo cenário
421
HEMMING, John. Fronteira Amazônica: a derrota dos Índios Brasileiros; tradução de Antonio de Padua
Danesi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
149
econômico, “porém as cicatrizes deixadas por mais de quatro décadas de bloqueio à
navegação e o descaso com a ocupação das margens já eram notáveis, evidenciando as
dificuldades que viriam ao retomar esse processo”422.
No princípio do século XIX, o translado Araguaia-Belém enfrentava dificuldades
relativas à falta de apoio para a navegação, em razão da baixa ocupação das margens por nãoindígenas – além dos ataques de indígenas às embarcações. A solução mais viável para o
governo central foi a fundação, em 1812, de um presídio militar ao norte da Ilha do Bananal,
batizado de Santa Maria.
A prática de criação de presídios persistiu por mais algumas décadas, não só no
Araguaia, mas também em outros rios de Goiás, como o Tocantins, onde foram criados os
presídios de Santo Antônio, Santa Cruz e Santa Bárbara. De acordo com Cunha, esses
presídios consistiam em “praças-fortes com destacamentos militares” e pretendiam se
converter em futuros núcleos de povoação, meios de combater os indígenas insurgentes e
aliciar outros em aldeamentos, tal “como uma reserva de remeiros, de agricultores e, mais
tarde, de fornecedores de lenha para os vapores”423.
Mesmo após a abertura dos portos às nações amigas, a região ainda era descrita por
viajantes e políticos como um “vazio demográfico”, ocupada majoritariamente por povos
indígenas e animais silvestres. O político e escritor Couto de Magalhães chegou a lamentar
dramaticamente a falta de cidades e a baixa ocupação da civilização branca nas margens dos
rios de Goiás: “quando é que se verá o homem arrancar da posse das feras e das tribos
selvagens dos índios tanta riqueza que aí jaz sepultada!”424.
Ao longo do século XIX, a ocupação das margens e o incentivo à navegação do
Araguaia suscitaram muitos debates e propostas nos relatórios dos presidentes de província,
sobretudo os de Goiás. Para as autoridades provinciais, os principais entraves ao
desenvolvimento da região consistiam na dificuldade de encontrar uma boa área elevada nas
margens, que ficasse livre de inundações no tempo das grandes cheias do rio, na falta de água
potável e de madeira para construção, e nos ataques de nativos a embarcações e
povoamentos425.
422
BATISTA, Alcides. Entre corredeiras, remansos e meandros: os desafios na conquista do Araguaia. 2015.
Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente) – Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2015, p. 38.
423
CUNHA, Manuela Carneiro. Política indigenista no século XIX. In: CUNHA, M. C. (org.) História dos
índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 138.
424
MAGALHÃES, José Couto de; SOBRINHO, Couto de Magalhães. Viagem ao Araguaya. São Paulo:
Espíndola – Siqueira & Companhia, 1902, p.80.
425
SANTOS, Carcius Azevedo dos. Araguaia-natureza, Araguaia-projeto: paisagens socioambientais em
Couto de Magalhães, século XIX. 2007. Dissertação (Mestrado em História), Universidade de Brasília, Brasília –
DF, 2007.
150
Esse último ponto, a questão indígena, era um dos assuntos mais debatidos pelas
instituições imperiais, às quais se demandava a elaboração de instrumentos legais para
catequizar, civilizar e inserir os indígenas nas dinâmicas de trabalho da sociedade nacional. O
discurso de alguns presidentes de província defendiam a dominação dos povos indígenas
insubmissos aos ditames da civilização, seja pela guerra justa ou pela catequese e educação426.
Próximo à metade do século XIX, a catequese passou a ser considerada o meio mais eficaz
para transformar os indígenas em trabalhadores e desenvolver as províncias – o que não
diminuiria os conflitos envolvendo colonos e indígenas.
De modo geral, como categorizou Cunha427, no século XIX, os índios eram divididos
em “bravos” e “domésticos ou mansos, terminologia que não deixa dúvidas quanto à ideia
subjacente de animalidade e de errância”. Os índios pacificados ou domesticados eram
sedentarizados em aldeamentos, sob o auspício das leis indigenistas. Quanto ao termo “índios
bravos”, foi empregado para designar os grupos que agiam contra as autoridades regionais e o
comércio, e que resistiam ao avanço das fronteiras do Império, como os “grupos dos afluentes
do rio Amazonas, do Araguaia que se quer agora abrir à navegação, do Madeira, do Purus, do
Jauaperi, e de outros tantos rios”428.
O governo imperial, já em 1843, iniciaria o processo de retomada da catequese a partir
do decreto n.º 285, de 21 de junho, que autorizou a entrada de missionários capuchinhos nas
províncias. Em 24 de julho de 1845, uma nova legislação entraria em vigor pelo Decreto
Imperial n.º 426, o qual passou a reger o trabalho dos missionários no país, o Regulamento
acerca das Missões de catequese e civilização dos Índios429. Esse documento prevaleceu até o
advento da República, em 1889, e foi a legislação indigenista central do Império. De acordo
com Sampaio:
A nova legislação criou uma estrutura de aldeamentos indígenas, distribuídos por
todo o território, sob a gestão de um Diretor Geral de Índios, nomeado pelo
426
CHAVES, Carlos Eduardo. Nas trilhas Irã Ãmrãnh: sobre história e cultura material Mebêngôkre. 2012.
176 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal do Pará, Belém. 2012.
427
CUNHA, 1992, p. 136.
428
Ibid.
429
Para alguns autores, como Manuela Carneiro da Cunha, o Regulamento acerca das Missões de catequese e
civilização dos Índios colocou fim a um período de “vácuo legal”, iniciado com a extinção do Diretório dos
índios, em razão de não ter havido uma legislação geral neste período para regulares ações e políticas
indigenistas no Brasil. Todavia, como aponta Sampaio, apesar de não apresentar uma lei geral para todo o
Império brasileiro, entre 1798 a 1845 não houve num período de vazio legislativo. Pelo contrário, o citado
intervalo consistiu numa fase marcada por uma abundância de normas, leis, decretos e outros documentos
normativos de abrangência limitada aos espaços das províncias, mais adequadas às distintas realidades locais. In:
SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil Imperial. In: GRINBERG, K. & SALLES, R.(Org.). O
Brasil Imperial (1808-1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
151
Imperador para cada província. Cada aldeamento seria dirigido por um Diretor de
Aldeia, indicado pelo Diretor Geral, além de um pequeno corpo de funcionários.
Cabia aos missionários a tarefa relativa à catequese e à educação dos índios,
enquanto que os outros funcionários imperiais se encarregariam da vida cotidiana,
incentivando o cultivo de alimentos, monitorando os contratos de trabalho,
mantendo a tranquilidade e polícia dos aldeamentos, regulando o acesso de
comerciantes, contactando índios ainda não-aldeados e controlando as terras
indígenas, dentre muitas outras atividades prevista430.
No Regulamento, há uma intricada associação entre civilização e religião. Ele
estipulava que o trabalho de atração, catequese e educação dos indígenas era papel dos
religiosos, enquanto aos laicos e representantes estatais cabia a responsabilidade da
administração – apesar de muitas vezes, na falta de pessoal, o missionário atuar também como
diretor do aldeamento431. Como apontou Paraíso432, a mencionada legislação era “uma clara
manifestação da retomada do controle da administração indígena pelo Governo central e da
implantação de um projeto estatal como forma de solucionar os conflitos entre índios e
colonos e entre a Igreja”.
Entre 1845 e o início do século XX, o Estado brasileiro compartilhou os deveres da
questão indígena com as ordens religiosas. Segundo Amoroso, nesse período, “o indigenismo
brasileiro viveu uma fase de total identificação com a missão católica”433. A religião estava
associada à civilização e ao trabalho. O missionário deveria não só converter o indígena, mas
apresentá-lo aos preceitos da vida social e aos instrumentos da civilização. Por intermédio da
educação, o indígena deveria ser convertido não só em fiel católico, mas também em
trabalhador. Tanto que no texto da lei havia uma recomendação para que fossem construídas
oficinas de arte e para que fossem incentivados o trabalho agrícola e o treinamento militar434.
Henrique afirma que a “noção de trabalho”, nos discursos e nas práticas a favor dos
aldeamentos e da catequese, “estava associada à ordem social, à manutenção das estruturas de
poder”435. O trabalho, nessa perspectiva, submeteria os homens aos ditames das leis e da
civilidade, evitando revoltas, formaria um corpo “saudável e disciplinado”, livrando os
indígenas da ociosidade infrutífera. Num contexto de pós-cabanagem e ataques indígenas a
430
SAMPAIO, 2009, p.2.
CUNHA, 1992.
432
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Formando trabalhadores: missões e missionamentos capuchinhos na
Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo (1845-1890). In: NEGRO, Antônio L.; SOUZA, Evergton S.; BELLINI,
Lígia (Ed.). Tecendo histórias; espaço, política e identidade. SciELO-EDUFBA, 2009, p. 25.
433
AMOROSO, Marta. Mudança de hábito: Catequese e educação para índios nos aldeamentos
capuchinhos. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.13, n.37, p.101-114, 1998.
434
Ibid.
435
HENRIQUE, Márcio Couto. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia no século XIX. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2018, p. 81.
431
152
aldeamentos e fazendas, era fundamental algum mecanismo para doutrinar a população do
sertão brasileiro.
Em Goiás, quase um ano após a lei entrar em vigor, o governador Joaquim Ignacio
Ramalho reclamou acerca das “incursões dos Indigenas, especialmente do Canoeiro contra os
pacíficos habitantes dela [a província]”436. Como solução paliativa, ele tentou reunir
agrupamentos militares nas regiões onde viviam esses indígenas com o intuito de impedir
novas hostilidades e “[...]procurar pelos meios brandos e suasivos convence-los das vantagens
da vida social e ensinar-lhes os princípios saudáveis da nossa Santa Religião, para que sejao
hum dia uteis a si e á sociedade”. Ainda no relatório, Ramalho atribui menos responsabilidade
pelos ataques aos possíveis traços de agressividade indígena, ou outros lugares-comuns, do
que “aos methodos improfícuos com os quaes se tem pertendido domestica-los, e longe de se
ter conseguido interessantes fins, tem resultado ficarem inimigos irreconciliáveis da classe
civilisada”437. A fala era uma crítica evidente às expedições punitivas empregadas pelos
colonos nas aldeias indígenas, que geravam grandes massacres e novas vinganças. Nessa
perspectiva, a melhor solução residiria no atrelamento das noções de trabalho, religião e
civilização, concretizadas no sistema de aldeamento tal como proposto no Decreto n.º 426,
mencionado nominalmente pelo governante.
Ramalho era favorável a um sistema de aldeamento que fundasse aldeias onde os
indígenas residissem, e não em novas localidades – como era executado no passado colonial.
O método antigo de “descimento” e aldeamento foi avaliado como ineficaz e o sugerido foi
tido como superior para que os indígenas adquirissem novos hábitos e “para que gradual, e
insensivelmente [sic] adquirao necessidades sociaes”438. O projeto político do governador
goiano sucedeu à fundação de três aldeias no Araguaia, ainda em 1846, contando com o
serviço dos capuchinhos italianos recém-chegados ao Brasil. Ao longo das décadas seguintes,
alguns missionários capuchinhos atuaram entre os povos da região. Entre eles estavam Frei
Segismundo de Taggia, entre os Karajá e Xavante; Frei Rafael de Taggia, entre os Krahô em
Pedro Afonso; Frei Antôno de Ganges, entre os Xerente em Piabanha; Frei Savino de Rimini,
entre os Karajá-Xambioá; e Frei Francisco do Monte São Vítor, entre os Apinajé, em Boa
Vista439.
436
RAMALHO, Joaquim Ignácio. Relatório que à Assembleia Legislativa de Goyaz apresentou na sessão
ordinária de 1846 o exm. Presidente da mesma província doutor Joaquim Ignacio Ramalho. Goiás:
Tipografia Provincial, 1846, p.7.
437
RAMALHO, 1846, p. 14.
438
Ibid, p.15.
439
GIRALDIN, Odair. Catequese e civilização: os capuchinhos “entre” os “selvagens” do Araguaia e
Tocantins. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, v. 18, p. 27-42, 2002.
153
Amoroso assinala as três ideias principais que estavam sempre presentes na atividade
de catequese dos Capuchinhos:
a) a premissa de que os índios não detinham capacidade intelectual para o
aprendizado de valores exteriores a suas culturas originais; (b) a constatação de que
os índios eram irredutíveis, não mudariam nunca, mesmo vivendo a situação de
aldeamento e; (c) a avaliação de que o estágio de selvageria em que se encontravam
não permitia o aprendizado, somente a imitação. A resposta dos frades diante do
diagnóstico da "incapacidade mental" dos índios foi a construção de uma "pedagogia
da imitação e do exemplo edificante" voltada para as populações indígenas aldeadas.
Os índios não raciocinavam, mas conseguiam imitar comportamentos desejáveis440.
Ao avaliar os indígenas como portadores de capacidades infantis, os capuchinhos
acreditavam que só através da convivência com não-indígenas os nativos assimilariam
positivamente os preceitos da religião católica e da civilização; abandonando, dessa forma,
“seus maus costumes”. Para tanto, os indígenas conviveriam nos aldeamentos com outros
católicos e seriam influenciados a largar seus velhos hábitos e aprender a trabalhar. Todavia, o
método da Ordem dos Frades Menores, baseado na presença de “civilizados” e na
convivência forçada com outras etnias, não solucionaria os problemas enfrentados, mas sim
mostraria novas adversidades: maior vulnerabilidade dos índios ao contágio de epidemias e
maior incidência de guerras intertribais.
O problema da pequena população não-indígena nas margens do rio Araguaia, causado
pelos sucessivos confrontos, era uma questão importante nos planos de governo. Durante as
três décadas que se seguiram, as tentativas de catequizar e de civilizar os indígenas
prosseguiram no Araguaia e afluentes, assim como prosseguiu a resistência indígena a essa
política e também os conflitos com colonos. De acordo com Hemming, gradualmente, o
trabalho dos capuchinhos passou a ser questionado pela inadequação ao trato com os povos da
fronteira e pela relutância “em viver no mato, mostrando-se o mais das vezes teimosos e
arrogantes para com as tribos que tentavam converter”441. Além disso, os próprios
missionários desencadearam ou foram alvos de conflitos fundiários e interétnicos442.
Conforme assinalou Henrique443, nas vésperas da República, “período de forte
influência do Positivismo e do Cientificismo, poucos defendiam a atividade catequética como
meio de civilizar os índios”, o que acabaria por desencorajar a criação de novas aldeias.
Apenas duas foram criadas no período: São Francisco de Taraquá, dos índios Tariana e
Tukano, em 1880; e a missão Tiquié, de 1884, dos índios Tukano. No entanto, a catequese
440
AMOROSO, 1998, p.104.
HEMMING, 2009, p. 488.
442
Em 1873, ocorreu um conflito envolvendo o missionário capuchinho Savino de Rimini e índios Xambioá, que
resultou num massacre desse povo. Para saber mais, ver: GIRALDIN, 2002; HEMMING, 2009.
443
HENRIQUE, 2018, p. 91.
441
154
como meio de pacificação dos indígenas não havia sido totalmente apagada dos ideários
culturais vigentes, como mostra o seguinte apelo do jornal O Publicador Goyano em 1886, ao
comentar a respeito da situação do município de Jataí, que sofria com rotineiros ataques de
indígenas às fazendas:
Convém que o governo mande fundar neste município, nas margens do Araguaya,
uma colônia ou aldeamento, dirigido por missionário, e garantido por força militar, a
fim de promover à catechese e evitar-se as correrias do indios, que tanto males tem
causado em toda esta zona da província. [...] Cada dia se torna mais necessária uma
providencia qualquer em referencia aos indios, que constantemente cometem os
mais horrorosos assassinatos com o fim de saquear as fazendas444.
Os conflitos envolvendo colonos e indígenas perduraram mesmo depois da chegada
dos religiosos. Contudo, para as autoridades e para os jornais, a catequese, aliada à força
militar, ainda parecia ser a maneira mais razoável de solucionar essa questão. As tensões
continuaram em razão das disputas territoriais que os indígenas passaram a sofrer com a
inserção da navegação a vapor nos rios amazônicos, do aumento da exploração da borracha e
de outros produtos da floresta e da introdução da pecuária nas margens dos rios.
No decorrer do século XIX na região, os conflitos entre colonos e índios acirraram-se,
sobretudo envolvendo o povo Mebêngokre-Kayapó445, pois, como pontua Hemming, “a
fronteira brasileira avançou até chocar-se com os caiapós do norte”446. Como exemplo, em
1886, os habitantes do rio Claro, um dos afluentes do Araguaia, organizaram uma ação
armada em grupo para vingar-se dos constantes ataques dos Kayapó, que comumente
resultavam em mortes. Os indígenas esvaziaram três de suas aldeias em fuga, deixando para
trás apenas crianças, idosos e doentes incapazes de acompanhar a debandada. O resultado da
excursão dos colonos foi o morticínio terrível dos abandonados – com exceção de uma moça
lactante e de seus dois filhos, que conseguiram fugir e narrar para seu povo “a terrível
execução que acabara de testemunhar, exortando os companheiros à vingança”447 – como
efetivamente ocorreu nos anos subsequentes.
444
O Publicador Goyano, Goiás, 2 de outubro de 1886, edição 84, p.2. Acervo da Fundação da Biblioteca
Nacional –Rio de Janeiro- Brasil.
445
No presente trabalho, escolhemos utilizar Mebêngôkre -Kayapó, iniciando com a autodenominação e o nome
atribuído em seguida, seguindo o mesmo nome utilizado por Turner. No entanto, ao longo das diversas fontes
históricas e bibliografia encontramos diversas grafias e nomes: Caiapo, Cayapo, Pau D’arco, etc. Quando
necessário, empregaremos a autodenominação dos grandes grupos que compõe o citado povo, como os Irã
Ãmrãnh, povo autor da coleção estudada no presente capítulo, seguindo a grafia apontada por Chaves (2012).
Para a História desse povo e de sua cultura, ver em: TURNER, Terence. Os Mebêngôkre Kayapó: história e
mudança social, de comunidades autônomas para a coexistência interétnica. In: História dos Índios do Brasil.
São Paulo: EDUSP, 1992; CHAVES, 2012.
446
HEMMMING, 2009, p. 491.
447
GALLAIS, Estevão. O Apóstolo do Araguaia: Frei Gil missionário dominicano. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1942, p. 57.
155
Os conflitos entre colonos e o povo Mebêngokre-Kayapó se estendiam por toda a
região do Araguaia e afluentes, o que aumentava as demandas às autoridades provinciais e
religiosas por catequização e civilização dos indígenas. Nesse contexto, o bispo de Goiás, em
1888, recorreu ao missionário dominicano Frei Gil de Vilanova, recém-chegado ao país, para
aldear e catequizar o aludido povo, o que concretamente executou nas margens do Araguaia
na década seguinte.
A Ordem dos Frades Pregadores (OP448), mais conhecida pelo nome de ordem
dominicana, foi criada pelo clérigo Domingos de Gusmão em 1216, na França.
Diferentemente da realidade da América espanhola e de parte do continente africano, a
instituição não teve presença tão notável e estruturada em terras brasileiras durante o período
colonial. Foi apenas na segunda metade do século XIX, durante o reinado de Dom Pedro II,
que ocorreu a chegada de frades dominicanos, com uma ação sistemática e a fundação de
casas conventuais e missões religiosas449. A chegada dos dominicanos estava atrelada ao
incentivo da Igreja católica para a expansão da fé para além do território europeu, à atração de
religiosos para trabalhar no Brasil e à crise interna vivenciada pela ordem, que viu diminuir a
quantidade de membros e sua influência na Europa. Basta lembrar que, em 1880, a ordem foi
expulsa da França pelo governo e transferida para Salamanca, na Espanha450.
A primeira leva de missionários chegou ao país em 1878, após a autorização do
governo brasileiro. Segundo Santos, “as leis do Brasil imperial, além de outros obstáculos,
vedavam expressamente a entrada de religiosos estrangeiros”451. Conforme o mesmo autor, o
motivo dos embargos para a vinda da ordem era a influência do liberalismo na política
imperial, tal como na França, que tinha certa ojeriza aos dominicanos por carregarem a fama
de inquisidores nos meios liberais.
Apesar dos obstáculos, os freis Damião Segnerin e Benedito Sans desembarcaram no
Rio de Janeiro no começo de 1878 “em busca”, de acordo com Gallais452, “de um campo de
ação apostólica a explorar”. Essa primeira experiência não contemplou os objetivos da ordem,
pois os dois frades não conseguiram ultrapassar as negociações com o bispo diocesano e
iniciar a atividade missionária. Além disso, os dois freis sofreram com os sintomas da febre
448
Em latim é denominada Ordo Prædicatorum, por conta disso, decidiu-se utilizar da sigla OP.
SANTOS, Edivaldo Antonio dos. Os dominicanos em Goiás e Tocantins (1881-1930): fundação e
consolidação da missão dominicana no Brasil. Dissertação (Mestrado em História das Sociedades Agrárias),
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1996.
450
Ibid.
451
Ibid., p. 25.
452
GALLAIS, 1942, p. 57.
449
156
amarela, mas apenas Segnerin teve um fim trágico, vindo a falecer em março de 1878 na
capital do Império. Sans conseguiu retornar para a França.
No entanto, na narrativa desenvolvida por Gallais453, a breve estadia no Rio de Janeiro,
em especial a convivência com os padres lazaristas no Seminário do Rio Comprido, na capital
imperial, não foi totalmente inútil para os planos da ordem. Entre os professores do referido
seminário, encontrava-se o padre Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão, de origem nobre na
Bahia e afilhado do Imperador Pedro II, que seria peça fundamental para a chegada e
permanência dos dominicanos no país.
Alguns anos depois, no dia 7 de janeiro de 1881, Dom Cláudio foi nomeado bispo da
diocese de Goiás454. De acordo com Gallais, sob seu domínio estava uma diocese de grandes
extensões e parcos recursos, o que o fez buscar “auxiliares com que pudesse contar”455. Logo,
convidou os dominicanos, ordem que conheceu por meio dos missionários hospedados anos
antes entre os lazaristas do Rio Comprido, para se fixarem na diocese e se incumbirem da
evangelização, “sobretudo por meio das missões paroquiais a serem pregadas periodicamente,
e, um pouco mais tarde, com a fundação de centros de catequese para os índios”. No mesmo
ano, chegam três missionários ao país – os sacerdotes Raimundo Madré e Lázaro Mélizam e o
frei Gabriel Mole –, que se instalaram na cidade de Uberaba, Minas Gerais. Na época, a
diocese de Goiás ultrapassava os limites territoriais do estado, incluindo em sua jurisdição
eclesiástica o chamado Triângulo Mineiro, razão pela qual a cidade mineira foi escolhida
como primeira sede dos dominicanos, considerada um ponto estratégico entre o Brasil central
e o Rio de Janeiro.
A Ordem dos Pregadores durante o final do século XIX montou uma rede de
conventos, missões e igrejas no sertão. Em 1883, adentrou a província de Goiás e fundou um
convento na capital e sede da diocese. De Goiás, prosseguiu ao centro-norte e fundou, em
1886, um convento em Porto Nacional. Avançando mais algumas dezenas de quilômetros ao
norte, em 1896, os dominicanos fundaram o Centro Catequético indígena liderado por Frei
Gil de Vilanova, que viria a se transformar na cidade de Conceição do Araguaia. Em 1905, foi
fundada a Casa de Formosa, que visava ligar Goiás a Porto Nacional456. A ordem se difundiu
pelo centro-oeste brasileiro e sul do Pará, espalhando, assim, missões no sertão do país.
453
Ibid.
O Apostolo: periódico religioso, moral e doutrinário, consagrado aos interesses da religião e da sociedade,
Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1881, p. 2. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
455
GALLAIS, 1942, p. 59.
456
SANTOS, 1996.
454
157
3.2 – Frei Gil de Vilanova e a missão de Conceição do Araguaia
De acordo com Gallais457, Julio Vilanova nasceu em Marselha, na França, em 25 de
dezembro de 1851, de mãe francesa e pai catalão. Formou-se bacharel em Direito e serviu ao
exército francês como voluntário, atuando no posto de sargento. Em 1875, aos vinte e três
anos, candidatou-se ao noviciado de São Maximiliano e, em 13 de maio do mesmo ano,
envergou o hábito de São Domingos, adotando o nome de Frei Egídio, que no Brasil
transformou-se em Gil de Vilanova (Figura 35). Nos seus anos de formação no convento,
destacou-se como aplicado estudante e grande leitor da Suma Teológica de Tomás de Aquino.
Ordenou-se sacerdote em 1879, com apenas quatro anos de convento, pois, “em virtude da sua
idade, sobretudo das garantias que dava sob o ponto de vista da virtude, resolveram fazê-lo
ascender ao sacerdócio tão depressa quanto possível”458.
Figura 35 – Frei Gil de Vilanova. Fonte: Gallais,1942.
Apesar do desejo incessante de viver a vocação missionária em outros continentes, o
religioso foi escolhido em 1882 para ser professor de Dogmática do curso de São Tomás de
Aquino no Convento de Salamanca. A atividade docente do frei seguiu até o ano de 1887;
contudo, conforme Gallais, que também era dominicano, Gil de Vilanova estava tocado pelo
457
GALLAIS, 1942.
GALLAIS, 1942, p.33.
458
158
desejo de exercer o “apostolado conquistador”, tradição da Ordem dos Frades Pregadores,
“que consiste em ir para longe estender as fronteiras do reino de Deus, anexar-lhe novas
províncias”, e submeteu novamente aos seus superiores sua vontade de partir para as missões.
A demanda foi consentida pelos superiores, que o consideram para ir à diocese de
Goiás, no Brasil, para “consolidar as obras começadas e que estavam dando resultados
animadores”. Ainda em 1887, Frei Gil de Vilanova partiu de Bordeaux junto com outros
religiosos459. Após dezoito dias de viagem, a embarcação aportou na capital do império, onde
os missionários permaneceram algum tempo hospedados com os Lazaristas. A chegada em
Goiás aconteceu no final do mesmo ano, como registrou o periódico Correio Official de
Goyas de 17 de dezembro: “em dias da presente semana, chegarão a esta capital os ilustres
Dominicanos Frei Estevão, Rosario, Villa Nova e Gil, e tres estudantes para o seminario”460.
Para a Ordem dos Pregadores, os missionários não eram enviados apenas para
evangelizar as populações cristãs das cidades e dos povoados da diocese de Goiás, mas
também para fundar missões indígenas. Entre o final de 1887 e o início de 1888, Frei Gil e
outro companheiro foram os escolhidos para “explorar o terreno, escolher logar para fundação
e estudar as condições em que deveria ela [a obra] ser feita”461. Em princípios de janeiro, os
dois exploradores partiram com a intenção de buscar indígenas Mebêngokrê-Kayapó para o
empreendimento.
Conforme relata Gallais, no período dessa primeira excursão, os Mebêngokrê-Kayapó
estavam fazendo ataques nas povoações do alto Araguaia e em outras regiões circunvizinhas,
o que pressionava as autoridades por providências, de modo a “acalmar a turbulência destes
perigosos selvagens”. Em negociação com o bispo e os missionários dominicanos, decidiu-se
pela urgência da expedição, que sairia de Rio Bonito e que dali seguiria para a margem goiana
do alto Araguaia, sem sair dos limites da diocese de Goiás462.
No relatório de 1889, reportando os acontecimentos ocorridos no ano anterior, o vicepresidente da província de Goiás, Felicissimo do Espirito Santo, confirmou a versão dada por
Gallais, pois afirma que o Alferes Comandante da Colônia Macedina havia informado, por
ofícios dos dias 3 e 17 de janeiro, que os indígenas que viviam nas imediações de Rio Bonito
prosseguiam fazendo suas “correrias”, causando prejuízos aos colonos e às fazendas
459
GALLAIS, 1942.
Correio Official de Goyas,17 de dezembro de 1887, p. 4 – Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional
461
GALLAIS, 1942, p.72.
462
Ibid., p. 77
460
159
circunvizinhas463. A autoridade enviou, então, cópia da documentação ao bispo da Diocese,
como narrou abaixo:
[...] Enviando copia desses officios ao Exm.º Bispo Diocesano, e conferenciado
particulamento com o mesmo Exmo Sr. pedi-lhe que se dignasse mandar a aquellas
paragens alguns dos Frades Dominicanos existentes nesta Capital. S. Ex.ª Revem.º
repondeo-me por officio de 22 de Fevereiro ultimo que passava a dar providencias,
enviando para li dous Reverendos Padres Missionários, os quaes effectivamente
partirão no dia 3 do corrente mez. Para seguir também para a referida Colonia afim
de servir de interpetre àquelles selvícolas que são da tribu Caiapó, mandei contractar
o índio de nome Joaquim da mesma tribu, percebendo a gratificação de 8$000rs.
Mensais, e mais o abono por uma só vez, de dous parelhos de roupa e uma jampona
que mandei fornecer pelo Thesouro Provincial e bem assim adiantar-lhe a
gratificação correspondente a dous meses, entregando-se a importância ao
Reverendo Frei Gil da Villa Nova, um dos Missionarios que seguirão464.
No trecho acima, observa-se a associação feita pelas autoridades estatais entre a
evangelização e a pacificação indígena. Os missionários deveriam ser os arautos da
civilização. Apesar da coincidência dos fatos que apressaram a excursão dos missionários, há
divergências na data de partida e no nome, origem e função do ajudante: no relatório, a
partida se deu em 3 de fevereiro de 1888 e os missionários foram acompanhados por um
indígena Kayapó de nome Joaquim, que serviria de intérprete; enquanto na biografia, a
viagem começou em janeiro do mesmo ano e eles foram acompanhados por um caboclo de
nome José, que deveria tratar das montarias e dos animais que levariam as bagagens, descrito
como “meio negro meio índio [...] era melhor que um selvagem civilizado e melhor tambem
que um negro de sangue puro” – sem referência a uma possível descendência ou familiaridade
com a língua dos Kayapó.
É possível que tenha ocorrido uma desistência ou a troca de ajudantes, sem que o
presidente da província tenha tido conhecimento, ou que ambos, Joaquim e José, tenham
viajado juntos. Contudo, as diferenças nos relatos são significativas para o desfecho
malsucedido da excursão. A missão não conseguiu atender ao objetivo de estabelecer contato
com os Kayapó, pois não contava com um elo para se aproximar do povo. Pode-se dizer que,
provavelmente, se os missionários contassem com um intermediário do referido povo, as
chances de serem exitosos teriam aumentado consideravelmente. De qualquer forma, não
encontramos outras fontes históricas que revelem a real identidade desse auxiliar, do qual
sabemos apenas sobre seu triste final, uma morte súbita depois de um tombo, no meio da
floresta.
463
ESPIRITO SANTO, Felicissimo do. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de Goyaz
pelo exm. sr. vice-prezidente, brigadeiro Felicissimo do Espirito Santo, no acto de sua installação em 6 de
março de 1889. Goiás: Tipografia provincial, s/d.
464
ESPÍRITO SANTO, s/d, p. 20-21.
160
Em Rio Bonito, os moradores partilharam suas experiências sobre os indígenas que os
expedicionários buscavam. Deram-se conta, então, das dificuldades do trabalho que haviam
sido encarregados, pois “a maior parte dos que foram vítimas das depredações a que eles se
entregavam jamais tinham visto um só selvagem”465. Os ataques – ou contra-ataques, haja
vista que os territórios dos povoados goianos eram tradicionalmente de ocupação
Mebêngokrê-Kayapó – eram furtivos. Os colonos tomavam conhecimento da passagem dos
indígenas por meio de vestígios, rastos e depredações que deixavam para trás. Essas ações dos
Kayapó em defesa de seus territórios geravam revolta entre os colonos, o que parece ter
justificado muitas das excursões punitivas e arbitrariedades dos chamados “civilizados”.
Segundo Gallais, durante os sermões proferidos pelos missionários, era difícil fazer o povo
aceitar que “o quinto mandamento da lei de Deus, que proíbe matar o próximo, tanto se aplica
aos Caiapós como aos outros membros da humanidade”. A resposta dos colonos parecia ser
sempre a mesma: “o Índio é um bicho mau”466. Esse sentimento hostil foi observado em
outros tantos povoados por onde passaram os missionários.
Como antecipado, os missionários, apesar de longas andanças pelo sertão de Goiás,
não instituíram contato com os índios. Voltaram da excursão “sem sequer se haverem
aproximado de um só”. No entanto, segundo Gallais, a demorada busca pelos índios – a
primeira de um total de quatro excursões que ocorreram em 1890, 1896 e 1897 – resultou na
reflexão de que era impossível realizar uma obra evangélica nas regiões percorridas, onde
indígenas e colonos estavam em conflito constante. O biógrafo assim relatou o pensamento
dos dominicanos:
Fundar um centro de catequese numa região onde só se apresentam como invisíveis
salteadores, onde suas preocupações estão voltadas unicamente para a guerra, onde
tudo os leva à desconfiança e ao ódio para com os cristãos, cuja fé querem que eles
abracem é perder tempo e trabalho. Os Caiapós do Alto Araguaia não podem ser
utilmente catequizados senão no território de Mato Grosso, numa região onde ainda
são os únicos ocupantes e onde vivem em paz. Só ali é que o missionário poderá
apanhá-los, amansá-los, como se diz no Brasil, isto é, civilizá-los cristianizando-os
467
.
Além de pontuar a necessidade de ultrapassar as fronteiras de Goiás para fugir dos
conflitos ali existentes, buscando territórios onde os indígenas ainda viviam em paz, como o
alto rio Araguaia, no Mato-Grosso, o autor apresenta um entendimento persistente, que
ultrapassou o século XIX com novas roupagens, acerca da relação intrínseca entre evangelizar
465
GALLAIS, 1942, p. 84.
GALLAIS, 1942, p. 85.
467
Ibid., p. 104-105.
466
161
e civilizar. Por meio da cristianização, os índios seriam “amansados”, isto é, poderiam largar
seus hábitos “selvagens” e aderir ao trabalho e às práticas da “civilização”.
Em 1890, Frei Gil e Frei Miguel Berthe organizaram nova expedição, segundo Gallais,
“para os lados de Piabanhas e do rio do Sono, com o fim de avistar com os Cherentes e os
Carahós”, dessa vez não para estabelecer um aldeamento, mas com o plano de conviver algum
tempo com eles e tentar convencê-los a entregar crianças para serem educadas em Porto
Nacional468. É válido mencionar que há novamente um desencontro entre as informações
publicadas pelo biógrafo e por outras fontes históricas: no ano da expedição, o jornal católico
A Cruz reportou a notícia da viagem dos dois padres missionários, Vilanova e Berthe, do
convento dominicano de Porto Nacional, com o objetivo de “reconhecer as povoações ou
aldeamentos dos Indios situados nas margens do Rio Xingú”469. No entanto, de acordo com
dados do Instituto Socioambiental, os Xerente habitaram, de fato, nas proximidades do rio do
Sono, como afirmou Gallais, um local bem distante do rio Xingu.470.
Na segunda excursão, os dominicanos contaram com o auxílio do chefe de uma aldeia
indígena, chamado de Coronel Raimundo, que cumpriu o papel de intermediário entre os
religiosos e os índios. O primeiro contato com o intermediário seguiu o costume das ordens
religiosas no século XIX: os missionários ofereceram brindes – pólvora, tabaco e continhas de
vidro – para manifestar “o desejo de uma aproximação amistosa”471. Então, conforme
escreveu Gallais, os religiosos e o chefe estabeleceram um diálogo acerca da mercadoria e dos
interesses envolvidos, mas a quantidade de brindes parece não ter agradado o recebedor, que
se queixou: “é tudo o que o senhor me oferece? Não chega a haver uma colher de pólvora
para cada um dos homens! Teria feito melhor se me trouxesse alguns sacos de sal. Há aqui
perto um homem que o vende. Dê-me o dinheiro, e eu mandarei buscá-lo”472. Com o intuito
de agradar ao chefe, Frei Gil decidiu por comprar dois bois da posse da aldeia, que seriam
mortos e divididos em quatro partes, sendo que uma porção ficaria com o frade e seus
auxiliares e o restante deveria ser distribuído para os habitantes.
O fragmento da fala do Coronel Raimundo demonstra que não bastava oferecer
produtos usuais, era essencial conhecer as demandas e os gostos das comunidades indígenas
para poder ter êxito nos objetivos. O chefe indígena não se conformou com os tipos nem a
468
Ibid., 1942, p.128.
A Cruz: Revista Catholica, 31 de Dezembro de 1890, p. 264. Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional –
Brasil.
470
PAULA,
Luís
Roberto
de.
Xerente.
Povos
indígenas
no
Brasil
–
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xerente#Hist.C3.B3rico_do_contato. Acessado em: 19 de maio de 2021.
471
HENRIQUE, 2018, 78.
472
GALLAIS, 1942, p.133.
469
162
quantidade de mercadorias disponibilizadas pelos missionários, fazendo com que Frei Gil
rapidamente tivesse que se articular para atender a solicitação e disponibilizar carne vermelha
para todos.
Desde os tempos coloniais, os presentes ou brindes eram uma das principais maneiras
de estabelecer contato e angariar a confiança dos índios no processo de catequese e
civilização. Contudo, como destacam diversos autores473, esse recurso não deve ser pensado
nos termos da aculturação, longe de analisar os indígenas como recebedores ingênuos e fáceis
vítimas da sedução por objetos fúteis. Em geral, os índios eram conscientes das intenções dos
missionários, comerciantes e viajantes, e se aproveitavam da situação para se apropriar de
mercadorias, armas e utensílios que ansiavam. Ademais, os sujeitos nativos conferiam
sentidos singulares aos bens que eram negociados, realizando-se tanto uma apropriação
comercial ou prática – que garante a satisfação do desejo por produtos –, como simbólica; os
objetos conquistados por eles passavam por transformações nos significados e valores.
Retomando a narrativa do contato com os Carahós, percebe-se que a agência indígena
não apenas se manifestou na reclamação do Coronel sobre as mercadorias, mas nas exigências
para que os indígenas cedessem crianças a ser catequizadas e cuidadas pelos missionários. As
reservas consistiram na proibição de castigos violentos para corrigir os meninos e o
compromisso de alimentá-los muito bem – o que foi aceito por Frei Gil de Vilanova. Apesar
da relativa confiança que o dominicano angariou entre os índios, ninguém da aldeia quis ceder
seus filhos para a obra evangélica, mas se comprometeram de levá-lo a outra localidade onde
haveria muitas crianças474.
Dessa outra aldeia, da qual não conhecemos os residentes, Vilanova regressou para
Porto Nacional na companhia de três pupilos, Marco, Abocsú e Aquedi – o primeiro de quinze
anos e os outros dois de oito e dez anos. Na cidade, ele ensinou às crianças os valores
católicos, os dogmas e as rezas, a educação formal, o trabalho manual e as regras de etiqueta.
Porém, os conflitos políticos de 1892, que ameaçaram a vida de Frei Gil, impeliram os pais a
retomarem a guarda dos garotos e levá-los de volta para a floresta, sem possibilidade de
retorno.
No referido ano, Frei Gil, em conjunto com Frei Domingos Carrerot, foi pregar em
Boa Vista do Tocantins, que vivia uma agitação em razão de um conflito violento entre dois
473
HENRIQUE, Op. Cit., 2018; ALBERT, Bruce. Introdução: cosmologias do contato no Norte-Amazônico. In:
ALBERT, Bruce e RAMOS, Alcida Rita. Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico.
São Paulo: Editora UNESP: Imprensa oficial do Estado, 2002; HOWARD, Catherine. A domesticação das
mercadorias: estratégias Waiwai. In: ALBERT; RAMOS, Op. Cit., 2002.
474
GALLAIS, 1942.
163
coronéis, um chamado Perna, chefe do partido conservador, e o coronel Carlos Gomes Leitão,
chefe do partido liberal. O propósito dos missionários era reconciliar os adversários e
pacificar o povoado. Atuaram, então, como mediadores, decidindo por ter uma palestra com
as duas facções, levando o Cel. Leitão para a morada de Perna. No entanto, as circunstâncias
eram mais dramáticas e adversas do que podiam avaliar os dominicanos: em pouco tempo de
diálogo, o irmão de Leitão foi atingido por uma bala, morrendo de imediato, o que precipitou
mais agressões e tumulto. Tiroteio, urros, ameaças de morte eram lançados pelos dois lados
antagônicos; logo, os parentes e amigos da vítima canalizaram seu ódio para a figura dos
missionários, acusando-os de planejar a conversa para assassinar um dos coronéis. Por fim, a
cidade foi esvaziada e os frades conseguiram fugir, mas não sem receberem ameaças de
emboscadas no percurso475.
Com o advento da República, a relação entre Estado e Igreja Católica Apostólica
Romana (ICAR) no Brasil passou por mudanças em sua sustentação. O novo regime, a partir
do Decreto 199-A e da Constituição de 1891, colocou fim ao sistema de padroado, instaurou
um Estado laico e a liberdade de culto no país. No entanto, o Estado tomou ações de transição
nessa mudança de regime, visto que foram mantidas as propriedades da ICAR e assumidas
pelo poder público, por mais um ano, as despesas e os pagamentos eclesiásticos.
O Estado republicano brasileiro expressou-se laico na Constituição de 1891, mas não
instituiu um caráter antirreligioso ou anticonfessional na sua política. De acordo com Aquino,
o governo assumiu uma “laicidade pragmática”, onde, ao garantir a separação do civil e do
eclesiástico, reconheceu social e juridicamente diversas confissões religiosas no território
nacional, o que possibilitou “alianças, omissões, negociações e perseguições segundo os
interesses próprios do Estado, ou melhor, daqueles que o controlavam”476. Exemplificou então
o historiador:
475
GALLAIS, 1942.
AQUINO, Maurício de. Modernidade republicana e diocesanização do catolicismo no Brasil: as relações entre
Estado e Igreja na Primeira República (1889-1930). Revista Brasileira de História, v. 32, n. 63, 2012, p. 152.
476
164
Foi que aconteceu, por exemplo, no tocante às missões religiosas no norte do país,
região que demandou enorme atenção administrativa e revelou os desafios e os
limites do novo regime político. O governo provisório já havia considerado
indispensáveis os trabalhos de missionários naquelas plagas distantes da Capital
Federal. Em 1891, o primeiro governo republicano constitucional, seguindo políticas
postas em ação durante o Império, contatou monsenhor Spolverini para solicitar
oficialmente o auxílio dos capuchinhos no norte de Amazonas assegurando pleno
apoio e todos os meios necessários para a realização do projeto. Em 1895, o mesmo
aconteceria quanto ao Mato Grosso envolvendo os padres salesianos que fizeram
desse Estado o seu centro missionário477.
A catequese, contudo, antes tão valorizada pelas autoridades provinciais e pela
imprensa, já não usufruía dos mesmos privilégios. Na mensagem dirigida ao Congresso de
Goiás em 1891, o governador major Rodolpho Gustavo Paixão afirmou estar “convencido da
improficuidade da catechese”478, que absorvia, desde 1845, grande montante de dinheiro do
tesouro publico. Em outra passagem do mesmo relatório, Paixão demonstrou estar
esperançoso com a chegada das locomotivas no estado, símbolo da modernidade, para
pacificar e civilizar os povos indígenas: “o índio cruel e indolente, considerado fera pelos
sertanejos, graças à improficuidade da catechese em tão remotas paragens, há de ser chamado
ao convívio social, tornando-se elemento apreciável á lavoura”479.
Quando lhe convinha, o governo acionava as instituições eclesiásticas para ajudarem
na solução de problemas localizados, como aconteceu com o aldeamento instituído por Frei
Gil de Vilanova no Araguaia. Depois de algumas críticas feitas nos relatórios governamentais
e nos periódicos locais à educação religiosa entre os índios, considerada ineficaz ou
dispendiosa, o próprio Estado republicano apoiou e custeou novos aldeamentos e o trabalho
dos missionários nos rios da Amazônia, como discutiremos mais a frente.
A despeito do insucesso das expedições anteriores, dois meses após as primeiras
expedições, já em 1891, Frei Gil empreendeu novamente excursão à procura dos índios, dessa
vez, em direção ao Araguaia, pelo oeste. A parte final do roteiro da viagem consistia em subir
o Araguaia até a Ilha do Bananal para chegar na desembocadura do rio das Mortes, onde
tentariam contato com os Xavante. No entanto, os planos de Vilanova foram frustrados pela
recusa dos colaboradores de subir o rio, motivados pelo medo que o citado povo despertava
na gente da região.
Os acontecimentos em Boa Vista repercutiram negativamente na cidade de Porto
Nacional, onde frei Gil de Vilanova exercia a função de vigário da Paróquia. Em razão disso,
477
Ibid., p.153.
PAIXÃO, Rodolpho Gustavo. Mensagem dirigida à Camara Legislativa de Goyaz pelo governador do
estado major Dr. Rodolpho Gustavo da Paixão no dia 5 de Dezembro de 1891. Typographia Perseverança de
Tocantins & Aranha: Goyas, 1891, p.8.
479
PAIXÃO, 1891, p.34
478
165
após o fim do mandato na freguesia em 1893, o religioso retornou para o lar da Ordem de São
Domingos em Uberaba. Ele retomaria o projeto de catequese dos índios do Araguaia apenas
em 1896480.
Nesse ano, ocorreu em Bordeaux um capítulo intermediário, uma assembleia geral dos
superiores para tratar de assuntos de interesse da Ordem dos Pregadores. O padre Vilanova
enviou aos membros da reunião um pedido para a criação de uma catequese para evangelizar
os índios ainda não cristianizados. As autoridades consentiram com o pedido e o
encarregaram de organizar essa fundação. Entretanto, determinaram, “como se receassem que
o seu gênio aventuroso e o seu ousado zelo o arrebatassem para muito longe”481, que não
deveria ultrapassar os limites da diocese de Goiás e ofereceram-lhe como companheiro o
Padre Ângelo Dargaignaratz.
Em outubro do mesmo ano, Frei Gil e seu companheiro partiram em uma quarta
expedição. Passaram por Leopoldina, desceram o rio Araguaia e encontraram o arraial de
Sant’Ana da Barreira482 (Figura 36), ou simplesmente Barreira, cuja população era
constituída, em sua maioria, de migrantes fugidos dos conflitos em Boa Vista. O pequeno
povoado mantinha boa relação com as aldeias indígenas das proximidades, fato que
despertaria o interesse de Vilanova e o desejo de se aproximar dos nativos.
Figura 36 – Casas em Sant’Anna da Barreira. Fonte: COUDREAU, 1897.
480
GALLAIS, 1942.
Ibid., p. 143.
482
Atual Santa Maria da Barreira, pertencente ao estado do Pará.
481
166
Figura 37 – Índios Kayapó fotografados por Coudreau, incluindo o chefe Pacarantí. Fonte:
COUDREAU, 1897
Entre o final de novembro e o final de dezembro, ocorreram as aproximações entre os
missionários e os nativos por meio da tradicional oferta de banquetes e brindes para seduzir e
conquistar confiança. Gallais descreveu o encontro com as lideranças indígenas Paracantí
(Figura 37), Beca e Fontoura:
Padre Vilanova mandou matar um boi, presenteou generosamente seus novos
amigos e expôs-lhes os motivos da missão que ali o levava. Deu a conhecer o
projeto de construção de uma grande casa, uma “quicré” [sic] como jamais tinham
visto, dentro da qual reuniria todas as crianças da tribu, para ensinar a bem viverem.
Paracantí e Beca, chefe de uma aldeia vizinha, aceitaram sem dificuldade os
propósitos do Padre e mostraram-se dispostos a contar-lhe no mesmo instante todas
as crianças de suas tribos. Foi preciso que o Padre, que em geral tão dificilmente
admitia delongas na execução de seus planos acalmasse o açodamento dos Índios, e
fez-lhes ver que a construção da grande casa pediria mais tempo que a de suas
modestas cabanas. Para o momento, já se contentava em ter a palavra deles [...].
Logo que voltou a Barreira, o Padre Vilanova vê chegar um terceiro chefe, Fontoura,
que lhe leva cincoenta crianças. [...] Foi necessário mostrar a Fontoura que ele devia
levar de volta esse mundo de crianças483.
Os índios contactados por Frei Gil eram chamados à época de “Cayapó do Norte” ou
“Caiapó do Pau d’Arco”. Atualmente utiliza-se o etnônimo Irã Ãmrãnh para se referir a esse
grupo, um dos três que formavam o povo Kayapó no século XIX, juntamente com os Goroti
Kumrenhtx e os Porekry. Os dois primeiros possuíam uma população estimada em três mil
pessoas cada e o último, em torno de mil, totalizando cerca de sete mil indivíduos. Eles
habitavam originalmente a região do curso inferior do rio Tocantins. Contudo, com o avanço
483
GALLAIS, 1942, p. 183.
167
da fronteira colonial e os massacres perpetrados pelos “brancos” no começo do século XIX,
abandonaram o seu território tradicional em direção ao oeste, passando a viver nas margens
do rio Araguaia e afluentes484.
Figura 38 – A missa em Barreira. Fonte: COUDREAU, 1897.
O êxito no contato com os índios e a acolhida de Barreira, que seria preliminarmente o
local ideal para estabelecer a obra de catequese, certamente, contentaram Vilanova e
Dargaignaratz. Parecia não ser fácil encontrar um local que atendesse a todas as demandas dos
frades. Gallais, no livro Uma catechese entre os Indios do Araguaya, menciona as exigências
dos missionários franceses: “era preciso encontrar um logar salubre, um espaço bastante
vasto, não só para n’elle se formar uma povoação, mas ainda para fazer plantações, crear
pastagens, em uma palavra para iniciar os indios nos trabalhos da agricultura”485. A partir
desse excerto, fica evidente que o trabalho indígena ocupava também um importante lugar no
programa de evangelização dos dominicanos.
Apesar das pretensões iniciais dos missionários, Sant’ana da Barreira demonstrou ser
um lugar inapropriado para o projeto em razão das cheias do rio Araguaia. Em dia que
estavam ausentes do povoado, o rio encheu de maneira surpreendente e invadiu a habitação
dos dominicanos, estragando vestuários, ornamentos e acessórios do altar (Figura 38).
Tornou-se urgente abandonar Barreira e procurar um novo local para os habitantes.
484
VERSWIJVER, Gustaaf; GORDON, CESAR. Mebêngôkre (Kayapó). Povos Índigenas do Brasil –
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Meb%C3%AAng%C3%B4kre_(Kayap%C3%B3). Acesso em 24 de maio
de 2021.
485
GALLAIS, Estevão Maria. Entre os índios do Araguaia. Tradução de Otaviano Esselin. São Paulo: Escola
Typographica Salesiana, 1903, p.10.
168
Durante esse período, Henri Coudreau explorava a região do Araguaia a serviço do
governo do Pará. Logo, Coudreau estabeleceria um relacionamento com os missionários, em
especial com Vilanova, a quem descreveu como o homem que mais conhecia a região de
Goiás do Norte e os territórios vizinhos a leste do Tocantins e oeste do Araguaia486. Os dois
compatriotas cumpririam importantes papeis nos objetivos de cada um: o frade foi fonte de
informações e conhecimentos acerca da região e do povo Kayapó para Coudreau; por outro
lado, o explorador resolveria o problema da localização do novo aldeamento.
Segundo Coudreau, o encontro com o frade beneficiou a ciência, pois ambos
formariam importante compêndio de conhecimentos nas páginas do livro Voyage au
Tocantins-Araguaya. Ele comentou sobre a fecundidade do encontro e da troca de saberes da
seguinte forma: “Gil e eu pudemos lançar alguma luz sobre esta grande província, sobre a
qual o Pará tinha até agora apenas noções incertas, comparando as nossas informações sobre a
região entre Araguaya e Xingú”487.
O viajante e sua comitiva chegaram a Sant’Anna da Barreira em abril de 1897 e
permaneceram algum tempo por lá. De acordo com ele, o lugar era o último aglomerado
paraense do alto Araguaia – o que denota certa insubordinação de Frei com as ordens de seus
superiores a respeito de não ultrapassar os limites da diocese de Goiás. O povoado abrigava
499 pessoas, divididas em 111 famílias488, de maior parte “pertencente à raça branca pura”.
Os moradores, na avaliação de Coudreau, eram trabalhadores, honestos e pacíficos, e
pareciam “viver em profunda paz”489.
486
COUDREAU, Henri. Voyage au Tocantins-Araguaya: 31 decembre 1896 - 23 mai 1897b. Paris:A. Lahure,
1897b.
487
Ibid., p. 1, tradução nossa. No original: “En comparant ensemble ce que nous avions de renseignements sur la
région située entre Araguaya et Xingú, nous sommes arrivés, le P. Gil et moi, à Faire quelque lumière à l’endroit
de cette grande province au sujet de laquelle Pará ne possédait jusqu’à ce jour que des notions bien incertaines”.
488
Na citada obra, Coudreau publicou algumas tabelas tratando da quantidade de habitantes e famílias de
Barreira, inclusive nomeando os chefes, apenas homens, das casas. O que aponta relativo interesse do governo
do Pará pelo povoado e pelos moradores.
489
COUDREAU, 1897b, p. 144, tradução nossa. No original: “La très grande majorité de ces familles appartient
à lar ace blanche purê. Cette population laborieuse, honnête, pacifique, paraît vivre em paix profonde”.
169
Figura 39 – Indígenas Kayapó visitados por Coudreau e Vilanova em 1897. Fonte:
COUDREAU, 1897.
Frei Gil de Vilanova, Coudreau e alguns colonos conversaram com lideranças
indígenas, quando então foram feitas diversas fotografias, publicadas no livro de Coudreau e
aqui reproduzidas (Figura 39). Também foram coletados materiais etnográficos e linguísticos.
O explorador garantiu um capítulo inteiro para tratar da cultura, dos costumes, das armas, da
história, das festas e da religião do referido povo indígena e do seu contato com os nãoindígenas. O número de páginas e o detalhamento da descrição exprimem o interesse de
Coudreau e do patrocinador, o governo do Pará, pela região e os seus habitantes. Em relação
aos nativos, ele escreveu:
Os Cayapós não são verdadeiramente índios inoportunos. Os três chefes são
perfeitamente discretos e seus homens são silenciosos e bem elegantes. Não há uma
mulher jovem que não esteja perfeitamente vestida, isto é, sem referência ao seu
traje...490
Coudreau desfrutou de uma boa experiência com os indígenas e o missionário
dominicano. Ele, a partir dos ideais apropriados de Rousseau e das suas leituras libertárias, era
um entusiasta do “bom selvagem” e da relação entre os índios e a natureza. Foi a partir dessa
lente cultural que representou os Kayapó nas páginas de Voyage au Tocantins-Araguaya.
490
COUDREAU, 1897b, p. 221, tradução nossa. No original “Les Cayapós ne sont véritablement pas Indiens
importuns, Les trois chefs sont d’une discrétion parfaite et leurs hommes sont silencieux et bien stylés.Il n'est pas
jusqu'à la jeune femme qui ne soit d'une parfaite tenue, ceci soit dit sans allussion à son costume”.
170
Coudreau permaneceu com o missionário até 9 de maio de 1897, trocando
informações de natureza geográfica, hidrográfica e etnográfica. Apesar das transformações na
região, do aumento de propriedades agrárias e do maior trânsito de embarcações a vapor, as
cheias do rio Araguaia, que inundavam as margens onde Barreira havia se estabelecido, eram
uma das principais dificuldades para a prosperidade e estabilidade de vilas e
empreendimentos. Na sua passagem, Coudreau não conviveu com as enchentes, apenas
enfrentou os famosos e perigosos travessões e quedas d’água, mas seus conhecimentos
geográficos e sua experiência de campo na Amazônia o fizeram orientar a mudança do
povoado para um lugar seguro, fora do alcance das águas, vinte léguas rio abaixo491.
O local indicado era um pequeno planalto de fácil acesso, abrigado das inundações e
com uma grande área de planície, entre uma cadeia de serras, onde seria fácil colocar em
prática a agricultura nos campos. Após conhecer e analisar o local, os dois freis dominicanos
decidiram que estabeleceriam ali a sua catequese e deixaram Barreira. Alguns colonos
decidiram acompanhar os missionários e formar o embrião do novo povoado, mais tarde
chamado de Conceição do Araguaia492.
Além disso, utilizando-se da sua relação já estabelecida com os Irã Ãmrãnh, e, claro,
associando-se com os interesses da comunidade, Frei Gil convenceu os chefes Fontoura,
Pacarantí e Gongrí de que os três grupos, que somavam cerca de 500 pessoas, deveriam
reunir-se e estabelecer-se juntos numa nova e única aldeia, a cerca de um ou dois quilômetros
de Conceição do Araguaia.
Desde o início, Frei Gil tinha planos de construir a missão de Conceição de forma
mista, isto é, habitada por índios e não-índios – como tenta retratar a Figura 40. Conforme
Chaves, com esse convívio forçado “seria mais fácil mesclar a população através de inúmeros
casamentos, ocasionando a entrada da população Irã Ãmrãnh à sociedade brasileira e sua
integração à ‘civilização’”. O programa do missionário estava inserido em uma lógica
assimilacionista, característica dos oitocentos, que visava incorporar os indígenas na
sociedade nacional através do processo de civilização e mestiçagem493.
491
GALLAIS, Op. Cit., 1942.
GALLAIS, Op. Cit., 1903.
493
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na História do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao
protagonismo. Revista História Hoje, v. 1, n. 2, p. 21-39, 2012; CUNHA, Op. Cit., 1992.
492
171
Figura 40 – Missão de Conceição do Araguaia. Fonte: PARÁ, 1908.
A nova povoação, situada na margem esquerda do rio Araguaia, encontrava-se no
território paraense, fora, portanto, dos limites da diocese de Goiás. Sair das fronteiras do
território goiano ia contra as diretrizes dos superiores dos missionários; mas, em
contrapartida, isso era vantajoso na obtenção de recursos para a obra evangélica. Gallais narra
que a ideia de se aproximar do governo do Pará foi motivada por um homem chamado
Inocêncio, que partiu em 1897 para a capital paraense em razão da precária situação
econômica da missão. Ele teria convencido o Padre Vilanova de que a salvação para a missão
estava em Belém, não em Goiás; e fez o convite ao frade com o seguinte argumento: “Dou-lhe
lugar na minha canoa. No Pará encontrará Coudreau. Ele falará a seu respeito com o
Presidente, dar-lhe-á a conhecer sua obra. É impossível que não venham em seu socorro”494.
Em Belém, Frei Gil se reuniu com o bispo, apresentando-se e narrando a situação
precária de sua obra de catequese no Araguaia. O prelado então se dispôs a pedir
pessoalmente o auxílio do governador do Pará, José Paes de Carvalho. A audiência entre as
partes aconteceu no palácio episcopal, sem informações sobre a presença de Henri Coudreau,
provavelmente ainda em viagem pelo interior do território paraense. De qualquer forma, a
missão dominicana interessou ao governador e se enquadrou completamente em seu programa
de governo. A conferência resultou na concessão de vinte contos de réis como subsídio e,
494
GALLAIS, 1942, p.193.
172
ainda, de “grande sortimento de tecidos e roupas para vestir os índios e um carregamento de
machados, enxadas, instrumentos de trabalho e outros do mesmo gênero”495.
O patrocínio estatal apareceu em texto do periódico Minas Geraes em 21 de maio de
1897, originalmente publicado no Jornal de Uberaba de 16 do mesmo mês, que tratou do
trabalho de catequese indígena executado pelos missionários Vilanova e Dargaignaratz desde
outubro de 1896 na margem esquerda do Araguaia. Diz o artigo:
Dispondo de poucos recursos que puderam obter de algumas almas generosas e
confiando no auxílio divino, elles emprehenderam a grande obra da catechese, sem
cogitarem das dificuldades innumeras que surgem e das agruras de uma vida cheia
de sacrifícios.
Em redor da nova missão já vão se agrupando os indios caiapós desejosos de tomar
parte no convívio social.
O governo do Estado do Pará tendo, por intermédio do exm. Sr. Antonio de Castilho
Brandão, Bispo daquella Diocese, conhecimento dos trabalhos dos dous
missionários mandou-lhes um auxilio de quatro contos e quinhentos mil reis.
O operoso e patriótico dr. Paes de Carvalho, governador daquelle Estado, emprenhase seriamente em favor da catechese por saber quaes os benefícios que trará áquella
circumscrição da Republica a civilização dos indios que povoam os vales do
Tocantins e Amazonas496.
Efetuou-se, por conseguinte, uma combinação de interesses envolvendo o governo
paraense, preocupado com o controle das fronteiras e dos povos indígenas do território, e os
missionários dominicanos, desejosos de evangelizar os nativos. Havia um nítido contraste
entre as unidades federativas: o estado de Goiás tentava firmar-se economicamente e
diminuíra o número de investimentos na catequese, como tratamos anteriormente; o Pará, por
outro lado, vivia o auge da exploração da borracha. O excedente de capital dessa economia
possibilitava ao governo estadual aumentar o investimento em diversos setores, como o de
infraestrutura, de instrução pública e de ocupação das fronteiras497.
A escolha da nova sede da missão estava mais relacionada ao apoio estadual do que às
demais questões, como a obediência às diretrizes das dioceses. Em carta a respeito da
fundação de um segundo centro de catequese, alguns anos depois, Frei Gil escreveu:
495
GALLAIS, 1942, p.194.
Minas Geraes: Orgam Official dos Poderes do Estados, Minas Gerais, 21 de maio de 1897, p.6. Acervo da
Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil.
497
WEINSTEIN, Barbara. A Borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo:
Hucitec/ EdUSP, 1993; SARGES, Maria de Nazaré. Riquezas produzindo a Belle Époque. Belém: PakaTatu,
2002.
496
173
Contando que a Catequese dos Carajás se funde, pouco importa como. Saber como
ela deve ser estabelecida no território de Goiás ou no do Pará, não passa de um
pequeno aspeto da questão [sic]. Se o governo de Goiás pode e quer auxiliar essa
obra, é fácil funda-la na Ilha do Bananal, que incontestavelmente pertence a Goiás.
No caso contrário, não vejo porque havemos de privar do apoio do Pará. Parece que
não havemos de embaraçar com esta questão de limites entre os dois Estados. Que
nos importa? Os grandes do mundo que se arrumem nesse ponto!498
Como podemos ler no trecho acima, o religioso expressa que sua maior preocupação
era principalmente tornar o projeto exequível, e não respeitar os limites territoriais da diocese.
Para Grigório, a posição de Frei Gil frente à questão da localização das missões indígenas
“demonstra a independência da missão dominicana em relação ao Estado no trabalho de
civilização dos índios após o fim do Padroado”499. A autora interpretou que o trabalho
missionário era realizado de acordo com os interesses e as necessidades da Ordem dos
Pregadores e da Igreja, embora dependesse dos recursos do Estado.
A catequização e a civilização feitas pelas missões religiosas tornaram-se pontos de
interesse para a esfera política, que almejava a transformação dos índios em trabalhadores,
povoadores das áreas remotas, que se desenvolveriam economicamente por meio da
agricultura e da pecuária. A par disso, os religiosos, a partir de seus próprios interesses e
necessidades, acionavam os estados da federação para angariar fundos, presentes e materiais
para os seus projetos.
A verba recebida por Frei Gil do governo do Pará foi empregada na construção de uma
nova igreja, de novos edifícios para a comunidade e para os alunos da missão, assim como de
um dormitório e de um refeitório500. Os brindes foram distribuídos para atrair novos
indígenas. Logo após a aprovação do subsídio do governo do Pará e da chegada de um novo
colaborador, padre Guilherme Vigneau, Frei Gil começou a receber mais indígenas em
Conceição. Nos primeiros três anos, a quantidade flutuava em virtude das constantes fugas,
deserções, do retorno às antigas aldeias e da entrada de novos aldeados501. No colégio,
dirigido por Vigneau, os alunos tinham uma rotina exigente, durante a qual aprendiam os ritos
católicos, recebiam a educação formal em português, se preparavam para o batismo e
aprendiam alguns ofícios. É possível que o desagrado pelas práticas e pelo rigor dos padres
tenha sido o motivo da evasão dos pequenos, que, desgostosos com o ensino, regressavam às
aldeias e ao convívio de seus familiares.
498
GALLAIS, 1942, p.278.
GRIGÓRIO, Patrícia C. A professora Leolinda Daltro e os missionários: disputas pela catequese
indígena em Goiás (1896-1910). 2012. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado em História), Universidade
Federal do Rio de Janeiro–UFRJ, Rio de Janeiro, RJ.
500
GALLAIS, Op. Cit., 1903.
501
GALLAIS, Op. Cit., 1942.
499
174
No entanto, a partir de 1900, com a chegada de novos colaboradores e o recebimento
de novo subsídio do governo do Pará, a média de crianças aumentou, entre trinta e cinquenta.
Figura 41 – Alunos da Escola da Missão de Conceição do Araguaia e missionário
dominicano. Fonte: PARÁ, 1908.
O trabalho missionário focava na educação das crianças, como visto acima na Figura
41, em que crianças indígenas, trajadas de roupas “civilizadas”, posam para a fotografia com
um missionário dominicano ao centro. Gallais afirmou que os dominicanos assentavam suas
esperanças “mais na educação christã dada ás creanças do que na conversão dos adultos”. O
trabalho com os adultos consistia em estimula-los a abandonarem o nomadismo e adquirirem
os costumes dos “civilizados”, transformando-os em trabalhadores. O mesmo autor explicou o
programa dos religiosos:
O plano dos missionários seria, pois, de subtrahir bem cedo as creanças de ambos os
sexos da influencia do meio em que nasceram, impedil-as de contrahirem os habitos
da vida selvagem e de lhes incutir ao contrario, os da vida christã, de lhes dar, com a
instrucção religiosa, o ensino elementar que se dá nas escolas primárias, e depois
quando estiverem na idade de casar, formarem famílias christãs que se fundam à
massa da população já civilizada. D’esta maneira, o elemento selvagem se extinguirá
por si mesmo, e depois de duas ou tres gerações, a tribo se achará incorporada, ao
mesmo tempo, não só a sociedade como á Egreja502.
As crianças indígenas eram consideradas uma tábula rasa, “seriam as receptoras de um
novo tipo de pensamento e as responsáveis pela formação de famílias cristãs e civilizadas”503.
Elas eram vistas como os mais suscetíveis à influência do programa religioso e civilizatório
502
503
GALLAIS, 1903, p. 50-51.
GRIGÓRIO, 2012, p.74.
175
pregado pelos padres e também com maior capacidade de se adaptarem à sociedade nacional,
aos preceitos católicos e ao mundo do trabalho. E assim foi feito ao longo dos anos, com um
aumento significativo do número de crianças Irã Ãmrãnh sob responsabilidade dos
missionários em Conceição.
Figura 42 – Crianças indígenas da Catequese e seus pais. Fonte: GALLAIS, 1906504.
Burke chama atenção aos historiadores que pretendem, por impulsão, visualizar os
retratos como representações fidedignas da realidade, argumentando que as imagens são, na
verdade, elaboradas de acordo com um sistema de convenções ligadas ao seu tempo histórico:
“As posturas e gestos modelos e os acessórios e objetos representados à sua volta seguem um
padrão e estão frequentemente carregados de sentido simbólico”505. A Figura 42, por
exemplo, é uma representação do contraste entre a ação cristã-civilizatória simbolizada pelas
crianças e a natureza do indígena selvagem, materializada na presença dos pais. No segundo
plano, os adultos, aparentemente nus, com cortes de cabelo tradicionais e segurando objetos
de sua indústria; em primeiro plano, as crianças do colégio missionário, todas vestidas.
Essa mesma ideia não se concentrava apenas nos centros católicos, mas também
aparecia nas falas da esfera política, como a de José Paes de Carvalho em relatório a Augusto
Montenegro, seu sucessor no governo do Pará em 1901. Paes de Carvalho506 incentivava a
atividade missionária com as crianças – pois os adultos teriam mais dificuldade em se sujeitar
504
GALLAIS, Etienne-Marie. Un Missionnaire chez les sauvages de l'Araguaya, au Brésil: le P. Gil
Vilanova, des Frères prêcheurs. Toulosse: Imprimerie et librairie Édouard Privat, 1906 – Source gallica.bnf.fr /
Bibliothèque nationale de France.
505
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Florianópolis: Edusc, 2004, p.31.
506
CARVALHO, José Paes. Relatório apresentado ao governador do Estado Exmº srº Dr. Augusto
Montenegro pelo Dr. José Paes de Carvalho ao deixar a administração em 1º de fevereiro de 1901. Belém:
Imprensa Official,1901, p.79
176
ao trabalho regular e em abandonar os seus costumes tradicionais –, educando-as “de acordo
com as regras impostas pela civilisação christã”, que consistiam no “trabalho methodico,
estavel das artes e industrias e a educação intelectual”. A prosperidade desse tipo de
empreendimento beneficiaria não só a eles, pois esses indivíduos amadureceriam e
constituiriam, mais tarde, “núcleos de famílias morigeradas, activas e, portanto, factores
poderosos do progresso do Estado”.
Figura 43 – Conceição do Araguaia em 1901. Fonte: GALLAIS, 1906.
A proposta assimilacionista foi, de fato, colocada em prática, com a atração crescente
de indígenas e não indígenas para a Conceição do Araguaia. Houve o aumento significativo
da população, o que também acarretou a expansão do povoado (Figura 43), chegando, em
1902, a duas mil pessoas na vila. Entre elas havia cinquenta meninos no colégio e mais de 400
indígenas adultos a alguns quilômetros. De acordo com Chaves, um dos aspectos centrais do
programa de Frei Gil era a integração, não apenas a incorporação dos indígenas em práticas
classificadas como civilizadas, mas o contato e a agregação de outros grupos Mebêngôkre na
obra de catequese507. Para Hemming508 e Chaves, nessa perspectiva, os planos do dominicano
foram executados com sucesso em relação aos Irã Ãmrãnh, pois o grupo foi incorporado às
tradições católicas e mesclou-se com a população de colonos da região, sendo aos poucos
507
508
CHAVES, 2012.
HEMMING, 2009.
177
“assimilados à sociedade civil enquanto os que não aceitaram partiram para outras aldeias,
provavelmente Mebengôkrê”509.
Não podemos perder de vista que os Irã Ãmrãnh tinham seus próprios interesses para
se aproximarem dos brancos. Eles, desde os primeiros encontros com não indígenas,
rapidamente se adaptaram às novas situações e estabeleceram um sistema de trocas
comerciais. Para Gordon510, a estratégia de se associar com não indígenas, até mesmo antes da
fundação da missão de Conceição, estava relacionada diretamente com o desejo de obter bens
manufaturados. Hemming, por sua vez, salientou que colonos, viajantes e religiosos viam
como eficaz a oferta de ferramentas de metal como meio para ganhar a amizade de povos
indígenas hostis ou ainda não contatados, pois essas peças não eram fabricadas pelos nativos
brasileiros, e sua obtenção só era possível por meio de trocas e guerras intercomunitárias.
Logo, os indígenas, como Irã Ãmrãnh, possuíam capacidade de associar práticas, discursos,
performances como recurso para conquistar os objetos manufaturados de que precisavam sem
grandes esforços ou conflitos com outras aldeias, ou povoados.
Contudo, para Gordon, essa estratégia mostrou-se “uma escolha sem volta para os
Irã’ãmranhre511, haja vista o rápido declínio populacional e finalmente o desaparecimento do
grupo”512. Em 1940, Curt Nimuendajú, etnólogo alemão, esteve no Araguaia e afluentes para
entrar em contato com os últimos Irã Ãmrãnh. Encontrou em uma missão dominicana do rio
Arraias, que reunia indígenas Mebêngôkre de várias aldeias, os seis últimos descendentes do
povo: dois homens, Santana Kukrit-Kãe e Cícero Bepkrit, e quatro mulheres, não nomeadas.
Logo depois, em relatório, Nimuendajú decretaria a extinção do povo513.
Chaves faz uma ressalva acerca da análise de Gordon sobre a estratégia dos Irã
Ãmrãnh, de que não podemos perder de vista a agência indígena nessas relações e da
capacidade desses atores sociais de resistir, assimilar e transformar fatos externos em termos
de sua própria cultura. Esclarece o autor:
509
CHAVES, 2012, p.49.
GORDON, Cesar. Economia Selvagem: Ritual e mercadoria entre os índios Xikrin-Mebêngôkre. São Paulo:
Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006.
511
Grafia utilizada por Gordon para se referir aos Irã Ãmrãnh.
512
Ibid., p. 129.
513
CHAVES, Op. Cit., 2012.
510
178
Por mais que Gordon argumente que a necessidade de bens manufaturados teria sido
um campo fértil para a catequese e ação civilizatória dos dominicanos, não acredito
que isso tenha se dado sem mínima resistência. Os Mebengokre falam deles mesmo
como vencedores, e isso mesmo quando se encontram dois últimos “remanescentes”,
como Bepkrit e Kukrut-Kae
A perspectiva de Chaves é inspirada pelos novos estudos de história indígena, que
buscam retirar os índios dos papéis secundários e da posição de vítimas passivas para uma
perspectiva focada no protagonismo, cujas “ações passam a ser entendidas como fruto de
escolhas próprias condizentes com as lógicas de suas sociedades e com as possibilidades
disponíveis”514. De acordo com Almeida, “na condição de colaboradores ou mesmo de
vencidos, os índios buscavam seus próprios ganhos, ainda que fosse através da negociação das
perdas”515. Nessa perspectiva, ao escolher pelos aldeamentos, pela convivência com colonos e
missionários, os indígenas respondiam a uma pressão externa, mas essa situação gerava novas
oportunidades de ganhos, negociações e resistências. Para Chaves, é possível enxergar os Irã
Ãmrãnh para além das concepções de vítimas da assimilação ou perdedores, compreendendoos como sujeitos que atuaram no contexto histórico e resistiram à ação civilizatória. Uma das
formas dessa resistência pode ser analisada na formação da coleção depositada atualmente no
acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi516, que trataremos a seguir.
3.3 – Objetos indígenas para a manutenção da fé
A formação da coleção Irã Ãmrãnh de Frei Gil de Vilanova se deu em um contexto de
busca por recursos para a manutenção do projeto missionário em Conceição do Araguaia.
Conforme Gallais, a partir de 1900, o número de crianças a cargo dos padres dominicanos
aumentou de trinta a cinquenta, o que resultou em gastos mais pesados. A população não
indígena de Conceição, no mesmo período, vivia em estado paupérrimo e buscava sempre o
auxílio dos religiosos para angariar alimentos e donativos e conseguir trabalho remunerado na
construção das suas edificações ou no cultivo das roças. Segundo Gallais, “no capítulo de
esmolas, os Padres tinham muito mais que distribuir do que receber” 517.
Afora a alimentação, havia a necessidade de artefatos sacros e suprimentos religiosos,
como farinha de trigo e vinho, e mercadorias manufaturadas – tais como tecidos, material
escolar, ferramentas de trabalho e, ainda nas palavras de Gallais, “mil objetos miúdos que se
tornam cada vez mais de uso corrente, à medida que se vai ingressando na vida civilizada”. A
514
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas.
Revista Brasileira de História, vol. 37, n.º 75, 2017, pp. 17-38.
515
____________________________. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013, p. 81.
516
CHAVES, 2012.
517
GALLAIS, 1942, p. 218.
179
situação de escassez em Conceição impôs a Frei Gil o hábito de viajar anualmente a Belém
para “obter recursos, interessar em sua obra a caridade pública e particular, reabastecer-se e
trazer consigo socorros em dinheiro e em espécie”518.
A maior parte desses socorros encontrados em Belém provinha do governo do Pará,
em especial no de José Paes de Carvalho, cujo mandato encerrou em fevereiro de 1901. Paes
de Carvalho, como já dito anteriormente, desejava favorecer as obras de catequese e a ação
civilizatória em Conceição, motivo pelo qual ofertou somas consideráveis e mercadorias,
além de investir em infraestrutura na região. A missão era verdadeiramente dependente do
capital do estado, não dispondo de meios suficientes de sustento.
No entanto, em 1901, o patrocínio da obra de catequese escasseou em virtude da crise
econômica que envolveu o comércio de borracha e, consequentemente, diminuiu as receitas
do estado. Crises econômicas e de abastecimento eram frequentes no Brasil e no Pará.519. A
de 1901 já havia sido prenunciada por Paes de Carvalho na mensagem que enviou ao
Congresso Estadual em 15 de abril de 1898:
Tem-me preoccupado bastante a situação do Pará diante da crise monetaria e
economica, que o Brazil vai atravessando. É indubitavel que a prosperidade d'esta
região não é só devida ao crescimento de sua producção, mas tambem á
desvalorisação do papel. Esta desvalorisação do papel, sendo acompanhada de uma
alta nos preços do seu principal genero de exportação, e a importação não tendo
excedido o valor em ouro dos generos exportados, trouxe em resultado uma grande
actividade nos negocios e crescimento dos lucros oriundos do movimento
commercial. [...] Tenho reflectido sobremodo a respeito do que acontecerá ao
Thesouro Paraense, caso o cambio entre em um período de marcha ascendente. Com
quase todos os nossos compromissos em papel, com a infalível baixa da receita pela
diminuição de valor em papel da borracha, é inevitável a fallencia de nossas
finanças, maximé[sic], porque esta crise do Thesouro corresponderá a uma grande
crise do commercio, para o qual aquelle ficará impedido de appellar. [...] Afigura-seme, porém, que o perigo está mais proximo do que póde parecer aos menos cautos.
A situação economica e financeira do Brazil é profundamente anormal; esta
anormalidade não póde perdurar sem que venha affectar a propria estructura da
nação.520
É evidente no excerto a apreensão do então governador do Pará com a situação
financeira do Brasil e as consequências da crise para o tesouro estadual e o comércio local.
Em 1901, Augusto Montenegro, governador recém-eleito, também em mensagem ao
Congresso de 10 de setembro, citou o excerto de Paes de Carvalho acerca do panorama que se
afigurava no horizonte e confirmou a previsão do seu antecessor:
518
GALLAIS, 1942, p. 219.
BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.1850c.1870. Belém: Açaí, 2014.
520
CARVALHO, José Paes de Carvalho. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. José
Paes de Carvalho, governador do Estado, em 15 de Abril de 1898, apresentando a proposta da receita e
despeza para o exercicio de 1898-1899. Belém: Typ. do “Diario Official”, 1898, p. 3-4.
519
180
Deu-se o que a previsão do homem eminente que escreveu estas palavras
descortinára e talvez mais cedo do que elle proprio suppuzesse. [...] os lucros foram
em igual proporção substituidos por prejuisos. Sem capitaes para resistir, sem
estabelecimentos bancarios que no desastre lhe servissem de amparo, como na
prosperidade não souberam exercer a sua função de freios, o comercio soffreu
fatalmente e de um modo extraordinario e continuará a soffrer si uma baixa rasoavel
de taxa não lhe vier suavisar os prejuizos. [...] Era certo, pois, que a crise que vamos
atravessando tinha fatalmente de dar-se; infelizmente, accumularam-se muitas
causas para tornal-a ainda mais seria e tremenda. A baixa do cambio, a diminuição
da producção, a queda do preço do proprio producto, base de todos os negocios, nos
mercados consumidores, e por fim a maneira brusca por que foram abalados todos
os negocios com o Estado visinho, de modo a tornar incerta a realisação de enormes
capitaes que a nossa praça possue espalhados por todos os seus rios [...]. Para termos
uma idéa do que foram para o Pará os terríveis mezes que vamos transcorrendo,
basta dizer: foram abertas em juiso no período de 1 de julho de 1900 a 30 de junho
de 1901, 66 falencias; trinta delas representam um activo de 34.007:863$919, e um
passivo de 32.505:414$606521.
Fica explicitada nas falas dos governadores a crise nas finanças do Pará, o que
justificou, para as autoridades, uma política de austeridade que alcançaria diversos setores da
administração pública. Em março de 1901, ao chegar a Belém com o propósito de receber os
incentivos financeiros do governador do Pará, como fazia anualmente desde 1897, Frei Gil de
Vilanova tomou conhecimento de que Montenegro não poderia prosseguir com o auxílio à
obra dominicana, apesar de apoiar a causa de catequese entre os índios. O subsídio de
cinquenta contos recebido em 1900 e prometido para o ano seguinte não havia sido reduzido,
mas suspenso totalmente522.
Frei Gil, cuja missão consistia, principalmente, “em gerir os negócios do exterior, em
administrar o património, em obter para os seres confiados á sua solicitude os meios de
vida”523, precisou, segundo Gallais, buscar novos meios para a manutenção do projeto
dominicano. Certamente, a ausência dos recursos estaduais foi duramente sentida por ele, que
contava com o valor para saldar as dívidas da Missão. Vilanova, ainda em Belém, tentou
outras formas de arrecadação, apelando principalmente para a caridade privada, por exemplo:
realização de pregações e peditórios para as obras de catequese em diversas igrejas da capital;
festas de caridade; loteria; concerto para doações de particulares, com o envolvimento de
Octavie Coudreau; doação de dinheiro pelo bispo do Pará, Dom Antônio Brandão;
engajamento com os comerciantes locais para a obtenção de “objetos de pouco valor, mas
521
MONTENEGRO, Augusto. Mensagem ao congresso legislativo do Pará em 10 de setembro de 1901 pelo
Dr. Augusto Montenegro governador do estado do Pará. Belém: Imprensa Oficial, 1901, p.4-5.
522
GALLAIS, 1942.
523
Ibid., p. 247.
181
preciosos para os Índios, a quem eram destinados”; e, por fim, o estabelecimento de uma
instituição permanente para angariar recursos524.
De acordo com Gallais, os donativos privados conseguiram suprir parcialmente as
necessidades da Missão, chegando em 1902 ao valor de seis mil francos. Todavia, Vilanova
almejava não mais depender do auxílio privado e alcançar a autonomia da missão religiosa. Uma
das formas escolhidas para arrecadar recursos foi a venda de objetos fabricados pelos próprios
índios Irã Ãmrãnh. Gallais assim relatou a decisão do frade dominicano:
Para colocar no prato das receitas alguma coisa que contrabalançasse as despesas, o
Padre Vilanova começou recorrendo à própria indústria índia. Fez com que os
selvagens fabricassem objetos de uso corrente entre eles: armas, arcos, flechas,
lanças, cacetes; ornamentos, braceletes de plumas, objetos de fantasia, etc. Quando
de sua viagem ao Pará, em 1902, levou consigo um carregamento desses produtos de
arte selvagem. A municipalidade comprou-lhe tudo por 2.500 francos. Isso não
passava, porém, de um expediente [...]525.
No trecho acima, o autor foi bem claro ao explicar que a fabricação de objetos para a
venda foi um dos meios utilizados para a manutenção da missão de Conceição. O que o texto
não manifesta é a razão da escolha dessa modalidade para angariar fundos ao invés de outras,
como a venda de objetos da fé católica ou de livros da lavra dos dominicanos. Gallais não
apresenta os fundamentos que embasaram a ideia de que os artefatos Irã Ãmrãnh poderiam
atrair o interesse da sociedade belenense e nem os procedimentos adotados para a feitura dos
artefatos e montagem da coleção. Essas são as questões sobre as quais nos debruçaremos a
partir de agora.
Para Chaves, o plano de Frei Gil não era inovador, pois desde o século XV os
europeus levavam do Novo Mundo objetos produzidos pelos ameríndios para serem
depositados em gabinetes e museus, com a finalidade de “agradar reis ou grandes
personalidades onde eram vistos mais pelo valor de exotismo e pela raridade ou pelo valor dos
materiais constituintes do que pelas suas qualidades estéticas”526. De fato, durante todo o
contato entre os ameríndios e os europeus a prática colecionista esteve presente, apropriandose e ressignificando os artefatos do Outro, compreendidos como testemunhas da vida cultural
alheia, ou como a materialização dos aspectos bélicos, selvagens ou idólatras das populações
locais527. Torrence e Byrne explicam o desenvolvimento do colecionismo e sua relação, no
século XIX, com os museus científicos e com coleções privadas:
524
GALLAIS, 1942, p. 230.
Ibid., p. 231.
526
CHAVES, 2012, p. 64.
527
GIL, Laura Pérez. Colecionismo, colonialismo e museus: Ensaio sobre duas exposições. Campos-Revista de
Antropologia, v. 16, n. 2, p.113-127, 2017.
525
182
Uma consequência da expansão comercial e colonial ocidental em terras
desconhecidas para além da Europa, foi o desenvolvimento de um mercado para
objetos etnográficos ou "curiosos", como eram comumente rotulados. A partir dos
séculos XV e XVI, as antiguidades clássicas eram uma mercadoria desejável para a
coleção e exibição, especialmente entre as elites ricas da Europa, mas no final do
século XIX, literalmente dezenas de milhares de objetos obtidos de produtores
indígenas (frequentemente descritos como “tribais”) de artefatos nas Américas,
África, Ásia, Austrália e região do Pacífico eram vendidos a museus e
colecionadores privados frequentemente através dos catálogos produzidos e
distribuídos por leilões e casas de venda528.
Como assinalam os autores acima, houve no final do século XIX um consumo maior
de objetos indígenas por membros das elites locais, colecionadores privados e museus
científicos. Como consequência, a demanda pela coleta etnográfica tornou-se também
crescente em todo o mundo529. Além disso, não podemos olvidar que, no mesmo período e até
mesmo durante as primeiras décadas do século XX, uma lógica salvacionista somou-se ao
desejo colecionista, uma nítida resposta ao temor da desaparição dos povos indígenas com o
avanço da “civilização”530. No Brasil, as instituições museológicas, como o Museu Goeldi,
eram os principais locais de destinação de coleções etnográficas, seja através de eventuais
compras ou de doações, para serem classificadas e salvaguardadas.
Os missionários, de acordo com Harju531, “desempenharam claramente um papel
central como produtores e mediadores do material etnográfico”532, pois tinham maiores
oportunidades de adquirir artefatos devido à sua convivência diária e integração maior com as
aldeias indígenas, condição que os coletores profissionais e viajantes não dispunham
528
TORRENCE, Robin; CLARKE, Anne. “Suitable for Decoration of Halls and Billiard Rooms”: Finding
Indigenous
Agency
in
Historic
Auction
and
Sale
Catalogues.
In:
BYRNE, S;
CLARKE, A; HARRISSON, R; TORRENCE, R. (orgs). Unpacking the Collection. Networks of Material and
Social Agency in the Museum. New York, Heidelberg, Dordrecht & London: Springer, p. 29-30, 2011. No
original: “One consequence of western commercial and colonial expansion into the uncharted lands beyond
Europe was the development of a market for ethnographic objects or ‘curios’ as they were commonly labelled.
Beginning in the fifteenth and sixteenth centuries, classical antiquities were a desirable commodity for collection
and display, especially amongst the wealthy elites of Europe, but by the end of the nineteenth century literally
tens of thousands of objects obtained from indigenous (frequently described as ‘tribal’) artefact producers in the
Americas, Africa, Asia, Australia and the Pacific region were sold to museums and private collectors often
through the catalogues produced and distributed by auction and sale houses”.
529
O'HANLON, Michael; WELSCH, Robert L. (Ed.). Hunting the gatherers: ethnographic collectors, agents,
and agency in Melanesia 1870s-1930s. Berghahn Books, 2001.
530
RIBEIRO, Berta; VELTHEM, Lucia H. Van. Coleções Etnográficas: documentos materiais para a história
indígena e do indigenismo. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo:
FAPESP, 1992. p. 103-112.
531
A autora, no artigo que investiga a formação da coleção Karl Emil Liljeblad da Cultura Ovambo do norte da
Namíbia, refere-se a missionários protestantes, mas entendemos que os mesmos papéis foram exercidos pelos
missionários católicos no final do XIX e início do XX em outras partes do mundo em relação à formação de
coleções etnográficas, com suas devidas assimetrias de poder e peculiaridades.
532
HARJU, Kaisa. Mission, Relationships and Agendas Embodied in Objects: Formation of the Karl Emil
Liljeblad Collection of Ovamboland (1900–1932). Nordic Journal of African Studies, v. 27, n. 1, 2018, p. 8.
183
normalmente em suas breves passagens pelas comunidades533. Na mesma perspectiva,
Amoroso afirma que os missionários tiveram particular importância na coleta de artefatos
indígenas no século XIX e que as missões atuavam como fornecedoras nacionais de material
para colecionadores, museus e exposições534.
Como já demonstramos em outros capítulos, as coleções etnográficas possuem as
marcas profundas dos contextos históricos e sociais nos quais foram constituídas. É
improvável que Frei Gil de Vilanova, ao decidir formar coleções para a venda, estivesse
alienado do interesse de museus e colecionadores por artefatos ameríndios ou mesmo de um
mercado mundial por esse tipo de objeto. Como exemplo, podemos tomar a conferência feita
por Frei Gil na Associação Auxiliadora da Catechese, em 1902, com a finalidade de angariar
recursos para a catequese. Na sua fala, Vilanova conclamou a beneficência da população
local, apelando dramaticamente para o possível destino dos índios: “A caridade, senhores, vos
oferece hoje meus nobres indios – tomae-os debaixo de vossa proteção, afagae-os com vosso
amor para que não venham a perecer”535.
Vilanova não escolheu outras formas de angariar fundos, como escrever livros ou
vender objetos sagrados, por ter ciência do valor e dos sentidos que a sociedade e os museus
científicos da época atribuíam aos artefatos indígenas, incluindo os produzidos pelos grupos
Mebêngôkre, fortemente ameaçados pelo avanço da fronteira agrícola.536 Ele certamente sabia
da existência de um mercado consumidor desses artefatos e tinha consciência do seu lugar
privilegiado de intermediário entre colecionadores e a comunidade produtora.
No presente trabalho adotamos a perspectiva apresentada por Torrence e Clark,
segundo a qual as coleções etnográficas decorrem da “interação social construída através do
intercâmbio transcultural”537. Nesse quadro, a formação da coleção Frei Gil de Vilanova não
foi um simples e casual evento, como pode parecer pela narrativa de Gallais; longe disso, ela
consiste em um produto do contexto histórico, dos interesses, das ideologias e ações de
diferentes sujeitos em contato. As concepções acerca de colecionismo etnográfico no início do
533
HARJU, 2018; O’HANLON, 2001.
AMOROSO, M. Crânios e cachaça: coleções ameríndias e exposições no século XIX. Revista de História, n.
154, p. 119-150, 2006.
535
Catechese dos indios. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de março de 1902, p. 3. Acervo da Fundação da
Biblioteca Nacional – Brasil.
536
CHAVES, 2012.
537
TORRENCE, Robin; CLARKE, Anne. Excavating ethnographic collections: negotiations and ross-cultural
exchange in Papua New Guinea. In: World Archaeology , 48(2), 2016, p. 182 apud Harju, Op. Cit., 2018, p.6.
No original: “Ethnographic collections resulted from social interaction constructed through cross-cultural
exchange”. Outros estudos adotam perspectiva semelhante, como os de BYRNE, Sarah. Trials and Traces: A. C.
Haddon’s Agency as Museum Curator. In: BYRNE et al., 2011, p.307; e KEURS, Pieter ter. Agency, Prestige
and Politics: Dutch Collecting Abroad and Local Responses. In: BYRNE et al., 2011.
534
184
século XX, a política assimilacionista do regime republicano brasileiro, a busca obstinada dos
missionários por recursos para as atividades de catequese, o desenvolvimento dos museus e as
decisões, motivações e cultura dos Irã Ãmrãnh construíram a coleção.
Figura 44 – Fotografia da Seção de Etnografia do Museu Goeldi, com destaque às flechas e
bodurnas dos Irã Ãmrãnh. Fonte: Fotógrafo e data não identificados. Museu Paraense Emílio
Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção Fotográfica.
Conforme as nossas análises dos inventários de 1921 e 1939538, já citados nessa
dissertação, a coleção Frei Gil de Vilanova de 1902 possui 669 itens539. Os 441 objetos
bélicos – tais como flechas, lanças, cassetetes, arcos – compõem a maior parte da coleção e o
restante consiste em artefatos de uso rotineiro e ritual. Para Chaves, trata-se de uma coleção
temática em razão do predomínio de armas em seu arranjo, Além disso, de acordo com esse
autor, artigos de uso masculino preponderam na coleção, compondo mais da metade dos
artefatos. Alguns exemplares de bodurnas e flechas da citada coleção, podem ser observados
538
Em razão da pandemia de Covid-19, o Arquivo Guilherme de La Penha e a Reserva Técnica Curt
Nimuendajú foram fechados para consultas externas e assim permaneceram até a data da defesa dessa
dissertação. Por esse motivo, não pudemos analisar com mais atenção os documentos referentes à coleção
etnográfica Frei Gil de Vilanova, como o livro tombo de 1955 – que chegou a ser manuseado para a preparação
dos capítulos anteriores.
539
O número diverge das 685 peças propostas por Chaves no estudo da mesma coleção em 2012. Por não termos
acesso as listagens e relatórios produzidos pelo citado autor, não é possível compreender o motivo da
discrepância.
185
na Figura 44 da Seção Etnografia do Museu Goeldi em data não identificada. O domínio de
objetos bélicos e masculinos é intrigante, assim como a ausência de tipos específicos na
coleção, e pode sinalizar a agência indígena na seleção e rejeição dos objetos que os
representavam.
Ao adentrarmos no estudo mais detalhado da feitura dos objetos e das ideias, dos
contextos e das ideologias enredadas na relação entre o missionário e a comunidade
produtora, mais restrita se torna a variedade de fontes à nossa disposição. Frei Gil de
Vilanova, apesar de fazer uma oportuna leitura do colecionismo vigente, não era um coletor
profissional de objetos indígenas, tão pouco produziu relato ou material analítico da prática
etnográfica. Da mesma forma, os Irã Ãmrãnh não legaram para a posteridade alguma
narrativa escrita. Portanto, os objetos e a estrutura da coleção são as únicas fontes históricas
desse processo que chegaram até o presente. É por meio deles, considerando toda a limitação
desse tipo de documento, e apoiados na bibliografia pertinente, que analisaremos algumas
hipóteses acerca da predominância de artefatos bélicos e masculinos na coleção, assim como
da ausência de tipos específicos de artefato.
Antes de analisar a coleção, não se pode perder de vista que ela resultou do contato e
das transações sociais entre a comunidade indígena e o missionário no espaço da missão de
catequese – e que sua concepção estava condicionada pela venda na capital paraense. Para os
produtores, certamente os objetos reproduzidos na coleção tinham um significado e a escolha
não foi aleatória. A coleção, portanto, enquanto documento e monumento, resultou da ação da
comunidade produtora para resguardar e impor ao futuro, de forma consciente ou não, uma
imagem de si própria.
Frei Gil acompanhou a preparação e a montagem da coleção, logo, não podemos
descartar o olhar e a intenção do missionário nesse processo. Provavelmente, os objetos
apreciados pelo coletor tinham características que agradavam ao seu gosto estético e sua
concepção religiosa, e que impactariam os possíveis compradores. A esse respeito, Chaves
levantou algumas hipóteses:
Frei Gil não poderia apenas acreditar na extinção dos Irã Ãmrãnh e sim crer na sua
redenção e evolução espiritual. Talvez Vilanova pretendesse com isso fazer uso da
imagem “selvagem” do índio, tirando proveito do exotismo e perplexidade que tais
objetos causavam. Assim em grande parte, o valor atribuído a esses objetos, por frei
Gil, era a sua capacidade de testemunhar a respeito dos estágios primitivos do
homem, e assim confirmar o triunfo e a superioridade da “Civilização”. Talvez
ainda, Frei Gil de Vilanova pretendesse mostrar o valor de seu trabalho, enfocando o
quanto o índio poderia ser selvagem sem a devida catequese e sem os louros da
civilização. Ao fazer uso desse estereótipo, mostrando para a cidade de Belém os
“objetos primitivos” de seres igualmente primitivo, o frei ressaltava a importância de
se investir na catequização às autoridades da província, assim como, da população
186
“civilizada da cidade” ao mostrar o estágio primevo da evolução humana e cada vez
mais obter apoio para as suas causas540.
No excerto acima, o autor ressalta o papel de Frei Gil na formação da coleção,
pensando a sua montagem a partir da imagem dos Irã Ãmrãnh como seres pertencentes a um
estágio primário da evolução humana. Compreendendo o objeto como forma de apreensão de
ideologias que desvelam aspectos da coleta e do contato, Velthem compreendeu as coleções
missionárias como formas de representar a realidade social, geográfica e cultural vivenciada
pelos missionários, mas também “espelhos que refletem uma desesperada busca por alteração
ou mesmo por aniquilamento cultural dos povos indígenas, entre os quais obram os
catequistas”541. Nessa perspectiva, as peças que representavam aspectos rituais da sociedade
indígena não podiam ser aceitas pelos padres. Elas teriam, certamente, menores possibilidades
de integrar uma coleção. Por outro lado, os artefatos de impacto visual artístico e que
representassem uma suposta natureza ou o modo de vida “primitivo”, “selvagem” e “exótico”
dos povos indígenas agradariam mais facilmente os possíveis consumidores – e naturalmente
atenderiam aos desejos de missionários.
Evidentemente, os Irã Ãmrãnh tinham seus próprios interesses para acolher as
demandas de Frei Gil pela criação e venda de objetos e também para empregar estratégias na
sua fabricação e customização, de maneira a atrair a atenção para certos aspectos de sua
cultura ou agradar aos gostos dos “civilizados”. Seguramente, os indígenas eram
conhecedores das intenções de Vilanova, da necessidade da venda da coleção para a
manutenção da missão, das novas perspectivas de estabelecer relações com outras
comunidades exógenas e, por fim, da qualidade da coleção como representação da identidade
do grupo, como documento/monumento. Acerca desse último ponto, podemos explicar a
presença volumosa de armas como um exemplo da expressão de autoimagem, pois os
artefatos bélicos – tipologia de peças das quais os Mebêngôkre já eram reconhecidos como
especialistas – possuem uma grande importância na cultura desse grupo, como “representação
física do ethos de guerreiro” 542. Os artefatos bélicos são comumente produzidos por homens
para uso predominantemente masculino543.
540
CHAVES, 2012, p. 67.
VELTHEM, Lucia Hussak van. O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises.
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 7, n. 1, jan.-abr. 2012, p. 53.
542
SHEPARD JR., Gleen H.; GARCÉS, Claudia Leonor Lópes; ROBERTI, Pascale de; CHAVES, Carlos
Eduardo. Objeto, sujeito, inimigo, vovô: um estudo em etnomuseologia comparada entre os MebêngôkreKayapó e Baniwa do Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. V. 12, 2017, p. 773.
543
Ibid.; Chaves, 2012.
541
187
Figura 45 – Irã Ãmrãnh posam para o retrato com suas flechas e bodurnas, representações do
ethos guerreiro. Fonte: PARÁ, 1908.
Na figura 45 observamos cinco Irã Ãmrãnh segurando suas flechas e bodurnas e
encarando a câmera e desempenhando sua valentia e braveza. A fotografia é uma nítida
representação do anteriormente citado “ethos guerreiro”, da autoimagem que o povo pretendia
apresentar aos “civilizados”.
Dessa forma, em consonância com a tese de Chaves, a coleção etnográfica Irã Ãmrãnh
obtida pelo Museu Goeldi em 1902 é fruto também da ação do grupo produtor. A citada
coleção representou para o grupo uma forma de se apresentar ao mundo, nas palavras de
Chaves, “como só um Mebêngôkre sabe fazer – através de sua performance de valentia”544.
Por meio de sua indústria, os Irã Ãmrãnh iriam colaborar ou reerguer a obra do frei
dominicano, mas sem se afastar de suas próprias interpretações e autoimagem de guerreiros e
valentes.
3.4 – A aquisição da coleção e catalogação pelo Museu Goeldi
Em 15 de março de 1902, o Jornal do Brasil publicou uma matéria transcrita da
Província do Pará, do mesmo mês, a respeito de um evento em favor da catequese indígena
no Pará, tida pelo autor desconhecido como uma “grande obra de caridade, patriotismo e de
humanidade”545. A aludida cerimônia, realizada no palácio episcopal da capital paraense, foi
544
Chaves, 2012, p.73.
Catechese dos indios. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de março de 1902, p. 3. Acervo da Fundação da
Biblioteca Nacional – Brasil.
545
188
organizada pela Associação Auxiliadora da Catequese – organização sobre a qual temos
poucas informações – para tratar da manutenção da “apostólica obra de civilização e
patriotismo” de Frei Gil de Vilanova com os Kayapó no rio Araguaia.
O próprio Vilanova estava presente no evento. Após a abertura da sessão, feita pelo
presidente da associação, monsenhor Muniz, o frade dominicano leu um discurso em que
pontuou as duas “empresas que solicitaram os esforços dos missionários diretores da colônia”
e as dificuldades vigentes do trabalho apostólico no rio Araguaia. O primeiro empreendimento
foi a criação e o desenvolvimento da “colonização christã” daquelas terras por migrantes
brasileiros, que já em princípios de 1901 somavam quase duas mil pessoas. O segundo era
“uma outra obra, mais cara ainda ao coração dos missionários: a da catequese” dos índios
Mebêngôkre-Kayapó546.
De acordo com Frei Gil, a catequese, no mesmo ano, chegou a receber cinquenta
crianças em seu pequeno colégio e 400 índios adultos, aldeados a poucos quilômetros do
povoado, que se “transformavam visivelmente, pelo trabalho e por sua convivência pacífica
com os christãos”. Ademais, o trabalho apostólico planejava atrair outras comunidades
Mebêngôkre nos rios Pau D’Arco, Xingu e Fresco para irem morar nas cercanias de
Conceição, além da construção de um novo estabelecimento para receber as meninas e uma
igreja. Todavia, após a estadia em Belém, em fevereiro de 1901, os planos de expandir a
catequese foram abandonados e alguns dos gastos da missão tiveram de ser suprimidos, como
as escolas, por falta de pagamento aos professores.
Na exposição oral, Vilanova não explicitou o motivo da renúncia do projeto de
expandir a missão – a negativa de Augusto Montenegro em fornecer novos subsídios –,
somente elogiou o movimento de simpatia do povo pela “causa dos pobres indios” e
convocou os presentes para novas atividades: “a caridade, que vos inspirou o anno passado
tão admirável enthusiasmo, vos animará ainda a tentar os últimos esforços para salvar minha
catechese”.
Havia, de fato, um interesse geral da elite paraense, do clero e dos governantes pela
catequese dos índios, a contar pela presença de pessoas renomadas no salão episcopal e pelo
apoio que Frei Gil conseguiu. A reunião resultou na formação de diversas comissões para
apelar ao auxílio dos poderes públicos e para a propaganda da catequese na imprensa e nas
tribunas, e também na doação de 219$000 em favor dos índios. Além disso, garantiu-se o
apoio político e midiático de Antônio Lemos, intendente municipal e proprietário do jornal A
546
Catechese dos indios. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de março de 1902, p. 3. Acervo da Fundação da
Biblioteca Nacional – Brasil.
189
Província do Pará, reconhecido pelas práticas assistencialistas na administração pública,
como fez em 1903 ao repassar cinco contos de réis à citada associação547.
O último ponto que gostaríamos de mencionar da matéria acerca da reunião da
Associação Auxiliadora da Catequese é a descrição da ornamentação das paredes durante o
evento. Os objetos feitos pelos indígenas Irã Ãmrãnh foram espalhados pela sala e
despertaram o interesse de Emílio Goeldi e Jacques Huber, do Museu Goeldi, presentes à
reunião. A referida matéria assim os descreveu:
Devemos observar que as paredes do salão estavam completamente ornadas por
objetos de diversíssimas e caprichosas formas – armas e utensílios, de que se servem
os cayapos nos seus combates e festas – os quaes foram por frei Gil oferecidos á
Associação Auxiliadora da Catechese. Tão numerosa, rica e importante é a dita
coleção, que o sábio dr. Goeldi e seu companheiro dr. Hubert (sic), que estavam
presentes não se cançaram de admiral-a e encarecel-a.
Nesse trecho, fica evidente que os objetos indígenas expostos no salão foram
“oferecidos” à citada associação por Frei Gil de Vilanova, certamente uma maneira de dizer
que estavam à venda. É possível que esse tenha sido o primeiro contato dos cientistas do
Museu Goeldi com a cultura material Mebêngôkre-Kayapó e o ponto de partida para o
processo de aquisição da coleção. Segundo Chaves, sem citar as fontes, “os dois cientistas
‘encantaram-se’ com as peças indígenas expostas [...], e com o patrocínio do Intendente de
Belém, Antônio Lemos, adquiriram os objetos para o acervo do Museu”. Na referida matéria
de jornal não há menção de que Lemos tenha adquirido a coleção com verba pública ou
privada para depositá-la no museu.
Lemos estava na reunião e, pela documentação, parece ter sido um entusiasta das
obras de catequese no Pará, mas não encontramos referências a respeito de uma possível
aquisição da coleção de Frei Gil. Emílio Goeldi, no seu relatório referente ao ano de 1901,
comentou a aquisição da coleção de Vilanova:
[...] resolveu o Governo estadoal adquirir para o Museu, pela quantia de R.s
2:500$000 a importante collecção de artefactos dos indios Cayapós do rio Araguaya,
reunida e trazida pelo Rev. frei Gil de Villanova para a “Associação de Catechese e
Civilisação dos Indios”, rica sobretudo em objetos bellicos (arcos, flechas, lanças,
maças, etc.) e trabalhos de pennas548.
547
SARGES, Maria de Nazaré dos Santos. Memórias do "velho" intendente: Antonio Lemos, 1869-1973.
1998. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.
548
GOELDI, Emílio Augusto. Relatorio sobre o Museu, relativo aao anno de 1901 apresentado ao Exm. Sr. Dr.
Secretario de Estado da Justiça, interior e instrucção publica pelo Dr. Emilio Augusto Goeldi, director do mesmo
Museu. Boletim do Museu Goeldi (Museu Paraense) de Historia Natural e Ethnographia, Belém, 4(1/4),
1906, p.18.
190
Goeldi confirmou, portanto, que Frei Gil montou a coleção para a Associação
Auxiliadora da Catequese e esclareceu que a compra foi feita pela administração estadual,
cujo representante era Augusto Montenegro – o mesmo governante que, um ano antes, negou
o auxílio ao missionário, mas que era partidário de Lemos, um declarado entusiasta da obra de
Vilanova no Araguaia e que pode ter influenciado na aquisição.
Chama à atenção a disparidade de datas entre o ano a que se refere o relatório do
diretor do Museu Goeldi (1901) e o do evento realizado no salão episcopal (fevereiro de
1902). A última data é a mais aceita entre os estudiosos da coleção etnográfica do Museu
Goeldi549 em razão das matérias publicadas em A Província do Pará e no Jornal do Brasil,
mas o fato de Goeldi ter anunciado a aquisição da coleção no seu relatório de 1901, entregue
ao governo do Pará em janeiro de 1902, como de praxe, é um forte indício de que a coleção já
estava em negociação antes do evento promovido pela Associação Auxiliadora da Catequese.
É possível que ela estivesse em Belém há mais tempo e que já tivesse sido inspecionada por
Goeldi, talvez ainda em 1901. Ao antecipar o anúncio da aquisição, Goeldi talvez quisesse
deixar claro para possíveis interessados que os objetos a serem exibidos na Associação
Auxiliadora da Catequese já tinham dono e seriam depositados no museu local. Portanto, se a
data da aquisição é reconhecida como sendo o ano de 1902, é certo que esse processo teve
início bem antes.
Figura 46 – Indígenas Irã Ãmrãnh em visita ao Museu Goeldi. Fonte: Fotógrafo e data não
identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção
Fotográfica, Negativo MPEG00486.
549
SHEPARD et al, 2012; Chaves, Op. Cit., 2012; VELTHEM, Lucia Hussak van et al. A coleção etnográfica
do Museu Goeldi: memória e conservação. MUSAS, Brasília, v. 1, n. 1, p. 121-134, 2004..
191
Figura 47 - Grupo de Irã Ãmrãnh no Museu Goeldi. Fonte: Fotógrafo e data não
identificados. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Coleção
Fotográfica, Negativo MPEG00503.
Ainda em 1902, um grupo de indígenas Irã Ãmrãnh visitou o Museu Goeldi
acompanhado de Frei Gil de Vilanova.550 A visita foi registrada por meio de fotografias feitas
no parque zoobotânico, com alguns indígenas trajando roupas dos “civilizados”, outros
descalços e com o peito nu, como podemos observar nas Figuras 46 e 47. Conforme López e
Karipuna551, a partir da visita desse grupo, o Museu Goeldi firmou relações com diversos
povos indígenas – principalmente Mebêngôkre-Kayapó, Tikuna, Ka’apor, Galibi Kalinã,
Wayana-Aparai, Krenak, Gavião-Parkatejá e Baniwa – “por meio da tarefa de adquirir,
organizar e guardar coleções de objetos indígenas”, atividade que estava na agenda da
instituição desde sua fundação e que prosseguiu ao longo dos anos por intermédio “das
pesquisas etnológicas e do colecionismo antropológico efetuado pelos pesquisadores da
instituição, dentre os quais destacamos o próprio Curt Nimuendajú, bem como pesquisadores
de outras instituições brasileiras e do exterior”.
Apesar da descrição dos objetos musealizados, como o predomínio de armas e a
presença de plumária, encontrada nas fontes históricas citadas anteriormente, o número exato
550
CHAVES, 2012.
LÓPEZ, Claudia Lopez Garcéz; KARIPUNA, Suzana Primo dos Santos. “Curadorias do invisível”:
conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi. Museologia &
Interdisciplinaridade,
v.
10,
n.
2021,
p.
103.
Disponível
em:
https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/35492. Acesso em: 14 jun. 2021.
551
192
de objetos só foi registrado no Catálogo das Coleções Etnográficas do Museu Goeldi de
1921. Nessa lista, Nimuendajú arrolou 647 artefatos, todos atribuídos aos “Cayapó”. No
segundo inventário, a Relação do Material Etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi,
elaborado entre 1939 e 1940, a Coleção Frei Gil de Vilanova aparece com 665 artefatos, todos
recebendo novos números de registro. Nos dois catálogos, no campo relativo “ao povo
indígena” não há menção à autodenominação do grupo.
Ao confrontar os dois catálogos, observamos no segundo um acréscimo de vinte e uma
peças que não constavam na lista anterior e também a ausência de quatro lanças de ponta de
osso, presentes no inventário de 1921. Dessa forma, chegamos ao total de 669 artefatos
originalmente pertencentes à referida coleção. Mais da metade, quase 67%, é formada por
utensílios bélicos e acessórios, tais como lanças, arcos, flechas, bordunas e bainhas. O restante
é formado por diademas, artefatos de plumagem, buzinas, tipoias, cintos de buriti e outros
enfeites de material diverso.
É importante salientar que, por mais diversa e numerosa uma coleção etnográfica possa
parecer, ela não pode ser entendida como completa. Como aponta Cury:
[...] A cultura não se constitui em algo estático, parado no tempo, mas configura um
processo e, como tal, é dinâmico, sujeita a transformação. Assim, as coleções
refletem momentos ou períodos históricos-culturais determinados, condicionados
que estão a presença de um agente coletor e as particulares socioculturais dos
contextos de origem552.
Por mais que se pretenda abordar a totalidade de uma cultura, ou explorar ao máximo
um aspecto de um povo, como o guerreiro dos Mebêngôkre-Kayapó, uma coleção representa
apenas um momento da cultura desse povo, refletindo o contexto histórico e suas relações
sociais, muitas vezes assimétricas. Cabe ao pesquisador, por meio do estudo histórico do
processo de musealização, tornar visíveis as peculiaridades, os sentidos, as interações sociais,
a agência das comunidades produtoras, as redes de circulação e os contextos sociais e
políticos
552
que
construíram
a
trajetória
da
coleção.
CURY, Marília Xavier. “A arte de Comunicar”. In: DORTA, Sonia Ferraro & CURY, Maria Xavier. A
plumária indígena brasileira no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. São
Paulo: EDUSP, MAE/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p.26-27.
193
Considerações finais
Quatro coleções etnográficas formadas entre o final do século XIX e o início do século
XX por diferentes colecionadores e comunidades produtoras vivenciando distintos contextos
sociais e políticos. Elas possuem em comum os fatos de estarem salvaguardadas na Reserva
Técnica Curt Nimuendajú do MPEG, de participarem – e de serem resultados – de um
contexto colecionista global e de adentrarem o museu durante a gestão de Emílio Goeldi
(1894-1907), período de reorganização da instituição e de suas coleções. Em cada capítulo
desta dissertação buscou-se estudar o processo de musealização de cada uma das coleções,
compreendendo-as a partir de suas próprias particularidades, razões práticas, contextos e
significados para coletores e povos indígenas.
Das coleções estudadas, as primeiras a chegarem ao Museu Paraense foram as
denominadas Lauro Sodré, de 1897, e Henri Coudreau, de 1898. Ambas são compostas por
artefatos recolhidos por Coudreau nos rios Xingu e Tapajós, somando 46 peças dos povos
Yudjá/Juruna, Tapayuna (Kajkwakratxi) e Parintintin (Kagwahiva).
Estudar a formação dessas coleções nos permitiu constatar a influência das tendências
profissionais e das experiências anteriores do coletor nas práticas de coleta, assim como do
contexto social e político em que atuava, sua participação em uma rede que envolvia diversos
atores e, por fim, a agência indígena na seleção e rejeição dos objetos.
Coudreau foi um explorador, não um etnógrafo profissional. Seu trabalho, portanto,
tinha as peculiaridades de sua formação, de seu amadorismo como coletor e das experiências
pretéritas como colecionador de artefatos indígenas para o Musée d’Ethnographie du
Trocadéro. As características do trabalho etnográfico do viajante francês podem ser resumidas
na coleta não sistemática de objetos, na obtenção das peças por meio de intermediários, no
desapreço pela história, pela fabricação e pelo uso dos artefatos pelos nativos, nos poucos
registros fotográficos das comunidades criadoras e das suas coleções, na descrição sumária do
contexto da coleta e dos povos que conheceu e, por último, na preferência pelo exotismo.
Além da ação do coletor, podem-se destacar outras forças que possibilitaram a
formação e musealização da coleção, como as demandas de Emílio Goeldi pela ampliação da
coleção etnográfica do Museu Paraense; a obediência do explorador francês a Lauro Sodré; o
contexto museológico global no final do XIX; as relações do viajante com as redes locais,
formadas por proprietários de terra, seringalistas, comerciantes, colonos, indígenas e
missionários; e ainda as redes de apropriação e de circulação de objetos indígenas.
194
Henri Coudreau não entrou em contato diretamente com os três povos indígenas
produtores dos artefatos. Ele os obteve através das citadas redes de circulação intercultural
que existiam no Tapajós e da apropriação indevida no Xingu. A partir da análise da
documentação, dos objetos e dos estudos de Keurs553 e Thomas554, levantou-se a hipótese de
que houve agência indígena nesse contexto através da seleção prévia dos objetos que
circulariam nas redes utilizadas pelo viajante e dos que não circulariam por estarem enredados
em complexos sistemas culturais e por serem mais protegidos ou cuidados.
Outra coleção estudada foi a do alemão Theodor Koch-Grünberg, formada por objetos
provenientes do alto rio Negro e afluentes, coletados em 1905. Koch-Grünberg fez parte da
segunda geração de americanistas alemães ligados Museum für Völkerkunde, que
expedicionaram pela Amazônia a partir do século XIX. Etnólogo de formação e experiente na
coleta etnográfica, ele custeou suas pesquisas acerca das sociedades ameríndias a partir das
coleções etnográficas vendidas para o museu berlinense, que tinha grande interesse por esse
tipo de “cultura materializada”.
Koch-Grünberg foi encarregado pelo museu berlinense de formar coleções, coletar
material linguístico e dados etnográficos das populações indígenas durante uma expedição à
Amazônia brasileira. Para obter êxito na viagem, o etnólogo procurou integrar-se, a partir do
contato com o influente comerciante Dom Germano, uma rede de colaboração que se estendia
por todo o noroeste amazônico e envolvia seringalistas, autoridades públicas, políticos,
comerciantes e lideranças indígenas. Essa rede compartilhava mercadorias, influência política,
recursos, trabalhadores e informações. Durante dois anos viajando pelo rio Negro e seus
afluentes, Koch coletou mais de 1.800 objetos, dos quais 510 foram destinados ao Museu
Goeldi a título de “duplicatas”.
A prática etnográfica de Koch-Grünberg era distinta da de Coudreau, bem como suas
ideias e conduta com os povos indígenas. As razões disso residiam nas experiências com os
próprios nativos, no pensamento burguês alemão do final do XIX e início do século XX e na
trajetória acadêmica de Koch. Permanecendo muitas vezes longos períodos nas aldeias, o
etnólogo alemão conseguiu não só fazer coleções etnográficas volumosas e diversas, como
também documentar hábitos, rituais, técnicas, ideias, cosmovisões e vocabulários das
comunidades visitas, seguindo a premissa de tornar acessível aos estudos museológicos a
553
THOMAS, Nicholas. Entangled objects: exchange, material culture and colonialism in the Pacific.
Cambridge: Harvard University Press, 1991.
554
KEURS, Pieter ter. Agency, Prestige and Politics: Dutch Collecting Abroad and Local Responses. In: BYRNE
et al., 2011.
195
maior quantidade de informações sobre cada povo visitado – inclusive, registrando as relações
sociais e negociações travadas entre o coletor e os produtores.
As mercadorias, a conduta pessoal com os nativos e a adaptação ao meio
desempenharam importante papel na associação do etnólogo com os povos indígenas e na
obtenção da cultura material desses. As mercadorias usadas nas trocas não eram levadas ao
campo e oferecidas de forma aleatória. Pelo contrário, elas eram escolhidas antecipadamente a
partir de conhecimentos preliminares sobre os gostos, as necessidades e os interesses dos
produtores que residiam nas regiões visitadas. Ao longo da narrativa de Koch, encontram-se
diversas passagens que registram o fato de as mercadorias oferecidas pelo coletor terem
relação com as demandas internas dos grupos e com o contexto político local. Os indígenas
encontrados pelo etnólogo, diferentemente da visão estereotipada, foram descritos como
agentes ativos e conscientes das trocas em que participavam. Ao visitante, cabia apenas se
amoldar aos diferentes termos e ter uma diversidade de produtos para as trocas.
O caso de Koch-Grünberg demonstra que, para os museus etnográficos e para o
coletor, os artefatos indígenas eram estimados por uma associação de fatores, tais como: a
materialização da cultura humana em artefatos; o impacto visual e aspectos da qualidade
estética; valores e importância para as comunidades produtoras; e o caráter exótico e
primitivo. Para os indígenas, as mercadorias europeias possuíam valor em razão da utilidade,
do prestígio que conferiam ao possuidor e dos atributos estéticos.
A última coleção é a de artefatos Irã Ãmrãnh, grupo Mebêngôkre-Kayapó, formada
pelo missionário dominicano Frei Gil de Vilanova em 1902, constituída por 669 peças.
Diferentemente dos demais, o coletor acompanhou todo o processo de feitura e seleção dos
objetos. A origem da coleção reside na busca do missionário por recursos necessários à
manutenção da catequese em Conceição do Araguaia, projeto bastante afetado pela suspensão
do patrocínio estatal no início do século XX, motivado pela crise econômica que envolveu
todo o estado do Pará à época.
Através da venda de artefatos indígenas em Belém do Pará, Frei Gil tentou angariar
fundos e tornar-se mais independente da caridade privada e estatal. O plano não era arrojado.
Longe disso, o colecionismo de artefatos ameríndios é um fenômeno que acompanha a
trajetória humana desde o século XVI, tornando-se mais acentuado com a criação dos museus
etnográficos e de história natural. Aquilo que era colecionado pelas instituições museológicas
e exibido nas vitrines, além de ser alvo de estudos etnológicos, era interpretado como
testemunho da vida cultural do Outro e da manifestação de características idólatras, bélicas e
selvagens das populações autóctones. No final do século XIX, acrescentou-se a esse
196
fenômeno uma lógica salvacionista dos indígenas, que poderiam desaparecer com o avanço da
fronteira econômica no sertão brasileiro.
Na cadeia colecionista do período, os missionários executavam o papel central de
mediadores na circulação de objetos, ou seja, atuavam como fornecedores de artefatos
indígenas. Afinal, eles, em geral, eram os atores mais próximos das lideranças indígenas e que
viviam em maior integração com as comunidades produtoras. Frei Gil tinha ciência do valor e
do sentido que a sociedade nacional e as instituições museais atribuíam aos artefatos
indígenas – ainda mais dos Mebêngôkre, que na época possuíam uma aura de exóticos e
violentos. Ele certamente aproveitou-se disso para escolher peças de impacto visual e que
representavam o suposto estágio “primitivo” e “selvagem” dos índios.
A coleção Frei Gil de Vilanova, então, foi um produto do contexto histórico, dos
interesses e das ações dos diferentes atores que participaram do intercâmbio cultural.
Destacamos, além do colecionismo, a política assimilacionista da República brasileira, que
incentivava a catequese indígena, o desenvolvimento do Museu Goeldi e as ações e decisões
dos Irã Ãmrãnh. Encarando o conjunto de objetos como uma forma de se apresentar ao
mundo, a comunidade produtora empregou aspectos rituais e de autorrepresentação na
customização das peças e na estrutura da coleção, a despeito das considerações e intenções do
missionário. O grupo reuniu sobretudo artefatos bélicos e masculinos na coleção, tipologia de
objetos que os Mebêngôkre dominavam e que está entrelaçada na vida cotidiana e ritual do
grupo, principalmente na autoimagem de guerreiros e valentes.
A coleção foi adquirida pelo Museu Goeldi com verba estadual em 1902, certamente
depois de uma negociação conduzida pelo diretor da instituição. Coincidentemente, o
governador que autorizou a compra foi Augusto Montenegro, o mesmo que, no ano anterior,
interrompeu os subsídios disponibilizados ao missionário pelo governo do Pará desde 1897.
Goeldi atuou diretamente no processo de musealização das quatro coleções. De
maneira distinta com cada montagem, em períodos distintos, atuou para viabilizar as
negociações e a salvaguarda. O zoólogo suíço possuía um bom trânsito com os governadores
do estado, com a elite regional, com os meios científicos e intelectuais locais. Sabia mobilizar
diferentes forças e recursos para beneficiar a instituição que dirigia e suas próprias pretensões
científicas. Isso aconteceu com Lauro Sodré, quando demandou que Coudreau coletasse
objetos para o museu durante suas viagens de exploração pelos rios Xingu e Tapajós; com
Koch-Grünberg, quando mobilizou uma rede científica mais ampla para ter acesso a uma
parte dos objetos coletados no rio Negro; e com Frei Gil, quando mediou a relação entre o
197
Estado e a diocese do Pará, articulação necessária à compra da coleção formada no rio
Araguaia.
Por fim, é importante destacar que, no processo de musealização, um objeto
etnográfico é ressignificado. Se antes ele era avaliado a partir de sua funcionalidade, utilidade
ou valor simbólico-cosmológico, ao ser introduzido em um museu passa a ser avaliado por
sua capacidade de documentar e evocar realidades ausentes. Essa questão foi amplamente
discutida por diversos autores, mas no presente trabalho evidenciamos que, durante esse
processo de musealização, a agência indígena e o contexto de produção e coleta podem ser
ocultados, assim como intermediários podem ser apagados e informações podem ser perdidas
ou misturadas nos catálogos e nas fichas preservados nos museus. Cabe ao pesquisador, por
meio de uma pesquisa bibliográfica e documental, investigar os atores, os contextos e os
significados envolvidos na produção de cada coleção, destacando não só o protagonismo do
coletor, como também a atuação das redes e das comunidades produtoras.
198
REFERÊNCIAS
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199
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publicado).
NIMUENDAJÚ, Curt. Catálogo das coleções etnográficas do Museu Goeldi: cópia do 1º
Catálogo do Sr. Curt Nimuendajú. Belém, 1921. (Não publicado).
NIMUENDAJÚ, Curt; RODRIGUES, Evelise. A Relação do Material Etnográfico do Museu
Paraense Emílio Goeldi. Belém, 1939-1940. (Não publicado).
Fontes manuscritas
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Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Fundo MPEG, Gestão: Emílio Goeldi, Série:
Correspondência ativa.
Carta de Theodor Koch-Grünberg a Jacques Huber. Berlim, 16 de dezembro de 1907. Museu
Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Fundo Jacques Huber, Dossiê
Theodor Koch-Grünberg.
Ofício de Emílio Goeldi ao Secretário da Justiça, Interior e Instrução Pública do Pará. Belém,
2 de março de 1906. Museu Paraense Emílio Goeldi, Arquivo Guilherme de La Penha, Fundo
Museu Paraense Emílio Goeldi (doravante, FMPEG), Gestão Emílio Goeldi, Livro de cópias
de ofícios enviados.
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Paes de Carvalho, Governador do Estado, em 15 de Abril de 1898, apresentando a
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201
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