TÍTULO
SEÇÃO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte
Ano 3 - n. 5 / Abril de 2016 / iSSn 2359-4705
Vulnerabilidade
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
1
SEÇÃO
TÍTULO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
2
LABJOR - UNICAMP
Prédio V da Reitoria - Piso 3
TÍTULO
CEP 13083-970
Email: climacom@unicamp.br
Fones: (19) 3521-2584 / 3521-2585 / 3521-2586 /
3521-2588
SEÇÃO
GRUPO dE PESqUISA qUE COORdENA O PROJEtO dA REVIStA:
multiTÃO: prolifer-artes sub-vertendo ciências, educações e
comunicações (CNPq)
EdItORAS:
Profa. Dra. Susana Dias
Profa. Dra. Carolina Cantarino
EdItORA ExECUtIVA:
Ana Godoy
COEdItOR ExECUtIVO:
Gilvan Ramalho Guedes (CEDEPLAR/UFMG)
EdItORES ExECUtIVOS dA SEÇÃO dE ARtE:
Susana Dias
Fernanda Pestana
Sebastian Wiedemann
REPóRtERES:
Janaina Quitério
Michele Gonçalves
dESIGNER GRÁFICO:
Fernanda Pestana
CONSELhO CIENtíFICO:
Prof. Dra. Isabelle Stengers, Université libre de Bruxelles,
Bruxelas, Bélgica
Prof. Dr. Martin W. Bauer, The London School of Economics and
Political Sciences (LSE), Londres, Reino Unido
Prof. Dra. Donna Haraway, University of California at Santa
Cruz, Santa Cruz, EUA
Prof. Dr. Paulo Nobre, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE), Cachoeira Paulista – SP, Brasil
Prof. Dr. Marcel Bursztyn, Universidade de Brasília (UnB),
Brasília – DF, Brasil
Dr. Carlos Afonso Nobre, Ministério da Ciência e Tecnologia
(MCT), Brasília – DF, Brasil
Esta publicação é uma contribuição da Rede Brasileira de Pesquisas
sobre Mudanças Climáticas Globais inanciado pelos projetos:
“Mudanças climáticas em experimentos interativos: comunicação e
cultura cientíica” (CNPq No. 458257/2013-3); “A dimensão humana
das mudanças climáticas em experimentações interativas” (FaepexClimaCom Cultura
Cientíica
- pesquisa,
jornalismo
e arte
Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
Unicamp,Processo
No. 534/14).
Conta
com o apoio
do CNPq
e MCTI;
CNPq Processo 550022/2014-7; e FINEP Processo 01.13.0353.00
3
SEÇÃO
TÍTULO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
4
TÍTULO
Carta de
Apresentação
“Vulnerabilidade”
SEÇÃO
Abrir-nos às composições impensadas que a
vulnerabilidade pode colocar para a escrita e o
pensamento com as mudanças climáticas. Habitar
a vulnerabilidade com outros sentidos, tornando-a
condição vital para o enfrentamento de todas as
forças que nos querem impotentes e tolos. Alterar as
coordenadas que deinem um campo de associações já
dadas entre vulnerabilidade, graus de conhecimento,
incapacidades e falta de consciência, que terminam
por recair na culpabilização, estigmatização e na
própria produção de uma certa vulnerabilidade das
ditas “populações vulneráveis”, que tanto se desejava
combater. Fazê-la emergir então como resistência,
intuição, não saber, encontro de heterogêneos,
formação de coletivos aberrantes, abertura ao novo,
possibilidade de vida, ocasião efetiva de se deixar
afetar pela matéria frágil dos seres-corpos-coisas do
mundo e de produzir a permeabilidade necessária
para a invenção e a vida, pois não se pensa e não se
cria sem se deixar vulnerável como a terra.
É assim que artigos, ensaios, produções jornalísticas,
artísticas e culturais, reunidos neste quinto dossiê da
ClimaCom, coeditado por Gilvan Ramalho Guedes,
Sub-coordenador da Sub-rede Cidades e Urbanização,
em parceria com a Sub-rede Divulgação Cientíica e
Mudanças Climáticas, investem em restituir a força
política e sensível do que se entende e se faz funcionar
sob a denominação de “vulnerabilidade”, lançando
luz sobre outras dimensões dessa relação, mais sutis,
mais delicadas, mas nem por isso menos potentes
e criadoras. Todas, sem dúvida, fundamentais para
que pensemos nossa implicação com os mundos que
criamos, com os mundos que desejamos criar. Em meio
a tais proliferações, seguimos experimentando uma
divulgação cientíica que deseja produzir encontros
nos quais os mais diferentes conhecimentos,
ciências, artes e ilosoias tornam-se vulneráveis a
novos arranjos e composições. E estes são os modos
como acreditamos ser possível afetar a própria
comunicação e a divulgação cientíicas das mudanças
climáticas, apostando numa eicácia que não é a
da produção de escritas normativas, que visam o
julgamento e o convencimento da população a partir
das especialidades eleitas e legítimas, mas a abertura
para povoamentos múltiplos, que exigem a presença
das mais diversas abordagens, dos movimentos
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
5
SEÇÃO
sociais, das ciências, das artes e da ilosoia, para
que tenhamos direito à constituição dos problemas
relacionados às alterações ambientais em curso. Gesto
muito importante se pensarmos que somente este ano
– mais precisamente em fevereiro de 2016 – o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)
realizou sua primeira reunião voltada à comunicação.
Se nos alegramos com o ineditismo deste evento, com
a possibilidade de que os próximos relatórios sejam
rascunhados a mais mãos, igualmente nos interrogamos
sobre como a comunicação (não apenas a do IPCC)
aprenderá a estar vulnerável daqui em diante. Pois,
para a ClimaCom, a vulnerabilidade diz respeito,
sobretudo, a uma certa qualidade de uma força que
nos atravessa e compõe. O que fazemos dela, como a
dobramos, é o que há para ser pensado.
Para esse dossiê, contamos com a contribuição de
pesquisadores, artistas e coletivos brasileiros e
estrangeiros. O dossiê apresenta também as diversas
atividades desenvolvidas pelos pesquisadores da
ClimaCom no Laboratório Ateliê ao longo do período
de elaboração do dossiê, além daquelas desenvolvidas
por convidados. Tais atividades são fundamentais para
desdobrar os problemas presentes em cada chamada
e possibilitam o encontro entre os pesquisadores, os
artistas e o público em geral para produzir modos
outros de abordar e pensar as mudanças climáticas.
Por im, a Seção Jornalismo traz uma Coluna
Assinada, espaço aberto a pesquisadores, artistas e
jornalistas, destinado à abordagem de temas atuais
de interesse e relevantes socialmente. A seção reúne
ainda notícias, reportagens e satélites cujos temas
e perspectivas guardam íntima ressonância com as
questões propostas pelo dossiê.
Susana Dias, Carolina Rodrigues e Ana Godoy
6
TÍTULO
TÍTULO
SEÇÃO
SUMÁRIO
PESqUISA
A revista ClimaCom Cultura Cientíica – pesquisa, jornalismo e arte lança, a cada dossiê
quadrimestral, uma chamada para artigos e resenhas de pesquisadores que desenvolvem estudos
relacionados ao tema proposto para a edição. Trata-se de uma revista interdisciplinar e são aceitas
contribuições de pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento, bem como estágios de
formação. Os artigos e resenhas podem ser submetidos em português, espanhol e inglês e são
avaliadas por peer review.
ARtIGOS
The Elephant in the Room: Amazonian Cities Deserve More Attention in Climate Change and
Sustainability Discussions
Eduardo Brondizio
Pág. 15
Distribuição espacial e percepção sobre violência em Governador Valadares: (re)pensando
aspectos da vulnerabilidade social
Andréa Branco Simão, Marina Alves Amorim, Gilvan Ramalho Guedes
Pág. 27
Cidades Médias e vulnerabilidade às mudanças climáticas no Brasil: elementos para
integração do debate a partir de estudos de caso
Tiago Cisalpino Pinheiro, Gilvan Ramalho Guedes, Alisson Flávio Barbieri
Pág. 43
A vulnerabilidade do corpo no mundo
Cinthia Mendonça
Pág. 63
Notas sobre A queda do céu de Davi Kopenawa y Bruce Albert por un lector blanco
Jean- Christophe Goddard
Pág. 75
Na beira do Rio Doce: antropoceno e mobilização no rastro da catástrofe
Lorena Regattieri, Marcelo Castañeda
Pág. 85
Ciberativismo, saúde e ambiente: movimentos sociais no Brasil e na Espanha
Mariana Olívia Santana dos Santos, Aline do Monte Gurgel, Isaltina Maria de Azevedo Mello,
Idê Gomes Dantas Gurgel, Lia Giraldo da Silva Augusto
Pág. 111
Conhecimento sensível (felt knowledge) e vulnerabilidade cora josa (courageous
vulnerability): um estudo sobre a memória involuntária no livro Em busca do tempo perdido
através das filosofias de William James e Henry Bergson
Rosa Slegers
Pág. 131
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Vol. 4 - Ano 2 / Dezembro de 2015 / ISSN 2359-4705
7
SUMÁRIO
Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes
Donna Haraway
Pág. 139
RESENhA
Cidades e mudanças climáticas: políticas públicas e governança ambiental
Douglas Sathler, Saleem Khan
Pág. 149
ENSAIO
O sombrio sonho d’A queda do céu
Rafael Leopoldo
Pág. 155
JORNALISMO
Para cada edição da ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte escolhemos um tema
relacionado às mudanças climáticas, abordado em notícias, reportagens, resenhas e entrevistas.
COLUNA ASSINAdA
Dados sobre a invisibilidade academicista ou quando Dona Bélgica vai à COP21
Luana Adriano Araújo, Levi Mota Muniz
Pág. 181
REPORtAGENS E NOtíCIAS
Vulnerabilidade e biodiversidade: desafios à vida na Caatinga e Amazônia
Janaína Quitério
Pág. 187
A arte de reinventar a COP-21
Janaína Quitério
Pág. 191
SAtÉLItES
Desastres naturais como problema de saúde pública
Janaína Quitério
Pág. 197
EXIT. Ou de como a informação não pode conter a vida
Sebastian Wiedemann
Pág. 198
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
8
SUMÁRIO
Testemunhos do clima: tese investiga ligações fogo-clima-vegetação na Floresta Amazônica
Fernanda Pestana
Pág. 199
The Golden Record . Ou da impossibilidade de explicar “nosso” mundo aos alienígenas
Sebastian Wiedemann
Pág. 201
A política dos afetados: o que resta quando a água já se foi?
Michele Gonçalves
Pág. 202
Vulnerabilidade, mais um termo retórico?
Michele Gonçalves
Pág. 204
ARtE
Esta seção da ClimaCom Cultura Cientíica – pesquisa, jornalismo e arte funciona como um
espaço expositivo no qual serão publicadas, quadrimestralmente, produções artísticas e culturais
relacionadas às mudanças climáticas, submetidas à avaliação peer review nos mais diversos
formatos (ensaios fotográicos, vídeos, animações, instalações etc.) e relacionadas ao tema
proposto por cada edição da revista. Também serão divulgadas produções audiovisuais resultantes
de experimentações (oicinas-instalações) feitas pela equipe da revista, pesquisadores, artistas
convidados e públicos diversos.
PROdUÇÕES ARtíStICAS E CULtURAIS
Monumento Mínimo
Néle Azevedo
Pág. 211
Los Cantos del chaman y La serpiente del Yurupari
Dioscórides
Pág. 215
Kate MacDowell sculptures
Kate MacDowell
Pág. 225
Nuevas Geografías, Geografías deshechas y Aluvión
Fredy Alzate
Pág. 233
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
9
SUMÁRIO
Tree leaves cut with a scalpel
Lorenzo M. Durán
Pág. 249
Where to sit at the dinner table?
Pedro Neves Marques
Pág. 255
Gambiarras
Cao Guimarães
Pág. 257
Respira!
Leonardo Carrato
Pág. 263
LABORAtóRIO-AtELIÊ
Laboratório de futuros – vídeo
Pág. 273
Encontros com potências frágeis
Pág. 277
Laboratórios de re-existências. Mesas de operações ao ar livre
Pág. 291
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
10
TÍTULO
SEÇÃO
Pesquisa
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
11
SEÇÃO
TÍTULO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
12
TÍTULO
SEÇÃO
ARtIGOS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
13
ARtIGOS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
14
ARtIGOS
The Elephant in the Room:
amazonian cities deserve more
attention in climate change and
sustainability discussions*
Eduardo Brondizio [1]
Abstract: The Amazon region has been at the center of climate change discussions and negotiations
since the late 1980s. There is wide recognition among the international community that the region’s
ecosystems and peoples have a central role to play in national and international efforts to mitigate
climate change. But, if over 75% of the Amazonian population lives in poor and extremely poor urban
areas, why are the region’s urban issues and the predicaments of urban populations virtually absent
from discussions regarding climate change, sustainable development? This essay makes a case for
the importance of bringing urban dynamics and social problems to the forefront of climate change
and sustainability discussions. In particular, it discusses how poverty, violence, lack of sanitation
infrastructure are challenging advances in environmental policies and climate change mitigation efforts
put in place elsewhere in the region. Data on the relationship between urban growth and stagnant
infrastructure provisioning are presented for the whole region. Examples of the increasing impact of
looding affecting urban areas, particularly in the Amazon estuary-delta region, illustrate the key points
of the article. The essay argues that the effects of climate change in the Amazon will be most felt
in urban areas, which in turn are increasingly shaping the future of the region’s environment, local
populations, and landscapes.
Keywords: Amazonia. Urban infrastructure. Climate change. Urban populations. Urban poverty.
O “Elefante na Sala”: cidades amazônicas merecem mais atenção em discussões e
políticas de mudanças climáticas e sustentabilidade
Resumo: A região Amazônica tem estado no centro de discussões e negociações sobre mudanças climáticas
desde o im dos anos 1980. Hoje, a comunidade internacional reconhece que os ecossistemas e populações
indígenas e rurais da região têm um papel central em esforços nacionais e internacionais para mitigar
o avanço e os efeitos das mudanças climáticas. Todavia, dado que mais de 75% da população urbana da
região vive em áreas urbanas consideradas pobres ou de extrema pobreza, por que tal realidade e seus
problemas estão praticamente ausentes de discussões sobre mudanças climáticas e desenvolvimento
sustentável da região? Este ensaio chama atenção para a importância de tratar questões sociais urbanas
como uma prioridade destas discussões. Em particular, é discutido como pobreza, violência, falta de
infraestrutura de saneamento comprometem avanços alcançados em políticas ambientais e esforços
[1] Ph.D. in Anthropology, Department of Anthropology, Center for the Analysis of Social-Ecological Landscapes (CASEL),
e The Ostrom Workshop in Political Theory and Policy Analysis, Indiana University Bloomington. Professor Colaborador do
Programa Sociedade e Ambiente da Universidade de Campinas. E-mail: ebrondiz@indiana.edu
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
15
ARtIGOS
THE ELEPHANT IN THE ROOM
de mitigação de mudanças climáticas alcançados na região. Para ilustrar os pontos centrais do ensaio,
dados sobre a relação entre crescimento urbano e a estagnação de infraestrutura de saneamento são
apresentados para a região como um todo. Exemplos do impacto crescente de inundações afetando
populações urbanas são mostrados para a região do estuário-delta Amazônico. Argumentamos que os
efeitos das mudanças climáticas na Amazônia serão mais sentidos em áreas urbanas que, por sua vez,
irão cada vez mais inluenciar o futuro das populações e ecossistemas da região.
Palavras-chave: Amazônia. Infraestrutura urbana. Mudanças climáticas. Populações urbanas. Pobreza
urbana.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
16
THE ELEPHANT IN THE ROOM
INtROdUCtION
Justiiably, the Amazon region has been at
the center of climate change discussions
and negotiations since the late 1980s. It is
not dificult to explain ‘justiiably’ when
one is referring to a region of continental
proportions, with unparalleled biological and
cultural diversity, and whose biogeochemical
cycles and atmospheric circulation processes
inluence the entire hemisphere and beyond.
Few regions have changed so much and so
fast as the Amazon, particularly the Brazilian
Amazon. Urgency about the Amazonian cause is
not an exaggeration! I often use Will Steffen’s
concept of the ‘great acceleration’ to illustrate
the rate and impact of these changes (Figure
1).
Misguided and destructive development
programs, an ingrained view of forests and
forest peoples as “unproductive,” and a
short-term, extractive mentality intended to
feed commodity markets (all with plenty of
government incentives) have fragmented and
threatened the world’s largest tropical forest.
Indigenous and local populations continue to
be impacted and transformed, but they have
also responded and become major players in
territorial governance of the region. Indigenous
and sustainable use conservation reserves
represent over 40 percent of the Brazilian
Amazon today. Yet, depending where one
looks, the transformation of the region is just
starting. Some estimates indicate plans to build
over 330 new dams in the larger basin during
the next 25 years. Prospects for expanding
mining concessions are equally aggressive,
while perspectives to address the region’s
most pressing social needs and changing social
reality are limited at best.
ARtIGOS
On a positive note, the region received strong
attention during recent COP21 negotiations
in Paris. There is wide recognition among the
international community that the region’s
ecosystems and peoples have a central role
to play in global efforts to mitigate climate
change. There were signiicant discussions and
promises to slow and even halt deforestation,
as well as promises and agreements to secure
funds for carbon-based mitigation programs,
including support for indigenous and local
populations, conservation reserves and local
municipalities. Kudos to these advances!
But, there is one important aspect of the region
that has fallen between the cracks of public
opinion, climate change conversations and
— more broadly — discussions about regional
sustainable development and futures. Why are
‘urban’ issues and the predicaments of ‘urban’
populations virtually absent from discussions
regarding
climate
change,
sustainable
development and the future of the Amazon?
As put by Brazilian geographer, Bertha Becker,
as of the 1980s, the Amazon was already an
“urban forest.” Today, anywhere from 76 to
80 percent of the regional population lives in
cities, including an estimated 25 percent of the
region’s indigenous peoples. The metropolitan
regions of the state capitals of Manaus and
Belem have each around 2.5 million habitants.
The majority of the population in medium
and large cities lives in areas considered
“sub-normal” in census terms. The nature of
Amazonian cities is not alluring!
From “green hell” to “the lungs of the planet”
to “God’s paradise,” the historical popular
imaginary of the region is obviously not an
urban imaginary. When deployed, images of
Amazonian cities often invoke the extravagant
wealth and architectural features of the capital
cities of Belem and Manaus during the rubber
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
17
THE ELEPHANT IN THE ROOM
ARtIGOS
Figure 1 - The great Amazonian acceleration
Source: Brondizio (2013).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
18
THE ELEPHANT IN THE ROOM
boom period (circa 1850 to 1910). The urban
continues to be absent during this new phase of
regional imaginary, deined by maps of carbon
emissions and sinks.
The ways we see the Amazon continue to
change. We have come a long way in recognizing
the role of indigenous and local communities in
shouldering the biggest share of responsibility
to halt deforestation and to protect standing
forests and water sources. The sophistication
of deforestation monitoring and carbon-budget
estimates, visible during COP21 and elsewhere
online, shows important steps and advances
coalescing around the protection of forests
and carbon stocks in Amazon. Conversely and
surprisingly, many, if not most, maps, charts,
atlases and tools portraying the regional
environment lack or pay minimum attention to
the urban face of the region. In some cases,
cities — from 760 to 792 of them (depending on
where one puts the boundaries of the region) —
are completely absent from maps portraying the
anthropogenic transformation of the region.
Without undermining the relevance and
importance of these analyzes, considering the
demography and distribution of social conditions
in the region, it is puzzling to observe this
disconnection. One cannot help but be reminded
of the 1970s military government development
motto for the region — “a land without people,
for people without land” — but in an ironic
way: “a land [still presented] without people,
for people without carbon.” While the “without
people” of the 1970s ignored the thousands of
indigenous groups and communities throughout
the region, today it ignores 3/4 of the regional
population, which is mostly very poor, living in
even poorer urban conditions, surrounded by
political disregard and hijacked by violence.
ARtIGOS
Figure 2 - City centers and population distribution in the
Brazilian Amazon
Source: IBGE census data2000- 2010; BF-Deltas Project.
Map prepared by Andressa V. Mansur, CASEL, Indiana
University.
In many ways, this disconnection between the
regional urban reality, development needs and
environmental discussions, including climate
change programs and inancing, is not surprising.
This is also the case for the urban realities of
other parts of Latin America, Africa and Asia.
Urban problems, infrastructure deiciencies
and social vulnerability in tropical areas,
and in developing countries in general, have
received scant attention from climate change
policies and inances, at least when compared
to concerns regarding carbon emissions and
sequestration from ‘rural’ activities. The
‘urban’ remains the ‘elephant in the room,’ too
messy to be addressed, yet, paradoxically, too
easy to be ignored.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
19
ARtIGOS
FROM “GREEN hELL” tO “GRAY hELL”:
thE thREAtENING NAtURE OF AMAZONIAN
CItIES
The majority of Amazonian cities (81 percent)
are small (fewer than 20,000 habitants), but
3/4 of the regional population lives in median
and large cities (Figure 2). Most municipalities
in the Brazilian Amazon, and thus their ‘cities,’
are ‘young’ (between 30 and 50 years old).
Older municipalities tend to be related to
river ways, while younger ones have been
created along roadways. Irrespective of how
one interprets what counts as ‘urban’ or as
a ‘city’ in the region, vis-à-vis other regions,
and irrespective of age and size, these areas
face an ‘urban’ reality common to many other
parts of the world: exponential growth and
growing population density, mainly very poor
constituents with minimum service provision
(Figure 3) and mostly informal employment,
high levels of prostitution (particularly in larger
cities), and even higher levels of violence
related to drug traficking.
Figure 3 - Proportion of households in Amazonian
municipalities and state capitals connected to sewage
collection
THE ELEPHANT IN THE ROOM
The face of Amazonian urbanization can look
unmanageable, and perhaps because of that,
it is ignored. Unable to cope with hyperaccelerated urban growth, the sanitation
conditions of urban areas have hardly changed,
in many cases, worsened during the past two
decades. Infrastructural projects in large
metropolitan areas such as in Belem and
Manaus and others are often not concluded or
maintained, increasing problems with looding
and health hazards. Fortunately, provisioning
of water and energy has become much better.
An analysis developed as part of the BF-Deltas
project, focusing on 50 municipalities of the
Amazon estuary and delta region, shows that,
like the rest of the region [see Figure 3], the
vast majority of the urban and rural populations
are not served by any sewage collection or
treatment [see Figure 4]. Spatial analysis of
delta cities indicates that some form of sewage
and garbage collection may be present only
in older and historical parts of the region’s
larger and older cities [see igures 5 and 6 for
examples in Belem and Macapa]. Even though
census data may show otherwise, garbage is
largely disposed in open-air depositories, street
corners, or in drainage channels and river ways.
When combined with socioeconomic conditions,
housing conditions and location, the majority
of urban populations face high (and increasing)
levels of vulnerability to looding and storm
surges [see Figure 7]. This is the ignored face of
climate change vulnerability in the Amazon, one
that affects millions of people concentrated in
“sub-normal,” lamentable urban conditions.
Source: DATASUS 2013; BF-Deltas Project. Map prepared by
Andressa V. Mansur, CASEL, Indiana University.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
20
THE ELEPHANT IN THE ROOM
Figure 4 - Sewage disposal in the Amazon Delta region
Source: DATASUS 2013; BF-Deltas Project. Map prepared by
Andressa V. Mansur, CASEL, Indiana University.
ARtIGOS
More challenging yet, the nature of Amazonian
cities is violent. Urban areas in the Amazon
region have shown the highest increase in urban
violence in Brazil, including by far the most
signiicant increase in homicides since 2002.
Estimates suggest that close to 37 percent of
the urban population in Amazonian cities larger
than 50,000 inhabitants live in areas controlled
by drug trafickers. A recent report by a
Mexican-based NGO [El Consejo Ciudadano para
la Seguridad Pública y la Justicia Penal] places
the Amazonian capitals of Manaus (23rd), Belem
(26th), and Macapa (48th) among the 50 most
violent cities in the world (41 of which are in
Latin America). While igures are hard to come
by, larger cities in the region have some of the
highest rates of youth prostitution in Brazil.
Figure 5 - Change in sewage collection in census sectors of two state capitals of the Amazon delta: Belem (Para) [top] and
Macapa (Amapa) [bottom]
Source: IBGE Census Data 2000-2010; BF-Deltas Project. Maps prepared by Andressa V. Mansur, CASEL, Indiana University.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
21
ARtIGOS
Figure 6 - Examples of sewage in Belém and Macapá
Source: personal archive. Photos: Andressa V. Mansur.
thE RURAL ANd URBAN INtERMINGLE
When observed from the perspective of
families, the Amazon region is indeed a ‘ruralurban continuum.’ Family networks shape
the urban and rural landscapes of the region,
supporting intense patterns of circulation and
exchanges across short and long distances.
These networks allow people to maintain
some level of access to urban services as well
as access to rural resources and livelihood
opportunities. More than half of the population
in a substantial number of municipalities
depends on government conditional cash
transfer programs, which must be collected in
urban centers. This arrangement has further
attracted people to the surroundings of urban
areas during the past decade, strengthening
connections between ‘rural’ areas and cities.
THE ELEPHANT IN THE ROOM
While this reality is widespread, it is still
evolving. Over 27 years ago, when I started to
do ieldwork in the region (Amazon estuarydelta, the Transamazon, and other parts),
transportation posed concrete limitations to
mobility and circulation choices. Today, in
many parts of the region, transportation is
conditioned by seasonal changes (rainfall and
looding still rule), but it has greatly improved.
The same is true for communication and access
to energy, the Internet and a broad array of
national and global media. Differences between
urban and rural lifestyles are becoming less
signiicant, but the city increasingly lures the
rural youth, including indigenous youth.
It is not only access to services, education and
economic opportunities that have attracted
people to urban areas. No matter where or
how poor or how violent a city locale, for many
residents, a house in the city provides security
— or at least a sense of security — from the
uncertainties of rural life. The vast shantytowns
(a term often avoided in the region in favor of
more euphemistic ones) of Amazonian capitals
or the mushrooming peripheries of medium and
small towns are populated by families — who
either lacked land rights or were ‘abandoned’
without infrastructure or social services
in agrarian colonization settlements and
indigenous areas — or people who otherwise
completely lack opportunities to make a living
and feed a family. Depending on the season,
Amazonian forests and rivers can be plentiful
or scarce. Having a place in the city represents
having ownership of a roof, as well as access to
schools, informal work opportunities, economic
niches and social activities that give a sense of
access to modernity, whatever people imagine
modernity to be.
The fast urban growth of Amazonian cities is
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
22
THE ELEPHANT IN THE ROOM
also a result of the changing expectations
of Amazonians, particularly the youth, and
increasingly the indigenous youth. As in other
parts of the world, the region is experiencing
its own ‘de-agrarianization’ process, changing
forms of livelihood and social identities away
from the peasantry (but not necessarily
from indigenous identity). Much like in other
parts of the world, moving to a city opens up
opportunities for those previously trapped
in sharecropping and indentured servitude,
demeaned social identities, kinship obligations,
and/or perverse gender relations. As bad as
living over open sewage, surrounded by violence
can be, cities are still places of opportunity,
and offer no shortage of festivities.
The nature of Amazonian cities is one where
pollution and resource provisioning intermingle,
whether one ishes at the conluence of a
sewage stream or wades polluted channels to
access a palm tree bearing fruits. Pollution
and garbage, even extreme amounts of it, are
largely ignored, both by residents and decisionmakers. The illusion that the mighty Amazon
and its tributaries can absorb and dissolve
almost all of the sewage and industrial pollution
generated in the region offers a convenient
excuse for not dealing with the problem.
The Amazon is often referred to as the land
of NGOs and social movements. But very little
attention is given to the predicaments of cities.
While there is increasing mobilization related
to housing rights, few organizations and social
movements are concerned with environmental
conditions in urban areas. The few heroes trying
to advance the cause of urban ‘environmental
violence’ face risks and threats. The sense that
sewage and garbage pollution are secondary or
ignored issues is mind boggling considering their
implications for well-being and health of the
ARtIGOS
largest portion of the Amazonian population.
It is important to remember that behind this
reality are deeper structural issues. Most
municipalities are insolvent and depend on
transfers from the federal government. They
are in perpetual deiciency when it comes
to providing services for urban growth so
accelerated that it can change the face of a city
from year to year, or even from month to month.
Many Amazonian municipalities struggling
with deteriorating urban conditions witness
strong, billion-dollar resource economies
from agriculture, mining, forest products and
ishing, and yet are not able to harness even
the tiniest share of rent and taxes. Corruption
is another problem, but it is too complex to it
in this essay. The take home point here is that
municipal economies, and thus the economies
of cities, are largely disconnected from
resource economies of the region (including an
increasing carbon economy), and are entangled
in a historical, structural trap.
But, the nature of Amazonian cities is also
one of solidarity and hope. I hardly remember
listening about complains from the many
migrants and urban residents I have worked
with over the years. Regrets about lack of
services, disregard and violence often give
way to remarks about opportunities, popular
culture and the privilege of owning a house.
Family and kinship networks extend support to
vast areas. There is never a closed door to a kin
member in Amazonian houses. Fishes, fruits,
shrimp, manioc lour and occasional bushmeat
circulate widely. It is a society of reciprocity
and reciprocity obligations. This explains, in
part, the high density of urban areas, where
multiple families share space layered with
compartments and hammocks.
There are many faces of the nature of Amazonian
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
23
THE ELEPHANT IN THE ROOM
ARtIGOS
Figure 7 - Belem residents document looding and spill of sewage drainage channels from 2005 to 2015
Source: personal archive. Photos: José Alexandre de Jesus Costa and members of the “Frente dos
Moradores Prejudicados da Bacia do Una” Belem, PA, Brazil.
cities that are bright and lifting, and I intend to
focus on these aspects for my next essay. Here,
my intention is not to perpetuate a sense of
pessimism, but to recognize the urban as the
‘elephant in the room’ in sustainability and
climate change discussions about the region.
The face of urban conditions in the Amazon
is the face of sustainability challenges and
climate change vulnerability that we have
not addressed, at least enough. This puts the
question of climate change mitigation inancing
in a different perspective. While most attention
seems to go to who would be paying for ‘it,’
less attention is focused on where and to what
purpose these funds should be used. This is the
underlying challenge of aligning climate change
mitigation and the newly agreed Sustainable
Development Goals.
I recently argued (at the Global Landscape
Forum happening in parallel to COP21) that
the sustainability of the Amazon as a region
is and will be shaped by its evolving urban
networks and forms of urban growth — in
other words, by the nature, the networks of its
cities. Amazonian cities are shaping the lows
of people and resources and the conditions of
local and regional ecosystems, and will continue
to shape the region’s landscape in the next 20
years and beyond.
As is the case for most of Latin America, the most
pressing and dificult sustainability challenge
for the Amazon is to mobilize resources, visions,
technology and political support to transform
the nature of its cities.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
24
THE ELEPHANT IN THE ROOM
REFERENCES
BELMONT FORUM DELTAS PROJECT: Catalyzing
action towards sustainability of deltaic
systems with an integrated modeling
framework for risk assessment (BF-DELTAS).
Support from the Belmont Forum funding
agency to 24 collaborating international
institutions. The US National Science
foundation has funded research conducted
by the author and colleagues at Indiana
University (NSF # 1342898).
BRONDIZIO, E. S.; VOGT, N; SIQUEIRA, A.
Forest Resources, City Services: Globalization,
Household Networks, and Urbanization in the
Amazon estuary. In: Morrison, K.; Hetch, S.;
Padoch, C. (Eds). the Social Life of Forests.
Chicago, IL: The University of Chicago Press,
2013. p. 348-361.
ARtIGOS
El CONSEJO CIUDADANO PARA LA SEGUIRDAD
PÚBLICA Y LA JUSTICIA PENAL. Metodología
del ranking (2015) de las 50 ciudades más
violentas del mundo. México, 2016. Avaliable
at: <http://www.seguridadjusticiaypaz.org.
mx/biblioteca/prensa/send/6-prensa/230caracas-venezuela-es-la-ciudad-mas-violentadel-mundo>. Access on: 2 jan. 2016.
ELOY, L.; BRONDIZIO, E. S.; PATEO, R. New
perspectives on mobility, urbanisation, and
resource management in Amazônia. Bulletin
of Latin American Research (BLAR), p. 1-16,
2014. DOI:10.1111/blar.12267.
ESTADÃO [online]. Favela Amazônia: Um Novo
Retrato da Floresta (Amazonia Slums: A new
portrait of the forest). Avaliable at: <http://
infograicos.estadao.com.br/especiais/favelaamazonia/index.php>. Access on: 2 jan. 2016.
BRONDIZIO, E. S. A microcosm of the
Anthropocene: Socioecological complexity and
social theory in the Amazon. Perspectives:
Journal de la Reseaux Francaise d’Institut
d’études avancées (RFIEA), n. 10, p. 10-13,
2013.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência 2015.
Mortes matadas por armas de fogo. Brasília:
Unesco, 2015. Avaliable at: <http://
www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/
mapaViolencia2015.pdf>. Access on: 2 jan.
2016.
BRONDIZIO, E. S. Forest Resources, Family
Networks and the Municipal Disconnect:
Examining Recurrent Underdevelopment in the
Amazon Estuary. In: PINEDO-VASQUEZ, M. et
al. (eds.). the Amazon Várzea: the decade
past and the decade ahead. Dordrecht, The
Netherlands: Springer Publishers, 2011. Pg.
207-232.
MANSUR, A. V. et al. An Assessment of Urban
Vulnerability in the Amazon Delta and Estuary:
A multi-Criterion Index of Flood Exposure,
Socio-Economic Conditions and Infrastructure.
Sustainability Sciences, p. 1-19, 2016. DOI:
10.1007/s11625-016-0355-7
COSTA, S. M.; BRONDIZIO, E. S. Inter-Urban
Dependency among Amazonian Cities: Urban
Growth, Infrastructure Deiciencies, and
Socio-Demographic Networks. REdES (Brazil),
v. 14, n. 3, p. 211– 234, 2009.
STEFFEN, W. et al. The trajectory of the
Anthropocene: The Great Acceleration.
the Anthropocene Review, 2015. DOI:
10.1177/2053019614564785
WINEMILLER, K. O. et al. Balancing hydropower
and biodiversity in the Amazon, Congo, and
Mekong. Science, v. 351, n. 6269, p. 128-129,
2016. DOI: 10.1126/science.aac7082
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
25
ARtIGOS
THE ELEPHANT IN THE ROOM
Recebido em: 1/03/2016
Aceito em: 10/03/2016
* A version of this article was posted on the blog The Nature
of Cities.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
26
ARtIGOS
Distribuição espacial e
percepção sobre violência
em Governador Valadares:
(re)pensando aspectos da
vulnerabilidade social*
Andréa Branco Simão [1], Marina Alves Amorim [2] e Gilvan Ramalho Guedes [3]
Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma análise da distribuição espacial e da percepção de
violência em Governador Valadares, Minas Gerais. Os dados utilizados são provenientes da pesquisa
Migração, Vulnerabilidade e Mudanças Ambientais no Vale do Rio Doce, realizada entre 2013 e 2015.
As estatísticas descritivas e os mapas de distribuição espacial da violência que subsidiam as análises
desenvolvidas neste estudo foram obtidos por meio do software R e do software GeoDa. Os resultados
revelam que a cidade de Governador Valadares é percebida como uma cidade violenta pelos respondentes
do estudo, os quais não têm a mesma percepção em relação aos bairros. Os dados também indicam que
a violência sofrida por um membro do domicílio, no próprio bairro, é mais baixa do que a sofrida em
outros bairros.
Palavras-chave: Violência. Distribuição espacial. Governador Valadares.
Spatial distribution and perception of violence in Governador Valadares: (re)
thinking aspects of social vulnerability
Abstract: The purpose of this article is to present the spatial distribution and the perception of violence
in Governador Valadares, Minas Gerais. The data for this study come from a survey named Migration,
Vulnerability and Environmental Change in the Vale do Rio Doce area. The data collection was held
between 2013 and 2015. The descriptive statistics were done using R and GeoDa softwares. The results
reveal that although the city is viewed as a violent locus, the neighborhoods are not. The results also
indicate that the violence suffered by a member of the household in the neighborhood itself is lower
than that suffered in other neighborhoods.
Keywords: Violence. Spatial distribution. Governador Valadares.
[1] Andréa Branco Simão é doutora em Demograia. Professora Adjunta IV na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG) e pesquisadora do Cedeplar. E-mail: deia@cedeplar.ufmg.br
[2] Marina Alves Amorim grduanda do curso de Estatística da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E-mail:marinaamorim@hotmail.com
[3] Gilvan Ramalho Guedes é doutor em Demograia. Professor Adjunto II do Departamento de Demograia – Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e Pesquisador Permanente do Cedeplar. E-mail: grguedes@cedeplar.ufmg.br
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
27
ARtIGOS
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
INtROdUÇÃO
A questão da violência, particularmente nos
centros urbanos, tem sido alvo de preocupação
de pesquisadores de diferentes áreas do
conhecimento (ACSELRAD, 2006; ABRAMOVAY
et al. 2002; BATELLA et al. 2008; DAHLBERG et
al., 2006; DELLASOPPA et al., 1999; SOUZA et
al. 2007; ZALUAR, LEAL, 2001). Tal preocupação
decorre, em parte, devido à generalização
e a intensiicação deste fenômeno, cujas
consequências se expressam em diferentes
tipos de indicadores, tais como a mortalidade
por causas externas, crimes violentos e
homicídios (DELLASOPPA et al., 1999; SOUSA e
LIMA, 2007). Em um estudo sobre a violência no
âmbito da saúde, Dahlberg e seus colaboradores
(2006) apontam que, anualmente, mais de
um milhão de pessoas perdem suas vidas em
decorrência de situações de violência. Muitas
outras, segundo eles, sofrem ferimentos não
fatais resultantes de agressões interpessoais,
de autoagressões ou de violências coletivas.
Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança
Pública 2014 corroboram os argumentos de
Dahlberg et al. (2006) ao mostrarem que, a
cada dez minutos, uma pessoa é assassinada no
país e que, apenas em 2013, 53 646 brasileiros
morreram por mortes violentas (o que inclui
vítimas de homicídios dolosos e ocorrências de
latrocínio e lesões corporais seguidas de morte).
De acordo com as estatísticas do Anuário, os
resultados de 2013 foram 1,0% superiores aos
de 2012, quando foram registradas 53 054
mortes decorrentes de violência.
Para Dellasoppa e seus colegas (1999), bem
como para Sousa e Lima (2007), a violência que
caracteriza a realidade brasileira não atinge
a população do mesmo modo, com riscos
diferenciados em função de variáveis como
idade, sexo, raça/cor e espaço geográico. Ao
analisarem indicadores associados à violência
na área metropolitana do Rio de Janeiro, para
os anos de 1980 e de 1991, Dellasoppa et al.
(1999), por exemplo, constatam um dramático
aumento no número de anos de vida perdidos
entre os homens mais jovens, particularmente
aqueles entre 15 e 24 anos, que passou, de acordo
com os autores, de 2,05, em 1980, para 3,26
anos, em 1991. Já o estudo de Waiselisz (2015)
sobre mortes por armas de fogo mostra que,
quando se analisa a estrutura da mortalidade
por armas de fogo, considerando a raça/cor, os
homicídios assumem proporções importantes
entre os negros: 95,6% das vítimas assassinadas
com armas de fogo são jovens negros. Se, para
cada 100 mil brancos, em 2015, aconteceram
11,8 óbitos por arma de fogo, entre os negros
estes números aumentaram consideravelmente,
atingindo a marca de 28,5 óbitos por arma
de fogo para cada 100 mil negros. Ou seja, a
seletividade racial nas mortes por armas de
fogo revela uma situação desfavorável dos
negros em relação aos brancos.
Moura et al. (2015) lembram que o Brasil é um
país composto por territórios heterogêneos,
marcados pelas desigualdades e assimetrias
nas condições de vida da população e que as
vivências de violência podem apresentar, além
de outras coisas, uma relação com a ocupação
socioespacial nos territórios. Como ressaltam
Batella e Diniz (2010), a violência guarda
consigo um forte componente espacial, que se
faz notório por meio da identiicação de padrões
especíicos em sua distribuição espacial.
Ademais, apesar de ser um problema muito
mais visível nos grandes centros urbanos, alguns
estudos já apontam para o estabelecimento de
uma nova dinâmica no fenômeno da violência,
que é o de sua interiorização. Sousa e Lima
(2007) argumentam que este processo de
interiorização da violência pode ser decorrente,
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
28
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
dentre outras coisas, do percurso do tráico
de drogas em municípios do interior do país,
os quais podem servir tanto como produtores
como corredores de passagem de drogas. No
que diz respeito a cidades de médio porte em
Minas Gerais, Batella e colaboradores (2008)
esclarecem que, até 1997, estas localidades
não apresentavam taxas signiicativas de crimes
violentos. A partir deste ano, contudo, houve
uma intensiicação deste tipo de violência, a
qual, além de aumentar, também se concentrou
em algumas cidades do estado, dentre as quais
está Governador Valadares. Ao analisarem os
determinantes da violência, em particular da
criminalidade violenta nas cidades de porte
médio do estado, os autores veriicaram que
o percentual de pessoas entre 20 e 29 anos,
bem como a taxa de alfabetização dos locais,
estavam fortemente associados com o total de
crimes violentos. Alguns estudos já mostraram
uma maior vulnerabilidade dos jovens no que
diz respeito à violência (WAISELFISZ, 2015;
DELLASOPPA et al.,1999), revelando que eles
são, ao mesmo tempo, agentes e vítimas
deste fenômeno. Adicionalmente, alguns
pesquisadores já ressaltaram que há um
descompasso entre áreas ricas e pobres no que
se refere à violência, sendo áreas mais pobres
mais favoráveis aos cenários de violência
(BATELLA et al., 2008).
Neste contexto, vale pontuar o argumento
de Dahlberg et al. (2006) de que estimar
precisamente os custos decorrentes da
violência não é uma tarefa fácil. Sabe-se que
eles não são baixos e têm um peso expressivo
nas economias dos países em função das
demandas com cuidados de saúde, dias não
trabalhados, dentre outras coisas. Além disso,
é um fenômeno que implica dor e sofrimento
humano, sentimentos cujas possibilidades de
cálculo são praticamente impossíveis. Assim,
ARtIGOS
(re)pensar a violência no meio urbano é
fundamental para que se possa compreender
melhor os seus inúmeros determinantes sociais
e suas relações com os territórios.
Dentro deste contexto, o objetivo deste
trabalho é apresentar uma análise exploratória
da distribuição espacial da violência em
Governador Valadares, revelando, também, a
percepção que os moradores deste município
possuem acerca deste fenômeno. Para tanto,
foram utilizados dados amostrais inéditos da
pesquisa Migração, Vulnerabilidade e Mudanças
Ambientais no Vale do Rio Doce, realizada com
moradores do município entre os anos de 2013
e 2015.
Para ins didáticos, este artigo está dividido
em quatro partes, sendo a primeira esta
introdução. A segunda parte trata dos dados
e da metodologia empregada para atingir os
objetivos propostos. Nela, também é feita
uma breve descrição do município alvo deste
estudo. A terceira parte apresenta os resultados
obtidos e as análises realizadas. Por im, a
quarta parte, oferece algumas considerações
inais sobre o estudo desenvolvido.
dAdOS E MEtOdOLOGIA
Este item apresenta, de forma breve, os
dados e a metodologia empregada para o
desenvolvimento do estudo. A descrição do
município alvo da análise também é feita nesta
parte do trabalho.
dados e Metodologia
Os dados para este estudo são provenientes da
pesquisa denominada Migração, Vulnerabilidade
e Mudanças Ambientais no Vale do Rio Doce,
realizada na área urbana de Governador
Valadares em uma parceria institucional entre
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
29
ARtIGOS
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
o Centro de Desenvolvimento e Planejamento
Regional (Cedeplar), da Universidade Federal
de Minas Gerais, e a Universidade Vale do
Rio Doce (Univale). O projeto contou com o
inanciamento da FAPEMIG (Processo CSA APQ-00244-12; Processo CSA - PPM 00305-14),
CNPq (Processo 483714/2012-7 e Processo
472252/2014-3) e Rede Clima. Os dados foram
coletados entre 2013 e 2015, através de
entrevistas domiciliares. Os domicílios foram
selecionados com base num desenho amostral
complexo, envolvendo três (03) estágios
amostrais, deinidos por conglomeração de
bairros por contiguidade espacial e nível
socioeconômico, e por estratos deinidos por
grupos etários (18 a 39, 40 a 59, 60 a 78) e
sexo.
Foram entrevistados, ao todo, 1 200 domicílios
representativos da população urbana de
Governador Valadares. Para ins deste estudo,
são utilizadas as respostas de 1 008 moradores
de domicílios situados no município, os quais
responderam a um questionário estruturado
contendo, em sua totalidade, cento e quarenta
(140) questões que abordaram desde aspectos
relacionados à identiicação dos participantes
do estudo, às condições de moradia, migração
internacional, representações sobre o Rio Doce,
memórias de enchentes, aquecimento global,
até questões relacionadas a percepções sobre
perigos, incluindo violência. As estatísticas
descritivas dos dados coletados foram
obtidas a partir da utilização do software R,
considerando o peso amostral probabilístico.
Já a análise espacial dos dados foi feita a partir
dos resultados obtidos por meio do software
GeoDa. Uma matriz de pesos de distância foi
empregada para desenvolvimento da análise
espacial (1 500 metros de raio na métrica
euclidiana a partir do centróide de cada lote
urbano entrevistado)4.
Os seguintes indicadores espaciais foram
utilizados para descrever a associação espacial
da violência no município: Moran I Global e Lisa
Univariado.
No caso deste estudo, o Índice de Moran
I Global foi utilizado para testar como a
violência (e sua percepção) se distribui
espacialmente no município, mostrando se
tal distribuição é aleatória ou não. Um Índice
de Moran I Global próximo de zero sugere que
não há um padrão de concentração espacial da
violência na cidade. Já um Índice de Moran I
Global próximo de 1 indica a existência de um
padrão de concentração espacial da violência.
É importante esclarecer que o Índice de Moran I
Global não deve ser analisado de forma isolada,
pois uma de suas grandes limitações é que ele
tende a apresentar os resultados considerando
uma variação média na correlação do fenômeno
em análise. É necessário considerar que existem
locais que exibem valores homogêneos que não
seguem a tendência geral. Ou seja, existem
regiões que se sobressaem em relação às
demais, com correlações espaciais positivas, e
outras negativas, podendo gerar um indicador
Global próximo de zero. Nesse sentido, o
Índice de Moran I Global é uma forma inicial
de explorar padrões espaciais de um indicador,
mas não é um indicador suiciente (LESAGE;
PACE, 2009).
Para evitar a limitação imposta pelo Índice de
Moran I Global foi utilizado, também, o Índice
de LISA (Local Indicators of Spatial Association).
O LISA decompõe um resultado global em suas
partes. Ou seja, para cada localização, os
valores de LISA permitem a computação de
valores que permitem veriicar sua similaridade
com os vizinhos e, também, os valores de
signiicância para tal similaridade. No caso deste
indicador, localizações com valores altos de
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
30
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
similaridade com os vizinhos são denominados
como “alto-alto” (autocorrelação espacial local
positiva). Localizações com valores baixos de
similaridade com os vizinhos são deinidos como
“baixo-baixo” (outra forma de autocorrelação
espacial positiva). Os casos “alto-baixo” e
“baixo-alto” são considerados como desvios,
ou autocorrelação espacial negativa, também
conhecidos como “efeito ilha” (LESAGE; PACE,
2009). No caso deste estudo, os vizinhos são
os bairros que se localizam dentro de um raio
de 1.500 metros de distância um do outro, na
métrica euclidiana. No caso do LISA Univariado,
somente uma variável é levada em consideração.
Por exemplo, considerando a distribuição
de violência em um determinado bairro é
possível analisar a distribuição da violência nos
bairros que se localizam no raio de até 1 500
m de distância do centróide. Caso esse bairro
apresente um padrão de violência parecido
com seus vizinhos, identiica-se um cluster de
autocorrelação espacial positiva (alto-alto ou
baixo-baixo). No caso dos vizinhos com padrões
de violência opostos ao do bairro em análise,
forma-se um cluster de autocorrelação espacial
negativa (alto-baixo ou baixo-alto).
ARtIGOS
em seguida, mostra a localização do município
alvo deste estudo.
Figura 1 - Localização de Governador Valadares
Fonte: Elaboração própria.
O MUNICíPIO ALVO: UMA BREVE dESCRIÇÃO
Localizado no interior do estado de Minas
Gerais, na mesorregião do Vale do Rio Doce, o
município de Governador Valadares tinha, em
2013, uma população de 263 689 habitantes.
Nesta população, 125 237 (44,99%) eram
homens e 138 452 (52,51%) eram mulheres
(ATLAS, 2016). As estimativas eram de que,
em 2015, a população do município chegasse
a 278 363 habitantes (IBGE, 2016). Também é
importante esclarecer que a cidade possuía, em
2015, em torno de 137 bairros, distribuídos em
19 setores. Além dos bairros, a cidade tinha,
neste ano, 12 distritos. A Figura 1, apresentada
Com renda per capita de R$ R$ 678,74, o
município apresentava, em 2010, um Índice
de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM)
de 0,727, o que o posicionava na faixa de alto
índice de desenvolvimento humano (IDH entre
0,700 e 0,799) (ATLAS, 2013). Adicionalmente,
o Atlas de Desenvolvimento Humano de 2013
mostra que em 2010 o percentual de indivíduos
considerados pobres no município era de 29,8%.
Ou seja, esta era a proporção de indivíduos
que, na época, possuíam renda domiciliar per
capita inferior a R$ 255,00 mensais (½ salário
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
31
ARtIGOS
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
mínimo em 2010). Aliado a isso, o percentual
de pessoas com 18 anos ou mais sem o ensino
fundamental completo, no município, chegava
a 34,2%. Vale pontuar que, em 2010, 96,01%
da população de Governador Valadares vivia na
área urbana do município (ATLAS, 2013).
Em relação à violência no município, os dados
do Anuário de Informações Criminais de Minas
Gerais, de 2009, mostram que, no caso de
municípios com mais de 250 000 habitantes,
embora tenham ocorrido variações no número
de homicídios, houve um pequeno aumento
(0,6%) no registro deste tipo de violência em
Governador Valadares. Em 2009 foi registrada
uma taxa média mensal de 3,00 casos de
homicídios por grupo de 100 mil pessoas. Em
2008, esta taxa havia sido de 2,98 por 100 mil
pessoas. No estado como um todo, de 2008
para 2009, o número de homicídios registrados
diminuiu em 5,5%, passando de 3.621 para
3.452. Em razão de sua posição estratégica,
com uma ferrovia que liga a área de produção
de minérios à Capital mineira e a Vitória, no
Espírito Santo, e de várias rodovias federais (BR
212 e BR 106), o município tem sido alvo de
uma crescente violência, especialmente entre
jovens. Em 2012, Governador Valadares foi
considerada a quinta cidade mais violenta do
Brasil entre os jovens de 19 a 24 anos, segundo
o Índice de Vulnerabilidade Juvenil da Fundação
Seade. Para 2014, O Índice de Vulnerabilidade
Juvenil à Violência foi considerado o segundo
maior das cidades mineiras, sendo considerado
um município com vulnerabilidade juvenil
muito alta (BRASIL, 2015).
Embora destaquem a importância de se estudar
a violência no município, esses indicadores são
agregados e pouco nos dizem sobre a localização
espacial dessa violência e nem sobre a diferença
entre a experiência e percepção dos eventos
violentos. Ademais, indicadores agregados
não permitem caracterizar as diferenças de
experiência com a violência por grupos etários,
raça/cor e sexo. Nesta pesquisa, lançamos mão
de um estudo detalhado no município, com
representatividade amostral e espacial, para
gerar os primeiros indícios atualizados de como
se distribui o fenômeno da violência urbana
entre grupos sociodemográicos distintos.
RESULtAdOS E ANÁLISE
Em conformidade com as pesquisas que usam
dados oiciais de violência (BRASIL, 2015;
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA
2014); a análise das estatísticas descritivas
para Governador Valadares aponta para o fato
de que a grande maioria dos entrevistados
percebe a cidade como sendo um local violento.
A Figura 2, apresentada a seguir, mostra a
distribuição espacial da violência percebida
pelos entrevistados nos diferentes bairros do
município.
Ao analisar o mapa localizado à esquerda da
igura, é possível veriicar que a concentração de
indivíduos que percebem a cidade como violenta
é mais elevada em alguns bairros da cidade,
tais como, por exemplo, o bairro Esperança, o
bairro Santa Helena, o bairro Nossa Senhora das
Graças, o bairro Carapina, o bairro Grã Duquesa
e o bairro Maria Eugênia. Além destes, o bairro
Sir e, também, os bairros Vale do Sol, Cidade
Jardim e Conquista aparecem como locais
onde os moradores apresentam uma elevada
percepção de violência em relação à cidade. É
importante pontuar que alguns destes bairros
são considerados como aglomerados subnormais
(ou seja, favelas). Dentre eles, Carapina e
Santa Helena. A diversidade de bairros, em
termos de características socioeconômicas,
sugere que a percepção da violência não é
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
32
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
um atributo exclusivo de bairros pobres. Grã
Duquesa, por exemplo, é um dos bairros mais
caros da cidade, assim como a Ilha dos Araújos.
Os bairros Sir e Universitário também, pois são
localizados próximo à Universidade Vale do Rio
Doce e são basicamente formados por jovens
proissionais e estudantes universitários. Essa
difusão da percepção da violência urbana em
bairros com peris socioeconômicos muito
distintos sugere algo mais tênue na análise
da violência: a diferença entre percepção e
experiência da violência, ou a relação entre os
agentes e vítimas.
A partir da análise da Figura 2, também é
possível argumentar que, embora os moradores
de alguns bairros percebam a cidade como
sendo violenta, eles são cercados por bairros
onde os moradores não enxergam a cidade como
um espaço violento. Isto ocorre em locais como
a Ilha dos Araújos, o bairro Vila Rica e o bairro
Santa Rita (autocorrelação espacial negativa5).
Este resultado pode ser veriicado a partir da
observação do mapa que apresenta os valores
ARtIGOS
do Índice de Lisa, localizado à direita na Figura
2, já apresentada. A análise desses clusters de
autocorrelação espacial negativa é interessante,
pois eles contam histórias distintas. A Ilha dos
Araújos é um bairro considerado de classe alta,
ao contrário do bairro Santa Rita. No entanto,
ambos pertencem ao mesmo cluster de alta
percepção de violência, rodeados por vizinhos
com baixa percepção de violência. Análises
adicionais, considerando a experiência com a
violência no bairro e em outros bairros (sob
requisição), mostram que o percentual de
pessoas que sofreram violência no bairro Santa
Rita (25% a 37%) é consideravelmente maior do
que no bairro Ilha dos Araújos (2% a13%). Por
outro lado, o percentual de indivíduos que já
sofreram violência em outros bairros é muito
maior na Ilha dos Araújos. Nesse sentido,
embora ambos tenham alta percepção de
violência na cidade, a experiência com essa
violência é sentida de forma distinta, uma
no próprio bairro, a outro no exercício da
mobilidade intraurbana.
Figura 2 – Distribuição Percentual e Índice de Moran I Global para a Percepção de Violência para
a Cidade de Governador Valadares
Fonte: Pesquisa Migração, Vulnerabilidade e Mudanças Ambientais no Vale do Rio Doce, 2016.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
33
ARtIGOS
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
A análise espacial, embora interessante em si,
ainda não revela como a violência percebida
difere entre grupos com características
sociodemográicas distintas. A Tabela 1 ajuda
a entender esse panorama descritivo entre
os grupos. Ao serem questionados se acham a
cidade violenta, aproximadamente 80,7% dos
moradores responderam que sim, conirmando
que a percepção da violência é um fato,
embora com padrões espaciais diferentes,
como visto pela Figura 2. O padrão de resposta
encontrado para a percepção de violência para
a cidade como um todo permanece o mesmo
quando os dados são desagregados por sexo
dos respondentes. Esta percepção, no entanto,
é um pouco mais elevada entre as mulheres
(81,4%) do que entre os homens (79,5%). Quando
a variável cor/raça é considerada, também se
observam respostas na mesma direção, ou seja,
a maior parte dos respondentes que se declarou
como branco (brancos e amarelos), bem como
a maioria daqueles que se disseram negros
(pretos e pardos) alegou que acha Governador
Valadares uma cidade violenta. Entre os
brancos, o percentual que percebe a cidade
como violenta foi de 81,1% e entre os negros,
essa cifra foi de 80,6%. Quando a análise leva
em consideração diferentes grupos etários, é
interessante observar que a percepção de que
o município é violento é elevada entre todas as
faixas de idade, chegando próximo a 80,0% em
praticamente todas elas.
Assim, o que os dados desagregados por sexo,
por raça/cor e por diferentes grupos etários
revelam é que homens e mulheres, brancos
e negros e indivíduos de diferentes grupos
de idade percebem o município como um
local violento, reairmando a disseminação
da percepção da violência urbana entre os
diversos grupos populacionais. Vale salientar
que a similaridade da percepção da violência
municipal foi conirmada pela não signiicância
do teste Qui-quadrado entre percepção da
violência e as diversas características (p-valorsexo
= 0.480, p-valorcor/raça = 0.765, p-valoridade =
0.397). A Tabela 1 exibe, a seguir, os percentuais
relativos à percepção de violência, encontrados
tanto para a cidade quanto para o bairro.
Os resultados relativos à percepção de violência
no bairro, que também podem ser veriicados
na Tabela 1, apresentada anteriormente,
complementam as respostas obtidas sobre
a cidade. Embora, como um todo, a grande
maioria dos entrevistados perceba a cidade
onde vive como um locus violento, a percepção
sobre violência no bairro não segue a mesma
lógica. Ao serem perguntados se acham o bairro
onde vivem violento, 62,4% dos entrevistados
alegaram que não. A destacada diferença
percentual entre percepção de violência na
cidade (80,7%) e no bairro (37,6%) sugere
três possíveis fenômenos subjacentes: (1) a
alteridade espacial da violência (a violência
ocorre sempre fora do bairro), (2) a introjeção
da violência noticiada, e localizada, como um
sentimento generalizado de violência, com
pouca aderência com a experiência efetiva
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
34
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
da violência, e (3) a concentração espacial da
violência em determinados locais da cidade.
Quanto ao primeiro aspecto, a pesquisa revela
que 16,4% das pessoas já haviam sofrido
violência no próprio bairro, contra 19,4%
fora do bairro. Nesse sentido, embora haja
uma pequena preponderância da violência
ocorrendo fora do bairro, esses percentuais
são muito próximos, dando pouco suporte para
a alteridade espacial da violência. A ideia de
introjeção da violência noticiada é algo mais
difícil de perceber quantitativamente. No
entanto, a soma dos dois percentuais acima
mostra que 35,8% já havia sofrido violência
alguma vez em GV, embora 80,7% reconheceu
a cidade como violenta. Nesse sentido, a
sensação de insegurança, e a possível conexão
com pessoas que já sofreram algum episódio
violento, podem justiicar o alto percentual de
violência percebida. Por im, análises espaciais
adicionais (sob requisição) revelaram que a
concentração espacial da violência sofrida nos
bairros é pequena, e muito menos signiicativa
do que a violência sofrida em outros bairros
(Figura 3). Há coincidência apenas para alguns
bairros socioeconomicamente mais pobres,
como o Carapina (aglomerado subnormal),
Santa Rita e São Pedro. Alguns bairros mais
ricos, no entanto, parecem sofrer a violência
predominantemente em outros pontos da
cidade, como no caso do bairro Grã Duquesa6.
Quando a análise da percepção da violência
no bairro, que relete uma experiência mais
imediata e cotidiana com a violência, é
desagregada por subgrupos populacionais,
algumas diferenças interessantes aparecem.
A análise por sexo mostra que os percentuais
de mulheres que acham o bairro violento são
mais elevados do que os percentuais de homens
(40,8% versus 33,8%). O fato de as mulheres
perceberem o bairro onde vivem como um
ARtIGOS
espaço mais violento, quando comparadas aos
homens, pode ser um indicativo de situações
relativas às desigualdades de gênero. Como
apontam Veloso e seus colaboradores (2013), a
violência doméstica merece destaque como uma
das maiores causas de ferimentos femininos e a
principal causa de morte entre mulheres de 14
a 44 anos. Além disso, de acordo com o mesmo
estudo, 80,0% dos abusos cometidos contra
crianças e adolescentes acontecem na casa
da própria vítima e os perpetradores de abuso
sexual são, predominantemente, homens. Pode
também reletir outras desigualdades de gênero,
como a diiculdade de inserção feminina no
mercado de trabalho, tornando-as expostas à
violência em casa por agressores externos com
mais frequência do que os homens (SANDERS;
CAMPBELL, 2007).
Além da percepção de violência segundo sexo,
os dados também mostram a percepção de
violência no bairro por raça/cor. Os resultados
relativos a esta variável revelam que cerca de
62,0% dos respondentes, tanto brancos quanto
negros, não percebem o bairro onde vivem como
um local violento. O bairro só é percebido como
violento por cerca de 38,0% dos entrevistados de
ambas as categorias de raça/cor, curiosamente
revelando uma homogeneidade na experiência
com a violência no bairro por cor/raça. Essa
aparente homogeneidade na experiência
local com a violência segundo categorias de
cor/raça pode esconder heterogeneidades
importantes, como o tipo de violência que é
experimentada, segundo as categorias. Romio
(2010), por exemplo, mostra que a mortalidade
por causas externas entre homens negros é
signiicativamente maior (razão 1,38) do que
entre homens brancos, e ainda maior entre
negros jovens de 15 a 24 (razão 1,69), o oposto
sendo encontrado para as demais causas de
morte (maior entre os brancos). Entre as
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
35
ARtIGOS
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
causas externas, as agressões contra negros é
especialmente pronunciada, particularmente
entre as mulheres negras (razão 1,80). Isso
mostra como a homogeneidade na experiência
da violência pode esconder diferentes
experiências por raça/cor que icam difusos em
análises mais agregadas. Para ins de ilustração,
os dados da pesquisa de Governador Valadares
dão alguns indícios dessa heterogeneidade. Os
negros têm maior probabilidade de sofrerem
crimes violentos, com arma de fogo e bala
perdida, enquanto os não negros são mais
afetados por assaltos, roubos e bullying. Esses
resultados sugerem que a experiência com
a violência por raça/cor está longe de poder
ser tratada de forma homogênea, conforme já
reconhecido pela literatura, e necessita uma
maior qualiicação em trabalhos futuros.
Entre os diferentes grupos etários, o bairro
também é percebido como um espaço violento
por cerca de apenas 38,0% dos entrevistados.
Na verdade, entre 59,0% e 65,0% dos
entrevistados, pertencentes a diferentes
faixas de idade, percebem o bairro como um
local não violento. Esta percepção pode estar
vinculada ao fato de que um menor percentual
de pessoas declarou já ter sofrido violência no
bairro. Dentre os respondentes, 83,6% disseram
nunca ter sofrido nenhum tipo de violência
no bairro onde vivem. O percentual daqueles
que informaram ter sofrido violência no bairro
foi de 16,4%. Em termos gerais, os resultados
sugerem um leve aumento da experiência
da violência com a idade, reproduzindo um
cenário de vulnerabilidade à violência local
entre os mais velhos, assim como veriicado
para as mulheres. Isso também sugere que a
vulnerabilidade juvenil à violência pode ser
localizada espacialmente e experimentada não
necessariamente no local de moradia. Dados da
pesquisa, por exemplo, mostram que o grupo
etário de 15 a 24 anos é o que tem a maior
probabilidade de sofrer violência fora do bairro
onde mora (23,4% contra 19,4% na população
total).
Neste ponto do trabalho, vale lembrar o
argumento colocado por Andrade e Bezerra Jr.
(2007), os quais airmam que, nas sociedades
contemporâneas, a violência parece ter se
tornado um fenômeno previsível e constante
no cotidiano das pessoas, deixando de ser
vista como um evento extraordinário. Os
autores alegam que, por sua presença difusa,
as pessoas são levadas a encarar a violência
como um elemento que faz parte da realidade,
perspectiva que reduz as expectativas acerca da
possibilidade de se pensar em formas efetivas
de enfrentar as causas de sua expansão, suas
fontes e suas consequências.
Além da percepção acerca da violência na
cidade, os dados também permitem veriicar
se alguém do domicílio já sofreu algum tipo de
violência, tanto no bairro onde vive como em
outro bairro da cidade. De uma maneira geral,
a maior parte dos respondentes alegou que
nenhum morador do domicílio sofreu violência,
nem no bairro onde mora e nem em outro bairro
da cidade (83,6%). A Figura 3, a seguir, mostra
a distribuição espacial e o LISA Univariado,
segundo a violência sofrida por moradores de
Governador Valadares.
A análise da porção esquerda do mapa
apresentado na Figura 3, exibido anteriormente,
mostra que os moradores de alguns bairros
relataram mais casos de violência sofrida
por algum morador do domicílio. Já no mapa
da direita, que mostra os resultados do LISA,
é possível veriicar a situação de um bairro
em relação a bairros localizados até um raio
de
1 500 metros de distância. Os resultados
mostram que bairros onde os moradores
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
36
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
ARtIGOS
Figura 3 - Distribuição Percentual e Lisa Univariado para ter Alguém no Domicílio que já Sofreu Violência em
Governador Valadares
Fonte: Pesquisa Migração, Vulnerabilidade e Mudanças Ambientais no Vale do Rio Doce, 2016
declararam que algum membro do domicílio
sofreu violência são, em geral, cercados por
bairros onde há relatos de violência sofrida
por membros do domicílio. Ou seja, são bairros
onde o indicador LISA aparece como alto-alto.
Neste caso, encontram-se bairros como, por
exemplo, Santa Helena, Nossa Senhora das
Graças, Carapina, Grã Duquesa, Maria Eugênia
e Esperança. Diferentemente destes bairros,
há os bairros onde não se tem relatos de
violência sofrida por algum membro da família
e que são cercados por bairros que também
não apresentaram relatos de violência sofrida.
Dentro deste grupo, podem ser citados o bairro
Fraternidade, o bairro Kenedy o Palmeiras e o
bairro Mãe de Deus. Neles, a correlação entre
as variáveis é apontada como “baixo-baixo”. De
modo geral, a predominância de autocorrelação
espacial positiva no mapa da experiência da
violência reforça o argumento da espacialidade
do fenômeno, em que a despeito da generalizada
percepção de violência, esta tende a ocorrer
de modo concentrado em algumas regiões,
que não necessariamente são apenas regiões
desfavorecidas
socioeconomicamente.
A
proximidade de bairros mais ricos, como
o bairro Grã Duquesa, com aglomerados
subnormais, como o Santa Helena e o Carapina,
produzem um núcleo de violência urbana claro
na cidade. Esse tipo de análise, embora revele
a localização, não é capaz de revelar os luxos
(origem e destino da violência). Nesse sentido,
embora possamos identiicar bairros próximos
com características de violência similares, não
podemos airmar se a violência é endógena ao
bairro, ou se a concentração espacial é fruto do
espraiamento entre os bairros. Esse é um ponto
que merece atenção em trabalhos futuros
sobre os determinantes da difusão espacial da
violência.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
37
ARtIGOS
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
CONSIdERAÇÕES FINAIS
Por im, a comparação entre a violência
vivenciada por local (no bairro ou fora dele)
pode revelar características interessantes da sua
heterogeneidade por subgrupos populacionais.
A Tabela 2 sugere que, em geral, a experiência
com a violência ocorre predominantemente
fora do bairro, independentemente do
subgrupo populacional analisado. A diferença
da experiência com a violência por sexo e
cor/raça, no entanto, não parece ocorrer,
independentemente do local onde o episódio
tenha ocorrido. No entanto, na análise dos dados
que consideram os diferentes grupos etários
chama atenção o percentual mais elevado de
jovens entre 18 e 24 anos que alegaram que
alguém do domicílio já sofreu violência em
outro bairro da cidade. Para este grupo, os
percentuais chegaram a 23,4%. Uma possível
explicação para este resultado pode ser o fato
de que este grupo, de um modo geral, é um dos
que mais sofre com a violência urbana, tanto
como protagonistas como vítimas da violência.
Vale destacar que, entre todas as análises por
subgrupo, apenas os percentuais por idade
mostraram-se signiicativos estatisticamente
(p-valoridade < 0.05).
Os resultados deste estudo permitem, dentre
outras coisas, pensar na importância da análise
espacial para o conhecimento mais detalhado
acerca da violência que permeia a realidade
de cidades brasileiras de diferentes portes,
em particular, cidades de médio porte, como
é o caso de Governador Valadares, onde o
crescimento demográico ocorre de forma
mais acentuada nas últimas décadas. Um dos
aspectos que pode ser veriicado por meio da
análise da distribuição espacial diz respeito à
presença ou ausência de correlação espacial
entre variáveis que caracterizam determinado
fenômeno; no caso deste estudo, a violência.
A análise desenvolvida para o município de
Governador Valadares mostra que a cidade é
percebida como um locus violento, embora
muitas pessoas nunca tenham vivenciado
experiências de violência dentro ou fora dos
bairros onde vivem. Neste ponto, é importante
lembrar que, em diversos casos, os resultados
aqui obtidos reforçam pontos já levantados
por outros estudos, como, por exemplo, que
determinadas áreas são mais suscetíveis a
situações de violência, que as mulheres e
os grupos mais jovens são os que percebem
e vivenciam mais intensamente realidades
permeadas por violência. Como já pontuado
por Dellasopa e seus colaboradores (1999), e
também por Sousa e Lima (2007), a violência
não atinge as pessoas da mesma maneira; há
riscos diferentes para diferentes subgrupos
populacionais. Os territórios de uma mesma
cidade são heterogêneos em diversos sentidos
e isto faz com que, como alegam Moura e
seus colaboradores (2007), existam diferentes
vivências de violência. Isto ica claro em
Governador Valadares e coloca em evidência
a necessidade de se pensar planos, programas
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
38
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
ou projetos que levem em consideração tais
heterogeneidades.
Adicionalmente, sabe-se que os custos da
violência são elevados, tanto no âmbito
econômico quanto no pessoal e que, em geral,
as violências expressam vulnerabilidades de
naturezas diversas, interferindo de forma
negativa na vida de milhares de pessoas. Por
esta razão, é possível argumentar que os
resultados aqui apresentados, embora não
contemplem diversos pontos importantes
acerca desse fenômeno multifacetado que é
a violência, já merecem atenção e demandam
a deinição de estratégias de enfrentamento
que permitam não somente a sua redução, mas
também a redução das vulnerabilidades a ela
associadas. Cabe frisar, porém, que esta missão
só se torna mais fácil quando se conhecem as
tendências de distribuição do fenômeno e se
identiicam as variáveis sociais, econômicas e
culturais vinculados ao problema.
Para inalizar, é necessário dizer que, embora
interessantes, os resultados aqui apresentados
geram novos questionamentos acerca da
violência em Governador Valadares. O primeiro
deles refere-se à contradição entre percepção de
violência na cidade e no bairro. Como é possível
explicar tal fato? Ou seja, por que as pessoas
percebem a cidade como violenta, mas não os
bairros onde vivem? Outro questionamento que
também deriva da análise aqui desenvolvida
diz respeito ao entendimento de violência que
os indivíduos possuem e quais as consequências
desse entendimento em seus modos de vida.
Estas questões, que podem auxiliar ainda mais
na compreensão de um fenômeno tão complexo
como a violência, poderão ser respondidas com
uma investigação de natureza qualitativa, a
qual já está em andamento, por nosso grupo de
pesquisa, no município.
ARtIGOS
Apesar das lacunas que este estudo ainda
apresenta, espera-se que o conhecimento
aqui oferecido sobre a distribuição espacial
da violência e da percepção de violência no
município sirva como um primeiro passo para se
pensar e repensar o fenômeno na cidade e para
subsidiar a elaboração de políticas públicas
integradas e intersetoriais que auxiliem na
redução efetiva de sua ocorrência no município,
propiciando, assim, uma melhor qualidade de
vida aos habitantes da região.
REFERÊNCIAS
ACSELRAD, H. Vulnerabilidade ambiental,
processos e relações. II Encontro Nacional
de Produtores e Usuários de Informações
Sociais, Econômicas e territoriais, FIBGE,
Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: <http://
www.nuredam.com.br/iles/divulgacao/
artigos/Vulnerabilidade%20Ambientais%20
Proce%20ssos%20Rela%E7%F5es%20Henri%20
Acselrad.pdf>. Acesso em: 1 mar. 2016.
ABRAMOVAY, M. et al. Juventude, violência
e vulnerabilidade social na América Latina:
desaios para políticas públicas. Brasília:
Unesco, BID, 2002.
ANDRADE, E. V.; Jr. BEZERRA, B. Uma relexão
acerca da prevenção da violência a partir de
um estudo sobre a agressividade humana.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 14, n. 2, p. 445453, 2009.
8º ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA
PÚBLICA. Fórum Brasileiro de Segurança
Pública. São Paulo: Urbania, 2014.Disponível
em: <http://www.mpma.mp.br/arquivos/
CAOPCEAP/8o_anuario_brasileiro_de_
seguranca_publica.pdf>.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
39
ARtIGOS
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO. Rio de
Janeiro: PNUD, IPEA, Fundação João Pinheiro,
2003. Disponível em: <http://atlasbrasil.org.
br/2013/pt/peril_m/governador-valadares_
mg#vulnerabilidade>. Acesso em: 5 mar.
2016.
ATTRIDE-STIRLING, J. Thematic networks:
an analytic tool for qualitative analysis.
qualitative research, v. 1 n. 3, p. 385-401,
2001.
BATELLA, W. B.; DINIZ, A. M. A.; TEIXEIRA, A.
P. Explorando os determinantes da geograia
do crime nas cidades médias mineiras. Revista
de Biologia e Ciências da terra, v. 8, p. 2131, 2008.
BATELLA, W. B.; DINIZ, A. M. A. Análise
espacial dos condicionantes da criminalidade
violenta no estado de Minas Gerais. Sociedade
& Natureza, Uberlândia, v. 22, n.1, p. 151163, 2010.
BRASIL. Secretaria-Geral da Presidência da
República, Secretaria Nacional de Juventude,
Ministério da Justiça e Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. Índice de vulnerabilidade
juvenil à violência e desigualdade racial
2014. Brasília: Presidência da República,
2015.
DAHLBERG, L.; KRUG, E. G. Violência: um
problema global de saúde pública. Ciência e
Saúde Coletiva, Local, v.11 (sup.), p.11631178, 2006.
DELLASOPA, E. et al. Violência, direitos civis
e demograia no Brasil na década de 80: o
caso da área metropolitana do Rio de Janeiro.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.
14, n. 39, p. 155-176, 1999.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO -FJP. Anuário de
Informações Criminais de Minas Gerais –
2009. Belo Horizonte: FJP, 2009. Disponível
em: <http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/
noticias-em-destaque/1074-anuario-deinformacoes-criminais-de-minas-gerais-2009>.
Acesso em: 5 mar. 2016.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA - IBGE. Cidades@. Disponível em:
<http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/peril.
php?lang=&codmun=312770&search=||infogr%
E1icos:-informa%E7%F5es-completas>. Acesso
em: 5 mar. 2016.
LESAGE, J.; PACE, R. K. Introduction to
Spatial Econometrics. Boca Raton, FL:
Chapman & Hall / CRC, 2009.
MINAYO, M. C. de S. O desaio do
conhecimento – pesquisa qualitativa em
saúde. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
MOURA, L. B. A. et al. Violências e juventude
em um território da área metropolitana de
Brasília, Brasil: uma abordagem socioespacial.
Ciência e Saúde Coletiva, Local, v. 11 (sup.),
p. 3395-3405, 2007.
ROMIO, J. A. F. Mortalidade feminina e
violência contra a mulher: abordagem
segundo raça/cor. In: ENCONTRO NACIONAL
DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 17. Campinas.
Anais..., Campinas: Abep, 2010, p. 20-24,
2010.
SANDERS, T.; CAMPBELL, R. Designing out
vulnerability, building in respect: violence,
safety and sex work policy. the British
journal of sociology, v. 58, n. 1, p. 1-19,
2007.
POPULAÇÃO NET. 2016. Disponível em:
<http://populacao.net.br/os-maiores-bairros-
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
40
DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL E PERCEPÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA EM GOVERNADOR VALADARES
governador-valadares_mg.html>. Acessado em
05 de março de 2016.
ARtIGOS
em um raio de até 1.500 metros de distância também
percebem a cidade como um local violento.
Para melhor qualiicar esse tipo de padrão, seria necessário
explorar exatamente onde ocorreram esses episódios de
violência fora do bairro. Embora o questionário da pesquisa
utilizada neste trabalho permita esse exercício, essa é uma
análise que será feita em futuros trabalhos, fugindo do
escopo do presente artigo.
6
SOUSA, E. R.; LIMA, M. L. C. Panorama da
violência urbana no Brasil e suas capitais.
Ciência e Saúde Coletiva, Local, v.11 (sup.),
p. 1211-1222, 2007.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência: mortes
matadas por armas de fogo. Brasília:
Secretaria Geral da Presidência da República,
Secretaria nacional de Juventude, Secretaria
de Políticas de Promoção de Igualdade Racial,
2015. Disponível em: <www.juventude.gov.br/
juventudeviva>. Acesso em: 2 mar. 2016.
ZALUAR, A.; LEAL, M. C. Violência extra muros
e intramuros. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v. 16, n. 45, p. 145-164, 2001.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/
rbcsoc/v16n45/4335.pdf>. Acesso em: 10 fev.
2016.
Recebido em: 1/03/2016
Aceito em: 1/03/2016
* Este artigo contou com o inanciamento da FAPEMIG
(Processo CSA - APQ-00244-12; Processo CSA - PPM 0030514), CNPq (Processo 483714/2012-7) e Rede Clima.
Foram testadas matrizes de pesos alternativas (distâncias
de 1000, 2000 e 3000 metros), bem como matrizes de
vizinhanças do tipo Queen e rook. No entanto, as matrizes
de vizinhança não se mostraram ideais por missing espacial
em alguns bairros. Os resultados para distâncias de 1000 e
1500 metros foi muito similar, embora em grandes distâncias
os estimadores LISA apresentaram maior tendência à
aleatoriedade, como esperado.
4
Vale lembrar que localizações com valores altos de
similaridade com vizinhos, em termos de percepção de
violência, são aqueles indicados, na legenda, como altoalto (autocorrelação espacial positiva). Ou seja, tantos os
moradores destes bairros, como os dos bairros distribuídos
5
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
41
ARtIGOS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
42
ARtIGOS
Cidades Médias e
vulnerabilidade às mudanças
climáticas no Brasil: elementos
para integração do debate a
partir de estudos de caso*
Tiago Cisalpino Pinheiro [1], Gilvan Ramalho Guedes [2] e Alisson Flávio Barbieri [3]
Resumo: A vulnerabilidade das cidades às mudanças climáticas é um dos temas que vem ganhando relevo
na literatura mundial, mas que ainda apresenta poucas iniciativas no Brasil. O trabalho apresenta uma
atualização do debate mundial sobre a questão da vulnerabilidade das cidades às mudanças climáticas
tentando identiicar as potenciais interfaces dessa discussão com a problemática das cidades médias no
Brasil. O estudo mostra que existem pontos onde esses temas interagem e apresentam potencial para
uma análise integrada dessas discussões, como a relação direta entre a expansão urbana desordenada
das cidades médias com aumento da vulnerabilidade das populações aos desastres naturais.
Palavras-chave: Mudanças Climáticas. Cidades e mudanças climáticas. Cidades Médias. Vulnerabilidade
às mudanças climáticas.
Midsize Cities and vulnerability to climate change: elements for a unifying approach
through case studies
Abstract: Cities vulnerability to climate change is a widely debated issue recently. In Brazil this issue
is not being explored properly yet. The propose of this paper is to debate the most important concepts
regarding the study of climate change impacts on cities associating this debate with the actual context
of Brazilian urbanization. One of the main subjects of then urban debate in Brazil is on the ascension of
intermediate cities on urban network. We will show some overlapping themes on both subjects that can
be important for developing the dialog between these important ields of study.
Keywords: Climate Change. Cities and Climate Change. Intermediate Cities. Vulnerability to Climate
Change.
[1] Tiago Cisalpino Pinheiro é economista (UFMG), doutor em Geograia Tratamento da Informação (PUC-Minas), e realiza
seus estudos de pós-doutorado em Demograia no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade
Federal de Minas Gerais (CEDEPLAR/UFMG).
[2] Gilvan Ramalho Guedes é doutor em Demograia (CEDEPLAR/UFMG). Professor Adjunto II do Departamento de Demograia
da UFMG. Sub-coordenador da Sub-Rede Cidades & Urbanização (Rede Clima).
[3] Alisson Flávio Barbieri é Ph.D. em Urban Planning (University of North Carolina). Professor Associado do Departamento de
Demograia da UFMG. Coordenador da Sub-Rede Cidades & Urbanização (Rede Clima).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
43
ARtIGOS
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
INtROdUÇÃO
Os principais desaios da humanidade, a
redução da pobreza, o desenvolvimento e o
enfrentamento das mudanças climáticas são
cada vez mais questões urbanas, levando-se
em conta que metade da população mundial
já reside em cidades e se estima que essa
proporção continue crescendo nas próximas
décadas. Uma das questões emergentes
nesse debate que ainda é pouco explorada no
Brasil diz respeito às cidades e às mudanças
climáticas. Essa discussão vem aumentando
nos últimos anos, em virtude da coincidência
entre uma série de questões relevantes para as
mudanças climáticas diretamente relacionadas
à urbanização. Os padrões de urbanização e o
estilo de vida urbano têm relação direta com as
emissões de gases de efeito estufa. Por outro
lado, a concentração de pessoas nas cidades
implica que esses locais podem ser gravemente
afetados pelos impactos das mudanças
climáticas, especialmente com o aumento da
frequência e intensidade dos eventos extremos
e desastres naturais.
O Brasil conta com desaios ainda maiores,
porque se insere no grupo dos países tropicais
em desenvolvimento, países que ainda precisam
percorrer um longo caminho para chegar ao
mesmo nível de renda, educação e qualidade
de vida dos países ricos. Ao mesmo tempo,
por estarem localizados na zona tropical,
estes países serão os mais afetados pelas
mudanças climáticas. Isso ocorre porque eles
já apresentam maior temperatura média, de
modo que os aumentos previstos os colocariam
em patamares climáticos muito adversos
no futuro (INTERGOVERNMENTAL PANEL ON
CLIMATE CHANGE, 2014; MENDELSON, 2006).
Isso acarreta uma situação desaiadora, porque
além de enfrentar o desaio do desenvolvimento,
teremos que lidar também com as graves
implicações das mudanças climáticas. Num
país onde 80% da população reside em áreas
urbanas, seus principais desaios nesse tema
passam necessariamente pela discussão da
questão urbana. Para contribuir com essa
discussão, vamos apresentar os principais
conceitos da discussão a propósito das cidades
e mudanças climáticas na literatura mundial,
contextualizando a questão das cidades médias
brasileiras. Por im, vamos operacionalizar os
conceitos da discussão teórica na forma de
indicadores e análises espaciais que permitam
a integração entre essas áreas temáticas,
apontando caminhos de interface entre essas
áreas de estudo.
CIdAdES E MUdANÇAS CLIMÁtICAS
A questão das cidades e mudanças climáticas tem
grande importância nas principais discussões
que tangenciam essa temática nos últimos
anos. Esse debate recebeu ênfase nos últimos
relatórios do O Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas (IPCC) e com a criação de
grupos de pesquisa sobre o tema tanto no painel
intergovernamental quanto na comunidade
acadêmica (INTERGOVERNMENTAL PANEL ON
CLIMATE CHANGE, 2014; UNITED NATIONS
POPULATION FUND, 2007). A importância
resulta do contexto no qual as cidades são,
ao mesmo tempo, parte do problema e foco
das soluções. São grande parte do problema
na medida em que representam apenas 2% da
área do planeta, mas respondem por quase 80%
do consumo de energia e por no mínimo 40%
das emissões (UNFPA, 2007). Nesse aspecto,
as medidas de mitigação necessariamente
passam por mudanças profundas nas cidades.
A infraestrutura, o sistema de transporte,
o consumo de energia são questões que
precisam de grandes mudanças para redução
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
44
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
de suas emissões e contribuir para mitigação.
Além disso, a concentração da população é
crescente no meio urbano, fazendo com que a
preparação para os impactos advindos do um
grande contingente de pessoas diga respeito
principalmente às populações urbanas. Isso
tem implicações diretas na criação de soluções
para lidar com os impactos que são as ações de
adaptação às mudanças climáticas.
As cidades concentram atualmente metade
da população. Até 2050, estima-se que esse
percentual atinja 70%, com cerca de 2 bilhões
de novos habitantes urbanos a mais morando
em cidades (UNFPA, 2007). As áreas urbanas
concentram risco de desastres por conta
da aglomeração de pessoas, infraestrutura,
ativos, empreendimentos, expansão urbana e
planejamento inadequado (DICKINSON et al.,
2012). Essa discussão tem recebido grande
atenção, sendo que boa parte das discussões
cientíicas e governamentais se organiza através
da rede de pesquisa em mudanças climáticas –
Urban Climate Change Research Network.
Outro problema que ocupa a literatura
diz respeito à vulnerabilidade das cidades
às mudanças climáticas nos países em
desenvolvimento. As cidades desses países
têm sofrido aumento no risco de ocorrência de
desastres – com potencial crescente de perdas
humanas e econômicas –, acentuado pela falta
de planejamento e velocidade da expansão
urbana. As mudanças climáticas trazem
implicações importantes com aumento no
número e na variedade dos impactos possíveis
nas cidades, nos serviços ecossistêmicos e nas
populações. Nesse contexto, ica claro também
que as populações pobres nas zonas peri-urbanas
são as mais vulneráveis aos eventos extremos,
pelo fato de que, em geral, estão localizadas
nas áreas mais vulneráveis ambientalmente,
ARtIGOS
como encostas, áreas inundáveis entre outros
(DICKINSON et al., 2012; REVI et al., 2014).
As discussões do IPCC (2007a) sobre cidades
e mudanças climáticas identiicaram uma
série de impactos nas cidades. Ondas de calor
terão aumento na frequência de ocorrências,
os fenômenos de precipitação também serão
intensiicados, a ocorrência de chuvas muito
intensas em curto período de tempo também
deve ser um grande problema. Aumento do
nível do mar nas cidades litorâneas, aumento
da frequência e intensidade de enchentes
e cheias de rios. Extremos de secas também
são esperados, trazendo implicações para o
abastecimento de água de grande contingente
populacional concentrado nas cidades. As
implicações diretas relacionadas a precipitações
intensas envolvem a perda de infraestrutura e
vidas humanas. Existe grande chance de que
áreas no semiárido venham a sofrer aumento
na intensidade das secas. Estas, por sua vez,
impactam diretamente vários setores, como
a produção de alimentos, abastecimento de
água, geração de energia e saúde. Esperase também um aumento na intensidade de
ciclones (INTERGOVERNMENTAL PANEL ON
CLIMATE CHANGE, 2007a; ROZENSWEIG et al.,
2011).
Uma das características das áreas urbanas é
seu nível de intervenção direta sobre as áreas
naturais. Nesse contexto, é inevitável que o
ambiente urbano cause grandes alterações no
microclima local. As áreas urbanas possuem
um coeiciente de relexão menor nas áreas
naturais por conta dos materiais empregados,
como cobertura asfáltica, concreto e telhados.
Os materiais comumente utilizados em áreas
urbanas apresentam grande potencial de
absorção da radiação, o que intensiica o
fenômeno das ilhas de calor. Além disso, a
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
45
ARtIGOS
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
concentração de pessoas e atividade econômica
nas cidades envolve a presença de milhares
de fontes de calor em pequena escala, como
aparelhos
de
ar-condicionado,
veículos
automotores, além do uso de energia com ins
comerciais e industriais (ROSENZWEIG et al.,
2007; REVI et al., 2014).
Os estudos sobre o tema passam então para as
deinições conceituais que orientam a análise
da vulnerabilidade das cidades. O primeiro
conceito é o de perigo ou ameaça, ou seja, nos
impactos derivados de fenômenos climáticos
extremos nas cidades. Essas ameaças são
identiicadas a partir da regionalização dos
modelos de cenários globais. Os principais
eventos extremos, resultado das mudanças
climáticas, são as ondas de calor, enchentes,
cheias, aumento do nível do mar. Isso implica
na avaliação das médias de temperatura e
na mudança na frequência e intensidade dos
eventos extremos. O fator de risco, por sua
vez, consiste no arranjo entre as informações
de mudanças climáticas que potencialmente
resultariam nos maiores danos para as cidades
especíicas consideradas. (ROZENSWEIG et al.,
2011; MEHOTRA et al., 2009).
O segundo conceito é o de vulnerabilidade,
que consiste no conjunto de atributos das
cidades e populações que determinam o grau
de suscetibilidade aos perigos resultantes das
mudanças do clima. Variáveis que afetam a
vulnerabilidade são, por exemplo, a ocorrência
de enchentes, proximidade da costa ou
rio, área urbanizada, elevação, densidade
populacional, percentual de pobres e qualidade
da infraestrutura. Trata-se aqui de todos os
fatores físicos e socioeconômicos que afetam
aqueles de risco associados a uma cidade
(ROZENSWEIG et al., 2011; MEHOTRA et al.,
2009)
Cada um dos impactos das mudanças climáticas
afetam as pessoas e domicílios de maneiras
diferentes, havendo um conjunto de atributos
que determinam uma maior ou menor
vulnerabilidade. Por exemplo, a população
idosa tem maior diiculdade de locomoção
e é especialmente sensível a extremos
climáticos como ondas de calor. As crianças,
por outro lado, também são mais suscetíveis
às doenças em situações de enchentes, por
exemplo. Os domicílios, por sua vez, também
apresentam grande variabilidade quanto a sua
vulnerabilidade: domicílios construídos com
materiais inadequados, localizados em áreas
de maior declividade, sujeitas à inundação e
localizadas na costa estão mais vulneráveis
que domicílios em boas condições em áreas
não expostas a determinados riscos. Sendo
assim, avaliações de vulnerabilidade implicam
avaliar os impactos de desastres e eventos em
populações. Os parâmetros de avaliação da
vulnerabilidade da população vão depender
da capacidade das pessoas de evitar o perigo,
antecipá-lo e tomar medidas que impeçam
ou limitem o impacto, em outras palavras,
capacidade de resolver o problema enfrentado
e se recuperar de seus efeitos. Os grupos
vulneráveis devem ser avaliados de acordo com
essas quatro diretrizes (INTERGOVERNMENTAL
PANEL ON CLIMATE CHANGE, 2013; REVI et al.,
2014).
Nesse contexto, existe grande variabilidade
entre as vulnerabilidades de diferentes cidades
e dentro da mesma cidade. Em geral, as cidades
localizadas nos países pobres estão mais
vulneráveis aos eventos extremos que as cidades
em países ricos. Isso ocorre pela concentração de
pobreza, ausência de infraestrutura adequada e
de aparato institucional para lidar com eventos
extremos, de modo que o número de mortes
em razão de eventos extremos se concentra em
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
46
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
países pobres e em desenvolvimento. Por outro
lado, como os países ricos têm investimentos
muito superiores na infraestrutura urbana e
qualidade das ediicações, ao mesmo tempo em
que contam com economias que geram maior
valor agregado, os custos dos eventos extremos
nesses países assumem valores superiores aos
de países pobres (INTERGOVERNMENTAL PANEL
ON CLIMATE CHANGE, 2013).
O terceiro conceito é o de capacidade
adaptativa. Esse é o atributo institucional da
cidade que determina o grau de capacidade da
cidade em responder aos impactos das mudanças
climáticas. São medidas de habilidade como
estrutura institucional, recursos humanos,
informação, capacidade de análise. Diz respeito
à capacidade dos atores locais e da sociedade
civil em se adaptar às mudanças climáticas
(ROZENSWEIG et al., 2011; (MEHOTRA et al.,
2009).
ARtIGOS
combinação única de aspectos do meio físico,
social, econômico e ambiental inluenciam
diretamente o grau de risco e vulnerabilidade
da cidade e seus residentes.
As estimativas dos impactos são resultado da
observação dos parâmetros atuais e futuros
das principais variáveis climáticas, como
temperatura, precipitação, nível do mar, entre
outras. Os riscos precisam ser avaliados de
acordo com sua variância de curto e de longo
prazo e também em relação à frequência e
intensidade dos eventos extremos. Um dos
principais objetivos desse item é compreender
a complexa interação entre as mudanças do
clima e seus impactos especíicos diretos nas
cidades (ROZENSWEIG et al., 2011; MEHOTRA
et al., 2009).
Figura 1 - Os três vetores do risco urbano
Conceitualmente, um desastre é uma
combinação dos perigos e da exposição
das pessoas e ativos combinados com suas
respectivas vulnerabilidades. Nesse sentido, a
vulnerabilidade e, consequentemente, os riscos
dos desastres podem ser minimizados através
do aumento da resiliência ou da capacidade em
lidar com os impactos dos elementos expostos
ao risco (ROZENSWEIG et al., 2011; MEHOTRA
et al., 2009).
O potencial de um desastre resultar em
perdas depende do grau de exposição da
população e dos seus ativos econômicos e
ambientais. Fatores como a urbanização,
migração, crescimento populacional, todos
aumentam a concentração de pessoas e ativos
em áreas de risco. O maior grau de exposição
e vulnerabilidade tanto das pessoas quanto da
infraestrutura explica porque nessas áreas os
impactos dos desastres naturais são maiores. A
Fonte: Mehrotra (2003) e Rosenzweig; Hillel (2008)
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
47
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
ARtIGOS
Quadro 1 - Os três vetores do risco urbano
IMPACtOS
CAPACIdAdE AdAPtAtIVA
VULNERABILIdAdE
1. Temperatura
8. População
Instituições e governança:
2. Precipitação
9. Densidade
•
Governança da cidade
3. Aumento do Nível do Mar
10. Percentual em favelas
•
Liderança nas questões climática
4. Ciclones
11. Percentual suscetível a
enchentes
Informação e Recursos:
5. Chuvas Extremas
6. Secas
7. Ondas de Calor
•
Análise dos riscos climáticos
• Unidade administrativa para lidar
com as mudanças climáticas
Fonte: Mehrotra (2003) e Rosenzweig; Hillel (2008)
No Brasil, o tema das cidades e mudanças
climáticas ainda é muito incipiente, como destaca
Sahtler et al. (2015) ao fazer um levantamento
de todas as iniciativas institucionais nas
principais regiões metropolitanas brasileiras.
Já o trabalho de Bueno (2011) buscou lidar
com os mecanismos institucionais existentes no
país para tratar dessa questão. Recentemente,
o livro Mudanças Climáticas e Resiliência das
Cidades (FURTADO et al., 2015)) trouxe para o
Brasil, pela primeira vez, os principais conceitos
internacionais do debate. A contribuição do
livro é fornecer alguns subsídios conceituais
para debater a questão das cidades e mudanças
climáticas no Brasil.
A urgente integração entre as discussões
que se dão em âmbito internacional sobre a
problemática das mudanças climáticas e as
cidades e o debate sobre as questões urbanas
no Brasil é necessária. Uma das questões mais
relevantes em debate, atualmente, no Brasil,
diz respeito à ascensão das cidades médias
na rede urbana brasileira, principalmente
a concentração do crescimento econômico
e demográico nessas cidades. Discute-se
muito, também, como essas cidades oferecem
possibilidades para o planejamento urbano, na
medida em que apresentam problemas urbanos
em menor escala que as grandes metrópoles.
Se esse argumento for verdadeiro, há uma boa
oportunidade de integração entre as discussões
sobre cidades e mudanças climáticas e aquelas
concernentes às cidades médias no Brasil. Se
as cidades médias têm maior potencial para
um planejamento urbano mais bem-sucedido,
podendo oferecer melhor qualidade de vida para
as populações, ela também apresentaria maior
potencial para articular as discussões sobre
a necessidade de mitigação e adaptação das
cidades brasileiras às mudanças climáticas.
A qUEStÃO dAS CIdAdES MÉdIAS NO
BRASIL
A urbanização na América Latina é marcada,
atualmente, por um crescimento das cidades
médias ou cidades intermediárias sobre as
metrópoles, uma vez que tais cidades vêm
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
48
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
ARtIGOS
concentrando a maior parte do crescimento
urbano e econômico no continente nas últimas
décadas. Apesar do maior dinamismo, destacase também uma série de grandes desaios
para os gestores, que precisam lidar com a
provisão de infraestrutura, desenvolvimento
econômico e qualidade de vida. Insere-se nesse
rol de desaios às demandas por mitigação e
adaptação às mudanças climáticas (INTERAMERICAN DEVELOPMENT BANK, 2014)
pela acelerada expansão metropolitana
também contribuíram para a construção de
uma visão na qual as cidades médias poderiam
representar um papel importante para a
melhoria da gestão urbana. Assim, as cidades
médias eram vistas como parte da solução
para os problemas urbanos do país, dado que
a escala dos problemas urbanos das metrópoles
em relação às cidades médias de fato favorece
que se chegue a essa conclusão.
Um dos pontos mais importantes no debate
atual sobre a urbanização no Brasil refere-se
ao papel e à relevância das cidades médias
na rede urbana brasileira e no crescimento
econômico e demográico do país nas últimas
décadas. O processo de urbanização brasileiro
é marcado por uma rápida aceleração e
crescimento das metrópoles nacionais entre
1940 e 1970, seguido por um processo de
desconcentração regional, a partir do inal dos
anos 1970, em direção às cidades médias do
eixo Sudeste e Sul (DINIZ, 1996)). Esse processo
foi resultado, em um primeiro momento, das
economias de escala urbana existentes no
processo de desenvolvimento industrial. A
partir de um certo limiar de concentração,
as deseconomias de aglomeração – como alto
custo de aluguéis e terrenos, elevado custo
de transporte e deslocamento – manifestamse, forçando o deslocamento das atividades
econômicas das metrópoles em direção às
cidades médias. No momento, parte expressiva
do crescimento econômico e demográico e dos
luxos migratórios se destina a estas cidades.
A literatura sobre as cidades médias destaca
a visão de que essas cidades possuem
um tamanho ótimo, conseguem prover a
diversidade de bens e serviços que caracteriza
o ambiente urbano, ao mesmo tempo em que
oferecem um ambiente urbano com melhor
qualidade de vida, mobilidade e melhor
qualidade ambiental. Nesse contexto, vale
fazer a associação entre as possibilidades das
cidades médias para a questão da adaptação às
mudanças climáticas, como se a menor escala
do problema urbano facilitasse a adoção de
mecanismos de adaptação. Para avaliar esse
contexto, precisamos retomar analiticamente
a deinição das cidades médias e o contexto em
relação aos principais temas caros à literatura
internacional sobre as cidades e mudanças
climáticas.
Grande parte dessa discussão envolveu o debate
sobre o papel das cidades médias em oferecer
mão-de-obra qualiicada e boa infraestrutura
urbana para as atividades industriais que
abandonavam as regiões metropolitanas. Além
disso, os graves problemas urbanos causados
O primeiro desaio ao estudar as cidades médias
é conceitual, pois não existe uma deinição única
que pudesse ser aplicada às diversas áreas do
conhecimento que estudam o tema. O geógrafo
Oswaldo Bueno Amorim, especialista no tema,
destaca, por sua vez, que, apesar da ausência
de deinições únicas, o conceito é bastante
real. As cidades médias podem ser consideradas
como os centros que possuem população em
geral entre 100 mil e 1 milhão de habitantes
que desempenham funções intermediárias
na hierarquia urbana. Esses números variam
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
49
ARtIGOS
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
conforme o autor, sendo que alguns consideram
que cidades acima de 50 mil habitantes podem
assumir esse papel. O mais importante, sem
dúvida, são as funções desempenhadas por
essas cidades na rede urbana e sua posição
relativa aos demais centros. Essas cidades estão
abaixo dos centros metropolitanos nacionais
e regionais e desempenham uma inluência
regional importante de intermediação entre os
centros da hierarquia superior e as zonas rurais
e semirrurais.
para a questão das mudanças climáticas
é a pobreza e vulnerabilidade social. Os
estudos mostram que as cidades médias,
como esperado, apresentam um percentual
de domicílios em aglomerados subnormais
em níveis bem inferiores às metrópoles, o
que resulta também numa qualidade de vida
superior ao das populações metropolitanas.
Por outro lado, essas cidades são igualmente
marcadas pela elevada desigualdade social
observada no país.
A partir daí, surge um grande número de
estudos buscando avaliar alguns parâmetros
importantes nas cidades médias brasileiras,
como fatores de qualidade ambiental,
mecanismos de gestão urbana e planejamento,
expansão urbana desordenada, presença de
aglomerados subnormais e favelas, bem como
os indicadores de violência.
Nesse contexto, as cidades terão um papel
fundamental porque são o epicentro do
processo de desenvolvimento brasileiro e
porque concentram, a cada dia, uma parcela
maior da população. Desse modo, os desaios
que as cidades enfrentarão em relação às
mudanças climáticas serão, em grande medida,
os principais desaios que o país irá enfrentar
para lidar com essa questão. O IPCC, em seu
quinto relatório, destaca a relevância dos
estudos sobre as cidades no âmbito da avaliação
das potencialidades e ameaças que a crescente
concentração das populações nas cidades pode
implicar quando consideradas as mudanças
climáticas (INTERGOVERNMENTAL PANEL ON
CLIMATE CHANGE, 2013).
Um dos parâmetros avaliados é a situação de
violência nas cidades médias. Os trabalhos com
as cidades médias de Minas Gerais mostram
que, nos últimos anos, essas cidades vêm
apresentando indicadores de violência acima
da média estadual, e bem acima das cidades
pequenas, demostrando que, de fato, a
urbanização e o aumento da escala da hierarquia
urbana os indicadores de violência respondem
diretamente (BATELLA; DINIZ, 2005).
Um dos principais pontos da análise sobre as
cidades médias brasileiras é a evolução da
capacidade institucional para lidar com os
problemas urbanos. Um dos estudos voltados
para uma região economicamente dinâmica
(Campinas, SP) mostra que os indicadores de
qualidade de gestão urbana não acompanham
o crescimento econômico e da população,
estando ausentes, em uma série de cidades
importantes, os mecanismos de gestão
tradicional. Outros dois aspectos importantes
CIdAdES MÉdIAS BRASILEIRAS E MUdANÇAS
CLIMÁtICAS: ELEMENtOS dE INtERFACE
dO dEBAtE
A questão das cidades médias e mudanças
climáticas no Brasil ganha relevância no debate
nacional porque essas são as cidades que
experimentarão maior crescimento econômico
e populacional do país. Por conseguinte,
além de terem que lidar com o desaio do
desenvolvimento, essas cidades precisarão
enfrentar a questão das mudanças climáticas.
Dentre as cidades médias brasileiras, há um
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
50
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
grande número delas que são especialmente
vulneráveis às mudanças climáticas. A ideia
é aplicar o instrumental e os conceitos que
vêm sendo desenvolvidos pela literatura a
um conjunto de cidades médias brasileiras,
integrando essa discussão ao debate sobre
a vulnerabilidade das cidades às mudanças
climáticas. Vamos explorar especialmente
duas questões, visando à integração entre os
debates. O primeiro ponto consiste na questão
da expansão urbana, isto é, em como as cidades
médias vêm concentrando o crescimento
populacional do país, o que relete diretamente
na dinâmica interna de expansão urbana. Dado
que a expansão urbana desordenada é um
elemento chave da vulnerabilidade das cidades
às mudanças climáticas, as cidades médias
como elementos de concentração do risco
urbano podem apresentar vetores de ampliação
da vulnerabilidade das populações urbanas
às mudanças climáticas no Brasil. O segundo
ponto a ser observado é uma associação entre
a literatura voltada para a vulnerabilidade às
mudanças climáticas e o papel das cidades
ARtIGOS
médias como centro hierárquico com funções
superiores na hierarquia urbana. Ou seja, a
morfologia das cidades médias faz com que os
serviços de hierarquia superior, que aqueles
mais especializados, em geral se concentram
no centro dessas cidades. Se a área central da
cidade estiver localizada em áreas vulneráveis,
o papel da cidade média como polo de oferta
de serviços pode ser comprometido.
Vamos trabalhar a metodologia de avaliação
da vulnerabilidade das cidades às mudanças
climáticas para sete cidades médias brasileiras:
Altamira, Marabá, Santarém, no estado do Pará,
Blumenau, em Santa Catarina, Governador
Valadares, em Minas Gerais, Uruguaiana, no
Rio Grande do Sul, e Corumbá, no Mato Grosso
do Sul. As cidades foram escolhidas porque
regionalmente relevantes e por estarem
localizadas na margem de grandes rios, portanto
sujeitas à ocorrência de cheias e inundações.
Os rios que margeiam essas cidades são
respectivamente o Rio Xingu, Rio Tocantins, Rio
Tapajós, Rio Itajaí, Rio Doce, Rio Uruguai e Rio
Tabela 1 – Indicadores socioeconômicos básicos das cidades Médias selecionadas
Cidade
População total
taxa cresc.
Grau de
Pop
Urbanização
(2000-2010)
(2010)
IdhM
(2010)
% de pobres
(2010)
2000
2010
Governador Valadares (MG)
247.131
263.689
0,65%
96,1%
0,727
9,97
Corumbá (MS)
95.701
103.703
0,81%
90,1%
0,700
16,11
Altamira (PA)
77.439
99.075
2,49%
84,9%
0,665
22,38
Marabá (PA)
168020
233.669
3,35%
79,7%
0,668
23,53
Santarém (PA)
262.538
294.580
1,16%
73,3%
0,691
31,07
Uruguaiana (RS)
126.936
125435
-0,12%
93,6%
0,744
12,23
Blumenau (SC)
258.504
309.011
1,80%
95,4%
0,806
1,02
Fonte: PNUD, FJP, IPEA (2013).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
51
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
ARtIGOS
Paraguai. Em seguida, vamos operacionalizar
os principais conceitos da literatura relativa
à vulnerabilidade das cidades às mudanças
climáticas para essas cidades médias
brasileiras. O objetivo dessa análise é sugerir
bases de dados que possibilitem outras análises
semelhantes, além de apresentar aspectos
conceituais novos aplicados à realidade urbana
das cidades médias brasileiras.
A velocidade da expansão urbana, por sua
vez, tem relação direta com a precariedade
de fornecimento da infraestrutura e a questão
da pobreza. Desse modo, vamos explorar,
no contexto das cidades médias brasileiras,
as relações entre a expansão urbana e a
precariedade da infraestrutura e a questão da
vulnerabilidade urbana às mudanças climáticas.
A pobreza, a falta de qualidade da infraestrutura
e a precariedade das condições habitacionais
são fatores de aumento da vulnerabilidade das
populações urbanas.
Interessa-nos não apenas fazer uma análise
de indicadores representativos dos conceitos
trabalhados na literatura, mas também
mostrar como os conceitos presentes na
discussão sobre mudanças climáticas e cidades
interagem com o problema das cidades médias
no Brasil. Entendemos também que, além de
operacionalizar os conceitos com bases de
dados da realidade local, é necessário avançar
na discussão e propor questões que integrem
a análise da vulnerabilidade das cidades às
mudanças climáticas com aquela sobre as
cidades médias no Brasil.
O principal ponto de vulnerabilidade das
cidades às mudanças climáticas é o aumento
da frequência e intensidade dos desastres
Tabela 2 – Tipo e número de ocorrências de desastres naturais nas cidades escolhidas entre 1991 e 2002.
Estiagem
Gov. Valadares
Estiagem e Seca
Mov. De Massa
Corumbá
Altamira
Marabá
1
Santarém
Uruguaiana
1
3
Blumenau
1
Erosões
4
1
1
Alagamentos
1
1
1
0
1
0
Enxurradas
3
3
3
3
1
2
16
19
Inundações
9
3
13
17
6
4
7
17
3
3
Granizo
Chuvas Intensas
Vendaváis
0
3
3
Incêndios
Total
16
8
18
1
1
22
12
1
10
3
7
1
2
31
Fonte: Elaboração do autor com dados do Atlas Brasileiro dos Desastres naturais 1991-2012 (UFSC, 2013)
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
52
t.
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
naturais (INTERGOVERNMENTAL PANEL ON
CLIMATE CHANGE, 2013) A conceituação dos
impactos consiste no levantamento do histórico
de ocorrências, que no Brasil vem sendo
sistematizas com o Atlas Brasileiro de Desastres
Naturais desenvolvido pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC, 2013). Os impactos
existentes nas cidades escolhidas se referem
ARtIGOS
principalmente a ocorrência de inundações.
A tabela a seguir mostra a ocorrência de
desastres naturais nas cidades escolhidas no
período entre 1991 e 2012.
Identiicamos duas áreas de interface e diálogo
potencial entre o debate sobre o papel e as
características das cidades médias brasileiras
Tabela 3 – Ano de frequência dos eventos de inundação nas cidades escolhidas entre 1991 e 2002.
1
1
1
1
1
1
1
2
1
1
9
2
3
1
1
2
2
1
1
1
2
Uruguaiana
1
1
1
2
1
1
1
total
1
2012
1
Santarém
Blumenau
1
1
1
Marabá
2011
1
2010
1
2009
3
2008
1
2007
Altamira
2006
Corumbá
2005
Gov. Valadares
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
Inundação
1
1
3 13
1
2 17
1
1
1
1
6
4
1
1
7
Fonte: Elaboração do autor com dados do Atlas Brasileiro dos Desastres naturais 1991-2012 (UFSC, 2013)
Tabela 4 – Número de eventos, ano de ocorrência, ediicações atingidas, número de desabrigados e alojados de
eventos de enchentes ou inundações graduais ocorridas nos últimos 5 anos nas áreas urbanas.
Santarém
Marabá
Altamira
Uruguaiana
Corumbá
Blumenau
Gov.Valadares
4
5
5
1
1
2
2
Ano
2009
2009
2009
2009
2011
2008
2012
Ediicações
10974
417
197
62
11
15219
25861
Desalojados/
Desabrigados
78827
1668
985
520
0
120877
25482
0
1
0
0
0
24
3
Eventos
Óbitos
Fonte: Elaboração do autor com dados da Pesquisa Municipal do IBGE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
53
ARtIGOS
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
e o problema da vulnerabilidade das cidades
às mudanças climáticas. A primeira consiste
na sobreposição entre a vulnerabilidade das
populações às mudanças climáticas nas cidades
médias e a dinâmica da expansão urbana
nessas cidades. A segunda consiste na avaliação
espacial da vulnerabilidade da área central das
cidades aos eventos extremos. Como foi dito
anteriormente, se as áreas centrais das cidades
estiverem localizadas em regiões vulneráveis
nas épocas de seca, isso implica um impacto
direto no papel desempenhado pelas cidades
médias. Ambas as análises serão detalhadas a
seguir.
VULNERABILIdAdE E ExPANSÃO URBANA
dESORdENAdA
Um componente básico da avaliação da
vulnerabilidade de populações às mudanças
climáticas são análises socioeconômicas que
visam identiicar os aspectos da vulnerabilidade
e resiliência da população. As principais bases
de dados para avaliação dos indicadores
socioeconômicos na escala urbana de todo o
Brasil são os resultados do Universo do Censo
Demográico Brasileiro por Setores Censitários.
Os resultados permitem a operacionalização de
alguns conceitos da análise de vulnerabilidade
das cidades às mudanças climáticas. Alguns
aspectos importantes, como as características
dos domicílios, características do entorno e
aspectos da resiliência dos moradores, podem
ser adaptados a partir dos resultados do
universo.
As variáveis disponíveis nos resultados do
Universo do Censo Demográico 2010 foram
avaliadas
para
identiicação
daquelas
que poderiam representar os aspectos da
vulnerabilidade das populações urbanas
das cidades médias escolhidas às mudanças
climáticas. Estas variáveis estão de acordo com
os apontamentos da literatura sobre o tema
e buscam retratar os pontos mais sensíveis
da vulnerabilidade das populações urbanas
organizadas por três tópicos principais: as
características dos domicílios, as condições
da vizinhança dos domicílios e aspectos
relacionados à resiliência dos moradores.
A resiliência dos moradores compreende
aspectos como a concentração de crianças e
idosos nos domicílios dos setores censitários e
a renda domiciliar, uma vez que esses grupos
populacionais são mais vulneráveis aos eventos
extremos (REVI, 2014). Mesmo nos países
desenvolvidos, onde os impactos dos eventos
extremos resultam em pequeno número de
mortes, essas, quando acontecem, concentramse geralmente entre crianças e idosos – caso do
furacão Sandy, por exemplo. As características
da vizinhança se constituem num elemento
diretamente relacionado à vulnerabilidade
das populações, sempre destacado na maior
parte da literatura desenvolvida sobre o
tema (ROZENWIEG, 2013). A precariedade da
infraestrutura urbana é um fator de aumento
do risco das populações aos eventos extremos.
Por outro lado, vale observar, também, as
características dos domicílios que reletem
o seu acesso aos serviços públicos, elemento
importante de avaliação da vulnerabilidade. O
Quadro 4 apresenta as variáveis utilizadas para
a composição do indicador de vulnerabilidade
socioeconômica dos setores censitários urbanos.
Foram utilizados apenas os setores censitários
urbanos do distrito sede, ou seja, da área
urbanizada contígua às sedes municipais.
As variáveis sugeridas pela literatura
apresentam
alta
correlação,
aspectos
negativos como a falta de acesso aos serviços
públicos, baixa renda, e piores características
do entorno dos domicílios. Para sintetizar
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
54
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
ARtIGOS
Quadro 4 – variáveis utilizadas para composição do indicador socioeconômico
VARIÁVEL
tEMAS
% Domicílios com acesso à rede geral de abastecimento de água
% Domicílios com acesso à rede geral de esgoto
Características dos domicílios
% domicílios sem banheiro e sem rede de esgoto
% Domicílios com lixo coletado
% domicílios com acesso à energia elétrica
% Domicílios que citaram falta de iluminação pública no entorno
% Domicílios que citaram falta de pavimentação
% Domicílios que citaram falta de calçada
Características da Vizinhança
% Domicílios que citaram falta de meio io
% Domicílios que citaram falta de bueiro
% Domicílios que citaram Presença de esgoto à céu aberto
% Domicílios que citaram Presença com acumulo de lixo
% Crianças de 0 a 5 anos nos domicílios
% Idosos (pessoas acima de 60 anos) residindo nos domicílios
Resiliência dos moradores
% Domicílios com mais de cinco moradores
% De domicílios com até 0.5 SM
% De domicílios com até 1 SM
% Domicílios sem renda
esses elementos, utilizamos técnicas da
estatística multivariada para geração de um
único indicador de vulnerabilidade dos setores
censitários. As variáveis foram sistematizadas
através de uma matriz com todos os setores
censitários das sete cidades médias com a
técnica de Análise de Componentes Principais.
Essa técnica participa do conjunto de técnicas
de análise fatorial que visa deinir a estrutura
subjacente de uma matriz de dados. Essa
técnica permite que variáveis possam ser
inter-relacionadas de modo a que sejam
representativas de um conceito mais geral
(HAIR et al., 2006). No caso em foco, utilizouse a técnica para resumir todas as variáveis
representativas dos aspectos da vulnerabilidade
das populações às mudanças climáticas num
único componente que seja representativo de
todo conceito de vulnerabilidade. A escolha
dessa técnica estatística visa exclusivamente
tornar a análise mais simples, pois, ao invés
de analisar diversas variáveis, concentra-se
na análise daquela que representa bem todo
o universo dos dados. Nesse sentido, a técnica
atende a inalidade apresentada. O tratamento
dos dados, utilizando todos os setores de todas
as cidades, também permitirá comparar o grau
de vulnerabilidade entre os setores da mesma
cidade e entre as diferentes cidades. Isso
ilustra bem as diferenças entre as condições
intra e intermunicipais. Como será feita a
integração desses dados com outras análises,
é mais eiciente utilizar um único indicador ao
invés de vários para ilustração das diferenças
entre a vulnerabilidade da população urbana das
cidades. O principal objetivo é, portanto, mostrar
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
55
ARtIGOS
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
como o debate a propósito da vulnerabilidade às
mudanças climáticas interage diretamente com
aspectos importantes da discussão sobre cidades
médias no Brasil.
O primeiro ponto de tangência identiicado
entre esses temas consiste na interação entre
a expansão urbana desordenada nas cidades
médias brasileiras e a vulnerabilidade das
populações residentes nas áreas precárias.
Para avaliação da integração entre a expansão
urbana e a precariedade da infraestrutura
urbana, serão avaliados os indicadores de
vulnerabilidade das populações por setores
censitários em relação com as áreas de expansão
urbana dos municípios. Para isso, escolhemos
imagens do satélite Landsat, disponibilizadas
gratuitamente pelo United States Geological
Survey, que permitem a avaliação de longo
prazo da evolução da mancha urbana das
cidades médias escolhidas. Foi realizado o
tratamento das imagens através de técnicas de
sensoriamento remoto para deinição da área
urbanizada das cidades ao longo do tempo,
tendo sido escolhido um horizonte temporal de
30 anos: imagens atuais das cidades, nos anos
de 2015 e 2016, contra imagens das mesmas
cidades nos anos de 1985 e 1986. As áreas
urbanizadas podem ser identiicadas através do
processamento digital de imagens. Os limites
das áreas urbanizadas no passado e no presente
podem ser vistos na Figura 2. Os resultados da
delimitação em 2016 foram sobrepostos às
plantas de ruas das cidades disponíveis nos
softwares de geoprocessamento para validação
dos contornos. Os resultados foram bastante
próximos das áreas de plantas, o que demonstra
que a técnica se mostra adequada.
O resultado espacial dos indicadores
socioeconômicos sobrepostos aos limites
das áreas urbanizadas em 1986 pode ser
visto na Figura 3. Vale destacar, como pode
ser claramente observado no mapa, que
a
vulnerabilidade
socioeconômica
está
diretamente relacionada espacialmente com as
áreas de expansão urbana das cidades médias
estudadas. Os setores censitários com os piores
indicadores socioeconômicos em geral estão
localizados fora do perímetro central das
cidades.
A tabela 5 sistematiza a Figura 3, e mostra
como, de fato, os indicadores de vulnerabilidade
socioeconômica às mudanças climáticas
das áreas recém-urbanizadas das cidades
apresentam, em praticamente todos os casos,
são piores que nas áreas centrais. Isso aponta
uma forte relação entre a expansão urbana e a
vulnerabilidade urbana às mudanças climáticas
nas cidades médias brasileiras.
Centralidade e Vulnerabilidade
Outro elemento de integração das análises
da vulnerabilidade das cidades às mudanças
climáticas consiste no potencial dos eventos
extremos afetarem o papel principal das cidades
médias, que é ofertar serviços de hierarquia
superior para uma região de inluência. As
cidades médias têm como aspecto conceitual
deinidor a capacidade de funcionarem como
polos regionais de suas regiões, ofertando
serviços de hierarquia superior e intermediando
as trocas entre a zona rural e as pequenas
cidades de sua região de inluência e as
regiões metropolitanas. O principal modelo
de morfologia urbana das cidades médias
mostra que os serviços mais especializados
dessas cidades estão concentrados em regiões
especíicas, especialmente nas áreas centrais
(AMORIM FILHO, 2005). É, portanto, a região
central dessas cidades que concentra a maior
parte dos serviços e comércio de hierarquia
superior que fazem da cidade média um polo
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
56
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
ARtIGOS
Figura 2 – Áreas Urbanizadas nas Cidades Médias em 1986 e 2016
Blumenau-SC
Governador Valadares-MG
Santarém-PA
Altamira-PA
Corumbá-MS
Uruguaiana-RS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
57
ARtIGOS
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
Figura 3 – Indicador Socioeconômico de Vulnerabilidade às Mudanças Climáticas
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE e Google Earth
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
58
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
ARtIGOS
Tabela 5 – Indicadores de Vulnerabilidade Socioeconômica às mudanças climáticas nas cidades brasileiras
mun
Média
Máximo
Mínimo
desvio Padrão
Pós-1985
Pré-1985
Pós-1985
Pré-1985
Pós-1985
Pré-1985
Pós-1985
Pré-1985
Altamira
0,742
0,717
1,000
0,937
0,415
0,447
0,114
0,105
Marabá
0,780
0,638
0,970
0,968
0,488
0,327
0,111
0,118
Santarém
0,733
0,628
0,919
0,875
0,501
0,339
0,105
0,100
G. Valadares.
0,525
0,447
0,826
0,687
0,146
0,160
0,114
0,113
Blumenau
0,459
0,389
0,693
0,683
0,248
-
0,085
0,099
Uruguaiana
0,569
0,428
0,730
0,763
0,329
0,149
0,102
0,123
Corumbá
0,518
0,458
0,650
0,610
0,350
0,205
0,064
0,079
Total
0,569
0,517
1,000
0,968
0,146
-
0,155
0,159
Fonte: Elaboração dos autores à partir das bases de dados do IBGE
de oferta de serviços. Vale avaliar, nesse
contexto, o grau de vulnerabilidade da área
central dessas cidades quanto à ocorrência de
inundações. Para isso, delimitamos o centro da
cidade através de técnicas de análise espacial
que permitem a demarcação de um polígono
através da distribuição de pontos. Os pontos são
a localização de serviços de hierarquia superior
nas cidades. Escolhemos a localização de três
atividades que, de acordo com os modelos
morfológicos, são representativos das áreas
centrais e servem para indicar a sua localização
nessas cidades. São eles: Bancos, consultórios
médicos e serviços advocatícios. A base de dados
utilizada foi o Google Earth. A Figura 3 mostra
a delimitação dessas regiões que, como pode
ser observado na igura, também apresentam
menor vulnerabilidade às mudanças climáticas.
Isso ocorre porque naturalmente essas regiões
concentram a geração de riqueza dessas
cidades, possuindo melhor infraestrutura e
populações residentes mais ricas. Essas regiões
concentram as principais atividades econômicas
e oferta de serviços das cidades médias. Para
avaliação da vulnerabilidade da região central
à ocorrência de desastres naturais, utilizamos
técnicas de análise espacial que permitem
avaliar qual a cota de altitude da área central
das cidades em relação à cota dos rios que as
margeiam. O resultado é apresentado na Tabela
6, abaixo, e serve como indicador do grau de
vulnerabilidade das áreas mais dinâmicas dessas
cidades aos desastres. Em média, a altitude do
centro está bem acima da cota do rio, o que,
de certa forma, é natural, tendo em vista a
relevância dessa área para as cidades. Por outro
lado, em alguns casos, a cota mínima da área
central está a poucos metros da cota mínima
do rio. Santarém ilustra esse ponto, tendo em
vista que, na última grande enchente, a área
central, onde se concentra a maior parte do
comércio e dos serviços da cidade, foi afetada
pela cheia do Rio Tapajós, como noticiado
algumas reportagens (G1, 2014).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
59
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
ARtIGOS
Tabela 6 – Altitude média e mínima das áreas centrais das cidades médias e dos rios que as
margeiam
Rio
Cidade
Centro
diferença
Média
Mínimo
Média
Mínimo
Média
Mínimo
Altamira
108
70
136
89
28
19
Blumenau
17
3
62
4
45
1
Gov.Valadares
158
122
173
150
15
28
Marabá
64
49
83
51
19
2
Santarém
2
2
39
3
37
1
Uruguaiana
20
11
53
75
33
64
Corumbá
86
61
128
84
42
23
Fonte: Elaboração do autor
CONSIdERAÇÕES FINAIS
O trabalho apresentou os principais conceitos
da discussão acadêmica sobre a vulnerabilidade
das cidades às mudanças climáticas,
contextualizando essa discussão a partir dos
debates sobre a questão das cidades médias
no Brasil. A análise apresentada mostra que
existe a necessidade e grande potencial para a
interação entre essas discussões em benefício da
adaptação das cidades brasileiras às mudanças
climáticas. Trata-se de uma abordagem inicial,
que visou identiicar algumas interfaces entre
a discussão acadêmica internacional sobre
a vulnerabilidade das cidades às mudanças
climáticas e o contexto do debate acadêmico
sobre a urbanização brasileira, que tem
concentrado seu foco na questão das cidades
médias. O objetivo nesse artigo é dar início ao
debate urgente no país a respeito do aumento
da resiliência da população brasileiras aos
graves impactos das mudanças climáticas.
Observamos, também, que esses temas possuem
grande potencial para um debate integrado,
pois algumas características importantes das
cidades médias, como o padrão de urbanização
e aspectos da morfologia urbana dessas cidades,
apresentam relação direta com elementos
importantes da avaliação da vulnerabilidade
das cidades às mudanças climáticas.
REFERÊNCIAS
AMORIM FILHO, O. B. Um modelo de
Zoneamento Morfológico funcional do Espaço
Intra-Urbano das Cidades Médias de Minas
Gerais. In: AMORIM FILHO, O. B.; SENA FILHO,
N. A morfologia das cidades médias. Goiânia:
Vieira, 2005. p. 17-68.
BATELLA, W. B.; DINIZ, A. M. A. O uso de
técnicas elementares de estatística espacial
no estudo da reestruturação espacial da
criminalidade violenta no Estado de Minas
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
60
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
Gerais: 1996-2003. Caderno de Geograia,
Belo Horizonte, v. 16, n. 26, p. 153-167, 2006.
BUENO, L. M. M. Cidades e Mudanças
Climáticas no Brasil: Planejamento de Medidas
ou Estado de Risco?*. Sustentabilidade em
debate, Brasília, v. 2, n. 1, p. 81-98, jan./jun.
2011.
DINIZ, C. C.; CROCCO, M. A. Reestruturação
econômica e impacto regional: o novo mapa
da indústria brasileira. Nova Economia, Belo
Horizonte, v. 6, n. 1, jul. 1996.
FURTADO F. et al. Mudanças Climáticas e
Resiliência das Cidades. Recife: Pickimagem,
2015.
INTER-AMERICAN DEVELOPMENT BANK IDB. Methodological Guide Emerging and
Sustainable Cities Initiative. Emerging and
Sustainable Cities Initiative (ESCI), 2014.
INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE
CHANGE - IPCC. Climate change 2007: The
physical science basis. Contribution of working
group I to the fourth assessment report of the
Intergovernmental Panel on Climate Change.
Ed. Solomon, S., Qin et al. Cambridge, UK and
New York, New York: Cambridge University
Press, 2007a.
______. Climate change 2007: Impacts,
adaptation and vulnerability. Contribution
of working group II to the fourth assessment
report of the Intergovernmental Panel on
Climate Change. Ed. Parry, M. L. et al.
Cambridge, UK: Cambridge University Press,
2007b.
ARtIGOS
II to the Fifth Assessment Report of the
Intergovernmental Panel on Climate Change
Cambridge University Press, Cambridge,
United Kingdom and New York, NY, USA, 2014.
p. 535-612.
ROSENZWEIG, C.; HILLEL, D. Climate
Variability and the Global harvest: Impacts
of El Niño and Other Oscillations on AgroEcosystems. Oxford University Press, 2008.
ROSENZWEIG, C.; SOLECKI, W. Climate
Change Adaptation in New York City: Building
a Risk Management Response. New York City
Panel on Climate Change 2010 Report. Annals
of the New York Academy of Sciences, 1196,
p. 1-354.
ROSENZWEIG, C. et al. Cities lead the way
in climate-change action. Nature, v. 467, n.
7318, p. 909-911, 2010.
ROSENZWEIG, C. et al. Climate Change and
Cities: First Assessment Report of the Urban
Climate Change Research Network. Cambridge
University Press, Cambridge, UK, 286 pp.
ROSENZWEIG, C. et al. Mitigating New York
City’s heat island: integrating stakeholder
perspectives and scientiic evaluation.
Bulletin of the American Meteorological
Society, v. 90, n. 9, p. 1297-1312, 2009.
UNITED NATIONS POPULATION FUND. State
of the World Population 2007. New York,
NY, 2007. Disponível em: <https://www.
unfpa.org/sites/default/iles/pub-pdf/695_
ilename_sowp2007_eng.pdf>. Acesso em: 10
mar. 2016
REVI, A. et al. Urban areas. In: Climate
Change 2014. Impacts, Adaptation, and
Vulnerability. Part A: Global and Sectoral
Aspects. Contribution of Working Group
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
61
ARtIGOS
CIDADES MÉDIAS E VULNERABILIDADE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL
Recebido em: 1/03/2016
Aceito em: 10/03/2016
* Este artigo contou com o inanciamento da FAPEMIG
(Processo CSA - APQ-00244-12; Processo CSA - PPM 0030514; Processo CSA - PPM-00125-14), CNPq (Processo
483714/2012-7 e Processo 472252/2014-3) e Rede Clima.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
62
ARtIGOS
A vulnerabilidade do corpo no
mundo
Cinthia Mendonça [1]
Resumo: Fazendo uso de uma narrativa poética e fatual o artigo traz uma relexão sobre a implicação da
vulnerabilidade na potência de criação e transformação do corpo e da Terra, levando em consideração
a vida em pequenas comunidades rurais e o colapso sofrido por muitas delas.
Palavras-chave: Vulnerabilidade. Corpo. Mundo.
Body Vulnerability in the World
Abstract: The article presents a relection on the implications of vulnerability in the power of creation
and transformation of the body and the Earth, taking into account the life of small rural communities
and the collapse suffered by many. The text uses poetic and factual narrative.
Keywords: Vulnerability. Body. World.
[1] Cinthia Mendonça é pesquisadora e performer. Graduada em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é
mestra em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV/EBA/UFRJ), na área de teoria e experimentação
das Artes, e doutoranda em Artes e Cultura pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (PPGARTE/UERJ). Website: http://
cinthia.mobi. E-mail: cinthiamendonca@gmail.com
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
63
ARtIGOS
INtROdUÇÃO
Primeiro, é preciso dizer que este artigo é escrito
desde a perspectiva rural. Segundo, que ele
traz observações sobre quando acontecimentos
internos e externos têm tamanho impacto que
deformam ou inauguram outra forma. Veremos
que isso parece ser inevitável, toda forma
ixada borra-se no seu contorno ou desloca-se
de seu eixo precedente; com isso, evidenciase uma permeabilidade – que podemos nomear,
também, de vulnerabilidade. Acredito que esta
permeabilidade é operação essencial à criação
e, por isso, à manutenção da vida da Terra tanto
quanto da vida humana. Ao longo das linhas que
seguem, faço uma escrita exposta e vulnerável,
numa tentativa de fazer dela um objeto por
onde algo passa.
CORPO COMO MUNdO
Tomamos o termo vulnerável quando expresso no
contexto das mudanças climáticas, levando em
conta populações ditas vulneráveis em áreas de
suposto risco. Vejamos como isso se apresenta
em um outro contexto comparável. Avaliemos o
que o termo signiica na perspectiva de quem
vive em comunidades rurais. É importante dizer
que há distintas maneiras de viver e trabalhar no
campo. Reiro-me à minha própria experiência,
a uma escala 1:1 de cultivo comunitário, onde
as tecnologias de manejo da terra possuem a
dimensão da subsistência, isto é, interessame pensar a relação do corpo de um indivíduo
e seu impacto no mundo. Sabemos que, em
relação ao cultivo, o que impera na atualidade
é sobretudo o porte da fábrica e a dinâmica
do negócio, como é o caso das monoculturas
com o uso de maquinário de grande porte
(veja-se o cultivo da soja) e a indústria da
pecuária; porém, estas não vem ao caso, pois
o que me interessa observar é, por um lado,
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
a consciência que o indivíduo ou comunidade
pode ter de sua potência de atuação sobre o
mundo e, por outro, o impacto do mundo sobre
esses indivíduos ou comunidade.
No meio rural, sabemos, estamos sempre
submetidos aos eventos naturais que são em
si relativos, trazendo-nos tanto fartura quanto
escassez, fato este que nos faz perceber que
é preciso aprender a estar vulnerável, porque
sem vulnerabilidade não se planta. No campo,
é evidente que o indivíduo faz parte de um todo
variável (um microclima, uma bacia hidrográica,
o vale de um rio), assim como é nítida a relação
com os diversos ciclos, como, por exemplo, o
de renovação de nutrientes – lavoura rotativa
– e o ciclo das águas – plantio por estação.
Porque a terra do plantio pode sofrer grandes
impactos, quando não consideramos nossa
própria vulnerabilidade, nosso próprio impacto,
o manejo do solo há de ser preciso e calculado.
Além disso, a manutenção do ecossistema ao
redor, isto é, do espaço como um todo, garante
tranquilidade no acompanhamento da lavoura,
controlando a incidência de insetos, pássaros,
roedores e outros animais. Assim, diferente
do terreno plano e liso das cidades, solo este
construído a partir de um projeto civilizatório2,
o solo rural é um solo de issuras, laborioso
de transitar, onde as rachaduras da terra se
fazem necessárias para acolher as sementes,
onde os acidentes geográicos conduzem e
agenciam elementos fundamentais como vento
e água, onde corpo (seja animal ou humano)
e terra se impactam e também compactuam.
Então, operando desde outra lógica, diferente
dos terrenos lisos e luidos, pode-se dizer que
a vivência em espaços rurais colabora para o
surgimento de vidas ainadas, ou se preferir,
aderidas à vulnerabilidade da Terra, aos seus
ciclos naturais, às suas pequenas catástrofes.
Geadas, aguaceiro, seca, vendaval, enxames,
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
64
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
são muitos os acontecimentos que jogam com
a permanência no campo. E aquilo que em um
primeiro momento parece ser um empecilho
ou uma catástrofe, revela-se logo como uma
motivação extremamente importante para
transigir o impacto que sofrem ambos, indivíduo
atuante e espaço rural. Pode-se perceber,
então, um jogo de poder que opera sobre a
natureza, constituindo-a sem interdições, e
que envolve sobretudo uma ética calcada na
existência de ambos: indivíduo e Terra. Nesse
caso, a capacidade humana de pensar soluções
adequadas às problemáticas ocasionais ou
permanentes do ambiente revela-se como um
modo não agressivo de operar sobre o mundo.
Para os anos de forte geada, para os longos
períodos de seca, ou ainda, para os períodos de
cheias dos rios, estarão adaptados, obviamente,
os que puderam observar, pensar e agir. Mas
sobretudo no meio rural tem-se a dimensão
material do corpo e, por isso, a dimensão do
im. A potência de ação do corpo – energia
transformada em força de trabalho – e o im
das coisas acontecem dentro de seus próprios
ciclos de vida e morte, processos tão simples
e evidentes, mas, muitas vezes, ocultados
pelo alto grau de alienação atual, alimentado
particularmente pela compulsão ao consumo.
No meio urbano, quem consome, pouco sabe
sobre a procedência do produto e se estivermos
falando sobre um produto de origem animal ou
vegetal (como são as roupas, sapatos, móveis,
comida), saber de onde vem e como foi
produzido se torna ainda mais complicado.
Mas a gente do campo sabe o valor da consciência
sobre os fenômenos naturais e sobre sua própria
vulnerabilidade. Mesmo sem se dar conta,
diferenciam estímulo de prejuízo. Poderíamos
chamar isto de vulnerabilidade consciente.
A previsão e também a imprevisão dos
acontecimentos climáticos ou sociais no campo
ARtIGOS
cadenciam a existência daqueles que vivem
na Terra, sobre a terra, da terra. As feridas os
tornam cada vez mais fortes, fazem-nos fortes
e vulneráveis ao mesmo tempo, estando eles
à altura de sua dor, de sua fraqueza isto é, à
altura do horizonte terrano. Essa perspectiva de
horizonte terrano nos conecta a um paradoxo:
pela fraqueza nos tornamos forte. Tomando
este aspecto, recorremos a ilósofa Barbara
Stiegler, em seus estudos sobre Nietzsche e
a biologia: “O que faz a fraqueza do forte é
que ele se esforça para preservar e mesmo
aumentar sua vulnerabilidade, controlando
seu grau de exposição às feridas do fora, se
protegendo das agressões mais grosseiras, ele
pode se abrir às feridas mais sutis” (STIEGLER,
2001, p. 40, tradução minha). Estar à altura
do chão, do germe, das larvas, trazer consigo
a consciência de que somos aquilo por onde
algo passa, uma plasticidade que ganha e
perde forma – pois “Só se cavam espaços, só
se precipitam ou desaceleram tempos à custa
de torções e deslocamentos que mobilizam e
comprometem todo o corpo” (LAPOUJADE,
2002 p. 88). Estes seres-germe, isto é, essa
gente do campo, os povos indígenas ou qualquer
povo ou comunidade que vive na tensão entre
a modernidade a extra-modernidade são os
que suportam os intemperismos de sua própria
natureza, ou melhor, da natureza da qual fazem
parte.
Os efeitos da vulnerabilidade estão justamente
em nosso encontro com a exterioridade, em nosso
contato com o mundo que nos afeta, operando
dentro e fora de indivíduos e comunidades. Para
mencionar o que acontece com o indivíduo,
recorro à plasticidade. A ilósofa Catherine
Malabou nos diz, em seus estudos sobre a forma
da diferença, que a tendência à transformação
é uma realidade do corpo, por isso precede o
corpo, a estrutura, a forma. Segundo ela, a
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
65
ARtIGOS
plasticidade promove a produção de uma outra
existência, diferente da anterior, por meio de
trânsitos de transformação que levam o ser ou
o corpo a uma instância de existência diversa.
Seria, quiçá, uma morte parcial ou pequenas
mortes, porque, segundo Malabou, o corpo
pode morrer sem estar morto, pois haveria
uma mutação destrutiva que não seria aquela
da transformação do corpo num cadáver, mas
a transformação do corpo em outro corpo no
mesmo corpo, em razão de um acidente, uma
lesão, um dano ou catástrofe (MALABOU, 2014.
p. 32).
Neste aspecto, seríamos todos vulneráveis
pelos simples fato de estarmos vivos. Sem
vulnerabilidade, não haveria plasticidade
nem transformação; e sem a consciência
da vulnerabilidade reluta-se e resiste-se ao
inevitável que é o movimento do ser. Considero,
assim como Malabou, o acidente como uma
propriedade da espécie, e a capacidade de se
transformar sob o efeito da destruição como um
horizonte possível, uma estrutura existencial
(MALABOU, 2014, p. 30). Todo corpo pode ser
impactado por sua exterioridade e o resultado
deste impacto é sobretudo a tomada de força e
o aumento da capacidade de resistir e adaptarse, contudo, estando alienado de sua condição
vulnerável, o ser não pode perceber e desfrutar
da potência de sua transformação. Parece
que estamos diante da luta pela vida, muito
próxima da “luta pela vida” dos animais do
mundo selvagem ou dos povos extramodernos
(CASTRO, 2015), pois se resiste à fadiga, a dor,
a todo tipo de afecção que atinge o corpo.
Parece que, para o que está vivo, resistir é
também existir, mas resistir não é suiciente,
é preciso também saber aderir, já veremos o
porquê.
Considerando que resiliência e existência
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
andam juntas, o ilósofo David Lapoujade nos
fala sobre um corpo que não aguenta mais. Mas
não é porque o corpo chegou ao seu limite de
tolerância ou de cansaço que ele “não aguenta
mais” e sim porque esta resistência – um
possível registro regulatório de intensidades –
perece ser a condição do corpo. Porque “[…]
se é desde sempre e para sempre que não
aguentamos mais, se é desde sempre e para
sempre que resistimos, então esta resistência
é um profundo fortalecimento, a constante de
um limite ou de um último nível.” (LAPOUJADE,
2002, p. 84). Sugiro: pensemos no corpo como
um músculo. A resistência seria o tensionamento
que ocasiona o fechamento deste músculo, no
entanto, trata-se de um tensionar-se que o
fecha conectando-o a uma dinâmica mais ampla,
um posterior relaxamento e abertura. Assim,
teremos o corpo com um ritmo próprio muscular
operando num fechar-se e abrir-se constante,
possibilitando, a partir dessa dinâmica, a
abertura dos sentidos para o que pertence
ao regime do sutil. Esta seria uma ginástica
favorável ao agenciamento de intensidades do
corpo quanto ao que ele resiste ou deixa passar
por meio de sua vulnerabilidade.
Resistir às forças que subjugam o corpo, que
o oprimem e, ao mesmo tempo, deixar passar
as sutilezas é ato de sobrevivência. Portanto,
é natural que nosso corpo crie mecanismos de
proteção contra possíveis lesões. Sabemos,
como já mencionou Lapoujade, que esta
proteção pode ocorrer pela simples fuga ou
pelo enrijecimento e também pela imobilidade,
todos estes processos de fechamento ou de
enclausuramento, porém, a exposição ao
sofrimento faz crescer a potência de agir dos
corpos. Se a potência de um corpo pode ser
medida pela sua capacidade de expor-se aos
sofrimentos e lesões, então é igualmente
natural que o corpo deixe passar intensidades –
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
66
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
ainda que dolorosas. Por isso aderir aos afetos
do mundo se faz também necessário.
No entanto, diante dos diagnósticos da crise
climática atual percebe-se, por um lado,
o entendimento (ou será a estratégia?) da
vulnerabilidade como um mal que necessita
ser remediado e, por outro, a introjeção da
ideia de mártires nos corpos afetados, nos
sofridos. A vulnerabilidade, neste contexto,
parece precisar de cura, e esta tentativa de
cura só vem a reforçá-la de maneira negativa,
ignorando a condição vulnerável (estímulo) e
impondo a situação vulnerável (prejuízo) da
qual seria necessário sair, mas não se consegue.
Desta forma, um termo que, a principio,
está relacionado à regulação da potência
de intensidades de todo corpo – da qual não
é necessário curar-se, posto que é parte da
condição de existência dos indivíduos e coletivos
no mundo – torna-se termo que corresponde a
certa incapacidade, ou descapacacidade do
indivíduo ou de uma população de se adaptar
ao seu meio impactado. Ou ainda, refere-se
à ignorância ou à falta de conscientização a
respeito do perigo, fazendo com que indivíduos
e populações sofram mediação na resolução
de seus problemas. Assim, a vulnerabilidade
que é válvula de força do sujeito, torna-se
característica de populações debilitadas,
mártires, que em teoria jamais poderão agir ou
exteriorizar seus sofrimentos.
Porém, quando se observa com atenção as
comunidades ditas em perigo percebe-se
que antes da evidente vulnerabilidade, que
se apresenta num primeiro plano, há uma
repressão generalizada em relação ao alcance
de sua autonomia, em seguida, vê-se o completo
abandono por parte do Estado ou o descuido
por parte de iniciativas privadas. Desta forma,
a própria comunidade não saberá o que é
melhor para si, porque é impedida de reletir
ARtIGOS
e agir sobre seu espaço. Isto se prova diante
da necessidade de intervenção do Estado onde
muitos desses indivíduos e comunidades não
recebem atendimento adequado, enquanto
que eles próprios se sentem coagidos e nada
fazem por si mesmos. Parece-me evidente que
os efeitos da impossibilidade de pensar para si
saídas ou de agir sobre suas próprias mazelas
enfraquece e torna passiva a existência
de qualquer corpo no mundo. A mediação,
nestes casos, torna-se perversa, intervindo
como instrumento alienante de controle de
populações. Por vezes, a constatação do
risco é espetacularizada e a vulnerabilidade
capitalizada.
MUNdO COMO CORPO: GAIA
Corpos e mundos são diversos. Mas, em suas
respectivas autopoieses, ambos – corpo e
mundo – sofrem tensões sobre a própria
plasticidade. Entre os efeitos externos e
os deslocamentos internos, parece ser fato
que corpo e mundo “não aguentam mais”.
Consumidos por algo alheio aos seus próprios
cursos e diante das imposições da recente
problemática global, ambos colapsam. Em face
das atuais circunstâncias climáticas, o duplo
colapso (corpo e mundo) parece dar nova forma
as coisas, ou melhor, deformar as estruturas
existentes, sugerindo mudanças profundas no
comportamento das comunidades e, sobretudo,
nos sistemas políticos e econômicos.
Nesse caso, é preciso considerar também a
plasticidade de Gaia, com sua forma Terra,
como unidade complexa criando condições para
manter vivo seu ecossistema. Sabemos que a
vulnerabilidade reside onde há forma, estrutura
ou uma deinição qualquer que possa ser
deslocada de sua plasticidade inicial. Com isso,
supondo que toda forma e toda estruturação
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
67
ARtIGOS
envolve o risco de perda de si, e visto que
esta forma sofre visivelmente deformações
advindas de sua dinâmica de afetos, tomamos
a vulnerabilidade do planeta tão pertinente
quanto a dos indivíduos. Evidentemente,
uma está correlacionada à outra. Porque
a vulnerabilidade se refere sobretudo às
estruturas, sejam elas físicas ou subjetivas,
de corpos e matérias que no contato externo/
interno (com o outro) formam-se e deformamse, criam-se e destroem-se, como numa dança
entre estrutura ixa e vulnerabilidade, que
resulta, como toda dança, em deslocamento.
Assim seria Gaia, um corpo permeável que
sofre e comete afetações.
Falemos então sobre essa vulnerabilidade
recíproca que se pode encontrar no contato
indivíduo-Terra. Vejamos o caso de O Cavalo
de Turin (A Torinói Ló), ilme de Bélá Tarr,
que nos remete à ideia de um mundo que não
aguenta mais. A tormenta que acompanha
toda a narrativa – sem cessar – aparece como
evidência dos fenômenos que constituem
diversas vulnerabilidades. Vemos Gaia reagindo
impiedosa, enquanto os personagens resignados
não demostram resistência diante da completa
escassez anunciada. O forte vento vem trazer
a instabilidade de tudo que se ergue sobre o
chão da Terra. O personagem Ohlsdorfer e sua
ilha (cujo nome não sabemos) têm também
seus corpos declinados por esta força em
forma de vendaval, que nada mais é do que
uma resposta aos impactos que Gaia parece
ter sofrido. Os personagens reagem com uma
constante repetição de ações cotidianas que
apenas sofrem minúsculas interrupções ou
pequenas mudanças de direção quando forças
externas atravessam sua realidade: a visita de
um vizinho, a passagem de uma carroça com
ciganos, a falta de água do poço. Tudo se passa
no espaço da fazenda, entre a casa, o poço
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
de água, o estábulo e a paisagem da janela.
Além disso, podemos perceber a dinâmica de
interdependência cotidiana entre os humanos
e o animal – muito comum no meio rural –, e
sua interrupção pela resistência do cavalo
em não comer, não beber, não andar, isto é,
não obedecer à dinâmica repetitiva, ao labor
de sempre. O cavalo, supostamente pelo
qual Nietzsche chorou, responde à tormenta
paralisando-se, enquanto ilha e pai respondem
com tentativas, frustração e reconiguração
de seus movimentos repetitivos. Talvez o
cavalo tenha consciência de que o mundo “não
aguenta mais”; quiçá ele perceba que já não
existe perspectiva e que não há nada mais
depois da ventania… Essa suposta percepção do
cavalo materializada em resistência impacta
os humanos, forçando-os a reconigurar suas
ações.
O ilme nos apresenta a morte da vida no
campo, o im do mundo rural e faz reletir
sobre a desconexão entre nós, humanos,
e a existência da Terra. A crença moderna
adormeceu os sentidos em relação aos poderes
de Gaia e, da ruptura humano-Terra não
escaparam também alguns camponeses em seu
mundo rural. Considerando o isolamento e o
sucateamento de muitas comunidades rurais
e sobretudo o fato de que há abundância de
recursos e escassez de serviços – incluindo
os fundamentais como escolas e hospitais –,
a modernidade atinge o campo e o impacta
com promessas de acesso à serviços de toda
ordem: uma perspectiva de vida prática ou de
riqueza material e imaterial. Assim, em muitos
casos, quando os camponeses não abandonam
o campo, vivem a melancolia da modernidade
que demora a chegar. E o campo, que antes era
um lugar central de produção, torna-se uma
ilha melancólica. E então, quando as gentes do
campo não se compreendem mais como parte
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
68
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
de seu próprio universo, é comum que o im do
mundo se estabeleça na vida destas pessoas. O
mundo acaba porque existe a sensação de que
o seu lugar não faz mais sentido e sequer tem
utilidade. O mundo termina ali porque se tem a
ilusão de que se construiu um mundo mais vivo
e vibrante “lá fora”.
Em um momento do ilme de Bellá Tarr, não há
mais água no poço. Então Ohlsdorfer mobilizase e decide ir para a cidade, mas parece que já
não há nada mais ali... Porque todos partiram
ou porque tudo está tão escasso quanto na casa
no campo. Não sabemos exatamente o que se
passou: os vemos ir e retornar pelo mesmo
enquadramento que tem a paisagem da janela
da casa, e pergunta-se: se há tormenta por
toda parte, se o mundo está acabando, o que
encontrariam eles na cidade? Uma razão, uma
resposta, isto é, o pensamento? A certeza e o
conforto de saber que o im chega para todos?
Mas o im de um mundo parece ser também o
im do pensamento sobre ele.
Mesmo diante da tormenta, a vida naquele
lugar no campo resguarda suas proporções.
Entre a sala da casa, o estábulo e a paisagem da
janela, até o im tudo tem seu justo tamanho.
Retomando as questões da ecologia, parecessenos evidente que a imagem de um possível
colapso ou a sensação de um futuro incerto
é parte fundamental da construção das
subjetividades contemporâneas. Veja-se que
isto é diferente da alienação da dor e da morte,
e talvez seja parte dessa dinâmica de blindagem
do corpo. O im já está estabelecido, porém
não se pode senti-lo como dor ou como morte.
Porque o pensamento sobre o im do mundo
nos chega espetacularizado, midiatizado, ou
seja, distante de nós, como o evento a ser
assistido passivamente, apesar de sermos todos
potenciais impactados.
ARtIGOS
É fato, relatórios oiciais (político-cientíicos)
do Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (Ipcc)3 alertam a sociedade civil
e as lideranças mundiais sobre os limites do
sistema planetário. A velocidade do processo
de mudança climática faz com que o planeta
atinja parâmetros de risco que afetam o bemestar e a sobrevivência, e isso se dá justamente
pela ação humana em grande escala. Soluções
desenvolvimentistas
ou
aceleracionistas
alcançaram tal ponto de saturação que
ampliicar a velocidade dos processos de
mudança do clima. Esse processo de mudança
(nomeado como crise) parece ser molecular,
isto é, qualquer movimento ou micromovimento
se soma a uma complexa cadeia de eventos,
promovendo sintomas evidentes na Terra e, por
consequência, oferecendo risco à sobrevivência
humana e não humana.
Diante do que se vai construindo com estes
informes catastróicos, ou seja, com os dados
sobre aumento de temperatura, enchentes
etc., o que podemos perceber é um futuro que
se torna imprevisível, até mesmo inimaginável
fora dos quadros da icção cientíica ou das
escatologias messiânicas (DANOWSKI, 2014,
p. 23). Então, ao que parece, existiria aí um
descompasso entre ação e imaginação humana,
porque supostamente haveria uma potência de
produção que a imaginação não acompanha.
Isto é, veriicamos, nessa problemática
escatológica, a cisão entre ação e imaginação,
em outras palavras, entre o ser e a ação. Porque,
por exemplo, as decisões tomadas a respeito
do destino da humanidade fogem à dimensão
da escala do indivíduo ou da comunidade. Uma
pessoa diicilmente consegue se relacionar
com a dimensão de uma ação de escala ampla.
Ações de grandes proporções englobam a todas
as pessoas, mesmo que estas não tenham
optado ou decidido por elas. Um exemplo
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
69
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
ARtIGOS
possível é um tema típico dessa problemática:
a emissão de gases originários de combustíveis
fósseis. Todos sabem dos problemas causados
pela emissão, todos emitem, mas nem todos
possuem a dimensão exata do que é ter bilhões
de pessoas emitindo o mesmo gás. No entanto,
cada emissão individual, hoje, colabora para
a contaminação do ar e para as mudanças
climáticas. Parece-nos óbvio que a sociedade
civil ainda assim exerça menos inluência para
o desequilíbrio do clima do que os governos e
as indústrias, mas às microações se somam as
macroações de maneira consistente, enquanto
as decisões são tomadas por poucos.
Diante disso, uma vez que a situação parece ser
compreendida por uma parcela da população,
estes são novamente capturados por soluções
de um esquema verde, politicamente ecológico
que, supostamente, estaria amenizando
suavemente nossa corrida para o im através do
consumo de produtos ecologicamente corretos
ou de um aceleracionismo que se apresenta
pautado em uma publicidade “consciente e
preocupada” com as populações vulneráveis
e não com a vulnerabilidade dos indivíduos e
populações. Resta à população apenas a decisão
por meio do consumo.
Com isso, faz-se necessária a quebra da imensa
barreira que separa o humano das coisas, isto
é, de todas as forças que alienam o contato
humano-Terra. Um aTerrar-se, literalmente,
torna-se uma contraconduta, no sentido de
voltar-se para a Terra, profaná-la. A Terra,
transformada em um objeto contaminado pela
cadeia de produção e consumo, é algo que
necessitamos “tomar para si”4.
Quando penso sobre como seria
mundo, penso nele. As mãos
e calejadas, sempre feridas,
aranhadas. A cor da pele do
um corpo sem
muito grossas
espetadas ou
tronco e dos
largos braços diferente da cor do restante do
corpo, que é a mesma cor que se intensiica no
pescoço marcado pelo sol. Sua força muscular
se evidencia na formação de seu tronco, que
é mais largo que a extremidade inversa, o
quadril. As pernas inas que saem do quadril são
irregulares, uma delas aparenta ser muito mais
ina que a outra, ou mais curta, talvez… Esta
perna seca, atroiada, dá a ele uma instável
pisada e uma caminhada de ritmo marcado. A
caminhada ganhou, ao longo dos anos, certa
normalidade, é uma forma com a qual já nos
acostumamos. O álcool muitas vezes colabora
com essa dinâmica motora rítmica e ajuda na
variação dela.
Este corpo parece mesmo deslocado de seu
mundo. O mundo dele, disseram-me certa
vez, acabou, acabou justo quando eu nasci.
E ele sofreu, com esse deslocamento, um
colapso. Podemos mesmo perceber em suas
ações cotidianas o desencontro entre pessoa e
espaço.
O que ele sabe fazer e o que ele deseja não
se direciona para onde ele mesmo está. Não
existe mais, porque acabou. Digo, acabou a
coniguração da qual ele fazia parte, não existe
mais o contexto para o qual sua subjetividade
foi moldada, o local para onde foram dedicadas
suas ações e a função para qual foi fabricado
seu corpo, porque terminou onde repousa seu
desejo e seu jeito de ser no mundo. Sim, eu o
reconheci quando era o princípio de seu im,
eu o reconheci quando o mundo dele acabou.
Ainda pude viver alguns resquícios, restos ou
rastros. Foram alguns anos na ilusão de que
ainda havia algo, mas logo, vulneráveis, nos
perguntávamos, ele e eu: e o que será agora?
Eu segui pelos mundos que havia e ele um dia
parou, deparou-se com o cansaço de andar
sobre suas pernas instáveis.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
70
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
O corpo deslocado do mundo não pode erguerse completamente sobre o chão e, por isso,
anda como se estivesse sob o efeito de uma
tormenta, instável, irregular... As marcas deste
corpo evidenciam a criação de uma forma
estranha, desforme, inadequada, destoante…
Tanto o corpo quanto o mundo seguiram
abandonados ou esvaziados daquilo que os
movia. O lugar deixou de existir e o corpo
deixou de desejar. Pode-se ver o vazio do corpo
preenchido pelo alcoolismo e o vazio do lugar
preenchido pela braquiária.
ARtIGOS
espécie de ânsia de peregrinação que parece
dar sentido à vida. Mas quando seria a hora de
parar? Antes que minhas pernas também iquem
irregulares e, secas, já não possam transitar
com elegância…
Este é um exemplo bastante comum de um
corpo colapsado – um corpo que não aguenta
mais e que, neste caso, enfrenta diiculdades
em transformar seu acidente ou sua dor em
algo airmativo. Porque, além do colapso, há
o radical deslocamento que se impõe sugando
toda a energia criativa – que poderia ser
investida na ultrapassagem –, na tentativa de
manter o corpo de pé em um solo totalmente
desconhecido. Que corpo é esse? Um corpo
atropelado pela modernidade, um corpo
moldado pela falta de um lugar no mundo, um
corpo que, inadequado, se forma, deforma…
Um corpo que não pode mais agir, não pode
mais responder ao ato da forma, porque o
agente parece ter perdido o controle sobre si.
De fato, um grande desaio é viver em tantos
mundos ao mesmo tempo. Porque na verdade,
evidentemente, não se vive em nenhum. Como
ilha do im do mundo do meu pai, eu mesma
não pude ter o meu mundo, e fui viver em
todos os mundos, os mundos de tantos outros.
A vida na cidade foi um deles, a vida artística
e intelectual também é um desses mundos que
parecia não ser meu. Parecia, parece, mas cá
estou, vivendo... Então, como crer no mundo
que está diante de si? Como tomá-lo seu ou
como pertencer a esse mundo? Uma resposta
me veio pelos sonhos: aterrando-me. Foi uma
resposta-germe, larva, vinda do horizonte da
terra. Conectar-me novamente com a Terra, ou
com o solo. Sim, aterrar-me nas questões que
de fato me engajavam só foi possível quando
soube olhar ao redor desde determinados
pontos de referência, isto é, sobre um solo.
Alerto que não se trata de territorializar um
solo, reiro-me a algo mais sutil: sentir-se
íntima dele, estar próximo, manter um contato
sinestésico com o chão.
Parece estarmos diante do colapso de um corpo
e de um mundo que se desencontraram no luxo
natural das coisas, por conta de imposições
externas ao desejo de um sujeito e à existência
de um espaço.
Para tanto, para aTerrar-se, abrir e fechar
o corpo torna-se uma dinâmica comum à
existência. Aderir ao chão que sustenta meus
passos é abrir-me para o sutil, o que pode dar ao
corpo uma enorme capacidade de resiliência.
Ele parou, não aguenta mais. E me pergunto: por
que segui? Talvez pela sensação de movimento.
O deslocamento, quando se torna uma dinâmica,
por um lado, projeta para o novo, atualizando
pessoas, lugares, comportamento, interesses
e pensamentos, mas, por outro, aprisiona a
um recorrente desejo de movimento, uma
Encerro este breve artigo com a sensação de
que sobreviver é sobretudo criar. A potência
criadora é constituinte do ser. Criamos corpo,
coisas, recriamos diante de acidentes e
transmutamos matéria, energia. Esta percepção
que se determina por um inesgotável “para se”5,
evidencia a permeabilidade de tudo aquilo que
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
71
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
ARtIGOS
tem forma e a possibilidade de uma existência
com contornos borrados, não deinidos, em que
a vulnerabilidade é elemento central, motor
de criação. É disso que trata esse texto, é isso
que move a vídeo-performance que com ele
conversa (vimeo.com/139866491).
REFERÊNCIAS
DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. há
Mundo por vir? Ensaio sobre os medos e
os ins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e
Barbárie: Instituto Socioambiental, 2014.
DELIGNY, F. et al. Le Moindre Geste.
Documentário. 105 min | 35mm, Vídeo |
P&B | França - ISKRA | 1971. Disponível
em: <https://www.youtube.com/
watch?v=i20VWKO9Sdk> Acesso em: 30 abr.
2015.
FOUCAULT, M. historia da Sexualidade I:
Vontade de saber. Trad. Maria Thereza
da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
LAPOUJADE, D. O corpo que não aguenta mais.
In: LINS, D.; GADELHA, S. (org.). Nietzsche e
deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro:
Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da
Cultura e Desporto, 2002. p. 81-90.
LEPECKI, A. Exhausting dance. Performance
and Politicy of Moviment. New York and
London: Routledge, Taylor and Francis Group,
2006.
PELBART, P. O avesso do niilismo: cartograias
do esgotamento | Cartography of exhaustion:
nihilism inside out. Ed. Bilingue.Tradução de
John Laudenberger. São Paulo: n-1 edições,
2013.
SIMONDON, G. La individuación a la luz de las
nociones de forma y de información. Buenos
Aires: La Cebra; Cactus, 2009.
STIEGLER, B. Nietzsche et la biologie. Paris:
PUF, 2001 (Col. Philosophics)
VIVEIROS DE CASTRO, E. Sobre os modos de
existência dos coletivos extramodernos:
Bruno Latour e as cosmopolíticas ameríndias.
Projeto de pesquisa. Disponível em: <https://
ufrj.academia.edu/EVdeCastro>. Acesso em:
30 abr. 2015.
Recebido em: 10/03/2016
Aceito em: 15/03/2016
Uma ideia de território nos foi instaurada desde um
violento marco civilizatório; este terreno se mostra liso e
luido para uns e áspero, difícil de transitar para outros. Um
terreno colonizado produz corpos colonizados, isto é, nas
periferias e zona rurais brasileiras, por exemplo, produzse a relação de servidão campo-cidade ou periferia-cidade.
E, num contexto mais amplo, podemos constatar que o
projeto urbano homogêneo, em contraste com os exemplos
de espaços que trazemos, colabora para a construção
de uma ilusão de solos supostamente lisos e luidos, que
demandam sujeitos imersos em uma espécie de compulsão
pelo consumo. Sobre corpo colonizado ver: LEPECKI, 2006.
2
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
foi criado em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial
(OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA). O painel serve para avaliar de forma
direta informações cientíicas, técnicas e socioeconômicas
que sejam relevantes para entender os riscos da mudança
climática causada por ações humanas e seus potenciais
impactos e opções para a adaptação a mitigação Cf. IPCC,
2014. Disponível em: <http://ipcc-wg2.gov/>.
3
MELITOPOULOS, A.; LAZZARATO, M. O
animismo maquínico. Cadernos de
Subjetividade: Núcleo de Estudos e Pesquisas
da Subjetividade do Programa de Estudos Pós–
Graduados em Psicologia Clínica da PUC–SP,
São Paulo, ano 8, n. 13, out. 2011.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
72
A VULNERABILIDADE DO CORPO NO MUNDO
ARtIGOS
Esta parte do texto foi baseada amplamente em anotações
realizadas durante a disciplina Ecosoia e Subjetividade:
Geoilosoia Pós Humanista, Aceleracionismo, Descida
Terrana, ministrada pelos professores Eduardo Viveiros
de Castro e Déborah Danowsky (PUC-RJ) e oferecida pelo
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(MN/UFRJ) no segundo semestre do ano de 2014.
4
“Era uma vez homens e pedras. Eles permaneciam
voluntariamente perto das fontes, mas não sabiam o motivo.
A água é uma coisa que não esgota o “para beber”. E as
pedras ali estavam também, e o “para se sentar”, o “para
quebrar nozes nelas”, o “para construir muros”, e o “para
marcar estradas” não as esgotam. Esse garoto invivível,
insuportável, incurável, toma iniciativas. Ele lança o dado
e lá vai ele fazer. Mas num mundo onde reina a linguagem,
terá ele algum dia a liberdade? Resta saber se nós a temos.
E vai saber o que ele ouve. Vozes que não o são e que falam
do tempo em que o ser humano não era, nem um nem
outro, discriminado pela linguagem. Ele escuta. Nenhum
animal escuta assim, para nada. O barulho que vem do mais
profundo da água, que não é uma coisa, visto que ele não
é uma pessoa” (DELIGNY apud MELITOPOULOS; LAZZARATO,
2009, p. 18).
5
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
73
ARtIGOS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
74
ARtIGOS
Notas sobre A queda do céu de Davi
Kopenawa y Bruce Albert por un
lector blanco*
Jean-Christophe Goddard [1]
Resumen: Presentamos la traducción del francés al español de Notas sobre A queda do céu de Davi
Kopenawa y Bruce Albert por un lector blanco del ilósofo Jean-Christophe Goddard, una lectura incisiva
del potencial conceptual del texto A queda do céu. Palavras de un xamã Yanomami (2015), operando
no sólo una de-colonización de la escritura, sino también un agenciamiento contra-antropológico con
implicaciones epistemológicas, éticas y cosmopolíticas inminentes. La cual está seguida por una nota
Resonancias de traducción intentando indicar la pertinencia de este texto no sólo para el contexto de
recepción del libro; sino por las nuevas perspectivas y agenciamientos que instiga en el contexto del
pensamiento contemporáneo.
Palabras clave: A queda do céu. Contra-antropología. Chamanismo.
Notas sobre A queda do céu de Davi Kopenawa e Bruce Albert por um leitor branco
Resumo: Apresentamos a tradução do francês para o espanhol de A queda do céu de Davi Kopenawa y
Bruce Albert por un lector blanco do ilósofo Jean-Christophe Goddard,uma leitura incisiva do potencial
conceitual do texto A queda do céu. Palavras de un xamã Yanomami (2015), produzindo não apenas
uma descolonização da escrita, mas também um agenciamento contra-antropológico com efeitos
epistemológicos, éticos e cosmopolíticos iminentes. A qual esta acompanhada por uma nota Resonancias
de traducción para indicar a pertinência do texto não só para o contexto de recepção do livro; mais para
as novas perspectivas e agenciamentos que provoca no contexto do pensamento contemporâneo.
Palavras-chave: A queda do céu. Contra-antropologia. Xamanismo.
[1] Jean-Christophe Goddard é profesor de la Universidad Toulouse Le Mirail, director de ERRAPHIS -Equipo de investigación de
racionalidades ilosóicas y saberes. Entre sus obras publicadas están: La philosophie ichtéenne de la vie. Le transcendantal
et le pathologique (1999), Mysticisme et folie. Essai sur la simplicité, Desclée de Brouwer, (2002), Fichte (1801-1813).
L’émancipation philosophique (2003); Violence et subjectivité. Deleuze, Derrida, Maldiney (2008).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
75
ARtIGOS
NOTAS SOBRE A QUEDA DO CÉU DE DAVI KOPENAWA Y BRUCE ALBERT ...
Queda difícil a quien, como yo, ha sido aprendiz
de libros impresos y año tras año por ellos,
liberarse de ello sin hacerlo por un libro. Sólo un
libro, un libro único puede liberar aún del apego
a esta episteme desastrosa del libro impreso
que en Une brève histoire de lignes (2011) Tim
Ingold ha descrito y denunciado notablemente
para des-aprender el tejido de un texto vivo y
que por fuerza de armas y conceptos coloniales
extendió el dominio de su ignorancia sobre
casi la totalidad de la supericie de la Tierra. A
queda do céu2, aparecido en 2010 en lo que Jean
Malaurie llama él mismo como “la biblioteca
indígena de la Tierra humana”, es un libro tal.
Completamente escrito en primera persona –
en la lengua y con ayuda del etnólogo francés
Bruce Albert – por el líder y chamán Yanomami
Davi Kopenawa, es sin duda, sino el primero, el
más logrado de los textos contra-antropológicos
dirigido a los lectores europeos.
Un libro único que libera de la ilusión del
libro, simplemente por el hecho de que habla
claramente de la voz que el libro impreso se
obstina en incorporar por la lectura silenciosa
y privada que induce. Una palabra contraantropológica porque sólo la palabra viva es
contra-antropológica. La antropología de los
pueblos indígenas por el hombre urbanizado que,
como dice el escritor marroquí Driss Chraibi3,
comienza a escribir porque no vive, escribe
sobre el hombre que no escribe, hombre de las
selvas, desiertos y jardines, el hombre que vive,
la contra-antropología sustituye la antropología
oral, coerción y crítica, del hombre blanco por
el indígena. Una palabra antropológica que sólo
puede ser escuchada y solamente preservada
con el pensamiento como palabras lejanas de
seres del cielo y de la selva sobre lo que los
Yanomami no “diseñan ningún discurso”.
Un libro único, por tanto, que no podría leerse
como un libro, ni ser materia de ningún libro. La
pregunta, a veces planteada, por saber lo que se
podría escribir como ilosofía con el aporte del
pensamiento amerindio es una pregunta idiota
- en el doble sentido de idiota: es la pregunta
de un ignorante privado de inteligencia por el
hecho mismo de su disposición antropológica
particular que, extrañamente, no es o ya no
está viva. La incompatibilidad epistémica aquí
es total. Si para Davi Kopenawa (2010, 2015)
los blancos ignoran las palabras de la selva, es
porque “no dejan de ijar sus miradas en las
marcas de sus discursos y de hacerlos circular
entre ellos, adheridos en pieles de papel” y,
haciéndolo, “no examinan tampoco su propio
pensamiento y sólo saben lo que está al interior
de ellos mismos, ignoran las palabras lejanas de
otras personas y otros lugares” y ya no saben
soñar más que con ellos mismos. Necesariamente
introspectivo, el libro es totalmente xenófobo,
en el sentido en que sustituye la visión y la
audición sensible de las entidades que pueblan
el cielo y la selva, no conoce ni admite nada
extranjero al pensamiento de lo que escribe
y de los que lo leen. La introspección es así
la forma misma que toma el etnocentrismo
blanco.
Esta xenofobia innata de los Blancos “ijados a
sus propias marcas” es el primer hecho contraantropológico distinguido por Davi Kopenawa.
El hecho que concentra toda su idiotez. Lo
que hace de ellos, según su expresión, “otra
gente” que los indígenas. Sean Yanomamis o
no. Pues el otro Indígena, el indio extranjero
es, en primer lugar, el que hace conocer sus
propios extranjeros, seres nunca vistos,
nunca escuchados. El extranjero indígena,
y comenzando indio, se deine por esta
xenoilia generosa. Es por esto que, basta estar
suicientemente con ellos, los Blancos “no son
verdaderos extranjeros”. La pregunta idiota por
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
76
NOTAS SOBRE A QUEDA DO CÉU DE DAVI KOPENAWA Y BRUCE ALBERT ...
saber lo que se podría escribir como ilosofía
contra-antropológica -es decir indígena- es una
pregunta xenófoba. La antropología inversa de
los Blancos dirigida por antiguos informantes
no permitirá a ninguno de nosotros avanzar en
la comprensión de sí mismo, explorar delante
de los fundamentos de su pensamiento. Si lo
permitía no revelaría de él más que lo que por
idiota es capaz de encontrar por él mismo.
Si, según las palabras de Darcy Ribeiro, los
hombres del Imperio extienden sus colonias
por los libros, porque lo hacen por los libros, lo
hacen con la cabeza agachada, los ojos clavados
en ellos mismos y si, extendiendo sus colonias,
destruyen con las armas selvas y hombres
notando apenas su existencia, destrozan
negligentemente
inmensas
civilizaciones
humanas, vegetales, minerales o animales, es
porque avanzan con la cabeza agachada, los
ojos atados sobre sus libros y sólo los levantan
para inquietarse por saber si subsiste sobre la
Tierra que acaban de devastar cualquier cosa
que pueda servir aún a sus libros – es decir para
pensarse.
La universidad que ordena la escritura
introspectiva pertenece en este sentido al
Imperio. No es solamente una institución
de apoyo a lo que Walter Mignolo llama “la
colonialidad del saber”(2000) - el lado más
oscuro de la modernidad. Ella es al respecto
capataz. Sólo se puede dar todo el sentido
y el alcance crítico -el que pide la acción- a
la airmación de Eduardo Viveiros de Castro
según la cual “la metafísica occidental es
verdaderamente la fons y origo de todos los
colonialismos” (2009, p. 9) con la condición
de comprender por “metafísica occidental” el
orden epistémico monotópico perfectamente
auto-referencial instituido por la ilosofía
universitaria europea que reduce la relación
ARtIGOS
con el ser a la escritura del ser, es decir, a su
construcción en la obra escrita, la discusión
sobre el ser en la conversación bibliográica
sobre ontologías escritas, relacionadas,
elaboradas en el libro como posibilidades
de nuestro propio pensamiento. El mundo
analfabeta habiendo permanecido totalmente
extranjero a esta conversación silenciosa que,
por citar a Chraibi, desde entonces “sobrevolaba
la vida, muy alto por encima de los vivos y que
daba ejemplo de los héroes y de los arquetipos
en lugar de descender hacia millones de
anónimos”. Ninguna “otra metafísica”, ninguna
ruptura epistémica, inventada al interior de
este orden monotípico, – es decir, dibujados
sobre pieles de papel para hacer bajar los ojos
a los hombres- no alcanzará ninguna otra cosa
más que reavivar el mismo fons y origo.
¿Qué mejor introducción a lo que podría
ser la de-colonización de la escritura y de la
metafísica que la escritura de Catatau del
poeta Paulo Leminski? Un libro ilegible escrito
en primera persona por Descartes empezando
sus meditaciones metafísicas en el calor de los
trópicos y sólo llegando a articular un discurso
zoopsíquico en una lengua afro-indígena,
luso- asiática completamente inventada,
a-sintáctica, por la que -para hablar la lengua
de Gilles Deleuze, quien al borde de la muerte
describió con la más grande precisión lo que
había sido hacer (escribir) ilosofía toda su vidael esbozo del plano de inmanencia en el cual
hacer consistir el cogito, es constantemente un
fracaso. La fuente de todos los colonialismos
agotados. El sobrevuelo de la vida impide
por esto enredarse en la materia misma de la
escritura. Una pura catástrofe literaria en 200
páginas. El escritor congolés Sony Labou Tansi
encuentra en el anté-peuple4 la leyenda según
la cual los monos eran en otro tiempo miembros
de una tribu que, acabada por impuestos de un
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
77
ARtIGOS
NOTAS SOBRE A QUEDA DO CÉU DE DAVI KOPENAWA Y BRUCE ALBERT ...
gobierno implacable, había sido transformada
en mono por sus ancestros para preservarlos
del mal. No solamente a un mono, nadie pide
papeles a un loco, puesto que vagabundea
desnudo en la calle, su único pan debajo del
brazo. Devenir un mono es quizás una buena
línea de fuga para un escritor. O un loco, que
escribiría casi en una lengua privada, a tal
punto inconveniente, excepcional, que liberaría
deinitivamente el escritor del impuesto del
sentido escrito, del concepto irmado, de
la excepción convencional que le reclama,
para reinventarse constantemente, la cultura
urbana, occidental y moderna, en la que ha
sido educado. Catatau en este sentido puede
ser el libro de un mono, que subsiste en una
esquina extranjera como una prueba que nos
sería posible aún sustraer a toda biblioteca.
Lo mismo, bajo otra forma A queda do céu
participa de este cambio de-colonial que
permite acceder a los condenados de la
modernidad a la expresión escrita de una
memoria en la que la forma exclusivamente
corporal, sonora y visual hecha sólo para
escucharse, hace mucho tiempo en estado de
rumor. Gracias a Bruce Albert, la voz del pueblo
Yanomami y su mensajero, Davi Kopenawa, se
hace escuchar claramente. A queda do céu es
un libro legible, pero no es menos destructivo
que la auto-icción cartesiana de Catatau. Si
puede parecer como teme Jean Malaurie,
“fantasmagórica”, y si a veces Kopenawa erra
allí desnudo, inofensivo, con su pan bajo el
brazo en las calles de París o New York, no hay
que engañarse con ello: el pan de los locos, de
lo que no se juzga necesario controlar papeles
y que se dejan aproximar muy cerca de los
hombres de poder, quizá oculte un arma.
A queda do céu no es el toque de alarma que
previene: la guerra hace mucho está declarada.
Es un acto de guerra, esta “guerra ontológica”
de la que habla Viveiros de Castro en 2014 en
su conferencia en Cambridge (Who is afraid of
ontological wolf?, 2015) , verdadera “guerra
de mundos” dirigida desde inales de la Edad
Media - es decir desde la invención de la
Edad Media por los Modernos- en Europa y por
todas partes, por la Iglesia y los Propietarios,
contra los pueblos indígenas, los proletarios,
los locos y las brujas (es decir las mujeres) y
sus extranjeros, entidades y objetos activos
rebeldes a la división de materia y espíritu,
humano y no-humano, una guerra que nunca
ha cesado y se confunde con la historia del
Imperio. Una guerra ontológica que nada
tiene que ver con el conlicto afectado de los
ontologistas universitarios: una guerra real que
hurta vidas, roba y asesina cuerpos. Incluso
antes de abrir A queda do céu se estará atento
a la fotografía de Davi Kopenawa publicada en
la cubierta del libro donde aparece armado con
un machete el rostro y el cuerpo ennegrecido
por sus pinturas de guerra... Pues “Kopenawa”
es un nombre de guerra: el de los espíritus
agresivos de las avispas Kopena nutridos con
la sangre de un gran guerrero de los primeros
tiempos. Un nombre que ha sido dado a Davi
por sus espíritus xapiri, “en razón de la pasión
que tenía de confrontar los Blancos”. Imposible
de leer verdaderamente A queda do céu sin ser
asaltado, aguijonado y contaminado por un
enjambre de avispas.
En los trópicos, sea bajo la pluma de Leminsky, o
bajo la cólera de Kopenawa, los grandes hombres
europeos hablan una lengua enredada y parecen
pésimas excepciones. Es que el “gran hombre”
yanomani se distingue por su desapego de los
objetos y de los mercaderías que ofrece a otros
tan pronto como le fueron dadas, esforzándose
así por borrar sus propias marcas cuando el
“gran hombre” blanco se dedica a acumularlas.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
78
NOTAS SOBRE A QUEDA DO CÉU DE DAVI KOPENAWA Y BRUCE ALBERT ...
Pues es una misma cosa la acumulación de
cosas y la acumulación de marcas, una misma
e interminable acumulación primitiva la de
objetos materiales y la de líneas de escritura
impresa. Un capitalismo de la escritura
indisociable del dominio colonial. El escritor
blanco se emplea, con ayuda de sus editores y la
bendición ávida de la Universidad en acumular
marcas de su existencia ejemplar hasta ediicar
el monumento, o más precisamente, como
dicen los alemanes, el Denkmal, la huella (Mal)
que hará pensar (Denk) en él, ya que por la
escritura será necesariamente concernido a la
introspección, a inspeccionar y limpiar el fondo
egológico que constituye el fondo de identidad
del capitalismo blanco por el que pensar quiere
decir solamente pensar en sí mismo. Un fondo
abismal de la nada, ceropeu (zéropéen)5 dice
Chraibi, que relexionando en sí forma la
apariencia de un mundo.
¿Qué es lo que los grandes creadores de
ilosofías Platón, Descartes, Kant, y el Cristo
de los ilósofos, Spinoza (y sus apóstoles) – para
retomar la lista ejemplar que dan de ellos Gilles
Deleuze y Félix Guattari en ¿Qué es la ilosofía?
– tienen que ver con los mineros que asesinan los
Indígenas de la selva Amazónica? Precisamente
tal es la pregunta que se plantea a Kopenawa,
obligado a ponerla por la masacre de Haximu
en 1993: ¿qué grandes- hombres son estos
hombres que matan las mujeres y los niños de
su pueblo? ¿cómo hablan sus grandes hombres
para que puedan ser gente semejante? no se
trata de un problema de responsabilidad ética
o política, sino de un problema antropológico,
de un problema de perspectiva: ¿cómo estos
“comedores de tierra”, esta otra gente, piensa,
cómo se piensan, se relexionan como hombres?
¿cómo distinguen sus grandes- hombres? hay que
saber lo que hacen sus hombres excepcionales,
ARtIGOS
para comprender cómo los buscadores de oro
matan otros humanos. Es decir, no para vengar
sus hermanos, padres y madres que acaban de
morir, sino por mercadorías y malas palabras.
De suerte que “matan incluso las mujeres
y los niños”. Aún un asunto de apropiación y
acumulación de objetos, de palabras, de marcas,
brillantes y subsistentes, de capitalización
de todo lo que hará pensar en ellos. Una
introspección, un inventario feroz, acaparando
todo lo que concierne a sí mismos. Impactando,
cavan, contaminando la tierra como lo hace
de su propia nada, para extraer un brillo de
la tierra. Un trascendentalismo grosero, pero
tan eicaz como el de los hombres de letras, es
decir, parcialmente ilusorio: incluso un interés
para sí mismo.
A la inversa de esta acumulación frenética,
interminablemente primitiva, porque es de
entrada prevista como tal, el gran hombre
yanomami piensa sin escribir su pensamiento,
canta y baila sin registrar o transcribir su canto
y danza. A su muerte, sus objetos personales
serán dispersos, toda marca de su existencia
borrada, hasta su nombre que ya nunca será
pronunciado. Y esto sobretodo porque habrá
sido un “gran hombre”, un hombre generoso
que habría trabajado él mismo para no
dejar marcas- sino solamente para vivir. Se
comprende la cólera de Kopenawa ante las
vitrinas del Museo del Hombre parisino, repletas
de objetos habiendo pertenecido a hombres
vivos. Y la perplejidad ante la cólera de los
antropólogos blancos habituados a conservar
y contemplar sin tristeza las marcas de sus
grandes hombres: libros, imágenes, objetos,
ropas, muebles, casas... lo que recuerda su
existencia y que extrañamente no deja triste,
como si su deuda hubiera comenzado antes
de la muerte biológica por la acumulación de
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
79
ARtIGOS
NOTAS SOBRE A QUEDA DO CÉU DE DAVI KOPENAWA Y BRUCE ALBERT ...
marcas. Es que en realidad, el gran hombre
blanco ha consagrado su vida a hacer el duelo
de sí mismo construyendo día tras día el
monumento, la obra, que hará pensar en él
sin tristeza – exceptuando su entorno vivo, los
rechazos de la obra, si hay eso, los que habrán
producido la vida para ella. ¿cuántos amigos
hemos perdido así?
En 1975, en The invention of culture (1981), en
que formaba el proyecto de una antropología
no “sesgada hacia nuestra propia imagen de
nosotros mismos”, Roy Wagner se preguntaba
sobre la posibilidad de una “antropología
inversa”, o para retomar el término de Viveiros
de Castro de una “retro- antropología”, que
interpretaría la civilización industrial moderna
desde el punto de vista de una sociedad tribal.
Wagner evocaba como una realización de esta
antropología inversa el culto melanesio del
barco de carga: la manera en que los aborígenes
interpretaban en el orden de la vida y de las
relaciones humanas los órdenes estériles de
la técnica y de la producción capitalista,
metaforizan
como
bienes
espirituales
intercambiables en el marco de una economía
del don los cargamentos de mercadorías de
los aviones europeos fabricados únicamente
con el in de la producción. No es difícil ver
en las páginas de Wagner consagradas al barco,
una preiguración del apelativo lanzado en
1991 por Bruno Latour de una antropología
simétrica (Nous n’avons jamais été modernes.
Essai d’anthropologie symétrique, 1991) que
mostraba que en el fondo los modernos siempre
hicieron la misma cosa que lo que hacen los
indígenas, que su cultura material y técnica
no es, como tal, ni exclusiva ni estérilmente
material (capitalista), sino que opera también
positivamente en el orden de las relaciones
sociales y espirituales. El aporte más signiicativo
de esta retro- antropología sería una revisión
completa del estatus ontológico del objeto
industrial, devenido indiscretamente objetivo
y subjetivo, natural y cultural (social), técnico
y mágico. El ontologista europeo preocupado
por presentar mejor (y promover) la metafísica
de sus ingenieros podría así apoyarse en la
representación y adaptación a su pensamiento
que proponen a otros pueblos.
Esto es olvidar una cosa: que los melanesios,
entrenados para formar su cuerpo de defensa,
entendían el barco como un desvío, una
captura de lo que les regresaba, esforzándose
a su turno en construir con bambús puestos de
radio, torres de control y aeropuertos enteros
para atraer a ellos los aviones de los blancos,
examinando el cielo días enteros, incluso
mujeres y niños, dejando la vida, su vida,
para librarse exclusivamente a esta absurda
espera milenaria. Aby Warburg era claramente
consciente de esto: esquivando el poder de
relámpago de la serpiente de cobre de Edison,
el tío Sam, el heredero del buscador de oro,
había ingenuamente “eliminado al indio” . El
barco no es una imagen inversa de la cultura
occidental susceptible de poner al día su
aspecto tribal, este por el que escaparía a los
principios de la modernidad que proclama: es
más bien una simple y lamentable imagen de
la colonialidad, es decir de la destrucción de
los pueblos indígenas. En Acra, el culto por
el Haouka, esta religión africana de dioses
de la Ciudad o de la Técnica, no tiene como
resultado, como lo nota Jean Rouch que, en
Les Maîtres Fous, ilma el ritual -la posesión de
un Negro por Haouka “cabo de gendarmería”,
por otro lado por Haouka “conductor de
locomotora”, de otro lado aún por Haouka
“mujer del doctor”... – que vuelve sus adeptos
más dóciles al trabajo que reclama de ellos la
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
80
NOTAS SOBRE A QUEDA DO CÉU DE DAVI KOPENAWA Y BRUCE ALBERT ...
sociedad colonial. Eliminar su cólera. En ningún
caso la “antropología inversa” de Haouka
serviría como lo cree curiosamente Deleuze en
Cinema 2 paradigma de la invención del pueblo
por venir.
Invitado una noche por los blancos que lo
acompañaban en su viaje a admirar la Torre
Eiffel, Kopenawa es rápidamente tentado por
la contra-antropología del barco: “aunque
todos lo ignoran, esta construcción es en todos
los puntos semejante a la imagen de las casas
de los xapiris, rodeada en todas partes por
multitud de caminos luminosos. ¡Es verdad!
¡Esta claridad brillante es la del metal de los
espíritus! Los blancos de esta tierra han debido
capturar la luz de seres destellantes yapirari
para encerrarlos en esta antena! Se queda un
tiempo perplejo, después retoma, es decir
regresa al hilo de su cólera que indica que la
antropología de los Blancos en la que se libra
no ofrece una imagen solamente inversa,
indígena, de lo que piensan de ellos mismos
(una imagen de ellos mismos en un espejo
indio), pero que sea la más exacta posible, del
punto de vista de la episteme india (en la que
los espejos no son relejos sino mostradores):
“pese a su semejanza, la luz de esta casa de
hierro parece sin vida” (no una metaforización
de la técnica como vida), “no emanaba ninguna
sonoridad. Si estaba viva como es una verdadera
casa de espíritus, se escucharía brotar de su
luminosidad la estridencia incesante de cantos
de los ocupantes. Su centelleo propagaría su
voz. Pero este no es el caso. Permanece inerte
y silenciosa” La episteme del sueño, es decir
del psycotropo chamánico, vegetal, es la única
herramienta de esta contra-antropología antibarco. Articulando inseparablemente en la
visión la luminosidad y el canto -sólo viendo
luces cantadoras- prohíbe que se vea en la
Torre Eiffel brillando con miles de luces (¿la
ARtIGOS
Torre Eiffel sideral?) otra cosa que un ejemplo
de las innumerables celebraciones narcisistas
por los Blancos de la ingeniosidad que es suya
y gracias a la que pronto estaremos todos en
deuda de habitar un Planeta invivible. Es decir
una prueba suplementaria de su ignorancia.
Traducción de Carolina Villada Castro
REFERENCIAS
KOPENAWA, D.; ALBERT, B. La chute du ciel.
Paroles d’un chaman yanomami. Préface de
Jean Malaurie, París: Plon, 2010 (Coll. Terre
Humaine) [A queda do céu. Palavras de un
xam ã yanomami. Trad. Beatriz PerroneMoisés. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.
INGOLD, T. Une brève histoire de lignes.
Trad. Sophie Renaut. Bruxelas: Zones
Sensibles, 2011.
LATOUR, B. Nous n’avons jamais été
modernes. Essai d’anthropologie symétrique.
Paris: La Découverte, 1991. (Coll. L’armillaire)
MIGNOLO, W. La colonialidad a lo largo y
a lo ancho: el hemisferio occidental en el
horizonte colonial de la modernidad. En:
LANDER, E. (comp.). La colonialidad del
saber: eurocentrismo y ciencias sociales,
perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2000.
TANSI, S. L. L’Anté-peuple. Paris: Seuil, 2010.
(Coll. Points)
VIVEIROS DE CASTRO, E. Métaphysiques
cannibales: lignes d’anthropologie
poststructurale. Trad. Oiara Bonilla. Paris:
Presses Universitaires de France, 2009
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
81
ARtIGOS
NOTAS SOBRE A QUEDA DO CÉU DE DAVI KOPENAWA Y BRUCE ALBERT ...
en función de la colonialidad del saber. Este
libro-experimento que al mismo tiempo implica
un pacto etnográico y un pacto chamánico
introduce en los intersticios de la red textual un
lujo o, al modo de la preparación chamánica,
un soplo al provocar nuevos usos del libro como
artefacto de resistencia y de la escritura como
plano de expresión de esas multiplicidades
extranjeras – humanas y no-humanas – que
pueblan los cantos y pensamientos chamánicos.
Escritura-acontecimiento
que
interrumpe
la colonialidad del saber desdoblando otros
posibles epistemológicos.
[Metafísicas canibais - elementos para uma
antropologia pós-estrutural. São Paulo: n-1
edições, 2015].
______. Who is afraid of the ontological
wolf? Some Comments on an ongoing
anthropological debate. the Cambridge
Journal of Anthropology, v. 33, n. 1p. 2-17,
2015.
WAGNER, R. the Invention of Culture.
Chicago: University of Chicago Press, 1981.
RESONANCIAS dE tRAdUCCIóN
Carolina Villada Castro
6
Las Notas sobre A queda do céu de Davi
Kopenawa y Bruce Albert por un lector blanco
de Jean-Christophe Goddard, cuya traducción
del francés al español disponibilizamos, resuena
entre la serie de murmullos provocados por la
publicación de La chute du ciel. Paroles d’un
chaman yanomami (2010) – y sus respectivas
traducciones al inglés (The Falling Sky. Words
of a Yanomami Shaman. Trad. Nicholas Elliott
y Alison Dundy. Cambridge: Harvard University
Press, 2013) y al portugués (A queda do céu.
Palavras de un xamã yanomami. Trad. Beatriz
Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015) –, gracias a la escucha incisiva
de Goddard del potencial conceptual,
ético y político que opera en la red textual
antropocéntrica y etnocéntrica de la metafísica
de occidente.
En primer lugar, el agenciamiento decolonizador de la escritura que Goddard destaca
en A queda do céu al desviar el uso meramente
egológico, introspectivo e xenófobo del libro
En esta perspectiva, otra de las discontinuidades
básicas preponderadas por Goddard en A queda
do céu no sólo concierne a la incompatibilidad
epistémica que propone; sino, de un modo
más apremiante, a la guerra ontológica o
guerra de mundos que interpela. La metafísica
fuente y origen de los colonialismos como dice
Viveiros de Castro (2015) se efectúa como
práctica genocida y etnocida. De este modo,
si como señala Goddard este libro es contraantropológico, es decir, si sigue los rumbos
de la antropología inversa de Wagner y de la
antropología simétrica de Latour, esto no implica
tan sólo una discontinuidad epistemológica;
sino la inminencia de una cosmopolítica. De
este modo, además de renovar el discurso
etnográico de la antropología amerindia, “A
queda do céu será un divisor de águas, como eu
já disse, na relação inteletual e política entre
indios e não indios nas Américas” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2015, p. 26) tal como apunta Viveiros
de Castro en el prefacio de la edición en
portugués, aún más, efectúa un “acontecimento
político e espiritual” (VIVEIROS DE CASTRO,
2015, p. 15).
A queda do céu que reverbera en estas notas
de un lector blanco, nos indica así el potencial
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
82
NOTAS SOBRE A QUEDA DO CÉU DE DAVI KOPENAWA Y BRUCE ALBERT ...
ético, poético y político que acontece en
la escritura, a través de los intersticios
ingobernables de esa red textual anónima
y siempre ininita del pensamiento, aún
más, de las multiplicidades humanas y nohumanas que mantienen su vitalidad. Pues
como instigaran Deleuze - Guattari exaltando
el pensamiento salvaje “todo pensamiento
es tribu, lo contrario de un Estado” (1980).
Así, al conjurar la colonialidad del saber, al
provocar una discontinuidad epistemológica
y una confrontación de ontologías, A queda
do céu conjura al mismo tiempo los órdenes
imperiales genocidas y etnocidas. Por todos
estos motivos, esta traducción intenta propagar
el eco yanomami a través de las instigaciones
y devenires de los pensamientos chamánicos
entre lectores no indios.
REFERENCIAS
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux.
Paris: Éditions de Minuit, 1980.
ARtIGOS
Recebido em: 1/04/2016
Aceito em: 10/04/2016
* Texto de libre acceso, disponible en: https://www.
academia.edu/18065890/Notes_dun_lecteur_blanc_sur_
La_chute_du_ciel_de_Davi_Kopenawa_et_Bruce_Albert.
Agradecemos a su autor Jean-Christophe Goddard posibilitar
esta traducción.
2
[N. del T.] Escrito y editado inicialmente en francés, La
chute du ciel. Paroles d’un chaman yanomami, [Préface de
Jean Malaurie. Paris: Plon]. Actualemente se cuenta con
traducción reciente al portugués: A queda do céu. Palavras
de un xamã yanomami [Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015].
Escritor marroquí en lengua francesa. Algunas de sus obras
son: Le Passé simple (1954); De tous les horizons (1958); La
Foule (1961, 2016); La Mère du printemps (1982); Naissance
à l’aube (1986).
3
Anté-peuple o el pueblo perseguido, novela del escritor
congolés
4
5
[N. del T.] Traducimos el neologimo zéropéen por ceropeu
intentando mantener el efecto mordaz del término
propuesto por Chraibi a propósito del antropocentrismo
europeo.
Carolina Villada Castro. Profesional en ilosofía, Universidad
de Antioquia, Colombia. Estudiante maestría Estudios
de la traducción UFSC-PGET, Brasil. E-mail: carolina.
villadacastro@gmail.com
6
GODARD, J-C. Notes d’un lecteur blanc sur
La chute du ciel de davi Kopenawa et Bruce
Albert. 10/02/2016 Disponible en: <https://
www.academia.edu/18065890/Notes_dun_
lecteur_blanc_sur_La_chute_du_ciel_de_Davi_
Kopenawa_et_Bruce_Albert>.
KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu.
Palavras de un xamã yanomami. Trad. Beatriz
Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015.
VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais
- elementos para uma antropologia pósestrutural. Trad. Oiara Bonilla. São Paulo: n-1
edições, 2015.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
83
ARtIGOS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
84
ARtIGOS
Na beira do Rio Doce1: antropoceno
e mobilização no rastro da
catástrofe*
[1]
Lorena Regattieri [2] e Marcelo Castañeda [3]
Resumo: Esse artigo tem como objetivo apresentar, com relexões teóricas e relatos etnográicos,
a catástrofe do rompimento da barragem de Fundão, localizada em Mariana (MG), pertencente à
mineradora Samarco S.A., Vale e à anglo-australiana BHP Billiton. Tendo no rompimento da barragem
a marca de uma tragédia anunciada, que liberou bilhões de rejeitos tóxicos no Rio Doce, mapeamos,
no rastro sócio-histórico da catástrofe, os elementos constituintes desse acontecimento transversal ao
estatuto cosmológico moderno (no dualismo Natureza e Cultura). A experiência de realização de um
documentário na cidade de Colatina, no Espírito Santo (ES) e a vivência das manifestações contra a
Samarco – Vale/BHP, são o fundo de movimentação para uma investigação do modo de existência humano
em relação com a natureza. Preenchemos a lacuna de tempo entre o rompimento das barragens em
Bento Rodrigues (MG), o fechamento do acordo que vai reger a recuperação do Rio Doce e a mitigação
dos danos causados pela empresa, à luz do perspectivismo ameríndio ou multinaturalismo. Por im,
compomos, com a proposta ecosóica de Guattari e o pensamento indígena, uma intervenção no crimecatástrofe que atingiu o Rio Doce e aqueles que vivem na sua beira.
Palavras-chave: Rio Doce. Vulnerabilidade. Antropoceno.
On the border of the Rio Doce: anthropocene and the mobilization in the wake of a
catastrophe
Abstract: This article aims to present with theoretical relections and ethnographic reports of the
catastrophe Fundão dam burst, located in Mariana (MG) belonging to the mining company Samarco SA
(which belongs to Vale and Anglo-Australian BHP Billiton). Since the dam burst, known as an “announced
tragedy”, has released 60m cubic meters of mud into the water systems of hundreds of town and cities
downstream in the Rio Doce, we map the socio-historical trail of this catastrophe that has elements in
the wake of the constitutution as a cross event direct linked to the modern cosmological status (seen
in the dualism Nature and Culture). The experience of making a documentary in the city of Colatina,
Espírito Santo (ES) and the vivid experience of the demonstrations against Samarco (VALE-BHP), act
as the background to an investigation of the human mode of existence in relation to nature. We aim
[1]
[2] Lorena Regattieri é mestranda em Comunicação e Territorialidades, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal do Espírito Santo (PPGCom/UFES). Pesquisadora no Laboratório de Estudos em Imagem e Cibercultura
(LABIC). E-mail: lorenaufes@gmail.com
[3] Marcelo Castañeda é doutor em Ciências Sociais, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCom/UERJ). E-mail: celocastaneda@gmail.com
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
85
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
to ill the gaps in time between damn burst in Bento Rodrigues (MG), the signed agreement that will
rule the recovery of Rio Doce and the mitigation of the damage caused by the company - in the light
of amerindian perspectivism or multinaturalism. While, in the end of the article, we compose with
Guattari ecosophy’s proposal and the indigenous thought an intervention considering the crime disaster
that befell the Rio Doce and those living on their border.
Keywords: Rio Doce. Vulnerability. Anthropocene.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
86
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
INtROdUÇÃO
Omama escondeu seu metal lá no meio
dos morros das terras altas, onde também
fez jorrarem os rios. É de lá que surgem
os ventos e o frescor da loresta. É de
lá que vem sua fertilidade. Quando
fazemos dançar a imagem desse pai dos
minérios, ela se apresenta a nós como
uma montanha de ferro subterrânea, cheia
de imensas hastes incadas em todos os
lados. Omama a colocou nas profundezas
do solo para manter a terra no lugar e
impedir que a ira dos trovões e dos raios
a faça tremer e a desloque. Cravou-a
lá como nós fazemos com os postes de
nossas casas, para que elas não balancem
durante as tempestades. Assim, esse ferro
está eniado na terra como as raízes das
árvores. Ele a mantém irme como fazem
as espinhas com a carne dos peixes e os
esqueletos com a de nosso corpo. Torna-a
estável e sólida, como nosso pescoço faz
nossa cabeça icar reta. Sem essas raízes
de metal, ela começaria a balançar e
acabaria desabando sob nossos pés. Isto
não acontece em nossa loresta, pois ela
está no centro da terra, onde esse metal
de Omama está soterrado. No entanto,
entre os brancos, em seus conins, onde o
solo é mais friável, acontece às vezes de
ela tremer e se romper, destruindo cidades
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 360-361).
No dia cinco de novembro de 2015, às 15h30m,
a Agência Nacional de Águas (ANA) registra o
rompimento da barragem de Fundão, localizada
em Mariana (MG), pertencente à mineradora
Samarco S.A. (que neste artigo chamaremos de
Samarco – Vale/BHP, uma vez que a primeira
pertence a Vale e à empresa anglo-australiana
BHP Billiton). Segundo informações da ANA,
a onda de rejeitos atingiu a barragem de
Santarém e povoações nas margens no Rio
Gualaxo do Norte, do Rio do Carmo até chegar
ao Rio Doce. No acompanhamento da Frente da
Lama, a água contaminada passou pela Estação
Fluviométrica Cenibra, no município de Belo
Oriente; pela Usina Hidrelétrica Baguari e a
ARtIGOS
Estação Fluviométrica Governador Valadares,
em Governador Valadares, passando por
Resplendor; pela Usina Hidrelétrica Aimorés,
Baixo Guandu, Colatina, até a foz do Rio Doce
às 15h do dia 21 de novembro.
Um salto no tempo. No dia 2 de março de
2016, portanto quase quatro meses depois do
rompimento das barragens em Bento Rodrigues
(MG), o governo federal irmou acordo com a
Samarco – Vale/BHP para começar a dar conta
dos variados danos. Até esta data, nada foi
efetivamente feito em termos de reparação
para estabelecer novos modos de existência
para quem os teve destruídos. Quando muito,
as empresas que causaram o dano procuraram
fornecer água mineral nem sempre em
condições adequadas ou que dessem conta da
demanda da população afetada.
O que mais chama atenção, fora o fato de
não haver uma punição do Estado brasileiro
sobre as empresas, é como os recursos vão
ser geridos: uma fundação privada, formada
pelas empresas, que serão assim responsáveis
pela reparação do desastre que elas mesmas
causaram, “com controle público” que se dará
através de um comitê interfederativo formado
por representantes do governo federal, dos
governos estaduais, de municípios afetados
e do Comitê da Bacia do Rio Doce. O acordo
foi selado com a presença de Dilma Rousseff e
Michel Temer, que sequer foram aos municípios
atingidos. Vale destacar que o governo federal
igura como um dos principais acionistas da
Vale, por meio do BNDES. Neste artigo, vamos
nos voltar para os atingidos, que provavelmente
não serão ouvidos por esta fundação recémcriada.
Cabe-nos preencher essa lacuna de tempo
entre o rompimento das barragens em Bento
Rodrigues (MG) e o fechamento do acordo
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
87
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
que vai reger a recuperação do Rio Doce e a
mitigação dos danos causados pelas empresas.
Então, faremos aqui uma breve recuperação
dos principais pontos deste processo, para
apresentar os caminhos que vamos seguir na
construção do texto.
Podemos destacar alguns eixos referentes ao
primeiro momento que corresponde aos dez
primeiros dias que se sucederam ao rompimento
das barragens e que precederam o ato de
protesto em frente à sede global da Vale, no
Rio de Janeiro, realizado em 16 de novembro
de 2015.
O primeiro eixo é o papel da mídia na cobertura
da tragédia quando a mídia corporativa tentou
proteger a Vale, um de seus anunciantes. Daí a
importância de analisar o protesto em frente
à sede global da empresa, um movimento que
implicou uma mudança da narrativa midiática
em relação ao crime-catástrofe em Mariana
(MG). Depois da ação em frente a sede da Vale,
a mídia passa a vincular a empresa Samarco
com as suas acionistas: Vale e BHP.
de qualquer discussão acerca do modelo de
desenvolvimento estimulado pelo governo
federal. Ainal, estamos a falar de uma tragédia
socioambiental devastadora que nos coloca
a necessidade de questionar seriamente o
desenvolvimentismo predatório e irresponsável
com chancela governamental. Vale lembrar que
a exploração de minérios compõe o circuito
das commodities, junto com o agronegócio e o
mercado da carne, sustentando a atualmente
frágil balança comercial brasileira. São
escolhas feitas em proveito de um modelo de
desenvolvimento que considera a natureza
como fonte de exploração. O questionamento
dessa lógica deve, portanto, ser radical.
O quarto eixo remete à memória das tragédias.
Pois o que se iniciou em Bento Rodrigues (MG)
e se expandiu por Minas Gerais, Espírito Santo e
alcançou a Bahia não foi a primeira e nem será
a última tragédia socioambiental. Mais algum
tempo e não se falará mais sobre esse tema, ao
menos até que a próxima tragédia tome forma.
Neste sentido, a memória é cada vez mais uma
questão fundamental das lutas por reparação.
O segundo eixo remete à tentativa dos governos
em minimizar ou negar a dimensão catastróica
dos danos que estariam por vir, em uma
operação que envolveu o governador Fernando
Pimentel (PT-MG) e a presidente Dilma Rousseff
(PT). A Vale não aparecia como responsável
por arcar com as reparações necessárias aos
atingidos, considerando que, se para lucrar, não
há medida em relação aos riscos, então quando
estes se apresentam que sejam assumidos. De
certa forma, a lama da Samarco – Vale/BHP
relete a lama da política que estourou em
Bento Rodrigues (MG), e mostra nossa paralisia
frente ao conluio do consenso forjado pelo
Estado/corporações.
O quinto eixo mostra a força que a solidariedade
e a fraternidade assumem para dar conta do
crime-catástrofe4 que se iniciou em Bento
Rodrigues (MG). Uma solidariedade sociotécnica
que se mostra em uma multiplicidade de
páginas e eventos no Facebook – que modula
os contatos de bilhões ao redor do mundo,
mas permite aberturas. Desde a organização
de protestos, passando pela contrainformação
até chegar na organização de doações, muitas
ações se tecem em proveito da reparação dos
territórios atingidos, para além das ações ditas
oiciais. Considera-se que cada ação é legítima
e importante em diferentes escalas e tempos.
O terceiro eixo a ser ressaltado é a ausência
A ideia de crime-catástrofe socioambiental
começou a ganhar força nas redes sociais e nos
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
88
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
movimentos que atuam com justiça ambiental ou
mesmo entre aqueles que defendem os atingidos
por barragens, como o MAB, ou atingidos pela
Vale. Entre os atingidos: pessoas, animais,
vegetação, rios, mar e cidades variadas, sem
falar nos mortos e nos territórios irrecuperáveis.
As responsabilidades remetem à Samarco – Vale/
BHP, mas também aos governos e estruturas
estatais de licenciamento e iscalização. Assim,
o problema é socioambiental, mas também
econômico e político, e envolve principalmente
a regulação do setor de mineração no país e os
interesses de fusão e aquisição por empresas
estrangeiras. É uma caixa de pandora a ser
aberta e questionada. A Vale é uma das donas
da Samarco, junto com outra gigante da
mineração, a anglo-australiana BHP, e ambas
são responsáveis pelo desastre de Mariana.
O rompimento das barragens de rejeitos é
o resultado do desrespeito a questões de
segurança, tanto dos trabalhadores quanto
das comunidades próximas, ante a crescente
intensidade da extração mineral e a busca
desenfreada por lucro.
Desta forma, este artigo visa contribuir para
a discussão acerca das vulnerabilidades
que se evidenciam a partir de uma tragédia
anunciada, do conceito de Antropoceno e da
imposição violenta que o capital estabelece
sobre a natureza. A partir daí, vamos nos voltar
para um protesto que abriu possibilidades
de mudar a narrativa midiática a respeito da
responsabilidade da Samarco – Vale/BHP em
relação à tragédia que começou em Bento
Rodrigues (MG), destacando o papel das
tecnologias de comunicação nas conexões que
coniguram uma rede de solidariedade. Por im,
nos dedicamos a fazer uma descrição densa da
mudança nos modos de existência em Colatina
(ES), a partir de uma inspiração etnográica.
ARtIGOS
A tERRItORIALIdAdE dO RIO dOCE NO
ANtROPOCENO
Conceitualmente, o debate sobre território,
territorialidade e seus aparentados nos conduzem
para uma noção de multiterritorialidade.
Esta, por sua vez, segundo Haesbaert (2004),
desenvolve-se num complexo envolvimento
dos processos de desterritorialização e (re)
territorialização. E quando falamos em
desterritorialização, nunca é como o outro lado
da territorialização, não estamos falando de
dois, mas, sim, de multiplicidade e variação,
ou seja, de multiterritorialização. O movimento
desterritorializante detém um mito incapaz de
dar conta da imanente (multi) territorialização
na vida dos sujeitos, agrupamentos e da natureza.
Assim, “mais do que a desterritorialização
desenraizadora, manifesta-se um processo de
reterritorialização espacialmente descontínuo
e extremamente complexo” (HAESBAERT,
1994, p. 214). O autor ainda argumenta que a
defesa da desterritorialização em um âmbito
neoliberal-desenvolvimentista
faz
apenas
ascender um falso plano de velocidades e
vivência do espaço.
Na contemporaneidade, o neoliberalismo emula
uma transformação via acesso a bens de consumo
para os mais pobres, enquanto os mais ricos
vivem a luidez entre as fronteiras (sejam reais
ou virtuais). Esse rearranjo territorial resulta
da compressão do espaço-tempo (HAESBART,
2004), envolve mudanças nas relações ligadas à
presença-ausência e à lexibilidade do virtual.
Nesse sentido, aumentam as desigualdades e
intensiicam a concentração de renda. Para se
ter uma ideia dessa paisagem histórico-social,
segundo o Instituto Brasileiro de Geograia e
Estatística (IBGE), Vitória, capital do Espírito
Santo, segurava o posto de maior Produto
Interno Bruto (PIB) por habitante anual do Brasil
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
89
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
entre as capitais, chegando a R$ 61.790,59
em 20095. Os dados ainda apontaram outras
discrepâncias, como um abismo entre os bairros
considerados ricos e aqueles da periferia, onde
a renda domiciliar varia de R$ 766 a R$ 35 mil6,
e o chamado “muro invisível” na Avenida Leitão
da Silva, dividindo a cidade entre brancos e
negros e pardos7.
Com uma lenta distribuição de renda e um
investimento em políticas de infraestrutura
como o Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), o grande trunfo da gestão Lula (20032010) e Dilma (2010-2016) seguiu à risca o
processo desterritorializante neoliberal. As
grandes obras, como as do PAC, as da Copa
do Mundo, as usinas hidrelétricas, realizamse por meio da remoção de pessoas de seus
territórios, desconsiderando seus modos de
vida, num movimento acelerado e violento
de reterritorialização. A remuneração do
capital ica no centro da equação, ignorando
a dimensão social. Os oligopólios empresariais
aproveitam-se do mito da desterritorialização
para avançar em medidas de desmantelamento
do Estado, pressionando os governos à medida
que impõem seus investimentos, implicando
em políticas públicas de roupagem social, mas
que não passam de um “espaço de saída para
um capital inanceiro excedente global”8. Em
vez de políticas sociais, temos, assim, políticas
econômico-inanceiras.
Haesbaert (2004) aponta que esse processo de
desterritorialização neoliberal é dado de uma
maneira dicotômica, uma vez que ele segue o
modelo clássico sociológico, que separa tempo
e espaço, natureza e sociedade, material e
simbólico, local e global, território e rede. O
autor sugere abandonar essas visões dualistas,
visto que estas noções ignoram o sentido
relacional do mundo, privilegiando, nesse
sentido, o humano e as vicissitudes do mercado
inanceiro, esquecendo o caráter imanente do
território. Até porque, como temos visto, nos
últimos anos, no Brasil e em outros países da
América Latina, as consequências práticas dessa
visão de mundo têm se dado no afrouxamento
das licenças ambientais, na não iscalização
dos territórios vulnerabilizados pelo usufruto
humano, na manipulação acelerada em larga
escala da natureza.
Vivemos em uma nova época geológica: o
Antropoceno, noção proposta por Crutzen
e Stoerner (2000) na reunião histórica do
International Geosphere-Biosphere Program
(IGBP)9, em fevereiro de 2000, na cidade
de Cuernavaca, México. Esse encontro e a
newsletter de maio do mesmo ano colocaram
o debate sobre a Terra em um novo plano.
Desde então, a comunidade cientíica apontou
a necessidade de compreender que o Sistema
Terra funciona de modo integrado. Em toda
sua complexidade, da escala global à escala
regional, os processos físicos, biológicos e
químicos da Terra e suas interações com
sistemas humanos precisavam ser estudados
cientiicamente por meio de projetos
multidisciplinares. O IGBP introduz, assim,
o desaio da construção colaborativa entre
as ciências, na medida em que avanços em
nossa compreensão cientíica são necessários
para contribuir para que a humanidade possa
desenvolver formas que sustentem o sistema
de suporte da vida humana.
Esse é o tempo de pensar e agir, e de
humildemente deixar o excepcionalismo
humano de lado (HARAWAY, 2014). Trata-se
de uma época em que os humanos existem
como força geológica, e as marcas deixadas
já são consideradas irreversíveis10. As
atividades humanas podem produzir mudanças
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
90
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
ambientais globais, impactando e alterando
processos-chave no Sistema. Ainda assim, o
termo Antropoceno deixa de fora da história
complexas questões relativas aos metabolismos
e agenciamentos (HARAWAY et al., 2015). A
pergunta formulada por Haraway e endereçada
a essa narrativa em curso é a seguinte: que
nome seria grande o bastante para nomear
o tamanho do problema diante de nós? Com
essa indagação, compreendemos que nossa
tarefa é continuar, portanto, enredando entre
fabulações especulativas e feministas, icção
cientíica e fato cientíico. Esse é um projeto
contínuo (não nos cabe aqui tomar toda essa
discussão), e de modo desconiado faz uso
airmativo da noção de Antropoceno, pois
Importa que histórias contam histórias,
que
conceitos
pensam
conceitos.
Matematicamente,
visualmente
e
narrativamente,
é
importante
que
iguras iguram iguras, que sistemas
sistematizam sistemas. [...] precisamos de
histórias (e teorias) que sejam grandes o
bastante para reunir as complexidades e
manter as fronteiras abertas e ávidas por
surpreendentes conexões novas e antigas
(HARAWAY, 2015, p.160).
Podemos debater sobre o nome adequado, ou
sobre quando começou, mas acordemos com
Haraway (2014) sobre viver com o problema.
O Antropoceno, para além dos “mil nomes de
Gaia”11 e das divergências entre nomeações, é
necessário e nos é caro pela urgência de pensar
e, não menos importante, de senti-lo. Em
diálogo com Stengers (2014), utilizemos esse
conceito como instrumento, então. Da ruptura
da barragem, vamos situar o Antropoceno no
rompimento com o grande relato humano da
história, passando a operar sem o dualismo
clássico que separa Natureza e Cultura (LATOUR,
1994). Assim, entendemos que o rompimento
da Barragem de rejeitos da Samarco S.A., em
ARtIGOS
Mariana (MG), é um acontecimento de ordem
social, ambiental, geológica e política12.
O crime-catástrofe em Mariana é para o
Brasil aquilo que Stengers (2015) aponta
como um ponto de partida diferente – é do
conhecimento de todos, agora, o que anos de
lexibilidade com as licenças ambientais e a
ignorância para com os impactos da mineração
podem causar. E quando a contenção rompe? A
barragem rompeu, ora, é força! Não sabendo
como contornar mais a desordem, a Terra
é terreno concentracionário de vazão de
rejeitos tóxicos ou do lixo como produto do
consumo. Pouco tempo depois, a presidenta
Dilma Rousseff e a ministra do Meio Ambiente,
Izabella Teixeira, participaram da Conferência
da Organização das nações Unidas (ONU) sobre
Mudanças Climáticas, a COP2113. Em meio ao
debate sobre a redução das emissões de gases
de efeito estufa (GEE) e o limite do aumento
da temperatura do planeta, ambas tentavam
explicar o que acontecia no Brasil enquanto
imagens de uma lama tóxica que avançava pelo
Atlântico circulavam pelo mundo.
A politica de meio ambiente do Estado brasileiro
envolvendo a construção de barragens e
hidrelétricas, além dos conlitos territoriais
entre indígenas, ruralistas e garimpeiros pelo
Brasil, são fundantes do cenário de catástrofe
do Antropoceno no país. Assim como o marcante
furacão Katrina nos Estados Unidos e os efeitos
das mudanças climáticas ao redor do mundo,
viver no tempo das catástrofes, nesse caso,
assinala a sintomática tragédia anunciada,
a saber, o crime-catástrofe de Mariana é um
acontecimento parte da catástrofe insustentável
desse tipo de modelo de desenvolvimento ditado
pelas necessidades do capitalismo (STENGERS,
2015). Os “responsáveis” pelo sistema
burocrático e pelas leis, que supostamente
deveriam proteger as lorestas e os povos
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
91
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
ameríndios, opera de modo estrategicamente
corrompido ou lexibilizado para permitir o
crescimento econômico14. A época mudou e não
estamos preparados para produzir as respostas
necessárias, porque os “responsáveis” – o
Estado e os empresários – não são capazes
de reletir além do domínio capitalista, nem
mesmo para se manterem vivos. Os nossos
governantes sempre nos pediram concessões
em nome do progresso, ainal, era preciso
crescer mais, ou produzir mais, ou extrair mais.
Os questionadores e contrários ao progresso a
qualquer custo que ensaiam um movimento,
sejam eles pesquisadores e cientistas ou
apenas cidadãos dispostos a reaprender a arte
do cuidado, são taxados de inimigos da ciência.
O recado de Stengers (2015) é muito claro, mas
nada tranquilo: não coniar no Estado diante da
intrusão de Gaia.
O capitalismo vai agir para homogeneizar as
regras, com ou em nome de qualquer ponto
de vista da regra. Exceto que, como vemos
no caso da Samarco – Vale/BHP, as empresas
não são qualquer um. O progresso mobiliza
a todos e, com a máquina capitalística, nos
tornou arrogantes em face da competitividade,
de modo que passamos a não desconiar.
Nos demos o direito de não ter cuidado e
adotamos o nosso modo de vida como im de-,
a evolução da vida na terra converge nisso que
se simplicou como necessidade de crescer.
Para os nossos responsáveis15, os índios e
“objetores de crescimento” (STENGERS, 2015,
p.15) são obstáculos que devem reconhecer
como funciona o desenvolvimento – com o
Estado autoritário e as empresas livres não
há composição. Essa é a nossa zona de
experiência devastada que precisamos retomar
(PIGNARRE; STENGERS, 2011, p. 137). A fábrica
do capitalismo e seus atores no Antropoceno
nos convocam para intervir, tomar de volta
um território, munidos coletivamente da arte
de ter cuidado; trocando em miúdos: meter o
nariz onde nunca somos chamados. Complicar e
perturbar o Estado e os empresários resistindo
aos apelos da simpliicação das lutas do
aquecimento global. Pensar, imaginar e agir
articulando teoria e práticas sociais ao abrir
caminho para a retomada daquilo que nos é
comum, rearranjando nossas próprias ideias
sobre viver junto (se alimentar, viajar, habitar),
ou seja, a vida em comum.
No Antropoceno não há lugar, nem tempo,
para uma superação dialética dos conlitos
envolvidos. Não há síntese, nem apogeu, ou um
ponto máximo até onde se pode aguentar. Essa
trama polifônica não se resolve simpliicando,
e o investimento na autoridade humana sobre
os outros habitantes da Terra já se mostrou
desastrosa. Portanto, não se trata de uma
resposta, mas, sim, de operacionalizar um
processo de criação (STENGERS, 2015), sem
medo ou paralização. Provocar um movimento
em cadeia de experiência radical e libertadora
– aceitar aquilo que é perecível.
Com efeito, a ideia de sampler16 parece ser
justamente aquilo que nos evoca o sentir e agir
que movimenta, não o pânico diante das tarefas
do Antropoceno. Vimos, na ideia de sampler,
uma oportunidade, ou possível caminho, de
trazer à luz novas conexões diante do crimecatástrofe Rio Doce-Brasil. Esse sampleamento
lida com uma multiplicidade de conceitos
e práticas políticas, uma vez que o uno nos
enclausura no velho slogan “outro mundo é
possível”, bem como a dicotomia nos achata
diante dos desaios impostos pelos nossos
“responsáveis”.
Nesse plano comum, permite-se avergir –
rearranjo contínuo e descontínuo “sobre as
posições de ‘termo’ e de ‘função’” (VIVEIROS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
92
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
DE CASTRO, 2015, p. 69). Nesse campo, estamos
lidando com um jogo de alianças, trata-se de
conceber que “ali onde toda coisa é ‘humana’,
o humano é toda uma outra coisa.” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2007, p. 114). Assim, passando
entre Viveiros de Castro (2015), Stolze Lima
(1996) e Valentim (2013), convocamos o
leitor a renunciar, por um breve instante,
a sua posição autorreferencial, pois esse
sampleamento é nosso ponto de partida. E feita
essa renúncia, lançar-se numa experimentação
de pensamento do perspectivismo ameríndio
ou multinaturalismo. O Rio Doce para nós
é em si mesmo ponto de vista – Outrem,
simultaneamente relação. Aqui, recorremos às
aspas, porque a relação é “uma relação entre
sujeitos que ocupam posições cosmológicas
intercambiáveis” (VALENTIM, 2013, p. 11). É
preciso, então, fazer uma leitura da tragédia
anunciada e ocupar esse lugar do meio, nada
apressado, embora essa tomada de posição
reclame o abandono da tolice, arrogância,
ingenuidade e da cegueira (STENGERS, 2015).
Ao tirar do centro o nosso ponto de vista
(humano por natureza?), performatizamos um
plano de composição relacional, ora, “é esta
aliança com o não-humano que deine ‘as
condições intensivas do sistema’ na Amazônia.”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2007, p. 124). De fato,
temos que ter uma certa força (LATOUR apud
VIVEIROS DE CASTRO, 2007, p. 121) aí onde nos
é exigido descolonizar.
Essa práxis cosmológica interventiva pode ser
capaz de produzir um por vir de uma outra
ordem. Como num pixo nas ruas de Nanterre,
na França, onde se lê: “outro im do mundo
é possível”17. Para conceber um outro im
desse mundo, diferente desse im imposto
pelas necessidades econômicas, essa práxis
consiste fundamentalmente em “levar a sério”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2003) o pensamento
ARtIGOS
indígena e deixar “ser afetado” (FAVRETSAAD, 2005) pelo nativo. Isso signiica que é
fundamental perceber, como aponta Matos
(2013), que “a importância da linguagem da
ontologia reside em uma razão tática”. Para
nós, essa tática não se dá de modo algum por
via do exótico entre pesquisador e nativo,
mas pelo contrário, é dada como “palavras da
imagem” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 362).
Trata-se de qualiicar a relação com o nativo na
experiência, pois “ela deu lugar à comunicação
não verbal, não intencional e involuntária, ao
surgimento e ao livre jogo de afetos desprovidos
de representação.” (FAVRET-SAAD, 2005, p.
161).
Para Kopenawa e Albert (2015), estamos
enfeitiçados pelo oru hipere a (o pó da cegueira
do olho), essa poeira se processa e se alastra
com a fumaça das indústrias pelas cidades.
Ao longo do tempo, nossas vistas icam cada
vez mais embaçadas. Olhamos para a loresta
pensando no que é possível consumir, por
isso falamos em unidades de conservação ou
proteção ambiental; nós, os brancos, tratamos
de recortar e dividir, o restante que vire reserva
–, pelo menos.
Quando falam da loresta, os brancos
muitas vezes usam uma outra palavra:
meio ambiente. Essa palavra também não
é uma das nossas e nós a desconhecíamos
até pouco tempo atrás. Para nós, o que
os brancos chamam assim é o que resta
da terra e da loresta feridas por suas
máquinas. É o que resta de tudo o que
eles destruíram até agora. Não gosto dessa
palavra meio. A terra não deve ser recortada
pelo meio. Somos habitantes da loresta,
e se a dividirmos assim, sabemos que
morremos com ela. Preiro que os brancos
falem de natureza ou de ecologia inteira.
Se defendermos a loresta por inteiro, ela
continuará viva. Se a retalharmos para
proteger pedacinhos que não passam da
sobra do que foi devastado, não vai dar em
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
93
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
nada de bom. Com um resto das árvores
e dos rios, um resto dos animais, peixes
e humanos que nela vivem, seu sopro de
vida icará curto demais. Por isso estamos
apreensivos. Os brancos se puseram hoje
em dia a falar em proteger a natureza, mas
que não venham mentir para nós mais uma
vez, como izeram seus pais e seus avós.
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 484).
Dez dias após o rompimento da barragem, os
índios Krenak enfrentaram os governos e as
três empresas – Samarco, Vale e BHP Billiton –
e ocuparam a Estrada de Ferro Vitória-Minas18.
Além disso, obviamente, muito antes da
chegada da ferrovia que transporta minério, o
povo Krenak já habitava a região do Vale do Rio
Doce e alertava sobre os perigos da poluição do
rio de mesmo nome. Diante do rompimento da
barragem de Fundão e do avanço da lama tóxica,
os Krenak já davam conta do adoecimento do
rio, da morte dos peixes e do seu modo de vida.
Ailton Krenak, liderança indígena, nascido na
região, lembrou, em recente entrevista, o
signiicado do Rio Doce para os Krenak:
Para os Krenaks, o rio Doce tem vida, é
uma pessoa. Falar dele é como se referir
a um antepassado. Ele tem o dom de curar
as pessoas, de alimentar a imaginação e
os sonhos. É onde batizamos as crianças.
É lógico que não é só um corpo d’água.
São paisagens, montanhas. É uma região
inteira onde o povo Krenak construíram
suas aldeias no começo do século 20,
quando ali só tinha mata. (KRENAK, 2016)
O crime-catástrofe do rompimento da barragem
de Fundão, em Mariana, também nos despertou
para a experiência ilosóica e política de
Guattari (1991), chamada por ele de ecosoia.
Pois bem, a ecosoia, em primeiro lugar, “é
uma ciência dos ecossistemas de todo tipo.
Não tem contornos bem delimitados, posto que
leva em consideração tanto os ecossistemas
sociais, urbanos, familiares e o da biosfera.”
(GUATTARI, 2015, p. 59) A ecosoia opera com
a transversalidade. O sistema de modelagem
de Guattari (2015) avança na noção de objeto
ecosóico, para além de uma questão meramente
ecossistêmica, e articula-se em quatro
dimensões: de luxo (heterogêneos, um em
relação ao outro), máquina (retroalimentaçãoo
cibernética
e
política,
autoairmação
ontológica), valor (não permitindo que um valor
determine outros), e, por im, a dimensão dos
territórios existenciais, essa que nos é cara por
caracterizar sua initude existencial. Ou seja, o
objeto ecosóico está fundado em coordenadas
extrínsecas e independentes, está em relação
com uma alteridade maquínica.
Atento ao mundo contemporâneo, notoriamente
próximo das lutas ecológicas, Guattari encontrou
no devir-ecosóico uma conexão direta com
o socius (NADAUD, 2015). Buscou, através
de uma ação militante e política, produzir
uma memória, inscrever sobre os corpos
uma articulação ético-política entre as três
ecologias: ambiental, das relações sociais e da
subjetividade humana. Em um outro contexto
sócio-político-econômico, o desaio de como
viver na terra fundamentalmente levada por
uma aceleração, fundamentalismos técnicocientíicos, além do aumento em larga escala
da população planetária já lhe eram visíveis.
Para Guattari (1991), o Capitalismo Mundial
Integrado (CMI) funciona a partir de regimes
semióticos, envolvendo aspectos econômicos,
jurídicos, técnico-cientíicos e de subjetivação.
Essas estratégias do CMI formam um emaranhado
sistêmico de produção de signos, de sintaxe e
subjetividade. A subjetividade capitalística
infantiliza a nossa sociedade, a ponto de nos
causar pânico ao nos depararmos com uma
catástrofe. Não conseguimos reagir, pensar ou
imaginar outros modos de vida na terra que
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
94
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
não sejam no capitalismo, envoltos em algum
modo de dominação do outro (humano ou
não). Para retomar esse território existencial
possível de imaginação, a ecosoia depende da
reconiguração das relações humanas em todas
as esferas da vida.
A ecologia social e a ecologia mental,
necessariamente complementárias das
ecologias cientíicas e política, não
deveriam estar fundadas em um sentimento
de fusão elementar com a natureza,
mas no reconhecimento e aceitação da
initude, tanto da vida individual como
da vida coletiva, da vida das espécies,
como da vida dos planetas e do sol. É
tanto necessário para enfrentar os desaios
gigantescos da nossa época, para reorientar
radicalmente suas inalidades, passar
de uma ecologia nostálgica contorcida
na defesa do adquirido a uma ecologia
futurista inteiramente mobilizada para a
criação (GUATTARI, 2015, p. 407).
Trata-se de conceber práticas de intervenção
social (GUATTARI, 2015, p. 63), incluindo a
política e os governos, que sejam coerentes
com práticas sociais do território. Pensar uma
democracia ecosóica com o desenvolvimento
de práticas de dissenso no plano da cultura e
da estética, da análise individual ou coletiva.
Investir em uma metamodelagem dissensual,
pois com ela “a responsabilidade sai de si mesmo
para pensar no outro.” (GUATTARI, 2015, p.
389). A noção de ecosoia amplia a problemática
dos valores, propõe uma redeinição radical do
sistema de valoração vigente. E ainda, excede
posições tradicionais e encontra uma outra
forma que permite sobreposição, estabelece
uma relação polifônica entre diferentes objetos
pragmáticos. As manifestações, atos, eventos,
performances se inserem como agenciamentos
ecosóicos,
uma
intervenção
prática
(cosmológica, política, natural, corporal).
Experiências e aventuras pessoais que inserem
ARtIGOS
uma grilagem de modos de ser e criam modos
outros de viver em conjunto; em vez de produzir
dejetos, refazer as relações e hackear esse
sistema de valores da máquina capitalística.
Pelo devir-ecosóico, realizar uma apropriação
através da posse – um tipo de compostagem
(terra adubada de noções e permuta de
pensamentos, afecções e corporalidades, o tal
“embodiment”). Queremos a cidade de volta
sem catracas, o rio sem mercúrio, o parque
livre, queremos nos alimentar sem acumular e
exterminar, o corpo alegre, a loresta viva: ou
seja, no Antropoceno, queremos o que nossos
responsáveis já não podem nos dar.
Como bem disse Fausto (2014, p. 10),
“para a manutenção do que pretendemos
salvar, aniquilamos diariamente muitos
mundos e pontos de vista.” Produzimos um
terreno negativo, num mundo em dívida de
perspectivas outras. A humanidade, temerosa
da extinção, sustenta um modelo de existência
dado por certa ideia de evolução, onde só se
pode acelerar. Nas toneladas de peixes mortos
asixiados, pesquisadores encontraram uma
nova espécie. Terá sido extinta? No litoral
de Regência (ES), as tartarugas tiveram seu
período de desova alterado. Para salvar os
peixes em Colatina (ES), antes da chegada
da lama tóxica, a sociedade civil organizou
uma operação chamada “Arca de Noé”, que
capturou peixes de várias espécies para soltálos em lagoas. A subsistência dos povoados na
beira do Rio Doce e das comunidades ribeirinhas
parece estar em vias de desaparecer. Além de
sua “pobreza ontológica”, o Antropoceno como
“regime de governo” extingue modos de vida
e toda uma biodiversidade (FAUSTO, 2014,
p. 4). A lama tóxica com mercúrio, arsênio,
chumbo e outros minérios é a onda de rejeitos
da Samarco-Vale/BHP, mas também é a lama
carregada da extinção do Antropoceno. Ainal,
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
95
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
quantos pontos de vista a lama tóxica levou?
Perdemos mundos, alguns que talvez nunca
mais venhamos a ouvir falar.
Assistimos aos vídeos da empresa Samarco S.A.
para compreender o que pode a linguagem dos
homens de poder (PASOLINI, 2012). Não é de
forma totalitária que as empresas adentram
os territórios. Na composição desse poder, as
empresas inserem-se de modo totalizante na
vida do ambiente. A manutenção do poder
dos homens19 de fúnebres casacos, passa pelo
ajuizamento de uma noção de bem-estar e
modernidade que são instaladas no contexto
ético-político dos territórios em questão. A
coniabilidade é parte do negócio; para isso,
basta a encenação dos sorrisos e manobras
autômatas. Esse modelo passa pela valoração
de todo o processo de instalação da empresa, o
antes, o durante, e o depois.
A parte central do modelo é esta aqui:
construir coniança. Certo, e por que eu
preciso construir coniança? Porque a
sociedade vai participar de um processo
decisório da minha companhia e preciso
garantir a licença social para operar. A
licença social não é igual um papel que a
licença ambiental confere um direito de ir
lá lavrar e tirar uma árvore e etc. [...] A
licença social é garantida todo dia, a cada
dia. Então, na cabeça do CEO da empresa,
[...] quem vai aferir essa licença social,
condição para que eu continue vendendo
pelotas é a sociedade (CRIVELLI, 2015)
Nesse trecho da fala do Gerente de Meio
Ambiente da Samarco, Thales Crivelli,
percebemos que esse processo de instalação
da empresa é permanente. Ora, a licença
social opera na “relação da subjetividade com
sua exterioridade – seja ela social, animal,
vegetal, cósmica)” (GUATTARI, 1989, p. 8), e
é fundamental no processo de fragmentação
da vida, redução gradual e total de qualquer
alteridade. O modo de operação jurídica
que envolve outros “homens de poder”, no
instrumento da licença ambiental, acaba
apenas formalizando a violência já instaurada.
Sobre isso, basta ver as notícias20 sobre os
protestos a favor da Samarco, que pedem
justiça, mas sem ônus para empresa, uma
vez que está em jogo a manutenção dos
empregos. Nossa perplexidade em nada
provoca a permissividade dos manifestantes,
que, em transe, caminham numa espécie de
militantismo surdo-desenvolvimentista.
Em uma análise socioambiental integrada da
Bacia Hidrográica do Rio Doce (MG/ES), Coelho
(2009) mostra que a chegada da Estrada de Ferro
Vitória-Minas (EFVM), em 1901, seria o início
também da morte lenta e gradual do Rio Doce.
A consequente ocupação ao longo de todo o Rio
Doce, como a urbanização desenfreada e sem
planejamento, a industrialização e a exploração
ininita, está diretamente relacionada à rede
ferroviária. A implantação da ferrovia e a
criação dos municípios não levaram em conta
a paisagem, resultando, ao longo dos anos,
na extinção da mata nativa. As principais
atividades econômicas na Bacia do Rio Doce,
em Minas Gerais e no Espírito Santo, vão desde
a exploração mineral (ferro, pedras preciosas,
bauxita, manganês, rochas calcárias, granito),
passando pela indústria (siderurgia, metalurgia,
equipamentos mecânicos, química, turismo,
papel/celulose, bebidas e álcool), a pecuária
(leite e corte, suinocultura), agricultura (café,
cana de açúcar e mandioca), silvicultura
(extensiva área com plantio de eucaliptos), e
pelo setor terciário, até a produção de energia
elétrica.
O quadro do desenvolvimentismo se realiza
nessas esferas de investimento econômico
supracitadas, com a contrapartida social para
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
96
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
as populações que vivem na beira do Rio Doce.
A contrapartida é uma metriicação (NODARI,
2014) de uma certa virtualidade, em que todo
esse quadro de exploração é calculado segundo
certos parâmetros gerenciais das empresas ali
instaladas. Losekann (2015) vem estudando
faz algum tempo os afetados da mineração na
América Latina. Não sendo uma particularidade
brasileira21, os países latino-americanos seriam
esses canteiros de obras, um mundo onde,
como disse a promotora Thais Santi22, “tudo
é possível”. Para o Consórcio Construtor Belo
Monte, a Vale, a Samarco S.A., a Companhia
Siderúrgica Nacional (CSN), a Aracruz Celulose/
Fibria – nomeie-se quantas forem as tantas
corporações que parasitam em solo brasileiro
com apoio dos governos federal e estadual –, a
vida na terra se resume a doses de satisfação
quantiicadas via reparos materiais e/ou
simbólicos com a ideia de civilidade23.
A contaminação do Rio Doce é a catástrofe
Brasil. Chora-se em suas beiradas o luto
por algo que já foi. O Rio Doce é “intruso”
nessa dinâmica do plano de aceleração de
crescimento, como numa fala de um general
da ditadura militar, no livro de Pozzobon (2013,
p.19): “tudo aquilo que estiver entre o Brasil
e seus objetivos será eliminado”. Isso porque,
embora seja vital para a vida dos humanos, o
Rio Doce foi utilizado pela humanidade com
olhos para suas necessidades econômicas. Com
o crime-catástrofe ambiental, há uma guinada:
o Rio Doce é o sujeito dessa história natural
ditada pela humanidade ocidental tal como a
conhecemos, em seu âmago aceleracionista24,
marcada pela destruição e pelo consumo.
Como em muitas notícias relacionadas ao meio
ambiente, na guerra de imagens, o Rio Doce
não tem voz, é passivo na maioria delas. Sem
ponto de vista, não é escutado. Abusamos
de suas imagens; chocados, compartilhamos
ARtIGOS
desesperadamente a impactante foto do rio
atravessado pela lama tóxica da Samarco Vale/BHP.
A seguir, vamos abordar uma das muitas
reações da sociedade civil desencadeadas
pela catástrofe, que se torna especialmente
importante por ter provocado uma mudança
na narrativa da mídia corporativa que buscava
esconder a marca da Vale.
O PROtEStO CONtRA A VALE, NO RIO dE
JANEIRO, E O REPERtóRIO dIGItAL
No dia 16 de novembro de 2015, um protesto
por reparação para os atingidos pelo
rompimento das duas barragens tomou forma
na frente da sede global da Vale, no Centro do
Rio de Janeiro. O ato, como qualquer ato de
protesto, por si só é uma forma simbólica que
só faz sentido se inserido em um processo de
mobilização permanente, que se combina com
articulações da sociedade civil em variadas
frentes. O ato não resolve nada, mas abre um
campo de possibilidades.
Assim, vamos nos voltar, nesta seção, à
mobilização virtual que foi empreendida de
forma bem-sucedida em função da solidariedade
para com os atingidos pelo rompimento da
barragem. Vale destacar, no contexto da
análise, a noção de repertórios de ação, que não
designam performances individuais, mas formas
de interação entre partes ou conjuntos maiores
de atores. Tilly (1995) assinala que são formas
estabilizadas, nas quais os pares de atores fazem
e recebem demandas considerando o interesse
dos outros. Um conjunto de interação simples
consiste em um ator coletivo que constrói
demandas coletivas, acompanhado de outro
ator que se torna objeto destas demandas.
Este conjunto simples é composto de pares
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
97
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
que constroem demandas de uns em relação a
outros. Portanto, uma análise dos repertórios
deve considerar, de um lado, o conjunto
formado pelas relações sociais, signiicados e
ações agrupadas em padrões recorrentes; e,
de outro, certos requisitos para delagrá-las,
tais como o conhecimento, a memória e as
conexões sociais.
McAdam et al. (2009) entendem que os
repertórios existentes corporiicam uma
tensão criativa entre inovação e persistência,
reletindo lógicas instrumentais e expressivas.
A eicácia instrumental deriva da novidade e
da habilidade de, temporariamente, pegar
desprevenidos oponentes ou autoridades e
criar exemplos de desordem pública, custosos
aos interesses estabelecidos. O uso repetido
do mesmo repertório diminui sua eicácia
instrumental e encoraja a inovação tática.
Esta é a maior razão para a escalada e a
radicalização das táticas, e leva os movimentos
a fazerem concessões às suas facções mais
radicais, condenando-os a serem descritos,
com sucesso, como “extremistas” por seus
oponentes e pela mídia.
O repertório de ação digital, segundo mostra
Machado (2007), traz mais possibilidades para
a ação coletiva. A inovação, a difusão e a
incorporação de certas formas de ação coletiva
dependem da rotina da população, suas
experiências, organização e dos modelos de
sociedade a que são expostos. O autor chama
atenção para a consolidação da tendência
de que, com a internet, a maior parte dos
movimentos sociais e organizações orientem
suas ações com base em valores universais
como direitos humanos, minorias, liberdade
de expressão, preservação ambiental e outros,
reivindicando as garantias das leis do moderno
Estado democrático.
Para
Chadwick
(2007)
os
repertórios
desempenham um papel de sustentação da
identidade coletiva. As tecnologias, assim,
não são apenas ferramentas neutras a serem
adotadas conforme a vontade, mas também
moldam o que signiica ser um participante
em uma organização política. Os valores
também moldam os repertórios de ação
coletiva, inluenciando na adoção de formas
organizacionais. A ainidade entre ideologia,
tecnologia e organizações também está
tornando as fronteiras entre formas de ação
pública e privada menos deinidas. Algumas
organizações exibem diferentes formas de
organizar e mobilizar, misturando esforços em
ações estreitamente canalizadas com outras
mais lexíveis, cruzando fronteiras nacionais
enquanto organizam captação de recursos.
A im de pensar a emergência de um repertório
de ação digital, Earl et al. (2011) chamam
atenção para duas características do ativismo
na internet: os custos reduzidos para criar,
organizar e participar de protestos, e a baixa
necessidade de que as pessoas envolvidas nos
protestos estejam presentes, isicamente,
no mesmo espaço, para que possam agir e
se organizar de forma coletiva. Os custos
reduzidos tornam mais fácil e cômoda a
participação, podendo conduzir a um ativismo
rápido ao empregar variadas táticas com uso
de ferramentas tecnológicas que ajudam a
baixar o custo da participação. Os baixos
custos de organização e mobilização permitem
aos organizadores atuar no jogo político com
custos iniciais baixos e poucos recursos.
O repertório de ação pode ser visto, portanto,
como um conjunto de táticas avaliadas para
uso em um dado momento histórico, mas
também como características que essas táticas
compartilham fundamentalmente. Earl et al.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
98
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
(2011) apontam que muitos estudam as novas
táticas, mas poucos estudam as características
destas táticas. Assim, se Tilly (1995) acentuou
as diferenças entre os repertórios de ação
tradicional e moderno, as autoras ressaltam
as similaridades destes dois repertórios:
identiicam a participação na ação coletiva
pela copresença física num evento, e as táticas
são vistas como um meio para alcançar um im.
Nos repertórios de ação tradicional e moderno,
a coletividade da participação era deinida e
marcada por indivíduos no tempo e espaço.
Agora, os ativistas podem participar de ações
online na facilidade, comodidade e privacidade
de suas casas ou em qualquer lugar onde exista
uma conexão. A importância de estar junto
isicamente para a execução de uma tática
varia entre táticas eletrônicas e mobilizações
presenciais, ainda que algumas das primeiras
possam requerer uma participação sincronizada
no tempo. Além disso, a organização das ações
não precisa ser coletiva, e, quando é coletiva,
pode se beneiciar das ferramentas da internet,
que permitem times de distribuição do trabalho
para ser produtiva.
O modelo alternativo emergente de uma
lógica de ação conectada (BENNETT et al.,
2012) aplica-se cada vez mais na vida das
sociedades modernas, em que as organizações
estão perdendo o controle sobre os indivíduos
e grupos, e laços estão sendo substituídos por
redes de grande escala e luídos sociais. Estas
redes podem operar principalmente através
dos processos organizacionais da internet,
e sua lógica não exige um forte controle
organizacional ou a construção simbólica de
um “nós”. A lógica de ação conectada implica
uma dinâmica própria.
As tecnologias de comunicação motivam o
crescimento e estabilização de estruturas em
ARtIGOS
rede com arquiteturas variadas. A lógica de
ação conectada foca na ação recombinante
das redes em uma situação na qual estas redes
e a comunicação se tornam algo mais do que
meras pré-condições e informação. Nestas
redes, os autores observam que as tecnologias
de comunicação contribuem com um princípio
de organização diferente das noções de ação
coletiva baseada em premissas fundamentais
sobre o papel dos recursos, redes e identidade
coletiva.
Em relação ao protesto, este foi convocado
a partir de um evento criado na plataforma
Facebook em 10 de novembro de 2015. A
chamada remetia à possibilidade de aumentar
a responsabilidade da Vale, como acionista da
Samarco, na reparação dos danos resultantes
da tragédia. Na época, o foco da mídia recaía
apenas sobre a Samarco e a espetacularização
a partir das imagens. Uma parte da chamada
para o evento sinalizava:
Nossa maior solidariedade com as
pessoas desabrigadas em Mariana (MG) e
região é pressionar a Vale a assumir sua
responsabilidade. Esses atingidos estão
se organizando e protestando localmente
mas se a gente não apoiar e pressionar de
diferentes formas, a Vale vai passar batida
desta irresponsabilidade em Minas Gerais
que já chega ao Espírito Santo. E é bem
provável que tudo isso passe até o próximo
risco não assumido. Parte superior do
formulário. Por isso, é importante manter
essa questão acesa porque os danos não
serão aprofundados pela mídia, mas a vida
das pessoas atingidas já foi devastada,
suas redes de sociabilidade se romperam
junto com a barragem.
Em torno de 24 mil conirmações de presença
e 32 mil interessados no evento criado na
plataforma Facebook marcaram uma das maiores
mobilizações virtuais do ano, e isso é cada vez
mais importante no mundo hiperconectado
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
99
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
no qual vivemos. Essa pressão do ambiente
virtual tem grande valor, mantendo o tema
quente quando tendia a cair no esquecimento
da avalanche de notícias da mídia corporativa.
Cada pessoa que clicou “comparecerei” ou
“tenho interesse” no evento ajudou nesse
sentido.
Em relação à presença no ato, compareceram
500 pessoas, número suiciente para que
o mesmo fosse eicaz, tendo sido inclusive
mencionado no Jornal Nacional, e, ao chamar
atenção para a Vale como sócia da Samarco, fez
com que esta empresa icasse sob os holofotes
da mídia e do judiciário.
A discrepância entre os conirmados no evento
do Facebook e os que protestaram na frente
da sede global da Vale mostra que a categoria
“presença” vem sendo redeinida mediante os
imbricamentos sociotécnicos que se coniguram
contemporaneamente mediante a importância
das redes sociotécnicas na esfera pública. Essas
redes alimentam ruas que alimentam redes
num processo de retroalimentação que não
separa mais redes e ruas. A mobilização é, por
conseguinte, cada vez mais sociotécnica.
Neste sentido, vale destacar uma das
diferentes mobilizações locais que tomaram
corpo nos territórios atingidos, de forma a nos
aproximarmos da catástrofe e de como esta
afetou os modos de existências das populações
atingidas.
(COM)POSIÇÃO dO CRIME-CAtÁStROFE:
dE BENtO ROdRIGUES A COLAtINA OU O
INíCIO dO FIM
Mais do que nunca a natureza não pode ser
separada da cultura e precisamos aprender
a pensar “transversalmente” as interações
entre ecossistemas, mecanosfera e
Universos de referências sociais e
individuais. Tanto quanto algas mutantes e
monstruosas invadem as águas de Veneza,
as telas de televisão estão saturadas de
uma população de imagens e de enunciados
“degenerados”. Uma outra espécie de
alga, desta vez relativa à ecologia social,
consiste nessa liberdade de proliferação
que é consentida a homens como Donald
Trump que se apodera de bairros inteiros
de Nova Iorque, de Atlantic City etc, para
“renová-los”, aumentar os aluguéis e,
ao mesmo tempo, rechaçar dezenas de
milhares de famílias pobres, cuja maior
parte é condenada a se tornar “homeless”,
o equivalente dos peixes morto da ecologia
ambiental. Seria preciso também falar da
desterritorialização selvagem do Terceiro
Mundo, que afeta concomitantemente a
textura cultural das populações, o habitat,
as defesas imunológicas, o clima etc. [...]
Como retomar o controle de tal situação
que nos faz constantemente resvalar em
catástrofes de autodestruição? (GUATTARI,
1991, p. 25-26).
O rompimento da Barragem em Mariana
(MG) foi um crime-catástrofe ambiental sem
precedentes no Brasil. O distrito de Bento
Rodrigues foi completamente destruído pela
lama tóxica. Em Paracatu e Paracatu de Baixo,
os moradores foram avisados em tempo e
puderam sair de suas casas, mas em Paracatu
de Baixo o rio invadiu o povoado, o barro de
rejeitos tomou conta das casas e das terras.
De acordo com a última atualização do Corpo
de Bombeiros de Minas Gerais, são 16 mortos
e 4 desaparecidos, entretanto, o número
de desaparecidos varia, muitas informações
permanecem ainda desencontradas. O trajeto
da lama tóxica é devastador por onde passa. As
mortes dos moradores e trabalhadores de Bento
Rodrigues foi início da onda de destruição.
Famílias perderam suas casas, animais foram
levados com a lama ou icaram presos em locais
de difícil acesso. Plantações se perderam,
locais de encontros dessas comunidades estão
debaixo do barro, para alguns, a memória é
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
100
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
o que resta, pois as fotograias dos álbuns de
família icaram para trás.
Tendo como referência a Resolução nº 357 do
Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama),
a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais
(CPRM) e a Agência Nacional de Águas (ANA)
conduzem, diariamente, um monitoramento
especial para analisar as condições da água
bruta no Rio Doce após o rompimento da
barragem de Fundão. As análises buscam
identiicar parâmetros físicos, como turbidez
(detritos e lama), e parâmetros químicos,
como a concentração de metais (alumínio,
arsênio, cádmio, chumbo, cobre, cromo, ferro,
manganês, mercúrio, zinco, entre outros). O
Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de
Baixo Guandu divulgou o resultado da análise
da água coletada em três pontos diferentes
ao longo do Rio Doce. Na terceira amostra
coletada, no centro de Valadares, apareceram
níveis acima do tolerável de vários metais,
como arsênio, bário, chumbo, cobre, mercúrio,
níquel e outros. A lama tóxica entrou na vida
das pessoas como um novo componente. A
cada município por onde passa, a vida marinha
é asixiada pelos rejeitos da barragem. Nas
redes sociais, os moradores de Ponte Nova,
Nova Era, Antônio Dias, Coronel Fabriciano,
Timóteo, Ipatinga, Governador Valadares,
Tumiritinga, Resplendor, Galiléia, Conselheiro
Pena e Aimorés, no Estado de Minas Gerais; e
Baixo Guandu, Colatina e Linhares, no Estado
do Espírito Santo, compartilham fotos, vídeos e
textos relatando os acontecimentos da tragédia
anunciada.
As pequenas vilas afetadas padecem com a
morte do Rio Doce. Em Regência, soluções são
criadas e gestionadas pelos próprios moradores.
Antes mesmo do rompimento da barragem,
a associação de moradores usava uma draga
ARtIGOS
para abrir um canal para passagem de barcos
pesqueiros. Isso porque o baixo nível do rio já
não permitia que os pescadores chegassem ao
mar. Quem vive na vila se apega à esperança de
que isso tudo é algo passageiro, que a natureza
é mais forte. Caminhões pipa abastecem
diariamente o povoado, mas não se sabe a
procedência da água. Ricardo Guimarães, dono
de uma pousada em Regência, contou que tudo
estava parado, no aguardo dos resultados das
análises da água. A empresa Samarco, antes da
chegada da lama tóxica em Linhares, realizou
reuniões com a associação de moradores.
Segundo Ricardo, funcionários izeram uma
apresentação sobre a Samarco e abriram para
dúvidas da comunidade. Após cinco pessoas
falarem, encerraram a reunião, que durou
duas horas. No documentário Os últimos dias
do Regência25, produzido pela professora do
Departamento de Comunicação da Universidade
federal do Espírito Santo (UFES), Daniela
Zanetti, os pescadores de Regência, de modo
emocionado, demonstravam preocupação, pois
a subsistência e os modos de vida ali contam
com o Rio Doce. Com a chegada da lama tóxica,
o município de Linhares (ES) interditou as praias
de Regência e Povoação.
De acordo com Stengers (2013), as três ecologias
estão lado a lado com os movimentos sociais
contemporâneos. A partir das ecologias tentamos
pela via afetiva agenciar coletivamente uma
experiência em grupo na cidade de Colatina
(ES). Estamos nos aproximando do problema,
ao chegar junto e compor com o território
devastado, no envolvimento com os horrores que
existem no mundo, sem permitir que destruam
a nós mesmos. A questão é, ainda, descobrir
como podemos nos envolver em práticas de
proteção capazes de resistir à vulnerabilidade
que nos deixa capturar. Ao propor pensar e
sentir com uma devastação tripla, ou seja, em
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
101
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
suas dimensões psíquica, social e ambiental,
tomamos como centralidade as variáveis
desconhecidas dessa situação como o meio de
formular perguntas derivadas das vozes que já
foram destruídas e silenciadas.
Ficar com o problema, como Donna
Haraway formula, parece-me muito
necessário, assim como prestar atenção a
que histórias contam histórias, que ela traz
de Marilyn Strathern. A história que serve
de matriz para o nosso antigo estoque
de histórias pode muito bem ser o que
equivale a devastação tripla de Guattari
com um certo tipo de progresso, quaisquer
que sejam suas versões célebres, colocando
“nós”, os contadores de histórias, em
uma posição de “guardiões da verdade”,
independentemente do que essa “verdade”
possa ser. A proteção é, neste contexto,
fundamental para nos ajudar a chegar
junto. Então, estou um pouco duvidosa
sobre essa nova história do Antropoceno
a partir dessa perspectiva. Ainal, quem é
antropos? (STENGERS, 2013, p. 176).
Fizemos uma vista ao município de Colatina
(ES) no sábado, 21 de novembro, saindo bem
cedo da capital do estado, com a intenção de
evitar o sol forte logo pela manhã. É verdade
também que Colatina já é conhecida por um
ambiente quente, poucas sombras, toma-se
muita água para evitar a desidratação. Nossa
primeira parada foi num terreno com uma placa
onde se lia “Pôr-do-sol”, e onde os carros-pipa
estavam concentrados. Um pequeno grupo
já se aglomerava próximo a um píer que dá
acesso ao Rio Doce, para uma entrevista.
Entre o labirinto de carros-pipa, duas placas
chamam atenção: água bruta e água potável.
Começamos a chamar de “praça dos carrospipa”, aquele lugar onde tudo girava em torno
da água. O assunto entre os motoristas eram as
rotas de captação d’água e de abastecimento
dos bairros. Um motorista nos conidenciou
que a água potável para tomar banho, lavar
utensílios domésticos e realizar atividades do
cotidiano era captada na Lagoa do Batista e
Boa Morte, a cerca de 20 km da cidade.
À beira do Rio Doce, à medida que a lama
tóxica avança no rio, os municípios parecem
ganhar atenção, principalmente de coberturas
independentes e dos próprios moradores.
Tivemos contato com a água do Rio Doce
naquele dia, no quintal de Elza França.
Sua casa, que ica na Avenida Rio Doce, já
sobreviveu a enchentes históricas, com a água
entrando dentro da sua casa. Num momento
como esse, as cortesias comuns ao se visitar
a casa de alguém são entendidas como lição
de generosidade. Ao oferecer um copo d’água
e dispor de seu banheiro, percebemos que
qualquer relexão sobre a centralidade do rio
(de acordo com Stengers, vozes destruídas e
silenciadas) na vida humana iria apontar para
novos modos de vida e subsistência – vamos
enfrentar novas perguntas também. Na área
de serviço, icam as garrafas vazias, baldes
e qualquer recipiente que possa servir como
reservatório de água. Elza nos guiou e mostrou o
confronto entre o Rio Santa Maria (afetado pelo
esgoto) e o Rio Doce (turvo pela lama tóxica).
Num estado de perplexidade e indignação, Elza
França se dava conta da agonização humana e
não humana, pois não conseguia entender como
chegamos a esse ponto, ela diz: “já passei por
diiculdades pela abundância da água, mas
não por isso”. A partir de Elza, percebermos
a necessidade de encontro com outro sistema
de valoração (Guattari, 2015). O atual modelo
econômico não dá conta da heterogeneidade
de atividades humanas que atravessam o Rio
Doce, desde pequenas hortas no quintal das
pessoas aos pescadores da região, a imposição
da mineração sobre os modos de subsistência
deixou marcas.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
102
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
Por volta das três da tarde, seguimos para
o bairro Luiz Iglesias, para acompanhar o
abastecimento da caixa d’água. A demora faz
os moradores se aglomerarem em torno do
reservatório azul que ocupa a praça do bairro.
Dois moradores se revezam para vigiar a caixa
d’água, um deles estava à espera do carro-pipa.
Ele contou que eles mesmos se entenderam
para organizar a hora de abrir as torneiras;
disse que se incomoda que pessoas de outros
bairros venham pegar água por ali, denunciando
que alguns vêm de carro e pegam mais água
do que precisam. Havia uma preocupação com
os protestos dos moradores. As notícias não
paravam de aparecer no Facebook. A página
‘Saudades Colatina’ atualizava constantemente
os novos protestos. Os bairros Santos Dumont,
Aeroporto, Maria das Graças e Vila Lenira já
haviam fechado as ruas em protesto, o motivo
era o atraso da água. No Centro de Comandos,
já havíamos entendido que o Exército e a
Polícia Militar estavam a postos para acalmar
os moradores sedentos, com sede de água. Aos
poucos, percebemos que a esperança foi saindo
de cena, para dar lugar ao desespero. Se antes
Deus e os céus apareciam frequentemente na
fala dos moradores, por horas na ila e numa
situação de espera, aos poucos, ódio, raiva e
tensão passam a marcar o im do dia.
As três ecologias são concebidas a partir
do princípio comum de que os territórios
existenciais nos colocam em confronto. Não um
enfrentamento fechado sobre o mesmo. Algo
além das certezas estabelecidas e totalitárias,
o território passa a ser o campo das divergências
do inito, do precário, do singular. Passamos a
disputar um território “capaz de bifurcar em
reiterações estratiicadas e mortíferas ou em
abertura processual a partir de práxis que
permitam torná-lo “habitável” por um projeto
humano” (GUATTARI, 1991, p. 38). Por ora,
ARtIGOS
a imbricação entre conceitos e relatos é um
modo de liberar as contradições elaboradas
por Guattari em seus princípios ecosóicos.
Retornamos para o ponto de início da nossa
jornada, a praça dos carros-pipa. Avista-se a
ila de longe, de frente para o Bar e Restaurante
da Ilza. A ila já dava voltas num quarteirão
inteiro quando encontramos o primeiro da ila.
Às 18h15m, começamos a conversar com Édipo
de Souza, 28 anos, sempre à beira do Rio Doce.
Édipo entrou na ila às duas da tarde, pois
havia escutado, e depois lido no whatsapp, que
a distribuição de água mineral começaria às
cinco. Quando perguntado sobre como era a sua
vida antes da chegada da lama, disse que era
outra, porque havia água encanada dentro das
casas. Em suas palavras, “um erro da Samarco
nos coloca aqui nessa bagunça, porque depois
que essa lama chegou, essa é a nossa vida,
a ila da água.” Como já circulara nas redes
sociais, nos vídeos da distribuição da água, ele
lembra que pessoas foram pisoteadas, não há
respeito por idosos ou gestantes, na ila é cada
um por si. Reclama da desorganização, da falta
de logística e de orientação, concentrando
muitos moradores em um local só. Na sua fala,
indignado lembra-se do espetáculo político
dos votos, e não se conforma, “por que a água
não é entregue na minha casa?”, indaga em
desespero. Édipo já estava na ila havia mais
de quatro horas, qualquer depoimento seria
inlamado, seu desejo era apenas que alguém
lhe devolvesse a normalidade ou apontasse
uma data para esse pesadelo acabar.
Até o momento de inalização desse artigo,
ocorreu a assinatura de um Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC) pela Samarco,
suas acionistas Vale e BHP, e a União e os
governos de Minas Gerais e do Espírito Santo.
O acordo feito em gabinetes fechados cria
uma fundação para gerir os recursos pagos
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
103
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
pela Samarco. A fundação teria, no conselho
administrativo, sete membros, sendo as três
companhias – Samarco, Vale e BHP Billiton –
responsáveis pela nomeação de dois membros,
e a União de um. Portanto, nesse acordo, não
só esse conselho não tem participação da
sociedade civil, mas é gerido pelos causadores
da catástrofe.
Ninguém
responsabilizado
pelo
crimecatástrofe e pelos danos incalculáveis causados
pelo rompimento da barragem do Fundão, e
um Termo de Ajustamento já rechaçado pelo
Ministério Público Federal26 e pela Coordenação
Nacional do Movimento dos Atingidos por
Barragens27. Esse é o panorama da promíscua
relação do capital com a natureza, num plano
de subestimação à Vale e à BHP Billiton. Os
atingidos, a fauna e a lora, toda a rede que
entrelaça o Rio Doce, seguindo o acordo das
autoridades brasileiras com as empresas,
deveriam acreditar numa suposta boa vontade.
Há um descompasso nas informações circulando
sobre as ações que atravessam o Rio Doce. Isso
tem vazão nas manifestações contra a Samarco,
Vale e BHP, nos protestos nas cidades atingidas,
essas em especial ganham voz no ódio de Édipo
e na revolta de Ailton Krenak. As notícias sobre
a qualidade da água, sobre a punição dos
culpados, a gestão do caos e a normatização do
estado de exceção, e a visível confusão entre
as competências do Estado e do setor privado
produzem uma derradeira alteração da vida
daqueles que estão na beira do Rio Doce.
Neste artigo, a vulnerabilidade é componente
dessa “zona de experiência devastada”.
Tentamos montar com relexões teóricas e
relatos etnográicos uma escrita a dois que
permitisse vislumbrar a dimensão desse
acontecimento – o qual chamamos de crimecatástrofe. Sabemos que, em alguns momentos
desse artigo, exigimos do leitor um itinerário
ontológico, epistêmico e cosmopolítico ainda
inconstante. Um percurso de leitura talvez
brusco, mas não impetuoso como a lama turva
que percorreu o Rio Doce. Danowski e Viveiros
de Castro (2014, p. 90) nos recordam que
para os ameríndios e outras humanidades não
modernas a escala de tempo é outra, bem como
seu conceito de humano. Ora, num estado de
fragilidade ou de intempestiva revolta, o nosso
tempo – que vai do início ao im compondo um
“presente histórico”; e as fronteiras e nossas
extensões territoriais de nosso Estado-nação –
é o outro lado do “presente etnográico” das
cosmologias ameríndias. Nesses termos, é no
caráter disjuntivo desse ehtnos, justamente,
capaz de produzir uma vida radical, uma
equalização do tempo – nem estagnado,
nem acelerado, apenas agires e fazeres – em
cooperação com os elementos e o sistema
Terra.
[...] a ênfase da práxis indígena é na
produção regrada de transformações
capazes de reproduzir o presente
etnográico (rituais de ciclo de vida, gestão
metafísica da morte, xamanismo como
diplomacia cósmica) e assim de impedir
a proliferação regressiva e caótica de
transformações.” (DANOWSKI; VIVEIROS DE
CASTRO, 2014, p. 92).
Ainal, não é disso que se trata? O bem viver
indígena se encontra com a retomada de
controle evocada por Guattari (1991). Des(o)
cupar, (co)habitar e (com)pôr nessa nova era
relações simétricas em sua gênese existencial.
Para apreender os desaios desse tempo-ethnos,
nosso artigo contempla a possibilidade da vida
na integração das ilosoias de Ailton Krenak e
Davi Kopenawa com a ilosoia ético-política de
Guattari (1991), no que ele chama de ecosoia.
Diante do colapso ambiental e da natureza das
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
104
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
divergências radicais impostas pelo capitalismo
(e, em algum momento da história, pelo
socialismo também) como marca da existência
humana na Terra, o meio ambiente (as lorestas),
as relações sociais e a subjetividade humana,
reclamam uma reconiguração das práticas que
a caracterizam.
Na dimensão micropolítica dessas relações, que
escapam ao controle do Estado-nação brasileiro,
em que a criatividade e a solidariedade
se fazem presentes, o grito dos protestos
é um eco do cansaço da vida endividada
(LAZZARATO, 2014), de um vampirismo sobre a
vida, as relações e a natureza, apontando para
novos registros. Ecos que dão conta de uma
heterogênese, de “processo contínuo de resingularização” (GUATTARI, 1991, p. 55). Esse
repertório em rede conigura um outro modo
de fazer dos indignados, dos movimentos de
atingidos por barragens, dos atingidos pelas
remoções da Copa do Mundo e das Olímpiadas,
dos imigrantes, dos black blocs, dos índios,
dos quilombolas, dos camponeses, dos
ocupantes e viventes da rua. Essa resistência
está muito mais na compreensão da vida como
movimento ininterrupto do que na entrega ao
“militantismo”.
Nossos relatos, resultado da experiência de
feitura de um documentário e da vivência das
manifestações contra a Samarco – Vale/BHP,
permitiu que esse artigo se apresentasse do
modo como é – escrito e narrado como uma
convivência com o iminente im do mundo
tal como o conhecemos, em convergência
com o que imaginamos fosse possível fazer:
documentar, protestar, escrever sobre parte
do que aconteceu desde o rompimento da
barragem de Fundão em Mariana (MG).
Essa outra paisagem social que vibra diante do
crime-catástrofe da Samarco – Vale/BHP) e da
ARtIGOS
permissividade dos governos, pode liberar e ou
liderar essa retomada indicada por Stengers
(2011), resultando na cobrança por um rigoroso
cuidado e iscalização das licenças ambientais,
reformulação da Fundação Nacional do Índio
(Funai), iniciativas de permacultura, ocupações
autônomas nas cidades e no campo, pesquisas
interdisciplinares nas ciências humanas,
naturais e exatas, direcionamentos outros
nos cuidados com os animais e tantos outros
registros possíveis, embora, mais do que nunca,
urgentes.
No caso dos povos ameríndios, são eles que “têm
a chance única de dissociar a equação europeia
maldita entre a forma do ~ethnos~ e o tema da
“identidade nacional” (VIVEIROS DE CASTRO,
10/01, 12h41, 2016) Ainda, “coletivos étnicos
como linha de fuga do Estado-nação. Passando
ao largo do identitarismo etnonacionalista
europeu.” (VIVEIROS DE CASTRO, 10/01, 12h43,
2016). Reparamos possíveis entre a convergência
do nosso sampleamento e os agenciamentos
coletivos capazes de produzir uma vontade
de “autonomia criativa” (GUATTARI, 1991, p.
56). Pode estar na emergência de modos de
vida ecosóicos, pautados por uma necessária
“remanência” característica dos índios (e o que
possamos aprender com eles), do controle e
regramento do homem como agente geológico,
a reabilitação da existência humana na Terra.
REFERÊNCIAS
BENNETT, W. L.; SEGERBERG, A. The
logic of connective action. Information,
Communication & Society, v. 15, n. 5, p. 739768, 2012.
CHADWICK, A. Digital network repertoires
and organizational hybridity. Political
Communication, v. 24, n. 3, p. 283-301, 2007.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
105
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
CHAKRABARTI, D. O Clima da História: quatro
teses. Sopro, n. 91, p. 1-22, 2013.
– About the Anthropocene. Ethnos, Journal of
Anthropology, v. 81, n. 3, p. 1-30, 2015.
COELHO, André Luiz. Bacia Hidrográica do Rio
Doce (MG/ES): Uma análise socioambiental
integrada. Geografares, n. 7, p. 131-146,
2009. Disponível em: <http://periodicos.ufes.
br/geografares/article/viewFile/156/82>.
HARAWAY, D. Anthropocene, Capitalocene,
Plantationocene, Chthulucene: Making Kin.
Environmental humanities, v. 6, p. 159-165,
2015.
CRUTZEN, P.; STOERMER, E. The
“Anthropocene”. the International
Geosphere–Biosphere Programme (IGBP): A
Study of Global Change of the International
Council for Science (ICSU), n. 41, p. 17-18
maio 2000.
EARL, J.; KIMPORT, K. digitally enabled
social change: activism in the internet age.
Cambridge, Massachussetts; London, England:
The MIT Press, 2011.
FAUSTO, J. Os Desaparecidos do Antropoceno.
Anais do Colóquio Mil Nomes de Gaia. Rio de
Janeiro. PUC-RJ, 2014.
FAVRED-SAADA, J. “Ser Afetado”. Cadernos de
Campo, São Paulo, n. 13, p. 155-161, 2005.
GUATTARI, F. ¿que és la Ecosofía?. Org.
Stéphane Nadaud. Ciudad Autônoma de
Buenos Aires: Cactus, 2015.
______. As três ecologias. 3. ed. Campinas,
SP: Papirus, 1991.
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização
e as “regiões-rede”. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA, V., Curitiba, 1997.
Anais... Curitiba: AGB, 1997. p. 206-214.
______. O mito da desterritorialização: do
“im dos territórios” à multi- territorialidade.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
HARAWAY, D. et al. Anthropologists Are Talking
______. Anthropocene, Capitalocene,
Chthulucene: Staying with the Trouble. AURA.
2014.
KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do Céu.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Ensaio
de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1994.
LAZZARATO, M. Signos, Máquinas,
Subjetividades. São Paulo: n-1, 2014.
LOSEKANN, C. A política dos afetados: os
atores, os repertórios, e os ideais nos recentes
protestos ambientais na América Latina. In:
ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 39. Caxambu,
MG, 2015.
MACHADO, J. A. S. Ativismo em rede e
conexões identitárias: novas perspectivas para
os movimentos sociais. Sociologias, Porto
Alegre, ano 9, n. 18, p. 248-285, 2007.
MATOS, M. de A. Tudo kósmico e exterior:
observações sobre a o(do)ntologia do
pensamento antropofágico. Sopro, n. 93,
2013.
MCADAM, D.; TARROW, S.; TILLY, C. Para
mapear o confronto político. Lua Nova, São
Paulo, n. 76, p. 11-48, 2009.
NODARI, A. Limitar o Limite: Modos de
Subsistência. In: OS MIL NOMES DE GAIA, Rio
de Janeiro, 2014. Anais.... Rio de Janeiro:
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
106
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
PUC-RJ, 2014.
PASOLINI, P. P. O Vazio do Poder na Itália.
Revista Literária em tradução, n. 4, p. 104118, mar. 2012.
POZZOBON, J. “Vocês brancos não tem alma”
histórias da fronteira. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue; São Paulo: Instituto Socioambiental,
2013.
STENGERS, I. No tempo das catástrofes. São
Paulo: Cosac Naify, 2015.
_______. Gaia: the Urgency to think (and
Feel). Conferência. In: OS MIL NOMES DE GAIA,
Rio de Janeiro, 2014. Anais.... Rio de Janeiro:
PUC-RJ, 2014.
_______. Matters of Cosmopolitics Isabelle
Stengers in Conversation with Heather Davis
and Etienne Turpin On the Provocations of
Gaïa. In: TURPIN, E. (org.). Architecture
in the Anthropocene. Michigan: Open
HUmanities Press, 2013. p. 171-182.
STENGERS, I.; PIGNARRE, P. Capitalist
Sorcery: Breaking the Spell. London: Palgrave
Macmillan, 2011.
STOLZE LIMA, T. O Dois e seu Múltiplo:
Relexões sobre o Perspectivismo e uma
Cosmologia Tupi. Mana, v. 2, n. 2, p. 21-47,
1996.
TILLY, C. Contentious repertoires in Great
Britain. In: TRAUGOTT, M. (ed.). Repertoires
and Cycles of Collective Action. Duke
University Press, 1995. p. 1758-1834
VALENTIM, M. A. A Sobrenatureza da
Catástrofe. In: OS MIL NOMES DE GAIA, Rio de
Janeiro, 2014. Anais.... Rio de Janeiro: PUCRJ, 2014.
ARtIGOS
_____. O ente enquanto Outrem: nota sobre
a possibilidade de uma ontologia nãoantropogenética. Sopro, n. 85, 2013.
VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas Canibais.
São Paulo: n-1; Cosac Naify, 2015.
_____. Filiação intensiva e aliança demoníaca.
Novos estudos, CEBRAP, São Paulo, n. 77, p.
91-126, mar. 2007.
_____. 2016. Tweets de 10 de janeiro de
2016. Disponíveis em <https://twitter.com/
nemoid321/status/686196185153966080>
e <https://twitter.com/nemoid321/
status/686196754971279360>. Acesso em: 7,
mar. 2016.
_____. Entrevista com Eduardo Viveiros
de Castro. Blog Azougueiro. Disponível
em: <https://azougueiro.wordpress.
com/2014/12/24/entrevista-com-eduardoviveiros-de-castro/>. Acesso em: 12 out. 2015.
VIVEIROS DE CASTRO, E.; DANOWSKI, D. há
Mundo por Vir: Ensaio sobre os Medos e
os Fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e
Barbárie, 2014.
Recebido em: 1/03/2016
Aceito em: 10/03/2016
Documentário de mesmo nome foi produzido a partir de
visitas nas cidades afetadas de Linhhares, na vila de Regência,
e Colatina, ambas no Espírito Santo (ES). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=qMYERMvishI>.
1
* Agradecemos aos professores Marco Antônio Valentim
(UFPR) e Laura Paste (Multivix) pelas primeiras leituras
cuidadosas desse artigo.
4
Considerando os danos causados pelos responsáveis
(Estado e empresas) ao ecossistema da bacia do Rio Doce,
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
107
ARtIGOS
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
à comunidade ribeirinha e aos indígenas da região e a
todos os afetados pelas barragens, chamaremos de crimecatástrofe socioambiental o advento do rompimento da
barragem de Fundão. O termo é inspirado no livro No tempo
das catástrofes, de Isabelle Stengers. Ao longo do texto,
sustentamos que o termo desastre, nem apenas crime, dá
conta do panorama e das consequências em longo prazo do
maior vazamento de rejeitos tóxicos na história do Brasil.
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geograia
e Estatística (IBGE) de 2005-2009. Matéria do jornal Gazeta
Online “Vitória tem o maior PIB per capita entre as capitais,
aponta IBGE”. Disponível em: <http://glo.bo/1p2ZL7Z>.
5
6
Matéria do jornal Gazeta Online “Uma cidade partida:
Renda domiciliar em Vitória varia de R$ 766 a R$ 35 mil”.
Disponível em: <http://glo.bo/1LaC9sm>.
Matéria do jornal Gazeta Online, “Leitão da Silva: a avenida
que divide a raça dos moradores de Vitória”. Disponível em:
<http://bit.ly/1QyuDXp>.
7
Entrevista com Raquel Rolnik concedida ao jornal Zero
Hora, quando do lançamento de seu novo livro, Guerra dos
Lugares (Boitempo). Disponível em: <http://zh.clicrbs.
com.br/rs/noticias/proa/noticia/2015/12/raquel-rolnik-epreciso-entender-a-moradia-como-direito-4929291.html>.
8
Mais informações sobre o International GeosphereBiosphere Program (IGBP) encontram-se disponíveis em:
<http://www.igbp.net/download/18.316f183213234701775
80001401/NL41.pdf>.
9
Artigo do jornal britânico The Guardian indica que
vivemos a geração Antropoceno, a arte, a literatura e o
cinema reletem o pensamento sobre essa crise. Disponível
em: <http://www.theguardian.com/books/2016/apr/01/
generation-anthropocene-altered-planet-for-ever>.
10
Referência ao colóquio “Os Mil Nomes de Gaia: do
Antropoceno à Idade da Terra”, realizado entre os dias
15 e 19 de setembro de 2014, na Casa de Rui Barbosa, Rio
de Janeiro. Esse colóquio operou como uma intervenção
(como diria Stengers); provocou uma pausa não só na fala
de seus interlocutores, mas na sua própria existência. Ele
interviu na medida em que tudo continuou, mas em toda
sua brevidade nos fez pensar, sentir e imaginar. Em suma,
nos afetou, fomos tocados, algo mudou. Os textos e mesas
estão disponíveis no site do evento disponível em: <http://
osmilnomesdegaia.eco.br/sobre/>.
11
Considerando nossa proposição no texto referenciada
pelas autoras, não vamos entrar nos termos especíicos
de formalização da época geológica levantadas por
elas em artigos e comunicações orais. Entretanto,
para conhecimento, essa época transitória de saída do
Holoceno inciada com as transformações causadas pelo
homem no ambiente será nominada por Haraway (2015)
de Cthulhuceno; enquanto Stengers (2015) nomina essa
12
transição de intrusão de Gaia.
Ver reportagem da UOL “Dilma leva tragédia da lama à
COP-21 e defende acordo com ‘peso de lei’” com discurso
da presidenta Dilma Rousseff na COP21. Disponível em:
<http://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimasnoticias/redacao/2015/11/30/dilma-leva-tragedia-dalama-a-cop-21-e-defende-acordo-com-peso-de-lei.htm>.
13
As informações sobre o Departamento Nacional de
Produção Mineral, ligado ao Ministério de Minas e Energia,
mostra como o sistema não está preparado para as
respostas necessárias que o Antropoceno exige. Segundo a
revista Época, só em Minas Gerais são 184 barragens para
cada iscal, apenas 34% das 735 barragens no estado foram
iscalizadas e os gastos com iscalização chegaram apenas
a 13,2% do valor previsto. Informações disponíveis em:
<http://epoca.globo.com/tempo/iltro/noticia/2015/11/
tragedia-em-mariana-minas-gerais-tem-184-barragenspara-cada-iscal.html>.
14
Depoimento do ministro Aldo Rebelo na CPI que investiga
a atuação da Funai e do Incra disponível em: <http://bit.
ly/1qvfUnL>.
15
Essa sugestão aparece em uma entrevista de Eduardo
Viveiros de Castro para o blog Azougueiro. Disponível em:
<http://bit.ly/1R3HUKH>.
16
17
Imagem disponível em: <http://bit.ly/1MTz2FO>.
Matéria da BBC Brasil sobre o protesto dos índios Krenak
ocorrido 10 dias após o rompimento da barragem de
Fundão. “Índios fecham ferrovia da Vale em MG em protesto
contra ‘morte de rio sagrado.” 15/11/2015. Disponível em:
<http://bbc.in/1S08oc8>.
18
Podem ser mulheres também, basta ler ou assistir
vídeos com os discursos da diretora de Recursos Humanos,
Saúde e Segurança, Sustentabilidade e Energia da Vale,
Vania Somavilla, e o da Ministra da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento, Kátia Abreu, ambas exemplos da nossa
cegueira ocidental.
19
A notícia do site G1 do dia 27/11/2015 mostra os moradores
de Anchieta (ES) com faixas que indicam a inexistência de
limites para a permissividade. Disponível em: <http://
g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2015/11/protestofavor-da-samarco-pede-manutencao-de-empregos-no-es.
html>.
20
No Espírito Santo, desde os anos 1960 e 70, as
comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas sofrem
com as consequências da exploração desenfreada de seus
territórios para a monocultura do eucalipto pelas atividades
da Aracruz Celulose S.A (atual Fibria).
21
Eliane Brum entrevistou a procuradora da republica Thais
Santi, na coluna “Belo Monte: a anatomia de um etnocídio”
do dia 01/12/2014. Disponível em: <http://brasil.elpais.
22
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
108
NA BEIRA DO RIO DOCE: ANTROPOCENO E MOBILIZAÇÃO NO RASTRO DA CATÁSTROFE
ARtIGOS
com/brasil/2014/12/01/opinion/1417437633_930086.
html>.
Ver também a entrevista de Eliane Brum com Antônia
Melo, maior liderança do Xingu, nela explica-se como
as empresas pensam ser possível rearranjar os sujeitos,
uma desterritorialização violenta, os deslocando para
novas moradias com roupagem civilizatória, retirandoos de um espaço comum de convivência que lhes era
familiar.
Disponível
em:
<http://brasil.elpais.com/
brasil/2015/09/14/opinion/1442235958_647873.html>.
23
O Manifesto Aceleracionista (2013), escrito por Alex Williams
e Nick Srnicek, é duramente criticado, principalmente por
continuar ignorando o sistema Terra como componente,
em sua teoria sobre o desenvolvimento do capitalismo
contemporâneo. O manifesto pode ser lido no blog disponível
em:
<http://criticallegalthinking.com/2013/05/14/
accelerate-manifesto-for-an-accelerationist-politics/>.
24
Disponível no YouTube: <https://www.youtube.com/
watch?v=Yd564T2M9V8>.
25
Entrevista do representante do Ministério Público Federal
(MPF), o procurador Jorge Munhós de Souza. Disponível
em: <http://www.brasilpost.com.br/2016/03/03/acordosamarco-mariana_n_9373936.html>.
26
Nota da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos
por Barragens “Governo se rende à Samarco (VALE/BHP
Billiton)”. Disponível em: <http://www.mabnacional.org.
br/noticia/governo-se-rende-samarco-valebhp-billiton>.
27
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
109
ARtIGOS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
110
ARtIGOS
Ciberativismo, saúde e ambiente:
movimentos sociais no Brasil e na
Espanha
Mariana Olívia Santana dos Santos [1], Aline do Monte Gurgel [2], Isaltina Maria de Azevedo Mello [3],
Idê Gomes Dantas Gurgel [4] e Lia Giraldo da Silva Augusto [5]
Resumo: Frente ao projeto neoliberal de crescimento econômico e acúmulo de capital em detrimento
da preservação do ambiente e das comunidades cada vez mais em processo de vulnerabilização, surgem
movimentos ambientais que se organizam utilizando tecnologias e estratégias de comunicação com
inclusão social e intercâmbio de experiências, em tempo real e nos níveis local e global. A capacidade
de produção e compartilhamento da informação tem possibilitado a identiicação de conlitos
socioambientais semelhantes em distintos contextos. Este trabalho tem como propósito analisar as
estratégias que os movimentos sociais utilizam no ciberespaço para estruturar suas lutas em defesa do
ambiente e da saúde quando da instalação de indústrias petrolíferas. Foram estudados dois casos, um
na região de Extremadura, Espanha e outro em Pernambuco, Brasil. Identiicou-se que, em decorrência
da baixa visibilidade na mídia tradicional o ciberespaço possibilitou uma comunicação horizontal,
mediante estratégias em rede, as quais oportunizaram a construção de novos saberes e novas formas de
enfrentamento das injustiças ambientais.
Palavras-chave: Vulnerabilidade. Movimento ambiental. Cibertativismo. Justiça Ambiental.
Cyberactivism, health and environment: social movements in Brazil and Spain
Abstract: Facing the neoliberal project of economic growing the environmental movements organize
themselves using technologies and strategies of communication to broaden discussions in order both
participation and social inclusions such as support for real time exchange. The productive capacity and
information sharing have also enabled the identiication of similar environmental conlicts on different
[1] Mariana Olívia Santana dos Santos é Comunicadora Social, Especialista e Mestre em Saúde Pública, Doutoranda em Saúde
Pública no /Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Pernambuco. E-mail: marianaxolivia@
gmail.com
[2] Aline do Monte Gurgel é Biomédica, especialista, mestre e doutora em Saúde Pública. Pesquisadora da Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Ceará. E-mail: alinemgurgel@hotmail.com
[3] Isaltina Maria de Azevedo Mello é Jornalista, doutora em Comunicação Social e professora do Programa de Pós Graduação
da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: isaltina@gmail.com
[4] Idê Gomes Dantas Gurgel é Médica, doutora em Saúde Pública e pesquisadora do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães,
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Pernambuco. E-mail: ideg@cpqam.iocruz
[5] Lia Giraldo da Silva Augusto é Médica, doutora em Saúde Pública, e pesquisadora do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães,
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Pernambuco. E-mail: lgiraldo@uol.com.br
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
111
ARtIGOS
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
contexts. This work aims to analyze the strategies that use social and environmental movements in
cyberspace to structure their struggles in defense of the environment and health before the installation
of the oil industry, one in the region of Extremadura, Spain and another in Pernambuco, Brazil. It was
noticed that facing the invisibility of environmental movements arguments and ights on the traditional
media, the cyberspace made possible a horizontal communication where the predominant speech was
the sustainable development.
Keywords: Vulnerability. Environmental movement. Cyberactivism. Environmental Justice.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
112
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
INtROdUÇÃO
O intenso crescimento econômico experimentado
no transcurso do século XX implicou aumento
da demanda energética. Embora declinante ao
longo do tempo, Cavalcanti (2008) airma que
o petróleo ainda representa cerca de 40% da
energia consumida no planeta. Por ser uma fonte
de energia não renovável, a intensiicação de
sua exploração implica a consequente escassez
do produto, resultando no aumento de seu valor
comercial e diminuição de seu uso, tornando
o reinamento do petróleo economicamente
inviável em um futuro próximo. A Agência
Internacional de Energia analisa que o preço do
petróleo no mercado irá ascender até 2035 e, em
razão de legislações ambientais mais rigorosas,
o desenvolvimento de fontes alternativas e
novas tecnologias que aumentem a eiciência
energética tenderão a reduzir a demanda
por derivados de petróleo, principalmente a
gasolina (AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA,
2013).
A instalação da crise mundial no setor
energético, sobretudo na Europa e nos Estados
Unidos, resultou no excesso de capacidade de
reino de petróleo e numa menor demanda
por gasolina, o que deve levar ao fechamento
de reinarias mais simples e estimular a
integração com indústrias petroquímicas.
Kent e Werber (2013) estimam que a Europa
perderá dez reinarias até ao inal da década.
Paradoxalmente, nos últimos anos, observa-se
ainda alto investimento no setor de reino em
alguns países da Europa, e majoritariamente na
América Latina.
No Brasil, com o lançamento do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007,
cujo maior aporte inanceiro é destinado para
petróleo e gás natural (R$ 179 bilhões), temse notado amplos investimentos na construção
ARtIGOS
e modernização de complexos portuários e
reinarias. Na segunda versão do programa, o
PAC 2, dentre as dez maiores obras, cinco são
relacionadas ao petróleo, destacando-se a
Reinaria Abreu e Lima (RNEST), em Pernambuco,
a Reinaria do Complexo Petroquímico do Rio de
Janeiro, a Reinaria Premium I, no Maranhão,
e Premium II, no Ceará. Estas duas últimas
tiveram a construção cancelada, em virtude
da crise inanceira da Petrobrás, mesmo após
a reordenação do território para as obras em
estágio avançado (BRASIL, 2013; CARRAMILO,
2015; LAVOR, 2015).
Rigotto (2008) aborda a problemática de uma
coniguração mais recente das indústrias no
mercado mundial orientada pelo capitalismo
liberal, cujo investimento em indústrias de
alto poder poluidor diminui nos países centrais
(onde cada vez mais a conscientização sobre
a reforma ecológica se faz acompanhar de
legislação ambiental e organização social mais
exigente) e aumenta nos países periféricos,
aproveitando-se de “vantagens competitivas
como solo barato, incentivos iscais, mão de
obra barata e dócil, e sociedades mais frágeis
em sua organização” (RIGOTTO, 2008).
As questões na dimensão da saúde e do ambiente
no planejamento de grandes empreendimentos
econômicos são tradicionalmente relegadas
para o plano secundário. Os recursos naturais,
os riscos tecnológicos e ambientais gerados
pelos processos de produção e consumo, a
degradação ambiental e os agravos que causam
à saúde, são distribuídos de forma desigual no
espaço, entre os segmentos sociais. Conforme
relatado por Silva (2009), os processos para
obtenção do licenciamento ambiental, como
a elaboração de Estudo de Impactos Ambiental
(EIA), são mal elaborados, pois não observam
a complexidade do território e nem analisam
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
113
ARtIGOS
aspectos culturais, econômicos, ambientais
e sanitários, bem conhecidos e respaldados
cientiicamente (SILVA, 2009).
Um dos aspectos mais críticos relacionados à
implantação de grandes empreendimentos,
em particular da cadeia do petróleo, é o
ocultamento dos problemas e das mudanças
que seus processos de construção trazem para
as vidas das pessoas, além da ausência de
participação esclarecida sobre as transformações
do território onde vivem e trabalham seus
habitantes. Esse processo deve incluir não
apenas a população residente no local, mas
todos os representantes das instituições
governamentais, não governamentais e privadas
dos mais variados setores que ali interagem
(SANTOS et al., 2013).
Vale ressaltar que a indústria do petróleo é
um dos empreendimentos com maior potencial
poluidor, seja na atmosfera, nas águas e ou no
solo – o que contribui para uma contaminação
não apenas localizada, mas em escala global,
gerando impactos negativos no ambiente
e na saúde das populações, e participando
ativamente,
também,
das
mudanças
climáticas e do aquecimento global. Conforme
analisado por Mariano (2001), o aumento das
concentrações de dióxido de carbono e de outros
contaminantes na atmosfera pode resultar no
efeito “estufa” (elevação da temperatura do
globo terrestre), que modiica o regime das
chuvas e produz alterações nas terras cultiváveis
e desertiicação. Segundo esta autora, as
reinarias consomem grandes quantidades
de água em praticamente todo o processo do
reino, podendo ultrapassar quatro milhões de
litros anuais, o equivalente ao consumido por
um município de 125 mil habitantes. O uso da
água resulta em eluentes líquidos altamente
tóxicos, de difícil tratamento e disposição,
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
que contaminam os diversos componentes
ambientais e causam danos à saúde.
Mesmo antes de se chegar ao momento de
conclusão das obras e início das operações de
reino do petróleo, é possível observar diversos
problemas socioambientais que tem início já no
período de terraplanagem do local escolhido
e se desdobram até término da construção
da planta industrial. Os locais que sediam
a construção de parques de reinos sofrem
processos de vulnerabilização, evidenciando
danos no modo de vida das comunidades com
impactos negativos sobre a saúde, aumento dos
conlitos socioambientais, divisões na sociedade
e a criminalização das lutas de resistência,
como mostram os diversos casos estudados e
denunciados (PACHECO; PORTO, 2009; PORTO,
2010; ACSELRAD, 2014; DOMINGUES et al.,
2014). Esse processo é marcado por injustiças
e conlitos sociais que, em sua maioria, são
invisibilizados pelos interesses econômicos
do setor empresarial e governamental, que
estão alinhados ao discurso desenvolvimentista
neoliberal. Este oculta ou minimiza os efeitos
negativos dos processos de intervenção
econômica, enaltecendo apenas a geração de
empregos como o grande ganho social, ignorando
as injustiças ambientais, que, segundo Porto
(2007), se caracteriza “como um mecanismo
para o qual sociedades desiguais destinam a
maior carga de danos ambientais decorrentes
do desenvolvimento às populações de baixa
renda, aos grupos sociais discriminados, grupos
étnicos tradicionais e populações vulneráveis”
(REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL apud
PORTO, 2007, p. 35).
Nesses locais, observam-se mudanças no
peril epidemiológico regional, alteração dos
ecossistemas, crescimento desordenado de
aglomerados urbanos, aumento da violência,
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
114
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
emergência de novas doenças e reemergência
de doenças erradicadas, além de processos de
desterritorialização, desemprego (ao término
das obras), poluição e favelização (RIGOTTO,
2007; GURGEL et al., 2009). As comunidades são
excluídas do processo de discussão e decisão sobre
a nova reconiguração econômica e produtiva
do território e populações tradicionais, como
povos indígenas, comunidades quilombolas,
agricultores e pescadores artesanais, são postos
em situação de vulnerabilidade, com potencial
para sofrer danos, ou de vulneração, condição
dos que já sofreram o dano (SCHRAMM, 2012;
DOMINGUES et al., 2014).
O desequilíbrio na manifestação das vozes
dos vulnerados desse território pelo poder
econômico é evidenciado na grande mídia,
que propagandeia apenas o bônus dos
empreendimentos econômicos e oculta o ônus
social, fragilizando a resiliência da população
a essa pletora ideológica desenvolvimentista
(SANTOS et al., 2013; DOMINGUES et al., 2014;
MARQUES, 2014).
De modo geral, com a instalação de grandes
empreendimentos industriais em contextos de
vulnerabilidade social e ambiental, ocorre um
intenso processo de disputa por bens materiais
e simbólicos. As populações vulnerabilizadas,
em face dos processos de injustiça ambiental,
organizam-se
em
movimentos
sociais
para o enfrentamento das transformações
socioeconômicas que afetam o ambiente e a
saúde de seu território. Para Manuel Castells
(2011), os movimentos sociais se deinem como
articulações da sociedade civil constituídas por
segmentos da população que se reconhecem
como portadores de direitos, os quais ainda
não se efetivaram na prática, e que podem
ser classiicados como legitimadores, ou seja,
instituídos pelas instituições dominantes; de
ARtIGOS
resistência, quando atuam em oposição às
estruturas de dominação; ou de identidade de
projeto, quando que está em jogo a construção
de nova identidade redeinindo sua posição
na sociedade. Concordando com ele, Peruzzo
(2010) enfatiza que as pessoas buscam soluções
para os seus problemas e recursos alternativos,
organizando-se em grupos formais e informais
ao redor de reinvindicações e interesses
coletivos, utilizando estratégias e tecnologias
produtoras de espaços democráticos que
possibilitem a politização da informação, e a
luta pela cidadania para suprir as necessidades
dos indivíduos e da sociedade e a garantia do
direito humano à comunicação (PERUZZO,
2010).
Dentre as estratégias de enfrentamento dos
processos de injustiça e vulnerabilização
socioambiental, a comunicação tem bastante
relevância, pois possibilita aprendizado,
produção de conhecimento, troca de saberes,
formas e expressões de vida e torna os
problemas visíveis, facilitando que mais atores
e instituições se articulem para sua resolução
e que os sujeitos das comunidades envolvidas
no problema possam ter um papel ativo nos
processos decisórios, tal como estabelecido
no Relatório MacBride pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), em 1980, que apresentou
uma análise crítica da comunicação mundial e
incentivou o fortalecimento da descentralização
da comunicação.
Nesse contexto, os movimentos ambientais
são portadores de uma queixa histórica sobre
o silenciamento dos meios de comunicação
de massa - mass media - em relação às suas
causas, protestos e reinvindicações. Dentre
diversos estudiosos dessa temática, Peruzzo
(2010) e Guareshi (2013) reconhecem que os
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
115
ARtIGOS
media tendem a apresentar pontos de vista
pouco heterogêneos e que priorizaram os seus
inanciadores (anunciantes privados e estatais),
em detrimento da diversidade de sujeitos e
pontos de vista que compõem a sociedade.
Como assinala Guareshi (2013), esses media
se “transformam em grandes conglomerados”
e se empenham em transparecer uma atitude
neutra, natural, desprovida de interesses
próprios.
No âmbito ampliado da comunicação, a
internet tem sido, nas últimas décadas, cada
vez mais utilizada como ferramenta para
difundir campanhas, causas, protestos e para
mobilização da opinião pública, conquistando
um número crescente de usuários que a
usam para ins diversos. As novas dinâmicas
possibilitadas pela Internet, no campo político,
econômico e simbólico, são inluenciadas por
suas principais características: a velocidade na
transmissão das informações, a interatividade
e a arquitetura de comunicação horizontal
organizada em rede.
Este trabalho tem como propósito analisar as
estratégias utilizadas por dois movimentos
socioambientais no ciberespaço para estruturar
suas lutas em defesa do ambiente e da saúde
diante da instalação de indústrias petrolíferas,
sendo um na região de Extremadura, Espanha,
e outro em Pernambuco, Brasil.
O CIBERAtIVISMO SOCIOAMBIENtAL
Guatarri (1990) airma que, para as pessoas
tomarem consciência dos perigos mais evidentes
que ameaçam o meio ambiente natural das
sociedades, é necessário um novo modelo de
visão e organização de mundo, que leve em
conta a inter-relação fundamental existente
entre as esferas natural, social e subjetiva, e
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
que envolve, portanto, uma maior visibilidade
e amplitude de discussão dos problemas
ambientais tanto nos espaços institucionais
como na grande mídia (GUATTARI, 1990).
Tal pensamento encontra ressonância nas
considerações de Porto (2011, p. 34):
[...] As populações impactadas por certos
projetos econômicos de desenvolvimento
e concepções de mundo reduzem a
sua vulnerabilidade à medida que se
constituem e passam a protagonizar o
seu papel enquanto sujeitos coletivos,
permitindo a expressão pública e política
de vozes sistematicamente ausentes
dos processos decisórios que deinem os
principais projetos de desenvolvimento nos
territórios.
Nas últimas duas décadas, é inquestionável
a emergência das Tecnologias de Informação
e Comunicação (TIC), principalmente com
o advento da internet e a sua incorporação
nas atividades diárias, o que tem levado
a movimentos profundos de construção e
reconstrução das relações sociais e políticas
nos níveis local e global. Diferentes autores
reconhecem o esboço de novas estruturas no
âmbito da cidadania digital e das redes sociais,
redes de redes, capazes de conferir dimensões
ampliadas e inovadoras ao exercício da
cidadania a partir da criação de plataformas de
interação em tempo real entre utilizadores das
TICs em todo o mundo (LÉVY, 2009; PERUZZO,
2010; CASTELLS, 2011; REGO, 2014).
A inserção no universo do chamado ciberespaço
está ajudando a conigurar novas sociabilidades,
relacionamentos e valores culturais. Mesmo
que grandes contingentes populacionais –
em particular os mais empobrecidos – ainda
estejam distantes das novas TICs, é crescente
a demanda por serviços online. Todavia, apesar
do rápido aumento do número de pessoas
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
116
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
conectadas à rede mundial nos últimos 20 anos,
o acesso à internet ainda não é democrático,
e o alto custo da conexão e dos computadores
resulta em exclusão digital para uma
parcela signiicativa da população mundial,
principalmente nos países em desenvolvimento
(CASTELLS, 2011). A colonização do ciberespaço
por interesses corporativos e estatais e a
tendência à supericialidade da informação
disponibilizada, provocada principalmente pela
tríade velocidade, qualidade e quantidade,
representam outros aspectos negativos da
web. Por outro lado, a popularização dos
celulares e smartphones, com menor custo e
alta capacidade de processamento e conexão,
tem revertido um pouco este quadro de baixa
acessibilidade e distanciamento das TICs.
Contudo, é importante considerar a potência
da cibercultura na difusão das visões de mundo,
sem favorecer um pensamento dominante. Em
virtude do seu caráter distributivo e interativo,
conigurado em rede, oferece abertura para a
veiculação direta de informação e participação
ativa de diferentes sujeitos na construção
coletiva do conhecimento, o que Lévy deine
como “apropriação dos meios de produção pelos
próprios produtores” (LÉVY, 1999, p. 245). Dessa
forma, todo elemento que se encontra inserido
na rede acessa qualquer outro, conigurando
um sistema com possibilidades de comunicação
generalizadas, direta e de forma horizontal
(SANTOS et al., 2014).
As convenções sobre o meio ambiente surgidas
a partir do século XX, como a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano
de 1972, consideram importante a contribuição
do campo da comunicação para o alcance
efetivo e a melhoria de vida dos povos, sendo
esta estratégica para a realização das ações de
saúde e diálogo com a população6.
ARtIGOS
Mais recentemente, nos anos 1990, com o
avanço tencológico e o surgimento da Internet,
modiicou-se drasticamente a forma de
interação social, inluenciando novas dinâmicas
no campo político, econômico e simbólico,
levando a movimentos profundos de construção
e reconstrução das relações sociais e políticas,
local e globalmente. Tanto Lévy (2009) como
Rego (2014) reconhecem o esboço de novas
estruturas no âmbito da cidadania digital e das
redes sociais, capazes de conferir dimensões
ampliadas e inovadoras ao exercício da
cidadania a partir da criação de plataformas
de interação em tempo real entre utilizadores
das TICs em todo o mundo (LÉVY, 2009; REGO,
2014).
No âmbito político, as tecnologias interativas
se consolidam como elementos favoráveis
à regulação popular de políticas públicas,
elaboradas e executadas por meio de decisões
tomadas pelos representantes políticos eleitos.
Tal fato aproxima a sociedade civil das ações
de gestão e aumenta signiicativamente seu
protagonismo no processo de construção social
participativa (ARAÚJO et al., 2015).
Atualmente, as tecnologias interativas, a
exemplo de mídias sociais como Facebook,
Youtube, Vimeo, Instagram dentre outras, se
coniguram como plataformas de construção
política, na qual reverberam vozes dissonantes,
em escala global, uma vez que não são mediadas
pelos veículos tradicionais de comunicação
(SAKAMOTO, 2013). O universo da web
democracia ou democracia digital pode albergar
outras possibilidades de intervenção ativista,
tais como a blogosfera e a web participativa.
O ativismo midiático, em seu caráter
descentralizado, elege múltiplas subjetividades
e sua luta é marcada pela multiplicação dos
pontos de vista, fortalecendo, dessa, forma um
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
117
ARtIGOS
movimento de contracultura (CASELAS, 2014).
Nesse
contexto,
emergem
movimentos
socioambientais que se organizam e utilizam a
internet para ampliar o debate, num cenário
de desenvolvimento desenfreado e crescimento
econômico a qualquer custo. Tais movimentos
têm o intuito de conquistar a adesão e a
participação de mais ativistas nos níveis
local e global, buscando uma legitimidade
do movimento, uma maior agregação de
sujeitos e o aumento da sua capacidade de
agir sobre fontes de poder, apresentando suas
necessidades e reinvindicações através de
uma perspectiva coletiva (PERUZZO, 2010).
Buscam-se estratégias nas quais a tecnologia
possa contribuir para uma democracia direta,
permitindo, assim, que o cidadão possa cobrar,
iscalizar, propor soluções para a melhoria de
suas condições de vida (CASTELLS, 2003)7.
Os movimentos nascidos no campo da ecologia
popular encontram os elementos fundadores de
sua ação política nas práticas de autonomia e
participação. Esse tipo de movimento parte da
ideia de democracia da diversidade, que exclui
formas hegemônicas de poder e se organiza
horizontalmente em rede. Como airma Porto
(2007), busca-se alcançar a justiça ambiental
enquanto um conjunto de princípios e práticas
sociais que asseguram a proteção dos direitos
em face das consequências negativas de ações
de inalidade econômica, procurando assegurar
o acesso justo e equitativo aos recursos
ambientais e às informações ao conjunto da
sociedade e grupos vulnerabilizados (PORTO,
2007).
Em 2012, o Brasil presenciou a mobilização
global de caráter popular e comunitário,
ocorrida de forma paralela à Cúpula dos povos,
espaço em que integrantes de movimentos
sociais, organizações não governamentais e
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
outros setores da sociedade civil buscaram
debater as causas estruturais da crise ambiental
e apresentar caminhos para as soluções. Outro
exemplo signiicativo foram os protestos que
aconteceram em diversas capitais brasileiras,
em junho de 2013, cujos manifestantes
reivindicaram melhorias inicialmente no setor
de transporte público, mas que foram ampliadas
para outros setores prioritários como educação
e saúde. As manifestações de 2013 tiveram
sua maior mobilização pelas mídias sociais na
internet, com destaque para grupos organizados
como o Movimento do Passe Livre e Mídia
Ninja, a semelhança de outros movimentos de
protesto, em outras partes do mundo, como a
ocupação de Wall Street, nos Estados Unidos e
a Primavera Árabe, no Oriente Médio e Norte da
África, provocados pela crise econômica e por
governos não democráticos (ZIZEK, 2012).
A internet vem desenvolvendo a democratização
da comunicação e os movimentos sociais - como
os dois casos que apresentaremos a seguir - têm
buscado esse espaço eletrônico para expressar
suas ideias e valores através do ciberativismo,
que para Lemos (2004), pode ser deinido como
conjunto de práticas sociais e comunicacionais
que superam a mediação dos massa media,
utilizando combinações múltiplas de tecnologias
digitais no ciberespaço sem hierarquia.
PERCURSO MEtOdOLóGICO
O artigo evidencia o universo dos movimentos
socioambientais relacionado à resistência
popular frente às nocividades ambientais
e sociais decorrentes da construção de
reinarias de petróleo e sua busca por espaço
e legitimação institucional no ciberespaço
(Internet). Foram eleitos dois movimentos em
contextos sociocultural e econômico distintos:
(1) a Plataforma Ciudadana “Reinería No”, da
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
118
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
região de Extremadura, Espanha, por ser um
movimento que conseguiu impedir a construção
de uma reinaria neste território; e (2) o Fórum
Suape: espaço socioambiental, em Pernambuco,
Brasil, que se estruturou após o início da
construção da reinaria RNEST, com a inalidade
de buscar soluções às injustiças socioambientais
presentes no território. Priorizou-se analisar
movimentos que tivessem atuação em proveito
de populações de territórios com perspectiva
de projetos de reinarias de petróleo e que
fazem uso do ciberespaço.
A coleta de dados foi realizada mediante
investigação, na internet, dos sites dos dois
movimentos sociais, bem como das mídias
sociais Facebook e Youtube. Também foi
realizado contato com representantes de cada
movimento via e-mail, para busca de mais
informações. Como a Plataforma Ciudadana
Reinería No (PCRN) encerrou algumas das
atividades na internet a partir de 2015, utilizouse também como fonte de dados o livro de
crônicas El emperador estaba desnudo: Crónica
de la lucha ciudadana contra una reinería de
petróleo en Extremadura, que traz a história de
luta do movimento (PLATAFORMA CIUDADANA
REFINERÍA NO, 2013).
Para organização e análise dos dados foram
utilizadas algumas das categorias propostas
por Araújo, Penteado e Santos (2015) para a
construção do Índice de Participação Política
e Inluência (IPPI), que procura identiicar o
grau de inluência exercido pelas organizações
da sociedade civil sobre o ciclo de políticas
públicas e as experiências de ciberativismo.
Como nosso foco era levantar as estratégias de
comunicação dos movimentos sociais, foram
eleitas três categorias: (1) Atores e Capital
Social, para a identiicação e classiicação dos
atores envolvidos quanto ao seu capital social
ARtIGOS
para a mobilização de recursos inanceiros
e mobilização de pessoas; (2) Estratégias
de Mobilização, para veriicar se após a
realização de uma ação ou mobilização houve
um desdobramento político: proposta de uma
política pública ou inluência na formação da
agenda; e (3) Uso dos Recursos da Internet,
para a identiicação e avaliação dos dispositivos
comunicacionais
que
o
grupo/coletivo
utiliza(ou) em suas ações ativistas.
O presente estudo não pretendeu realizar o
cálculo do IPPI, conforme proposto por Araújo
et al. (2015), atendo-se à realização de análise
qualitativa de base bibliográica e documental
com a inalidade de caracterizar as estratégias
de ação e veriicar como elas puderam contribuir
para os objetivos de cada movimento.
O CIBERAtIVISMO dE MOVIMENtOS
SOCIOAMBIENtAIS NO BRASIL E NA
ESPANhA
O Fórum Suape: espaço socioambiental é uma
organização da sociedade civil articulada em
um fórum permanente, instituído em 2013,
que tem como objetivo discutir questões que
estão sendo vivenciadas pelos povos residentes
no entorno do Complexo Industrial Portuário de
Suape (CIPS) e seus relexos para as gerações
futuras.
O CIPS tem início na década de 1970, no
litoral sul de Pernambuco, entre os municípios
de Ipojuca e Cabo de Santo Agostinho, com
a construção do porto. Em 2005, através
do PAC, ganhou maior dinamicidade com a
construção da RNEST, do Estaleiro Atlântico
Sul e da Petroquímica da Petrobrás. Esses
investimentos culminaram na ampliação e
dinamização da infraestrutura, transformando
aqueles municípios em verdadeiros canteiros
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
119
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
ARtIGOS
de obras, nas quais os problemas econômicos,
políticos e socioambientais gerados estão
sendo distribuídos desigualmente nas mais de
27 comunidades localizadas na área do CIPS,
que sofrem prejuízos de ordem econômica
e material, cultural e simbólica, ambiental
sanitária, em virtude dos impactos negativos
profundos sobre o território de abrangência
direta e indireta do polo industrial.
Diante das iniquidades decorrentes da instalação
do CIPS, o Fórum Suape instituiu como missão
“incentivar e promover processos de equidade
social, direitos humanos e justiça ambiental na
região afetada pelas rápidas transformações
territoriais, sociais e ambientais decorrentes
dos empreendimentos” (FÓRUM SUAPE, 2015).
Para embasamento de sua luta, o Fórum
resgata um manifesto publicado em 1975, no
semanário Jornal da Cidade, por professores e
ativistas ambientais. Sob o título “A propósito
de Suape”, denunciava a preocupação com os
impactos do então novo empreendimento:
Tem-se irmado como tradição do estilo
recente de promover o desenvolvimento
econômico – que se entende como aumento
da renda per capita, o lançamento pelo
governo de grandes projetos de sua
iniciativa, que as autoridades presumem
consultar o interesse público e julgam
satisfazer as aspirações da população,
sem que uma consulta à última seja
efetivamente realizada. Esta é uma
regra quase universalmente seguida, cuja
validade não tem sido – a não ser em casos
excepcionais – posta em dúvida. Isto não
impede, todavia, que pessoas interessadas
e grupos de indivíduos manifestem sua
opinião a respeito de tais projetos e
empreendimentos, reagindo contra a
pretensão de transformar em verdade
indiscutível a tradição autocrática de não
fazer a confecção de grandes projetos ser
precedida de consulta às aspirações da
coletividade (FÓRUM SUAPE, 2015).
Naquela época, em plena ditadura, receberam
respostas coercitivas do governo pelos jornais
impressos, não sendo possível constituir um
movimento de luta. Quando da criação do
Fórum Suape, este documento é tomado
como referência para a sua constituição.
No manifesto do Fórum, lançado em 2013,
evidencia-se a importância da apropriação de
uma comunicação democrática:
Realizar e interagir de forma propositiva
com as iniciativas que estão sendo
implementadas nas diferenças regiões
do país, no que relaciona com a justiça
socioambiental. Os impactos nas suas
diferentes formas são evidentes, e
queremos levar aos diferentes setores da
sociedade que é possível outra forma de
desenvolvimento que leve realmente em
conta as necessidades básicas das pessoas
e a preservação ambiental. Denunciaremos
as mazelas que estão ocorrendo, em
particular as pessoas pobres, desprovidas
de meios midiáticos, invisíveis a sociedade.
Mas também apontaremos as alternativas
para construirmos uma nova sociedade
mais justa, fraterna e solidária (FÓRUM
SUAPE, 2015).
A Plataforma Ciudadana Reinería No (PCRN),
por sua vez, começou a se instituir como um
movimento ambiental em 2005, por iniciativa
dos moradores de Extremadura, região
autônoma da Espanha, fronteira com Portugal,
cuja população gira em torno de um milhão de
habitantes.
A Plataforma se formou após o Conselho de
Extremadura aprovar a instalação de uma
reinaria de petróleo em seu território –
Reinaria Balboa, sem discussão democrática
com os moradores (PLATAFORMA CIUDADANA
REFINERÍA NO, 2013). Mediante a falta de
socialização da informação sobre os efeitos
negativos decorrentes da instalação de uma
reinaria, o movimento teve como primeira
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
120
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
diretriz o lema: “para opinar tem que estar
adequadamente informado”, e centrou sua
atuação nos seguintes objetivos: (1) dar aos
cidadãos uma informação objetiva e contrastada
para que possam decidir o que querem para
sua terra; (2) exigir dos partidos políticos o
cumprimento de seus programas eleitorais que
apoiem os municípios no combate às alterações
climáticas, na promoção de iniciativas públicas
e privadas para a redução das emissões de gases
de efeito estufa e no desenvolvimento de fontes
de energia renováveis. O movimento passou a
exigir que toda declaração acerca da reinaria
fosse respaldada em informações técnicas e
cientíicas através do diálogo democrático com
a sociedade da região.
A PCRN emerge pautada na ideologia do
desenvolvimento sustentável, defendendo que o
modelo econômico relacionado à construção de
uma reinaria é incompatível com a preservação
da vida e do planeta, pois os impactos não
operam de forma linear, atingindo as pessoas
de modo desigual e produzindo muitos danos
irreversíveis. O manifesto norteador do
movimento apresenta dez argumentos para
impedir o projeto de construção da reinaria de
petróleo em Extremadura. Foi embasado nesses
argumentos que o grupo construiu seu discurso
nas diversas ações de mobilização, conforme
trecho abaixo:
Estas industrias son extremadamente
contaminantes,
ya
que
SIEMPRE
desprenden residuos que afectan muy
negativamente a la salud, provocando
enfermedades cancerígenas, bronquiales y
dermatológicas, cebándose principalmente
en la población infantil y en la tercera edad,
amén del pésimo aspecto de suciedad que
dan a nuestro entorno. Todos estos efectos
se multiplican en el caso de las reinerías
de interior, aun de última generación como
ésta (PLATAFORMA CIUDADANA REFINERÍA
NO, 2014).
ARtIGOS
Destaca-se a defesa dos produtos agropecuários
produzidos em seu território, alerta sobre os
problemas de saúde, defende a economia
estabelecida, como o turismo e agricultura e
o desejo de um futuro com indústrias limpas e
sustentáveis valorizando a cultura tradicional
da região.
El desarrollo turístico de Extremadura
potenciado recientemente por la Vía
de la Plata quedaría fulminantemente
arrasado con una reinería a nuestros
pies. […] consideramos un gravísimo error
de gestión del territorio y una forma
de violencia contra nuestro modo de
vida la implantación de una reinería de
petróleo por los efectos extremadamente
perniciosos que tendrían en la calidad
de nuestros productos agropecuarios
(PLATAFORMA CIUDADANA REFINERÍA NO,
2014).
O último item do manifesto do movimento é
crucial, por demonstrar a consciência ecológica
do movimento e a sua necessidade de ser ativo
nos processos decisórios de forma democrática.
A ideia de bem-viver aparece associada ao
pertencimento ao território e à consciência
do direito de ter postos de trabalho que não
causem adoecimento:
Somos ciudadanos independientes y
queremos, enin, ser activos, protagonistas
de nuestro presente y celosos de nuestro
futuro. Queremos disponer de un buen
medio natural y cultural, no por capricho,
sino porque es fundamental para vivir bien
y no terminar siendo unos ignorantes que
vendieron su futuro bajo el señuelo de unos
cuantos puestos de trabajo. Y pediremos
cuentas a los responsables políticos y
económicos que degraden, manipulen o
hipotequen nuestro patrimonio natural
y cultural (PLATAFORMA CIUDADANA
REFINERÍA NO, 2014).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
121
ARtIGOS
Figura 1 - Mapa do território do CIPS e suas comunidades.
Pernambuco, Brasil
Fonte: PÉREZ; GONÇALVES, 2012
AtORES E CAPItAL SOCIAL
Segundo Materleto (2010), uma rede social
representa “um conjunto de participantes
autônomos, unindo ideias e recurso em torno
de valores e interesses compartilhados”. Fontes
(2007) explica que as redes sociais formam
um complexo sistema social que estrutura as
relações entre atores no interior de grupos
e organizações especíicas ao movimento
e suas relações político-institucionais. Ao
descrevê-las, torna-se possível apreender
como elas inluenciam o comportamento social
e conseguem produzir mudança (FONTES,
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
Figura 2 - Mapa do território da Reinaria Balboa,
Extremadura, Espanha
Fonte: PLATAFORMA CIUDADANA REFINERÍA NO, 2013
2007; MARTELETO, 2010). Nesse sentido, tanto
o Fórum Suape quanto o PCRN constituem
uma ampla rede de atores sociais, conforme
descreveremos a seguir.
O Fórum Suape é composto por pessoas físicas
e instituições. Participam pesquisadores de
diversos campos do conhecimento: Associação
dos Geógrafos Brasileiros, Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), Federação de
Órgãos para Assistência Social e Educacional
(FASE), Fundação Oswaldo Cruz Pernambuco
(Fiocruz);
lideranças
de
comunidades
tradicionais (Conselho Pastoral dos Pescadores
NE II, associações de pescadores e moradores),
lideranças de organizações não governamentais
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
122
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
(ONG) envolvidas em temáticas especíicas,
tais como gênero, direitos humanos, meio
ambiente, questões fundiárias (Centro das
Mulheres do Cabo, Associação Brasileira de
Agroecologia, Action Aid, Comissão Pastoral
da Terra - CPT, Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST).
Além das redes locais, o Fórum se articula
com redes nacionais, como a Rede Brasileira
de Justiça Ambiental (RBJA), e instituições
não governamentais internacionais, como Both
ENDS8, SOMO9, OCDE Watch10, Conectas Direitos
Humanos11, International Service for Human
Rigth (ISHR)12, que têm sido importantes na
formação do capital social, seja através de
apoio inanceiro aos projetos de ação do Fórum,
seja na internacionalização da luta por meio
de denúncias das empresas multinacionais que
atuam no CIPS.
Já a PCRN foi composta por atores da sociedade
civil, deinidos pelo movimento como cidadãos
livres que valorizam a qualidade de vida para
além de aspectos meramente econômicos,
que não tem interesse ocultos e que são
contra indústrias contaminantes e rechaçam
o monopólio de indústrias pesadas na região
(PLATAFORMA CIUDADANA REFINERIA NO, 2005).
Mulheres, trabalhadores, jovens, agricultores,
pesquisadores também fazem parte deste
movimento que instituiu um coletivo que se
reunia semanalmente no colégio público “José
Rodrígues Cruz”, em Villafranca de los Barros
(Badajoz), para discussões e planejamento
de suas atividades. À medida que foi se
consolidando, aumentaram as adesões de grupos
populares provenientes de diversos segmentos,
como atores, músicos, artistas, escritores,
donas de casa, crianças, jornalistas, radialistas,
associação de moradores campesinos, caso da
Associação de Amigos da Via de la Plata e do
ARtIGOS
Caminho de Santiago, e partidos políticos de
esquerda.
Nestes dois movimentos sociais de caráter direto
e descentralizado, a articulação territorial,
através de redes sociais, para a busca de
caminhos alternativos à submissão imposta
pelo mercado mundial, é uma realidade,
uma vez que se ampliam as possibilidades de
organização de práticas sociais na construção
de processos coletivos para o desenho de
caminhos alternativos, participativos, criativos
e emancipatórios que conduzam a luta contrahegemônica em favor de uma sociedade
democrática, mais justa e igualitária.
EStRAtÉGIAS dE MOBILIZAÇÃO
Além de ações de mobilização articuladas com
lideranças comunitárias do território e audiências
do Ministério Público, o Fórum Suape busca dar
visibilidade aos conlitos que estão emergindo e
oferecer ajuda política e jurídica para resolver
alguns dos problemas de desterritorialização
de comunidades locais – resultante da chegada
das indústrias que necessitam de grandes áreas
para sua implantação – e processos de injustiça
ambiental, como a formalização de denúncias
extrajudiciais, judiciais e políticas. São grandes
as diiculdades que o movimento enfrenta na
formação de agendas e adesão ou simplesmente
no diálogo com instituições governamentais e
empresas que atuam em Suape para discussão
dos principais problemas enfrentados, como a
violência da polícia e milícias na expulsão de
moradores de suas casas, a contaminação das
águas – das fontes de abastecimento e do mar –,
do solo e do ar, decorrentes de obras estruturais
como a dragagem para aprofundamento do
canal do porto. A articulação com o Ministério
Público, com a Comissão de Direitos Humanos
da Assembleia Legislativa de Pernambuco, para
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
123
ARtIGOS
a realização de reuniões e audiências públicas,
tem conseguido superar a ausência de diálogo e
escuta por parte das instituições, porém, ainda
está longe de conseguir inluenciar as políticas
públicas mediante processos participativos
transparentes de acompanhamento e avaliação
das ações do CIPS e de controle social. A luta
deste movimento ainda está em curso, e
alcançar a justiça ambiental é seu objetivo, a
im de que as comunidades afetadas consigam
sair de sua condição de vulnerabilizados,
mas para tal, conforme defendido por Porto
(2007), é necessário tanto o acesso justo e
equitativo aos recursos ambientais do país
quanto o acesso amplo às informações que lhes
dizem respeito, favorecendo a constituição de
movimentos e sujeitos coletivos na construção
de modelos alternativos e democráticos de
desenvolvimento. Nas palavras de Araújo et
al. (2015), “[...] quanto maior o diálogo ou
contatos porosos entre Estado e sociedade
civil, mais se deinem como democráticas as
políticas adotadas ou realizadas” (ARAÚJO et
al., 2015, p. 2-3).
O Movimento PCRN se organizou por meio
de diversas estratégias como passeatas,
manifestações, fóruns temáticos, além da
elaboração de relatórios e estudos sobre o
universo do petróleo, meio ambiente, mudança
climática, energias renováveis e saúde por
especialistas de universidades e centros de
pesquisa, tanto para obter o respaldo cientíico
quanto para compreender a amplitude dos
problemas que uma reinaria pode causar e
assim efetivar a troca de saberes com os demais
moradores sobre o futuro do seu território
(PLATAFORMA CIUDADANA REFINERIA NO, 2013).
Segundo o movimento, para compreender as
transformações que uma reinaria produz em
um território seria necessário buscar as mais
variadas fontes de informação e construir
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
estratégias comunicativas que conseguissem
mobilizar o maior número de pessoas, de modo
a pressionar os representantes e investidores do
projeto – Grupo Gallardo –, e os representantes
governamentais para que o projeto não fosse
implantado na região.
Conforme relato no primeiro livro do
movimento, intitulado La salud, la dignidad
y la información dan la libertad al ciudadano
(PLATAFORMA CIUDADANA REFINERIA NO, 2005),
como a cobertura das atividades da PCRN pela
mídia tradicional era diicultada pela pressão
dos grupos favoráveis à reinaria Balboa e pelo
desconhecimento dos reais problemas que a
indústria do petróleo causaria na região, eles
utilizaram a internet como um espaço para
realizar ativismo e mobilização da população
durante a intensa campanha para o impedimento
da construção da reinaria. O objetivo era
instituir o envolvimento da sociedade civil
nas decisões do Estado e para tal realizaram,
durante este período, atividades políticas,
culturais e educativas numa gama de formatos
e possibilidades: manifestações, concentrações
assembleias,
caminhadas,
concertos
musicais, exposições, feiras, protestos em
eventos nacionais e internacionais, visita às
instituições governamentais e de defesa dos
direitos humanos internacionais, informes
e comunicados, e sempre quando possível,
articulando a imprensa para a cobertura destas
ações coletivas.
Em julho de 2012, com amplo apoio popular,
o movimento conseguiu impedir a construção
da reinaria Balboa. A Declaração de Impacto
Ambiental, publicada pelo Ministério de
Agricultura Alimentação e Meio Ambiente
espanhol, reconheceu a inviabilidade da
instalação da reinaria, em razão dos grandes
impactos, que afetariam não somente o
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
124
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
local do empreendimento, mas toda a região
do entorno. Esse talvez tenha sido o único
movimento popular a conseguir que os desejos
da sociedade civil fossem incorporados
pelo governo de forma tão emblemática e
signiicativa: o cancelamento do projeto da
reinaria (PLATAFORMA CIUDADANA REFINERIA
NO, 2013).
USO dOS RECURSOS dA INtERNEt
A militância no espaço da internet tornouse uma das grandes estratégias dos dois
movimentos socioambientais, dessa forma
pudemos veriicar as diversas formas e frentes
de trabalho na busca de conquistar a adesão
das pessoas para o enfrentamento de propostas
que põem em jogo a sustentabilidade do
desenvolvimento humano e dos ecossistemas.
O Fórum Suape utiliza o ciberespaço como
mais um espaço para as lutas sociais, para
articulação e divulgação dos problemas
em Suape, contrapondo-se ao discurso
desenvolvimentista neoliberal que apresenta
apenas os desdobramentos benéicos para
a população e o Estado, e cuja postura
totalitária não deveria encontrar ressonância
em uma democracia. A sua página na internet
foi estruturada em formato semelhante ao de
algumas mídias sociais, pois possibilita grande
interatividade nas discussões e publicações,
sendo necessário efetivar um cadastro com
criação de login e senha. Os usuários podem
participar de salas virtuais de bate papo, e
realizar postagens de textos, fotos e vídeos.
Esse cadastro também possibilita o envio de
e-mail para todos os usuários convidando para
as atividades do movimento (FÓRUM SUAPE,
2015). A página do Fórum13 possibilita ainda o
acesso a textos, artigos, dissertações e teses
sobre temas correlatos à causa, além do registro
ARtIGOS
denunciativo das injustiças e da omissão dos
órgãos gestores.
O espaço virtual ganha, portanto, a força
de um dispositivo regulador de fácil acesso,
conigurando-se em um espaço ágil de denúncia
e mobilização de articulações populares tanto
virtuais como reais.
O site da Plataforma Ciudadana14, por sua vez,
era utilizado como um espaço para reunir os
documentos construídos durante todo seu
período de atuação e também para divulgar as
ações e agendas. A página virtual foi organizada
por subdivisões de temas – saúde, legislação,
mobilização social, energia e meio ambiente –
e seções diversas. Em 2015, o site foi retirado
do ar.
Cada vez mais as mídias sociais diversas, dentre
elas o Facebook, vêm sendo utilizadas como
espaço comum de discussão e participação,
onde as pessoas podem se agregar, debatendo
e promovendo ações e ideias. Lemos (2004)
airma que este espaço funciona de forma
complementar ao espaço lugar, pois permite a
criação de arenas monopolizadas anteriormente
apenas pelos mass media (LEMOS, 2004). Tanto
o Fórum Suape quanto a PCRN criaram peris no
Facebook para interação e mobilização com os
atores sociais parceiros e população em geral,
além do compartilhamento de assuntos de
interesse comum,e fotos, vídeos e chamadas
para eventos15.
A estratégia do audiovisual também está cada
vez mais presente nos movimentos sociais,
tanto pela facilidade tecnológica de produção
(câmeras fotográicas e smartphones que
possibilitam imagens em alta qualidade) como
pela facilidade de veiculação e circulação na
internet em plataformas como YouTube, Vimeo
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
125
ARtIGOS
etc. Esse novo contexto incentiva os ativistas
a produzirem seus próprios vídeos. O Fórum
Suape tem investido, ainda timidamente,
nesta estratégia, pois seu canal no YouTube
conta apenas com 13 vídeos, sendo dois
documentários - Suape, um caminho sinuoso
e Suape, desenvolvimento para quem? e
os demais, pequenos vídeos produzidos
pelos moradores das comunidades afetadas
denunciando os atos de violência cometidos
pela polícia na desapropriação de suas casas.
Já o canal do YouTube da PCRN conta com mais
de 90 vídeos, entre atos políticos, passeatas,
shows de música, sendo o mais antigo de
setembro de 2008 e o mais recente de abril
de 2015. Também foram identiicados no site
muitos vídeos postados por outros usuários
ligados ao movimento social, muitas vezes
vídeos simples, em estilo slideshow. Castells
(2011) relata que o alcance do YouTube em
2007 o tornou o maior meio de comunicação
do mundo, pois possibilitou o acesso também
pelo celular. Segundo este autor, a produção
e o consumo de vídeo se popularizaram, e
despertam, muitas vezes, maior interesse do
que a leitura de textos.
Merece citação o documentário produzido pelo
Canal Extremadura TV, em 2013, intitulado El
Lince com botas 3.0: Las razones del no16, que
mostra toda a luta do movimento e explica o
porquê de não quererem uma reinaria pertos
de suas casas.
Lemos (2004) ressalta que as diversas
ferramentas da internet podem mobilizar
pessoas e colaborar na organização de
movimentos, na difusão da informação por
intermédio da articulação em rede, de modo
descentralizado e colaborativo, uma vez que
as pessoas podem interagir com movimentos de
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
qualquer parte do mundo em tempo real. De
acordo com Castells (2011), o desenvolvimento
de redes horizontais de comunicação interativa
que ligam o local e o global integram todas as
formas de media, possibilitando ás pessoas a
apropriação de novas formas de se comunicar e
atuar, como se pode veriicar nos movimentos
socioambientais do Brasil e da Espanha (LEMOS,
2004; CASTELLS, 2011)
CONSIdERAÇÕES FINAIS
Os dois movimentos analisados tecem seus
argumentos apoiando-se em conceitos de justiça
ambiental e de desenvolvimento sustentável
preconizados em documentos internacionais,
como o Relatório Brundtland e a Agenda 21,
ressaltando o pertencimento territorial e
cultural de cada contexto e conseguindo, dessa
forma, construir seu espaço ação na sociedade,
tanto utilizando o ciberespaço – online –
quanto estratégias de mobilização no território
– off-line –, favorecendo a constituição de
movimentos e sujeitos coletivos na construção
de modelos democráticos e alternativos e
ao desenvolvimento da cadeia produtiva do
petróleo.
O movimento espanhol construiu estratégias
defendendo possibilidades de desenvolvimento
sustentável em lugar da construção de uma
reinaria de petróleo, surgindo daí a necessidade
de criação de um espaço onde ele pudesse ser
materializado, dada a diiculdade de inserção
nos mass media. Foi com a mobilização em rede,
dentro e fora da internet, que o movimento
conseguiu visibilidade e reconhecimento,
rompendo os limites geográicos, conseguindo
promover o sentimento de coletivização e de
pertencimento dos envolvidos no processo.
O movimento brasileiro guarda um contexto
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
126
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
de enfrentamento signiicativamente distinto.
Aqui, alguns dos desaios postos são: conquistar
a adesão de novos atores sociais à sua luta e
conseguir estabelecer um diálogo participativo
e com maior pressão na elaboração de políticas
pelo poder público.
O ciberespaço amplia as possibilidades de
organização de práticas sociais participativas
na construção de processos coletivos e efetiva
a comunicação em rede de caráter direto
e descentralizado. O uso das tecnologias
de comunicação e informação, como os
computadores portáteis, tablets e smartphones,
tem possibilitado caminhos alternativos,
participativos, criativos e emancipatórios que
conduzem à luta contra-hegemônica, em favor
de uma sociedade democrática mais justa e
igualitária.
Os movimentos ciberativistas têm conseguido
formular e pôr em prática estratégias
de comunicação alternativas aos medias
tradicionais, e têm alcançado diversos
resultados
positivos,
inluenciando
as
políticas públicas em maior ou menor grau.
Como desaio, os ativistas precisam explorar
o potencial das TICs conhecendo melhor
suas ferramentas, nas palavras de Castells
(2003, p. 10), “apropriando-a, modiicando-a
e experimentando-a”, buscando, nestas
novas possibilidades de comunicação, maior
visibilidade, mediante o reconhecimento
público, no sentido de mobilizar os cidadãos
direta ou indiretamente envolvidos com o
problema e que compartilham os mesmos
objetivos e ideais, promovendo assim,
o sentimento de coletivização de forma
dialógica, libertadora e educativa, em busca da
preservação do direito humano à comunicação
em situações de potenciais danos ao ambiente
e à saúde.
ARtIGOS
REFERÊNCIAS
ACSELRAD, H. Disputas cognitivas e exercício
da capacidade crítica: o caso dos conlitos
ambientais no Brasil. Sociologias, v. 16, n.
35, p. 84-105, 2014. Disponível em: <http://
seer.ufrgs.br/index.php/sociologias/article/
view/45985>. Acesso em: 10 mar. 2016.
AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA. World
Energy Outlook 2013. 2013.
ARAÚJO, R. de P. A.; PENTEADO, C. L. C.;
SANTOS, M. B. P. Digital democracy and
experiences in e-participation: Internet
activism and public policy. história, ciências,
saúde Manguinhos, v. 22 Suppl, p. 1597-619,
2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-597
02015001001597&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>.
Acesso em: 18 fev. 2016.
BRASIL. 7o Balanço Programa Aceleração do
Crescimento - Eixo Energia. 2013. Brasília-DF.
Disponível em: <http://www.pac.gov.br/pub/
up/pac/7/05-PAC7_energia.pdf>. Acesso em:
30 ago. 2013.
CARRAMILO, C. Petrobras cancela “reinaria
premium” e cidade lida com perdas e
frustração. G1 MA [online], 07/02/2015.
Disponível em: <http://g1.globo.com/ma/
maranhao/noticia/2015/02/petrobrascancela-reinaria-premium-e-cidade-lida-comperdas-e-frustracao.html>. Acesso em: 24 fev.
2016.
CASELAS, J. M. S. Redes e redeinição do
espaço público. In: CRUZ, M. A. et al. (eds.).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
127
ARtIGOS
Cidadania na Sociedade do Conhecimento.
Lisboa: Centro de Filosoia das Ciências da
Universidade de Lisboa, 2014. p.111–128
CASTELLS, M. A Galáxia da Internet: relexões
sobre a internet, os negócios e a sociedade.
Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
______. A Sociedade em Rede. 4. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
CAVALCANTI, C. C. desenvolvimento a todo
custo e a dimensão ambiental: o conlito
do complexo industrial-portuário de Suape,
Pernambuco. Recife-PE, 2008.
DOMINGUES, R. C. et al. A vulneração
socioambiental advinda do complexo industrial
portuário de Suape : a perspectiva dos
moradores da Ilha de Tatuoca – Ipojuca / PE.
tempus Acta de Saude Coletiva, v. 8, n. 2, p.
69-91, 2014. Disponível em: <http://api.ning.
com/iles/YLaeso7tISAfdhKP3fVyIUOkS5oeXA-1
AnD0K4vI7XMehGOVhMiAnLetFISF*O63OrbCJrYx
Nm1C8JRv5kEo2fkc-4BDuzzb/Artigopublicado.
pdf>. Acesso em: 10 mar. 2016.
FONTES, B. A. S. M. Redes sociais e saúde:
sobre a formação de redes de apoio social no
cotidiano de portadores de transtorno mental.
Política & trabalho, Revista de Ciências
Sociais, n. 26, p. 87-104, 2007. Disponível em:
<http://www.nucleodecidadania.org/nucleo/
extra/2007_07_16_06_10_51.pdf>. Acesso em:
10 mar. 2016.
FÓRUM SUAPE. Disponível em: <http://
forumsuape.ning.com>. Acesso em: 7 out.
2015.
GUATTARI, F. As três ecologias. 11 ed.
Campinas,SP: Papirus, 1990.
GURGEL, A. DO M.; MEDEIROS, A. C. L. V.;
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
ALVES, P. C.; et al. Framework dos cenários
de risco no contexto da implantação de
uma reinaria de petróleo em Pernambuco.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 14, n. 6, p.
2027–2038, 2009. ABRASCO - Associação
Brasileira de Saúde Coletiva. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1413-81232009000600010&lng=e
n&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 6 mar. 2015.
KENT, S.; WERBER, C. Crise das reinarias
ameaça a segurança energética da Europa.
Valor Econômico, 2013. Disponível em:
<http://www.udop.com.br/index.php?item=n
oticias&cod=1103012#nc>. Acesso em: 2 ago.
2013.
LAVOR, T. Cancelamento de reinaria frustra
expectativa no “Eldorado” do Ceará. O Globo,
Economia [online], 03/05/2015. Disponível
em: <http://oglobo.globo.com/economia/
petroleo-e-energia/cancelamento-dereinaria-frustra-expectativa-no-eldorado-doceara-16044408>. Acesso em: 24 fev. 2016.
LEMOS, A. Cidade-ciborgue: a cidade na
cibercultura. Galáxia, v. 8, p. 129-148, 2004.
LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 2009.
MARIANO, J. B. Impactos Ambientais do
Reino de petróleo, 2001. 216p. Dissertação
(Mestrado em Ciências em Planejamento
Energético) - Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
MARQUES, K. K. D. Moradores invisíveis:
o sofrimento social dos moradores da Ilha
de Tatuoca - Ipojuca – PE – em seu processo
de desterritorialização. 2014. Dissertação
(Mestrado Acadêmico em Saúde Pública)
- Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães,
Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2014.
Disponível em: <http://www.cpqam.iocruz.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
128
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
ARtIGOS
br/bibpdf/2014marques-kkd.pdf>. Acesso em:
10 mar. 2016.
na promoção da saúde e da justiça ambiental.
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
MARTELETO, R. M. Redes Sociais, Mediação
e apropriação de informaçõoes: situando
campos, objetos e conceitos na pesquisa em
ciência da informaçãao. Pesquisa Brasileira
em Ciência da Informação, v. 3, n. 1, p.
27-46, 2010. Disponível em: <http://www.
mendeley.com/research/redes-sociaismedia??o-e-apropria??o-informa??oes-situandocampos-objetos-e-conceitos-na-pesquisaem/>. Acesso em: 5 mar. 2015.
______. Complexidade, processos de
vulnerabilização e justiça ambiental: Um
ensaio de epistemologia política. Revista
Crítica de Ciências Sociais, v. 93, n. 93, p.
31-58, 2011. Disponível em: <http://rccs.
revues.org/133>. Acesso em: 10 mar. 2016.
PERUZZO, C. M. K. A Comunicação nos
Movimentos Sociais: exercício de um direito.
diálogo de la comunicación, v. 82, n. V, p.
1-7, 2010.
PLATAFORMA CIUDADANA REFINERIA NO
- PCRN. Disponível em: <http://www.
plataformareineriano.es/>. Acesso em: 5 fev.
2014.
PLATAFORMA CIUDADANA REFINERIA NO. La
salud, la dignidad y la información dan la
libertad al ciudadano. Plataforma Ciudadana
Reinería No, 2005.
______. El imperador estaba desnudo crônica de la lucha ciudadana contra uma
reinería de petróleo em Extremadura.
Villafranca de los Barros-España: Imprenta
Raeygo, 2013.
PORTO, M. F. Conlitos sócio-ambientais na
lógica da justiça ambiental. 2010. Disponível
em: <http://www.justicaambiental.org.br/
projetos/clientes/noar/noar/UserFiles/17/
File/Conlitossocioambientais.pdf>. Acesso
em: 10 mar. 2016.
______. Uma Ecologia Política dos Riscos:
princípios para integrarmos o local e o local
PORTO, M. F.; PACHECO, T. Conlitos e
injustiça ambiental em saúde no Brasil.
tempus – Actas de Saúde Coletiva, v. 4, n.
4, p. 26-37, 2009. Disponível em: <http://
www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/
article/viewFile/742/752>. Acesso em: 10
mar. 2016.
REGO, B. P. C. Cidadania Digital e Redes
Sociais: A ampliação do horizonte cívico a
novos mecanismos de participação política ”
referente ao tema Cidadania e Redes Sociais.
In: CRUZ, M. A. et al. (eds.). Cidadania na
Sociedade do Conhecimento. Lisboa: Centro
de Filosoia das Ciências da Universidade de
Lisboa, 2014. p.135–149. (Col. Documenta)
RIGOTTO, R. M. “Caiu na rede , é peixe !”:
a industrialização tardia e suas implicações
sobre o trabalho , o ambiente e a saúde no
Estado do Ceará , Brasil. Cadernos do CRh, v.
23, n. Sup. 4, p. 599-611, 2007.
______. desenvolvimento, Ambiente e
Saúde: implicações da (des)localização
industrial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.
SAKAMOTO, L. Em São Paulo, o Facebook e
o Twitter foram às ruas. In: MARICATO, E.
(Ed.). Cidades Rebeldes: Passe Livre e as
manifestações que tomaram as ruas do Brasil.
São Paulo-SP: Boitempo: Carta Maior, 2013. p.
95-100.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
129
CIBERATIVISMO, SAÚDE E AMBIENTE
ARtIGOS
SANTOS, M. O. S. et al. Análise crítica do
discurso da mídia impressa sobre a saúde
e o ambiente no contexto da instalação da
reinaria de petróleo em Suape, PE. Reciis, v.
6, n. 4, supl., fev. 2013. DOI: http://dx.doi.
org/10.3395/reciis.v6i4.623
SANTOS, N. B. et al. Um fantasma ronda
o Brasil e o mundo: o fantasma das Redes
Sociais. In: CRUZ, M. A. et al. (eds.).
Cidadania na Sociedade do Conhecimento.
Lisboa-Portugal: Centro de Filosoia das
Ciências da Universidade de Lisboa, 2014.
SCHRAMM, F. R. Vulnerabilidade, vulneração,
saúde pública e bioética da proteção: análise
conceitual e aplicação. In: TAQUETTE, S. R.;
CALDAS, C. P. (ed.). Ética e pesquisa com
populações vulneráveis. Rio de Janeiro: Ed.
da UFRJ, 2012. p. 37-57.
SILVA, J. M. DA. Análise da inter-relação
Saúde, trabalho e Ambiente no Estudo e
Relatório de Impacto Ambiental da Reinaria
do Nordeste – RNESt. Centro de Pesquisas
Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz,
2009. Disponível em: <http://www.cpqam.
iocruz.br/bibpdf/2009silva-jm.pdf>. Acesso
em: 10 mar. 2016.
ZIZEK, S. O ano em que sonhamos
perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012.
que estão por trás dos conglomerados midiáticos.
Como exemplo, podemos citar a Rede Brasileira de Justiça
Ambiental (RBJA), que se dedica à luta pela superação de
dinâmicas discriminatórias que oprimem grupos populacionais
especíicos em proveito da expansão do modelo neoliberal
e do crescimento econômico industrial no Brasil (PACHECO;
PORTO, 2009; ACSELRAD, 2014). A RBJA se constitui como
um movimento formado por ampla diversidade de atores
sociais em todo Brasil, como acadêmicos, movimento
sindical, organizações não governamentais, pesquisadores,
intelectuais e sociedade civil. E ainda o Geenpeace, que
tem uma atuação internacional, dentre tantos outros
movimentos seja em escala local ou global. Disponível em:
<www.greanpeace.org>.
7
Disponível em: <http://www.bothends.org/nl/Nieuws/
Our-stories/Havenuitbreiding-in-Suape,-Brazili%C3%AB/>.
8
9
Disponível em: <http://www.somo.nl/>.
10
Disponível em: <http://www.oecdwatch.org/>.
11
Disponível em: <http://www.conectas.org/>.
12
Disponível em: <http://www.ishr.ch/>.
13
Disponível em: <www.forumsuape.ning.com>.
14
Disponível em: <www.plataformareineriano.es>.
Em 2015 o peril da PCRN foi desfeito, provavelmente em
razão da desmobilização das pessoas após a conquista da
causa pela qual lutaram. Mas, neste peril, havia interações
com diversas outras pessoas em nível local a internacional.
Por meio dele pudemos, inclusive, fazer contato com
os coordenadores e adquirir o livro El emperador estaba
desnudo, que conta toda a história do movimento. Ainda
hoje há um grupo da Plataforma criado no Facebook, mas
que não vem sendo atualizado.
15
Disponível em: <http://www.canalextremadura.es/
alacarta/tv/videos/el-lince-30-las-razones-del-no-260513>.
16
Recebido em: 1/03/2016
Aceito em: 10/03/2016
A Agenda 21 apresenta diversas estratégias de comunicação
para contribuir para a diminuição dos impactos ambientais
que vem afetando todo o planeta (Santos, 2011), mas que na
prática não têm sido efetivadas, provavelmente devido aos
conlitos de interesses econômicos das grandes corporações,
6
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
130
ARtIGOS
Conhecimento sensível (felt
knowledge) e vulnerabilidade
corajosa (courageous
vulnerability): um estudo sobre a
memória involuntária no livro Em
busca do tempo perdido através
das ilosoias de William James e
Henry Bergson*
Rosa Slegers [1]
INtROdUÇÃO
William James faz a seguinte observação em
As variedades da experiência religiosa: “A
Filosoia vive de palavras, mas a verdade e a
realidade luem em nossas vidas de maneiras
que excedem a formulação verbal. No ato
vivo da percepção há sempre algo que brilha e
cintila, e que não vai ser retido, e para o qual
a relexão vem tarde demais” (JAMES, 1985, p.
457). Nesse artigo, vou usar insights das obras
de William James e Henri Bergson para explorar
o conceito de memória involuntária no livro Em
busca do tempo perdido (A la recherche du
temps perdu) de Proust. Embora a memória
involuntária “[...] exceda a formulação
verbal e não vá ser retida”, James e Bergson,
juntos, oferecem modos de se abordar este
fenômeno e mostrar sua relevância. Usarei os
trabalhos desses dois ilósofos para sublinhar
a importância da memória involuntária por
meio de uma descrição da atitude que eu vou
chamar de vulnerabilidade corajosa e que,
como vou argumentar, é exempliicada pela
obra de Proust.
COBERtURAS (CoUVerCleS)
O episódio de memória involuntária da
recherche mais conhecido diz respeito ao modo
como o narrador recorda uma lembrança de sua
infância através do efeito do sabor de um pedaço
de bolo (petite madeleine) mergulhado no chá.
Como resultado do episódio da madeleine e de
outras experiências semelhantes, o narrador da
recherche chega à conclusão de que o passado
está escondido em sensações físicas, tais como
[1] Rosa Slegers é membro do corpo docente do Departamento de Artes e Humanidades do Babson College, em Massachusetts,
EUA. É autora do livro Courageous Vulnerability (Brill, 2011)..
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
131
ARtIGOS
CONHECIMENTO SENSÍVEL (FELT KNOWLEDGE) E VULNERABILIDADE CORAJOSA...
no sabor da petite madeleine embebida no
chá, no som de uma colher batendo contra o
prato, ou ainda na sensação de um guardanapo
em contato com os lábios. Algumas sensações
e objetos são como tampas ou capas, embaixo
das quais o passado está encoberto. Depende
do acaso (hasard) nos depararmos com essas
tampas e, assim, ganhar a possibilidade de
descobrir as memórias que estão sob elas.
As sensações provocadas por esses objetos
convidam o narrador a explorá-las; como se
elas dissessem a ele: “Aproveite esse momento
e tente resolver o enigma da alegria que
eu lhe enviei” (PROUST, 1982, v. 3, p. 899)2.
Nosso passado esquecido, “o tempo perdido”,
só pode retornar quando nós reconhecemos os
objetos que funcionam como couvercles. Num
passeio com Madame de Villeparisis, o narrador
é tomado pela visão de um conjunto de árvores
enileiradas que parecem a ele mais reais do
que qualquer outra coisa à sua volta; Madame
de Villeparisis, a cidade de Balbec, o passeio
que eles estão fazendo, tudo de repente
parece parte de uma obra literária, enquanto
as árvores pertencem à realidade que o leitor
encontra quando levanta os olhos da página do
livro (PROUST, v. 2, A l’Ombre des Jeunes Filles
en Fleur, p. 717). O narrador, no entanto, falha
em compreender essa realidade que a visão
das árvores o convidaram a explorar. As árvores
pediram para ser tomadas por eles, para
“trazê-los de volta à vida”. “Na sua simples e
apaixonada gesticulação eu podia distinguir a
angústia impotente de uma pessoa amada que
perdeu o poder da fala, e que sente que ela
nunca será capaz de nos dizer o que ela quer
dizer e o que nós nunca iremos adivinhar”
(PROUST, Remembrance, v. 1, p. 737)3. O
chamado feito pelos objetos materiais aparece
ao narrador como uma obrigação moral que
ele tem com seu passado, como se este fosse
um ser vivo que precisa ser libertado. A busca
por memórias involuntárias não é moralmente
neutra, mas, até certo ponto, obrigatória. Eu
vou nomear a atitude necessária a essa busca
como “vulnerabilidade corajosa”, uma noção a
ser desenvolvida mais a frente.
O sabor da madeleine enche o narrador de
alegria, mas também há episódios na recherche
nos quais a memória involuntária é dolorosa. Vou
considerar um desses episódios para demonstrar
a existência de um modo de conhecimento
que pode ser adquirido a partir da memória
involuntária. O caso da petite madeleine
evidenciou como, naquela experiência, o
passado se torna novamente presente, na
medida em que ele é conhecido desde dentro
em vez de meramente descrito ou abordado
de fora. Quero propor que o conhecimento
adquirido através da memória involuntária
pode ser chamado de conhecimento sensível
e corresponde, como icará claro adiante, ao
que Bergson chama de intuição. Um trecho da
recherche no qual tal conhecimento sensível é
especialmente relevante pode ser encontrado
em Sodoma e Gomorra quando, depois de sua
chegada ao hotel em Balbec, o narrador realiza
a simples ação de se curvar para desamarrar os
sapatos. O movimento desencadeia a memória
involuntária de sua avó que tinha estado lá
há alguns anos para ajudá-lo a executar essa
mesma ação quando ele estava doente. O
narrador é tomado de tristeza e descreve o que
está em seu íntimo:
Forte perturbação de todo o meu ser. Desde
a primeira noite, como eu sofresse de uma
violenta crise de fadiga cardíaca, tratando
de vencer meu sofrimento, abaixei-me
com prudência e bem devagar para tirar
os sapatos. Porém mal tocara o primeiro
botão de minha botina, meu peito inchouse, repleto de uma presença desconhecida,
divina, soluços me sacudiram, lágrimas me
rolaram dos olhos. A criatura que vinha em
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
132
CONHECIMENTO SENSÍVEL (FELT KNOWLEDGE) E VULNERABILIDADE CORAJOSA...
meu socorro, me salvava da secura da alma,
era aquela que, muitos anos antes, num
momento de alição e solitude idênticas,
num momento em que eu não mais possuía
de mim, havia entrado e me devolvera a
mim mesmo, pois, era eu e mais do que eu
(o continente que é mais que o conteúdo
e como ela me trazia). Eu acabava de
perceber, em minha memória, debruçado
sobre minha fadiga, o rosto preocupado,
terno e desapontado de minha avó, assim
como estivera na primeira noite da chegada;
o rosto de minha avó; daquela que eu me
espantara e censurara de lamentar tão
pouco e que dela só possuía o nome, mas
de minha avó verdadeira, de quem, pela
primeira vez desde os Champs-Élysées onde
ela tivera o seu ataque, eu encontrara a
realidade viva numa lembrança involuntária
e completa. Essa realidade, não existe
para nós enquanto não for recriada pelo
nosso pensamento (todos os homens que
participassem de uma gigantesca batalha
seriam grandes poetas épicos). E assim,
num desejo louco de me precipitar em seus
braços, era apenas naquele instante (mais
de um ano após o seu falecimento devido a
esse anacronismo que muitas vezes impede
o calendário dos fatos de coincidir com o
dos sentimentos) que eu acabava de saber
que estava morta (PROUST, V. II, Cities of
the Plain, Part Two, p. 783).
O ato banal realizado pelo narrador de se curvar
para retirar suas botas dispara nele a memória
de sua avó o auxiliando nessa mesma atividade
em outras circunstâncias. Essa memória é
diferente de outras que o narrador teve desde
sua morte, porque ela retoma “a realidade viva
numa recordação completa e involuntária”.
A diferença entre uma memória viva e real
de sua avó e as memórias que recuperavam
uma “avó que, de modo atônito e cheio de
remorso eu sentia tão pouca falta” ilustra a
disparidade entre a memória involuntária e a
voluntária. Memória voluntária que, de acordo
com Samuel Beckett, em seu famoso ensaio
Proust, “apresenta o passado de maneira
monocromática” (BECKETT, 1951, p. 19). As
memórias que lhe dizem respeito podem ser
ARtIGOS
recuperadas, estudadas e analisadas à vontade;
elas foram criadas para servir ao passado do qual
se é consciente. Em contraste com esse caráter
controlado e ordenado da memória voluntária,
a memória involuntária é imprevisível e
arrebatadora. “Ela escolhe o seu próprio tempo
e lugar para realizar o seu milagre”(BECKETT,
1951, p. 20-21). O conhecimento que se pode
obter de uma memória involuntária é um
conhecimento sensível: pela primeira vez o
narrador sente que sua avó está morta, mesmo
que obviamente ele tenha tido conhecimento
desse fato há algum tempo.
O ARtIStA BERGSONIANO
Vou lançar mão da estética de Bergson para
explicar melhor o que quero dizer com
conhecimento sensível e, especialmente, com a
atitude de vulnerabilidade corajosa necessária
para se obter esse tipo de conhecimento
proporcionado pela memória involuntária. Em O
Riso, Bergson faz a seguinte observação: “Entre
nós e a natureza, ou melhor, entre nós e a nossa
própria consciência um véu é interposto: um
véu que é denso e opaco para o rebanho comum
– ino, quase transparente para o artista e o
poeta” (BERGSON, O Riso, p. 151). É função do
artista perfurar os hábitos utilitaristas que nos
separam da realidade entendida como um luxo
constante de coisas singularmente individuais.
De acordo com Hulme, tal como ele aponta em
seu livro Speculations, a criação artística pode
ser descrita como um processo de descoberta e
desprendimento (HULME, 1924, p. 149)4. “A arte
não tem outro objetivo que não deixar de lado
os símbolos utilitaristas... Deixar de lado tudo
o que encobre e nos separa da realidade, a im
de nos colocar numa relação imediata com ela”
(BERGSON, O Riso, p. 157)5. O artista descobre
a realidade, escondida para as pessoas comuns,
e a desprende das limitações postas pelo hábito
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
133
ARtIGOS
CONHECIMENTO SENSÍVEL (FELT KNOWLEDGE) E VULNERABILIDADE CORAJOSA...
e pela percepção utilitária cotidiana. Ao fazêlo, não só inventa mas revela: mostra-nos o
que estava lá o tempo todo, mas despercebido
e invisível por conta do véu do hábito. Como
Bergson explica no Ensaio sobre os dados
imediatos da consciência: “O objetivo da arte
é adormecer os poderes ativos, ou melhor,
resistentes, da nossa personalidade e, assim,
nos levar a um estado de perfeita capacidade
de resposta” (BERGSON, 1971, p. 14). Ou, nas
palavras de Hulme: “A cada expressão artística,
o artista seleciona algo da realidade que,
devido a um certo enrijecimento das nossas
percepções, nos tornamos incapazes de ver por
nós mesmos” (HULME, 1924, p. 156). Ele não é
como o resto de nós de quem, segundo Bergson,
“A vida exige que se ponha antolhos, não
olhando nem para direita, esquerda ou atrás
de nós, mas somente para frente na direção
que temos que seguir” (BERGSON, The Creative
Mind, p. 161)6.
Tendo em mente essas condições sobre o
artista bergsoniano, vou aplicar agora a noção
de vulnerabilidade corajosa ao narrador da
recherche. O conhecimento sensível mencionado
acima só pode ser alcançado por aquele que
está aberto à memória involuntária. Essa
abertura é aquela do artista para quem o véu
é transparente, podendo-se perfurar os hábitos
utilitários do intelecto e das percepções. Em
termos proustianos: o artista não se limita às
memórias voluntárias, tem também a disposição
necessária para se beneiciar da memória
involuntária. Para tal abertura, é preciso ser
corajosamente vulnerável, isto é, estar atento à
memória involuntária e ter a coragem de buscála. O narrador da recherche procura a verdade
por trás da dolorosa experiência disruptiva
que está atravessando, porque é a única coisa
que lhe resta de sua avó. Ele se agarra à dor
porque ela é sua entrada para o passado, em
oposição às memórias supericiais e voluntárias
nas quais sua avó não é mais que uma estranha.
Chamarei, portanto, de vulnerabilidade
corajosa a disposição do narrador em perseguir
a memória involuntária. Em vez de se afastar
da dor, ele procura se aproximar dela. As
memórias involuntárias nos chegam a todos,
mas para adquirir conhecimento a partir delas
é preciso permitir-se ser atingido com toda a
força, em vez de tentar bloqueá-las. Todavia,
além desse lado passivo da disposição requerida
pela vulnerabilidade corajosa, há um lado
ativo que implica coragem e foco. A memória
principal é esquecida, torna-se desconhecida
para o eu atual, e por isso ganha um caráter
perturbador.
O hÁBItO E O SENtIMENtO dE
RACIONALIdAdE
Como icou claro, Bergson airma que o artista
não é governado por hábitos utilitários como
o resto de nós. Ou, para usar o termo que
introduzi, o artista é corajosamente vulnerável.
A conexão entre o hábito, a memória involuntária
e sua qualidade disruptiva torna-se mais clara
ao se observar alguns elementos do trabalho de
William James. De acordo com James, a única
ilosoia que pode fazer justiça à experiência é
o empirismo radical. Na experiência concreta,
as coisas não são bem distinguidas. Usamos
conceitos e teorias como atalhos (shortcuts)
no luxo contínuo da experiência e, na medida
em que eles nos são úteis, parecem-nos
“racionais”. Não há nada de errado com o uso
de teorias e conceitos, conquanto, em vez de
representação objetiva da realidade, eles sejam
concebidos como ferramentas. O que diferencia
o empirismo radical do empirismo tradicional é
o reconhecimento de que “todos os cortes que
fazemos [no luxo da experiência] são produtos
artiiciais da faculdade de conceituação”
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
134
CONHECIMENTO SENSÍVEL (FELT KNOWLEDGE) E VULNERABILIDADE CORAJOSA...
(JAMES, [An Overview], p. 808)”. Nós não
podemos evitar a necessidade de racionalizar
e conceitualizar, porque nem sempre podemos
“nos deixar levar pela corrente da experiência,
pela espessura de sua areia e cascalho,... sem
receber qualquer vislumbre que venha de
cima” (JAMES, The Continuity of Experience, p.
292)7. Sem racionalizações, nós nos sentiríamos
perdidos, soterrados pela multiplicidade
caótica da realidade. Deixando-nos levar pela
experiência, não podemos discernir os padrões
que atam as experiências, e precisamos
desses padrões para nos sentir à vontade.
Esse sentimento de facilidade, a sensação
de que a realidade “faz sentido” e a de que
compreendemos suas relações internas é o que
James denomina Sentimento de Realidade8.
Nós experimentamos esse sentimento quando
sentimos que as coisas não são caóticas, mas
se encaixam e estão estruturadas para que
possamos trabalhar com elas. A racionalidade
pode ser reconhecida por marcas subjetivas:
“uma forte sensação de facilidade, paz,
repouso... A transição de um estado de
inquietação (state of puzzle) e perplexidade
para a compreensão racional é repleta de prazer
e um vívido alívio” (JAMES, The Sentiment
of Rationality, p. 317). Por outro lado, o
sentimento de irracionalidade é caracterizado
pela confusão e por um desejo de explicar ou
esclarecer, mas também pela incapacidade de
fazê-lo. Enquanto a nossa função mental está
desimpedida e os nossos pensamentos podem
luir suavemente, desobstruídos de qualquer
obstáculo, nós sentimos que o mundo é racional
(JAMES, The Sentiment of Rationality, p. 324).
Quando os pensamentos e as coisas comportamse tal como o esperado, o sentimento de
racionalidade mantém-se imperturbável.
O costume e a familiaridade desempenham
um papel importante no que diz respeito à
ARtIGOS
racionalidade. A novidade, no entanto, irrita, e
pode facilmente se tornar um obstáculo para o
luxo de pensamento. Ela precisa ser incorporada
e adaptada à realidade vigente. A memória
involuntária é uma novidade, uma sensação
que interrompe o luxo fácil da consciência e
desestabiliza o sentimento de racionalidade. É
inesperada e ataca de surpresa; é oposta a tudo
o que é habitual. Diremos do hábito que ele é útil
e bastante necessário nas interações cotidianas,
assim como o sentimento de racionalidade. Ele
beneicia a comunidade porque proporciona
estabilidade. “O hábito é este enorme pêndulo
da sociedade, o seu agente conservador
mais signiicativo” (JAMES, Habit, p. 16). A
desvantagem do hábito reside no suposto,
frequentemente inquestionável, de que tudo o
que é experimentado em conformidade com ele
e com a racionalidade é mais signiicativo do que
o que não está de acordo. Em outras palavras,
sempre se está tentado a valorizar o que
estimula o sentimento de racionalidade como
uma representação adequada da realidade, ao
passo que as interrupções desse sentimento
são desconsideradas como irracionais e,
portanto, irreais. Os elementos irracionais
tornam-se obstáculos a serem integrados ao
luxo de experiência para que não provoquem
perturbação. O hábito promove o sentimento
de racionalidade, mas, ao fazê-lo, abre pouco
espaço para a novidade. A novidade muitas vezes
será tida como irracional simplesmente porque
não se encaixa nas circunstâncias existentes.
VULNERABILIdAdE CORAJOSA E
tEMPERAMENtO JAMESIANO
Como eu tenho mostrado, o hábito e o
Sentimento de Racionalidade estão relacionados
ao uso de conceitos, e Bergson concorda com
James que os conceitos, ainda que úteis,
devem ser considerados com cuidado. Bergson
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
135
ARtIGOS
CONHECIMENTO SENSÍVEL (FELT KNOWLEDGE) E VULNERABILIDADE CORAJOSA...
airma que através da intuição ou, o que
vem a dar no mesmo, através da simpatia,
descobre-se que não há dois momentos iguais
na vida. A vida interior não pode ser expressa
através de conceitos porque, simplesmente, os
conceitos são demasiado fáceis. Os conceitos
“não exigem esforço de nossa parte” (JAMES,
Habit, p. 28), porque eles simplesmente
expressam o que diferentes objetos têm em
comum, generalizando e perdendo de vista suas
singularidades. O que é necessário a im de se
alcançar o conhecimento no caso da memória
involuntária é um entendimento intuitivo desde
dentro, que é exatamente o que acontece na
busca bem-sucedida da memória involuntária.
Os conceitos desenham círculos ao redor das
coisas e esses círculos são “demasiado grandes
para que algo possa se encaixar perfeitamente
neles” (JAMES, Habit, p. 29). O verdadeiro
empirismo reconhece que “as concepções
prontas das operações cotidianas” (JAMES,
Habit, p. 37) não servem para nada. Um novo
esforço é necessário para cada novo objeto, a
im de se fazer justiça à sua singularidade, e
considerando que não há dois momentos que
sejam iguais na vida de alguém, nunca se pode
compreender uma memória involuntária através
da comparação. A atitude da vulnerabilidade
corajosa é necessária para que tal esforço seja
empreendido. Um empenho é necessário para
se chegar ao cerne da memória, à verdade por
detrás dela. A vulnerabilidade corajosa como
postura requer admitir a memória como algo
a ser considerado e experimentado de maneira
plena, a despeito da dor que ela traz. A forma
corajosa a ser assumida pela vulnerabilidade
indica a natureza ativa dessa atitude: é
preciso esforço para estar aberto à memória
involuntária. Essa abertura é o que caracteriza
o temperamento que James denomina como
empirista obstinado (tough-minded).
James escreve sobre o temperamento no
ensaio “O atual dilema da ilosoia”. Na
história da ilosoia, ele distingue dois tipos
dominantes de temperamento: os racionalistas
complacentes (tender-minded), guiados por
princípios, e os empiristas teimosos (toughminded), que seguem a realidade(JAMES,
Habit, p. 365). Não irei discutir as qualidades
atribuídas a cada uma dessas categorias. O que
é importante destacar aqui é que a atitude do
empirista obstinado, com sua ênfase nos fatos,
corresponde à disposição da pessoa que pode se
beneiciar da memória involuntária. É preciso
coragem para não se refugiar em conceitos e
princípios, especialmente quando se trata da
própria vida e do sentido de self. É mais difícil
ser vulnerável à memória involuntária do que
se proteger dela. Tornar-se obstinado (toughminded) ao buscar a verdade implica tornarse corajosamente vulnerável. O empirista
obstinado leva a experiência à sério e, por isso,
presta atenção à memória involuntária, mesmo
se ela não se coaduna com a narrativa que ele
sente que compõe sua própria identidade. O
temperamento necessário para a obtenção do
conhecimento sensível a partir da memória
involuntária é marcado por uma disposição de
abertura, atenção à experiência e coragem
para explorá-la. O conhecimento que emerge
da experiência da memória involuntária precisa
ao mesmo tempo ser buscado e admitido pelo
self, ao qual as experiências dizem respeito.
Este self deve ser não só vulnerável mas
também atento e corajoso; se esses elementos
estiverem faltando, a memória involuntária
torna-se-á nada mais que uma sensação.
Conclusão: a atitude de vulnerabilidade
corajosa,
exempliicada
pelo
narrador
proustiano, requer tanto o empirismo obstinado
e a coragem quanto a vulnerabilidade e a
habilidade para escutar, mas, sem abertura, esse
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
136
CONHECIMENTO SENSÍVEL (FELT KNOWLEDGE) E VULNERABILIDADE CORAJOSA...
conhecimento sensível nunca será alcançado. O
próprio James diz em seu ensaio “Pragmatismo
e religião”: “A única razão pela qual eu posso
pensar por que alguma coisa nova sempre pode
surgir é que alguém deseje que ela esteja aqui”
(JAMES, Pragmatism and Religion, p. 468).
Recebido em: 1/03/2016
Tradução de Carolina Cantarino
2
ARtIGOS
Aceito em: 10/03/2016
* Este texto foi originalmente apresentado no encontro
da International Association for Philosophy and Literature
(IAPL), realizado em 2006, e gentilmente cedido pela autora
para tradução e publicação pela revista ClimaCom.
“Saisis-moi au passage si tu en as la force, et tâche à
résoudre l’énigme de bonheur que je te propose.” (PROUST,
1954, v. 3, p. 446).
“Dans leur gesticulation naïve et passionnée, je reconnaissais
le regret impuissant d’un être aimé qui a perdu l’usage de
la parole, sent qu’il ne pourra nous dire ce qu’il veut et que
nous ne savons pas deviner.” (PROUST, 1954, v. 1, p.719).
3
REFERÊNCIAS
BECKETT, S. Proust. New York: Grove Press,
1951.
BERGSON, H. time and Free Will. An Essay
on the Immediate Data of Consciousness. Tr.
F. L. Pogson. New York: Humanities Press Inc.,
1971.
HULME, T. E. Bergson’s Theory of Art. In:
Speculations. New York: Harcourt, Brace &
Company, Inc., 1924.
JAMES, W. Philosophy. In: the Varieties
of Religious Experience. London: Penguin
Classics, 1985.
JEPHCOTT, E. F. N. Proust and Rilke. The
Literature of Expanded Consciousness.
London: Chatto and Windus, 1972.
Also: “Art merely reveals, it never creates” (HULME, 1924,
p. 151).
4
Cf. A descrição de Jephcott sobre o que ocorre no momento
privilegiado: as relações funcionais entre os objetos
desaparecem e são “substituídas por um sistema mais
complexo” (JEPHCOTT, p. 16-19).
5
6
Veja-se também no Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência: “Encorajados por [um romancista audacioso],
colocamos de lado por um instante o véu que se interpõe
entre nós e a nossa consciência. Ele nos trouxe de volta à
nossa própria presença” (BERGSON, 1971, p. 134).
Nessa passagem, em particular, James está criticando
Bergson.
7
Nas próprias palavras de James o Sentimento de
Racionalidade é “a sensação de suiciência do momento
presente, do seu caráter absoluto – a ausência da necessidade
de lhe explicar, considerar ou justiicar” (JAMES, 1985, p.
318).
8
PROUST, M. Remembrance of things Past. Tr.
C. K. Scott Moncrieff and Terence Kilmartin.
New York: Vintage Books, 1982.
______. A la recherche du temps perd. Paris:
Bibliothèque de la Pléiade, 1954.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
137
ARtIGOS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
138
ARtIGOS
Antropoceno, Capitaloceno,
Plantationoceno, Chthuluceno:
fazendo parentes*
Donna Haraway [1]
Não há dúvida de que os processos antrópicos
tiveram efeitos planetários, em inter/intraação com outros processos e espécies, desde
que nos reconhecemos como espécie (algumas
dezenas de milhares de anos) e investimos em
uma agricultura em larga escala (alguns milhares
de anos). Certamente que, desde o início, as
bactérias e seus parentes foram, e ainda são,
os maiores de todos os terraformadores (e
reformadores) planetários, também em uma
miríade de tipos de inter/intra-ação (incluindo
as pessoas e suas práticas, tecnológicas e
outras)2. A propagação de plantas por dispersão
de sementes, milhões de anos antes da
agricultura humana, representou uma grande
mudança no planeta, e assim foram muitos
outros eventos ecológicos de desenvolvimento
histórico, revolucionários e evolucionários.
As pessoas iniciaram essa discussão3 muito cedo
e de forma dinâmica, mesmo antes deles/nós
sermos chamados de Homo sapiens. Mas penso
que a relevância de nomear de Antropoceno,
Plantationoceno ou Capitaloceno tem a ver
com a escala, a relação taxa/velocidade, a
sincronicidade e a complexidade. A questão
constante, quando se considera fenômenos
sistêmicos, tem de ser: quando as mudanças de
grau tornam-se mudanças de espécie? E quais são
os efeitos das pessoas (não o Humano) situadas
bioculturalmente,
biotecnologicamente,
biopoliticamente e historicamente em relação
a, e combinado com, os efeitos de outros
arranjos de espécies e outras forças bióticas/
abióticas? Nenhuma espécie, nem mesmo a
nossa própria – essa espécie arrogante que inge
ser constituída de bons indivíduos nos chamados
roteiros Ocidentais modernos – age sozinha;
arranjos4 de espécies orgânicas e de atores
abióticos fazem história, tanto evolucionária
como de outros tipos também.
Mas há um ponto de inlexão das consequências
que muda o nome do “jogo” da vida na terra
para todos e tudo? Trata-se de mais do que
“mudanças climáticas”; trata-se também da
enorme carga de produtos químicos tóxicos, de
mineração, de esgotamento de lagos e rios, sob e
acima do solo, de simpliicação de ecossistemas,
de grandes genocídios de pessoas e outros seres
etc., em padrões sistemicamente ligados que
podem gerar repetidos e devastadores colapsos
do sistema. A recursividade pode ser terrível.
Anna Tsing (2015), em um artigo recente
chamado “Feral Biologies”, sugere que o ponto
de inlexão entre o Holoceno e o Antropoceno
pode eliminar a maior parte dos refúgios a
[1] Donna Haraway leciona História da Consciência na University of California, Santa Cruz (EUA).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
139
ARtIGOS
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, PLANTATIONOCENO, CHTHULUCENO
partir dos quais diversos grupos de espécies
(com ou sem pessoas) podem ser reconstituídos
após eventos extremos (como desertiicação,
desmatamento...). Isso tem parentesco com o
argumento da World-Ecology, Research Network,
coordenada por Jason Moore, de que a natureza
barata está no im; o barateamento da natureza
não pode continuar mais a sustentar a extração
e a produção no e do mundo contemporâneo,
porque a maioria das reservas da terra foram
drenadas, queimadas, esgotadas, envenenadas,
exterminadas e, de várias outras formas,
exauridas5. Vastos investimentos em tecnologias
extremamente criativas e destrutivas podem
conter esse acerto de contas, mas a natureza
barata realmente acabou. Anna Tsing argumenta
que o Holoceno foi um longo período em que os
refúgios, os locais de refúgio, ainda existiam,
e eram até mesmo abundantes, sustentando
a reformulação da rica diversidade cultural
e biológica. Talvez a indignação merecedora
de um nome como Antropoceno seja a da
destruição de espaços-tempos de refúgio para
as pessoas e outros seres. Eu, juntamente com
outras pessoas, penso que o Antropoceno é mais
um evento-limite do que uma época, como a
fronteira K-Pg entre o Cretáceo e o Paleoceno6.
O Antropoceno marca descontinuidades graves;
o que vem depois não será como o que veio
antes. Penso que o nosso trabalho é fazer
com que o Antropoceno seja tão curto e tênue
quanto possível, e cultivar, uns com os outros,
em todos os sentidos imagináveis, épocas por
vir que possam reconstituir os refúgios.
Neste momento, a terra está cheia de refugiados,
humanos e não humanos, e sem refúgios.
Então, penso que mais do que um grande nome,
na verdade, é preciso pensar num novo e potente
nome. Assim, Antropoceno, Plantationoceno7 e
Capitaloceno (termo de Andreas Malm e Jason
Moore antes de ser meu)8. E também insisto em
que precisamos de um nome para as dinâmicas
de forças e poderes sim9-chthonicas em curso,
das quais as pessoas são uma parte, dentro das
quais esse processo está em jogo. Talvez, mas
só talvez, e apenas com intenso compromisso e
trabalho colaborativo com outros terranos, será
possível fazer lorescer arranjos multiespécies
ricas, que incluam as pessoas. Estou chamando
tudo isso de Chthuluceno – passado, presente e o
que está por vir10. Estes espaços-tempos reais e
possíveis não foram nomeados após o pesadeloracista e misógino do monstro Cthulhu (note
diferença na ortograia), do escritor de icção
cientíica H. P. Lovecraft, e sim após os diversos
poderes e forças tentaculares de toda a terra e
das coisas recolhidas com nomes como Naga,
Gaia, Tangaroa (emerge da plenitude aquática
de Papa), Terra, Haniyasu-hime, Mulher-Aranha,
Pachamama, Oya, Gorgo, Raven, A’akuluujjusi
e muitas mais. “Meu” Chthuluceno, mesmo
sobrecarregado com seus problemáticos
tentáculos gregos, emaranha-se com uma
miríade de temporalidades e espacialidades e
uma miríade de entidades em arranjos intraativos, incluindo mais-que-humanos, outrosque-não-humanos, desumanos e humano-comohúmus (human-ashumus). Mesmo num texto
em inglês-americano como este, Naga, Gaia,
Tangaroa, Medusa, Mulher-Aranha, e todos os
seus parentes, são alguns dos muitos mil nomes
próprios para uma linhagem de icção cientíica
que Lovecraft não poderia ter imaginado
ou abraçado – ou seja, teias de fabulação
especulativa, feminismo especulativo, icção
cientíica e fatos cientíicos11. O que importa
é que narrativas contam narrativas, e que
conceitos pensam conceitos. Matematicamente,
visualmente e narrativamente, é importante
pensar que iguras iguram iguras, que sistemas
sistematizam sistemas.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
140
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, PLANTATIONOCENO, CHTHULUCENO
Todos os mil nomes propostos são grandes
demais e pequenos demais; todas as histórias
são grandes demais e pequenas demais. Como
Jim Clifford me ensinou, nós precisamos de
narrativas (e teorias) que sejam grandes o
bastante (e não mais que isso) para reunir
as complexidades e manter as bordas
abertas e ávidas por novas e velhas conexões
surpreendentes (CLIFFORD, 2013).
ARtIGOS
uma metáfora; e “colapso de sistema” não é
um ilme de suspense. Pergunte a qualquer
refugiado, de qualquer espécie.
Uma maneira de viver e morrer bem, como
seres mortais no Chthuluceno, é unir forças para
reconstituir refúgios, para tornar possível uma
parcial e robusta recuperação e recomposição
biológica-cultural-política-tecnológica,
que
deve incluir o luto por perdas irreversíveis.
Thom van Dooren (2014) e Vinciane Despret
(2013) me ensinaram isso12. Há tantas perdas
já, e haverá muitas mais. Esse renovado
lorescimento generativo não pode ser criado a
partir de mitos de imortalidade ou do fracasso
de nos tornarmos parte dos mortos e extintos.
Há um monte de trabalho para o Orador dos
Mortos de Orson Scott Card (1986) e ainda mais
para a reformulação de Ursula Le Guin em
Always Coming Home.
O Chthuluceno precisa de pelo menos um slogan
(certamente, mais do que um); continuam
gritando “Ciborgues para Sobrevivência
Terrestre”, “Corra Rápido, Morda Forte” e
“Cale-se e Treine”, eu proponho “Faça Parentes,
Não Bebês!”. Fazer parentes é, talvez, a parte
mais difícil e mais urgente do problema. As
feministas do nosso tempo têm sido líderes em
desvendar a suposta necessidade natural dos
laços entre sexo e gênero, raça e sexo, raça e
nação, classe e raça, gênero e morfologia, sexo
e reprodução, e reprodução e composição de
pessoas (nossa dívida aqui especialmente para
com os melanésios, em aliança com Marilyn
Strathern (1990) e seus parentes etnógrafos).
Se for para existir uma ecojustiça de
multiespécies, que esta também possa abraçar
a diversidade das pessoas. É chegada a hora de
as feministas exercerem liderança também na
imaginação, na teoria e na ação, para desfazer
ambos os laços: de genealogia/parentesco e
parentes/espécies.
Eu sou uma compostista, não uma póshumanista: somos todos compostos, adubo, não
pós-humanos. O limite que é o Antropoceno/
Capitaloceno signiica muitas coisas, incluindo
o fato de que a imensa destruição irreversível
está realmente ocorrendo, não só para os 11
bilhões ou mais de pessoas que vão estar na
terra perto do inal do século 21, mas também
para uma miríade de outros seres. (O número
incompreensível, mas sóbrio, de cerca de
11 bilhões somente será mantido se as taxas
de natalidade de bebês humanos, em todo o
mundo atual, permanecerem baixas; se elas
subirem novamente, todas as apostas caem
por terra). “À beira da extinção” não é apenas
Bactérias e fungos são excelentes para nos
dar metáforas, mas, metáforas a parte (boa
sorte com isso!), nós temos um trabalho de
mamífero a fazer com os nossos colaboradores
e co-trabalhadores sim-poiéticos, bióticos
e abióticos. Precisamos fazer parentes simchthonicamente, sim-poieticamente. Quem
e o que quer que sejamos, precisamos fazercom – tornar-com, compor-com – os “terranos”
(obrigado por esse termo, Bruno Latour-emmodo anglófono)13. Nós, pessoas humanas em
todos os lugares, devemos abordar as urgências
sistêmicas intensas; no entanto, até agora, como
Kim Stanley Robinson (2012) colocou em 2312,
estamos vivendo tempos de “Hesitação” (esta
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
141
ARtIGOS
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, PLANTATIONOCENO, CHTHULUCENO
narrativa de icção cientíica, que vai de 2005
a 2060, é demasiado otimista?), um “estado de
agitação incerto”14. Talvez “A hesitação” seja
um nome mais apropriado do que Antropoceno
ou Capitaloceno! “A hesitação” será gravada
nos estratos rochosos da terra; na verdade,
já está escrita nas camadas mineralizadas
da terra. Os sim-ctônicos não hesitam; eles
compõem e se decompõem, práticas tão
perigosas quanto promissoras. O mínimo que se
pode dizer é que a hegemonia humana não é um
caso sim-chthonico. Como deinem os artistas
ecossexuais Beth Stephens e Annie Sprinkle, a
compostagem é tão quente!
Meu propósito é fazer com que “parente”
signiique algo diferente, mais do que entidades
ligadas por ancestralidade ou genealogia. O
movimento suave de desfamiliarização pode
parecer, por um momento, um erro, mas
depois (com sorte) aparecerá sempre como
correto. Fazer parentes é fazer pessoas, não
necessariamente como indivíduos ou como
seres humanos. Na Universidade, fui movida
pelos trocadilhos de Shakespeare, kin e kind
(parente e gentil em português) – os mais
gentis não eram necessariamente parentes
de uma mesma família; tornar-se parente e
tornar-se gentil (como categoria, cuidado,
parente sem laços de nascimento, parentes
paralelos, e vários outros ecos) expande a
imaginação e pode mudar a história. Marilyn
Strathern me ensinou que os “parentes”, em
inglês britânico, eram originalmente “relações
lógicas” e só se tornaram “membros da família”
no século 17. Este, deinitivamente, está entre
os factoides que eu amo15. Saia do inglês e os
selvagens se multiplicam. Penso que a extensão
e a recomposição da palavra “parente” são
permitidas pelo fato de que todos os terráqueos
são parentes, no sentido mais profundo, e já
passaram da hora de começar a cuidar dos
tipos-como-arranjos (não espécies uma por
vez). Parentesco é uma palavra que traz em
si um arranjo. Todos os seres compartilham
de uma “carne” comum, paralelamente,
semioticamente e genealogicamente. Os
antepassados mostram-se estranhos muito
interessantes; parentes são não familiares (fora
do que pensávamos ser a família ou os genes),
estranhos, assombrosos, ativos16.
Demais para um pequeno slogan, eu sei! Ainda
assim, tente. Nos próximos dois séculos, ou
mais, talvez os seres humanos deste planeta
possam ser novamente dois ou três bilhões,
aproximadamente e, nesse tempo, fazer parte
de um bem-estar cada vez maior para os
diversos seres humanos e outros seres, agindo
como meios e não apenas como ins. Então,
faça parentes, não bebês! O que importa é
como parentes geram parentes17.
Tradução de Susana Dias, Mara Verônica
e Ana Godoy
REFERÊNCIAS
BARAD, K. Meeting the Universe halfway.
Durham, UC: Duke University Press, 2007.
CARD, O. S. Speaker for the dead. New York:
Tor Books, 1986.
CLIFFORD, J. Returns: Becoming Indigenous
in the Twenty-irst Century. Cambridge MA:
Harvard University Press, 2013.
DESPRET, V. Ceux qui insistent. In: DEBAISE, D
et al. (dir.). Faire Art comme on fait societé:
les nouveaux commanditaires. Dijon: Le
Presses du Réel, 2013.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
142
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, PLANTATIONOCENO, CHTHULUCENO
GILBERT, S.F.; EPEL, D. Ecological
developmental Biology. 2nd ed. USA: Sinauer
Associates, 2015.
HAKIM, D. Sex Education in Europe Turns
to urging more births. the New York
times, 8/4/2015. Disponível em: <http://
www.nytimes.com/2015/04/09/business/
international/sex-education-in-europe-turnsto-urging-more-births.html>.
LATOUR, B. Facing Gaïa: Six lectures on the
political theology of Nature. Gifford Lectures,
18-28 febr. 2013.
MOORE, J. Capitalism in the Web of Life.
New York: Verso, 2015.
ROBINSON, K. S. 2312. London: Orbit, 2012.
SKURNICK, L. that should be a word. New
York: Workman, 2015.
STRATHERN, M. the gender of the gift:
problems with women and problems with
society in Melanesia. Oakland CA: University
of California Press, 1990.
______. Shifting Relations. Paper for the
Emerging Worlds Workshop, University of
California at Santa Cruz, 8 febr. 2013.
TSING, A. Feral Biologies. Paper for
Anthropological Visions of Sustainable Futures,
University College London, February 2015.
______. the Mushroom at the end of the
world: on the possibility of life in capitalist
ruins. Princeton, NJ: Princeton University
Press, 2015.
VANDOOREN, T. Flight ways: life and loss at
the edge of extinction. New York: Columbia
University Press, 2014.
ARtIGOS
WILSON, K. The ‘New’ Global Population
Control Policies: Fueling India’s Sterilization
Atrocities. different takes, n. 87, p. 1-5,
winter 2015. Disponível em: <https://dspace.
hampshire.edu/bitstream/10009/940/1/
popdev_differentakes_087.pdf>.
Recebido em: 1/03/2016
Aceito em: 10/03/2016
* Permission is granted for non-exclusive world rights in
the Portuguese language for one edition of the ClimaCom
journal/Spring 2016. No other rights are granted. This is for
electronic/digital media only, of the following described
material: “Anthropocene, Capitalocene, Plantationocene,
Chthulucene: Making Kin”, in Environmental Humanities,
Volume 6. Copyright, 2015, Duke University Press. All rights
reserved. Republished by permission of the copyright holder,
Duke University Press (www.dukeupress.edu). This will
also be chapter within the book Staying with the Trouble
forthcoming in 2016 from Duke University Press.
Nossos mais sinceros agradecimentos a Donna Haraway e a
Diane Grossé pela gentileza e generosidade.
Intra-ação é um conceito de Karen Barad (2007). Continuo
usando inter-ação a im de permanecer legível para o público
que ainda não compreende as mudanças radicais que a
análise de Barad exige, mas, também, provavelmente, faço
isso em razão dos meus hábitos linguísticos promíscuos.
2
[N.T.] Aqui a autora se refere ao debate em torno das
designações Antropoceno, Capitaloceno etc.
3
[N.T.] Onde a autora usa “assemblage” traduzimos por
“arranjos”.
4
Cf. Moore (2015). Muitos dos ensaios de Moore podem ser
encontrados em: <https://jasonwmoore.wordpress.com/>.
5
Devo a Scott Gilbert por ressaltar, durante o seminário
Ethnos e outras interações, na Universidade de Aarhus, em
outubro de 2014, que o Antropoceno (e o Plantationoceno)
deve ser considerado um evento-limite, como a fronteira
K-Pg, e não uma época. Ver nota 7 abaixo.
6
Em uma conversa gravada para Ethnos, na Universidade
de Aarhus, em outubro de 2014, os participantes
coletivamente geraram o nome Plantationocene para a
transformação devastadora oriunda de diversos tipos de
fazendas com tendências humanas, pastos, e lorestas em
7
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
143
ARtIGOS
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, PLANTATIONOCENO, CHTHULUCENO
plantações extrativas e fechadas, baseadas em trabalho
escravo e outras formas de trabalho explorado, alienado, e,
geralmente, deslocado espacialmente. A conversa transcrita
será publicada como “Anthropologists Are Talking About the
Anthropocene”, em Ethnos [N.T. a publicação aconteceu
em 2016, ver Ethnos: Journal of Anthropology, v. 81, n.
3). Os estudiosos já entendem faz tempo que o sistema
de plantação baseado no trabalho escravo foi o modelo e
motor dos sistemas de produção à base de máquinas ávidas
pelo consumo de carbono, frequentemente citados como
ponto de inlexão para o Antropoceno. Nutridas, mesmo
nas circunstâncias mais adversas, as hortas de escravos não
só forneceram comida humana fundamental, mas também
refúgios para uma biodiversidade de plantas, animais, fungos
e tipos de solos. As hortas de escravos são um mundo pouco
explorado, especialmente em comparação com jardins
botânicos imperiais, em termos de dispersão e propagação
de uma miríade de seres. Mover essa geratividade semiótica
material ao redor do mundo, para a acumulação de capital
e de lucros – o deslocamento rápido e a reformulação de
germoplasma, genomas, estacas, e todos os outros nomes
e formas de pedaços de organismos e plantas, animais e
pessoas desenraizados –, é uma operação de deinição do
Plantationoceno, do Capitaloceno e do Antropoceno tomados
em conjunto. O Plantationoceno prossegue com crescente
ferocidade na produção global de carne industrializada, no
agronegócio da monocultura, e nas imensas substituições de
lorestas multiespecíicas, que sustentam tanto os humanos
quanto os não humanos, por culturas que produzem, por
exemplo, óleo de palma. Os participantes do seminário
Ethnos incluíram Noboru Ishikawa (Antropologia, Center
for South EastAsianStudies, Kyoto University); Anna Tsing
(Antropologia, University of California, Santa Cruz); Donna
Haraway (História da Consciência, University of California,
Santa Cruz); Scott F. Gilbert (Biologia, Swarthmore); Nils
Bubandt (Departamento de Cultura e Sociedade, Aarhus
University); e Kenneth Olwig (Arquitetura e Paisagismo,
Swedish University of Agricultural Sciences). Gilbert adotou
o termo Plantationoceno para argumentos-chave na sua
coda para a segunda edição do livro amplamente utilizado
(ver GILBERT; EPEL, 2015).
Em comunicação pessoal por e-mail, Jason Moore e Alf
Hornborg, no inal de 2014, disseram-me que Malm propôs
o termo Capitaloceno em um seminário em Lund, na
Suécia, em 2009, quando ele ainda era um estudante de
pós-graduação. Usei pela primeira vez o termo de forma
independente em palestras públicas a partir de 2012. Moore
está editando um livro intitulado Capitalocene (Oakland CA:
PM Press, no prelo), que terá ensaios de Moore, Malm, meu e
de Elmar Altvater. Nossas redes colaborativas aumentaram.
8
[N.T.] No original, a autora utiliza o preix sym- (ou syn-).
Etimologicamente, seu sentido é “junto, conjuntamente”,
caso do preixo sim- (ou sin-) em português.
9
10
O suixo “-ceno” prolifera! Arrisco esta superabundância
porque estou no encalço dos signiicados da raiz de “-cene/
kainos”, a saber, a temporalidade do “agora” espesso,
ibroso e irregular, que é antiga, mas não é.
“Mil Nomes de Gaia/The Thousand Names Of Gaia” foi
uma conferência internacional organizada por Eduardo
Viveiros de Castro, Déborah Danowski e seus colaboradores,
em setembro de 2014, no Rio de Janeiro. Algumas em
português e algumas em inglês, muitas das palestras da
conferência podem ser assistidas em: <https://www.
youtube.com/c/osmilnomesdegaia/videos>.
Minha
contribuição sobre o Antropoceno e o Chthuluceno foi feita
por Skype, e está disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=1x0oxUHOlA8>.
11
Encontramos importantes ensaios de Vinciane Despret
traduzidos para o inglês, ver Angelaki, v. 20, n. 2, número
especial Etologia II: Vinciane Despret, publicado em 2015
e editado por Brett Buchanan, Jeffrey Bussolini e Matthew
Chrulew, prefácio de Donna Haraway, intitulado “A Curious
Practice”.
12
Ver Bruno Latour, “Facing Gaïa: Six Lecture son the
Political Theology of Nature”, Gifford Lectures, 18-28 de
fevereiro de 2013.
13
Esta narrativa de icção cientíica extraordinária ganhou o
Prêmio Nebula de melhor romance.
14
Ver Strathern (2013). Fazer parentes é uma prática popular
em alta, e os novos nomes também estão proliferando.
Veja Lizzie Skurnick, That Should Be a Word (NY: Workman
Publishing, 2015) para “parentinovador” (kinnovator), uma
pessoa que cria famílias de formas não convencionais, à
qual acrescento parentinovação (kinnovation). Skurnick
também propõe “clãnarquista” (clanarchist). Estas não
são apenas palavras; são pistas e estímulos para sismos na
criação de parentes que não estão limitados aos dispositivos
da família ocidental, heteronormativos ou não. Penso que
os bebês deveriam ser raros, cuidados, e preciosos; e os
parentes deveriam ser abundantes, inesperados, duradouros
e preciosos.
15
“Gens” é outra palavra, de origem patriarcal, que
as feministas estão usando. As origens e os ins não
determinam um ao outro. Parentes e gens fazem parte
da mesma origem na história das línguas indo-europeias.
Para esperançosos momentos comunistas de intra-ação,
veja
<http://culanth.org/ieldsights/652-gens-afeministmanifesto-for-the-study-of-capitalism>, por Laura Bear,
Karen Ho, Anna Tsing e Sylvia Yanagisako. A escrita é talvez
demasiado sucinta (embora esses resumos ajudem), e não
há exemplos excitantes nesse Manifesto para atrair o leitor
mal acostumado; mas as referências dão muitos recursos
para fazer tudo isso, a maioria etnograias fruto de trabalhos
de longo prazo, com íntimo envolvimento e profundamente
teorizadas. Ver especialmente Anna Tsing (2015). A precisão
da abordagem metodológica na “Gens: a Feminist Manifesto
16
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
144
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, PLANTATIONOCENO, CHTHULUCENO
for the Study of Capitalism” está em sua abordagem voltada
àqueles pretensos marxistas ou outros teóricos que resistem
ao feminismo, e que, portanto, não se envolvem com a
heterogeneidade dos mundos da vida real, mas icam com
categorias como Mercado, Economia, Financeirização (ou,
gostaria de acrescentar, Reprodução, Produção e População,
em suma, categorias supostamente adequadas de economia
política socialista liberal e não feminista padrão). Go,
Honolulu’s Revolution Books e todos os seus ains!
A minha experiência é que aqueles que me são caros, como
“nosso povo”, na esquerda ou qualquer nome que ainda
possamos usar sem apoplexia, escutam neoimperialismo,
neoliberalismo, misoginia e racismo (quem pode culpálos?) na parte “não bebês” da frase “Faça parentes, não
bebês”. Nós imaginamos que a parte “Faça parentes” é
mais fácil, ética e politicamente situada em terreno mais
irme. Não é verdade! “Faça parentes” e “não bebês” são
ambas difíceis; ambas exigem a nossa melhor criatividade
emocional, intelectual, artística e política, tanto individual
como coletivamente, através das diferenças ideológicas e
regionais, entre outras. Minha sensação é a de que nosso
povo pode ser parcialmente comparado com o negacionismo
cristão das mudanças climáticas: crenças e compromissos
são profundos demais para permitir uma revisão do pensar
e do sentir. Ao revisitar o que foi tomado pela direita e
pelos proissionais do desenvolvimento como “explosão
populacional”, nosso povo pode se sentir como quem vai
para o lado obscuro.
Mas a negação não vai nos servir. Sei que “população” é uma
categoria de Estado, o tipo de “abstração” e de “discurso”
que refaz a realidade para todos, mas não para o benefício
de todos. Eu também penso que evidências de muitos tipos,
epistemológica e afetivamente comparáveis às evidências
variadas para as rápidas mudanças climáticas, mostram que
7 a 11 bilhões de seres humanos fazem exigências que não
podem ser suportadas sem imensos danos aos seres humanos
e não humanos em todo o mundo. Este não é um assunto
simples e casual; a Ecojustiça não tem uma abordagem de
uma única variável possível para os repetidos extermínios,
empobrecimentos e extinções na Terra atualmente. Mas
culpar o Capitalismo, o Imperialismo, o Neoliberalismo, a
Modernização, ou algum outro “não nós” pela destruição
em curso, pavimentada pelo aumento populacional,
também não vai funcionar. Estas questões exigem um
trabalho difícil e incessante; mas também exigem alegria,
disposição e capacidade de resposta para se envolver com
os outros inesperados. Todas as partes dessas questões
são importantes demais para a Terra, para deixarmos nas
mãos da direita ou dos proissionais do desenvolvimento,
ou de qualquer outra pessoa do ramo de negócios, como de
costume. Aqui é um parentesco-diferente-não-natal e semcategoria!
Temos de encontrar maneiras de celebrar as baixas taxas de
natalidade e de tomar decisões íntimas pessoais para criar
vidas generosas e que loresçam (incluindo um parentesco
17
ARtIGOS
inovador e duradouro), sem fazer mais bebês – urgentemente
e especialmente, mas não apenas em regiões, nações,
comunidades, famílias e classes sociais ricas, abastadas e
exportadoras de miséria. Precisamos encorajar a população
e outras políticas que envolvem questões demográicas
assustadoras por meio da proliferação de parentes não
natais –, incluindo a imigração não racista, ambiental e
políticas de apoio social aos recém-chegados e da mesma
forma aos “nativos” (educação, habitação, saúde, gênero
e criatividade sexual, agricultura, pedagogias para nutrir
os seres não humanos, tecnologias e inovações sociais para
manter as pessoas mais velhas saudáveis, produtivas etc.).
O inalienável “direito” (que é uma palavra para uma matéria
corporal tão consciente) pessoal de nascimento ou não de um
novo bebê não está em questão para mim; a coerção é errada
em todos os níveis imagináveis neste assunto, e tende a sair
pela culatra, em qualquer caso, mesmo que se possa engolir
essa lei ou costume coercitivo (eu não posso). Por outro
lado, e se os novos normais se tornassem uma expectativa
cultural que cada nova criança pudesse ter pelo menos três
pais comprometidos na vida (que não são necessariamente
os casais e que não gerariam mais novos bebês depois disso,
embora possam viver em casas de multicrianças, famílias
multigeracionais)? E se as práticas de adoção efetivas por
e para os idosos se tornasse comum? E se os países que
estão preocupados com as baixas taxas de natalidade
(Dinamarca, Alemanha, Japão, Rússia, América branca,
entre outros) reconhecessem que o medo dos imigrantes é
um grande problema e que os projetos e fantasias de pureza
racial conduzem ao ressurgimento do pró-natalismo? E se
as pessoas, em todos os lugares, procurassem parentescosinovadores não natais com indivíduos e coletivos em
mundos queer, descoloniais e indígenas, em vez de buscar
nos segmentos ricos e de extração de riqueza europeus,
euro-americanos, chineses ou indianos? É bom lembrar
que as fantasias de pureza racial e a recusa em aceitar os
imigrantes como cidadãos plenos realmente conduzem a
política agora no mundo “progressivo” e “desenvolvido”.
Ver Hakim (2015). Rusten Hogness escreveu em um post no
Facebook em 9 de abril de 2015: “O que está errado com
a nossa imaginação e com a nossa capacidade de olharmos
um para o outro (tanto humanos quanto não humanos),
se não podemos encontrar maneiras de abordar questões
levantadas pelos mudanças das distribuições de idade, sem
fazer cada vez mais bebês humanos? Precisamos encontrar
maneiras de celebrar as pessoas jovens que decidem não ter
ilhos, não adicionar o nacionalismo à já potente mistura de
pressões pró-natalidade que existe sobre eles.”
O pró-natalismo, em seus disfarces poderosos, deveria
estar em questão quase toda parte. Digo “quase” como
uma ressalva sobre as consequências de um escândalo
em curso com o genocídio e o deslocamento de povos. O
“quase” é também um estímulo para lembrar o uso abusivo
da esterilização na contemporaneidade, o uso de meios
contraceptivos surpreendentemente impróprios e danosos,
a redução de mulheres e homens à meras cifras nas velhas e
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
145
ARtIGOS
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, PLANTATIONOCENO, CHTHULUCENO
novas políticas de controle populacional, e outras práticas
misóginas, patriarcais e racistas transformadas em negócio,
como se faz em todo mundo.Ver, por exemplo, Wilson
(2015).
Precisamos de um grande tempo em que nos apoiamos
assumindo riscos uns dos outros, uns com os outros, sobre
todas estas questões.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
146
RESENhA
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
147
SEÇÃO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
148
RESENhA
Cidades e mudanças
climáticas: políticas públicas
e governança ambiental
Douglas Sathler [1] e Saleem Khan [2]
ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND
DEVELOPMENT. Cities and Climate Change. Paris: OECD
Publishing, 2010. 274 p.
O tema “cidades e mudanças climáticas” ganhou
maior relevância a partir da constatação de que
não seria mais possível mitigar com eiciência
todos os efeitos do aumento dos gases estufa
na atmosfera. Neste cenário, a adaptação às
mudanças climáticas globais seria indispensável,
e a cidade o locus privilegiado para o
desenho de políticas. A constante ampliação
da concentração da população mundial nas
cidades traz grandes desaios e, também,
oportunidades para os planejadores e gestores
públicos que vivenciam uma demanda crescente
por políticas ambientais urbanas integradas e
multiescalares. Cidades são grandes fontes de
emissão de gases de efeito estufa e, também,
concentram boa parte da população vulnerável
às mudanças ambientais que vêm causando
grande preocupação, a exemplo da elevação
do nível do mar e da ampliação da frequência
e intensidade de tempestades severas,
furacões, secas, ondas de calor, entre outras.
Por outro lado, a concentração populacional
urbana permite que a implantação de políticas
voltadas para mitigação, adaptação e redução
da vulnerabilidade seja mais abrangente.
Nesse contexto, o livro Cities and Climate
Change, editado pela Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) sob a coordenação de Lamia KamalChaoui, Jan Corfee-Morlot e Alexis Robert,
reúne uma série estudos que buscam aprofundar
conhecimentos essenciais às políticas públicas
e à governança dos problemas ambientais
urbanos associados às mudanças climáticas.
No seu conjunto, os textos demonstram que
as cidades devem dar respostas efetivas às
mudanças climáticas globais, contribuindo
para a redução das emissões de gases estufa
e, sobretudo, adotando novas estratégias de
adaptação e redução da vulnerabilidade.
O
desenvolvimento
do
livro
ocorreu
paralelamente à organização do quinto simpósio
de pesquisa urbana pelo Banco Mundial, em
[1] Douglas Sathler é Geógrafo (IGC/UFMG, Brasil) e doutor em Demograia (Cedeplar/UFVJM, Brasil). FIH/CeGEO, UFVJM;
Professor visitante, CIESIN, Columbia University, EUA. E-mail: doug.sathler@gmail.com
[2] Saleem Khan é graduado e mestre em Life Sciences (Anna University, Índia), e doutor em Ciências Climáticas (University
of Madras, Índia); Columbia University, EUA. E-mail: asaleemkhan.cc@gmail.com
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
149
RESENhA
CIDADES E MUDANÇAS CLIMÁTICAS: POLÍTICAS PÚBLICAS E GOVERNANÇA AMBIENTAL
2009, na cidade de Marseille (França), com
o tema “Cidades e Mudanças Climáticas:
respondendo a uma agenda urgente”, que
subsidiou a publicação intitulada “Cities and
Climate Change: an urgente agenda” (BANCO
MUNDIAL, 2010). Estas primeiras iniciativas, que
marcaram a intensiicação dos estudos sobre
cidades e mudanças climáticas, estimularam
uma série de publicações de peso3 nos anos
posteriores e a construção de um capítulo
inteiro dedicado ao tema no Quinto Relatório
de Avaliação do Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas - IPCC (2015).
O livro é composto por dez capítulos agrupados,
basicamente, em torno de três grandes
temas: 1) tendências (trends); 2) políticas de
competitividade (competiveness policies); e
3) governança (governance). A primeira parte
discorre sobre as bases teóricas e empíricas
que permeiam as relações entre cidades e
mudanças climáticas. Questões associadas à
concentração econômica, à morfologia urbana e
ao alto consumo energético nas cidades trazem
elementos cruciais, revisitados com frequência
nos capítulos posteriores. Ainda, a descrição dos
impactos especíicos das mudanças climáticas
nas cidades lança as bases para a discussão
sobre os benefícios econômicos e sociais da
implementação de políticas de mitigação e
adaptação nas cidades. Os autores vislumbram
uma realidade urbana marcada pela redução
dos níveis locais de poluição e seu impacto
positivo na saúde, ampliação da qualidade de
vida urbana, aumento da segurança energética
e melhoria na infraestrutura das cidades.
A segunda parte do livro explora as políticas de
competitividade urbana para o tratamento das
mudanças climáticas no nível local, com foco no
zoneamento, nos recursos naturais, nos setores
de transporte e construção, no tratamento do
lixo e nos sistemas de distribuição de água.
Ainda, traz considerações sobre o papel das
cidades na construção de um novo modelo
de reprodução econômica e de geração de
empregos em bases sustentáveis do ponto de
vista ambiental, com destaque para a geração
de inovação e para as mudanças necessárias na
infraestrutura, na produção e no consumo.
A terceira parte aborda diversos aspectos
relacionados à governança urbana das
mudanças climáticas, destacando a governança
multiescalar, a importância das articulações
entre o local/regional, as políticas climáticas
locais, os instrumentos de inanciamento e
de captação de recursos, o amadurecimento
institucional e a ampliação do conhecimento
local. Governança multiescalar inclui articulação
vertical (diferentes níveis de governo) e
horizontal (atores não ligados diretamente
aos governos, e governança integrada entre
cidades, a exemplo da famigerada governança
metropolitana). Os editores destacam a
necessidade de articulação da política local
com as políticas desenvolvidas no âmbito
regional e nacional. Governos nacionais não
podem efetivamente executar suas estratégias
climáticas isoladamente, longe dos principais
protagonistas e das especiicidades regionais
e locais. Ademais, os editores trazem
informações relevantes sobre as oportunidades
de inanciamento nos níveis nacional e
subnacional, além de abordar o surgimento de
novas formas de inanciamento das iniciativas
climáticas urbanas. Mais adiante, demonstram
que governos nacionais devem estimular a
construção de novos arranjos institucionais
no âmbito local e promover iniciativas que
visem o amadurecimento das instituições
já existentes, envolvendo stakeholders no
processo decisório.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
150
CIDADES E MUDANÇAS CLIMÁTICAS: POLÍTICAS PÚBLICAS E GOVERNANÇA AMBIENTAL
Ao inal, o livro deixa claro que, apesar do
crescimento e do desenvolvimento das cidades
terem dado o tom da problemática climática
contemporânea, as cidades também estão
associadas às possíveis soluções. Governos
nacionais e regionais devem apoiar a remoção
de barreiras na governança urbana local,
tendo em vista que os custos no atraso das
políticas urbanas são altos. A criação de redes
de política urbana que reúna diversos níveis de
governo, pesquisadores e stakeholders seria
algo indispensável na visão dos organizadores
do livro.
A publicação é bastante relevante para
acadêmicos,
formuladores
de
políticas
públicas, gestores e demais interessados no
tema. As principais ideias e conclusões da
obra estão resumidas e disponibilizadas em
linguagem acessível nas primeiras páginas
da publicação, o que facilita a leitura e a
divulgação do conhecimento cientíico. O
livro é disponibilizado gratuitamente no sítio
eletrônico da OCDE, que pode ser acessado
através do seguinte link: <http://www.oecd.
org/>.
REFERÊNCIAS
BANCO MUNDIAL. Cities and Climate Change:
an urgent agenda. Washington DC: Banco
Mundial, 2010.
RESENhA
Changing World. Ed. Judy L. Baker. Washington
DC: Banco Mundial, 2012.
______. Building Resilience: Integrating
Climate and Disaster Risk into Development.
Washington DC: Banco Mundial, 2013.
CARMIN, J.; NADKARNI, N.; RHIE, C. Progress
and Challenges in Urban Climate Adaptation
Planning: Results of a Global Survey.
Cambridge, MA: MIT, 2012.
UNITED NATIONS HUMAN SETTLEMENTS
PROGRAMME – ONU-HABITAT. Global Report
on human Settlements, cities and climate
change. Washington DC: ONU-HABITAT, 2011.
Recebido em: 1/03/2016
Aceito em: 10/03/2016
* Esta resenha contou com inanciamento do CNPQ, processo
482648/2013-9 (Edital Universal - 2013) e da CAPES (Bolsa
de pós-doutoramento no exterior, processo 0832-15-4.
Ver: Global Report on Human Settlements, cities and
climate change (ONU-HABITAT, 2011); Guide to Climate
Change Adaptation in Cities (BANCO MUNDIAL, 2012);
Climate change, disaster risk, and the urban poor (BANCO
MUNDIAL, 2012); Progress and Challenges in Urban Climate
Adaption Planning (2012) – ICLEI (CARMIN, J.; NADKARNI, N.;
RHIE, C, 2012). Building Resilience: integrating climate and
disaster risk into development (BANCO MUNDIAL, 2013).
3
______. Guide to Climate Change Adaptation
in Cities. Washington DC: Banco Mundial,
2011. BANCO MUNDIAL. Climate change,
disaster risk, and the urban poor. Washington
DC: Banco Mundial, 2012.
______. Climate Change. Disaster Risk, and
the Urban Poor. Cities Building Resilience for a
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
151
CIDADES
SEÇÃO E MUDANÇAS CLIMÁTICAS: POLÍTICAS PÚBLICAS E GOVERNANÇA AMBIENTAL
TÍTULO
RESENhA
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
152
TÍTULO
RESENhA
O DESAPARECIMENTO NA OBRA DE BERNARDO CARVALHO
SEÇÃO
ENSAIO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
153
OSEÇÃO
DESAPARECIMENTO NA OBRA DE BERNARDO CARVALHO
TÍTULO
RESENhA
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
154
ENSAIO
O sombrio sonho d’A queda do céu*
Rafael Leopoldo [1]
Resumo: O presente ensaio visa fazer uma breve análise do livro 24/7 Capitalismo tardio e os ins do
sono, de Jonathan Crary, levando em conta a tese de que a cada momento nossa sociedade capitalista
tenta eliminar o sonho/sono e que, o único contraponto ao capitalismo estaria também no ambiente
onírico. Em contraste com a análise de Crary, argumenta-se que nem mesmo o sonho ocidental poderia
ser uma oposição ao capitalismo; desta forma, para criticar a análise de Crary, volto-me ao sonho
ameríndio, ao xamanismo. É levando em conta a obra A queda do céu: palavras de um xamã yanomami,
de Davi Kopenawa e Bruce Albert, que penso ser possível aprofundar a crítica de Crary e ainda propor
outro tipo de sonho, o sonho ameríndio.
Palavras-chave: Capitalismo tardio. Sonho ocidental. Sonho ameríndio.
The darkness dream of The falling sky
Abstract: This assay aims to make a brief review of 24/7 Late capitalism and the end of sleep by Jonathan
Crary considering the thesis that every time the capitalist society tries to eliminate the dream/sleep
and that the only counterpoint to capitalism would be in the dream atmosphere. In the contrast to Crary
analysis, I suppose that the Western dream is not a counterpoint to capitalism, in this way, to criticize
Crary analysis I turn to the Amerindian dream, to shamanism. It is taking into account the book The
falling sky, by David Kopenawa and Bruce Albert that I think it is possible to deepen the criticism on
Crary and propose another type of dream, the amerindian dream.
Keywords: Late capitalism. Western dream. Amerindian dream.
[1] Rafael Leopoldo é mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pós-graduação pela Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Graduação em Filosoia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG). E-mail: ralasfer@gmail.com
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
155
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
ENSAIO
Para Roberto Starling
“Os brancos também deveriam sonhar
pensando em tudo isso. Talvez acabassem
entendendo as coisas de que os xamãs
costumam falar entre si. Mas não devem
pensar que estamos preocupados somente
com nossas casas e nossa loresta ou com
os garimpeiros e fazendeiros que querem
destruí-las. Estamos apreensivos, para
além de nossa própria vida, com a da
terra inteira, que corre o risco de entrar
em caos. Os brancos não temem, como
nós, ser esmagados pela queda do céu”
(Davi Kopenawa e Bruce Albert)
SONhARES CARtOGRÁFICOS
Expor esta pintura de Emily Kam Kngwarray
(1910-1996), uma aborígene australiana, é
pontuar que a linha entre um sonho ocidental
e um sonho indígena não é totalmente binária
e dura, mas, sim, lexível e maleável. Estes
sonhares se tocam seja pela violência da
colonização, seja por meio do contato ou ainda
de um determinado pacto etnográico. Desta
maneira, convém ressaltar que a arte aborígene
foi, primeiramente, compreendida como um
artefato, ou seja, como uma curiosidade da
disciplina antropológica, depois levada aos
museus. Inicialmente, os artefatos não têm a
conotação de arte, mas de algo esdrúxulo, ou
ainda, exótico (no sentido negativo do termo).
Todavia, é com Albert Namatjira (1902-1959) que
a arte aborígene passa a ganhar algum status.
Namatjira, criado em uma missão luterana,
oferece-se para ser guia de Rex Batterbee no
Deserto, em troca, Batterbee lhe ensinaria a
técnica da aquarela. É desta maneira que nasce
a arte de Namatjira, uma arte aborígene, mas
entremeada por uma conexão com os brancos.
O pintor ensina seus ilhos e sobrinhos e,
desta forma, gesta toda uma escola aborígene
aquarelista chamada Hermannsburg School.
Depois da pintura de Namatjira, e de toda a sua
escola aquarelista, houve outro tipo de pintura
indígena que o mercado euro-americano
absorveu ainda de uma forma mais acalorada.
Se a pintura aquarelista de Namatjira, às vezes,
era considerada típica dos brancos em virtude
de sua técnica, o dot painting (“pintura usando
Figura 1 - Big Yam dreaming. Emily Kam Kngwarray. Synthetic polymer paint on canvas, 291,1 x 801,9cm.
Fonte: National Museum Australia [site] © Emily Kame Kngwarreye.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
156
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
pontos”) coadunava mais com o exotismo
exigido pelo mercado nacional e internacional.
Esta expansão se dá principalmente nos anos
de 1980 e 1990, generalizando a expressão
indigenous artist e aboriginal art. Esta arte
popularizada gera uma importante tensão, já
que é um produto artístico soisticado, mas
também uma forma de os artistas poderem
airmar os direitos territoriais, as relações
de parentescos e uma identidade. Daí é que
regressamos à Emily Kam Kngwarray e sua
pintura Big Yam dreaming (1995), pois ela
envolve estes dois aspectos.
A pintura de Kngwarray já foi relacionada ao
expressionismo abstrato, ao minimalismo,
ao pontilhismo, todavia não creio que esta
tentativa taxonômica (euro-americana) seja
interessante para enquadrá-la devido aos
seguintes elementos:
A ideia de autoria individual não faz muito
sentido entre as sociedades indígenas
da Austrália, nas quais cada etnia ou clã
detém algumas histórias (Dreamings)
exclusivas que só podem ser contadas e
representadas artisticamente por seus
membros. As noções de família expandida e
de clã são muito mais fortes do que a ideia
de indivíduo e, além disso, a expressão
artística é uma forma de transmissão de
conhecimento coletivo e intergeracional.
Aborígines de todas as regiões da Austrália
contam e cantam as trajetórias de seus
antepassados,
seres
poderosos
que
parecem humanos, mas que ao mesmo
tempo são associados a animais ou plantas.
Assim, quando um artista materializa com
cores e linhas certas formas e padrões,
está apenas tornando visível, parcial e
temporariamente, algo que não pertence
exclusivamente a ele e que é muito maior e
mais profundo (GOLDSTEIN, 2012, p. 85).
A arte de Kngwarray expressaria não a
genialidade de um único indivíduo tão aclamada
por uma cultura individualista, mas, sim,
ENSAIO
corresponderia à ideia de uma família, de um
clã. Trata-se da importância de uma coletividade
e de um conhecimento que é perpassado e
transferido por ela. Pinta-se os Dreamings,
pinta-se as histórias ancestrais, coloca-se em
tela toda uma sacralidade. Não se trata de
uma arte a la Jackson Pollock com a técnica de
dripping (“gotejamento”), mas refere-se mais
a um mapa no qual ela está dentro, refere-se
à pintura corporal das mulheres, à natureza, a
um território sagrado e cartografado.
Contudo, a pressuposição aqui colocada é que
qualquer sonhar cartográico perpassa outras
linhas, é compreender o microcosmo sempre
aberto ao macrocosmo. Não se trata de uma
divisão entre o Ocidente arborescente e o
Outro rizomático, mas de compreender que os
sonhares não são duas linhas paralelas, talvez
seja algo mais parecido e próximo de um novelo
de lã. Estamos diante de um falso dualismo,
posto que o processo arborescente (modelo)
sempre está em relação com forças rizomáticas
(processos). São linhas duras, linhas lexíveis,
ou ainda linhas de fuga neste novelo de uma
produção social.
***
Se um dos nossos tópicos é a cosmopolítica
yanomami e, principalmente, como ela aparece
no livro A queda do céu: palavras de um xamã
yanomami, de Davi Kopenawa Yanomami e
Bruce Albert, é viável apontar este novelo entre
linhas duras e lexíveis na própria composição
da obra citada e, também, abordarmos uma
fundamentação teórica para uma aproximação
desta obra com outros saberes, neste caso um
“entrecruzamento estranho”2 entre ilosoia
e pensamento ameríndio. Dois pontos se
mostram importantes e se comportam como
premissas para composição d’A queda do céu:
1) a violência sofrida pelo povo yanomami como
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
157
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
ENSAIO
ato fundador do livro; 2) e o pacto etnográico
com Bruce Albert, o antropólogo-tradutor da
cosmopolítica yanomami.
Pode-se dizer que este ato fundador do livro é
o próprio percurso de Davi Kopenawa e do povo
yanomami, porque desde cedo ele é marcado
pela violência dos brancos, seja direta ou
indiretamente. A obra A queda do céu... pode
ser vista também como uma grande tomada
de consciência sobre o seu próprio território,
sua cultura e uma constante ampliação de sua
consciência sobre o que estava acontecendo
ao seu redor. Evelyn Schiler Zea (2012, p. 172)
airma que:
[...] a gênese do livro remonta ao inal
de 1989. Davi Kopenawa se encontrava,
então, em Brasília, na casa da antropóloga
Alcida Ramos, onde assistiu a uma
reportagem sobre a devastação provocada
pelos garimpeiros no território yanomami.
Impactado pelas imagens, Davi Kopenawa
permaneceu num longo silêncio meditativo
do qual saiu com as seguintes palavras:
“Les Blancs ne savent pas rêver, c’est
pourquoi ils détruisent ainsi la forêt”
(Kopenawa & Albert, 2010: 581). A pedido
de Alcida Ramos, Davi Kopenawa concordou
em gravar em seguida três itas cassetes
nas quais alterna, em seu idioma, o relato
da violência sofrida pelos Yanomami
com “relexões xamânicas” sobre ela. O
destinatário imediato deste manifesto foi
Bruce Albert, para quem Davi pediu que
difundisse suas palavras entre os brancos.
Este seria um ponto onde poderíamos ver a
gênese do livro, porém, é claro que há outros
elementos que envolvem sua emergência. Creio
sobretudo que estes elementos são a violência
sofrida pelos yanomami e a necessidade de Davi
Kopenawa de falar aos brancos. Uma violência
que não é tão pontual, mas histórica. Desta
forma, é necessário salientar que se há vários
livros coletivos que são enunciações individuais,
A queda do céu... é um livro narrado em
primeira pessoa que se trata de uma enunciação
coletiva3.
O segundo ponto é o pacto etnográico com
Bruce Albert, o antropólogo-tradutor da
cosmopolítica yanomami n’A queda do céu....
Se em um primeiro momento salientávamos a
violência como foco para a produção do livro,
ela permanece como foco da tradução do
livro, porque Bruce Albert toma, claramente,
partido dos yanomami. A produção da obra no
momento em que os dois se encontram com os
seus gravadores, com o intuito de “falar para
os brancos”, é tão política quanto as técnicas
de tradução propostas por Bruce Albert. Desta
forma, Bruce Albert tem que ser “objeto de
uma profunda reeducação nas formas de vida
yanomami” (ZEA, 2012, p. 173). É diante desta
profunda reeducação que acontece o pacto
etnográico. No Postscriptum quando eu é um
outro (e vice-versa), Bruce Albert, a respeito
desta reeducação, escreve que:
Ao lhe oferecerem seu saber, os anitriões
do etnógrafo aceitam a incumbência
de ressocializá-lo numa forma que lhes
parece mais adequada à condição humana.
Contudo, para além da cumplicidade ou
empatia que o estranho noviço possa ter
inspirado, a transmissão visa antes de tudo,
para além de sua pessoa, o mundo do qual
ele jamais deixa de ser um representante,
queira ele ou não. De fato, em seus
esforços pedagógicos, seus anitriões têm
por objetivo primeiro tentar reverter,
tanto quanto possível, a troca desigual
subjacente à relação etnográica. De modo
que os ensinamentos de nossos supostos
“informantes” são dispensados por razões
de ordem principalmente diplomática. Sua
paciente educação se aplica, em primeiro
lugar, a nos fazer passar da posição de
embaixador improvisado de um universo
ameaçador ao papel de um tradutor
benevolente, capaz de fazer ouvir nele sua
alteridade e eventualmente possibilitar
alianças (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.
521).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
158
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
Deste modo, a colheita dos dados etnográicos,
para Bruce Albert, é uma reeducação, na qual
há uma tentativa do antropólogo em ser o
intérprete de uma causa. Tanto Davi Kopenawa
se modiica com os contatos com os brancos
como também Bruce Albert é reeducado4 com
o contato com os indígenas. Tem-se, então, um
xamã-tradutor5 e um antropólogo-tradutor. São
estes encontros e este pacto que produzem A
queda do céu.... Agora, trata-se de levar este
material etnográico, esta biograia etnograia
a sério.
Levar o pensamento indígena a sério é uma ideia
que perpassa a obra do antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro, principalmente no seu
artigo O nativo relativo e no livro Metafísicas
canibais. Esta ideia tem implicações tanto para
a antropologia quanto para diversas outras
disciplinas. Nesta ocasião, consideramos uma
ou outra implicação para o saber ilosóico.
Contudo, primeiro, é necessário referenciar
alguns pontos do que é este levar a sério.
Levar o pensamento indígena a sério é tomar
as suas ideias como conceitos, ou seja, como
uma ilosoia, posto que a tarefa da ilosoia
na deinição deleuzo-guattariana é justamente
essa, a criação de novos conceitos. Eduardo
Viveiros de Castro propõe uma equivalência
do discurso do antropólogo e do nativo, por
consequência, levar este pensamento a sério,
tendo-o como uma relexão ilosóica, é colocálo no mesmo nível de tantas outras relexões
ilosóicas. Em um dos exemplos do autor,
“o perspectivismo amazônico é um objeto
ilosóico tão interessante como compreender a
metafísica de Leibniz...” (VIVEIROS DE CASTRO,
2014, p. 224). Tendo tais aspectos como base
para levar o pensamento indígena a sério, ainda
há dois outros fundamentais para uma maior
sedimentação desta ideia: 1) não neutralizar o
pensamento; 2) e tomá-lo como uma prática de
ENSAIO
sentido, experimentação. O primeiro envolve um
dado que parece óbvio, mas é dramaticamente
triste, porque para não neutralizar é necessário
que estes coletivos vivam, é necessário que
continuem resistindo (e re-existindo) a toda
uma política genocida. Posto isso, podemos
airmar que não neutralizar é:
Pôr entre parênteses a questão de saber se
e como tal pensamento ilustra universais
cognitivos da espécie humana, explicase por certos modos de transmissão
socialmente determinada do conhecimento,
exprime uma visão de mundo culturalmente
particular, valida funcionalmente a
distribuição do poder político, e outras
tantas formas de neutralização do
pensamento alheio. (VIVEIROS DE CASTRO,
2014, p. 227).
Não neutralizar, então, é suspender tais
questões para que seja possível pensar. O
segundo aspecto remonta à prática de sentido,
à experimentação. Eduardo Viveiros de Castro
(2014, p. 229, grifo do autor )airma que “o
pensamento nativo deve ser tomado – se se quer
tomá-lo a sério – como uma prática de sentido:
como dispositivo autorreferencial de produção
de conceitos, de ‘símbolos que representam
a si mesmos’”. Recusa-se a compreender o
sistema indígena como crença, e volta-se para
o Outrem deleuziano, a expressão de um mundo
possível, não explicar o mundo de outrem, mas
multiplicar o nosso mundo.
A ilosoia, quando toma o pensamento indígena
a sério, torna-se menos etnocêntrica e abrese a uma gama de mundos possíveis que os
ameríndios projetam com os seus conceitos. São
estes alguns dos inúmeros ganhos da ilosoia
neste contato com a conceituação indígena. O
nosso ponto focal, por sua vez, é o sonho, tanto
o ocidental (de eliminá-lo) como o ameríndio
(de vivenciá-lo).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
159
ENSAIO
O dESEJO OCIdENtAL dA ELIMINAÇÃO dO
SONO
Figura 2 - Moinhos de algodão de Arkwright à noite, de
Joseph Wright
Fonte: Wikart [site]
Jonathan Crary tem um belíssimo ensaio sobre
o capitalismo chamado 24/7: capitalismo
tardio e os ins do sono. É por meio deste
ensaio que vamos fazer uma aproximação do
que propus chamar de um sonho ocidental, uma
sociedade que mina o próprio sono e os seus
sonhos, criando, desta forma, uma realidade
digna das distopias mais sombrias. Começo este
apontamento a respeito do sonho ocidental com
a análise que Crary faz da pintura Os moinhos de
algodão de Arkwright à noite, de Joseph Wright
of Derby, pois esta pintura nos ajudará a pensar
a utopia capitalista de uma sociedade 24/7,
mas também mostra que ela é híbrida, pois o
pré-moderno e o moderno convivem – e depois
os escombros cinza das sociedades disciplinares
icam próximos da iluminação constante das
sociedades de controle.
Para Crary, a estranheza da pintura viria da
inserção discreta de prédios de tijolos de seis
e sete andares em uma paisagem rural. Porém,
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
para o autor, mais inquietante do que os prédios
em meio ao bosque selvagem é a elaboração de
uma cena noturna, onde a Lua ilumina o céu
repleto de nuvens coexistindo com os pequenos
pontos de luz das janelas dos moinhos de
algodão, iluminados por lâmpadas a gás. Temse, lado a lado, a temporalidade natural (a
iluminação da Lua) e a temporalidade artiicial
(a iluminação das fábricas). Esta iluminação
artiicial, para o autor, “anuncia a instauração
racionalizada de uma relação abstrata entre
tempo e trabalho, separada das temporalidades
cíclicas dos movimentos da Lua e do Sol ”
(CRARY, 2014, p. 71).
Quando Crary analisa esta pintura, ele aponta
que a novidade não estaria no determinante
mecânico, mas, sim, em uma redeinição da
relação entre o tempo e o trabalho. Trata-se de
produção sem folga, do trabalho que não cessa,
do trabalho lucrativo e funcionando 24 horas
por dia, 7 dias por semana. Para o capitalismo,
é necessária esta reorganização do tempo e
do trabalho. Não é de forma inconsiderada
que Marx apontava que o capitalismo jamais
poderia ser iniciado pela agricultura, a
agricultura é industrializada retroativamente.
E este movimento, ironicamente, os governos
de esquerda da América Latina conhecem
muito bem, principalmente Rafael Corrêa
no Equador, Evo Morales na Bolívia, Cristina
Kirchner na Argentina e visceralmente, no
Brasil, Dilma Rousseff com uma política
extrativista, uma valorização extremada
(extremista) do agronegócio que no lulismo
e no dilmismo acompanham uma virada
tecnocrática-progressista – estranhamente, no
que diz respeito à ecologia, esquerda e direita
parecem andar de mãos dadas. Não obstante,
a agricultura não colonizada pelo capitalismo
tinha suas temporalidades cíclicas, porém,
este tempo é modiicado, pois aquele tempo
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
160
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
não colonizado impedia a produção em maior
quantidade. A pintura salientada por Crary
mostra estes dois tempos se tocando.
Outro aspecto da apreciação de Crary da obra
Os moinhos de algodão de Arkwright à noite é
que esta pintura apresentaria uma experiência
híbrida. De fato, não vivemos em espaços
homogêneos, mas dentro de uma mistura. Na
pintura, temos a relação híbrida da agricultura
e da fábrica. Todavia, Crary evocados ainda
outros elementos de mistura na obra, por
exemplo, a modernização, no século 19 e 20,
tratar-se-ia de um mosaico de espaços e tempos
dissociados, entre o moderno e o pré-moderno.
Crary nos lembra da análise de Michel Foucault
a respeito das instituições disciplinares, análise
feita, principalmente, no livro Vigiar e punir.
Trata-se da crítica às sociedades disciplinares,
da transformação dos corpos em corpos dóceis,
da administração contínua das pessoas nos
ambientes fechados: fábricas, escolas, prisões,
hospitais, exércitos etc., toda uma linha dura
que perpassa os indivíduos.
No século 19 e 20, boa parte das pessoas era
coninada durante grande parte dos seus dias –
e é necessário lembrar que, nestes ambientes,
é que se dava o treinamento, a normalização
e o acúmulo de conhecimento a respeito do
indivíduo. Para Foucault, o indivíduo estaria
neste continuum carcerário, passando de
um arquipélago carcerário a outro a todo o
momento. Entretanto, o que Crary salienta é
que há lugares não regulados, não organizados
e não supervisionados. O autor usa a noção (que
ele considera problemática) de “vida cotidiana”
para apontar camadas de vida não administrada
ou de uma “vida ao menos parcialmente
descolada de imperativos disciplinares”
(CRARY, 2014, p. 78). Na vida cotidiana estaria
todo um repertório pré-moderno, posto que o
ENSAIO
cotidiano seria “inseparável” de formas cíclicas
de repetição, como, por exemplo, a vigília e
o sono, o trabalho e as festividades. Contudo,
o espaço cotidiano não seria totalmente
antagônico à modernidade, uma vez que é de
sua natureza se adaptar, às vezes de forma a
resistir e outras de forma a se tornar submisso
ao processo de modernização.
Entretanto, o que é vital neste momento é
demarcar que a relação entre a sociedade
disciplinar e o surgimento da sociedade de
controle é apresentada de modo que ambas
estão juntas como na pintura de Joseph Wright
of Derby, onde podemos ver a agricultura
e o capitalismo e, também, podemos ver
preigurada uma estranha utopia, a utopia
de uma sociedade totalmente iluminada,
totalmente vigiada, na qual não haveria mais o
sono e nem o sonho, criando um sujeito 24/7 no
interior de uma sociedade 24/7.
***
A utopia de um capitalismo 24/7 é uma
iluminação total, a perda do sono, do sonho
e do espaço de devaneio, o espaço de uma
realidade onírica que poderia também ser o
espaço da criação imaginativa, de outras formas
de conviver. Gaston Bachelard6, no seu livro
Poética do espaço, faz uma profunda análise
do espaço íntimo da casa, mas faz também
uma topoanálise, e escreve sobre os sonhos
e os devaneios em seus espaços geográicos,
em determinado momento diz Bachelard
(s.d., p. 29): “que privilégio de profundidade
há nos sonhos da criança! Feliz a criança que
possui, realmente, as suas solidões!”. Assim, a
sociedade 24/7 é a eliminação destas solidões
que sentimos mais profundamente no escuro de
um porão, e neste lugar haveria “escuridão dia
e noite. Mesmo com uma vela na mão, o homem
vê as sombras dançarem na muralha negra do
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
161
ENSAIO
porão” (BACHELARD, s.d., p. 31). Mas Bachelard
não deixa de salientar que nossa civilização
põe luz em todos os cantos. A claridade como
armadilha.
Crary nos dá exemplo desta vontade de
uma constante iluminação, de um desejo de
permanecer acordado, pois, para o capitalismo,
o espaço temporal do sono seria improdutivo
–a cada momento é colocada no mercado uma
novidade farmacológica para destruir o sono,
para que possamos icar acordados uma maior
quantidade de horas, assim, produziríamos
mais, compraríamos mais. O sono seria,
então, o último espaço não colonizado, não
transformado em mercadoria, tornando-se,
desta forma, um estorvo para o capitalismo, o
sono seria uma afronta à doença das sociedades
que poderíamos chamar, criticamente, de
hiperdesenvolvidas (em contraponto a um
subdesenvolvimento).
Poderíamos exempliicar esta lógica com uma
tríade: o soldado, o trabalhador e o consumidor
sem sono. Mas, também, é necessário salientar
práticas de uma constante tentativa de minar
a experiência do sono: 1) o soldado sem sono;
2) a experiência russa de criar um satélite
para reletir a luz do Sol na Terra a noite; 3) e
inalmente a prática da tortura.
O primeiro exemplo oferecido por Crary, numa
tentativa de construir um indivíduo sem sono,
aborda um empreendimento militar. O autor
salienta o estudo do Departamento de Defesa
dos Estados Unidos focando o pardal de coroa
branca que tem a capacidade de permanecer
acordado durante sete dias, quando faz sua
migração. Estudar estes pardais teria como
intuito a produção de um soldado7 sem sono.
Este exemplo faria parte de uma gama de
esforços em controlar o sono humano – no caso
do ambiente militar, isso faria ecos em soldados
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
mais produtivos. O complexo cientíico-militar
norte-americano sabe que nem sempre será
possível enviar drones (veículo aéreo não
tripulado) na produção de suas guerras,
assim, este soldado insone é necessário. Um
apontamento interessante de Crary é que “a
história mostra que inovações relacionadas
à guerra são inevitavelmente assimiladas na
esfera social mais ampla, e o soldado sem
sono seria o precursor do trabalhador ou do
consumidor sem sono” (CRARY, 2014, p. 13). Os
exemplos da produção tecnológica e cultural
no ambiente de guerra que foram incorporados
na esfera social são inúmeros, porém, bastanos lembrar de um pequeno fragmento bélico
que está dentro da casa de grande parte da
população mundial: a internet.
O segundo exemplo, bastante esdrúxulo, mas
possível de aplicação, é a experiência russaeuropeia no inal dos anos de 1990. O projeto
era colocar satélites em órbita que reletiriam
a luz do Sol para a Terra. Crary salienta os
seguintes aspectos desta empreitada:
O esquema exigia uma corrente com vários
satélites em órbitas sincronizadas com a do
Sol, a uma altitude de 1700 quilômetros,
cada satélite equipado com reletores
parabólicos retráteis feitos de material
iníssimo. Quando completamente abertos,
cada satélite-espelho, com duzentos
metros de diâmetro, teria capacidade
de iluminar uma área de 25 quilômetros
quadrados da Terra com uma luminosidade
quase cem vezes maior do que a da Lua.
O impulso inicial do projeto era fornecer
iluminação para a exploração industrial e
de recursos naturais em regiões remotas
com longas noites polares na Sibéria e no
leste da Rússia, permitindo trabalho noite
e dia ao ar livre. Mas o consórcio acabou
expandindo seus planos para incluir a
possibilidade de fornecer iluminação
elétrica, o slogan da empresa era luz do dia
a noite toda (CRARY, 2014, pp. 13-14).
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
162
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
Tal empreendimento sofreu inúmeras críticas e
se mostrou inviável, porém o que Crary salienta
é um imaginário contemporâneo no qual há
o intuito de uma iluminação permanente,
poderíamos ainda dizer que se trata de uma
visibilidade ininterrupta, mesmo que a
visibilidade seja uma armadilha. Desta forma,
tem-se o encontro entre iluminação-visibilidade,
um duplo que pode ser compreendido como um
dispositivo de iluminação-vigilância-controle.
A ideia de visibilidade deve ser remontada ao
sonho panóptico do ilósofo e jurista Jeremy
Bentham. Como se sabe o projeto de Bentham
era construir uma arquitetura panóptica, ou
seja, que possibilitasse vigiar todos os lados
do ambiente: ver tudo como um olhar divinovigilante e invisível. Bentham icou mais
conhecido pela análise que Foucault fez de sua
obra, levando em conta, sobretudo, as prisões,
porém, para Bentham, a arquitetura panóptica
se voltaria para as escolas, hospícios, hospitais
e para a sociedade em geral. Mais do que um
projeto arquitetônico, tratava-se de um princípio
geral de iluminação e vigilância. Jacques-Alain
Miller (2008), de forma acertada, airma que é
a luz que aprisiona. Torna-se o outro visível,
mas para uma maior administração dos corpos,
para a produção e obtenção de determinado
conhecimento.
O terceiro exemplo é a privação do sono via
tortura. Para Crary esta privação diz respeito
a uma “desapropriação violenta do eu por
forças externas, o estilhaçamento de um
indivíduo” (CRARY, 2014, p. 16). O autor
foca, principalmente, um contexto pós-11 de
setembro de 2001 e as retaliações ao ataque às
Torres Gêmeas em Nova York. A política norteamericana (com cooperação, principalmente, da
França e da Inglaterra) de uma “guerra contra o
terror” – na época, uma guerra contra a Al Qaeda
– fez com que esta nação invadisse e destruísse
ENSAIO
estruturas sociais e religiosas no Afeganistão,
Iraque, Síria e Líbia. Foi este desmantelamento
que estimulou os conlitos religiosos e tribais,
onde também surgiu o Daesh8 que coniguraram
o atentado terrorista do dia 15 de novembro
de 2015 na França. Todavia, o ponto central
é que houve uma abertura para a prática da
tortura seja no âmbito jurídico (criação de
novas leis), extrajurídico (a não necessidade
da lei, como, por exemplo, no Patriot Act) ou
da opinião pública (adesão popular às práticas
de tortura e a criação da contradição nos seus
termos: “o intelectual islamofóbico”). É no
contexto do terror que Crary nos dá o exemplo
de Mohammed al-Qahtani:
Mohammed al-Qahtani foi torturado de
acordo com as especiicações do que é
agora conhecido como o Primeiro Plano
de Interrogatório Especial do Pentágono,
autorizado por Donald Rumsfeld. Al-Qahtani
foi privado de sono pela maior parte do
tempo durante dois meses, quando foi
submetido a sessões de interrogatório que
chegavam a durar vinte horas. Ele icou
coninado em cubículos onde era impossível
deitar, iluminados com lâmpadas de alta
intensidade e equipados com alto-falantes
de onde saía música a todo volume. Essas
prisões eram chamadas de Dark Sites [Locais
Escuros] pela comunidade de inteligência
das Forças Armadas, apesar de um dos locais
em que Al-Qahtani esteve encarcerado ter
como codinome Camp Bright Light [Campo
Luzes Brilhantes] (Crary, 2014, p. 15).
Novamente a luz, a iluminação aparece aqui
como uma armadilha, como meio de exposição,
como meio de tirar algo do outro. Nesta citação,
este retirar determinado conhecimento é
dramático, pois se dá por meio de uma violência
extremada que gera no indivíduo torturado o
total desamparo, a total submissão, a perda
contínua da experiência sensorial. Por im, criase um sujeito farrapo que inventaria qualquer
coisa para livrar-se da tortura.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
163
ENSAIO
Uma gama de exemplos desta tentativa
de degradar o sono e o sonho poderia ser
apresentada, porém, vale reairmar este
estranho desejo de degradação presente nos
que aqui trouxemos. Desta forma, a utopia
solar de um capitalismo 24/7 é criar um mundo
sem sombras. Se esta é a tentativa, é porque
o sono é um empecilho, o sono airmaria “um
intervalo de tempo que não pode ser colonizado
nem submetido a um mecanismo monolítico de
lucratividade, e desse modo permanece uma
anomalia incongruente e um local de crise no
presente global” (CRARY, 2014, p. 20). O sono e o
sonho iriam contra uma força de modernização,
remontando a um mundo cíclico, agrícola.
O sono seria um espaço coletivo, onde todos
seriam iguais, pois todos dormem. O sonho, por
sua vez, foi deixado para os artistas, os poetas
e os loucos.
Crary, em seu livro, reivindica este espaço do
sono contra todo um capitalismo que diz em
voz alta “dormir é para os fracos”, “trabalhe
até a exaustão”, “consuma para jogar fora”,
“destrua sua própria casa (ecologia)”, “goze
mesmo sem prazer”. Neste capitalismo, até
os indivíduos se tornam obsoletos e o sonho,
momento a momento, perde o seu poder de
cartografar a realidade de forma diferente.
Todavia, a aposta de Crary é ainda neste sonho,
mas não num sonho individualista. O sonho
de Crary parece ser a tentativa de reativar
potencialidades do Maio de 68 francês, em que
o sonho era menos individualista e perpassava
uma coletividade, em que a luta não era
somente um confronto, mas também uma
recusa a responder a determinadas demandas.
Desta forma, não é estranho que Eduardo
Viveiros de Castro escreva que o evento Maio
de 68 não aconteceu:
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
[...] o evento-68 se consumiu sem se
consumar, ou seja, na verdade nada
aconteceu. A verdadeira revolução se fez
contra o evento; e foi ganha pela Razão
(para usarmos o eufemismo de praxe),
força que consolidou a máquina planetária
do Império, em cujas entranhas realizamse as núpcias místicas do Capital com a
Terra – a “mundialização” –, operação da
qual emana gloriosamente a Noosfera – a
“economia da informação” que nos controla
a todos. Se o capital não se importa em
nada de estar ou não “com a razão”, temse a impressão de que a razão, esta, adora
ser vista aos beijos e abraços com o capital
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 99).
Do evento-68 saiu vitoriosa a mundialização, a
economia da informação, a razão em núpcias
com o Capital, o sujeito empresário de si, o
empreendedor de si mesmo, ou seja, the dream
is over. Até mesmo esquerda e direita sufocaram
este sonho e, seguindo o poeta chileno Nicanor
Parra, é possível dizer, ironicamente, que la
izquierda y la derecha unidas, jamás serán
vencidas, mesmo que elas não sejam a mesma
coisa.
Assim sendo, podemos pensar novamente a
crítica de Crary a respeito de um capitalismo
24/7 que tenta constantemente eliminar
o sono e o sonho, ou, qualquer espaço de
devaneio. Repensar esta crítica colocando
aquele espaço proposto pelo autor como um
contraponto a uma vida empobrecida, uma
vida onde o próprio sonho já foi colonizado.
Desta forma, a crítica de Crary é radicalizada,
pois nem mesmo no sonho há um espaço para
um contraponto, para uma mudança. Porque,
como observa Davi Kopenawa em uma acurada
onirocrítica, os brancos, que ele chama de
“povo da mercadoria”, somente sonham com
suas próprias mercadorias, com seus objetos
acumulados, com o seu consumismo. Os brancos
“dormem pensando nelas [as mercadorias],
como quem dorme com a lembrança saudosa de
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
164
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
uma bela mulher” (KOPENAWA; ALBERT, 2015,
p. 413, grifo nosso). Mas, quem sabe, ainda
devêssemos modular esta resposta, porque
não são somente os brancos que sonham, mas
também o povo da loresta. Trata-se agora de
voltar para outros aspectos do sono e do sonho
(e também da insônia), para uma outra política
do sonho, para um sonho indígena e xamânico,
onde não encontramos somente os nossos
relexos (como em um jogo de espelhos), mas
o outro (trata-se do outrem como possibilidade
de novos mundos) e outra epistemologia.
O SONhO AMERíNdIO
Figura 3 - Fotograia de Cláudia Andujar, da série Sonhos
Yanomami
Fonte: Cláudia Andujar [site]
Analisamos alguns aspectos do desejo ocidental
de eliminar o sono e o sonho, todavia, não
tocamos em um mote que também circunda
a questão do sonho: a insônia, compreendida
como um lampejo que não nos deixaria cair
num sono a-perceptivo. Davi Kopenawa muitas
vezes fala que os brancos sonham como
machados esquecidos, tal airmação vai de
encontro com este sono a-perceptivo. O sono
dos machados é um sonho-empoeirado, um
ENSAIO
sonho-mercadoria, um sonho-morto, mesmo
que este metal vá durar mais que nossa própria
carne, que o nosso próprio corpo. Desta forma,
a insônia é um clarão, mas um clarão muito
especíico, pois seria uma forma de não ignorar
o horror do mundo, as injustiças, o sofrimento
alheio. A queda do céu... até mesmo poderia
ser lido como um relato sobre a insônia do seu
autor, sobre estes momentos de desconforto
que aparecem em ocasiões pontuais como o
encontro com os brancos. Este encontro não se
dá na presença somente de outros brasis, mas
também em suas viagens ao exterior. Daí que
estaríamos perto de uma topoanálise9 e de uma
sonoroanálise10, no sentido de apontarmos os
aspectos psicológicos dos lugares e dos sons na
vida de Kopenawa e sua relação com a produção
ou não dos sonhos e sua qualidade.
As três principais viagens relatadas por
Kopenawa são para Inglaterra, Paris e Nova York.
Estas três viagens aconteceram na tentativa
de fazer alianças para gerar uma visibilidade
para o povo yanomami, mas, além disso, por
meio delas, Kopenawa conhece novamente os
brancos. É este reconhecimento que lhe traz a
insônia. Em cada um destes lugares, Kopenawa
salienta uma diversidade de sintomas que
o deixava como fantasma, mas poderíamos
generalizar o estado de Kopenawa e airmar
que se trata de um desconforto diante do horror
da colonização permanente, de um “excesso
do poder predatório por parte dos brancos”
(TIBLE, 2013, p. 48) – Roy Wagner (2014), por
sua vez, chama a retórica dos xamãs guando
vão a uma cidade grande de uma “urban reverse
anthropology”. Esta antropologia reversa feita
por Kopenawa (e pelos demais xamãs) mostra
um desconforto com a realidade urbana. No
caso especíico de Kopenawa, é apresentado um
mal-estar por meio de toda a poluição dura, por
meio da alimentação, dos carros, dos ônibus;
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
165
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
ENSAIO
a cidade que vibra, os museus, o lugar exíguo
dos indígenas n’América. E “na barulheira de
suas cidades, os brancos não sabem mais sonhar
com os espíritos” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.
426), e este sonhar com os espíritos tem um
valor extremo para os xamãs. Os sonhos diferem
com relação ao ambiente onde são produzidos,
e à forma e ao conteúdo, poderíamos dizer
ainda que diferem também do ponto de vista
da qualidade do sonho.
É possível compreender a barulheira das grandes
cidades como a música ou o ruído do nosso desejo
civilizacional, porque este barulho estaria em
contraponto ao silêncio da loresta. O barulho
é o que foi construído depois da devastação das
lorestas. Talvez, por isso, Kopenawa tenha se
assustado tanto ao ver os museus, pois como
pensador agudo que é compreendeu que os
brancos brasileiros querem a mesma coisa,
dividi-los, separá-los, icar com suas terras e
deixá-los em museus para ensinar as crianças
um passado, ou seja, torná-los passado. Tratase novamente da morte do povo yanomami
– e é diante deste horror que a insônia é tão
presente a cada viagem de Kopenawa, pois esta
colonização vai se repetindo, ruidosamente,
a cada passo, e os brancos não veriam como
aquele pensamento colonizador é turvo. Michel
Serres, sobre um som poluidor, escrever que:
Assim como as imagens e as cores vivas dos
outdoors impedem que vejamos a paisagem,
roubam-na, invadem-na, apoderam-se,
recalcam-na, assassinam-na... do mesmo
modo um ruído parasita impede que se fale
e se ouça a pessoa ao lado; ou seja, impede
com isso a comunicação. Coloquem no
meio do hall de um edifício uma televisão
funcionando o tempo todo: ninguém mais
consegue o menor diálogo, cada um olha,
ouve a tela com suas transmissões (que
semelhança urinária!) que se apropriam
de todas as relações (Serres, 2011, pp. 6970).
O som se transigura muitas vezes neste ruído
parasita que torna impossível a comunicação
– poderíamos nos perguntar se o problema
da incomunicabilidade na ilosoia não é um
problema citadino. O ruído é a poluição que
se apropria de determinado território, da
mesma forma que um felino demarca o seu
território por meio da urina. Em contraponto
a este som, o sonho ameríndio aconteceu na
“calma” da loresta, pois lá é possível outras
vozes, é possível outros cantos, há toda uma
sonoridade diferente. É-nos viável até mesmo
pensar o artigo “A domesticação da Amazônia
antes da conquista europeia”11 (e outros que
seguem nesta direção) de Charles R. Clement
como uma domesticação suave do ambiente em
contraponto à domesticação dura do período
da conquista, a primeira como um espaço liso
indígena e a segunda como um espaço estriado
da conquista, pois são duas formas diferentes
de habitar e sentir o mundo. Aqui, privilegiamos
o ritornelo da loresta e deixamos de lado, em
parte, o espaço estriado e os ruídos da cidade.
***
O fundador da psicanálise, Sigmund Freud, na
sua obra A interpretação dos sonhos, em um dos
seus primeiros tópicos escreve sobre a relação
dos sonhos com a vida de vigília. Esta relação
é admirável, pois quando escrevemos sobre
um possível sonho ameríndio não se trata de
um sonho qualquer. A discursão elaborada por
Freud perpassava a questão de compreender
se os sonhos eram aspectos já vivenciados na
vigília ou se poderiam surgir de uma fonte
sobrenatural, por exemplo, o autor então
apresenta a seguinte fórmula de Maury “Nous
rêvons de ce que nous avons vu, dit, désiré ou
fait”. Então, sonharíamos com o que vemos,
desejamos ou fazemos, para Freud é necessário
airmar que “todo material que compõe o
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
166
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
conteúdo de um sonho é derivado, de algum
modo, da experiência, ou seja, foi reproduzido
ou lembrado no sonho – ao menos isso podemos
considerar como um fato indiscutível”12 (FREUD,
1996, p. 49). N’A queda do céu..., este sonho
que é como um resquício do período de vigília
também é posto em foco, contudo, é no sonho
das pessoas comuns, em situações ordinárias,
que se têm outras formas de sonhar e outros
conteúdos no sonho.
Poderíamos escrever sobre um sonho falso
e um sonho verdadeiro, o sonho falso seria o
sonho ordinário, o sonho que temos com as
coisas que aconteceram no nosso dia a dia,
um sonho comum. Outro sonho, por sua vez,
é aquele que Kopenawa começou a ter já na
sua infância, trata-se de pesadelos, trata-se
dos espíritos da loresta querendo fazer a sua
dança de apresentação (novamente o tema da
musicalidade). Estes sonhos vão se aclarando
quando o sogro de Kopenawa fala sobre os
xapiri, os espíritos da loresta que almejavam
entrar em contato com ele. Daí que Kopenawa
começa a sua iniciação xamânica com o efeito
da yãkoana – substância cuja importância reside
no fato de ela ser o alimento dos xapiri. Com
esta substância, o sonho toma outra forma: os
xapiri, que antes estavam longe, icam cada
vez mais perto de Kopenawa, até o momento
de cantar ao lado dele com ele, e este seria
o motivo de os xamãs cantaram a noite, pois
é necessária esta união com os espíritos. Este
canto/conversa é uma determinada forma de
conexão com os espíritos e a cada momento que
esta ligação é intensiicada haveria uma nova
produção de sonhos e de uma epistemologia13.
A respeito destes dois temas, Kopenawa airma
que:
Os xamãs, como eu disse, não dormem
como os demais homens. De dia, bebemos
ENSAIO
o pó de yãkoana e fazem dançar seus
espíritos diante de todos. Á noite, porém,
os xapiri continuam dando-lhes a ouvir seus
cantos no tempo do sonho. Saciados de
yãkoana, não param nunca de se deslocar e
seus pais, em estado de fantasma, viajam
por intermédio deles. É desse modo que
os xamãs conseguem sonhar com as terras
devastadas que cercam a nossa loresta e
com a ebulição das fumaças de epidemia
que surgem delas. Só os xapiri nos tornam
realmente sabidos, porque quando dançam
para nós suas imagens ampliam nosso
pensamento (KOPENAWA; BRUCE, 2015, p.
332-333).
Em outro momento, temos ainda a seguinte
elucubração:
Se não viramos outro com o pó de yãkoana,
só podemos viver na ignorância. Passamos
então o tempo só comendo, rindo,
copulando, falando à toa e dormindo sem
sonhar muito. Sem o poder da yãkoana
as pessoas não se perguntam sobre as
coisas do primeiro tempo. Nunca pensam:
“Quem eram mesmo nossos ancestrais que
viraram animais? Como foi que o céu caiu
antigamente? De que modo Omama criou a
loresta? O que dizem mesmo os cantos e as
palavras dos xapiri?” Ao contrário, quando
bebemos o pó de yãkoana como Omama nos
ensinou a fazer, nossos pensamentos nunca
icam ocos. Podemos crescer, caminhar e se
multiplicar ao longe, em todas as direções.
Para nós, é esse o verdadeiro modo de
conseguir sabedoria (KOPENAWA; BRUCE,
2015, p. 510).
É exatamente os xapiri que lhe dão acesso
a uma multiplicidade intensiva, tornando-o
outro. É necessário, também, de certa forma,
morrer e renascer na iniciação xamânica, para
encontrar os xapiri.
Então, o sonho ameríndio ou ainda um sonho
extramoderno, até este momento, seria não
somente produzido em outro lugar, no meio de
outra sonoridade, mas é também segundo um
estado de consciência distinto. Nesta altura
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
167
ENSAIO
talvez pudéssemos airmar que o sonho ameríndio
produz a sua cosmopolítica, e que enquanto o
sonho ocidental tem o desejo de eliminar o
sonho, o sonho ameríndio não cessa de procurar
um novo estado de consciência para vivenciálo. É este estado não ordinário de consciência
que faz, por exemplo, Kopenawa conhecer, na
prática, a sabedoria dos seus antigos, conhecer
todo um “devir-multiplicidade disparado pela
experiência xamanística” (CESARINO, 2014,
p. 206, grifo meu). Devir que não se comporta
dentro da “pele de papel”, ou seja, na nossa
escrita alfabética que seria “esfumaçada”.
Desta forma, nos passos de Pedro de Niemeyer
Cesarino, é necessário airmar que A queda do
céu..., este grande panleto cosmopolítico,
é menos potente do que o universo do qual
é originado. Todavia, esta potência que nos
sobra via pele de papel já nos possibilita uma
desconstrução (ou ainda, uma interpolação) de
vários aspectos de uma ontologia ocidental. O
sonho ameríndio, por exemplo, nos libertaria
do nosso sonho de espelho d’água, narcisista e
solipsista, para adentrarmos em um comércio
com o outro humano e o não humano, com o
outro natural e o sobrenatural. Trata-se de
viver o sonho “tal como ele é sonhado em
uma sociedade contra o Estado” (DANOWSKI;
VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p.100), e este sonhar
é multiplicador de possibilidades vivenciais.
O SOMBRIO SONhO d’A QUedA do CÉU
O relato da queda do céu é um pesadelo
heurístico. Déborah Danowski e Eduardo
Viveiros de Castro, em seu livro Há mundo por
vir? Ensaios sobre os medos e os ins, introduzem
a perspectiva ameríndia no debate a respeito
do im do mundo e, em uma pequena nota de
rodapé, airmam que em algumas sociedades
indígenas “os sonhos maus” devem ser narrados
de forma pública, para que eles não aconteçam,
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
para que estes sonhos não se atualizem. Deste
modo, falar sobre o sonho teria, minimante
ou de forma desejável, um valor proilático.
É este valor heurístico do pesadelo indígena,
de um grande apocalipse próximo, que torna
crucial a narrativa da queda do céu. Outro
pesadelo que já nos assombrou (e assombra)
da mesma forma, é o de sermos dizimados via
bomba atômica; assim, em consonância com os
ameríndios, o ilósofo Günther Anders, em suas
Teses para a Era Atômica, airmava que suas
palavras foram publicadas exatamente para
que não se tornassem reais.
É pensando nesta consonância entre Anders e
os ameríndios que fazemos um breve desvio,
antes de salientar a narração d’A queda do céu.
Uma breve observação preliminar em relação
ao pensamento político-ilosóico de Günther
Anders é necessária, porque é juntamente com
ele que voltaremos que abordaremos o grande
apocalipse próximo e o papel que nele jogam o
medo e também o sonho ameríndio.
O MEdO SENtIdO in ConCreto
Günther Anders foi um daqueles ilósofos que
reletiram sobre um mundo depois de Auschwitz
e Hiroshima. O livro que citamos aqui é Nós,
os ilhos de Eichmann14 e o texto Teses para
a Era Atômica. A primeira obra contém um
título causador de extrema estranheza, pois
é necessário lembrar que Adolf Karl Eichmann
foi o tenente-coronel da SS, responsável pela
logística de extermínio de milhões de pessoas
na Segunda Guerra Mundial, assim é quase
impensável imaginarmos uma igura paterna
como Eichman. Contudo, Nós, os ilhos de
Eichmann é exatamente uma carta não somente
aos ilhos biológicos de Eichmann, mas também
a nós, os ilhos simbólicos de uma épocaeichmanniana, uma época-fria, ou melhor,
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
168
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
uma época indiferente e maquinizada, em
que encontramos a cada esquina “analfabetos
emocionais”.
Anders, nesta carta, faz uma análise acurada
de algumas das razões pelas quais Auschwitz
aconteceu, e, com este acontecimento, a
relação do monstruoso com as suas vítimas,
os seus carrascos, os trabalhados que faziam
a megamáquina funcionar e ainda toda uma
banalidade do mal, para usarmos uma expressão
famosa da primeira esposa de Anders, a ilósofa
Hannah Arendt. Um dos pontos-chave da análise
de Anders é pensar o divórcio entre nossa
capacidade de fabricação e nossa capacidade de
representação, este ponto também nos remete
a psicologia e o conceito de supraliminariedade.
Outro aspecto é compreender a tecniicação do
ser humano, um totalitarismo máquinal15, ou
ainda, o conceito forte que deve ser aludido:
um tecno-totalitarismo.
O que permitiu o monstruoso na Segunda
Guerra Mundial, para Anders, foi o triunfo da
técnica. A técnica tornou-se grande demais
para nós mesmos, indicando o divórcio entre
nossa capacidade de fabricação técnica (que é
ilimitada) e nossa capacidade de representação
(que é limitada). Os objetos produzidos por nossa
técnica e os seus efeitos seriam de tal forma
grandiosos que já não nos identiicaríamos com
eles, esta identiicação estaria além da nossa
capacidade de representação. Anders chama
esta questão, nas Teses para a Era Atômica, de
um “utopismo invertido”, porque se os utopistas
comuns são incapazes de produzir o fato que
podem imaginar, os utopistas invertidos “são
incapazes de realizar mentalmente as realidades
que nós mesmos produzimos” (ANDERS, 2013,
p. 5). Ora, o que decorre deste raciocínio é
que haveria uma perda, uma minimização da
capacidade de representação em razão da
ENSAIO
técnica e do sistema de trabalho; diminuindo,
de forma análoga, também a nossa capacidade
de representação:
O que acontece, hoje, não é que a
técnica e o esclarecimento [iluminismo]
caminhem juntos, mas obedeçam à “lei
da proporcionalidade inversa”, isto é,
quanto mais acelerado é o ritmo do
progresso, quanto maior são os efeitos
da nossa produção e mais complexa for a
estrutura dos nossos aparatos, tanto mais
rapidamente se perde a força de manter
em ritmo comparável a nossa percepção e
a nossa imaginação, e tanto mais depressa
eclipsam as nossas luzes e tanto mais
cegos nos tornamos. E é bem de nós que
se trata. Porque o que fracassa não é
simplesmente isto ou aquilo, não é apenas
a nossa percepção e a nossa representação,
mas somos nós que falhamos nos próprios
fundamentos da nossa existência, sob todos
os pontos de vista (ANDERS, 2001, p. 17).
Seguindo o argumento de Anders, quanto
maior o nível técnico, menor seria a nossa
capacidade de compreensão, menor seria o
nosso esclarecimento. Agora, valeria pensar
como esta técnica, como estes aparatos se
coniguram como uma máquina expansionista,
transformando-se em megamáquina ou máquina
total.
Para o entendimento do que Anders chama
de máquina é preciso apreendê-la como
uma máquina-expansionista, uma máquinaimperialista. Assim, cada máquina teria o seu
império colonial, seus administradores, seus
serviços, seus advogados, seus consumidores
etc. Este pequeno império colonial funciona,
também ele, como máquina, ou seja, é
uma co-máquina. A máquina-originária, por
sua vez, torna-se megamáquina e trabalha
segundo o mesmo princípio de otimização, “a
auto-expansão não conhece limites, a sede
de acumulação das máquinas é insaciável”
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
169
ENSAIO
(ANDERS, 2001, p. 20, grifo do autor). Com o
processo de comaquinização, as máquinas não
somente lutam umas com as outras, mas lutam,
também, contra o próprio mundo e por uma
maquinização total do mundo. Não poderia
haver espaço não comaquinizado. Anders
lembra que no interior desta maquinização o
homem seria como um funcionário da máquina
ou um consumidor, no fundo, se trata de ter
somente as máquinas ou nem elas, assim,
haveria uma última composição que Anders
denomina de máquina-mundial – acoplamento
maquinal último.
Esta máquina-mundial remete a um ponto bem
especíico: a existência, de forma coordenada,
de um parque gigantesco de máquinas. Quando
esta coordenação entra no jogo, surge uma
reciprocidade das máquinas e se torna peça
de uma máquina-total, onde cada elemento
se fusiona. E é precisamente quando o mundo
se converte em máquina que se tem o estado
tecno-totalitário com seu impulso expansionista,
imperialista. Na Alemanha nazista vimos, em
menor escala, o funcionamento da máquinanazista com os seus funcionários, escribas,
advogados, políticos e com toda a sua técnica
na produção de campos de concentração, toda
a maquinaria que fazia funcionar o monstruoso.
E apesar do “nacionalismo nazista”, sempre
houve a tentativa da máquina de se expandir,
aumentar a performance, maximizar16. De
qualquer forma, esta máquina sobra a qual
escrevia Anders seria o mundo de ontem, o
mundo de amanhã é composto, por exemplo,
pela tecnologia nuclear, e mais especiicamente
pelo armamento nuclear, ou, poderíamos dizer,
pela máquina-nuclear, no sentido de Anders.
É em virtude desta máquina-nuclear que nós
também seríamos ilhos de Eichman, ilhos de
uma época-eichmanniana. Contudo, o apocalipse
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
não seria metafórico, mas uma possibilidade.
Como utopistas invertidos, vivemos algo
demasiadamente grande: o mundo como um
imenso campo de concentração a céu aberto,
com a derradeira possibilidade de que não
sobre nem vítimas nem carrascos. Mas há outro
elemento demasiado grande (e catastróico)
que ainda é pouco percebido, do qual não
conseguimos produzir uma representação, tratase das alterações climáticas, ou ainda, de forma
mais acurada, do ser humano como uma nova
força da natureza, como um agente geológico,
o que recebe o nome (ainda controverso) de
Antropoceno17 (AVELAR, 2013; CHAKRABARTY,
2013; WHITEHEAD, 2014; HARAWAY, 2014a).
Para alguns autores, este aspecto do
Antropoceno, bem como o negacionismo que
o envolve, corresponde ao que poderia ser
uma banalidade do mal ambiental (ARENDT,
2006; TADDEI, 2014; HARAWAY, 2014a, 2014b),
se seguirmos os passos de um possível
desdobramento da ilosoia de Arendt. Todavia,
para nos livrarmos de um mal radical, de
um pecado original ou ainda de uma culpa
ontológica, talvez devêssemos pensar (em uma
leitura sem transcendência) a não compreensão
da catástrofe climática como um estado
supraliminar dos fatos, juntamente com uma
comaquinização do ambiental. Daí que podemos
chamar Anders de catastróico, apocalíptico,
ou ainda como Michel Onfray o nomeia, quem
sabe fazendo uma psicologia do nosso tempo,
de “semeur de panique”. Um pânico e um
medo que, de fato, devesse ser sentido in
concreto. Este sentir in concreto poderia fazer
com que seja produzido “um medo mensurável
à magnitude do real perigo” (ANDERS, 2013,
p. 6). Uma das críticas que Kopenawa faz aos
brancos é que eles “não ouvem. Sem ver as
coisas com a yãkoana, a engenhosidade deles
com as máquinas não vai torná-los capazes
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
170
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
de segurar o céu e consolidar a loresta. Mas
eles não têm medo de desaparecer, porque
são muitos” (KOPENAWA, 2015, p. 494, grifo
nosso), ou seja, eles não têm medo do im do
tempo, mesmo vivendo n’O tempo do im (na
Era atômica e no Antropoceno). Mas no caso da
cosmopolítica ameríndia, na profecia indígena,
Kopenawa airma que os brancos deveriam ter
medo da queda do céu, já que o céu não cairá
somente sobre os xamãs, somente sobre os
índios, devemos compreender que a catástrofe
vindoura é soturnamente democrática, ela
é compartilhada (CHAKRABARTY, 2013), pois
abarcará todos, mesmo que chegue nos lugares
empobrecidos primeiro.
O RELAtO d’A QUedA do CÉU...
...é um pesadelo sombrio tão real quanto a
possibilidade de outras formas de destruição
em massa. Danowski e Viveiros de Castro nos
dão alguns contornos importantes a respeito
deste relato, que seria:
[...] um tema recorrente em diversas
escatologias ameríndias. Via de regra,
esses desmoronamentos, que podem estar
associados a cosmograias folheadas, com
vários “céus” e “terras” empilhados uns
sobre os outros, são fenômenos periódicos,
parte de grandes ciclos de destruição e
recriação da humanidade e do mundo. É
comum que tais rearranjos estratigráicos
sejam atribuídos ao envelhecimento do
cosmos e ao peso crescente dos mortos
(seja de seus corpos dentro da terra,
seja de suas almas sobre a camada
celeste). Isso pode produzir (é o caso da
cosmologia yanomami) a queda em cascata
das camadas celestes, que vêm ocupar o
lugar das antigas camadas terrestres,
tornadas patamares subterrâneos, com
seus habitantes (nós, os viventes de hoje)
transformados em monstros canibais do
inframundo, enquanto as almas celestes
dos mortos se tornam a humanidade
ENSAIO
da nova camada terrestre (DANOWSKI;
VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 101).
Salientar estes aspectos nos ajuda numa
aproximação da queda do céu com os contornos
que que lhe dá Kopenawa. O capítulo no qual
é apresentado esta narração intitula-se “A
morte dos xamãs” – título preciso, pois a todo
momento a queda do céu envolve a vida e a
morte deles.
Mas a morte dos xamãs não é como a das pessoas
comuns, que iriam para as costas do céu e sua
morte somente poderia ser vingada por algum
guerreiro. A morte dos xamãs envolve outro tipo
de vingança, os xapiri vingam a morte de seus
pais. Os grandes xamãs possuem uma enorme
casa de espíritos com seus xapiri; quando um
xamã morre, muito deles não deixam de lado
o corpo dele. Porque o espírito icar perto do
corpo, há toda uma forma especial de ritual
funéreo para que estes espíritos não causem
dano a quem estiver próximo. O grande
problema que encontramos é que os xamãs
têm a função de criar uma espécie de cosmo
na loresta e, com sua morte cada vez mais
contínua, este cosmo volta a ser um caos, e
os xapiri se tornam cada vez mais vingativos.
Se todos os xamãs e índios morrerem, os
brancos não icariam sozinhos na terra, com
eles haveria uma quantidade enorme de seres
maléicos que iriam “devorá-los, com tanta
voracidade quanto suas fumaças de epidemia
devoraram os nossos. Vão incendiar as suas
terras, derrubar suas casas com vendavais
ou afogá-los em enxurradas de água e lama”
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 492).
A loresta sem os xamãs iria virar outra, ela
não mais icaria em pé, o céu seria coberto
por nuvens escuras e não haveria mais o dia,
não haveria mais silêncio na mata, a voz dos
trovões ressoaria a todo o momento, o solo
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
171
ENSAIO
rasgaria, as árvores e os edifícios cairiam,
a mata icaria escura e fria. O céu rangeria,
gemeria, e os espíritos cortariam seus pedaços
a machadadas, até que desabasse totalmente.
A terra onde os humanos vivem seria empurrada
para o subterrâneo, e eles virariam vorazes
ancestrais aõpatari (canibais). Os xapiri
também atirariam na terra o sol, a lua e todas
as estrelas, por im, o céu icaria escuro para
sempre. É este pesadelo que Kopenawa parece
querer evitar e, então, airma que “gostaria
que os brancos escutassem nossas palavras e
pudessem sonhar eles mesmos com tudo isso”
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 491). Kopenawa,
desta forma, também é este semeador do
pânico, no momento em que quer os brancos
sonhando as coisas que os índios sonham – que
temam a queda do céu! Trata-se, novamente,
de sentir in concreto o tempo do im, pois assim,
quiçá, seja possível compreender o perigo. Ter
o medo próximo, mas ao modo de Anders: um
medo destemido, um medo estimulante, um
medo amoroso. Sonhar, mas sonhar da forma
ameríndia, sentir a possibilidade da queda
do céu, sentir este pesadelo que deveria ser
minimamente pedagógico.
REFERÊNCIAS
ALBERT, B. O ouro canibal e a queda do céu.
Uma crítica xamânica da economia política da
natureza. In: ALBERT, B.; RAMOS, A. R. (orgs.).
Paciicando o branco: cosmologias do contato
no norte-amazônico. São Paulo: Ed. da Unesp.
p. 239-274, 2002. Disponível em: <http://sis.
funasa.gov.br/portal/publicacoes/pub405.
pdf>. Acesso em: 10 mar. 2016.
______. A fumaça do metal: história
e representações do contato entre os
Yanomami. Anuário antropológico, 89, p. 151189, 1992. Disponível em: <http://horizon.
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
documentation.ird.fr/exl-doc/pleins_textes/
pleins_textes_6/b_fdi_33-34/37325.pdf>.
Acesso em: 10 mar. 2016.
ANDERS, G. Nosotros, los hijos de Eichmann.
Trad. Vicente Gómes Ibánez. Barcelona:
Paidós, 2001.
______. Teses para a era atômica. Trad.
Alexandre Nodari e Déborah Danowski. Sopro,
n. 87, 2013.
ARENDT, H. Eichmann in Jerusalem: a report
on the banality of evil. New York: Penguin
Classics, 2006.
______. Origens do totalitarismo. Trad.
Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das
letras, 2012.
AVELAR, I. Amerindian perspectivism and nonhuman rights. Alter/nativas. 2013. Disponível
em: <http://alternativas.osu.edu>.
BACHELARD, G. A poética do espaço. Rio de
Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, s/d.
CESARINO, P. N. Conlitos ontológicos e
especulações xamanísticas em La chute du
ciel, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Sala
Preta, v. 15, n. 1, p. 205-212, 2014. Disponível
em: <http://www.revistas.usp.br/salapreta/
article/view/88156/91851>. Acesso em: 10
mar. 2016.
CHAKRABARTY, D. O clima da história: quatro
teses. Tradução organizada por Idelber Avelar.
Sopro, n. 91, 2013.
CLAÚDIA ADUNJAR. Disponível em: <http://
espacohumus.com/claudia-andujar/>. Acesso
em: 10 mar. 2016.
CLEMENT, R. C. et al. The domestication of
Amazonia before European conquest. Proc.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
172
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
ENSAIO
R. Soc. B Biol. Sci. 2015. Disponível em:
<http://rspb.royalsocietypublishing.org/
content/282/1812/20150813>. Acesso em: 10
mar. 2016.
______. Is the Chthulucene an exit from the
Anthropocene? Apresentação no Colóquio
internacional Mil nomes de Gaia. Rio de
Janeiro, 2014b.
CRARY, J. 24/7: capitalismo tardio e os ins
do sono. Trad. Joaquim Toledo Jr. São Paulo:
Cosac Naif, 2014.
______. Manifesto ciborgue: ciência,
tecnologia e feminismo-socialista no inal
do século XX. In: SILVA, T. T. da (org.).
Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
CUNHA, M. C. da. Cultura com aspas. São
Paulo: Cosac Naify, 2014.
DANNER, L. F. et al. (orgs.). Governo, cultura
e desenvolvimento: relexões desde a
Amazônia. Porto Alegre: Fi, 2015.
KOPENAWA, D.; BRUCE, A. A queda do céu:
palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz
Perrone-Moisés: São Paulo: Companhia das
letras, 2015.
DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. há
mundo por vir? Ensaio sobre os medos e
os ins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e
Barbárie, Instituto Socioambiental, 2014.
LAZZARATO, M. La fábrica del hombre
endeudado: ensayo sobre la condición
neoliberal. Trad. Horacio Pons. Buenos Aires:
Ammorrotu, 2013.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O AntiÉdipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 2010.
LEOPOLDO, R. deleuze & Guattari: crítica
a psicanálise freudiana. (Dissertação de
mestrado) - Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal de Juiz de
Fora, Juiz de Fora. 2015a.
GLOWCZEWSKI, B. devires totêmicos:
cosmopolítica do sonho. São Paulo: n-1
edições, 2015.
GOLDSTEIN, I. S. Autoria, autenticidade e
apropriação: relexões a partir da pintura
aborígine australiana. RBCS, v. 27, n. 27, jun.
2012.
GOMES, J. C. L. Marcuse: tecnologia e
liberdade no mundo administrado. Síntese,
Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002.
HARAWAY, D. Anthropocene, Capitalocene,
Chthulucene: Staying with the Trouble.
Conferência apresentada no evento Arts of
Living on a Damaged Planet. Disponível em:
<https://vimeo.com/97663518; 2014a>.
Acesso em: 10 mar. 2016.
______. Filosoia como sistema a-centrado:
considerações de Gilles Deleuze e Félix
Guattari sobre O homem dos lobos. Ayv,
Revista de psicologia, v. 1. n. 3, 2015b.
______. Vigilância líquida: variações sobre o
panoptismo. Sapere Aude, Belo Horizonte, v.
6. n. 12, p. 894-902, jul./dez. 2015c.
LIESSMANN, K. P. Thought after Auschwitz
and Hiroshima: Günther Anders and Hannah
Arendt. Enrahonar: quaderns de ilosoia [en
línia], n. 46, p. 123-135, 2011. Disponível em:
<http://www.raco.cat/index.php/Enrahonar/
article/view/243498>. Acesso em: 10 mar.
2016.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
173
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
ENSAIO
NATIONAL MUSEUM AUSTRALIA. Disponível em:
<http://www.nma.gov.au/exhibitions/utopia_
the_genius_of_emily_kame_kngwarreye/
behind_the_scenes>. Acesso em: 10 mar. 2016.
MAGNANI, J. G. C. Xamãs na cidade. Revista
USP, São Paulo, n. 67, p. 218-227, set./nov.
2005.
SERRES, M. O mal limpo. Poluir para se
apropriar? Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2011.
TADDEI, R. Alter geoengenharia.
Apresentação no Colóquio internacional Mil
nomes de Gaia. Rio de Janeiro, 2014.
TIBLE, J. Cosmologias contra o capitalismo:
Karl Marx e Davi Kopenawa. R@U, v. 5, n. 2,
p. 46-55, 2013. Disponível em: <http://www.
rau.ufscar.br/wp-content/uploads/2015/05/
vol5no2_04.JeanTible.pdf>.
VIVEIROS DE CASTRO, E. A loresta de
cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos
amazônicos. Cadernos de Campo, n. 14/15,
p. 319-338, 2006. Disponível em: <http://
www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/
article/viewFile/50120/55708>.
______. A inconstância da alma selvagem – e
outros ensaios de antropologia. São Paulo:
Cosac Naify, 2011.
______. Metafísicas canibais: elementos para
uma antropologia pós-estrutural. São Paulo:
n-1 edições, 2015.
WIKART. Disponível em: <http://www.wikiart.
org/en/joseph-wright/arkwright-s-cottonmills-by-night>. Cesso em: 10 mar. 2016.
WHITEHEAD, M. Environmental
transformation: a geography of the
anthropocene. New York: Routledge, 2014.
ZEA, E. S. A inquietude do tradutor:
notas sobre uma lógica das partes em La
chute du ciel. Cadernos de tradução,
v. 2, n. 30, p. 171-183, 2012. Disponível
em: <https://periodicos.ufsc.br/index.
php/traducao/article/view/21757968.2012v2n30p171/23503>. Acesso em: 10
mar. 2016.
Recebido em: 1/03/2016
Aceito em: 10/03/2016
* Fragmento deste texto foi apresentado primeiramente
no 19º Seminário de Engenharia de Energia da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PU-Minas).
2
Referência ao livro Metafísicas canibais: elementos para
uma antropologia pós-estrutural, de Eduardo Viveiros
de Castro. Trata-se de um tópico do segundo capítulo
chamado “Capitalismo e esquizofrenia de um ponto de
vista antropológico”, no qual encontramos uma exposição
sobre como a ilosoia de Deleuze e Guattari faz rizoma
com o pensamento antropológico. O capítulo quarto, “O
cogito canibal”, também é rico na relação entre a ilosoia
e o pensamento ameríndio, ou ainda, entre a ilosoia e
a ilosoia ameríndia, já que é necessário colocar estes
dois tipos de pensamento em equivalência, a im de não
neutralizar o pensar ameríndio, ou seja, levá-lo a sério.
“Não são coisas que vêm só do meu pensamento”
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 391).
3
WAGNER, R. The rising ground. hAU, v. 4, n.
2, p. 297-300, 2014. Disponível em: <http://
www.haujournal.org/index.php/hau/article/
view/hau4.2.018/1094>. Acesso em: 210 mar.
2016.
Vários são os casos desta “reeducação”, mas tomo aqui
outro exemplo que penso ser tão interessante quanto a
reeducação de Bruce Albert, claro que guardando as devidas
proporções. Trata-se da reeducação do antropólogo Carlos
Castañeda (o tornar-se guerreiro do antropólogo), em
virtude de seus encontros com Don Juan. Castañeda aceita
4
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
174
O SOMBRIO SONHO D’A QUEDA DO CÉU
as relações, a variação do corpo, sair da mesmiicação de
um saber ixo e de uma identidade ixa.
O saber do xamã não surge de uma ciência objetivante
e experimental das ciências duras ocidentais, mas de uma
epistemologia outra, de outra experiência. Lembremos,
ademais, que “muitas vezes [...] os xamãs, viajantes no
tempo e no espaço, são tradutores e profetas” (CUNHA,
2014, p. 107, grifo nosso). É esta vivência que encontramos,
por exemplo, quando Kopenawa descreve sua relação com
os espíritos da loresta. Não se tem mais um corpo extensivo
e molar, mas sim um devir-xapiri, um corpo intensivo e
molecular.
5
Quando evocamos Bachelard, é necessário salientar que
perpassamos a temática da psicanálise e damos abertura
para pensarmos a escuridão e o porão como o inconsciente,
em contraponto à luz, a claridade apolínea, a eletricidade
capitalista em um contexto 24/7, que tentaria com a força
de um supereu (sempre severo) instalar, neste porão, um
sistema de iluminação constante.
6
A criação de um soldado sem sono também deveria nos
remeter à ideia de Ciborgue, mas não com um caráter
revolucionário, como aponta a ilósofa Donna Haraway
(2000) no seu Manifesto ciborgue, e sim compreendendo-o
visceralmente como uma mescla do capitalismo e do
militarismo. E é necessário airmar que o ciborgue sem sono
não seria o ilho ilegítimo do capitalismo e do militarismo,
mas o ilho predileto que, ironicamente, foi construído para
ir à guerra defender o Estado Nação.
7
Também conhecido por ISIS (Islamic State of Iraq and ashSham).
8
Bachelard escreve que a topoanálise seria o estudo
psicológico sistemático dos lugares físicos de nossa vida
íntima, mas tomo este conceito livremente para pensar o
papel do espaço na experiência do sujeito. No nosso caso, a
dualidade cidade versus loresta como dois espaços distintos
de produção do sonho.
9
Seria possível pensarmos o conceito de sonoroanálise
como análogo a topoanálise, e tal análise seria importante,
pois a psicanálise já começa com um tipo especial de escuta
que é a escuta analítica. Em relação ao xamanismo e A
queda do céu..., vemos o yãkoana quase como produtor de
outra musicalidade, já que “é o pó de yãkoana, tirado da
seiva das árvores yãkoana hi, que faz com que as palavras
dos espíritos se revelem e se propaguem ao longe. A gente
comum é surda a elas mas, quando nos tornamos xamãs,
podemos ouvi-las com clareza” (KOPENAWA; ALBERT, 2015,
p. 136).
10
O nome do artigo de Clement já é esclarecedor, tratase exatamente da domesticação da Amazônia antes da
conquista europeia. Dele é interessante não somente
reairmar que “a tecnologia indígena não é somente uma
11
ENSAIO
adaptação às condições de mudança da loresta, mas
uma ação intencional para administrar estas mudanças”
(CLEMENT, 2015, p. 7, grifo nosso), mas também apontar
que esta tecnologia indígena de administração da loresta é
um ensinamento ecológico de uma relação não predatória
do ambiente, até mesmo porque as lorestas antropogênicas
apresentam maior biodiversidade do que as não perturbadas
(VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 326).
Mesmo Freud
indiscutível”, o
perpassa longas
sonhos somente
outras fontes.
12
colocando que esta questão é um “fato
autor, no início de sua argumentação,
páginas, exatamente discutindo como os
poderiam surgir da experiência e não de
Da mesma maneira que lentamente os brancos vão
aprendendo o seu alfabeto e assim lendo o mundo por
meio dos livros, os xamãs fariam o mesmo com o pó de
yãkoana. Um pó que alargaria o seu mundo, produziria mais
conhecimento, porém, é uma forma de obter conhecimento
distinta (via um estado não ordinário de consciência).
13
14
O livro Nós, os ilhos de Eichmann é constituído de duas
cartas para Klaus Eichmann, ilho de Adolf Eichamann. A
primeira carta data de quando Klaus Eichmann tinha 28 anos
e a segunda data de quando ele tinha 52 anos. A primeira
carta é de 1964 e a segunda de 1988. Interessante notar
que a obra de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém,
foi pulicada em 1963, todavia Anders não recorre a noções
como “banalidade” ou um “mal radical”.
Creio que seja possível pensar este termo sob dois aspectos:
1) um totalitarismo técnico, ou seja, aquele que tem relação
com o princípio da máquina que é o seu máximo rendimento
a todo custo; 2) um totalitarismo habitual, aquele no qual o
indivíduo é comáquina, faz composição com a máquina, ou
seja, salientar o duplo sentido da palavra maquinal.
15
“os nazistas não eram meros nacionalistas. Sua propaganda
nacionalista era dirigida aos simpatizantes e não aos
membros convictos do partido. Ao contrário, este jamais
se permitiu perder de vista o alvo político supranacional”
(ARENDT, 2012, p. 25-26).
16
O conceito de Antropoceno é usado de forma cada vez
mais comum para caracterizar uma nova era geológica. O
termo é um neologismo constituído com o preixo anthropo
(humanidade) e o suixo cene (novo). O termo foi cunhado
pelo químico Paul Crutzen e o ecologista Eugene Stoermer
e apesar do termo sofrer grandes contestações ele parece
não perder a sua força como um conceito operacional.
Paul Crutzen salienta o início do Antropoceno com uma
data precisa, ele teria começado em 1784 e o começo
da revolução industrial, porém (e mais próximo do nosso
ensaio) alguns autores colocam o Antropoceno juntamente
com o surgimento da tecnologia-nuclear e os seus traços
radioativos deixados na Terra (WHITEHEAD, 2014, p.5).
17
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
175
SEÇÃO
TÍTULO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
176
TÍTULO
SEÇÃO
Jornalismo
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
177
SEÇÃO
TÍTULO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
178
TÍTULO
SEÇÃO
COLUNA
ASSINAdA
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
179
COLUNA ASSINAdA
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
180
COLUNA ASSINAdA
Dados sobre a
invisibilidade
academicista
ou quando Dona
Bélgica vai à
COP21
20/04/2016 | Por: Luana Adriano Araújo,
mestranda em Direito Constitucional na
Universidade Federal do Ceará (UFC), atua
no Instituto Verdeluz; e Levi Mota Muniz,
graduando em Licenciatura em Teatro na
Universidade Federal do Ceará (UFC), atua no
Coletivo Pipa Azul e no Instituto Verdeluz| Com
a colaboração de: Mariana Guedes de Oliveira,
graduanda em Direito na Universidade de
Fortaleza (Unifor), atua no Instituto Verdeluz;
e Beatriz Azevedo de Araújo, graduanda em
Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC),
atua no Instituto Verdeluz.
1,8 a 4ºC, podendo chegar a 6. De 1 a 6
espécies, dizem. Risco de extinção Global: 2,8%
para 5,2%. 18 a 59 cms de mar até 2100. 95%
de certeza de ação humana. 400 ppm5 de CO².
600 mil casos novos por ano. 78,6 milhões de
toneladas em 2014. U$ 157 bilhões de dólares
e/ou 2,4 milhões de vidas por ano. Números:
aprendemos a contá-los, mas não decifrá-los.
Se a temperatura do mar aumenta 1.04 ºC ou se
a cotação Dow Jones fecha em – 1,04% em Nova
York, que diferença isso faz na salubridade
da água dos moradores da Comunidade da
Boca da Barra, Fortaleza, Ceará? Que tipo de
compreensão estes indivíduos têm acerca dos
dados levantados por sumidades globais da
temática das Mudanças Climáticas?
A disseminação de um conhecimento que nasce
de grandes centros acadêmicos é muitas vezes
lenta e de difícil acesso social. Isto se dá em
virtude de fatores diversos e nem sempre
claros, seja por vaidade na socialização do
conhecimento por aqueles que o produzem
ou pela ineicácia no uso da linguagem como
instrumento de uma comunicação não sectária.
Em face do costume entranhado na comunidade
acadêmica conservadora, pautada por padrões
dogmáticos e pela exigência de uma escrita dita - “culta”, o retorno social do conhecimento
produzido é atenuado, quiçá minado.
Enquanto substrato da estruturação de políticas
públicas socioambientais, os dados técnicocientíicos,
semanticamente
inacessíveis,
acabam por justiicar a implantação de
mecanismos pouco incisivos. Transmutados
em moeda de troca legitimadora, os citados
arquivos quantiicadores não se convertem
em qualidade resolutiva. Ineicazes, mofam
intelectual e politicamente.
Pensando, de maneira simplória, na ativação
dos dispositivos utilizados para a resolução das
problemáticas socioambientais, é possível dividir
o processo em algumas etapas. Inicialmente,
a percepção fotográica da situação enfocada
conduz à coleta de indicadores transliterados
por um grupo especíico – nata acadêmica –
para a ixação de dados. Nata esta que detém
o conhecimento necessário para “desnatar”/
traduzir os dados, porém monopolizam a
compreensão – e as consequentes traduções – do
saber. Arrogância nem sempre se aigura como
a motivação deste panorama. Em verdade,
há uma quebra na luidez da socialização do
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
181
COLUNA ASSINAdA
conhecimento, que permanece acastelado por
não desembocar em traduções viáveis para o
mundo cotidiano.
Pensar a linguagem como uma potente
ferramenta de igualdade – considerando que
esta é fomentada pela diversidade - escapa
à compreensão de quem institui o modo
correto de falar, a maneira polida de estar,
ser e fazer. O problema não quer saber como
você o chama. Mudanças Climáticas não é um
compêndio de dados acessíveis unicamente a
uma, aparentemente apartada do mundo real,
camada econômica, política e academicamente
apta. Mudanças Climáticas é sobre pessoas,
igualmente vitimadas pela impossibilidade de
conexão comunicacional.
Dona Bélgica, para muito além da além-mar
desafetação francesa, é afetada pelo que,
para ela, não representa mais do que algumas
palavras televisionadas antes da novela. Bélgica,
pessoa, moradora do Serviluz – comunidade
costeira socioambientalmente vulnerável –,
mãe de Letícia, desconhece que, enquanto a
novela não começa, a temperatura média do
planeta aumentou em 1º C, comparativamente
aos níveis pré-Revolução Industrial, mas ela
sabe a seu modo.
O Saber de Bélgica, mais do que referenciado
bibliograicamente, compõe-se, em verdade,
por saberes. Por ser quem é, por morar onde
mora, por estabelecer relações únicas com o
meio em que vive, a consciência desta sobre
o que circunda é peculiar. Sua intelecção não
é melhor ou pior, apenas é. Qualitativamente,
contudo, seu saber é diferente; Bélgica, em
verdade, não possui o saber-poder de quem
segura o cetro, de quem subiu tão alto que mal
avista o olhar cansado de Bélgica no meio do
dia – o cada vez mais quente meio do dia.
DADOS SOBRE A INVISIBILIDADE ACADEMICISTA OU ...
Segue,
contudo,
Bélgica.
Referenciada
numericamente em gráicos acadêmicos de
segregação socioespacial – inacessíveis, quem
diria, a ela. Bélgica sai todo dia para comprar
o pão e a margarina. Erra, como qualquer um,
esquecendo a chaleira no fogo, mas não olvida
sua autoridade de mãe, ralhando com Letícia
por não se encarregar de desligar o fogão.
Bélgica também perde o olhar no horizonte,
toma café com pão monoparentalmente, ao
lado de sua companheira e ilha, e se preocupa
com as contas do inal do mês.
Bélgica, a despeito da dita segregação, não
padece de carência de ação. E ri. E chora.
É mais que um número em uma pesquisa
socioambiental. Ela pesquisa a vida, a seu modo
e com seus parâmetros, com seu método de
errâncias sinuosas por entre as vielas do Serviluz.
Aglomera-se nos batentes de casas com suas
vizinhas, papeando entre um tirar de piolhos
da cabeça da ilha e mais um esquecimento de
café na chaleira - e novas ralhadas com Letícia.
Ela existe e é desacreditada, tanto quanto o agir
antropológico sobre o clima. Bélgica consome
O², assim como o CEO da Shell, os dois de lados
diferentes da televisão. E se pergunta quem
são aquelas pessoas tão felizes na propaganda
daquela concha, tão parecida com os búzios
que sua ilha insiste em trazer para casa. Não
entende o que vendem, nem de onde sai este
produto, tampouco os efeitos advindos do seu
uso e exploração. Mas, de alguma maneira, há
uma certa empatia com aqueles sorrisos, com
aquela felicidade e com toda aquela – aparente
– vontade de viver.
Enquanto a novela não começa, Bélgica
segue. Ela mal sabe que nos bastidores do
desenrolar da novela, uma teia internacional é
tramada com ios políticos-representativos nas
deliberações da COP21 – Conferência das Partes
das Nações Unidas –, em Paris. Ignora que será
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
182
DADOS SOBRE A INVISIBILIDADE ACADEMICISTA OU ...
COLUNA ASSINAdA
representada e que ela, como cidadã de uma
“nação acordante”, terá sua voz bradada por
alguém que nunca a ouviu ou viu. Para além da
traição dos protagonistas da novela das oito,
Bélgica é traída quando invisibilizada, deixada
no escuro por quem deveria holofotizar não
apenas sua vulnerabilidade socioambiental, mas
o que nela é também a força de sua existência.
A já oscilante luz do Serviluz é enegrecida pela
água que escorre da boca do bueiro – cada vez
mais, com o agravamento da variabilidade do
ciclo da água.
Isto parece reletir a mais clara realidade: com
a entrada na pauta internacional da temática
das Mudanças Climáticas, quem tinha voz,
ganhou mais voz; quem não tinha, restou
completamente emudecido por um sistema
falaciosamente progressista e comunitário.
Entre megafones e panos quentes abafadores,
o clímax roteirizado desse teatro global
institucionalmente respaldado, gira em torno
de um número seco: 1,5º C. Número este que, se
traído pelas expectativas da política mundial,
aliada a um modelo de consumo progressivo
e colonizador, tragará, até 2100, a casa da
mesma Bélgica que – mal sabe ela – assistirá
ao último capítulo dessa novela como igurante
desavisada, expectadora da própria vida,
literalmente boiando em quadros, estatísticas
e categorias.
Bélgica, com tudo isso, sabe muito mais de si
que qualquer número. Bélgica não joga dados
com a própria existência, assepticamente
quantiicada por alheios. Valoriza sua vida,
sua casa, sua ilha. Bélgica é para as mudanças
climáticas na mesma proporção que qualquer
outro. E segue.
Mas, no calor das emoções apáticas do efeito
estufa, o que Dona Bélgica tem a ver com Ban
Kin Moon?
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
183
SEÇÃO
TÍTULO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
184
TÍTULO
SEÇÃO
REPORtAGENS
E NOtíCIAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
185
REPORtAGENS E NOtíCIAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
186
REPORtAGENS E NOtíCIAS
Vulnerabilidade e
biodiversidade: desaios à
vida na Caatinga e Amazônia
04/04/2016 | Por: Janaína Quitério | Amazônia e Caatinga estão entre os biomas brasileiros mais
sensíveis às mudanças climáticas. Os desaios para mitigar seus efeitos, sobretudo em relação à
biodiversidade, recaem com mais peso sobre a Caatinga, bioma ainda negligenciado em matéria
de estudos no país.
Estudo conduzido por um grupo de pesquisadores
da Noruega e do Reino Unido – e publicado
em março na Nature – ajuda a mapear a
vulnerabilidade de diferentes ecossistemas no
mundo à variabilidade climática. Dos biomas
estudados, dois deles são brasileiros – Amazônia
e Caatinga – e integram a lista dos ecossistemas
mais sensíveis à variação do clima.
Por meio de uma série de dados de satélites
mensurando a cobertura vegetal e três variáveis
climáticas que impulsionam a produtividade da
vegetação entre fevereiro de 2000 e dezembro
de 2013, os pesquisadores desenvolveram um
novo modo de medir a vulnerabilidade com a
criação do índice de sensibilidade da vegetação
(the vegetation sensitivity index).
Nesta entrevista, a Dra. Mariana Vale, professora
do Departamento de Ecologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora
da sub-rede Biodiversidade da Rede Brasileira
de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais
(Rede CLIMA), analisa os avanços trazidos pelo
estudo, bem como os principais desaios à
biodiversidade desencadeados pelas mudanças
climáticas no país.
Imagem produzida durante o evento “Encontros com
potências frágeis“, organizado pelo grupo multiTÃO,
realizado em dezembro de 2015, em Campinas.
ClimaCom – A Caatinga e a Amazônia iguram
entre os ecossistemas mais sensíveis à
variabilidade do clima, segundo estudo
intitulado “Mapa da vulnerabilidade dos
ecossistemas à variabilidade climática”.
O que ele traz de novo às pesquisas sobre
biodiversidade no Brasil?
Mariana
Vale
–
Nos
estudos
sobre
vulnerabilidade, seja a vulnerabilidade de
espécies, de ecossistemas ou de populações
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
187
REPORtAGENS E NOtíCIAS
humanas, um dos aspectos abordados é a
exposição, ou seja, quanto um sistema – humano
ou natural – estará exposto às mudanças
climáticas. Uma das questões importantes
neste estudo, em particular, é que ele se soma
às informações que já tínhamos há algum
tempo: a de que Amazônia e Caatinga são os
biomas brasileiros mais expostos às mudanças
climáticas. Outro aspecto dos estudos de
vulnerabilidade é a sensibilidade às mudanças
climáticas, informação que foi adicionada
neste artigo recente da Nature. Isso quer dizer
que a Amazônia e a Caatinga, além da grande
exposição, são também bastante sensíveis
às mudanças climáticas. Trata-se de dados
independentes que corroboram as previsões
preocupantes para esses dois biomas.
ClimaCom – É possível avaliar se os impactos
na biodiversidade são os mesmos tanto para a
Amazônia quanto para a Caatinga?
Mariana Vale – O bioma Amazônia é
extremamente biodiverso em todos os
grupos taxonômicos: vertebrados terrestres,
invertebrados, plantas, com uma diversidade
também aquática impressionante, além do
endemismo muito alto. É também uma área bem
estudada. De todos os biomas brasileiros, tratase, sem dúvida, do bioma mais bem estudado
em termos de mudanças climáticas, até mesmo
porque a Amazônia tem sido importante para
a mitigação dessas mudanças, por causa da
grande redução de desmatamento e emissão
de CO2, desde 2005.
A Caatinga, no entanto, é um bioma
completamente diferente da Amazônia. É,
sobretudo, um bioma negligenciado e muito
pouco estudado e, inclusive em termos
de conservação – há uma proporção muito
pequena do território preservado em unidades
de conservação, ainda menos em unidade de
VULNERABILIDADE E BIODIVERSIDADE
conservação de proteção integral. É claro que
não se espera que a Caatinga tenha o mesmo
nível de biodiversidade e endemismo vistos
na Amazônia. Mas, por ser um bioma pouco
estudado, é consenso, dentro da comunidade
de biólogos brasileira, que se trata de um bioma
com um endemismo oculto, ou seja, deve ter
muito mais espécies na Caatinga, mas a gente
não conhece, por ser pouco estudada. Então,
é imprescindível, a partir dos novos dados
trazidos por este estudo, reforçar a Caatinga
no que diz respeito à sensibilidade às mudanças
climáticas.
ClimaCom – quando se fala em ameaça a um
bioma, estão implícitos os perigos às espécies
endêmicas?
Mariana Vale – Sim, é por isso que eu bato na
tecla das espécies endêmicas. Como elas só
ocorrem naquele bioma, qualquer ameaça a
ele é praticamente uma relação de um para
um com o que vai acontecer com suas espécies
endêmicas. Já para uma espécie que ocorre
na América do Sul toda, haverá populações
em outras áreas se a Caatinga ou a Amazônia
desaparecerem. A Caatinga tem um endemismo
importante de répteis, que é um grupo menos
estudado que o de aves, por exemplo, o que
resulta em menor conhecimento da sua história
natural e da sua distribuição. Há espécies
endêmicas de répteis que sequer puderam ser
investigadas pela União Internacional para a
Conservação da Natureza (IUCN) quanto ao seu
status de conservação, a exemplo do calangode-cauda-verde (Ameivula venetacaudus),
encontrado apenas no Piauí, e do lagartopreguiça-de-chifres (Stenocercus squarrosus),
com distribuição apenas no Ceará e no Piauí,
mas que não sabemos se estão ameaçados ou
não. Os répteis são animais ecototérmicos
e, por isso, muito sensíveis às mudanças
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
188
VULNERABILIDADE E BIODIVERSIDADE
REPORtAGENS E NOtíCIAS
climáticas. O aumento da temperatura pode
forçar muitos répteis a permanecer por mais
tempo em descanso durante as horas de
maior calor do dia, reduzindo assim o tempo
disponível para a busca de alimento. Então, dos
resultados trazidos pelo estudo da Nature, são
os da Caatinga que insisto em salientar. Além da
importância do ponto de vista da biodiversidade,
com fauna e lora especíicas, trata-se do único
bioma exclusivamente brasileiro, o que eleva a
responsabilidade do Brasil na sua preservação.
ClimaCom – A vulnerabilidade climática da
Caatinga também pode afetar o bem-estar
das populações que habitam o semiárido?
Mariana Vale – As previsões nefastas para a
Caatinga também são preocupantes do ponto de
vista social. As previsões de mudança do clima,
com um processo de desertiicação da Caatinga
capaz de transformar o semiárido em uma
região árida mesmo, praticamente inviabilizam
a agricultura na região, já bastante diicultada
pelos episódios de seca recorrentes. A perda
de cobertura vegetal da Caatinga está muito
associada com a agropecuária – atividade que
deixa de fazer sentido na região em cenário
de mudanças climáticas. Existem alternativas
muito mais interessantes, que, inclusive,
têm sinergia com a questão das mudanças
climáticas, como, por exemplo, a instalação
de painéis solares no semiárido, em nível
doméstico, o que traria renda às famílias –
mas que precisaria ser estruturado legalmente
–, advinda da possibilidade de gerar e vender
energia à rede. A troca da agricultura pela
produção de energia solar é uma alternativa
capaz de reduzir muito a supressão da
cobertura vegetal na região da Caatinga, que
é hoje o vilão número um para as espécies
que ocorrem ali. E isso também em âmbito
global: a perda de habitat é o estressor mais
Imagem produzida durante o evento “Encontros com
potências frágeis“, organizado pelo grupo multiTÃO,
realizado em dezembro de 2015, em Campinas.
importante da biodiversidade, e acreditamos
que as mudanças climáticas também entrarão
como o segundo mais importante estressor num
futuro próximo.
ClimaCom – Em 2009, você apontou no
artigo “Mudanças Climáticas: desaios
e oportunidades para a conservação
da biodiversidade brasileira” que eram
praticamente inexistentes os estudos sobre
os impactos das mudanças climáticas sobre
a biodiversidade no país. Essa realidade
mudou?
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
189
REPORtAGENS E NOtíCIAS
Mariana Vale – Melhorou, mas ainda são estudos
localizados. Em comparação com o número
de estudos existentes em países temperados
– e contando que a biodiversidade no Brasil é
ininitamente maior –, nosso conhecimento é
um arranhão na superfície. De qualquer forma,
aumentou. Há, inclusive, pesquisadores dentro
da nossa sub-rede de Biodiversidade que são
expoentes nesse tipo de estudo, a exemplo
do coordenador, o Dr. Rafael Loyola. O que
não mudou, entretanto, são as abordagens
dos estudos, que privilegiam os ecossistemas
terrestres através de modelos de distribuição
de espécies. A gente tem uma deiciência
enorme nos estudos de funcionamento dos
ecossistemas. Saindo do nível de espécies e
indo para o nível de ecossistemas, seria possível
entender como as mudanças climáticas iriam
desestabilizar os ecossistemas brasileiros, por
exemplo, os ecossistemas aquáticos. O Brasil
tem uma costa gigantesca, precisamos de
muitos estudos nesse sentido também para os
corpos d’água em ambientes continentais, mas
essa lacuna ainda não está sendo trabalhada.
VULNERABILIDADE E BIODIVERSIDADE
que procuram entender, sobretudo no Brasil,
como as mudanças climáticas vão mudar as
relações tróicas. A sub-rede de Biodiversidade
tem alguns pesquisadores trabalhando com
essas temáticas e, recentemente, temos
nos esforçado para acolher e estimular
pesquisadores que estejam em áreas onde há
lacunas, como a abordagem ecossistêmica e
ambientes aquáticos.
ClimaCom – E por que é importante estudar
os ecossistemas – a exemplo da abordagem do
estudo publicado na Nature – nas pesquisas
sobre mudanças climáticas?
Mariana Vale – Os ecossistemas têm processos
importantes, como a ciclagem de nutrientes,
produção de CO2, fotossíntese e produção
de biomassa vegetal: tudo isso são processos
que ocorrem no nível ecossistêmico. Como as
mudanças climáticas vão afetar, por exemplo,
a taxa de ciclagem de nutrientes, a taxa
de emissão de CO2, ou a taxa de emissão de
oxigênio nos ecossistemas brasileiros? É preciso
entender tudo isso. Outro aspecto importante
dos ecossistemas são as interações ecológicas e
as cadeias tróicas – também há poucos estudos
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
190
A ARTE DE REINVENTAR A COP-21
REPORtAGENS E NOtíCIAS
A arte de reinventar a COP-21
4/12/2015 | Janaína Quitério | Fora dos muros das negociações institucionais, movimentos
artísticos e populares inventam outro clima para sensibilizar o mundo sobre as consequências da
degradação ambiental.
“Imagina que, em 2015, você seja um jovem
morando em uma favela. Agora, imagina que,
em 2050, os Estados Unidos terão construído
uma ilha lutuante para receber você como
um refugiado ambiental”. A proposta igurava
em pleno telão do Teatro Nanterre-Amandiers,
nos arredores de Paris, enquanto 200 jovens,
vindos de vários países, participavam de um
jogo teatral de simulação organizado pelos
estudantes do renomado Instituto de Estudos
Políticos da Sciences Po (SEAP), em maio deste
ano – seis meses antes da abertura da 21ª
Conferência das Partes da Convenção-Quadro
sobre Mudança do Clima (COP-21), que acontece
na capital francesa de 30 de novembro a 11 de
dezembro.
A ideia do Make it Work – The theater of
Negotiations foi fazer um exercício de
reinvenção das regras vigentes nas COPs –
cujo primeiro fórum aconteceu em 1995, em
Berlim, após ter sido idealizado na ECO 92, no
Rio de Janeiro – como ferramenta potente para
repensar a estrutura e o modus operandi de um
“esforço internacional” que será responsável
pela existência futura – ou não – de todas as
formas de vida no planeta. “Por 20 anos, as
negociações internacionais sobre o clima estão
paralisadas em face da urgência da degradação
climática, especialmente à relacionada com as
emissões de CO2”, justiicam os organizadores.
Imagem da oicina de fotograia-pintura realizada
durante o evento “(a)mares e ri(s)os ininitos”, em
outubro de 2015.
Para o antropólogo e ilósofo da ciência Bruno
Latour, professor da Science Po e idealizador
do evento, as negociações no âmbito da
Organização das Nações Unidas (ONU) têm
sido ineicazes em razão da complexidade
das questões envolvidas estarem encerradas
num tipo de negociação que privilegia o papel
do Estado nas decisões, em detrimento dos
múltiplos atores – e seus interesses políticos em
jogo. “Integrar as entidades com seus interesses
tira a negociação do utópico, torna-a uma
representação mais realista”, explica Latour no
documentário Climate Make It Work, de David
Bornstein, lançando em novembro deste ano e
disponível para locação no Vimeo.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
191
REPORtAGENS E NOtíCIAS
Em parceria com outras universidades, como
a London School of Economics, a Universidade
de Columbia e a Universidade de Tsinghua,
em Pequim, os jovens tiveram três dias de
preparação e três dias de improvisação para
reinventarem uma forma de representação
que colocasse no mesmo palco delegações
que não estão representadas nas negociações
governamentais, como comunidades indígenas,
organizações não governamentais, regiões
polares, corporações de petróleo, indústrias
de agrotóxico, internet, entre outras. “Em
maio passado, nós imaginamos uma situação
em que as delegações não estatais fossem
representadas em igualdade com os Estados.
‘Atmosfera’ estava no palco, mas também
‘Solos’ e ‘Oceanos’, com todas as contradições
que existem entre pescadores, tubarões e
massas de corais”, contou Bruno Latour à revista
francesa Telerama, em entrevista concedida no
dia da abertura da COP-21.
Os jovens prepararam seus papéis antes,
mas Philippe Quesne, chefe do Teatro de
Nanterre-Amandiers e diretor de palco na
simulação, ressaltou que a improvisação estava
constantemente em jogo: “Isso pode alimentar
outra maneira de ver os reais debates. Na COP
real, as questões são as mesmas, e os chefes
de Estado provavelmente irão reencenar
os arranjos já feitos nos bastidores. É uma
dramatização!”, Quesne joga com as palavras
em entrevista dada ao ilme de Bornstein.
Assim, imersos no desaio de conter o aumento
da temperatura da Terra em dois graus Celsius
até 2100, os jovens se dividiram em 42
delegações, que incluíram representações de
animais – a exemplo dos orangotangos mortos
pelo desmatamento – e izeram um documento
inal com a adoção de medidas, tais como
a criação de um status legal para refugiados
A ARTE DE REINVENTAR A COP-21
do clima e a conexão global do mercado de
carbono. “Temos de reinventar o que signiica
‘agir’, ser otimista, entusiasta ou indignado”,
respondeu Latour à Telerama sobre o porquê
do chamado às artes. “Se a política é a ‘arte
do possível’, ainda é necessário que haja artes
para multiplicar esses possíveis”.
Outros chamados para inventar o futuro
Inventar novas maneiras de pensar e
novas narrativas também é a proposta do
Festival Global de Atividade Cultural sobre
Mudanças Climáticas (ArtCop21), que vem
reunindo agentes culturais do mundo todo
de forma colaborativa desde setembro, com
concentração de atividades artísticas durante
o mês da COP-21, não apenas nos arredores
de Paris, sob o lema “Clima é Cultura”. A
pergunta que move o evento é semelhante à
que motivou a simulação teatral de maio e se
constitui como um chamado à imaginação de
um mundo futuro: “A abordagem cientíica
e política que rege a agenda da COP-21 será
suiciente para negociar acordos internacionais
capazes de combater as alterações climáticas?”
Até o início de dezembro estavam registrados
512 eventos de 52 países.
Entre eles, destaca-se a instalação visual
Exit — em exposição no Palais de Tokyo, em
Paris, até 10 de janeiro de 2016. Composto por
um conjunto de mapas animados, é possível
perceber visualmente as relações complexas
entre migrações, refugiados políticos e o
aumento recente de refugiados climáticos
a partir das catástrofes naturais que, desde
2008, deslocam em média 26 milhões de
pessoas por ano – ou uma pessoa por segundo. Os
mapas também demonstram que há diferenças
marcantes entre os maiores emissores de
gases de efeito estufa, responsáveis pelo
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
192
A ARTE DE REINVENTAR A COP-21
REPORtAGENS E NOtíCIAS
Intencionais Nacionalmente Determinadas
(INDC) apresentadas para a COP-21 mostram
que, caso sejam implantadas todas as medidas
propostas pelos países membros, ainda assim a
temperatura da Terra aumentará 2,7 graus.
Imagem da oicina de fotograia-pintura realizada
durante o evento “(a)mares e ri(s)os ininitos”, em
outubro de 2015.
aquecimento global e que desencadeia a
degradação também das relações humanas, e
os países mais prejudicados pelas catástrofes
ambientais.
Uma preocupação para além dos governos
A COP-21 tem sido apontada por especialistas
climáticos, governos, artistas e ativistas
políticos como a última tentativa de barrar os
desastres ambientais já em curso e que irão
se agravar caso não seja atingida a meta de
contenção do aumento da temperatura em dois
graus até 2100. Além disso, é nesta conferência
que os 195 países e a União Europeia, membros
da Convenção-Quadro das Nações Unidas Sobre
Mudanças Climáticas (UNFCCC), tentarão
chegar a um novo acordo climático que deverá
entrar em vigor em 2020, substituindo o já
esvaziado Protocolo de Quioto.
Não é à toa que a preocupação extrapola os
muros governamentais e se mostra nas ruas com
a organização de marchas em todo o mundo.
De acordo com notícia publicada pelo Instituto
Socioambiental (ISA), mais de 700 mil pessoas
em 170 países participaram de mobilizações
nos primeiros dias da COP-21, com o intuito de
pressionar os governos a irmar um compromisso
sério durante a conferência. Em Paris, mesmo
com o estado de emergência decretado pelo
governo francês depois dos atentados de 13
de novembro, foi organizada uma corrente de
sapatos em frente a estátua da Marianne, na
Praça de La Republique, sob o slogan “Nossos
sapatos marcharão por nós”, coordenado pela
organização não governamental Avaaz.
De acordo com o site da Global Climate March,
mantido pela Avaaz, até o segundo dia da
COP-21 aconteceram quase 2500 mobilizações
populares em todo o mundo.
Em entrevista à Agência Brasil, o secretário
executivo do Observatório do Clima, Carlos
Ritti, alerta que dois graus é o limite
considerado seguro para gerenciar os impactos
ambientais. Mas, apesar disso, as Contribuições
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
193
SEÇÃO
TÍTULO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
194
TÍTULO
SEÇÃO
SAtÉLItES
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
195
SAtÉLItES
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
196
SAtÉLItES
Desastres
naturais como
problema de
saúde pública
21/01/2016 | Janaína Quitério
Ano de 2004: ciclone atinge o litoral norte do
Rio Grande do Sul e o sul de Santa Catarina;
2005 e 2010, secas atingem a região de maior
disponibilidade hídrica do planeta, o Estado
do Amazonas; em 2009 e 2012, esse mesmo
estado sofre inundações graduais que superam
os níveis históricos. 2008: Santa Catarina
é afetada por inundações bruscas, o que
acontece também em Pernambuco e Alagoas
no ano de 2010; em 2011, a região serrana
do Rio de Janeiro é atingida por inundações
e deslizamentos. 2013: três em cada quatro
municípios do Nordeste estão em situação de
emergência devido à seca iniciada em 2010.
Em 20 anos, o Brasil registra quase 32 mil
desastres naturais que afetam mais de 96
milhões de pessoas, de acordo com o artigo
“Desastres naturais e saúde: uma análise da
situação do Brasil” (FREITAS et al., 2014),
deslocando mais de seis milhões de pessoas.
Apesar dos números, a inter-relação entre
desastres naturais e saúde coletiva ainda
é pouco estudada no país – tarefa a que se
propôs um grupo de 11 pesquisadores ligados a
diferentes institutos, como a Fiocruz, o Centro
de Estudos e Pesquisas em Emergências e
Desastres em Saúde (Cepedes), o Observatório
Nacional Clima e Saúde, entre outros, ao
realizar o levantamento e a sistematização
dos desastres naturais ocorridos no Brasil
entre 1991 e 2010 e seus diferentes impactos
na saúde coletiva (óbito, desnutrição,
transtornos psicossociais, infecções, doenças
diversas etc.).
Na primeira parte do artigo, os autores deinem
o que são os desastres naturais, levando
em conta as condições de vulnerabilidade
resultantes de processos sociais e mudanças
ambientais denominadas por eles como
“vulnerabilidade
socioambiental”:
“As
condições de vulnerabilidades estabelecem
territórios críticos em diferentes escalas e
em diferentes temporalidades, o que coloca
a questão dos desastres como um problema
essencialmente socioambiental, desmitiicando
a ideia de um evento imponderável ou apenas
de origem natural”, defendem.
Os desastres naturais são tipiicados de quatro
maneiras diferentes e afetam as populações
de modo desigual, bem como produzem
efeitos na saúde humana que variam do curto
ao longo prazo. Os eventos climatológicos
(que envolvem os processos relacionados
à estiagem e seca, queimadas e incêndios
lorestais, chuvas de granizo, geadas e
ondas de frio e de calor) foram os que mais
afetaram a população brasileira (57,8% do
total), seguidos dos eventos hidrológicos
(alagamentos, enchentes e inundações
graduais e bruscas), que correspondem a
32,7% do total, mas que, por outro lado,
apresentam maior número de morbidade e
mortalidade. Em termos de letalidade, foram
os eventos geofísicos ou geológicos (processos
erosivos e deslizamentos) que resultaram em
mais óbitos.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
197
SAtÉLItES
O levantamento foi feito a partir dos dados
do Atlas Brasileiro dos Desastres Naturais
1991-2010 e da coleta e sistematização de
informações sobre decretos de situação de
emergência e estado de calamidade pública. O
objetivo do estudo é propor políticas públicas
de saúde coletiva e incentivar ações de
prevenção, mitigação, resposta e reabilitação
dos impactos na saúde.
EXIT. Ou
de como a
informação
não pode
conter a vida
15/01/2016 | Sebastian Wiedemann
O cineasta Harun Farocki já nos dissera que a
imagem não é inocente, pelo contrário: é um
composto sensível que, na atualidade, dizse majoritariamente informação que propaga
palavras de ordem. Nesse sentido, o cineasta
alemão aposta na prática de desmontagem para
conjurar a imagem. Mas, e se apostássemos em
conjurar a imagem por sobre-montagem, na
qual a informação é implodida desde dentro
pela insistência em exacerbar sua condição?
Levar ao limite a informação, ou como vemos
e escutamos em EXIT, fazer da infograia uma
potência expressiva. Nesta videoinstalação
concebida sobre uma ideia de Paul Virilio,
realizada por Diller Scoidio + Renfro, Mark
Hansen, Laura Kurgan e Ben Rubin, com a
colaboração de Stewart Smith e Robert Gerard
Pietrusko, na qual sentimos ressonâncias do
pensamento audiovisual de Farocki, a informação
e seu modo de aparecer revertem sua lógica
de captura e clausura para, por saturação,
tornar-se porosidade vazante. EXIT se propõe
experimentar as variações dos movimentos
migratórios do humano numa decantação
que só vem airmar que a vida não pode ser
contida. A vida é movimento, é migração e, por
uma vontade de mais informar, de com mais
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
198
SAtÉLItES
precisão assinalar, a imagem se desborda e se
diz ela mesma migração, instabilidade que não
consegue sustentar palavra de ordem alguma.
Algo de incomensurável da vida, dos movimentos
de vida, dos movimentos migratórios não se
deixa capturar pela imagem ou só aparece por
sobrecarregá-la com quantidades de informação
que não podemos terminar de perceber, mas
que tornam o seu aparecer expressivo. EXIT
termina sendo muito mais do que séries de
informação que tentam contornar grandes
quantidades de dados. Os dados terminam
por se devorar a si mesmos e mostram muito
menos os movimentos de saída, de migração
do humano (como representação) e muito mais
como a imagem em sobremontagem pode se
tornar saída dela mesma. A imagem se faz um
EXIT e, com ela, o humano, ainda que precário e
predado pelo capitalismo, entre superfícies de
informação que parecem esmagá-lo, consegue
abrir frestas para uma nova terra, aquela que
o excesso de informação na sua face airmativa
(subversiva) fermenta.
Testemunhos
do clima:
tese investiga
ligações fogoclima-vegetação
na Floresta
Amazônica
11/01/2016 | Fernanda Pestana
Vestígios do passado, indicadores do futuro…
Camadas sedimentares se adensam nos
testemunhos coletados no solo para estudos
paleoclimáticos e paleoambientais. São
muitas as variáveis (coloração, densidade,
teor de água, composições químicas, etc)
que dão aos cientistas pistas de um passado
milenar e permitem revisitar os ecossistemas
sedimentados no tempo que se acumula na
superfície terrestre. A partir deste passado
que se desenha pela análise das camadas
sobrepostas, é possível encontrar ainda indícios
para um modelo climático futuro.
Na tese Incêndios lorestais e mudanças
ambientais na Amazônia Sul. Comparativo
entre alterações recentes e registros
paleoclimáticos, defendida pela Universidade
Federal Fluminense (UFF), o autor Renato de
Aragão Ribeiro Rodrigues (coordenador da Subrede de Agricultura da Rede CLIMA) busca, nos
testemunhos coletados, informações sobre
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
199
SAtÉLItES
a frequência e a intensidade de incêndios na
Floresta Amazônica, na região de Alta Floresta
(norte do Estado de Mato Grosso) e no Lago do
Saci (sul do Pará). Apesar de os locais de coleta
serem bem próximos (aproximadamente 100
km de distância entre Alta Floresta e o Lago
do Saci), o que diferencia as regiões é a ação
antrópica, que se intensiica na década de 1980
em Alta Floresta com a exploração mineral,
agropecuária e madeireira, em contraste com
o Lago do Saci, que permanece preservado.
Os testemunhos coletados no Lago do Saci dão
pistas de uma Amazônia desde 30 mil anos
atrás. Neles, a argila subterrânea gera fatias
de tempo, camadas de cores de fogo, água
e vegetação que datam os acontecimentos
climáticos da região. A argila “recentemente”
escurecida denuncia a intensiicação da
presença do carvão e as queimadas na loresta
em escala milenar. A tese faz uma comparação
com os testemunhos coletados na região de
Alta Floresta, analisando, em uma escala de
3 décadas (de 1975 a 2008), os impactos das
mudanças no uso da terra, e constatando
uma frequência muito maior e mais acelerada
de incêndios na região em relação à análise
milenar do Lago do Saci que não sofreu as
mesmas alterações.
das queimadas e outros gases do efeito estufa
(GEE) presentes no solo. Testemunhos de
episódios passados, os registros sedimentares e
as imagens de satélite são também importantes
para o desenho de um modelo climático futuro,
com o qual a tese visa contribuir analisando
como as atividades humanas “afetam (e irão
afetar) as ligações fogo-clima-vegetação em
todas as escalas espaciais”.
Das profundezas do solo para a superfície,
imagens de satélite também dão testemunho
sobre o desmatamento causado pelo centro
urbano que começa a surgir em Alta Floresta e
se expande com a construção de estradas que
envolvem as atividades econômicas da região.
Imagens de uma loresta verde que se recolore
em rosa (ou se “descolore” em rosa), pois nas
imagens o rosa é a cor do desatamento, cor do
contraste entre a vegetação e o solo exposto.
Rosa que demarca a conversão da loresta em
áreas abertas que emitem para a atmosfera o
mercúrio que restou da mineração, o carbono
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
200
SAtÉLItES
The Golden
Record [O Disco
de Ouro]. Ou da
impossibilidade
de explicar
“nosso” mundo
aos alienígenas
6/01/2016 | Sebastian Wiedemann
Em 1977, duas naves, Voyager 1 e 2, saem da
Terra com destino ao espaço interestelar. Ambas
levam uma mensagem, num disco de ouro, que
explicaria “nosso” mundo aos alienígenas.
Parte da mensagem estaria dada por 116
imagens que, supostamente, sintetizariam
nossa antropogênese.
Pouco podemos dizer do que acontecerá quando
O Disco de Ouro chegar às mãos alienígenas. Mas
podemos, sim, aqui destacar o que este gestoartefato faz ou nos força a pensar. O Disco de
Ouro expõe uma síntese dupla. De um lado,
certa ideia de homem totalizante recoberta de
uma aparente diversidade cosmopolita e aliada
à noção de progresso, e, do outro, a imposição
da imagem como regime de verdade.
e replica a dicotomia natureza-cultura?
Apostar que a imagem é um processo aberto e
construtivo e que, portanto, não está dada ou
pode ser ilustração de algo, mas, sim, dispor-se
à potência de encontro. Mas por que começar
pelo encontro mais improvável ou mais distante
no tempo-espaço, um encontro interestelar?
Não poderíamos airmar que alienígena é todo
aquele que é radicalmente diferente de nós e que
de fato problematiza a própria noção de “nós”,
por nos abrir às forças do outro do outro? E ao
mesmo tempo esse outro, esse alienígena, não
colocaria a imagem num processo de variação
constante, em que se ela é uma superfície
expressiva do humano, seria então processo
heterogêneo de possibilidades de “nós”? O
certo é que a Terra está povoada de alienígenas
e uma vontade efetiva de encontro com o outro,
e não só de domínio, o que faria com que O
Disco de Ouro fosse compartilhado ainda dentro
desta mesma atmosfera, ainda dentro deste
mesmo continente e país. Por que esperar por
um contato interestelar? Quem sabe devamos
escutar e ver juntos – aqui mesmo na Terra
que já é também terra alienígena – O Disco de
Ouro como gesto-artefato cosmopolítico antes
que cosmopolita. Gesto-artefato desmontável,
reinventável, recompossível, e com ele a
imagem, para que no caso de os alienígenas
interestelares responderem, estejamos à altura
de um encontro e um “nós” que exceda nossa
imaginação.
Em tempos de Gaia, pensar a imagem é antes
de tudo problematizar o humano.
Pode a imagem dar conta do humano? Como
fazer dela uma superfície de passagem onde
o humano seja abertura a encontros efetivos
e não só uma clausura identitária que ixa
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
201
SAtÉLItES
A política dos
afetados:
o que resta
quando a água
já se foi?
31/03/2016 | Michele Gonçalves
2016, Rio Xingu: Belo Monte, a (futura) terceira
maior usina hidrelétrica do mundo, está
prestes a ligar sua primeira turbina, mesmo
após inúmeras denúncias de irregularidades
ambientais, étnicas e sociais cometidas durante
sua implantação; 2016, rio Doce: o Supremo
Tribunal de Justiça (STJ) suspende o inquérito
que apurava as responsabilidades pelo maior
acidente ambiental do país, o rompimento da
barragem de rejeitos da mineradora Samarco
na cidade de Mariana, MG, que despejou,
sobre alguns distritos e povoados, cerca de 62
milhões de litros de lama com resíduos tóxicos,
destruindo moradias e pessoas e contaminando
o principal rio da maior bacia hidrográica da
região Sudeste (ver mais aqui; aqui; e aqui);
2016, rio Tapajós: indígenas Munduruku
protestam contra a perda de suas terras e
sua fonte de subsistência pelas 43 usinas
hidrelétricas previstas para serem construídas
num dos últimos grandes rios amazônicos sem
barragens, considerado o mais preservado da
região, ainda que, há anos, venha sendo alvo
de poluição por mineração (ver mais aqui e
aqui).
As correspondências entre esses três eventos
são inúmeras, a começar pela grandiosidade:
dos rios, das obras, dos impactos, do absurdo
de sua concretude. Há também dois elos fortes
a interligá-los: tratam do mais necessário e
valioso recurso natural para a vida na Terra
– e de sua factível destruição – e revelam a
vulnerabilidade das populações que dele
dependem, uma legião (quase) invisível de
afetados à mercê das decisões políticas,
ambientais e sociais de um país e do desastre
iminente que elas impõe: modos de vida que
correm o risco de inexistir. Mas há mais a ser
dito a respeito da catástrofe anunciada por
esses eventos; há uma relação menos óbvia
entre eles, uma condição comum que permeia
o destino desses rios e dele extrai talvez sua
única força: a luta dos que não desapareceram
e se recusam à inexistência; o combate diário
daqueles que permaneceram depois que a
água, seu elo comum, foi-lhes negada.
A importância de as populações tidas como
vulneráveis assumirem seu papel de sujeitos
coletivos de transformação é apontada
no artigo Complexidade, Processos de
Vulnerabilização e Justiça Ambiental: um
ensaio de epistemologia política, que relaciona
risco, vulnerabilidade social e cidadania: “as
populações impactadas por certos projetos
econômicos de desenvolvimento e concepções
de mundo reduzem a sua vulnerabilidade
à medida que se constituem e passam a
protagonizar a expressão pública e política
de vozes sistematicamente ausentes dos
processos decisórios que deinem os principais
projetos de desenvolvimento nos territórios”.
O autor, Marcelo Firpo de Souza Porto,
sugere a “desnaturalização e politização” da
vulnerabilidade a partir da justiça ambiental,
assumida como “ampla noção que coloca em
xeque as questões éticas, morais, políticas e
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
202
SAtÉLItES
distributivas dos conlitos”. Em suma, o que
ele defende é que a vulnerabilidade possa
ser, mais que fragilização, uma expressão
de reivindicação. Esse é um dos combates
possíveis, a luta através da mobilização política,
da qual também fala Joan Martínez Alier em
O Ecologismo dos Pobres, importante livro
que analisa e discute a ecologia política e os
crescentes movimentos ecológicos populares.
Ele destaca o papel político dos chamados
“vulneráveis” ao apontar que os movimentos
locais de resistência das populações afetadas
reforçam e são fundamentais para manter
as redes globais de discussão e atuação nos
conlitos socioambientais distributivos.
As complexas articulações entre os mecanismos
ambientais, cognitivos e relacionais com
os aspectos fenomenológicos, estruturais e
culturais que formam a política dos afetados
são também discutidas em outro artigo,
intitulado A Política dos Afetados: os atores, os
repertórios e os ideais nos recentes protestos
ambientais na América Latina. Apresentando
os recentes processos de mobilização nessa
região, a autora Cristiana Losekaan airma:
“o que diferencia que um determinado
contexto de extremo impacto ambiental seja
vivido como sofrimento e outro análogo seja
transformado em objeto de luta não são as
macroexplicações, mas as microfundações
através de quais mecanismos as mobilizações
contestatórias […] se tornam possíveis”. Ao
passo que destaca o papel das mobilizações
através dos movimentos socioambientais,
o artigo, também valoriza algo mais sutil: a
potência política, mesmo que não declarada,
dos afetados que permanecem, que continuam
a exercer suas práticas e atividades locais,
que não renunciam nem à vida, nem à sua
história, mas, sim, ao futuro traçado pelas
mãos de outrem.
São muitas as formas de permanecer: através
da criação de articulações políticas como o
Movimento dos Atingidos por Barragens e a
Articulação Internacional dos Atingidos pela
Vale; através de protestos locais como os do
povo indígena Munduruku contra as hidrelétricas
do Tapajós e de ações populares como Mariana
Viva; e através da resistência pela vida, que
não admite ser anulada e persiste habitando
seu território e praticando seus costumes ou,
ao menos, airmando sua procedência, suas
práticas e sua territorialidade. Resistências
como a do pescador mencionado no artigo
de Losekaan, que “continua insistentemente
tentando pescar em uma região impactada e
é tão fundamental para a construção da ação
coletiva quanto o líder de uma ONG que circula
pelo mundo interligado e/ou interligando
diversos cenários de luta”; ou talvez como a
do pescador sem rio e sem letras da matéria
da jornalista Eliane Brum, que mesmo tendo
seu direito de pescar violado, ainda pescador
se denomina.
“Não há mais rios doces ou inocentes”, escreveu
Milton Hatoum quando de seu protesto poético
pelo desastre em Mariana. Se o rio já há muito
não é doce, mas se no im da sua inocência
tiver início a resistência pela vida que exige
ser vivida, então que seja doce pelo menos o
saber desses muitos combates possíveis, todos
emergindo da água que lá não mais está.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
203
SAtÉLItES
Vulnerabilidade,
mais um termo
retórico?
5/01/2016 | Michele Gonçalves
As mudanças climáticas são um campo
problemático repleto de termos e expressões
veiculados insistentemente na mídia. Em
muitos casos, esses termos perdem sua
potência ao serem largamente repetidos e/ou
restritos a determinadas conceituações. É o
que o capítulo “A Retórica da Vulnerabilidade
e as Mudanças Climáticas” – elaborado por
Eduardo Marandola Júnior para integrar
o volume População e desenvolvimento
em debate: contribuições da Associação
Brasileira de Estudos Populacionais –, discute
ao colocar os problemas enfrentados pelo
termo vulnerabilidade, amplamente utilizado
nas discussões atuais do campo. Segundo o
pesquisador, há um tipo de retórica que se
impõe tanto pela mídia quanto por grande
parte das pesquisas cientíicas, a qual associa
o termo somente à incapacidade ou inabilidade
de populações e ecossistemas em face das
condições adversas impostas pelas alterações
ambientais. Tal retórica, ao enfocar apenas a
fragilidade e inadequação, torna-se “um meio
discursivo eiciente para defender interesses
em vez de analisar questões”.
Para ele, esse sentido negativo utilizado a
priori não favorece nem acrescenta nada
às discussões e produz, pelo contrário, o
entendimento de que qualquer transformação
é absorvida pelos envolvidos como perda. “Ao
adotar este olhar apriorístico não conseguimos
observar as capacidades adaptativas ou a
resiliência, as características próprias dos
sistemas, lugares, instituições ou grupos
populacionais especíicos em responder aos
perigos”. Em outras palavras, o que Marandola
problematiza é o uso do termo vulnerabilidade
como sinônimo de ausência, como uma
espécie de deiciência das comunidades
vivas, que desconsidera as heterogeneidades
e potencialidades inerentes a contextos
especíicos, acabando por estigmatizar tais
personagens “tornando-os vilões de suas
mazelas e, pior, das mazelas dos problemas
ambientais”.
Combater essa retórica, para o pesquisador,
exige uma espécie de ousadia: a inversão na
ótica metodológica e midiática, uma abordagem
do termo como categoria analítica e não como
um conceito revelador de desigualdades.
“Vulnerabilidade é um conceito forte se visto
de forma a incorporar as fragilidades e as
potências ao mesmo tempo, para que os riscos
e seu enfrentamento sejam entendidos de
forma integrada, como um processo que não
se resume à exposição e sua resposta, mas
que envolve a complexa trama socioespacial
constitutiva das mudanças ambientais”. O
foco, portanto, não deve recair apenas sobre
os danos, mas deve englobar a resistência e a
capacidade de resposta, absorção de impactos
e adaptação que possibilitam que eles – os
danos – sequer aconteçam. Em suma, como
categoria de análise, vulnerabilidade aplicase a todos os locais, e não somente àqueles
cujo prejuízo foi evidente.
O que está em jogo parece ser, portanto, a
ordem do discurso que viabiliza as discussões
em torno da vulnerabilidade. Mais que exaurir
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
204
SAtÉLItES
a perda, o que o artigo de Marandola defende
é uma alteração na eleição dos problemas
a serem pesquisados e discutidos: que as
questões incluam as conjunturas em sua
multiplicidade de aspectos, tramas e variáveis
em sua especiicidade e singularidade. “Se
continuarmos tratando a vulnerabilidade
apenas como perda estaremos eternamente
remediando situações com ações paliativas,
sempre transformando processos contínuos
em eventos circunscritos no tempo”, inaliza.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
205
SEÇÃO
TÍTULO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
206
TÍTULO
SEÇÃO
Arte
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
207
ARtE
SUMÁRIO
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
208
TÍTULO
SEÇÃO
PROdUÇÕES
ARtíStICAS E
CULtURAIS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
209
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
210
ARtE
Monumento Mínimo
Néle Azevedo
Monumento Mínimo/Minimum Monument é uma intervenção nos espaços urbanos inicialmente
concebida como um anti monumento, como uma leitura crítica aos monumentos nas cidades
contemporâneas. Inverti as características do monumento: no lugar do herói eleito pelo poder
público, o homem comum sem rosto e anônimo; no lugar da solidez da pedra, o processo efêmero
do gelo; no lugar da escala grandiosa dos monumentos, a escala mínima dos corpos perecíveis.
Desse modo o Monumento perde a sua condição estática para ganhar luidez no deslocamento
urbano e na mudança do estado da água. A memória ica inscrita na imagem fotográica e a
experiência do derretimento é compartilhada por todos.
A relação entre sustentabilidade/meio ambiente aconteceu à medida que o Monumento Mínimo foi
intervindo nas cidades. Mais exatamente a partir de setembro de 2009, na intervenção realizada em
Berlin junto com a WWF, quando o Monumento Mínimo foi realizado como um trabalho diretamente
ligado ao aquecimento global, no mesmo momento em que acontecia a 3a. Conferência Climática
Mundial em Genebra.
Sua ainidade com o tema é evidente, ele pode ser lido como um “monumento vivo” ecoando em
questões contemporâneas, despertando interesse para além do circuito da arte contemporânea.
Eu entendo que hoje o Monumento Mínimo atende a duas questões: a primeira diz respeito ao
aquecimento global e àa consequente ameaça de nosso desaparecimento do planeta. O historiador
Fustel de Colanges, em “A cidade Antiga”, dizia que as cidades antigas eram fundadas a partir
de um rito. Penso que o Monumento Mínimo, no momento de sua instalação nas ruas, é um rito.
Um rito de refundação das cidades hoje em outras bases. É um monumento líquido para tempos
líquidos. A segunda diz respeito ao que ele propõe: outro modo de celebração da memória pública
em datas históricas comemorativas como, por exemplo, em Birmingham, na Inglaterra (2014), na
comemoração do centenário da Primeira Guerra Mundial, quando cinco mil esculturas em gelo
ocuparam toda a Chamberlain Square lembrando os anônimos que deram sua vida em sacrifício.
Concepção: Néle Azevedo
Néle Azevedo, artista internacional, pesquisadora independente, vive e trabalha em São Paulo- Brasil, é mestre em
artes visuais pelo Instituto de Artes da UNESP.Durante seu mestrado iniciou a pesquisa que resultou na intervenção
com esculturas em gelo “Monumento Mínimo”, que desde 2005 tem sido convocada a se fazer em várias cidades do
mundo como Brasília, Salvador, São Paulo, Havana (Cuba), Tóquio e Kyoto (Japão), Berlim (Alemanha), Florença
(Itália), Stavanger (Noruega), Amsterdam (Holanda), Belfast (Irlanda), Santiago do Chile (Chile), Lima (Peru),
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
211
MONUMENTO MÍNIMO
ARtE
Birmingham (UK) e Paris (França). Registradas por TVs, Jornais e pelo público em geral, as imagens das intervenções
tornaram-se mundialmente conhecidas, despertando interesse para além do circuito da arte contemporânea.
Mais informações disponíveis em: <www.neleazevedo.com.br>.
Vídeo – registro da intervenção com o Monumento Mínimo/Minimum Monument realizada em
03 de Outubro de 2015 em Paris dentro da programação da Nuit Blanche/2015 no contexto do
aquecimento global.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
212
MONUMENTO MÍNIMO
ARtE
Disponível em:
http://climacom.mudancasclimaticas.net/?p=5215
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
213
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
214
ARtE
Los Cantos del chaman y La
serpiente del Yurupari
Dioscórides
Dioscórides. Nace en Pereira en 1950. Estudios de arte en la Sociedad de Amigos del Arte y en el
Instituto de Bellas artes de la Universidad Tecnológica de Pereira. Estudia teatro y artes plásticas
en la Facultad de Artes de la Universidad Nacional de Colombia donde recibe el título de maestro
en pintura. Profesor de dibujo y grabado en la misma facultad desde 1978 hasta hoy día. Estudios
de posgrado en grabado-con beca de la OEA- en el CREAGRAF de la Universidad de Costa Rica.
1984-1987 estudios de grabado en la Academia Central de Bellas Artes de Beijing en China. Estudia
Taichi y Chigong en la Escuela del Dragón de la Ciudad Prohibida. Actualmente es Profesor Titular
de la U.N. Trabaja en los talleres de grabado, Cuerpo y Espacio, Performance, Land Art y Taichí.
Su obra de grabado y dibujo ha sido expuesta en cientos de muestras colectivas e individuales
en galerías y museos del país y del exterior. Ha recibido varios reconocimientos, menciones
honoriicas y premios, entre ellos el Primer Premio en la Bienal Latinoamericana de Grabado de
Costa Rica. Dos veces el Primer Premio en dibujo en la Competencia Internancional de la Q.C.C.
Art Gallery de New York. Escribe cuentos, relatos y crónicas. Premio de Crónica sobre Bogotá
de la Revista Número. Y el Segundo Premio de Cuento en el Concurso Literario de profesores
de la Universidad Nacional. Libros publicados: Los sueños del emperador Qin Shi Huang Di y La
verdadera historia de los superhéroes; Los cantos del chaman (2015), Sembrar bambú en el corazón
(2015). Performances: La lección de Anatomía, Instrucciones para dibujar una sirena, Autorretrato
paseando una rata blanca en el Museo de la Universidad Nacional. Organizó dos Encuentros de
performance en la UN: “Trece Acciones Circulares” y “Re-existencia”; y el “Encuentro Cero de
Land Art y de Performance” en el desierto de El Fósil de Villa de Leiva. Con estudiantes de artes y
de ópera formó el Colectivo Dédalos, ganador del Premio de la Semana del Performance en Bogotá,
con el performance Ejercicios para Desandar, organizado por la Galería Sala de Espera. Coordinó
las Acciones Urbanas y de Campus del Hemisférico de Performance realizado en la Universidad
Nacional de Colombia, 2009. Performances 2013: Oráculos de piedra y agua, Funza. Oráculo
dragón-serpiente en HabitAccionar, Galería Santa Fe. Conjuro de las Maldiciones, Museo de Arte
Contemporáneo MAC. Cuerpos ACCIONArar, Anolaima. Mano bendita, Casa Ensamble, Bogotá.
Galatea, Universidad Tecnológica de Pereira. Oráculos de tinta, Biblioteca Luis Ángel Arango BLAA,
Bogotá. Sembrar bambú en el corazón. UN Bogotá. La serpiente del Yurupari. Mitu. 2015, Circulo
serpiente para el centro del corazón. Villa de Leiva-2015.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
215
ARtE
LOS CANTOS DEL CHAMAN Y LA SERPIENTE DEL YURUPARI
Los Cantos del chaman, livro codice, série de Gravuras. Ano de publicação do livro: 2015.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
216
LOS CANTOS DEL CHAMAN Y LA SERPIENTE DEL YURUPARI
ARtE
Los Cantos del chaman, livro codice, série de Gravuras. Ano de publicação do livro: 2015.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
217
ARtE
LOS CANTOS DEL CHAMAN Y LA SERPIENTE DEL YURUPARI
La serpiente del Yurupari, performance no Rio Vaupes – Colombia (Fotograias: Maria Cecilia Sanchez), 2015.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
218
LOS CANTOS DEL CHAMAN Y LA SERPIENTE DEL YURUPARI
ARtE
La serpiente del Yurupari, performance no Rio Vaupes – Colombia (Fotograias: Maria Cecilia Sanchez), 2015.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
219
ARtE
LOS CANTOS DEL CHAMAN Y LA SERPIENTE DEL YURUPARI
La serpiente del Yurupari, performance no Rio Vaupes – Colombia (Fotograias: Maria Cecilia Sanchez), 2015.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
220
LOS CANTOS DEL CHAMAN Y LA SERPIENTE DEL YURUPARI
ARtE
La serpiente del Yurupari, performance no Rio Otun – Colombia (Fotograias: Sebastian Perez), 2016.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
221
ARtE
LOS CANTOS DEL CHAMAN Y LA SERPIENTE DEL YURUPARI
La serpiente del Yurupari, performance no Rio Otun – Colombia (Fotograias: Sebastian Perez), 2016.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
222
LOS CANTOS DEL CHAMAN Y LA SERPIENTE DEL YURUPARI
ARtE
La serpiente del Yurupari, performance no Rio Cauca – Colombia (Fotograias: Federico Perez), 2016.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
223
ARtE
LOS CANTOS DEL CHAMAN Y LA SERPIENTE DEL YURUPARI
La serpiente del Yurupari, performance no Rio Cauca – Colombia (Fotograias: Federico Perez), 2016.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
224
ARtE
Kate MacDowell sculptures
Kate MacDowell
We do not want merely to see beauty…..We want something else which can hardly
be put into words–to be united with the beauty we see, to pass into it, to receive
it into ourselves, to bathe in it, to become part of it.
C.S. Lewis.
In Kate MacDowell’s work a Romantic ideal of our relationship to the natural world conlicts
with the reality of our current impact on the environment. Her pieces are in part responses to
environmental threats including air pollution, global warming, clear-cutting, and pesticide misuse;
and their consequences to our health and the environment including rapidly diminishing plant
and animal species. They also borrow from myth, art history, igures of speech and other cultural
touchstones. In some pieces aspects of the human igure stand-in for us and act out sometimes
harrowing, sometimes humorous transformations which illustrate our current relationship with the
natural world. In others, animals take on anthropomorphic qualities when they are given safety
equipment to attempt to protect them from man-made environmental threats. In each case the
union between man and nature is shown to be one of friction and discomfort with the implication
that we too are vulnerable to being victimized by our destructive practices.
She uses a variety of methods from hand sculpting each piece out of porcelain, often building a
solid form and then hollowing it out, to slip casting and assembling multiples. Smaller forms are
built petal by petal, branch by branch and allow her the chance to get immersed in close study of
the structure of a blossom or a bee. She sees each piece as a captured and preserved specimen, a
painstaking record of endangered natural forms and a commentary on our own culpability.
Concepção: Kate MacDowell, independent artist based in the United States (not afiliated with an institution)
Fotograia: Dan Kvitka
Mais informações disponíveis em: <www.katemacdowell.com>.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
225
KATE MACDOWELL SCULPTURES
ARtE
Clay pigeons, 2010
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
226
KATE MACDOWELL SCULPTURES
ARtE
Clay pigeons, 2010
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
227
KATE MACDOWELL SCULPTURES
ARtE
Sparrow, 2008
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
228
KATE MACDOWELL SCULPTURES
ARtE
Mutiny on the bounty, 2013
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
229
KATE MACDOWELL SCULPTURES
ARtE
The god of change, 2011
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
230
KATE MACDOWELL SCULPTURES
ARtE
Predator, 2013
Nursemaid 1, 2, and 3, 2015
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
231
KATE MACDOWELL SCULPTURES
ARtE
Lost tribe, 2012
Last of his tribe, 2012
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
232
ARtE
Nuevas Geografías,
Geografías deshechas y
Aluvión
Fredy Alzate
En las instalaciones y los dibujos recientes planteo estructuras-simulacros que intentan infundir
y confundir los sistemas de representación para cuestionar las contradicciones expuestas en
la coniguración de las ciudades latinoamericanas y aproximar dimensiones simbólicas
del paisaje urbano. Me interesa visibilizar relaciones imperceptibles de procesos constructivos
cotidianos, en propuestas que se establecen como zona de cruces, abiertas a dinámicas que
impliquen el reconocimiento de la arquitectura, el paisaje y la coniguración de un lugar
social, para alertar imaginarios y establecer narrativas que aludan a la naturaleza amenazada,
el cambio climático o el urbanismo desenfrenado.
Concepção: Fredy Alzate (Rionegro Ant., 1975) vive y trabaja en Medellín. Es Maestro en Artes Visuales de Universidad
de Antioquia y Magíster en Artes Plásticas y Visuales de la Universidad Nacional sede Bogotá. Desde 1998 expone
individual y colectivamente, y entre las distinciones obtenidas se destacan el primer premio en el XIX Salón Arturo
y Rebeca Rabinovich, MAMM en 1999; la Beca de apoyo a tesis de posgrado, DIB Universidad Nacional de Bogotá en
2006; Beca a la Creación en Escultura, Alcaldía de Medellín; la Mención de honor en la 2° Bienal de Artes Plásticas y
Visuales de la FGAA, y la Nominación al VII Premio Luis Caballero, Bogotá en 2012. Alzate gano beca para realizar
residencia artística en la Maison Des Arts Georges Pompidou, en Cajac, Francia en 2013 y en el 2014 se destacan
las exposiciones colectivas Artistas comprometidos? Tal vez, en la Fundación Calouste Gulbenkian Lisboa, Portugal y
Pangaea: new art from africa and latin America, Galeria Saatchi, Londres. Actualmente es docente en la Facultad de
Artes de la Universidad de Antioquia, Colombia.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
233
ARtE
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
Nuevas Geografías I, II e III. Acrílico sobre lona y Instalación (Ensamble: madera reciclada, resina y cromado en baja
densidad), 2012-2013.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
234
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
ARtE
Nuevas Geografías I, II e III. Acrílico sobre lona y Instalación (Ensamble: madera reciclada, resina y cromado en baja
densidad), 2012-2013.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
235
ARtE
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
Nuevas Geografías I, II e III. Acrílico sobre lona y Instalación (Ensamble: madera reciclada, resina y
cromado en baja densidad), 2012-2013.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
236
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
ARtE
Geografías Deshechas. Intervención (1200 llantas recicladas, metal, sonido ampliicado) 5 x 5.4 x 8 mt. Salón Inter
(Nacional) Colombia. Jardín Botánico de Medellín, Colombia. Ano: 2013.
Fotografía: Rodrigo Díaz.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
237
ARtE
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
Geografías Deshechas es una metáfora
cartográica. Una escultura emplazada en el
Jardin Botánico de Medellin, en el marco del 43
Salon (inter)nacional de artistas. Fue concebida
para el lugar ya que este espacio natural pone
en tensión las 1200 llantas que coniguran una
masa en forma de vórtice que parece brotar de
la tierra. SUS dimensiones (6 alto, por 7 de
ancho x 7 de largo) confrontan el cuerpo del
espectador con una apabullante masa que se
proyecta al espacio retando la gravedad.
El artista busca generar relexión sobre el exceso
que impera en la actualidad y las consecuencias
de la sociedad del bienestar. El origen de
esta propuesta se da en una investigación
sobre la naturaleza amenazada, el cambio
climático y el crecimiento desbordado de las
urbes contemporáneas. El paisaje detonante
es el de cementerios de llantas, montañas
que deinen nuevas geografías en periferias
urbanas en distintos lugares del mundo, pero
en mayor medida en países en vía de desarrollo
que reciben residuos de potencias del primer
mundo.
Alzate utiliza objetos cotidianos como llantas
desgastadas para nombrar problemáticas
ambientales que tocan a cualquier espectador,
pero también para establecer un tramado
multiforme que plantea una estructura que
se abre a múltiples lecturas: Algunas personas
ven un árbol representado, otros una honda
explosiva, otros, un problema escultórico
acorde a líneas contemporáneas donde los
artistas no solamente usan materias primas
estériles, sino que acogen elementos de la
realidad para asumir la memoria que cargan y
los valores simbólicos.
También el artista participa con dos pinturas
que se presentan en el Museo de Antioquia.
“Efecto invernadero” y “retorno”, ambas son
en acrílicos sobre lona de 240 x 200 cm. Las
dos pinturas exponen paisajes residuales, con
un interés expresivo cercano a la escultura,
pero que hacen una apuesta distinta desde las
posibilidades de la representación pictóricas o
gráicas.
Datos: cada llanta esta perforada (drenaje) para
que no acumulen aguas lluvias. El tramado está
conigurado por 4000 tornillos, 2000 arandelas,
2000 chazos plásticos y una estructura en
metal que ayuda a su estabilidad. Participaron
en producción durante 25 días dos asistentes
permanentes y de forma intermitente, 14
practicantes de la facultad de artes de la
Universidad de Antioquia.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
238
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
ARtE
Aluvión. Intervención (madera, hierro, zinc, objetos encontrados). Estructura: 500 x 450 x 600 cm. Biblioteca Parque de
Belén, Medellín, Colombia. Ano: 2012 .
Fotografía: Carlos Tobón.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
239
ARtE
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
Aluvión. Intervención (madera, hierro, zinc, objetos encontrados). Estructura: 500 x 450 x 600 cm.
Biblioteca Parque de Belén, Medellín, Colombia. Ano: 2012 .
Fotografía: Carlos Tobón.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
240
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
241
ARtE
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
Aluvión. Intervención (madera, hierro, zinc, objetos encontrados). Estructura: 500 x 450 x 600 cm.
Biblioteca Parque de Belén, Medellín, Colombia. Ano: 2012 .
Fotografía: Carlos Tobón.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
242
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
ARtE
Aluvión. Intervención (madera, hierro, zinc, objetos encontrados). Estructura: 500 x 450 x 600 cm. Biblioteca
Parque de Belén, Medellín, Colombia. Ano: 2012 .
Fotografía: Carlos Tobón.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
243
ARtE
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
Aluvión. Intervención (madera, hierro, zinc, objetos encontrados). Estructura: 500 x 450 x 600 cm. Biblioteca
Parque de Belén, Medellín, Colombia. Ano: 2012 .
Fotografía: Carlos Tobón.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
244
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
ARtE
Aluvión. Intervención (madera, hierro, zinc, objetos encontrados). Estructura: 500 x 450 x 600 cm. Biblioteca Parque de
Belén, Medellín, Colombia. Ano: 2012 .
Fotografía: Carlos Tobón.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
245
ARtE
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
El proyecto Aluvión se establece como una forma
relacional abierta a dinámicas que impliquen el
reconocimiento de la arquitectura, el paisaje y
la coniguración de un lugar social. La propuesta
insinúa el colapso o hundimiento de un techo;
una alegoría que cruza referencias basadas en la
tipología de las viviendas presentes en algunos
barrios periféricos de Medellín o en cinturones
de miseria que podemos encontrar en distintas
ciudades latinoamericanas, para señalar
problemáticas generadas por la urbanización
en zonas de alto riesgo donde los habitantes
viven en permanente alerta, en estado de
contingencia.
La instalación recrea un movimiento que
sugiere avalancha o torrente. El colapso de un
techo y la materia que se proyecta al espacio a
través del despliegue fugaz de una inesperada
fuerza que apenas deja huella, pretende aludir
a una zona de realidad que nos conecte con la
experiencia urbana.
Aluvión busca recuperar núcleos o sustratos
de pensamiento que permitan expresar la
inestabilidad, el equilibrio precario y, en
general, la transitoriedad de la existencia
a través de la relación centro-periferia, ser
humano-hábitat en el marco de los entornos
urbanos efímeros, cambiantes y confusos. El
planteamiento formal usurpa la materialidad y
las formas constructivas de barrios subnormales,
con la inalidad de exponer una imagen de
actividad y efecto, basada en la apariencia
precaria de la arquitectura vernácula.
En el ámbito del arte, la propuesta acoge
prácticas artísticas que se dan en el intersticio
del no-paisaje y la no-arquitectura, revisando
así categorías históricas del medio escultórico,
pero al mismo tiempo, conecta una dimensión
signiicante y comunicativa que genera un
contexto analítico desde lo social, cultural y
político.
Justiicación: Cuando, con ines analíticos,
se asemejan las ciudades con organismos,
normalmente su crecimiento se sitúa en una
falsa imagen. Los procesos de crecimiento
urbano no operan de manera lineal a pesar
de naturalizarlos como representaciones de
formas variables. Por ejemplo, algunas casas
en barrios periféricos de Medellín no aparecen
asentadas, sino en proceso, es decir, abiertas
a una multiplicidad de soluciones alternativas
implícitas en contextos inmediatos. Por este
motivo, uno de los objetivos del proyecto
escultórico Aluvión es trasladar referencias
objetuales y constructivas a un lugar en que se
evidencien los vacíos que dejan las impuestas
valoraciones de lo que es útil y relevante en
nuestra sociedad, para nombrar las isuras y
lo irresoluto presentes en la arquitectura de
la supervivencia y, así, visibilizar estados de
contingencia y dimensiones simbólicas del
paisaje urbano.
En medio del caos y la incertidumbre de los
barrios espontáneos, lo que se dibuja es un lugar
diferente al de la polis moderna, una antítesis
que acusa, en su fragilidad, las características
de un no lugar. En medio de este panorama,
el arte puede crear una pausa, establecer un
intervalo, arar en el vacío, para proponer una
dicotomía entre el lenguaje de la arquitectura
tradicional, entendida como instrumento
de medición y como conjunto de saberes
destinados a organizar el tiempo y el espacio
de la sociedad, y una arquitectura producto ya
no del ejercicio de proyección del espacio ideal
habitacional, sino de la construcción casi a la
deriva de espacios de supervivencia.
Con mi propuesta quiero mostrar que el arte
puede leer e interpretar la realidad, en sus
múltiples variantes, sin caer en la banalización
de los discursos, ni en el uso gastado de las
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
246
NUEVAS GEOGRAFÍAS, GEOGRAFÍAS DESHECHAS Y ALUVIÓN
imágenes que mueve la cultura popular. En
última instancia, se trata de proporcionar
una experiencia al público que no es
necesariamente la de representar o reforzar
los valores conocidos, sino de expandirlos, de
cuestionarlos y confrontarlos.
A partir de entender la ciudad contemporánea
caracterizada por tener fenómenos y procesos
diversos, que hacen que la relación territoriopoblación haya cambiado drásticamente,
y que la ciudad no pueda ser pensada sólo a
partir de territorios, sino de comportamientos
y mecanismos que generan la vida en ella se
empieza a desarrollar el presente proyecto de
investigación. El urbanismo informal es uno de
esos elementos que enuncian en la ciudad lo
impredecible, lo no permanente, lo cambiante,
lo fugaz, lo inesperado.
Los techos en barrios periféricos en Medellín –la
quinta fachada, como consideró la arquitectura
moderna–, las azoteas que se integran a la masa
de la construcción como elemento formal, son
el punto topológico de la investigación que da
lugar a Aluvión.
En el barrio La Cruz, algunas casas soportan
en sus techos el peso indolente de ruinas y
vestigios. Pero, como en una contradicción de
fuerzas, la materia extraña pisa los techos,
evitando la destrucción por efectos de la fuerza
de lo natural. Casas que se levantan retando
la gravedad, apoyadas en estructuras que
exponen una fragilidad temible, luchan por no
dejarse caer.
ARtE
de la humanidad, asedia, en ese contexto, la
seguridad de quienes la habitan. Así, la idea de
casa como contenedor que acoge de manera
natural se presenta como trampa. El techo
se desploma, se precipita, es lo que hay que
levantar para evitar el desmoronamiento de la
construcción.
La imagen de los techos y la idea de casa como
trampa permiten explorar estrategias para el
proyecto Aluvión que relacionan la piedra, la
fundación, el lindero, la parcela. Lo frágil, lo
duro, lo estable, lo lexible, la lucha diaria,
la inestabilidad, lo perdurable, lo que está a
punto… de caer o de permanecer. La suspensión,
el equilibrio, la contradicción de las fuerzas. La
testarudez. La interdependencia…
De este modo, la realidad misma nutre esta
investigación: las temporadas invernales o
la urbanización espontanea han generado
desastres en el territorio colombiano, como
aconteció el martes 7 diciembre de 2010,
cuando una gran avalancha de lodo sepultó
entre 35 y 40 viviendas de un humilde barrio
de Bello, ocasionando más de un centenar de
muertos.
Según estudios de la Universidad Nacional de
Colombia uno de cada 20 habitantes de Medellín
vive en zona de riesgo y más de 27.700 viviendas
se encuentran en zonas de alto riesgo no
recuperables, localizadas en su mayoría en las
laderas y las cañadas de las zonas nororiental,
noroccidental, centroriental y centroccidental
de la ciudad.
Esta situación conduce a cuestionar la forma
como palos, piedras, ladrillos o cualquier
cosa que tenga peso se posan en los techos de
muchas de las viviendas. La piedra, elemento
primigenio para la construcción de viviendas
y de múltiples signiicaciones en la historia
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
247
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
248
ARtE
Tree leaves cut with a scalpel
Lorenzo M. Durán
Inspired by a caterpillar I decided to cut plant leaves the same way as other artists do with paper,
that idea captivated my whole mind because it looked like a great opportunity to combine two of
my true passions: art and nature. My geometric or igurative designs mostly come from my innate
observation of nature and the personal metamorphosis I have gone through in recent years.
Using a natural element as a plant leaf is, made me realize that maybe I was facing the opportunity
to relect my respect for the environment. Personally, my life has always been linked in one way or
another to nature. My fascination with animals and plants developed my curiosity towards them,
seeing them as an indispensable part of our life. On the other hand my love of the mountains made
me realize how insigniicant and important we are at a time, in this great game of life. For me
a plant is a complex mechanism of energy synthesis, and a simple leaf hides mysteries that only
time will reveal.
And thinking about the importance of ecosystems, where the tree is about what turns a lot of
species and therefore must be taken care of, I try to keep in mind the following phrase:
“The environment is one of the essential parts of a living being.” (Jorge Wagensberg)
Concepção: Lorenzo M. Durán, 1969, Cáceres, Spain.
Mais informações disponíveis em: <www.lorenzomanuelduran.es>.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
249
ARtE
TREE LEAVES CUT WITH A SCALPEL
Golondrinas (23×14 cm. Species: Ficus Elastica)
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
250
TREE LEAVES CUT WITH A SCALPEL
ARtE
Colibrí (23×15 cm. Species: Morus Alba)
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
251
ARtE
TREE LEAVES CUT WITH A SCALPEL
Dragón (31×17,5 cm. Species: Catalpa Bignonioides)
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
252
TREE LEAVES CUT WITH A SCALPEL
ARtE
Nudo de la vida (46×37 cm. Species: Catalpa Bignonioides)
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
253
ARtE
TREE LEAVES CUT WITH A SCALPEL
Serpiente II (30×25 cm. Species Juglans Regia)
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
254
ARtE
Where to sit at the dinner table?
Pedro Neves Marques
Where to sit at the dinner table? tells the tale of ecological energetics and the movement of
economic subsumption found at its origins, from homeostasis to the necessity of growth, excess,
and the continuous production of an outside. From time to time the story is interrupted by tales
about the ritual of anthropophagy in Brazil in the early 16th century, an imaginary that builds the
ilm’s visuals, be it microilms of 16th century books and etchings (André Thevet, Jean de Léry, or
Hans Staden), or museological and graphic material from or about Amerindian socio-cosmologies.
“Não tinhamos especulação./ We did not have speculation.
Mas tinhamos adivinhação. / Yet we had divination.
Tinhamos Política, que é a ciência da distribuição. / We had Politics, which is the science of distribution.
E um sistema social-planetário.” / And a social-planetary system.
– Oswald de Andrade, in “Manifesto Antropófago”.
Concepção: Pedro Neves Marques, visual artist and writer. Born in Lisbon, Portugal, living in New York, USA.
He has exhibited at venues such as Kadist Foundation (Paris), e-lux (with Mariana Silva) (New York, USA), Casa do
Povo (São Paulo, Brazil), 12th Cuenca Biennial (Cuenca, Ecuador), Sculpture Center (New York, USA), Elizabeth
Foundation for the Arts (New York, USA), and EDP Foundation (with André Romão) (Lisbon, Portugal), as well as the
galleries Galleria Umberto di Marino (Naples, Italy), and Pedro Cera (Lisbon, Portugal). His short-ilm Where to Sit
at the Dinner Table? premiered at DocLisboa International Film Festival 2013, and has screened on several venues,
including online with a discussion with the Brazilian architect Paulo Tavares at www.vdrome.org in 2014. He has been
a resident at Zentrum Paul Klee’s Sommerakademie, Bern, Switzerland, 2012 (coordinated by Jan Verwoert), and
atAntonio Ratti Foundation, Como, Italy (coordinated by Walid Raad).
Mais informações disponíveis em: <http://www.vdrome.org/marques.html>.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
255
WHERE TO SIT AT THE DINNER TABLE?
ARtE
Disponível em:
http://climacom.mudancasclimaticas.net/?p=2616
Where to sit at the dinner table?, 35′ ilm, HD video, spoken in English and Portuguese, dated
2012-13
Shot in Brazil and Portugal with the kind support of Centro Cultural Montehermoso, Spain, and
Companhia das Culturas, Portugal. Directed and edited by Pedro Neves Marques, with the cast:
Eglantina Monteira, Vítor de Andrade. Voice overs by: Ariana Couvinha, Gonçalo Gama Pinto, Pedro
Simões, and Don Patterson. Sound by: Pedro Sousa. The music is by Terry Riley and Martinho da
Vila, while the synth soundtrack is by Pedro Neves Marques based on indigenous folkore songs from
the States of Maranhão and Amazonas. Many thanks to the cast, Mariana Silva, Eduardo Guerra,
Margarida Mendes, Joana Escoval, Ana Luísa Bouza, João Ribeiro, Gonçalo Sena, Teatro Praga,
Susana Pomba, Centro Cultural Montehermoso, Calouste Gulbenkian Foundation, and Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
256
ARtE
Gambiarras
Cao Guimarães
Atua no cruzamento entre o cinema e as artes plásticas. Com produção intensa desde o inal dos
anos 1980, o artista tem suas obras em numerosas coleções prestigiadas como a Tate Modern
(Reino Unido), o MoMA e o Museu Guggenheim (EUA), Fondation Cartier (França), Colección Jumex
(México), Inhotim (Brasil), Museu Thyssen-Bornemisza (Espanha), dentre outras.
Participou de importantes exposições como XXV e XXVII Bienal Internacional de São Paulo, Brasil;
Insite Biennial 2005, México; Cruzamentos: Contemporary Art in Brazil, EUA; Tropicália: The 60s in
Brazil, Áustria; Sharjah Biennial 11 Film Programme, Emirados Árabes Unidos e Ver é Uma Fábula,
Brasil, uma retrospectiva com grande parte das obras do artista expostas no Itaú Cultural, em São
Paulo.
Realizou nove longa-metragens: O Homem das Multidões (2013), Otto (2012), Elvira Lorelay Alma de
Dragón (2012), Ex Isto (2010), Andarilho (2007), Acidente (2006), Alma do Osso (2004), Rua de MãoDupla (2002) e o Fim do Sem Fim (2001), que participaram de renomados festivais internacionais
como Cannes, Locarno, Sundance, Veneza, Berlim e Rotterdam.
Ganhou retorspectivas de seus ilmes no MoMA, em 2011, Itaú Cultural, em 2013, BAFICI (Buenos
Aires) e Cinemateca do México em 2014, dentre outros.
Concepção: Cao Guimarães, cineasta e artista plástico, nasceu em 1965 em Belo Horizonte, onde vive e trabalha.
Mais informações disponíveis em: <http://www.caoguimaraes.com/> e <https://hambrecine.iles.wordpress.
com/2014/04/7.pdf>.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
257
ARtE
GAMBIARRAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
258
GAMBIARRAS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
259
ARtE
GAMBIARRAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
260
GAMBIARRAS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
261
ARtE
GAMBIARRAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
262
ARtE
Respira!
Leonardo Carrato
A vida na Amazônia já foi fábula de livro escolar. Não é mais. A paisagem mundo. Troncos no chão
com água batendo na porta. Nos limpos e puros igarapés, uma vez cheios de peixes, já lutuam
rastros de garimpo. Na imensidão verde se sente o calor do marrom. Nos vilarejos quentes, o ar
úmido não é preenchido por cantos originários e sim por batidas eletrônicas. Não se veem mais
peitorais musculosos e pintados, mas camisas de Neymar Jr. rodeiam aos montes. Dizem que não
há extermínio, mas se percebe cordas nas árvores e o cheiro da pólvora maldita. Os que ainda
resistem em manter culturas e tradições sonham em não ser como qualquer um. Vulnerabilidades
no plural: ali onde se resiste, ali onde não é mais possível resistir. As fotos foram tiradas ao longo
do Rio Amazonas, desde Iquitos, no Peru, até Belém do Pará, no Brasil, durante o ano de 2015.
Texto e fotograias: Leonardo Carrato, fotógrafo Independente
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
263
ARtE
RESPIRA!
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
264
RESPIRA!
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
265
ARtE
RESPIRA!
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
266
RESPIRA!
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
267
ARtE
RESPIRA!
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
268
RESPIRA!
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
269
ARtE
RESPIRA!
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
270
TÍTULO
SEÇÃO
LABORAtóRIOAtELIÊ
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
271
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
272
ARtE
Laboratório de futuros
Grupo multiTÃO (CNPq, Labjor-Unicamp)
Uma certa fadiga imobiliza as imagens ao mesmo tempo em que as ensurdece. Perguntamo-nos,
então, como tocar o futuro, como tornar seu murmúrio tangível. Entendemos as imagens como
complexos energéticos vibratórios e apostamos em acolhê-las em caixas-laboratórios abertos e
desmontáveis que possam catalizar novos encontros e retornar-lhes uma certa vitalidade, uma certa
alegria ressonante que pede o transe para dançar de novo, para entre sonoridades e visualidades
poder cantar futuros mais uma vez. Convidamos músicos para dizerem de seus processos criativos
e fazerem de recipientes de laboratório instrumentos sonoros, preparando e extraindo sons nunca
ouvidos, músicas que se precipitam do encontro entre bocas e tubos de ensaio, desprendem-se
entre mãos e balões volumétricos, medem-se entre viola e béquer… O encontro airma que não
há uma solução musical homogênea e consensual a ser buscada, não se trata de repetir a ladainha
das mudanças climáticas e seus efeitos sobre a humanidade, nem de criar uma espécie de música
das ciências climáticas que embale nossos medos, ou muito menos fazer dela o ritmo que cadencia
nossas marchas e mobilizações pelo clima, mas antes de perceber que não existe uma partitura
pronta e pré-determinada para tocar ciências, climas, humanos e futuros. Convocamos a potência
germinadora da música para produzir com as ciências uma alquimia que faz mergulhar as imagens
em relações prismáticas e de manipulação. Aqui, entendemos por manipulação a arte do dispor-se
que os químicos do século XVIII praticavam, na qual se faz possível tirar proveito, deixar-se afetar
pela propensão das coisas-seres para dobrar e compor com o que elas têm a dar, com o que seus
corpos podem. Imagens compondo um método e protocolo de experimentação dissonante, em
que justamente não sabemos o que elas podem e por isso elas conseguem vibrar e estar vivas,
chamando e tocando futuros: problemas, materiais, métodos e resultados se dispõem como modos
de testar as potencialidades de encontros imprevisíveis. Não saber, mas intuir que é só na criação
de escutas que outros futuros podem emergir. Há uma propensão das imagens à vida que nos obriga
a ensaiar a divulgação como montagem audiovisual onde transes fazem das imagens emaranhados
e atmosferas afetivas que, entre correntezas de sonoridades improváveis, transmutam a fadiga em
esgotamento efetivo, eximindo-as da extinção. Um laboratório de vida livre cujo problema é abrir
e intensiicar possibilidades de vibração na e com as imagens, de fazer da divulgação uma caixa
aberta, abandonada, por onde as imagens passam ressoando nas suas paredes-membranas móveis
e seguem, e proliferam vida fora, intensiicadas pelo timbre da ciência, da música, da alquimia
que entre elas murmura. Resta-nos acolher o fervilhar de toda uma invenção ainda não existente
que se faz entre as maneiras de tocar ciências-instrumentos-climas-futuros-imagens e os modos
como a composição audiovisual cria escutas para tais sonoridades, fazendo borbulhar um universo
de relações (respiros) em formação, que não se sabe em quê vai dar.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
273
LABORATÓRIO DE FUTUROS
ARtE
Disponível em:
http://climacom.mudancasclimaticas.net/?p=4805
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
274
LABORATÓRIO DE FUTUROS
ARtE
Ficha técnica:
direção e Roteiro
Susana Dias
Entrevistados
Adriel Job (Percussionista, sonoplasta e arranjador)
Fred Jorge (DJ e cantor)
João Arruda (Violeiro, produtor e sonhador)
Marta Catunda (Compositora, educadora e pesquisadora)
Entrevistadoras
Carolina Rodrigues
Tatiana Plens
Captação
Cristiane Delina
Susana Dias
Oscar Guarin
Sebastian Wiedemann
Montagem
Oscar Guarin
Susana Dias
Sebastian Wiedemann
Som e inalização
Sebastian Wiedemann
Este vídeo faz parte de um movimento com a obra “Caixa de futuro”, <http://climacom.mudancasclimaticas.
net/?p=3350> concebida por Fernanda Pestana, Susana Dias e Cristiane Delina como um laboratório aberto e
desmontável, que propôs um encontro com os entrevistados.
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
275
LABORATÓRIO DE FUTUROS
ARtE
Realização
Grupo multiTÃO-prolifer-artes sub-vertendo ciências, comunicações e educações (CNPq)
Sub-rede Divulgação Cientíica e Mudanças Climáticas
Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede CLIMA),
Coordenada pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
Projetos: CNPq No. 550022/2014-7, CNPq No. 458257/2013-3 e FINEP No. 01.13.0353.00.
ClimaCom Cultura Cientíica – Pesquisa, Jornalismo e Arte
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
276
ARtE
Encontros com potências frágeis
Fernanda Pestana e Sebastian Wiedemann (Grupo multiTÃO, Labjor/Unicamp)
Como lidar com nossa impotência diante da desordem climática, das desigualdades sociais, das
investidas poderosas no progresso, da incessante circulação de imagens-palavras-sons limitados
demais e que não nos afetam? Se a impotência é parte do problema, como diz a ilósofa Isabelle
Stengers, buscaremos, nestes encontros, torná-la um problema a ser enfrentado junto com outros
grupos. In-ventar outros inter-esses. Pensar a vulnerabilidade – próximo tema da Revista ClimaCom
– em efetiva conexão com a vida, airmando-a enquanto campo problemático e de combate a tudo
que nos torna fracos e impotentes e, ao mesmo tempo, como campo de abertura para as potências
frágeis e indeterminadas que escapam às organizações das forças dominantes. Encontrar com
seres, coisas, lugares, materiais e procedimentos nos quais pulsam outros quereres, mais sutis e
menos deterministas, lineares e normativos. Airmar, assim, a divulgação cientíica menos como a
construção de espaços-tempos de comunicação de conhecimentos já prontos e dados, e mais como
potência de produzir encontros nos quais imagens, palavras, sons, conhecimentos, ciências, artes
e ilosoias tornam-se vulneráveis a novas visitações, manipulações e composições. Um dizer sim
à divulgação como o desastre airmativo do encontro, que nos impede de seguir com os mesmos
olhos, mãos, cabeças, corpos, que nos força a criar um novo corpo-leitor-escritor-pensador que se
move e vibra mais junto da Terra.
MÃOS-dAR, MEdItAR VIdAS - COMPONdO ESPÉCIES, ECOSSIStEMAS E MOdOS dE dIZER
FRÁGEIS COM O ChÃO E O VENtO
Há uma fragilidade constitutiva das coisas-seres do mundo. Fragilidade como condição necessária
para sua constante transmutação e composição. Somos frágeis, pois nossas formas são sempre
formas em constante deformação. Tudo no mundo é metaestável. Dizer-se movimento airmativo
é dispor-se sempre ao encontro com uma certa instabilidade. Violência amorosa do outro que nos
força a mudar. Uma semente cai de uma árvore, abre-se no chão e se torna uma casa abandonada.
Um pequeno gesto pode fazer dela uma composição. Um corpo que se agacha, uma mão que a pega,
coleta, insere numa série de relações. Gesto frágil – de se deixar afetar pelas coisas-seres do mundo
e entrar em relação de composição com elas, em relação de material com elas. Uma semente, um
resto no chão, na mão, uma potência de criação. Passagem sempre frágil de dar consistência, de
fazer brotar forças no material. Operação só possível pela busca insistente de uma eicácia de um
medir. Precisão do encontro, isto é, precisão da escuta que, deixando-se afetar, leva os materiais à
sua máxima expressão, como recortes sempre precisos em que, entre suas frestas, chovem forças,
chovem alegria de estar junto. Uma mão, num gesto frágil, exercendo uma certa ciência imprecisa
de composição. Ex-semente, casa abandonada, agora mais uma vez fértil entre outras pequenas
matérias do mundo, por exemplo, compondo uma nova espécie. Espécies inorgânicas ganhando
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
277
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ARtE
anima num mãos-dar. Insetos de outros mundos emergindo em exsicatas. Biodiversidade, coleção
e aglomerados de vida reunidos e visíveis num gesto de medição-composição, de ixação, de dar
consistência entre folhas, galhos, linhas, sementes… Constelação de vidas frágeis, que resistem à
extinção que as mudanças climáticas impõem. Multiplicação manual, criação de ecossistemas que
se meditam em mandalas, embaladas pelo pensamento de Stengers “Não somos impotentes, fomos
reduzidos à impotência”. Restos, materiais abrindo um cosmos no chão, um ecossistema improvável.
Mandalar, medir em propensão com o acaso, compor de regras curvadas ao imprevisível do vento,
das folhas, sementes, galhos. Mudanças climáticas que se efetuam, ao mesmo tempo, como plano de
fundo e força que coage nossos corpos; em sua face empobrecida, propagam um cansaço, uma fadiga
nas imagens e palavras que delas algo tentam dizer – uma certa extinção dos processos criativos por
insistência desta fadiga e estagnação. Resistir com potências frágeis. Medir, meditar as mudanças
climáticas como quem cozinha nuvens em fogo lento, como quem embaralha fundo e forma num
mesmo plano, em mosaicos que abrem tempos outros em que o movimento fractal é movimento de
vida. O ininitamente grande, que já contém o ininitamente pequeno. Um tufão-imagem que, nas
mãos de uma criança, emaranha-se com sementes-algodão, cozinha de tempos em escala de infância.
Clima-oferenda-banquete, mandala-alimento de novos ecossistemas, de novos modos de estar junto
com as mudanças climáticas, longe de empobrecimentos ou cansaços já dados. De nossa fragilidade
e de dispor-se frágil, dizer-se pura potência. Deixar-se afetar pela plasticidade das palavras, abrilas, decompô-las, fazer delas restos, destroços de mosaicos, possibilidade de um reencontro outro.
Sílabas soltas, sílabas inorgânicas. Criação de novas espécies-palavras ao vento. Um livro-ao-vento
aberto. Um dizer que ganha vitalidade fugindo com o vento de qualquer dicionário, ou léxico já dado,
já cansado demais. As mudanças climáticas podem aparecer como nosso plano de fundo, como aquilo
que nos circunda e oprime numa incomensurabilidade que faz com que a percepção se desvaneça
antes de acontecer afetivamente. Crença num falso determinismo, pelo qual somos reduzidos à
impotência, na qual uma imobilidade (negação da fragilidade e metaestabilidade como potência de
vida) se impõe e qualquer vontade de dar lugar a uma etho-ecologia é abortada. Mãos-dar, fazer do
fundo mais uma superfície que nos pode afetar, enrolar-se com ele, tornar sua incomensurabilidade
uma provocação inindável que reativa as potências criativas. Fazer das mudanças climáticas a matéria
constituinte de nossa mesa de trabalho. Mãos-dar, entre novas vidas/espécies e suas relações, seus
ecossistemas e novas formas de se deixar afetar, desenrolar mesas de trabalho como laboratórios
de potências frágeis, como laboratórios de cosmopolíticas que, diante do já dado, abrem a disputa
inesgotável. Um convite a se dispor ao encontro de se deixar afetar e afetar no gesto manual, em
mãos-dar, que medem, meditam, experimentam vidas, populações de vidas frágeis.
Concepção: Sebastian Wiedemann, Susana Dias e Fernanda Pestana (Grupo multiTÃO, Labjor/Unicamp)
Fotograia: Susana Dias, Fernanda Pestana, Oscar Guarin
Produção audiovisual: Sebastian Wiedemann
Colaboração: Ludmila Oze
Esta publicação é uma contribuição da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais inanciado
pelos projetos do CNPq Processo 550022/2014-7, CNPq No. 458257/2013-3 e FINEP Processo 01.13.0353.00
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
278
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
279
ARtE
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
280
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
281
ARtE
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
282
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
283
ARtE
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
284
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
285
ARtE
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
286
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
287
ARtE
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
288
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
289
ARtE
ENCONTROS COM POTÊNCIAS FRÁGEIS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
290
ARtE
Laboratórios de re-existências.
Mesas de operações ao ar livre
Susana Dias, Fernanda Pestana e Sebastian Wiedemann (Grupo multiTÃO, Labjor/Unicamp)
Fazer da palavra um laboratório de re-existências e da imagem uma mesa de operações ao ar
livre. Fazer com que as superfícies vencidas de palavras e imagens se mostrem grávidas de outros
mundos sensíveis que a lógica aceleracionista não é capaz de dar a perceber e sentir. Proposta à
qual adicionamos um certo gosto pelas técnicas impuras, pelas manipulações improváveis, por uma
rebeldia dos materiais, por um não saber muito bem de onde partir, nem onde chegar, com a certeza
de que o problema da produção audiovisual na divulgação cientíica das mudanças climáticas
é um problema de fazer com, de estar com, de pensar com os outros seres-coisas-do-mundo.
Poderíamos dizer que se trata de uma série de experimentos sem garantias, que exigem muito
preparo e disponibilidade para “fazer pegar de novo” – como se diz das plantas – a possibilidade de
estar junto (STENGERS, 2015); para, estando junto, ser digno de receber e cuidar do que nasce,
quando os seres-coisas-do-mundo entram em arranjos nunca vistos (HARAWAY, 2016). Um chamado
em que uma nova coleção de existências ganhe fôlego de vida.
MESA dE OPERAÇÕES AO AR LIVRE #2
Estamos desconectados da vida. Talvez esse seja o problema mais violento que enfrentamos com
o que se tem chamado de “mudanças climáticas”, pois, diante dele, as certezas advindas de
conhecimentos e práticas que herdamos tornam-se impotentes. Neste encontro, levamos para a
rua exercícios de reconexão com a vida, com a proposta de compartilhar processos de trabalho
com as imagens e palavras da revista ClimaCom. Processos que não pressupõem a vida como
propriedade e atributo de seres e coisas de um mundo já formado, mas que assumem a libertação
da vida como uma operação que cabe às imagens e às palavras, quando estas são tomadas como
laboratórios de re-existências, de re-criação de mundos, em que o problema não é mais o de
comunicar estados de seres e coisas, mas entrar em comunicação com os seres e coisas de modo
que imagens e palavras se tornem capazes de entrar em conexão conosco. Toda uma vida de
imagens e palavras que independe de nós, que faz de nós puras passagens.
Concepção: Grupo multiTÃO (Labjor/Unicamp) com Susana Dias, Fernanda Pestana e Sebastian Wiedemann
Participantes: Glória Freitas, Dhadar Faseyi, Carolina Scartezini, Fernanda Pestana, Tatiana Plens, Ricarda Canozo,
Sebastian Wiedemann, Vivian Marina e Susana Dias – Coletivo de pesquisa e criação multiTÃO (Labjor/Unicamp).
Fotograias: Fernanda Pestana, Tatiana Plens e Susana Dias
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
291
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ARtE
Local: Praça do Coco, Barão Geraldo, Campinas.
data realização: 30/03
Esta publicação é uma contribuição da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais inanciado
pelos projetos do CNPq Processo 550022/2014-7, CNPq No. 458257/2013-3 e FINEP Processo 01.13.0353.00
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
292
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
293
ARtE
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
294
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
295
ARtE
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
296
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
297
ARtE
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
298
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
299
ARtE
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
300
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
301
ARtE
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
302
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ARtE
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
303
ARtE
LABORATÓRIOS DE RE-EXISTÊNCIAS
ClimaCom Cultura Cientíica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705
304