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DOSSIÊ “Curadorias do invisível”: conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi1 “Curators of the invisible”: indigenous knowledge and the ethnographic collection of the Museu Paraense Emílio Goeldi Claudia Leonor López Garcés2 Suzana Primo dos Santos Karipuna3 DOI 10.26512/museologia.v10i19.35492 Resumo Abstract Baseadas na nossa experiência como integrantes da equipe de curadoria da Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendaju do Museu Goeldi (2011-2018), o objetivo deste artigo é refletir sobre os desafios de conhecer, documentar, guardar, conservar e divulgar coleções de objetos indígenas musealizados, com base nas pesquisas antropológicas e museológicas, mas também considerando as nossas preocupações sobre como articular e conciliar conhecimentos, percepções, pensamentos e sentimentos indígenas sobre a materialidade, imaterialidade e agencialidade dos objetos, além das nossas expectativas de que estes conhecimentos indígenas possam contribuir para uma gestão intercultural dos objetos indígenas musealizados. Based on our experience as members of the curatorial team of the Curt Nimuendaju Technical Reserve Ethnographic Collection at the Goeldi Museum (2011-2018), the purpose of this article is to reflect on the challenges of knowing, documenting, saving, conserving and disseminating collections of indigenous objects musealized, based on anthropological and museological research, but also considering our concerns about how to articulate and reconcile indigenous knowledge, perceptions, thoughts and feelings about the materiality, immateriality and agency of objects, and our expectations that this indigenous knowledge can contribute for intercultural management of musealized indigenous objects. Palavras-chave Keywords Coleções etnográficas, Museu Goeldi, curadorias interculturais. Ethnographic collections, Goeldi Museum, intercultural curatorships. Introdução São já bem conhecidos os estudos antropológicos sobre a vida dos objetos dos povos indígenas, destacando o lugar que ocupam em diferentes cosmologias ameríndias, principalmente entre os povos indígenas da Amazônia (Santos Granero Ed. 2009:2). Surpreendentes pelo nível de profundidade e complexidade com que se abordam os diversos aspectos tangíveis e intangíveis que circundam os objetos nas cosmologias ameríndias, ditos estudos levam-nos a considerar as múltiplas dimensões ontológicas e epistemológicas imbuídas neles, ampliando a 1 Este artigo está baseado na apresentação oral efetuada no Simpósio do projeto “Entrelazamientos Hombre-Sujeto en Sociedades Indígenas”, coordenado por Beatrix Hoffmann e realizado em Bonn –Alemanha, em outubro de 2017. 2 Antropóloga, colombiana, pesquisadora titular do Museu Paraense Emílio Goeldi. Foi curadora da Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendaju do Museu Goeldi, entre 2011 e 2018. 3 Indígena Karipuna do Amapá, Socióloga, técnica da Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendaju do Museu Goeldi, desde 1991. ISSN 2238-5436 101 “Curadorias do Invisível”: conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 10, nº19, Jan./Jun. de 2021 102 compreensão ocidental do que são e significam os objetos em outros contextos socioculturais. Ainda que não tenham como objetivo principal analisar objetos ameríndios musealizados, mas pelo fato de explicitar as teorias indígenas sobre a materialidade, imaterialidade e sobre a agencialidade dos objetos4, por sua vez associada ao poder dos mesmos, estes estudos aportam elementos epistémicos fundamentais para dimensionar o nível de complexidade e de responsabilidade intercultural que significa guardar coleções de objetos indígenas em museus etnográficos. Criado aos moldes dos museus europeus, ao longo dos seus 154 anos, o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) foi se consolidando como o principal centro de pesquisa sobre sistemas naturais e processos socioculturais na Amazônia brasileira. Fundado em 1866 com o nome de Museu de História Natural e Etnografia, o objetivo desta instituição era “manter um museu de história natural e de artefatos indígenas” (SANJAD 2010: 54) e, desde seus inícios, dedicou-se à formação de coleções científicas, destacando as coleções de objetos indígenas e vestígios arqueológicos e, mais tarde, como centro de pesquisas biológicas, arqueológicas e etnológicas. Na atualidade, a Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendaju do Museu Paraense Emílio Goeldi, conta com mais de 14 mil objetos tombados, de aproximadamente 119 povos indígenas da Amazônia brasileira, peruana e colombiana. Possui também importantes coleções de outras sociedades amazônicas, principalmente ribeirinhos e pescadores; assim como artesanato do nordeste do estado do Pará, na Amazônia Brasileira; objetos de sociedades Maroon do Suriname e uma importante coleção de objetos de povos da África (VELTHEM et. al. 2004; LÓPEZ GARCÉS et. al. 2017: 715). Considerado a nossa experiência como integrantes da equipe de curadoria5 da Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendaju do Museu Goeldi, entre os anos 2011 e 2018, o objetivo deste artigo é refletir sobre os desafios de conhecer, documentar, guardar, conservar e divulgar coleções de objetos indígenas musealizados, com base nas pesquisas antropológicas e museológicas, mas também acolhendo as nossas preocupações sobre como articular e conciliar percepções, pensamentos e sentimentos indígenas sobre a materialidade, imaterialidade e agencialidade dos objetos, e as nossas expectativas de que estes conhecimentos e sentimentos indígenas possam contribuir para uma gestão intercultural dos objetos indígenas musealizados. Como os museus etnográficos devem agir perante coleções de “objetos indígenas” que são mais do que objetos? Quais as implicações políticas e éticas de guardar este tipo de coleções no contexto das relações interculturais? Como aproximar conhecimentos indígenas e práticas museológicas para efetuar uma gestão intercultural das coleções? São estas algumas das perguntas que guiam as nossas reflexões e tentamos nos aproximar a possíveis respostas a partir da nossa formação acadêmica em antropologia e sociologia, mas também com base nos conhecimentos e sentimentos indígenas de Suzana, co-autora do artigo, em prol de 4 Neste artigo optamos pelo uso da categoria “objeto”, nos termos concebidos pela antropologia contemporânea que, segundo Lagrou (2007:37-38), “demostra um renovado interesse pela ‘vida dos objetos’, pensados como “extensões de pessoas e com papel crucial na interação social”. Segundo a autora, “a abordagem da chamada ‘cultura material’, considerada excessivamente classificatória, técnica e formal”, durante muito tempo desviou “a atenção da antropologia social dos artefatos para os sistemas de pensamento e organização social” expressos nos objetos. 5 Essa equipe esteve composta por Claudia López, curadora da Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendaju, no período de janeiro de 2011 a junho de 2018; Suzana Primo dos Santos, quem atua como técnica da Coleção Etnográfica desde 1991 e Fábio Jacob, técnico e fotógrafo. Claudia Leonor López Garcés Suzana Primo dos Santos Karipuna avançar para uma discussão intercultural do que significa cuidar e gerir coleções etnográficas. O Museu Goeldi, coleções etnográficas e os povos indígenas Os primeiros objetos indígenas trazidos ao então chamado Museu Paraense de História Natural e Etnographia, no final do século XIX, foram doados por prefeitos dos municípios do estado do Pará e pela população regional, a pedido da Direção do Museu (SANJAD 2010). Mas tarde, as coleções de objetos indígenas foram incrementadas pelos naturalistas da época, entre eles Domingo Soares Ferreira Pena, fundador do Museu Paraense, e o geógrafo francês Henri Coudreau (1896) (VELTHEM et. al. 2004; CRISPINO et. al. 2006). Assim foi formada uma coleção conjunta de objetos arqueológicos e etnográficos, para ser mostrada ao público visitante, pois nessa época a instituição não contava com pesquisadores especialistas nas áreas das ciências humanas (SANTOS e LÓPEZ GARCÉS, 2016). Em inícios do século XX, a atuação do zoólogo suíço Emílio Goeldi como Diretor do Museu Paraense foi fundamental para o incremento das coleções etnográficas. Em 1900, foi adquirida uma coleção de objetos do povo indígena Ka’apor, coletada por militares após uma incursão bélica em aldeias Ka’apor, segundo consta no primeiro inventário da Coleção Etnográfica realizado por Curt Nimuendaju (1921): “Objetos tomados no ataque que deu a tropa do 5º batalhão de infantaria em S. Joaquim na linha telegráfica. A expedição partiu de Turiassu em setembro de 1900”. Trata-se da coleção de objetos Ka’apor mais antiga presente em museus do mundo (CAMARINHA et al, 2020), foi coletada e registrada muito antes da data oficial do contato e da chamada “pacificação” efetuada pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), fato ocorrido entre 1911 e1927 (RIBEIRO, 1996: 25-26). Nota-se, desse modo, que a história do contato e os consequentes processos de violência simbólica e inclusive de extermínio físico de povos indígenas, ainda que de forma velada, também está registrada nos museus e suas coleções etnográficas. Existem evidências de que, a partir dos primeiros anos do século XX, o Museu Paraense estabeleceu relações com diversos povos indígenas, por meio da tarefa de adquirir, organizar e guardar coleções de objetos indígenas, atividade que, desde seus inícios, a instituição apontou como um dos seus objetivos centrais, sendo continuada, anos mais tarde, por meio das pesquisas etnológicas e do colecionismo antropológico efetuado pelos pesquisadores da instituição, dentre os quais destacamos o próprio Curt Nimuendajú, bem como pesquisadores de outras instituições brasileira de do exterior. Em 1902, um grupo de indígenas Irã’ãmranh-re, povo indígena mebêngôkre de língua Jê hoje considerado extinto, mas na época em conflito com os Mebêngôkre-Kayapó, visitou o Museu Paraense (Fig. 1) acompanhado de Frei Gil de Villanova, quem intermediou a compra por parte do então Diretor, Dr. Emílio Goeldi, de uma coleção de objetos deste povo, principalmente armas, para apoiar a missão de Conceição de Araguaia (Chaves 2012). A partir desta visita pioneira de um povo indígena à instituição, o Museu Goeldi tem mantido uma estreita relação com outros povos indígenas, principalmente com os Mebêngôkre-Kayapó, Ka’apor, Tikuna, Baniwa, Wayana-Aparai, Galibi Kalinã, Gavião-Parkatejé e Krenak. ISSN 2238-5436 103 “Curadorias do Invisível”: conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi Figura 1: Grupo de indígenas Irã’ãmranh-re em visita ao Museu Goeldi, em 1902. MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 10, nº19, Jan./Jun. de 2021 104 Foto: Arquivo Histórico Guilherme de La Penha. Museu Paraense Emílio Goeldi. Em inícios do século XX, a presença dos primeiros etnólogos profissionais, se bem ainda de passo pelo Museu Paraense, aportou importantes coleções de objetos de povos indígenas da região do Rio Negro, especificamente as organizadas pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, nas suas duas viagens pela região (1903 – 1905). Mas tarde, Curt Nimuendaju elaborou o primeiro inventário da coleção etnográfica, em 1921, sendo o primeiro etnólogo contratado pelo já então denominado Museu Paraense Emílio Goeldi, quem também aportou numerosas e importantes coleções de objetos de diversos povos indígenas guardadas na Reserva Técnica que hoje leva seu nome. No transcurso do século XX, muitos foram os pesquisadores que contribuíram para a consolidação da etnologia no Museu Goeldi, contribuindo também para o incremento do acervo etnográfico. Destacamos a Eduardo Galvão, criador da área de antropologia nesta instituição e quem na década de 1950 classificou o acervo etnográfico por “áreas culturais indígenas” (VELTHEM, 2004); posteriormente renomados antropólogos e antropólogas como Protásio Fríkel, Expedito Arnaud, Darrell Posey, Adélia Engrácia de Oliveira, Roberto Cortés, Lúcia Hussak van Velthem, Priscila Faulhaber, Márcio Meira, fizeram destacados aportes não só ao acervo etnográfico, mas também à produção etnológica na instituição. No transcurso do século XXI, a Coleção Etnográfica do Museu Goeldi vem sendo palco de importantes aproximações e diálogos com diversos povos indígenas que habitam na Amazônia brasileira e, em ocasiões, com povos indígenas dos países vizinhos. Na minha experiência como pesquisadora desta instituição na área de antropologia, em 2001 fui convidada para participar de uma oficina com indígenas Tikuna vindos de aldeias na Colômbia e no Brasil, organizada pela antropóloga Priscila Faulhaber (FAULHABER et. al. 2003), então pesquisadora desta instituição. Claudia Leonor López Garcés Suzana Primo dos Santos Karipuna Durante os sete anos de experiência como curadora da Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendaju (2011-2018) e contado com a valiosa colaboração de Suzana Primo dos Santos, co-autora deste artigo, organizamos oficinas de reconhecimento e documentação de objetos etnográficos e três exposições com os Mebêngokrê-Kayapó, em parceria com a antropóloga Pascale de Robert do IRD na França (LÓPEZ GARCÉS et. al. 2014; SHEPARD et. al. 2017); participamos de um projeto de pesquisa em etnomuseologia com os Baniwa (SHEPARD et. al. 2017); com as antropólogas Laura van Broekhoven (Museu Pitt Rivers-Oxford) e Mariana Françozo (Universidade de Leiden -Holanda), organizamos oficinas de reconhecimento e documentação de objetos etnográficos e uma exposição com os Ka’apor (LÓPEZ GARCÉS et. al. 2017); a antropóloga Graça Ferraz intermediou a visita de um grupo de indígenas Gavião-Parkatejê; em 2017 tivemos a visita de lideranças Krenak com os quais se estabeleceu uma parceria de co-curadoria de um único “objeto” muito significativo para este povo em termos espirituais. Do ponto de vista acadêmico, estas múltiplas atividades realizadas na Coleção Etnográfica do Museu Goeldi são resultado de trabalhos em colaboração entre povos indígenas, antropólogos pesquisadores e a equipe de profissionais e técnicos que cuida deste acervo etnográfico. Mas devemos considerar as formas outras de entendimento e compreensão dessas coleções de objetos indígenas musealizados, cujos cuidados exigem a participação ativa dos próprios indígenas. Nesse sentido, estabelecer diálogos com os povos indígenas, não só para qualificar e documentar as coleções, mas também para cuidar delas, é fundamental nas instituições museais que guardam este tipo de coleções. Estes diálogos buscam colocar em contato os povos indígenas com as coleções de objetos guardados no acervo etnográfico do Museu Goeldi, com o objetivo de abrir caminhos para que os povos indígenas busquem respostas a suas próprias perguntas e inquietações sobre suas dinâmicas culturais e possam ser elucidadas as perguntas de pesquisa nos campos da antropologia e da museologia (SANTOS e LÓPEZ GARCÉS, 2016). Mas, o grande desafio continua sendo a articulação e reconhecimento mútuo destes conhecimentos e formas de compreensão e atuação acadêmica e indígenas, na procura de avançar para uma gestão intercultural das coleções musealizadas de objetos indígenas. Sentipensamentos6 indígenas e acervos etnográficos Nos museus etnográficos tradicionais e nos campos de conhecimento da museologia e da antropologia, muito se tem avançado com o reconhecimento da importância da participação dos povos indígenas nos processos curatoriais de documentação, registro, conservação, gestão e comunicação de coleções etnográficas. Mas, avançar na implantação de curadorias compartilhadas deste tipo de coleções exige uma verdadeira transformação na forma de trabalhar das instituições que as guardam, a fim de garantir uma estreita colaboração com os povos indígenas e demais populações artífices dos objetos ali guardados, atores que, além de contribuírem com os seus conhecimentos e pontos de vista a contextualizar e dar significado aos objetos musealizados, vem suscitando também questionamentos epistémicos, éticos e políticos, para repensar e redefinir o papel dos museus e o ato de colecionar objetos de diversas sociedades. Desse modo, as relações povos indígenas, museus, universidades e seus acervos etno6 Termo cunhado pelo sociólogo colombiano Orlando Fals Borda (2009), quem por sua vez o retoma da sua interlocução com os ribeirinhos do litoral atlântico colombiano. ISSN 2238-5436 105 “Curadorias do Invisível”: conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 10, nº19, Jan./Jun. de 2021 106 gráficos, constituem um caminho repleto de possibilidades para a realização de pesquisas interculturais no âmbito da etnologia e da museologia e a posta em prática de formas outras de efetuar curadorias de acervos etnográficos. Os encontros e diálogos com povos indígenas na Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi trazem novos questionamentos e desafios às pesquisas antropológicas e etnológicas e às ações museológicas, gerando processos reflexivos em todos os participantes, mas também provocando intensificação de emoções, principalmente entre os povos indígenas, sem descartar os atores institucionais. Já temos mencionado diversas manifestações desses sentipensamentos que tem acontecido nesses encontros com os povos indígenas na Reserva Técnica (SANTOS e LÓPEZ GARCÉS 2016): a alegria, expressada em cantos e orações, de encontrar objetos antigos e que já não existem mais nas atuais aldeias indígenas; ora tristeza e saudade, expressadas no choro, ao lembrar dos parentes já falecidos que elaboraram esses objetos; orgulho de saber-se criadores e artífices dos objetos musealizados, medo dos espíritos das pessoas já falecidas que fabricaram os objetos, bem como transes xamânicos, evitação, raiva e, inclusive, atos destrutivos como forma de expressão de profundas “feridas coloniais” (MIGNOLO, 2007), resultantes das situações de “colonialidade” (QUIJANO, 2007) em que as coleções foram organizadas e/ou adquiridas pelo museu, ou porque o espaço trouxe lembranças de situações semelhantes acontecidas em outros contextos museais.Todas estas manifestações constituem expressões concretas dos entendimentos, percepções, sentimentos e reações que o fato de colecionar objetos nos museus etnográficos e outras instituições gera entre os povos indígenas, fato que ecoa nos seus processos ontológicos e nas suas posições políticas. De outro lado, os processos de reafirmação cultural e política e a procura por referentes históricos e culturais conduzem os povos indígenas a se aproximarem dos museus, centros de pesquisa e universidades, em busca de documentos históricos, registros fotográficos e audiovisuais e dos seus objetos guardados em coleções etnográficas. Estas aproximações indígenas aos museus atribuem novos sentidos e significados ao ato de colecionar objetos, possibilitando a realização de encontros e diálogos interculturais, por meio de projetos de pesquisa na maior parte mediados por pesquisadores não indígenas, mas também por parte de empreendimentos indígenas comunitários, como foi o caso da visita de lideranças dos povos Xipaia e Krenak à Coleção etnográfica do Museu Goeldi. Outro aspecto de destaque, principalmente nos últimos anos, sãos as iniciativas indígenas de formação de novas coleções, como é o caso da coleção de objetos dos Karipuna do Amapá organizada por Suzana Primo dos Santos, em 1987, e a coleção de cultura material contemporânea do povo Xipaia, organizada por Luis Xipaia em 2014 (LÓPEZ e HOFFMANN, 2017), dois claros exemplos de coleções de objetos no Museu Goeldi organizadas pelos próprios indígenas. Cabe também lembrar que o acesso à formação acadêmica, cada vez mais procurada pelos povos indígenas é um aspecto importante que está abrindo espaços para a apropriação e atuação dos indígenas nos museus, centros de pesquisa e universidades, possibilitando reverter o quadro assimétrico das relações de poder nestes espaços em que tradicionalmente os indígenas eram só “objetos de conhecimento” e “sociedades colecionáveis”. Isso também abre possiblidades para os povos indígenas realizarem as suas próprias investigações, à sua maneira e estilo, criando sentidos não só académicos, mas também ontológicos, na busca pelas suas origens, sentidos de vida, posições políticas, valores éticos e espirituais. Claudia Leonor López Garcés Suzana Primo dos Santos Karipuna Na sua reflexão sobre experiências museográficas em perspectiva comparada Brasil (Museu Magüta) e Canadá (Museum of Anthropology at the University of British Columbia), Andrea Roca (2015: 142), sugere que a: indigenização dos museus ... [ ] ... não se trata da incorporação, pela museologia dominante, dos conceitos, protocolos e dos processos originados nas sociedades indígenas, e sim da conquista da cena museológica pela agência indígena: são os índios que estão abordando os museus, e não o contrário. Estas reflexões são instigantes para repensar até que ponto os museus tradicionais, como é o caso do Museu Goeldi, tem se aberto para essa conquista pela agência indígena. Nessa ordem de ideias, vemos necessário e importante nos referir ao fato do acervo etnográfico do Museu Goeldi contar, na equipe de curadoria, com a presença de Susana Primo dos Santos (Figura 2), mulher indígena Karipuna, com formação em sociologia, quem atua nesta Coleção Etnográfica como servidora técnica desde 1991, fato que contribui de forma significativa com os processos que poderíamos considerar de “boas práticas” de curadoria em coleções etnográficas. Com a sua experiência de vida na aldeia Santa Isabel, Terra Indígena Uaçá, estado de Amapá, de trabalho na antiga loja Artíndia da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e, há 30 anos, na Coleção Etnográfica do Museu Goeldi, é Suzana quem melhor conhece o acervo etnográfico desde o ponto de vista técnico da museologia e da espacialidade do acervo na Reserva Técnica, contribuindo também com o olhar específico a partir de seus conhecimentos indígenas para a documentação sobre matérias primas e conhecimentos especializados sobre técnicas de manufatura de objetos etnográficos, mas também, desde seu ponto de vista indígena para o cuidado material e imaterial dos objetos no acervo. Mas que seja Suzana quem nos apresente a sua visão do que significa cuidar de coleções de objetos indígenas no Museu Goeldi. Minha trajetória como Karipuna no Museu Paraense Emílio Goeldi Sou da aldeia Santa Isabel (antigo Barracão), fundada pelo cacique Côco dos Karipuna e pertencente a Terra Indígena do Uaçá, no estado de Amapá, na divisa do Brasil com a Guiana Francesa, onde habitam os povos Karipuna, Galibi-Marworno, Palikur, com cerca de oito mil indivíduos. Como mulher Karipuna posso dizer que os meus primeiros ensinamentos e vivências foram nas aldeias de Santa Isabel,Taminã, Espírito Santo e Tipidon, todas próximas umas das outras e também do Jonis e Bêbene no alto rio Curipi; isto foi tudo palco de minha infância, a infância que ainda não se apagou de minha memória, época em que tomava muito banho de rio, pulava de cima das árvores, navegava de canoa, imitava os bichos, brincava de fazer turé nas noites de lua cheia, durante o verão. Foi quando comecei a construir e a confeccionar alguns objetos, como colares de miçanga e xirixiri7, aros emplumados (corrune), cuias, maracás e outros objetos que fazem parte do meu mundo e também ouvindo histórias de bichos encantados. Assim fui crescendo e amadurecendo nos ensinamentos dentro dos padrões de minha aldeia, trabalhando na roça e fazendo beiju (arapaça e galete), do maiuhi (convidados do plantio de roça), da pajelança e do preparo do ritual do turé, acompanhando minha mãe nessas tarefas. 7 Sementes usadas pelo povo Karipuna do Amapá na elaboração de colares. ISSN 2238-5436 107 “Curadorias do Invisível”: conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi Figura 2: Suzana Primo dos Santos Karipuna nos seus afazeres na Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Numuendadu MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 10, nº19, Jan./Jun. de 2021 108 . Foto: Fábio Jacob. Os objetos de um povo indígena revelam sua origem, localização, linguagem, costumes e organização social. A terra é tudo para o indígena, é dela que tiram e transformam as madeiras, penas, argilas, cipós em objetos de arte, imprimindo a memória cultural e explicando sua existência. A história da cobra-grande narra nosso território, o peixinho kuahí se expressa nos bancos e mastros do turé, nas marcas de cuias, na pintura corporal, nos maracás, que são rodeados de misticismo e de encantos, e as sete estrelas [Plêiades] que estão ligadas aos ciclos agrícolas. Antigamente as mulheres não iam arrancar mandioca antes destas estrelas aparecerem no céu, sendo que seu ciclo de renovação se mede nas folhas das árvores, nas subidas do camaleão e de outros bichinhos, os peixinhos também acompanham esse ciclo, colocando suas cabecinhas de fora durante a madrugada. Na aldeia Santa Isabel terminei o ensino primário e fiz o ginasial na cidade de Oiapoque, depois em Macapá e em Belém terminei o segundo grau, atual ensino médio, logo fiz a graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Como funcionária da Artíndia da FUNAI trabalhei durante dez anos conhecendo artesanatos de outros povos indígenas, e posteriormente no Museu Goeldi, em particular na reserva técnica da Coleção Etnográfica. Dentro desse espaço, que considero um verdadeiro território indígena, posso desfrutar de uma nova experiência de trabalho com objetos do meu grupo e de outros povos indígenas, aprendendo desta forma a organizar e classificar os objetos por categorias, tais como cerâmica, plumária, armas, trançados, rituais e lúdicos, cordões e tecidos, com base no Dicionário de artesanato indígena de Berta Ribeiro (1988), facilitando desta forma a conservação dos mesmos. Em 1987, como estagiária na reserva técnica, tive uma grande surpresa ao me deparar com materiais dos povos indígenas de Oiapoque, coletados entre os anos de 1964, 1965 e 1966 pelo pesquisador Expedito Arnaud, muitos desses objetos fizeram parte do ritual do turé: os bancos em forma de pássaros, os chocalhos de varetas, as flautas e as cuias. O turé é um ritual com muitas nor- Claudia Leonor López Garcés Suzana Primo dos Santos Karipuna mas e regras, realizado pelos pajés nos períodos de outubro e novembro, quando celebram as derrubadas e os plantios das roças, está ligado ao ciclo agrícola; o turé também é realizado como forma de pagamento pela cura de uma pessoa que estava doente. O espaço do laku, onde é realizado o ritual do turé, é em forma de roda, com mastros ao meio, bancos de quase dois metros, representando jacarés, cobras sucuriju e peixes espardates, todos pintados com grafismo de kuahí, pintas de cobra-grande e outros. Durante este cerimonial não podemos atravessar os bancos, a mulher menstruada tem que pedir autorização do pajé para poder entrar no laku, depois de defumada pelo pajé ela pode entrar no espaço sagrado.Todos os convidados não podem comer peixe durante três dias antes da realização, tudo é devidamente organizado com muito respeito, porque estamos lidando com karuãnas de outro mundo, que vem tanto do mundo do alto (céu) quanto do mundo de baixo (água). A Reserva Técnica do Museu Goeldi, na minha forma de observar e de pensar, representa um verdadeiro turé, pois existem normas idênticas às do ritual, a exemplo de como manusear um objeto, como transitar dentro deste espaço, como lidar com as categorias de cada objeto. Os objetos representam a memória e a identidade de um povo. A história pode ser contada através de um arco, de uma flecha ou de um zunidor, em um universo de significações, de simbologias e de sobrevivência. O que posso dizer é que o homem é resultado de um meio cultural e de um longo processo acumulativo. A terra é tudo para o índio, onde se planta, se pesca e se caça e onde se tira a mandioca para fazer a farinha. O território está ligado ao nosso umbigo, se tirarem nosso território é mesmo que cortar. Por isso o trabalho no Museu Goeldi, através de oficinas e diálogo com diversos povos indígenas, tem uma grande importância, pois há uma troca de conhecimentos em que o indígena busca rever coisas do passado e também colabora com seus conhecimentos para fortalecer a documentação desses objetos. Com isso a mediação museal é de grande importância para com estes povos, pois é uma forma de valorizar o saber indígena. Estas reflexões são um pequeno resumo da minha história de vida desde a aldeia, como uma hohô (gêmea), observando os ensinamentos dos mais velhos, vendo as mulheres mais velhas darem as gargalhadas que não existem mais nas aldeias < he he he >; vendo as preparações do caxiri; a aproximação da alma de um falecido quando alguém da família está doente; para tirar esse espírito que está ao lado do doente alguém sabedor do assopro prepara um remédio ao redor da cama e começa a soprar, afastando assim o espírito; vendo dentro da mata o local do suspiro do grandpapachapo; também das danças coletivas que estabelecem comunicação com as entidades sobrenaturais; aproximações do mundo vegetal com o homem e o animal, isto é entre o homem e o mundo dos espíritos, através das plantas medicinais. E no Museu Goeldi, atualmente, ouvi muitas histórias de aparecimentos na Reserva Técnica; acredito que sim, pois estamos lidando com materiais que estão carregados de forças sobre-humanas, e muitas pessoas, quando entram na reserva, sentem algo estranho que não sabem explicar. Como posso explicar isso? Pois já tive muitos sonhos que estão relacionados com coisas desse sentido, que se realizaram, talvez isso aconteça por eu ser uma indígena hohô, uma espécie de pajé para os Karipuna, que vê e sente através dos sonhos. Muitas vezes não falo para ninguém, para não servir de chacota, também é uma forma de me comunicar com o espaço que estou lidando. ISSN 2238-5436 109 “Curadorias do Invisível”: conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi O meu trabalho no acervo MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 10, nº19, Jan./Jun. de 2021 110 Anteriormente o acervo etnográfico Curt Nimuendaju estava localizado no Parque Zoobotânico e organizado por áreas culturais, tais como Norte-Amazônica, Juruá-Purus, Guaporé,Tapajós-Madeira, Xingu,Tocantins-Xingu, Pindaré-Gurupi, Paraná, Nordeste e também em coleções de outras procedências e de outros países vizinhos como Suriname, Guiana Francesa, Colômbia e Peru. Com a mudança para o campus de pesquisa, que foi de 2003 a 2007, o acervo passou a ser classificado por categorias artesanais, segundo o Dicionário do Artesanato Indígena de Berta Ribeiro (1988), obedecendo as seguintes categorias: cerâmicas, trançados, cordões e tecidos, adornos plumários, adornos de materiais ecléticos, indumentárias e tocador, instrumentos musicais e de sinalização, armas, utensílios e implementos de madeira e outros materiais, objetos rituais mágicos e lúdicos. Assim, a nova Reserva Técnica Curt Nimuendaju está organizada de maneira que facilita a conservação e a museografia dos objetos, os quais são tidos como objetos de estudo de várias áreas do conhecimento dentro do campo das ciências humanas e da biologia, devido a composição dos materiais orgânicos e inorgânicos. No exercício de minha profissão, como técnica e funcionária, meu papel é conservar, documentar e organizar estes objetos, dentro dos padrões de normas de um acervo etnográfico. Por outro lado, passeio os meus olhares e mergulho no universo desses objetos, procurando ao mesmo tempo, ao longo da história de cada um e de cada povo, algo mais que me impressiona: é aquilo que carregam esses objetos, que comunica com seu lugar de origem, expressado através da pintura, do grafismo, como os trançados, os tecidos, o corte de cada material; tudo isso vêm com uma carga de magia e de significado, ligados às coisas invisíveis, ou sobrenatural. Como falam os indígenas de Oiapoque: “no nosso sistema o maracá fala, a árvore vira gente, o banco pode encantar e me levar a outros mundos distantes do que habitamos; a mata é um desses universos, como os lagos, os rios e as montanhas também o são”. E a Reserva Técnica onde trabalho é todo esse território místico que me faz sonhar e me sentir dentro de uma aldeia. Dentro desse espaço, há vários armários com prateleiras onde os objetos estão organizados e distribuídos por categorias. Ao manusear, por exemplo, um maracá, uma flecha, uma cerâmica e outros objetos de grupos como Kayapó, Karipuna ou Canela estou me comunicando com aquele povo, daquele local. Quando me chamavam e eu estava trabalhado com determinada coleção de um grupo, eu respondia que estava junto com aquele grupo trabalhando, e ao mesmo tempo me sentia no local daquele povo, principalmente, quando a Reserva Técnica estava distribuída por áreas culturais. Enfim, é um grande território cercado por paredes de alvenaria que contém vários universos e dimensões cujos objetos ali narram, através dos desenhos, pinturas e formatos, a história de cada povo. Com esta maneira de ver e sentir o passado e o presente posso descrever e classificar um indígena todo paramentado com as suas indumentárias, arcos e flechas e outros objetos em sua aldeia, como em um ritual de turé por exemplo, representando um verdadeiro acervo etnográfico, pois, seu corpo requer vários objetos, requerendo também pinturas / grafismos, neste caso o corpo funciona como um verdadeiro acervo etnográfico. E a Reserva Técnica, na minha forma de ver e sentir, é um espaço místico porque se guarda nele objetos de manifestações práticas e ritualísticas de vários grupos indígenas. Além do mais, as matérias primas escolhidas para cada objeto, tanto vegetais quanto Claudia Leonor López Garcés Suzana Primo dos Santos Karipuna animais e minerais, guarda um simbolismo da natureza. Por isso, posso dizer, como uma hohô, que os meus sonhos são estranhos, pois estão relacionados ao ambiente em que trabalho e convivo diariamente, sempre despertando para o mundo do contato com o invisível. Não é preciso contar os sonhos, mas sou uma pessoa que tem o dom de ver e de viajar por outros planos. E com isso vou terminando, na busca da valorização cultural de todos os povos indígenas para mostrar o visível e o invisível. Agradecendo aos meus ancestrais pelas transmissões desses saberes tradicionais e a todos os povos indígenas que estão representados no espaço dessa importante instituição de pesquisa que é o Museu Paraense Emílio Goeldi. É nesse território tradicional da Reserva Técnica que diálogo todos os dias com esses povos através de sua cultura material e com isso vou me fortalecendo cada vez mais como Karipuna. Sobre curadorias do invisível: considerações finais As palavras de Suzana nos sensibilizam para essas formas outras e pontos de vista outros sobre o que significa trabalhar e cuidar de coleções etnográficas, mostrando que o cuidado deste tipo de acervos envolve conhecimentos que vão além do olhar técnico da museologia e do olhar humanístico e compreensivo da antropologia e da etnologia. Como vem sendo mostrado pelos estudos etnológicos já mencionados, as diversas cosmologias indígenas consideram os objetos além da sua materialidade, tornando evidentes as transformações e complexas relações e formas de comunicação intersubjetivas entre objetos, seres humanos e não humanos, entre os diversos “mundos visíveis e invisíveis”, segundo o pensamento e a voz de Suzana. Na equipe de curadoria do acervo etnográfico do Museu Goeldi, contando com a valiosa experiência de trabalho, os conhecimentos, as percepções e sentimentos de Suzana e com base nos aprendizados com diversos povos indígenas, estamos cada vez mais instigados a treinar o nosso olhar para “ver o invisível”, e assim compreender os olhares indígenas sobre as coleções etnográficas e seus cuidados. Ressaltamos a riqueza e importância desses conhecimentos, sentimentos e percepções, enfim, dessa forma de “curadoria do invisível”, ainda invisibilizada nas instituições museais tradicionais, como passo necessário para avançar no processo de “descolonização dos museus”, como propõe Marília Cury (2017), pois concordamos com a autora quando afirma que “a gestão de acervo no museu deve se descolonizar”, em tanto que os “objetos museológicos” gerados a partir dos trabalhos com povos indígenas, bem sejam objetos propriamente ditos, fotografias, imagens e sons, constituem “patrimônios indígenas sob a ação do museu que visa a musealização” (CURY, 2017: 204). Nesse sentido, contar com a presença, conhecimentos, sentimentos e gestão de Suzana na coleção etnográfica do Museu Goeldi é um privilégio de poucas instituições que guardam acervos etnográficos. Além dos seus conhecimentos a serviço da documentação e cuidados do acervo, o trabalho de Suzana na coleção etnográfica nos aproxima a essas dimensões outras da curadoria de acervos etnográficos que envolve uma aproximação sentipensante à materialidade e imaterialidade dos objetos etnográficos, e que Suzana faz por meio das suas percepções oníricas e de sua capacidade de comunicação com o mundo dos “encantados”, com os karuãnas, segundo a tradição do seu povo, os Karipuna de Amapá. É a isso que aqui fazemos referência quando falamos de “curadorias do invisível”. ISSN 2238-5436 111 “Curadorias do Invisível”: conhecimentos indígenas e o acervo etnográfico do Museu Paraense Emílio Goeldi MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. 10, nº19, Jan./Jun. de 2021 112 Em relação a este tipo de aproximações, vemos com alegria como estes aspectos estão começando a serem considerados em algumas instituições museais brasileiras. A respeito, Marília Cury (2017) reflete sobre esta possibilidade quando questiona: “Como o museu pode musealizar sem que veja outras visões de mundo e outras formas de religiosidade?” (CURY, 2017: 205), e nesse sentido, segundo a autora: Os indígenas são curadores de suas coleções e das exposições que participam, não tenho dúvida quanto a isso. Mas, os encantados são curadores também, uma vez que estão em comunicação com o mundo físico, quando evocados pelo objeto e os sentimentos e pensamentos daqueles que os veem como parte de si, vindo dos ancestrais (CURY, 2017: 206). Além desses aspectos “invisíveis” da curadoria efetuada por Suzana, cabe destacar também que a sua presença facilita as relações com os povos indígenas, pois a seu lado se mostram mais confiantes para expor seus conhecimentos e pontos de vista, suas percepções desses mundos invisíveis, seus sentimentos e emoções e sentidos espirituais; assim, a presença de Suzana contribui a gerar um ambiente de proximidade, confiança e cordialidade, aspectos indispensáveis nos trabalhos efetuados com os povos indígenas. Com base nestas considerações nos atrevemos a dizer que o Museu Goeldi, por meio das ações efetuadas na Coleção Etnográfica Reserva Técnica Curt Nimuendaju, avança num processo de indigenização (ROCA 2015: 142), entanto que está aberto à agência indígena e reconhece os direitos indígenas de autorepresentação, propriedade e administração dos seus próprios saberes e tradições, bem como o direito à identidade, a terra, à história e à memória. Para concluir, nas palavras de Suzana: “O Museu Goeldi caminha junto com os povos indígenas e as suas transformações”. Isso gera desafios enormes para a instituição que precisa se repensar constantemente nas suas relações com os povos indígenas para poder acompanhar ditas transformações. Referências CAMARINHA, H. M., López Garcés, C. L., Alves Neto, R., & Ka’apor, V. (2020). O tambor Ka’apor e o percutir de outros povos: estudo introdutório sobre o membranofone em contextos indígenas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas,15(1),2020, e20180128. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2018-0128. CHAVES, Carlos Eduardo. Nas trilhas Irã Ãmrãnh. Sobre história e cultura material Mebêngôkre. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Belém, 2012. CRISPINO, Luis Carlos Bassalo et. al. (org.) As origens do Museu Paraense Emílio Goeldi. Aspectos históricos e iconográficos (1860-1921). Belém: Paka-Tatu, 2006. 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