Volume 8
MUSEOLOGIA
e
PATRIMÓNIO
Fernando Magalhães · Luciana Ferreira da Costa
Francisca Hernández Hernández · Alan Curcino
·
COORDENADORES
ESECS · Politécnico de Leiria
Fernando Magalhães
Luciana Ferreira da Costa
Francisca Hernández Hernández
Alan Curcino
(Coordenadores)
MUSEOLOGIA E PATRIMÓNIO
Volume 8
MUSEOLOGIA E PATRIMÓNIO
Volume 8
POLITÉCNICO DE LEIRIA
Presidente
Rui Filipe Pinto Pedrosa
ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS SOCIAIS
POLITÉCNICO DE LEIRIA
Diretor
Pedro Gil Frade Morouço
EDIÇÕES
https://www.ipleiria.pt/esecs/investigacao/edicoes/
Conselho Editorial
Alan Curcino
(Universidade Federal de Alagoas, Brasil)
Dina Alves
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Emeide Nóbrega Duarte
(Universidade Federal da Paraíba, Brasil)
Fernando Paulo Oliveira Magalhães
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
José António Duque Vicente
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Leonel Brites
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Luciana Ferreira da Costa
(Universidade Federal da Paraíba, Brasil)
Marco José Marques Gomes Alves Gomes
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Silvana Pirillo Ramos
(Universidade Federal de Alagoas, Brasil)
FICHA TÉCNICA
Título: Museologia e Património - Volume 8
Coordenadores: Fernando Magalhães, Luciana Ferreira da Costa,
Francisca Hernández Hernández, Alan Curcino
Projeto gráfico: Alan Curcino, Luciana Ferreira da Costa, Leonel Brites
Capa: Leonel Brites
Imagem da capa: “Coração de Florim” (2021) por Renan Florindo
Edição: Escola Superior de Educação e Ciências Sociais – Politécnico de Leiria
ISBN 978-989-8797-64-3
Setembro de 2021
©2021, Instituto Politécnico de Leiria
APOIOS
Centro de
Investigação em
Qualidade de Vida
UNIVERSIDADE
FEDERAL DA PARAÍBA
Rede de Pesquisa e (In)Formação em
Museologia, Memória e Patrimônio
Facultad de Geografía e Historia:
Grupo de Investigación Gestión del Patrimonio Cultural
UNIVERSIDAD
COMPLUTENSE
MADRID
À contínua cooperação
entre os amigos brasileiros,
espanhois e portugueses
em torno da Museologia e
do Património.
ÍNDICE
Apresentação .......................................................................................................
Fernando Magalhães
Luciana Ferreira da Costa
Francisca Hernández Hernández
Alan Curcino
Prologue
Public memory as the art of quality maintenance for
societal development (some notes on mindset and the
context) ...................................................................................................
Tomislav Sladojević Šola
7
13
Museos españoles en tiempos de pandemia ...............................
Nancy Farias
Dolors Vidal-Casellas
45
O Jardim i Sensorial de Castelo de Vide ........................................
Manuel da Costa Leite
71
Objetos museológicos: a estrutura de um modelo de
valoração ................................................................................................
Antonio Carlos dos Santos Oliveira
Marcus Granato
O peso de imagens sacramentadas e os desafios científicos
e educativos do Museu Paulista ......................................................
Cecilia Helena de Salles Oliveira
Da Casa de Morada ao Museu-Casa de Cultura Hermano
José ............................................................................................................
Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira
Bertrand Pereira Martins
102
137
184
Considerações sobre o conceito de Fratrimônio .......................
Diogo Jorge de Melo
Priscila Faulhaber
213
As coisas, o museu, seus processos e o público: a pedagogia
das exposições metamuseológicas .................................................
Manuelina Mara Duarte Cândido
234
A simbiose entre Universidades e Museus Comunitários na
extensão universitária: o Museu dos Assentados,
metodologias, passado, presente e apontamentos futuros ...
Leonardo Giovane Moreira-Gonçalves
Rosângela Custodio Cortez Thomaz
255
O Patrimônio Educativo de uma escola de educação básica:
memória e formação de identidade ...............................................
Ana Paula Borges Eloi
Ivana Marta da Silva
Reginaldo Alberto Meloni
Feito à Mão: Museu do Quilombo do Ipiranga, Conde,
Paraíba, Brasil, como Patrimônio Comunitário .........................
Robson Xavier da Costa
299
331
Museologia e Património – Volume 8
AS COISAS, O MUSEU, SEUS PROCESSOS E O PÚBLICO:
A PEDAGOGIA DAS EXPOSIÇÕES METAMUSEOLÓGICAS
Manuelina Mara Duarte Cândido
Universidade de Liège, Bélgica/Universidade Federal de Goiás, Brasil
http://orcid.org/0000-0001-9695-3807
1. Introdução:
Este texto apresenta reflexões realizadas no âmbito do projeto
de pesquisa Os sentidos, os tempos e os destinos das coisas, coordenado
por mim desde 2017 na Universidade Federal de Goiás, Brasil, e
também, a partir de 2018, na Universidade de Liège, na Bélgica. Seu
mote inicial foi a exortação por parte de Umberto Eco, à necessidade de
criação de uma teoria da filtragem, à qual associei o campo da
Museologia.
Ao mesmo tempo em que procuro, juntamente com pesquisas
desenvolvidas por orientandas e orientandos de graduação, de
mestrado e de doutorado e outros(as) colegas de pesquisa perceber as
conexões entre a Museologia e esta possível teoria da seleção ou da
filtragem, investigamos os destinos e usos das coisas que se tornam ou
deixam de ser acervos de museus (Oliveira, 2021; Oliveira, 2018; Silva,
2017), com ênfase em processos de seleção e de descarte (Nonato,
2017, Araújo, 2017), mas também das coisas do cotidiano que não vêm
a passar por processos de musealização e de patrimonialização, mas
que, eventualmente, podem ganhar uma segunda vida em feiras de
coisas usadas (Rosa, 2021), na reciclagem, entre outros66. Por outro
lado, investigamos conjuntos de artefatos ou coisas que mesmo
estando em museus não conseguiram vencer o destino de
silenciamento e de apagamento (Mendes et al. 2019), o próprio destino
dos museus como mega artefatos (Duarte Cândido et al. 2019) e como
compartilhar com o público estes processos e escolhas que são
inerentes à musealização (Amaral, 2021) permite contribuir para uma
66 Uma obra inspiradora para este projeto é o livro Antropologia dos restos, de
Octave Debary (2017)
234
Museologia e Património – Volume 8
pedagogia museológica (Bruno, 2006) e para o avanço da Museologia
(Collineau, 2020).
Dados do campo dão conta de um crescimento anual médio das
coleções de 1 a 2%, mesmo em instituições com políticas de aquisição
consistentes (Lord & Lord, 1989, apud Mairesse, in Desvallées &
Mairesse, 2011, p. 262). Considerando o ônus, em geral público, que
representam estes acúmulos, é importante discutir, compartilhar
decisões, estimular a racionalização das aquisições por museus
(mesmo quando por coleta ou doação), publicizar reflexões sobre a
formação dos acervos e não os apresentar ao público como algo dado.
Neste sentido, o foco deste texto são as questões envolvendo
reflexividade em museus e a forma de apresentá-la ao público, no que
Martin Schärer chamou de “expor a Museologia” (Schärer, 2018) e eu
chamarei também de metamuseologia, em diálogo com a formulação
de Cristina Bruno a respeito de pedagogia museológica como
“las reciprocidades entre las siguientes acciones:
- la identificación de la musealidad que es
responsable de las propuestas de incentivo a la
observación y a la percepción;
- el perfeccionamiento de la percepción selectiva
que reitera la potencialidad del ejercicio de la visión
y de la identificación de lo que es visto. Ese despertar
de posibilidades de percepción e identificación lleva
a compromisos en...
- el tratamiento de los bienes seleccionados que, a
su vez, representa una inducción al uso calificado de
las referencias culturales, potenciando las rutas
constitutivas de la herencia cultural en función de
- la valorización de los bienes patrimoniales.”
(Bruno, 2014, p. 3, grifos da autora)
Esta abordagem contribui para expandir a Museologia, segundo
a autora, porque a configura como um processo pedagógico em sua
totalidade, valorizando sua potencialidade para dar um destino àquilo
que as sociedades elegeram como relevante, de forma que exerçam sua
função social (Bruno, 2014, p. 3).
235
Museologia e Património – Volume 8
2. A pesquisa e a musealização como camadas de mediação que
também podem ser exibidas
Em texto de 2005 eu me referia aos diferentes contextos para a
cultura material segundo Peter Van Mensch: contexto primário (P),
contexto arqueológico (A) e contexto museológico (M). O autor
sublinha que “Quanto mais intermediada é a passagem do contexto
primário para o museológico, maior o número de processos de
interpretação e seleção pelo qual o objeto passou” (Duarte Cândido,
2005, p. 83). A forma tradicional de exposição de museus é fazer
referência somente ao seu contexto primário, e descartar as camadas
de biografia que a trajetória do objeto vai sobrepondo a seu primeiro
momento de produção e uso. Não se fala do seu descarte, que pode
estar na origem da formação de um novo contexto, o arqueológico67.
Eventualmente, alguns museus e exposições de Arqueologia passaram
a falar do contexto arqueológico, e apresentar em seu discurso
expositivos elementos que permitiam compreender a pesquisa
arqueológica: as hipóteses, o trabalho de campo, as análises, as
interpretações, as controvérsias. Desta forma, o registro arqueológico68
passou a compor algumas exposições a partir da decisão de ir além da
exibição dos vestígios arqueológicos, apresentando, por exemplo,
cadernos de campo, desenhos, fichas, planilhas, fotografias e
depoimentos de várias pessoas envolvidas com a pesquisa
arqueológica, inclusive moradores locais69.
Nem todos os objetos passam pelo contexto arqueológico antes de
chegarem ao contexto museológico, passando diretamente do contexto
primário ao contexto museológico.
68 O registro arqueológico “es la parte de la metodología que inventaría
(recoge, observa, define, identifica, ordena y ficha) los bienes arqueológicos,
que, por su mediación, pasan a ser bienes patrimoniales. El registro
arqueológico es el instrumento metodológico que autentifica el hallazgo, lo
convierte en patrimonio arqueológico y lo transmuta en dominio público.” (De
la Torre, 2017, p. 27)
69 Um bom exemplo é a exposição Loulé: territórios, memória e identidades,
realizada no Museu Nacional de Etnologia, em Portugal, de 21 de junho de
2017 a 23 de junho de 2019 e disponível online em
http://www.museunacionalarqueologia.gov.pt/?p=7573. Em um módulo final
da exposição quem a visita é convidado(a) a conhecer mais de 20 habitantes
67
236
Museologia e Património – Volume 8
Tanto eu no meu texto (resultante de minha dissertação de
mestrado em Arqueologia) como Peter Van Mensch estávamos nos
referindo a patrimônio arqueológico e a museus de Arqueologia, mas
evidentemente isto é válido para museus de outras naturezas, que
podem (ou devem) apresentar os processos de produção do
conhecimento e suas conexões com a formação de coleções nas mais
diferentes áreas do conhecimento, que vão da História às ciências
naturais, passando pela Antropologia, História da Arte, etc. Estas
estratégias são também pedagógicas no sentido de mostrar como se
constroem os saberes, algo tão importante em tempos de negacionismo
científico e de confusão entre ciência e opinião70.
A metamuseologia seria um passo a mais, de mostrar ao
público outras camadas de mediação que são adicionadas às coisas
desde sua entrada no museu, e desnaturalizar também a musealização,
evidenciando interesses, escolhas, prioridades, silenciamentos,
tensões, desconfortos, disputas. Tudo isto é extremamente didático,
conduz o público a um olhar sem ingenuidades sobre o discurso que
tem diante de si e, na melhor das hipóteses, a uma consciência crítica e
capacidade de leitura de mundo (Freire, 1989) que o acompanharia em
outras visitas de museus, tornando-o autônomo, e na própria vida.
No texto sobre o itinerário biográfico de uma garrafa de sidra
Thierry Bonnot (2015) nos apresenta os percursos que levaram uma
garrafa de grés produzida em Palinges a uma exposição em uma
pequena igreja em Comblot, na França. Em seu trabalho de etnografia,
o autor persegue toda a cadeia operatória de produção da garrafa
desde o ponto de coleta da argila. Tornada mercadoria pelo processo
industrial de produção das garrafas em meados do século XIX, ela é
provavelmente transportada por barcos até uma fábrica de sidra na
Normandia, onde não é mais vendida como recipiente, mas como sidra
que, após consumida, tem novo estatuto: de simples resíduo. Seu
último uso neste contexto ainda primário (mas com tantas camadas,
da cidade de Loulé que são considerados(as) guardiães e guardiãs do
patrimônio arqueológico do município e que colaboraram com o Museu
Municipal doando peças, ou que ainda mantém e zelam pelos sítios
arqueológicos em suas propriedades.
70 Sobre a importância dos museus exprimirem controvérsias e perguntas
mais que afirmações reificadas, sugiro a leitura de Doom (2020).
237
Museologia e Património – Volume 8
vejam), é o reaproveitamento da garrafa como material de construção
na obstrução de uma pequena janela durante a reforma da igreja em
Comblot, onde acaba ainda por se tornar, além de parte da edificação,
habitação de um enxame de abelhas. Ela é encontrada pelos
arqueólogos em 1998 neste vilarejo de 68 habitantes, onde segundo o
autor, provavelmente não seria tocada se não fosse a necessidade de
remover a colmeia de abelhas no processo de restauração da igreja.
Este exercício de retraçar sua biografia nos mínimos detalhes
faz com que o objeto, absolutamente banal, seja revestido de um
grande interesse e a paróquia deseje expô-la como parte do patrimônio
local quando da reabertura da igreja. Bonnot aproveita para lançar no
texto uma série de provocações sobre que localidade teria mais
legitimidade para patrimonializar a garrafa (Palinge ou Comblot?) Ou
ainda qual a última etapa de sua biografia, lembrando que
“o advento patrimonial que constitui para o objeto a
entrada no museu não é um fim de percurso, um
estatuto definitivo: ele pode ser exposto ou colocado
na reserva, emprestado ou utilizado pelo pessoal do
museu em questão – para decorar o balcão da
recepção, por exemplo.” (Bonnot, in Duarte Cândido
& Ruoso, 2015, p. 139)
O autor lembra ainda que “A biografia de uma coisa é, de fato, a
história das suas singularizações sucessivas e das classificações e
reclassificações às quais ela foi submetida.” (Bonnot, in Duarte Cândido
e Ruoso, 2015, p. 146) Isto nos leva a concluir que sua apresentação em
um museu não deveria privilegiar somente o contexto primário (P) e
nem mesmo uma somatória de contexto primário e contexto de
pesquisa básica71 (PB) – que uso aqui para substituir o contexto
arqueológico de Peter van Mensch e adaptar seu esquema a outras
tipologias de museu –, mas também exprimir em seu discurso
expositivo o contexto museológico (M). Se “examinar a biografia das
coisas pode dar grande realce a facetas que de outra forma seriam
Para compreender minha maneira de usar pesquisa básica em museu como
algo diferente da pesquisa aplicada ou pesquisa museológica, ver Duarte
Cândido (2019).
71
238
Museologia e Património – Volume 8
ignoradas” (Kopytoff, 1986, p. 93), é importante jogar luz também
sobre o que se passa na sua vida depois que elas chegam ao museu,
pois sua trajetória não se encerra aí. Por outro lado, considerar e
revelar nas exposições museológicas os sucessivos contextos (P – PB –
M) permitiria um caminho na direção das perspectivas decoloniais
sobre o colecionamento evocados por Camila Moraes Wichers, já que
raramente vemos neles “a história das coleções, no que tange as formas
de coleta e inserção desses vestígios nos museus, tantas vezes
marcadas por saques e espólios.” (Moraes Wichers, 2019, p. 60).
3. Metamuseologia: mostrar as entranhas do processo de
musealização
Temos aqui, portanto, uma vasta gama de argumentos que
sugerem adotar o discurso da metamuseologia em exposições, com o
intuito de promover uma pedagogia museológica. Esta pedagogia,
segundo Bruno (2006), é capaz de levar à reflexão crítica sobre as
escolhas feitas no decorrer do processo de musealização e também
sobre sua reversibilidade. Desta forma, indica que a Museologia não
apenas socializa os resultados de seu trabalho, mas também é capaz de
compartilhar procedimentos técnico-metodológicos e mesmo suas
formas de pensar e de conduzir processos, o que está em sintonia com
as tendências contemporâneas para uma Museologia mais
participativa, colaborativa e co-criadora.
Ela também explica a razão de alguns museus contemporâneos
escolherem deixar traços das antigas formas de musealizar e expor
como estratégias de promover reflexão crítica, desde que isto não seja
subterfúgio para manter as coisas imóveis. Evidentemente é
necessário, para que o público acompanhe esta proposta
autorreflexiva, que não seja simplesmente um abandono das
possibilidades de transformação, mas a criação de dispositivos em
metalinguagem que permitam se interrogar sobre os próprios gestos
de colecionar e de expor72. Porém, estas estratégias não convêm
O Africamuseum de Tervuren, na Bélgica, tentou com estes recursos se
recolocar quando da abertura, em 2019, diante da imagem do museu mais
emblemático do colonialismo, uma herança ou identidade difícil de superar,
ainda mais pelo fato do tombamento da edificação em que se encontra ter sido
72
239
Museologia e Património – Volume 8
sempre. Em seu texto de 2007, Durand se refere à ideia de
musealização de um museu como algo desconcertante, quando críticas
ao fechamento do Museu de Arte Popular de Portugal consideram
“que, além do edifício, tinha de se preservar o seu projecto e o
tipo de olhar que propunha sobre a ’cultura popular’”
(Durand,
2007, p. 380).
Portanto, é necessário cuidar para que este tipo de abordagem
não seja instrumentalizado como justificativa para tudo manter
conservado como no passado, expressão de pura nostalgia e
acomodação. O que está sendo discutido aqui é a possibilidade
eventual de manutenção (ou recriação) de algumas referências à forma
de musealização já considerada ultrapassada, como elementos
pedagógicos. Estas referências podem suscitar uma partilha, com o
público, de reflexões e escolhas que ocorrem nos bastidores dos
museus, ao longo do processo curatorial73, e, consequentemente, de
seus aspectos políticos.
Para Martin Schärer (2018), o interesse deste tipo de exposição
está em compartilhar com o público um pouco da reflexão teórica da
Museologia. Para ele isto faz tanto sentido quanto também já foi
experimentado por outros tipos de mídias, como o teatro de Bertold
Brecht. Esta posição assume (e compartilha com o público)
notadamente a consciência da não neutralidade do museu, ao
evidenciar seus mecanismos de controle do passado, dos quais os(as)
profissionais de museus são conscientes, mas o público, nem sempre:
« C’est pourquoi le musée n’est pas du tout aussi
neutre ni, en un sens, aussi inoffensif qu’il semble
être à première vue. Ne fait-il que rassembler de
vieux objets qui ne sont plus utilisés ou de
prestigieuses pièces de collection que l’on se doit
d’admirer? Si tel était le cas, un examen plus
approfondi révélerait le danger d’une telle
feito juntamente com as pinturas murais e outros elementos arquitetônicos
dificilmente aceitáveis hoje em perspectivas decoloniais.
73 Adoto aqui o conceito de curadoria como “ciclo completo e todas as ações
em torno do objeto museológico - formação de coleções, pesquisa,
conservação, documentação, exposição e educação” (Cury, 2021, p. 15).
240
Museologia e Património – Volume 8
entreprise. Comme le musée ne peut ni tout réunir ni
tout exposer, il doit forcément sélectionner les objets
qu’il acquiert et ceux qu’il expose. Or, cette sélection
et la manière de présenter les objets sont non
seulement soumises à des modes, mais elles sont
également très subjectives. Le musée comme lieu de
communication multimédiatique, de fiction et de
manipulation est donc tout sauf une institution
neutre. Il transmet aux visiteurs de manière latente,
mais très rarement en thématisant cette dimension,
une conception particulière de l’histoire et du
monde. Cette position de contrôle sur le passé (et
donc sur l’avenir) confère de fait un certain rapport
de force dont il faut user consciemment et de
manière responsable. »74 (Schärer, 2018, p. 16)
A título de exemplo, Schärer compartilha o processo de criação
de uma parte da exposição de longa duração no Museu que dirigiu em
Vevey, na Suíça, o Alimentarium. Trata-se de uma intervenção na
exposição de longa duração que como se pode imaginar, tem como
tema alimentação. Para esta intervenção foi adotado um objetogerador, como diria Régis Lopes Ramos (2004) uma sopeira:
“É por isso que o museu não é de modo algum tão neutro ou, de certa forma,
tão inofensivo quanto parece à primeira vista. É apenas uma coleção de
objetos antigos que não estão mais em uso, ou itens de colecionadores de
prestígio que devem ser admirados? Se este fosse o caso, um olhar mais atento
revelaria o perigo de um tal empreendimento. Como o museu não pode coletar
e exibir tudo, ele deve necessariamente selecionar os objetos que adquire e
aqueles que exibe. Mas esta seleção e a forma como os objetos são
apresentados não estão apenas sujeitos à moda, eles também são altamente
subjetivos. O museu como lugar de comunicação multimídia, ficção e
manipulação é, portanto, tudo menos uma instituição neutra. Ela transmite
aos visitantes de forma latente, mas muito raramente tematizando esta
dimensão, uma concepção particular da história e do mundo. Esta posição de
controle sobre o passado (e, portanto, sobre o futuro) confere um certo poder
que deve ser usado de forma consciente e responsável.” (Tradução livre)
74
241
Museologia e Património – Volume 8
« il s’agit d’un dispositif théorique, heuristique, qui
ne veut et ne peut expliquer une réalité beaucoup
plus complexe. Le but de cette installation est
d’ouvrir des pistes de réflexion sur des phénomènes
muséologiques. Le visiteur intéressé (plus exigeant
que la moyenne, il est vrai!) a très bien accueilli ce
message, qui a peut-être transformé son regard et sa
compréhension de l’exposition. »75 (Schärer, 2018, p.
21)
Após esta introdução o(a) visitante chega a um livro gigante
sonorizado criado em torno da sopeira, que procura explicar a
exposição como uma mídia pela qual se podem transmitir as diferentes
etapas da biografia da sopeira, desde o momento em que é utilizada,
guardada como lembrança, colecionada e conservada, até sua entrada
no museu e a própria exposição. Estressando a temática, o autor nos
provoca a pensar a possibilidade de criação de um “Musearium”, um
museu museológico onde os temas seriam a Museologia e o próprio
museu (Schärer, 2018, p. 21) e passar a apresentar diversos casos de
museus que já enveredaram por esta reflexão metamuseológica em
suas exposições.
4. A metamuseologia espalhada em exposições pelo mundo
Outros exemplos de grande interesse poderiam ser
mencionados, como a exposição Exercício de inventário: a propósito de
duas doações de olaria portuguesa, no Museu Nacional de Etnologia, de
Portugal76, que privilegiou revelar ao público os procedimentos de
documentação museológica de uma coleção de alfaias rurais; e a
"É um dispositivo teórico, heurístico, que não explica e não pode explicar
uma realidade muito mais complexa. O objetivo desta instalação é abrir
caminhos para a reflexão sobre os fenômenos museológicos. O visitante
interessado (reconhecidamente mais exigente do que a média!) acolheu muito
bem esta mensagem, o que pode ter transformado sua visão e compreensão da
exposição. " (Tradução livre)
76 A exposição pôde ser vista até 21 de setembro de 2011. Mais informações
em
https://mnetnologia.wordpress.com/2008/10/29/exercicio-deinventario-a-proposito-de-duas-doacoes-de-olaria-portuguesa/.
75
242
Museologia e Património – Volume 8
exposição Jews, Money, Myth, realizada de 19/03 a 17/10/2019 no
Museu Judaico de Londres77, que apresentou entre os textos todo um
diálogo entre o curador e o diretor da instituição discutindo o que e
como apresentariam, inclusive a decisão de abrir seus diálogos no
formato de textos apostos às paredes da exposição. Também a
exposição de longa duração do Museu Histórico Abílio Barreto, em Belo
Horizonte explorou este recurso.
Figura 2: Texto da exposição Jews, Money, Myth. Museu Judaico de
Londres, 2019. Foto: Léontine Meijer-van Mensch
77
https://jewishmuseum.org.uk/exhibitions/jews-money-myth/.
243
Museologia e Património – Volume 8
Na Bélgica, posso destacar a exposição Les trucs (As coisas), no
MAS78, da cidade de Antuérpia até 01/05/202279. Trata-se de uma
exposição temporária que foi montada na entrada da reserva técnica
visível80 do museu, portanto, encontra-se em diálogo com ela,
provocando reflexões sobre acumulação e sobre o colecionamento
como forma de organizar o mundo. A exposição tem como ponto de
partida a aquisição, pelo museu, de uma coleção de 10.000 objetos
coletados pelo filósofo belga Jaap Kruithof (1929-2009). Eles são
apresentados como “objetos que ninguém quer”. O filósofo tinha, entre
seus interesses, uma crítica da cultura do descartável. Com sua morte e
musealização da coleção em 2018, o museu pretendia investigar o
valor destes objetos. Um primeiro experimento é a instalação dos
artistas Guy Rombouts e Benjamin Verdonck, criada a partir de metade
da coleção, que ancora a exposição. Ela mostra, nas paredes, fichas com
fotografias dos objetos, tendo em destaque seus números de
inventário. Uma seleção ampla de objetos é apresentada em uma
vitrine ao nível do solo. A reflexão intrínseca é sobre acumulação: são
objetos absolutamente banais que ganham significado ao estarem
juntos, constituindo o registro material de um pensamento. A sala
seguinte da exposição se constitui pela reserva visível, que permite às
pessoas que visitam compreender um pouco dos bastidores do museu.
Ainda na Bélgica, a ação denominada Apporte-moi ton trésor,
realizada pelo Prehistomuséum de Ramioul em fevereiro de 2020,
trazia uma proposta que posso associar à metamuseologia, embora não
tenha sido concebida com base em premissas teóricas da Museologia,
mas por uma das arqueólogas da equipe do museu. Vale dizer que esta
instituição já recorre a artifícios metamuseológicos desde sua criação,
pois o seu Centre de conservation, d’étude et de documentation (CCED) é
uma área de trabalho visível ao público que pode, assim, como parte do
O museu é mais conhecido pela sigla de sua denominação em holandês,
Museum Aan de Stroom, que quer dizer Museu sobre o rio.
79 https://mas.be/fr/trucs. .
80 A reserva técnica visível, também experimentada no Museu do Quai Branly
em Paris, por exemplo, não chega a ser uma reserva técnica visitável porque
visitantes não podem realmente entrar nela e ali realizar um percurso, mas
podem, ainda que de seu exterior, visualizar parte dela através de superfícies
transparentes (vidro, acrílico) ou vazadas, como telas em metal.
78
244
Museologia e Património – Volume 8
percurso de longa duração do museu, visualizar parte da reserva
técnica e dos laboratórios, com indicações precisas e dispositivos de
mediação que chamam a atenção para a cadeia operatória de trabalho
por trás das exposições, da escavação à conservação, estudo e difusão
de acervos e pesquisas. O texto de introdução desta parte da exposição
dá o tom:
« ARCHÉOLOGIE, MÉTIERS ET RECHERCHE
En parcourant cette exposition, découvrez toutes les
facettes des métiers de l’archéologie, de la fouille à la
diffusion des données archéologiques, en passant
par la conservation et l’étude des collections.
Vous pénétrez dans le véritable Centre de
conservation, d’étude et de documentation du
Préhistomuséum, et découvrez la face cachée du
musée.
À l’aide de votre tablette, explorez les réserves,
rencontrez des spécialistes de l’archéologie et faites
apparaître
l’invisible.
Bonne
visite ! »81
(Préhistomuséum, s.d.)
Como o texto anuncia, a visita é autônoma, com mediação
realizada por meio de tablets que ficam à disposição de visitantes. É
possível perceber, na imagem a seguir, a simulação do próprio sítio
arqueológico, ao centro, por meio de uma adesivagem no chão, os
locais de onde se visualizam a reserva técnica (esquerda), os trabalhos
de gabinete (em frente) e parte do trabalho de difusão do museu por
meio de suas publicações à direita. Infelizmente a comunicação por
meio de exposições e ações educativas não aparece evidenciada nesta
cadeia operatória, que acaba por privilegiar os trabalhos no âmbito da
“ARQUEOLOGIA, PROFISSÕES E PESQUISA
Nesta exposição, você descobrirá todas as facetas da arqueologia, desde a
escavação até a divulgação de dados arqueológicos, incluindo a conservação e
o estudo de coleções.
Você entrará no verdadeiro Centro de Conservação, Estudo e Documentação
do Préhistomuséum, e descobrirá o lado oculto do museu.
Com a ajuda de seu tablet, explore as reservas, encontre especialistas em
arqueologia e faça o invisível aparecer. Boa visita!” (tradução livre).
81
245
Museologia e Património – Volume 8
Arqueologia82. As áreas mencionadas são dotadas de QR codes que,
lidos pelos tablets, informam sobre os trabalhos que se realizam ali.
Figura 3: Préhistomuséum, Ramioul (2018).
Foto: Manuelina Duarte
Também à esquerda e em frente, uma série de caixas com
artefatos e documentos de campo, devidamente protegidas com
tampos de vidro, possui igualmente os QR codes que remetem a
informações sobre as diferentes etapas da pesquisa e do tratamento
dos artefatos, destacando a diversidade de profissionais que compõem
a equipe como arqueólogo(a), administrador(a), geólogo(a), técnico(a)
de escavações, técnico(a) de coleções, conservador(a), fotógrafo(a),
desenhista, designer gráfico(a), educador(a)83, etc. A cada etapa da
cadeia operatória são informadas as profissões a ela associadas e as
Importante lembrar que a Museologia na Bélgica é considerada uma
especialização da formação em História da Arte e Arqueologia ou algo que se
aprende na prática em museus, mas não um campo autônomo.
83 A declinação das profissões no feminino foi opção minha e não aparece no
original, embora o francês diferencie as grafias destas profissões no masculino
e no feminino. A escrita inclusiva é ainda mais rara em museus belgas que nos
brasileiros, bem como os postos superiores dos museus ocupados
predominantemente por homens, e o campo da Arqueologia bastante sexista.
82
246
Museologia e Património – Volume 8
atividades realizadas, que podem inclusive ser simuladas (como
higienizar ou numerar um artefato, por exemplo) por meio de
realidade aumentada.
Figura 4: Préhistomuséum, Ramioul (2018).
Foto: Manuelina Duarte
Para a ação Apporte-moi ton trésor, infelizmente realizada
apenas pontualmente, e não integrante dos programas regulares de
ação educativa do museu, cada criança era convidada a trazer seu bem
mais precioso, um brinquedo. Com este objeto em mãos, a criança
participante é conduzida a agir simulando o trabalho do museu,
passando-o pelas etapas de quarentena, lavagem, condicionamento,
descrição e, finalmente, inscrição de seu tesouro no “patrimônio da
humanidade”:
« En effet, au-delà de cette expérience concrète, c’est
toute une réflexion muséologique qui est abordée, en
toute transparence, par le musée. Comment des
objets archéologiques sont-ils arrivés au sein de
l’institution ? Qui les accueille et les légitime en tant
que patrimoine ? Comment fait-on pour les intégrer
247
Museologia e Património – Volume 8
à une collection ? Quels valeurs ou statuts attribue-ton à cette collection ? »84 (Collineau, 2020, p. 56).
Durante a atividade, todo um trabalho de apresentação dos
materiais neutros usados pelo museu e de suas funções também é
realizado. Da mesma forma, na simulação do inventário, toda uma
explicação sobre a necessidade de recolher o máximo de informações
possíveis sobre o objeto no momento de sua entrada para o acervo
também é realizada. O público, mesmo o infantil, pode, portanto,
compreender e passar a ter elementos para refletir criticamente sobre
as escolhas e sobre os procedimentos realizados internamente pelo
museu:
« Cette expérience propose donc de partager avec un
jeune public, en adoptant un discours à sa mesure,
les doutes et la remise en question constants que
suscite la préservation d’une collection. La nécessité
pour le personnel muséal, en charge des collections,
de faire des choix pour la bonne préservation des
objets et artefacts inscrits au patrimoine. La lecture
de cette expérience nous permet de mettre en
lumière l’utilité et l’intérêt que cela a pour le public
de découvrir le fonctionnement d’une institution, les
divers métiers ou professions que celle-ci abrite et
surtout l’importance de sa mission au sein de la
société. »85 (Collineau, 2020, p. 64).
“Na verdade, além desta experiência concreta, o museu está se aproximando
de toda uma reflexão museológica, com transparência. Como é que os objetos
arqueológicos chegaram à instituição? Quem os acolhe e os legitima como
herança? Como eles são integrados em uma coleção? Que valores ou status são
atribuídos a esta coleção?” (tradução livre)
85 “Esta experiência se propõe, portanto, a compartilhar com um público
jovem, adotando um discurso adaptado às suas necessidades, as constantes
dúvidas e questionamentos que a preservação de uma coleção suscita. A
necessidade do pessoal do museu, encarregado das coleções, de fazer escolhas
para a preservação adequada dos objetos e artefatos inscritos no patrimônio.
A leitura desta experiência nos permite destacar a utilidade e o interesse do
público em descobrir o funcionamento de uma instituição, os diversos ofícios
84
248
Museologia e Património – Volume 8
5. Considerações finais
O interesse principal deste tipo de atividade é, a meu ver,
revelar para o público as engrenagens da musealização, o que permite
enterrar, de uma vez por todas, o mito da neutralidade dos museus,
pois evidencia escolhas, interesses, atribuição e valores que
hierarquizam e priorizam certos objetos (e, portanto, certas
memórias), automaticamente deixando outras em segundo plano.
Outra potencialidade comumente destacada é suscitar vocações para o
trabalho no campo dos museus e do patrimônio. Estelle Collineau vai
mais além e lembra do potencial da metamuseologia para fazer evoluir
a própria Museologia, como forma de reflexão crítica sobre a prática
que por sua vez vai alimentar novas teorias (Collineau, 2020, p. 72).
Na acepção mais pedagógica, esta metamuseologia se constitui
como o que Cristina Bruno chama de pedagogia museológica:
Trata-se de uma pedagogia direcionada para a
educação da memória, a partir das referências
patrimoniais que, por um lado, busca amparar do
ponto de vista técnico os procedimentos
museológicos e, por outro, procura ampliar as
perspectivas de acessibilidade e problematizar as
noções de pertencimento”. (Bruno, 2006, p. 122)
Assim, defendo que a aplicação das estratégias baseadas na
metamuseologia no discurso dos museus junto a seus públicos,
notadamente em sua linguagem mais específica que é a exposição,
garante compartilhar com o público os processos internos ao museu
em seu tratamento do destino das coisas e, desta forma confrontar as
noções de permanência outrora tão caras ao mundo dos museus em
direção a noções mais dinâmicas e que considerem a reversibilidade, a
falha, a mudança de paradigma, a busca de outros futuros possíveis.
Isto é essencial para retirar os museus da esfera puramente ligada a
ou profissões que ela abriga e, especialmente, a importância de sua missão
dentro da sociedade.” (Tradução livre)
249
Museologia e Património – Volume 8
nostalgia e manutenção do status quo, conectando-os com o futuro e
com a transformação social.
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ISBN 978-989-8797-64-3