Antigos e Modernos
diálogos sobre a (escrita da) história
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Sumário
Prólogo
9
A redescoberta dos historiadores antigos no Humanismo
e o nascimento da historiografia moderna
Gabriella Albanese
19
Conquista e influências culturais.
Escrever a história da época helenística
no século XIX (Alemanha, Inglaterra, França)
Pascal Payen
71
O Direito e os costumes:
um exame comparativo
(Montaigne, Hotman e Pasquier)
Luiz Costa Lima
99
A construção do passado
nas crônicas assiro-babilônicas
Marcelo Rede
133
Arqueologia como Arqueografia
Marlene Suano
147
A nova “economia antiga”:
notas sobre a gênese de um modelo
Miguel Soares Palmeira
153
Antigos e Modernos:
Maquiavel e a leitura polibiana da história
Marie-Rose Guelfucci
169
Museus de História
O desafio de ver com outros olhos
Cecília Helena de Salles Oliveira
189
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Liberalismo, História e Escravidão:
Presença dos antigos na argumentação
de Joaquim Nabuco
Izabel Andrade Marson
205
Antigos, modernos e “selvagens”
na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen
Comparação e paralelo na escrita da
historia brasileira oitocentista
Temístocles Cézar
229
Borges e a Tradição Clássica
Hugo Francisco Bauzá
247
Maquiavel, a Corte dos Antigos e
(o diálogo com) Tucídides
Francisco Murari Pires
261
Piadas impressas e formatos da
narrativa humorística brasileira
Elias Thomé Saliba
291
A Heterogenneidade das Fontes Antigas
no Debate sobre a Escravidão moderna
Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron
309
Gramsci e a Escrita da História:
Uma leitura do Canto X do Inferno
Lincoln Secco
347
Mito, Razão e Enigma
André Malta
363
Vida e Sonho em Calderón de La Barca:
o espelho do político e do onírico na
tragicomédia de Segismundo
Luís Filipe Silvério Lima
375
401
Experiência e método
José Otávio Guimarães
415
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Como Um Barco à Deriva
Entrevista com Jean-Pierre Vernant
José Otávio Guimarães
Vistas Urbanas, Doces Lembranças
as funções narrativas e ornamentais
nas paisagens e retratos fotográficos
Solange Ferraz de Lima e
Vânia Carneiro de Carvalho
421
441
A sociologia comparada de Marcel Mauss:
da civilização ao dom
Marcos Lanna
459
Antigos e Modernos na historiografia
acadêmica portuguesa e brasílica
Íris Kantor
483
A recuperação da Antigüidade clássica e a
instalação da república nos Estados Unidos da América
(fins do XVIII e início do XIX)
Mary A. Junqueira
“Wie es eigentlich gewesen ist”,
“Wie es eigentlich geschehen ist”:
a percepção rankeana da história frente às
vicissitudes da subjetividade em Freud
Ana Lúcia Mandacarú Lobo
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Vida e sonho em Calderón de La Barca
o espelho do político e do onírico na
tragicomédia de Segismundo
Luís Filipe Silvério Lima
(Universidade Federal de São Paulo)
Vida
Se, em um exercício de mapeamento do imaginário contemporâneo, formos elencar
os personagens que povoam a nossa imagem sobre o século XVII, o chamado “Século
Barroco”1, provavelmente encontraremos quase todos eles contidos na biografia de Pedro
Calderón de La Barca. De família fidalga, estudou com os Jesuítas em Madri e freqüentou
os bancos das Universidades de Alcalá e Salamanca (centros da Segunda Escolástica).
Caiu em desgraça logo depois, mas reverteu esse quadro ao entrar na rede de serviços do
Duque de Frias como cortesão, acompanhando-o em viagens pelas cortes da Itália e de
Flandres. Foi quando começou a escrever suas comédias, e com o sucesso de suas peças,
voltou à Madri onde ganhou a mercê de poeta oficial da Corte de Felipe IV. Integrado à
corte castelhana, lutou nas guerras da França (1638) e Catalunha (1640), como vassalo
do Rei e nas fileiras do Duque do Infantado. Por fim, em 1651, ordenou-se sacerdote, foi
nomeado capelão dos Reis Novos de Toledo e depois retornou a Madri, como CapelãoReal.
Fidalgo, vassalo, cortesão, poeta, dramaturgo, padre, teólogo. Dessas figuras surge o
elenco imaginado por nós sobre o mundo letrado e eclesiástico das cortes e do mundo
1
Eduardo D’Oliveira França. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997.
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seiscentista. O fato de ter nascido em 1600, anunciando o novo século em conjunto com
o fim do auge da Monarquia Habsburga ibérica, e morrido quase ao final dele, em 1681,
quando as pretensões dos Áustria nas Espanhas e no Ultramar estavam quase soterradas
parecem reforçar sua figura de homem do século XVII. Os temas especulares de suas peças
somam-se a esses vários personagens vividos para elegê-lo autor e homem “barroco”.
Trata-se de uma simplificação, por certo. Mas se o epíteto de “homem barroco” não
dá conta por completo da figura de Calderón e de suas peças, ilumina seu papel e o de
sua obra na crítica literária e nos estudos históricos sobre o final do “Século de Ouro” da
cultura espanhola.
A figura e a obra de Calderón transformaram-no para nós, hoje, em exemplo paradigmático do século XVII ibérico. Para o bem e para o mal. Homem vertiginoso, em crise,
multifacetado, no qual se juntariam sagrado e profano, mas que se perderia em meio
a tantos lugares e funções, ou ainda, se caracterizaria como um simples adulador que
rondava os poderosos em busca de algum favor e benesse. Peças que, para nosso olhar
contemporâneo, (de)mo(n)strariam contradições, duplicidades, indefinições entre o
imaginado e o real de uma época que veria desmoronar suas bases, mas que, exatamente
por isso, pecava pelo exagero, pelo abuso de ornamentos, pela ausência de verossimilhança na ação, pela falta de definição e método, pela moral falha. Lugares comuns que
fizeram com que a sua recepção a partir de meados do XVIII fosse, em geral, negativa.
Se Calderón fora autor de grande fama ao longo do XVII, caiu em desgraça no século
seguinte provavelmente pelas mesmas razões que o elevaram a poeta da corte. Somente
em meados do século XIX, um pouco impressionada pelos elogios de alguns expoentes
do romantismo alemão à tragédia calderoniana, como Schlegel, a crítica voltou a olhar
e valorizar alguns aspectos de sua obra e trajetória2. Mas, como se para compensar os
quase dois séculos que ficara à margem, a crítica exponenciou essas características em
quase caricatura e o transformou em síntese do “Barroco” espe(ta)cular e formado por
contradições.
O “Barroco”, categoria criada posteriormente para definir uma série de práticas do
século XVII, seria moldado por pares antitéticos, por espelhamentos, por crises do sujeito
(e deste diante do mundo), por contradições, por indefinições. Se toda essa caracterização chocava e até horrorizava certa vertente classicista dos intelectuais desde o século
XVIII bem como alguns conservadores ultra-montanos, papistas do século XIX, passou
a fascinar muitos acadêmicos e artistas do século XX. “Barroco”, que antes era sinônimo
2
Para uma visão geral da crítica calderoniana, entre outras leituras, vali-me dos dois volumes dessa antologia:
Manuel Durán; Roberto González Y Echeverría. Calderón y la crítica: historia y antología. Madrid: Gredos, 1976,
2 vols, em especial: “Calderón y la Crítica”, p. 13-125.
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de confusão, raciocínio obtuso, obscurantismo, tudo tão retorcido e não-linear como
a pérola torta e disforme da qual teria emprestado seu nome3, transformou-se em genialidade, percepção contemporânea, complexidade – e até mesmo síntese do mundo
pós-moderno e da latino-americanidade.
Hoje, ao se falar em “Barroco” ou “Cultura Barroca”4, acionamos em nossa mente uma
série de definições semelhantes a adjetivos que saltam como ferramentas de um canivete
prontas para abrir uma caixa parafusada: crise, opostos, contrários, torção, reflexo, dobra.
Muitas vezes, no entanto, a caixa, uma vez aberta, revela-se vazia5.
Nem tanto ao mar nem tanto à terra, entre o céu e o inferno, podemos localizar Calderón e esta obra que aqui se analisa, A vida é sonho, num lugar mediano, buscando situálos, se possível, a partir dos pressupostos que ordenaram sua produção e que fizeram com
que da infâmia o nosso poeta chegasse à fama em seu tempo.
Sonho
Nesse sentido, a primeira coisa a se reparar é na máxima que dá título à peça: “A vida
é sonho” seguida nas falas de Segismundo, protagonista da comédia, pela afirmação de
que “sonhos, sonhos são”.
A figura do sonho como metáfora da vida era comum na obra de Calderón6. O próprio título da comédia, A vida é sonho, impressa em 1636, em Madri, na Primera Parte
de Comedias de Don Pedro Calderón de La Barca e, quase simultaneamente, em Zaragoça,
na Parte treynta de comedias famosas de varios Autores, serviu também para dois autos
sacramentais, um escrito provavelmente na mesma década da comédia, e outro de 1673,
na maturidade de Calderón. Mais que isso, a idéia de que a vigília e a ação humana não
passavam de pura ilusão e, portanto, eram como os sonhos que acabavam era recorrente
nos textos ibéricos (e europeus, a ver as peças de Shakespeare, por exemplo, Sonhos de
3
Para uma genealogia da palavra “Barroco”, ver: Helmut Hatzfeld. “Uso e abuso do termo barroco na História
Literária”, In: Estudos sobre o Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1988, cap. 12.
4
5
José Antonio Maravall. A cultura do Barroco. Análise de uma estrutura histórica. São Paulo: Edusp, 1997.
Para uma análise da categoria “Barroco” e de suas diversas acepções e apropriações na crítica e historiografia,
ver: João Adolfo Hansen. “Barroco, Neobarroco e outras Ruínas”. Teresa – Revista de Literatura Brasileira da USP.
n. 2, 2001, p. 10-66.
6
Mário Martins. “O sonho e o teatro na mundividência de Caldéron de la Barca”. Separata de Didaskalia, 10, 1982;
Lygia Rodrigues Vianna Peres. Maravilhoso no teatro de Calderón de La Barca: sonhos, visões e aparições. Tese de
Doutorado em Literatura Espanhola, FFLCH, USP, 1992.
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uma noite de verão ou Hamlet)7 dos séculos XVI e, particularmente, XVII8. Idéia cara
especialmente àqueles que buscavam pelas letras instruir e doutrinar os espíritos da audiência. A expressão “sueños, sueños son” aparece em La Austriada (1584), de Juan Rufo9,
Tragedia de la honra de Dido restaurada (1587), de Gabriel Lobo Lasso de la Vega10, e em
La Arcadia (1598), de Lope de Vega11, no qual o sonho é descrito como um engano tal
qual as ilusões e imaginações do amor.
A genealogia dessas tópicas é longa. Podemos recuar até a Odisséia, ao episódio das
portas do sonho que conta Penélope. Podemos remetê-la indiretamente a Platão, no episódio da República da visão de Er; à sua leitura latina, o sonho de Cipião na República de
Cícero; e, talvez, sobretudo, aos Comentários ao sonho de Cipião de Macróbio como chave
para compreensão do cosmos12. Essa tradição das coisas mundanas como reflexos de uma
idéia de Verdade, simples sombra, mero sonho, teve grande impacto na literatura cristã
ocidental – inclusive por meio da leitura de Macróbio. Contudo, desde o século XVI, ganhou nova força, pois foi somada a uma interpretação e economia das coisas do mundo
que unia a esses elementos uma necessidade prática de ação e de ordem da Igreja e da
República, baseada em uma leitura causal e relacional entre Providência e ação humana.
O sonho era, no repertório de lugares do século XVII, comparável ao teatro. Ambos
encenavam imagens fictícias, porque fingidas, que remetiam a imagens vividas ou da
vigília. O sonho era efeito das atividades diurnas, como afirmou Aristóteles, em alguns
capítulos reunidos no Parva Naturalia e retomados como uma das fontes principais para
a interpretação dos sonhos no período moderno.13 O que se via em sonhos, dormindo,
7
Cf. Laura Ana Leo de Belmont. El concepto de la vida en el teatro de Lope de Veja, William Shakespeare, Calderón
de La Barca. Mendoza, Argentina: Universidad Nacional de Cuyo, 1984.
8
Otto Maria Carpeaux. “Teatro e Estado Barroco” Estudos Avançados. vol. 4, n.10, Sep./Dec. 1990, p. 10 e segs.
9
“Fantasmas y planetas son patraña, Los sueños sueños son, no ley divina” Juan Rufo. La Austriada. Madri: Rivadeneyra, 1854.
10
“Porque con ser mis contentos sueño ligero y fingido, aun en sueños no he tenido fingidos contentamientos. ¡Oh
triste imaginación, para el mal siempre despierta! ¿Quién dirá, viéndoos tan cierta, que los sueños sueños son?”
Gabriel Lobo Lasso de La Veja. Tragedia de la honra de Dido restaurada. Kassel: Reichenberger, 1986, p.73.
11
“Voy donde el sueño me guía y, si me pone en aprieto, no me engañará, os prometo, más, a la fe, madre mía,
cuyo tiene ya mi vida, con que vive tan ufana que, sin voluntad de Ana, no espera gloria cumplida. De mí tiene
possessión, nadie se la contradize, mas el fin d’este me dize que [los] sueños sueños son” Lope de Veja Carpio. La
Arcadia. Madri: Castalia, 1975, p. 211-212.
12
Macrobius. Commentary on the dream of Scipio. (Translated with an introduction and notes by William Harris
Stahl). Nova York: Columbia University Press, 1990.
13
Aristotle. “On sleep and waking”, “On dreams”, “On Prophecy in Sleep”, In: On the Soul. Parva Naturalia. On
breath. vol. VIII. Aristotle in twenty-three volumes Cambridge: Harvard University Press, 1986, The Loeb Classical
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eram as imagens vistas ou imaginadas durante a vigília que tinham sido impressas e gravadas na memória. À noite, ao dormir, tais imagens soltavam-se da memória por ação
involuntária dos vapores digestivos, remexidos ainda pela mudança de posição do corpo.
Libertadas sem ordem, arrancadas pelos vapores, apareciam à fantasia aleatoriamente e a
fantasia gerava os sonhos sem sentido, frutos das imagens diurnas. O teatro era encenação fingida de ações imaginadas que (a)pareciam como relacionadas ao mundo vivido,
mas sempre como possibilidades e verossímeis. Mais importante, tanto o sonho como o
teatro, usados como exemplo, lembravam aos seus espectadores que o mundo vivido era,
ao fim, também uma profusão de imagens sem sentido e fingidas, e que, ao se encerrar as
cortinas da vida ou abrirem-se os olhos da pequena morte (figura do sono), nada restava,
exceto as impressões e devaneios. Nada restava, pois a vida humana ela mesma, não era
nada além de uma imagem do Criador.
Para a doutrina ibérica, católica e tridentina seiscentista, a vida era sonho, o mundo,
um teatro, porque a Verdade estava fora do mundo, externo ao mundo, em Deus. E assim,
tudo era figura e imagem de Deus e efeito da Criação. Tudo era um sonho e teatro da
Criação e do Criador14.
Remetendo às causas aristotélicas, sob uma chave tomista e da segunda escolástica,
a Causa Primeira do Mundo, Deus Criador, também apontava para a Causa Final, Deus
Julgador. A Criação, origem de tudo, na qual o Humano fora feito com alma imortal,
razão e livre-arbítrio, apontava necessariamente para o seu fim, o Julgamento Final,
quando se separaria o joio do trigo, ou seja, aqueles que condenaram a alma ao usar a razão e o livre-arbítrio para o erro, sucumbindo aos desejos corporais e terrenos, daqueles
que se salvariam, pois aplicaram suas escolhas, de modo racional e livre, no controle das
suas paixões e afetos do corpo e da alma. A história humana seria o caminho da Criação
para o Julgamento Final. Deus dera à humanidade uma Graça: completar o Seu projeto,
o destino do mundo e da Criação por meio do livre-arbítrio. Aos humanos, tornados
causas segundas da Criação, restava seguir esse desidério, esse desígnio (Signo de Deus),
escolhendo entre o certo e o errado. As coisas materiais não tinham razão de ser, exceto
quando direcionavam para a salvação. Caso contrário, eram vaidades terrenas.
Essa salvação não se dava, porém, somente no plano individual. Pela doutrina derivada do Concílio de Trento e pregada pelos padres, especialmente os jesuítas, a salvação
dar-se-ia em conjunto, porque a ação humana completava o projeto geral de Deus e era
Library, 288; cf. Luís Filipe Silvério Lima. O império dos sonhos: narrativas proféticas, sebastianismo e messianismo
brigantino. Tese de Doutorado, História Social, USP, 2005, cap. 1; Maria V. Jordán Arroyo. Soñar la Historia.
Riesgo, creatividad y religión en las profecías de Lucrecia de León. Madri: Siglo XXI, 2007, cap. 2.
14
Cf. Otto Maria Carpeaux, “Teatro e Estado Barroco”, op. cit.
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mediada pelos “corpos místicos” da Igreja e, na esfera civil e temporal, das Monarquias
e Reinos. O fiel deveria evitar o pecado não só pela sua danação particular, mas porque
se pecasse, errasse, afetaria, como membro doente de um corpo maior, toda a Igreja e
seu Reino. Esse sentido corporativo transformava o príncipe em espelho do reino, em
personificação dos seus súditos e vassalos, que se refletiam na cabeça do corpo – o príncipe – e eram comandados por ela.15 Como face da mesma moeda, debitava-se sobre os
vassalos do rei a necessidade de agir de maneira justa e fiel, pois seu desvio não era só
seu, era do corpo místico, ou melhor, sua falta atrapalhava a boa harmonia do resto do
corpo. Se um pé, por cobiça ou vaidade, quer ser mão ou, por preguiça ou ira, não quer
mais andar, o resto do corpo se atrasa e se desequilibra. Como se recusava a predestinação
enquanto único argumento e se condenava, como superstição, o fatalismo divinatório ou
mesmo guiar os atos por adivinhações, sobre o indivíduo pesava, além de suas decisões
particulares, todo o destino geral: da família, da vila ou cidade, das repúblicas, do reino,
da cristandade. Falhar era condenar a todos. Tal responsabilidade pesava especialmente
sobre a cabeça do reino, o príncipe.
Por isso, era importante controlar os afetos, as paixões. Um bom governante (assim
como um bom súdito) era aquele que não se deixava levar pelos desejos, pela ira, pelas
ambições, pelos sonhos. Deixar-se governar por isso era um desgoverno, que refletia no
reino. Era seguir imagens vãs como as dos sonhos, que se acabavam ao raiar do dia.
Era achar que as cenas do teatro eram mais do que encenadas, eram o próprio objetivo
da vida. Ao mesmo tempo, se o sonho era fruto das ações diurnas – ou “relíquias dos
cuidados”, como disse Padre Antônio Vieira, nos sermões de Xavier Dormindo (1694)16 –,
as imagens oníricas poderiam denunciar práticas desviantes cometidas durante a vigília
e anunciar, se refletidas corretamente, o remédio para elas.
O sonho era, em uma medicina fundada em Galeno e Hipócrates, um bom meio
de diagnosticar doenças e desequilíbrios corporais, porque indícios da dieta seguida,
do funcionamento da digestão, da circulação dos humores e vapores.17 E, por analogia,
para o confessor, médico da alma, eram um modo de vislumbrar fontes de pecado. Os
manuais de confessores orientavam perguntar sobre os sonhos, pois podiam dar pistas
sobre as imagens pecaminosas vistas (ou imaginadas) por seu fiel ou, mais grave, podiam
ser caminho para o pecado se o sonhador, ao acordar, acreditasse no sonho ou tivesse
desejos em relação à imagem sonhada. Sonhar, em si, não era pecado. Quando o fiel
15
Cf. João Adolfo Hansen. “Educando príncipes no espelho”. Floema. Ano II, n.2, out./2006, p.133-169.
16
Antônio Vieira. “Xavier dormindo” Sermões. Lisboa: Lello, 1951, vol. 13.
17
Amador Arrais. Diálogos de D. Frei Amador Arrais (intr. e rev. M. Lopes de Almeida) Lisboa: Lello, 1974, “Das
queyxas dos enfermos, e cura dos médicos”, cap. 4.
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dormia, os sentidos e as potências da alma também dormiam. Adormecidos, não havia
nem memória ativa para lembrar os bons (ou maus exemplos), não havia discernimento
para ponderar o que era certo ou errado e tão pouco vontade para se desviar do erro ou
seguir o caminho reto do acerto. O problema estava com o que se fazia depois de ver o
sonho (e o que tinha motivado aquele sonho).18 Porém, o bom cristão e bom vassalo,
mesmo em sonhos, teria visões ordenadas para o bem, pois as visões eram reflexos de
suas ações diurnas e, caso houvesse tentação em imagens oníricas, seu regime físico e
moral impediria que o pecado e a desobediência frutificassem em seu espírito e corpo, e
resultassem em ações desviantes.
Mas vamos aos sonhos da Vida é sonho.
Vida é sonho
A rigor, quase não há sonhos n’A vida é sonho. Existe, sobretudo, o fingimento de
que houve sonhos. Ainda que sejam o estopim da principal trama e conflito da peça, os
únicos sonhos dormindo estão fora da ação narrada no reino da Polônia: os da rainha
Clorinda, mulher do rei Basílio e mãe do príncipe encarcerado, Segismundo, que durante o parto, “entre idéias e delírios sonhou” que daria a luz a um “monstro em forma
de homem”19 – o que teria se ratificado pelo horóscopo de Segismundo. Quem narra
esse sonho retrospectivamente é o marido, Basílio, ao explicar para seus sobrinhos (e
pretensos herdeiros), Astolfo e Estrela, quem é Segismundo e seus planos de libertá-lo da
sua prisão na torre por um dia. Mas o fará por um estratagema engenhoso, drogando-o,
e levando ao palácio para despertar, pois assim, caso se cumpra o vatícinio e os delírios
de sua falecida mulher se confirmem verdadeiros, Segismundo seria novamente drogado,
devolvido ao cárcere e acharia que, na verdade, seu dia como príncipe não passara de um
sonho. O sonho aqui é um engenho empregado por um rei que pretende discretamente
verificar se um vatícinio e um horóscopo podem definir a sucessão e o futuro de seu reino
(note-se alguma semelhança, por exemplo, no artifício de Hamlet ao usar uma peça para
comprovar a culpa do tio).
Quem vai realizar esse estratagema é o velho e fiel Clotaldo, fidalgo do reino e o aio
responsável por cuidar de Segismundo na torre. Ele, por sua vez, está envolvido em uma
18
Francisco Monçon. Avisos spirituales que enseñan con el sueño corporal sea provechoso al Spiritu. Impresso em
Lisboa, en casa de Ionnes Blavio de Colonia, Anno 1563. Cf. Maria V. Jordán Arroyo. “Francisco Monzón y ‘el
buen dormir’: la interpretación teológica de los sueños en La España del siglo XVI”. Cuadernos de Historia Moderna, 26 (2000), p. 33-44.
19
Utilizo aqui por questões de facilidade de acesso a tradução de Renata Palottini, reimpressa pela editora Hedra.
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questão familiar, com implicações na sucessão. Sua filha Rosaura, acompanhada de Clarín, seu pajem, aparece no cárcere de Segismundo, em uma viagem para recuperar sua
honra perdida para Astolfo, sobrinho do rei Basílio. Rosaura, porém, não sabe que seu
pai é Clotaldo (que identifica a prole perdida pela espada que dera a sua amada, mãe
de Rosaura) e este acha que Rosaura é um homem, pois está travestida em sua missão
de recuperar a honra e pedir ajuda para isso no reino da Polônia. São esses os conflitos
que se desenrolam pelas três jornadas, separadas, como os dias, pelo sono induzido de
Segismundo.
Na primeira jornada, Segismundo está encarcerado sem saber de seu sangue nobre e é
posto para dormir, e acorda na segunda jornada, no palácio. Despertado como príncipe –
sem nunca ter sido doutrinado para tal – deixa-se governar por todas suas paixões, e seus
atos são todos desmedidos e cruéis. Revoltado com sua situação anterior e com o fato de
terem lhe escondido seu estado principesco, quer matar seu aio, Clotaldo, que sempre
dele cuidou e obedecia ordens reais; ameaça defenestrar um criado que o irrita e o faz,
por pura ira e para mostrar que o podia; galanteia de modo ousado Estrela na frente de
seu pretendente, Astolfo, antes destratado por Segismundo e depois desafiado pela espada; desrespeita e se levanta contra Basílio – pai e rei, portanto duplamente autoridade; e,
por fim, apaixonado por Rosaura (que agora, aparece em toda sua beleza, vestida como
mulher), quer forçá-la a corresponder seu amor. Revela-se, de fato, um tirano, como temera seu pai, o rei. Paira a dúvida, entretanto, se é por conta do vatícinio (e, portanto, de
uma predestinação trágica, mas vinda de superstição) ou pela rudeza e estado bruto dado
pelo cárcere, pois em sua vida não tivera outro contato com pessoas além de Clotaldo.
Segismundo é posto para dormir novamente, e acorda, no final da segunda jornada,
reduzido ao seu estado inicial, preso no cárcere e, mais uma vez, só com Clotaldo como
interlocutor. Nesse segundo acordar, profere o famoso monólogo que se encerra com os
versos:
Que é a vida? Um frenesí.
Que é a vida? Uma ilusão,
Uma sombra, uma ficção;
O maior bem é tristonho,
Porque toda a vida é sonho
E os sonhos, sonho são.
A vida é sonho, percebe Segismundo aprisionado, mas tinha visto (em sonhos fingidos) os resultados da liberdade absoluta e a soltura do poder. Mesmo achando que
havia sonhado, Segismundo entende que as ações, posições e estados humanos fenecem
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e acabam e diz: “E há quem queira reinar/ vendo que há de despertar/ no negro sonho
da morte?”. Os versos invertem o título da peça, pois a morte agora é sonho. É sonho,
entretanto, para o qual se desperta, índice de maior verdade. “No negro sonho da morte”
se vê finalmente e de modo definitivo aquilo para o qual a vida fugaz e temporária corre:
a própria morte e o julgamento do Eterno, e não as imagens fingidas (semelhantes ao
sonho dormindo) que são as ações e vontades humanas, como querer reinar.
Nesse momento, são evocadas tópicas de tradição ciceroniana que postulavam que a morte é sono longo, o sono, morte pequena. E que, em espanhol, ganham uma dimensão equívoca
e dupla, pois sueño pode ser tanto sono quanto sonho. Sonho/sueño é também sono/sueño,
como vida, como morte. A vida pode ser sonho (imagens da vida diurna), mas também pode
ser sono (pequena morte). Diante da relação sonho, vida, sono, morte, décadas mais tarde,
Pe.Vieira se perguntou: se o sono é imagem da morte, do quê seriam imagem os sonhos? Os
sonhos só poderiam ser imagem da vida. A vida é sonho. Mas na morte também há sonhos;
negros, porém mais verdadeiros que os vividos, pois não ocultos. Os sonhos da morte não
são cobertos por imagens fictícias, figuras falsas do que seria a razão de ser humana, como os
sonhos do sono. Morrer era despertar, era descobrir o véu de sombras, de ficções, de sonhos,
que envolvia a vida. Era lembrar que a condição humana nada mais seria que pó (Gn 3:19).
Tal condição era lembrada também nos quadros com natureza morta, muito em voga
na época. Nessas alegorias da vida humana, os símbolos do poder e da glória (as coroas,
os cetros, a tiara papal, nos quadros; o ato de reinar, em Calderón) estavam ligados à
morte e à fugacidade da vida (as caveiras, os relógios, as flores murchas ou despetaladas,
nas imagens; o sonho da morte, na peça) Essas pinturas alegóricas eram conhecidas pelo
nome de Vanitas (vaidade), remetendo ao primeiro verso do Eclesiastes: “vaidade das
vaidades, tudo é vaidade”. Não por acaso, um óleo famoso desse gênero, de Antonio
Pereda, “Sonho do cavaleiro” (c. 1655), que retrata um fidalgo adormecido ao lado de
uma mesa cheia de símbolos de glória e riqueza, simultaneamente de morte e fugacidade,
foi também conhecido como “A vida é sonho”.
Essa analogia entre as figuras da pintura, teatro e sonho, pode ficar mais evidente ao
vermos um trecho do sermão da Quinta Dominga da Quaresma, de Vieira. Nele, Vieira
reforçou esse aspecto ao comparar a vida, desejos e esperanças terrenas frente ao Eterno e
a Salvação a uma pintura, algo comum na concepção de teatro do mundo:
Se retratassemos em um quadro a figura d’este enigma, veriamos que em diferentes perspectivas
os escuros faziam os longes, e os claros os pertos. Mas se chegassemos a tocar com a mão a mesma
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pintura, achariamos que toda aquella diversidade que fingem as côres, não é mais que uma illusão
da vista, e um sonho dos olhos abertos.20
Por outro lado, o espectador percebe que Segismundo, preso, não consegue saber se
o quê pensa ter sonhado, aconteceu. Para ele, tudo foi sonho. Portanto, cria-se um efeito
para a audiência de que não é possível perceber a diferença entre aquilo visto e imaginado, entre aquilo vivido e sonhado. Tudo são imagens e não há como diferenciá-las. Em
outra chave, é similar a pergunta que René Descartes (1596-1650) formulou na primeira
de suas Meditações (1641), se era possível distinguir entre a experiência acordada e a
experiência sonhada. No caso de Vieira, Pereda e Calderón, radicalizou-se a pergunta
de Sócrates na República se uma pessoa não parece sonhar se (acordada ou dormindo):
“julgar que um objeto semelhante a outro não é uma semelhança, mas o próprio objeto
com que se parece?” (Rep. 476c).
O desenlace dos conflitos na terceira jornada vai resolver o embaralhamento da vida e
do sonho, pois Segismundo não só percebe que havia vivido o que pensava ter sonhado,
como também há a indicação de qual deve ser a atitude certa diante de tantos enganos.
Na terceira e última jornada, o povo, na figura dos soldados, descobre que há um príncipe, verdadeiro herdeiro, preso, encarcerado pelo seu próprio pai. Libertam-no, incitados
por um dos soldados, e, revoltosos, querem fazê-lo rei e condenar o atual monarca e sua
corte por essa farsa. A essa empreita, juntam-se Clotaldo, perdoado e elogiado por Segismundo, e Rosaura, vestida de guerreira. Por fim, conseguem levar Segismundo ao palácio
novamente, agora desperto, pois se não sabe, talvez, a diferença entre vida e sonho, sabe
que aquilo que parece sonho pode ser vida, e vice-versa. Ao refletir sobre esse jogo de
aparências e espelhos, Segismundo percebe que o justo caminho é aquele que controla as
paixões e não é guiado pelos desejos, glórias e aparências mundanas:
Uma vez desencadeadas as forças, não poderia mais descansar a minha sanha, adoçar a espada da
minha fúria, tranquilizar a dureza da minha violência, porque o futuro não pode ser afeiçoado
com injustiças e fomes de vingança. Assim, quem deseja dominar a sua má sorte, terá de usar de
prudência e temperança.
A partir dessa doutrinação do seu espírito e de suas paixões, e de subordinar o seu
destino não à sorte, mas à “prudência e temperança”, Segismundo mostra-se, ao fim da
peça, sábio e prudente, como diz Rosaura. Perdoa seu pai e o reconhece como rei; abdica
do seu amor por Rosaura, pois a honra dela precisa ser restaurada, unindo-a a Astolfo;
20
Antônio Vieira. Sermões. Lisboa: Lello, 1951, v. 11.
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premia Clotaldo como seu conselheiro; marca o casório com Estrela, para que essa não
fique prejudicada com a perda do seu pretendente, Astolfo. E condena à prisão na torre o
soldado que iniciara a revolta, pois esse era um traidor do rei, e quase o fizera cometer o
pior dos crimes numa monarquia, o de lesa-majestade. Ou seja, como príncipe prudente,
tempera seus sentimentos com a razão, algo aprendido ao longo das três jornadas que
se fingiram sonho. Segismundo reestabelece a concórdia e a paz no reino ao repartir e
distribuir justa e ordenadamente a cada um o que lhe seria de direito – seja a glória, seja
a prisão. A lição que aprende, e assim se encerra a peça, é que a felicidade humana é mero
sonho e, se tudo é sonho, pode novamente, a qualquer momento, “acordar na torre”. Por
isso, deve aproveitar cada momento para viver corretamente e distinguir as aparências da
Verdade, seja em sonho, seja acordado.
Sonho da vida
Repassada a trama e algumas passagens da peça de modo breve, devemos nos perguntar qual o sentido das elaboradas idas-e-vindas, de tantas inversões, dos jogos com
opostos que se mostram, ao fim, concordantes. Serão somente estratégias para divertir?
Mero ornamento para impressionar e cativar, como truques de prestidigitação? Ou ainda,
seriam reflexo da cultura da época, chamada de “Barroco”, afeita a contrários? Uma época
de crise? Na qual não se identificava o limite entre o sonho e a vida, entre o sono e a
vigília, entre o teatro e o mundo, entre a representação e o representado, entre o real e o
imaginado? E tudo, então, era efeito, exagero, excesso necessários para sublimar a crise?
Se estas questões apontam para aspectos da peça ressaltados pela crítica moderna, elas
podem ofuscar, quase apagar, alguns outros aspectos importantes para a exegese do texto
calderoniano, que também merecem ser levados em consideração.
Devemos nos lembrar que A vida é sonho é uma comédia – ou ainda, uma tragicomédia, se quisermos precisar o subgênero da peça também por seu conteúdo grave e solene.
Como narrativa (tragi)cômica, era pressuposto que gerasse espanto, surpresa e, por meio
destes, risos. O espanto, a surpresa se dão, entre outras coisas, pela inversão, pela ironia,
pela farsa. A inversão é elemento fundamental de uma comédia. O tom farsesco pode
gerar incômodo, mas, sobretudo, diverte. Uma personagem feminina aparecer vestida de
homem (na primeira cena da primeira jornada), depois de dama da corte (na segunda
jornada), depois de mulher guerreira (na terceira), como Rosaura, instaura o tom de farsa
e indica que cada jornada inverte a anterior. Porém, mesmo sendo uma comédia, ela não
poderia somente divertir, impressionar. Como um texto pensado a partir de pressupostos
poéticos, mas também retóricos, ela precisa (co)mover os ânimos, convencer os intelectos, e educar os espíritos. Especialmente o teatro, que sempre fora, tanto pelas coroas
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como pelas igrejas, entendido como um meio eficaz de ensinar e doutrinar. As figuras de
linguagem, os efeitos discursivos, o uso arguto das tópicas estavam, assim, a serviço de
algo. Do quê?
Se o mundo era um efeito da Criação, mera semelhança do Criador, mera imagem, sonho e ficção, qualquer texto precisava buscar apontar para o verdadeiro sentido da vida.
No campo civil, das repúblicas: o bem-comum, a concórdia, a paz. No campo espiritual,
da Igreja: a salvação das almas. O primeiro, a serviço do segundo, porque o fim último
era Deus, mas o segundo dependente do primeiro, pois com desordem entre as gentes e
reinos as almas ficavam turbadas, os espíritos, descontrolados, as vontades e ações, desmedidas. Dizer que a vida era sonho, e que, por isso, era preciso regular as paixões e os
desejos, seria contribuir para esse objetivo. Havia, portanto, uma função didática no que
hoje nos parece mero jogo de espelhos. Buscava-se ensinar a ser um bom cristão e um
bom súdito, faces inseparáveis na Monarquia Católica dos Habsburgos.
O próprio tema da peça estava ligado aos rumos da República, ao poder civil. O fato
de ocorrer na distante Polônia ou os nomes de personagens que indicam suas qualidades
(Basílio=basileu, por exemplo) reafirmava no enredo um caráter alegórico, e, com isso,
exemplar. Esse caráter exemplar, provavelmente, remetia a referências da história dos
reinos. Na República das Duas Nações da Polônia e da Lituânia, o rei Sigismundo III,
falecido quatro anos antes da impressão da peça, havia como o protagonista da peça crescido na prisão. Filho de João Vaska, herdeiro do trono sueco, e de uma princesa polonesa,
Ana Jagellon, nascera encarcerado numa torre na Suécia, quando seus pais foram presos
pelo seu tio, o rei da Suécia, Eric XIV, que ficara louco e temia golpes. Viveu na torre até
a idade dos quatro anos, quando os grandes do reino se revoltaram contra o rei demente
e colocaram no trono o seu pai, com o título de João III. Por conta do lado materno, Sigismundo foi eleito rei da Polônia e da Lituânia (e, pelo paterno, disputou a coroa sueca).
Mais tarde, no início do XVII, já rei, foi procurado por um falso pretendente ao trono
russo, Dimitri, supostamente um descendente de Ivan, o terrível, que queria o apoio de
Sigismundo para invadir Moscou e virar tsar21. Dimitri era uma fraude, Sigismundo III
não acordou de um sonho e se viu rei e fora do cárcere, mas não custa pensar isso como
matéria para o engenho e a invenção de Calderón. A partir do que constróe um repertório de exemplos e caracteres que doutrinam.
Podemos pensar até mesmo que a trama d’ A vida é sonho funcionava como um Espelho de Príncipes encenado. Gênero comum desde a chamada Idade Média Tardia, mas
que se proliferou nos séculos XVI e XVII, os Espelhos serviam de guia moral e ideal para
doutrinar as ações dos governantes. Seguiam muitas vezes os pressupostos estabelecidos
21
Cf. Yves-Marie Bercé. O rei oculto. Bauru: Edusc, 2003, p. 90 e segs.
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na Ética a Nicômaco, de Aristóteles, de uma busca da temperança, da justa medida, que
levará à vida virtuosa. A prudência e o controle das paixões eram os principais pilares
para o bom governo. Tanto para o interno, o controle do corpo e do espírito físico, quanto para o externo, o ordenamento do reino, corpo místico. Um bom príncipe precisava ter
autogoverno para poder governar com justiça. Pressuposto desse controle de si era saber
que a felicidade não estava nos prazeres e nas honras, mas em buscar a finalidade suprema
do bem-comum e da salvação, que ordenaria, virtuosamente, as ações humanas.
Segismundo aprende isso com seus próprios erros, mas, sobretudo, ao perceber que “a
vida é sonho, e os sonhos, sonho são”. Ao descobrir e revelar isso na condição de príncipe,
servia de exemplo para o seu reino tanto à corte quanto ao povo reunido no palácio, que
o admira, indicando aos espectadores qual o justo caminho da ação prudente e temperada. Com isso condena também os levantes populares contra a autoridade, condenação
exemplificada na prisão do soldado rebelde, pois os levantes perturbam a paz e a concórdia do reino. Isso em tempos de uma série de revoltas contra o poder dos Áustria que
eclodiram na década de 1630 na Península Ibérica (de Portugal à Catalunha), governada
por Felipe IV e por seu valido, o Conde-Duque de Olivares – e que antes ocorreram nos
Países Baixos. Mostrava Calderón, poeta oficial da Corte, que o exemplo de Segismundo
era completado pelo castigo exemplar do soldado. Os vassalos deveriam ver ali como deveriam se portar, fiel e obedientemente, para que não se quebrasse a harmonia do corpo
da república. Especialmente se esse corpo fosse composto de muitos reinos e cuja função
declarada fosse a redenção humana por meio de um grande Império Cristão, como se
supunha a Monarquia Católica filipina, que se arvorava como defensora da fé católica e
congregava, com muitos custos e dificuldade crescente, os reinos de Espanha, Portugal,
sul da Itália, as Américas, partes da África e da Ásia.
Ao afirmar a importância do governo e do autogoverno, a comédia também ressaltava
a necessidade das boas escolhas e da importância da ação particular para que se chegasse
ao bem comum. Segismundo supera o prognóstico nefasto dos sonhos de sua mãe e
de seu horóscopo. Ainda que fosse falha sua educação como príncipe, pois encarcerado
como animal e rude, a experiência serviu de escola e ensina-lhe a, pelo uso do livrearbítrio e discernimento, domar sua tendência natural (e supostamente predestinada) e
se tornar um homem nobre.
Como apontam alguns críticos, se a peça não nega, por completo, o destino de Segismundo, pois esse se torna de fato um tirano na segunda jornada22 (“um monstro em
forma de homem”), a terceira jornada, entretanto, reduz os efeitos possíveis da predesti22
Alexander Augustine Parker. “Horóscopos y su cumplimiento” e “Destino y responsabilidad humana (1): el
problema” In: La imaginación y el arte de Calderón. Madri: Cátedra, 1991.
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nação e do nascimento. Os sonhos proféticos (bem como as visões) deviam ser levados
em conta pois podiam ajudar a vislumbrar os planos divinos – mas com muito cuidado,
porque poderiam ser falsos como delírios de grávida, como diz o Eclesiástico (34:5). A
astrologia judiciária, comum nos reinos católicos e tolerada pela Igreja, era usada para
mostrar que influxos astrais poderiam afetar um rei, mas não tinham o poder – reservado
a Deus – de dizer, com certeza, qual seria o futuro de um reino. Em resumo, pelo controle
das paixões e ao tomar as decisões justas, Segismundo ameniza as predições e as disposições naturais de seu corpo. O seu destino, como causa segunda da Criação, está em suas
mãos – e disso dependia o destino da monarquia, porque era a cabeça do corpo místico
que compunha aquele reino.
Assim, A vida é sonho assumia outra função importante: a de reafirmar o livre-arbítrio
e a importância das boas obras como meio para a salvação. Em uma frente, a peça combatia as doutrinas protestantes, consideradas heréticas, que afirmavam que não havia salvação pelas obras (os atos humanos), mas só pela fé, ou que a predestinação Divina não
concebia o livre-arbítrio e independia das ações humanas, somente da Vontade Divina.
Em outra, negava a qualquer forma de adivinhação (sonhos ou mesmo a astrologia judiciária) o poder de prever, infalivelmente, o destino de uma pessoa, pois o conhecimento
do futuro somente a Deus pertencia, e dizer o contrário era incorrer em pecado mortal.
Convergia o poeta com as determinações de Trento e a luta da Igreja Romana após as
Reformas contra as superstições populares e as “heresias” calvinista e luterana. Se a vida
era sonho e o mundo era um teatro, era preciso saber agir e atuar nele, pois das obras e
escolhas dependia o desenrolar da trama e o final feliz.
Reler Calderón hoje, mais do que atualizar os preceitos preconizados na peça ou lê-la
em uma chave que abre escaninhos já definidos a priori, pode servir para adentrar pelas
portas (talvez de chifre, talvez de marfim) de uma outra época na qual o estar dormindo
era tão importante quanto o estar acordado. Nessa época, para remeter e contrapor a
Goya (que parece ter se inspirado tanto na tópica de Calderón como na iconografia de
Pereda), não se supunha que os sonhos da razão produzissem monstros, pois a razão, ela
mesma, não se distinguia de um sonho.
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