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AS VIAS E AS TRANSVIAS DE MÁRIO SAA -um périplo

Uma reflexão sobre uma obra proscrita de Mário Saa . «As Grandes Vias da Lusitânia - O Itinerário de Antonino Pio»

AS VIAS E AS TRANSVIAS DE MÁRIO SAA – um périplo José Lopes Coutinho 26/12/2020 O GRANDE VIAJANTE DA LUSITÂNIA (um preâmbulo) Mário Saa (1893-1971), pseudónimo de Mário Paes Teles da Cunha e Sá, pertencia a uma família abonada de proprietários do concelho de Avis no Alentejo, nasce nas Caldas da Rainha em 1893 numa altura em que o seu pai desempenhava a função de notário em Óbidos e regressa com a família a Avis e à herdade do Ervedal em 1893. Na sua juventude foi aluno do Instituto Superior Técnico (1913) e inicia na Universidade de Lisboa duas carreiras académicas que nunca chega a concluir, em ciências matemáticas (1918) e medicina (1930). Mário Saa, cujo primeiro livro («O Evangelho de S. Vito», de 1917) fora publicado enquanto estudava no Instituto Superior Técnico, concilia a administração das suas propriedades em Avis com o estudo e a produção literária de livros e artigos, de temáticas muito heterogéneas e onde predomina a poesia e o ensaio - essa produção literária não foi isenta de polémica devido à natureza anti-semita de dois dos seus livros, sobretudo de «A invasão dos judeus», de 1925. Na revista Athena trava uma breve e amistosa controvérsia com Fernando Pessoa e participa com os seus poemas e os seus ideais estéticos na marcante revista modernista “Presença” (PIMENTEL, 2013:22-25). No número 19 de Presença é dado destaque ao autor a pretexto da publicação do seu livro «A Explicação do Homem», com uma Tábua Bibliográfica de Mário Saa (p. 8) e uma recensão de José Régio à obra em epígrafe (p. 3) na qual diz de Mário Saa, e cito: «Senhor duma dura experiência da vida, mas também duma infantilidade incorrigível; civilizado decadente herdeiro de gerações e gerações, mas bárbaro brutal rico de todas as forças primitivas» (“Presença”, n.º 19, Fevereiro/Março de 1929, Imprensa da Universidade, Coimbra). O estudo das obras que compunham a biblioteca pessoal de Mário Saa e das dedicatórias nela deixadas pelos autores, revelou os laços de amizade e convivência literária com muitos vultos da cultura portuguesa, dos quais indicamos frugalmente os de Teixeira de Pascoaes, António Ferro, Almada Negreiros, António Botto, Raul Leal, Adolfo Casais Monteiro, Raul Brandão ou Aquilino Ribeiro (PEREIRA, 2012). A arqueologia contava-se entre paixões de Mário Saa, sob inspiração das visitas realizadas por José Leite de Vasconcelos à casa da sua família no decurso de colectas de material e escavações que realizou no concelho de Avis; o tio de Mário Saa, António Pais da Silva Marques, foi correspondente de Leite de Vasconcelos e numa das suas cartas, de 24 de Julho de 1912, encontra-se uma menção a «Mário Sá», então estudante do Liceu de Évora, a propósito de uma promissora caverna no concelho cuja existência o jovem participara ao Director do Museu Etnológico (vide a comunicação de André Carneiro em PIMENTEL, 2013:27-50). Depois de 20 anos de pesquisas, nos livros e no terreno, Mário Saa inicia em 1956 a publicação dos seis volumes de «As Grandes Vias da Lusitânia – O Itinerário de Antonino Pio», obra de vulto onde procura identificar as estações viárias e vias desse itinerário romano cuja forma final se crê datar do século II. É legítima a suposição (de André Carneiro, na sua comunicação) de que ele terá tentado criar uma obra monumental e influente, à semelhança de obras fundadoras do muito admirado José Leite de Vasconcelos, como a paradigmática «Religiões da Lusitânia». A obra foi recebida com entusiasmo pelos literatos que o conheciam, Aquilino Ribeiro, a 16 de Dezembro de 1960, descreve Mário Saa como o “grande viajante da Lusitânia e patrício do tempo dos Césares exilado no século XX” (PEREIRA, 2012:88). Mas objectivamente, a crítica à obra realça os erros e as contradições do autor, desacreditando o seu valor científico; paradoxalmente, continuou a ser uma obra consultada por gerações de investigadores - mesmo tida como não-fiável, é estudada, revista e comparada, a merecer fortuitas e envergonhadas referências; pontualmente, publicam-se estudos e artigos em que o seu nome não surge mas em que se percebe a influência, a silhueta das suas propostas, o desenho das suas pegadas nessas vias milenares. Um contributo inquestionável de Mário Saa foi ter assinalado incontáveis vestígios romanos – sítios, vestígios de estradas, achados – muitos deles desaparecidos entrementes com a abertura de novas estradas, mas também com a urbanização de terrenos. Essa destruição gradual, por necessidade mas também por interesse amoral e perpetrada com a complacente inércia do poder estabelecido, fora já sentida em vida pelo próprio autor, como regista na introdução da sua obra: «Esta nossa obra, As Grandes Vias da Lusitânia, surge precisamente no momento em que se efectua o completo desfazimento da rede dos caminhos velhos, (nunca tal como hoje), rede que, pela constância de circunstâncias naturais, trasladava para o nosso século a dos romanos. Estamos nos últimos dias dos sulcos viais da antiguidade. Em meia dúzia de anos tudo terá desaparecido» (SAA, 1957). Registe-se ainda que Mário Saa não se limitou a escrever, resgatou e reuniu muitos testemunhos da cultura romana, salvando-os da completa destruição, espólio hoje preservado no Museu Fundação Arquivo Paes Teles, no Ervedal: marcos miliários, aras votivas epigrafadas, lápides, altares (D’ENCARNAÇÃO, 1995). Não é por acaso que José d’Encarnação, um dos nossos melhores epigrafistas e autor de uma vasta bibliografia sobre a civilização romana na Hispânia, frisou mais de uma vez que «urge reabilitar Mário Saa» (id., p. 630). «Estradas da beira-mar dos túrdulos, do Tejo ao Mondego» (SAA,1960: 9) A ESTRADA DO MAR OCEANO (uma citação compósita) É no volume terceiro de As Grandes Vias da Lusitânia que o estudo de Mário Saa examina o rincão litoral da Estremadura. Desse volume citaremos algumas passagens significativas, mas importa primeiro fazer uma pequena ressalva: seguindo as pisadas de alguns autores prévios, Mário Saa não procura situar Eburobrittium, mas supõe antes que existissem duas cidades diferentes que repartiam esse nome, Brittium, que identifica com Alfeizerão, e Ebora, que afirma ser Leiria. «A Estrada do Mar Oceano, implicitamente desenhada por Plínio num elenco de cidades do Mondego ao Tejo (Conímbriga, Collipo, Ebora, Brittium…) percorria a zona marginal dos túrdulos velhos , de Olisipo a Conímbriga e, num segundo lanço, de Conímbriga ao estuário do Douro. Em seguida, através dos calaicos, de Portocale ao Porto dos Ártabros. «A estrada, irrompendo de Olisipo, aproximava-se do Mar Oceano, que tocava no Porto de Salir (S. Martinho do Porto). Depois Póvoa de Cós, Leiria, Soure, Coimbra, num progressivamente afastamento da costa, desde a baía de S. Martinho (…) A série de «civitates» juxta Oceanum, muito embora só mencionada pelo Cosmógrafo a partir de Coimbra, tem na realidade o seu começo em Olisipo. Vêmo-la sulcar por Loures, Bucelas, Vila Verde dos Francos, Óbidos, Alfeizerão, Leiria» (SAA, 1960:10,11). «A Estrada do Mar Oceano, para o qual os antigos lançaram alguns ramais, como o de Odrinhas (e Assafora) a Óbidos – ou a Alfeizerão – era já suficientemente concorrida nos dias dos romanos, não obstante este povo assentar, de preferência, a sua colonização nas terras do interior, fora das áreas do Oceano. Ocupava, todavia, na costa alguns melhores rincões, em redor de portos de renome, como o Porto de Salir (S. Martinho do Porto), onde existia a localidade habitada de Alfeizerão. «A maior concorrência do ramal oceânico, no lanço compreendido entre a campina de Sintra e Alfeizerão . deve-se aos árabes, com a prosperidade da sua navegação costeira. Foi então que tomaram o seu maior desenvolvimento Óbidos, Torres Vedras, Mafra, Sintra, Cascais. A própria Coimbra, então porto fluvial-marítimo, desenvolve-se com o incremento da navegação. «Todavia o ramal oceânico já existia nos tempos romanos, pelos lugares de Odrinhas, Mafra, Torres Vedras, baía de S. Martinho do Porto. «De Olisipo a Conímbriga as cidades dos túrdulos velhos são as da menção de Plínio: Brittium, Ebora, Collipo, Conímbriga; respectivamente, Alfeizerão, Leiria, Almedina, Coimbra» (SAA, 1960:23.24). «O critério do cordão tegular é o mais seguro sinal da nossa pesquisa. Outrora, como hoje, era à beira dos caminhos que a população se adensava e edificava em maior quantidade as habitações. As construções romanas não subsistem, é verdade, mas resta delas a dispersão muito frequente de pedaços de telha – a típica telha romana composta de elementos planos e curvos, respectivamente tegula e imbrex. «Entre as circunstâncias que nos ajudam a definir uma via romana, mencionamos as calçadas e as pontes. Mas, com tal prudência as devemos utilizar, na prova, que esta quase desaparece… «A calçada, de qualquer tipo que seja, mesmo do tipo romano, é vulgaríssima entre nós. Construiu-se em todas as épocas, como o atesta a copiosa rede viária das regiões e distritos em que abunda o granito. «As autênticas calçadas romanas, sempre raras, raríssimas, não se coadunam com a super-abundância do seu tipo, verificada em toda a extensão da Ibéria. As romanas, de há muito desfeitas pela erosão e pelo trânsito (e, muitas vezes, reformadas), acabaram por não dar sinais de si. Mas descobrem-se, de tempos a tempos, certos lanços debaixo de camadas de terra. Temos vários exemplos. «As estradas do litoral serviam o tráfego dos portos que, por vezes, se volviam em importantes povoações costeiras, ou das extremidades dos esteiros. «Mas, independentemente da colonização, e só considerados por natureza, temos , como principais portos do Oceano, a baía de S. Martinho do Porto, o estuário do Mondego (com Montemor, Verride e Coimbra), a ria de Aveiro e o esteiro do Douro. «Em quase todos estes locais há vestígios da permanência dos romanos. «A baía de S. Martinho do Porto, que já foi chamada Porto de Salir, demonstra povoamento romano, nomeadamente em Alfeizerão. Por duas razões poderia ter surgido neste local a colonização romana: a marítima e vial, por um lado, por se tratar de um excelente porto de abrigo na costa do mar; e, por outro, a agrícola, pecuária e piscatória, dadas as expansões lacustres desta parte da costa e suas feracíssimas campinas. «Alfeizerão estava directamente ligada a Leiria por uma via romana de muita concorrência, hoje provada por seus fundos sulcos e copiosa arqueologia; e também ligada a Santarém por outra notável via, arqueológica. «(…) Do Bombarral, onde entrava na planície, seguia sucessivamente, a S. Mamede (onde se juntava à estrada proveniente de Mafra e Torres Vedras), A da Gorda, Óbidos (…) De Óbidos continuava a Caldas da Rainha. «(…) À estância seguia-se na estrada romana, a povoação de Tornada (…) O traçado romano não se aproximava da baía, na extensão em que a temos actualmente. «A baía antiga era mais vasta e a estrada era-lhe tangente em Alfeizerão. «A trajectória ligava Tornada a Alfeizerão por estes locais: Mouraria, Casal dos Morgados, Quinta de S. José, Casal da Ponte. «(…) Há duas povoações no rio [sic, assinale-se a imprecisão], ambas de nome Salir: Salir de Matos (na pronúncia local Salis-mato) e Salir do Porto ou da Barra. «Conhecem-se três epígrafes das margens de Salir, uma de Salir de Matos , lida por Hübner e por ele publicada nas Noticias Archeologicas de Portugal, página 56r; outra de Alfeizerão, apresentada por Pinho Leal no su Portugal Antigo e Moderno, volume 8, página 345; e ainda uma de Tornada, no museu da Figueira. A primeira, dedicada por uma esposa ao marido, comporta o gentílico Ollisiponensis. A segunda é uma dedicatória de família em que figura o onomástico Avitus, muito usado nesta parte da Lusitânia (v. g. Leiria). «Os núcleos romanos principais que bordejavam a grande baía eram: a) Ramalheiras, na extremidade oriental da povoação de Alfeizerão onde a Estrada Nacional N.º 8 recebe pelo poente a Estrada Nacional N.º 262; b) O castelo de Alfeizerão, na extremidade ocidental da povoação, sobre um acervo de penhascos que domina a planície circunjacente. Mostra tramos das suas grossas muralhas, com torreões de espaço a espaço. No século XIII possuía ainda um palácio habitável, pois nele pousaram reis [D. Dinis e Isabel de Aragão], indo de longada. O local corresponde à marcação geodésica “Alfeizerão”, com 16; c) Pedrógão (Quinta de S. José), entre os rios de Alfeizerão e Salir, ou Tornada, 1200 metros a sudoeste da dita marcação geodésica. Pedrógão é um morro onde se encontram muitas antigualhas. «(…) Partindo da mansão romana de Alfeizerão e do seu castelo mourisco – ou talvez romano – ia a estrada buscando a direcção de Leiria, não pelos cabeços, não por Alcobaça, como agora, mas pelas planícies baixas, pela raiz dos montes, rente com lagoas e pântanos. Deixa à direita as estradas nacionais 8 e 1. De Alfeizerão a Leiria, pela via romana, a descrever, são 48 Km. «A directriz que buscamos definir no terreno, pelo fio condutor dos fragmentos de tegula, vai marginando por Leste os campos de Alfeizerão e Cela Velha, extinta lagoa que uniu outrora a baía de S. Martinho do Porto à foz do rio Alcoa no Oceano [outra afirmação discutível]. Do Valado dos Frades à Póvoa de Cós tornejava, por ocidente e norte, o extenso paúl de Maiorca, já hoje bastante reduzido e quase extinto (…). De Alfeizerão ao Valado dos Frades perpassa pelos lugares da Macarca, Famalicão e Cela Velha. Entre o Valado e a Póvoa de Cós sulca por Lagoa Seca e Quinta da Areia» (SAA, 1960:25-25 – o sublinhado é nosso). Fontes: CARNEIRO, André, «ITINERÁRIOS ROMANOS DO ALENTEJO - Uma releitura de “As Grandes Vias da Lusitânia . O Itinerário de Antonino Pio” de Mário Saa, cinquenta anos depois», Edições Colibri/Câmara Municipal de Fronteira, 2009. D’ENCARNAÇÃO, José de, «A colecção epigráfica de Mário Saa no Ervedal», revista Humanitas, v. XLVII, p. 629-645, Coimbra, 1995. PEREIRA, Elisabete J. Santos, «As dedicatórias da biblioteca de Mário Saa: Redes intelectuais e científico-filosóficas da cultura portuguesa do século XX», Vialibvs - Revista de Cultura, n.º 2, Fundação Arquivo Paes Teles, Junho de 2010. PIMENTEL, Manuel Cândido, e DUGOS, Teresa (coordenação de), «Mário Saa – Poeta e pensador da razão matemática», Universidade Católica Editora, Lisboa, 2013. A obra reúne as comunicações integradas no colóquio com o mesmo título realizado na Universidade Católica em Janeiro de 2012 na efeméride dos 40 anos da sua morte. Para o nosso texto, apoiamo-nos sobretudo em duas comunicações: “Da Athena à Presença. Um decénio fulcral na obra literária de Mário Saa” (p.21-26) de João Rui de SOUSA; e em “Leite de Vasconcellos e Mário Saa - Notas para uma influência tutelar” (p. 27-50) de André CARNEIRO. SAA, Mário, «As grandes Vias da Lusitânia - O Itinerário de Antonino Pio», v. I, Tipografia da Sociedade Astória, Lisboa, 1957. SAA, Mário, «As grandes Vias da Lusitânia - O Itinerário de Antonino Pio», v. III, Tipografia da Sociedade Astória, Lisboa, 1960. 7