CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os ins do sono. São Paulo:
Cosac Naify, 2014.
Luciana Molina Queiroz
Universidade de Campinas (UNICAMP)
Campinas- SP, Brasil
No primeiro episódio da série da BBC Black Mirror, chamado he
National Anthem, o primeiro ministro britânico é chantageado pelos sequestradores de um membro da família real e obrigado a realizar em rede nacional
um ato absolutamente constrangedor e degradante, sob a pena de ser responsável pela execução da Princesa Susannah caso não cumprisse as exigências
por eles colocadas. Enquanto todos os habitantes do país são mostrados em
torno de televisores acompanhando de maneira horrorizada a coragem e decisão do primeiro ministro, a Princesa anda por ruas completamente desertas,
sem que ninguém fosse capaz de constatar que ela já havia sido liberada por
seus raptores. O argumento dos sequestradores (e, portanto, do episódio) é
um dos aspectos mais interessantes abordados por Jonathan Crary em seu
livro 24/7 – Capitalismo tardio e os ins do sono: o modo como experiências
de gerações inteiras são completamente moldadas a partir da programação
da cultura de massa. Um grande evento, como a Copa do Mundo, e mesmo
as grandes tragédias, como a morte de um ídolo pop ou o recente ataque ao
Charlie Hebdo, assim como a catástrofe do 11 de setembro, são exibidos e
acompanhados com viva atenção em escala global. Nesse sentido, a história
pessoal de um indivíduo é iltrada por aparelhos.
Tal como Black Mirror, o ensaio de Crary por vezes parece icção cientíica. O próprio autor admite que parte de casos extremos para demonstrar a
relação entre sono e capitalismo tardio, tais como acidentes industriais noturnos que vitimaram várias pessoas enquanto dormiam. Esses exemplos, que
parecem parte de uma distopia ou de um cenário catastróico num universo
cyberpunk, podem facilmente levar o leitor de simpatias tecnofóbicas a desejar voltar a um mundo basicamente pré-capitalista e rural, no qual máquinas
não mediavam nossas vidas. É verdade que, hoje, a tecnologia é tão bem aceita
dentre os habitantes da cidade grande que qualquer crítica a ela sempre está
sob suspeita de ter motivação conservadora ou nostálgica sem mais. Por isso,
é vital estarmos alertas à identiicação da agenda política e das bases teóricas
em que se irmam as críticas à técnica. É necessário lembrar, por mais trivial
que possa parecer, que a crítica marxista em geral deixa claro que se opõe ao
uso da técnica feito pelo capital, e não à técnica por si, algo ambivalente no
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discurso de Crary, por vezes mais ansioso em denunciar a alienação do sujeito
derivada da dissolução das noções de comunidade e pertencimento existentes nas sociedades tradicionais do que propriamente em esmiuçar a coisiicação do sujeito em uma sociedade em que o capital adquire inúmeras vantagens quando aliado à técnica.
Apesar dos exageros de tom apocalíptico, algo subjaz de terrivelmente
verdadeiro na exposição de Crary: a preocupação com a tendência do capitalismo a tudo colonizar e instrumentalizar. “Existem agora pouquíssimos
interlúdios signiicativos na existência humana (com a exceção colossal do
sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de trabalho, pelo consumo ou pelo marketing” (CRARY, 2014: 24), argumenta. Há,
então, incompatibilidade entre as demandas do mercado e as necessidades
de uma vida humana saudável. Em uma época marcada pelo estranhamento
e pela reiicação, em que se sedimenta a crença de que não se pode encontrar
prazer no trabalho, o tempo/espaço referente ao trabalho e o referente ao lazer
são reinseridos em um continuum, talvez ainda mais pernicioso, posto que
ainda se caracteriza pela alienação, e não tem ruptura ou escapatória. Nesse
sentido, compreendemos as altas taxas de adoecimento físico e psíquico exibidas pelos professores universitários. Não só porque também se encontram
subsumidos nesse mesmo imperativo categórico do publish or perish, mas também porque a mercadoria-fetiche por excelência do acadêmico, o conhecimento, e suas conigurações em livros, cursos on-line e transmissões ao vivo
do evento sobre comunismo em Bogotá ou Istambul parecem multiplicados
pelas indicações realizadas pelos bancos de dados das lojas online e pelas atualizações das redes sociais. Em meio a curtidas de fotos do bebê do colega de
trabalho, aparecem para ele inúmeras indicações de leitura. A todo instante se
exige do acadêmico que esteja up-to-date, e em seus aspectos regressivos isso
implica que ele deve se inteirar das novidades do mundo intelectual, sejam
essas importantes ou frívolas. Faz parte do funcionamento da indústria acadêmica a existência de intelectuais pop star como o Žižek e de best sellers da economia como O capital no século XXI, de homas Piketty, pois eles são marcas
da impotência do acadêmico para ignorar informações. Pertencer à comunidade acadêmica é algo que ironicamente reduz o tempo do intelectual junto
às suas próprias inquietações teórico-existenciais, no corpo a corpo de seu
objeto de pesquisa, e o reinsere na lógica capitalista – menos um intelectual
autônomo e mais um autômato 24/7.
O horror da tese de Crary nos persuade porque mesmo o sono, esse
último reduto do ser humano contra a produtividade capitalista, vem sendo
progressivamente desguarnecido. Se há alguns anos o sonho ainda era visto
como uma zona impassível de ser ocupada pelo capitalismo, o autor demons582
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tra, através da análise da cultura de massas, que até ele aparece em ilmes como
A Origem, de Christopher Nolan, como algo passível de ser entendido por
critérios de rentabilidade. É como se no imaginário popular já estivesse consolidado o desejo de eliminar o que Crary considera a última barreira para a
expansão capitalista: o sono e o descanso. Isso o leva a empreender uma crítica a um só tempo corajosa e selvagem ao pai da psicanálise, que teria em
sua primeira formulação a respeito dos sonhos airmado que todo sonho é
a realização de um desejo do sonhador (airmação que ganharia um ad hoc
quando Freud se colocou com a devida atenção a questão do sonho traumático). Para o estadunidense, essa formulação do sonho como algo existente
somente como anseio individual, somada à crítica de Freud aos movimentos gregários em sua análise da psicologia das massas, teria acarretado graves
equívocos teóricos e práticos. Freud nunca teve o interesse explícito e primordial de se comprometer com algum partido ou ideário político ao erguer
as bases de seu trabalho. Mas Crary defende que subterraneamente haveria
ali uma concepção de desejo ideologicamente favorável à manutenção desse
estado de coisas, em que o privatismo dos gadgets pessoais se tornaria um sintoma externo do individualismo crescente. Para ele, “a privatização dos sonhos
por Freud é apenas um sinal de uma supressão maior da possibilidade de seu
signiicado transindividual. Por todo o século XX, pensou-se que os anseios
estivessem ligados exclusivamente a desejos individuais – desejar a casa dos
sonhos, o carro dos sonhos ou férias” (CRARY, 2014: 118).
Contudo, ainda parece ser a psicanálise, aliada às ciências sociais, o principal ferramental teórico para se compreender o desejo individual manifesto
no sonho como algo formulado no estado de vigília a partir de vivências historicamente situadas. Nesse sentido, é útil voltar à “indústria cultural”, conceito cunhado por Adorno e Horkheimer. Ao nos chamar a atenção para o
grande número de experiências compartilhados pelas mídias, Crary poderia ter ido além, e especulado como que essas experiências também moldam
desejos e, combinando aspectos da teoria dos sonhos de Freud e da exposição
de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, poderíamos então nos questionar se a indústria cultural, ao contrário do que ele pensa, já não foi capaz de
entrar no terreno insondável do sonho, submetendo-o ao menos em parte à
lógica do capitalismo tardio. Ainal, um aspecto comum ao sonho e à mercadoria é justamente o modo como ambos são expressão de um desejo. Ainda
que as pessoas sejam capazes de se associar a padrões de consumo diversiicados, é inegável que muitas necessidades são moldadas pelo fetichismo da
mercadoria, esse “passe de mágica” pelo qual de repente nos vemos absolutamente ávidos em adquirir determinado objeto convencidos de que há nele
algo capaz de mudar nossas vidas. A cultura de massas, que engloba a publiALEA | Rio de Janeiro | vol. 18/3 | p. 581-585 | set-dez. 2016
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cidade, a imprensa e os meios de comunicação, bem como suas trocas com
a indústria do entretenimento e do lazer, participa de uma equação na qual
os desejos individuais tornam-se cada vez menos idiossincráticos, tendo em
vista que são em alguma medida formados por uma estrutura totalizadora
que é recebida coletivamente. Se isso vem ocorrendo, então os desejos já são
em certo sentido transindividuais – sem dúvida não do jeito que pretende
Crary, mas sim a partir de uma massiicação dos objetos desejados e da própria
faculdade de apetecer, que também pode ter como princípio algum anseio de
ordem local, nacional ou mesmo mundial. As grandes detentoras dos meios
de comunicação que buscam inluenciar politicamente uma eleição ou sugerir
para o público como deve se sentir e pensar a respeito de uma manifestação
política ou sobre a possibilidade do país sediar uma Copa ou as Olimpíadas
são capazes de atestar isso. Torna-se claro, então, que a questão que deve ser
colocada não é a de se é possível sustentar algum desejo coletivo, mas antes
se deve ter como foco o modo como esse desejo pode se dar.
Se Crary não desejava que sua crítica aos meios de comunicação e novas
tecnologias fosse confundida com mera tecnofobia, teria feito bem em especiicar de maneira mais rigorosa as diferenças entre individualismo e individualidade, pois, diante de sua argumentação, por vezes temos a impressão
de que a única solução para o que observamos seria voltar a um modelo de
sociedade pré-moderna, em que não havia possibilidade para a constituição
forte de sujeito. Falta a ele ter uma visão mais dialética da coletividade, pois
em seu ensaio retorna como falta o principal impasse relativo à cultura de
massas (já presente no debate marxista, e mais especiicamente nas disputas
entre adornianos e benjaminianos): a relação entre o individual e o coletivo.
Apontada como contribuintes do individualismo social, a cultura de massas
no entanto reproduz uma estrutura que é recebida coletivamente, e que tem
força suiciente para em alguma medida homogeneizar as massas em relação
a uma visão de mundo e a um comportamento a favor do capitalismo. O
blockbuster hollywoodiano, por exemplo, não só nos provê irmes noções de
beleza e de erotismo, como também as associa a objetos e mercadorias especíicos, tornando-se assim uma instância capaz de formar desejos associados
ao estilo de vida existente no capitalismo. O sujeito não só se autodeine e se
comporta como um consumidor como também naturaliza esse comportamento. Marcuse inteligentemente disse que, no capitalismo de hoje, a indústria cultural muitas vezes viria a substituir a lei paterna. Como construir utopias e desejos coletivos se a cultura de massas justamente opera a partir da
falta de autonomia individual? Trata-se de uma das tarefas fulcrais da práxis
política hoje: construir uma coletividade que se baseie não num comportamento comumente associado às massas, de irracionalidade quase animalesca
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(no retrato de Freud) ou de rebanho (como já aparecia na obra de Nietzsche),
mas sim num comportamento em que as individualidades, de egos fortes e
críticos, não se tornem facilmente massa de manobra de uma personalidade
carismática e autoritária, como demonstram os usos feitos pelo nazismo da
técnica, mas possam antes se agregar em torno da construção de uma utopia
comum de motivações emancipadoras.
Luciana Molina Queiroz. Mestra em Filosoia pela UFMG e doutoranda em Teoria
e História Literária pela Unicamp.
E-mail: lucianamqueiroz@gmail.com
Recebido em: 17/05/2016
Aprovado em: 14/06/2016
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