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Catalogação na Fonte Elaborado por: Josefina A. S. Guedes Bibliotecária CRB 9/870 S678 2018 A sociedade do espetáculo: Debord, 50 anos depois / Deysi Cioccari, Gilberto da Silva, Mara Rovida (Organizadores). - 1. ed. - Curitiba: Appris, 2018. 229 p. ; 23 cm (Ciências Sociais) Inclui bibliografias ISBN 978-85-473-1672-3 1. Classes sociais. 2. Comunicação. 3. Comunicação social. 4. Debord, Guy, 1931-1994. I. Cioccari, Deysi, org. II. Silva,Gilberto da, org. III. Rovida, Mara, org. IV. Título. V. Série. CDD 23. ed. – 613 Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT. Editora e Livraria Appris Ltda. Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês Curitiba/PR – CEP: 80810-002 Tel: (41) 3156-4731 | (41) 3030-4570 http://www.editoraappris.com.br/ Editora Appris Ltda. 1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda. Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010. FICHA TÉCNICA EDITORIAL COMITÊ EDITORIAL EDITORAÇÃO ASSESSORIA EDITORIAL DIAGRAMAÇÃO CAPA REVISÃO GERÊNCIA COMERCIAL GERÊNCIA DE FINANÇAS GERÊNCIA ADMINISTRATIVA COMUNICAÇÃO LIVRARIAS E EVENTOS CONVERSÃO PARA E-PUB Sara C. de Andrade Coelho Marli Caetano Augusto V. de A. Coelho Andréa Barbosa Gouveia - USP Edmeire C. Pereira - UFPR Iraneide da Silva - UFC Jacques de Lima Ferreira - PUCPR Marilda Aparecida Behrens - UFPR Giuliano Ferraz Alana Cabral Jhonny Alves dos Reis Giuliano Ferraz Andrea Bassoto Gatto Eliane de Andrade Selma Maria Fernandes do Valle Diogo Barros Carlos Eduardo Pereira | Igor do Nascimento Souza Milene Salles | Estevão Misael Carlos Eduardo H. Pereira COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS DIREÇÃO CIENTIFICA Fabiano Santos - UERJ/IESP CONSULTORES Alícia Ferreira Gonçalves – UFPB José Henrique Artigas de Godoy – UFPB Artur Perrusi – UFPB Josilene Pinheiro Mariz – UFCG Carlos Xavier de Azevedo Netto – UFPB Leticia Andrade – UEMS Charles Pessanha – UFRJ Luiz Gonzaga Teixeira – USP Flávio Munhoz Sofiati – USP, UFSCAR Marcelo Almeida Peloggio – UFC Elisandro Pires Frigo – UFPR/Palotina Maurício Novaes Souza – IF Sudeste MG Gabriel Augusto Miranda Setti – UnB Michelle Sato Frigo – UFPR/Palotina Geni Rosa Duarte – UNIOESTE Revalino Freitas – UFG Helcimara de Souza Telles – UFMG Rinaldo José Varussa – UNIOESTE Iraneide Soares da Silva – UFC, UFPI Simone Wolff – UEL João Feres Junior – UERJ Vagner José Moreira – UNIOESTE Jordão Horta Nunes – UFG APRESENTAÇÃO Um livro sobre Guy Debord é sempre uma boa notícia. Uma dessas notícias que deveriam virar manchete se a mídia não fosse quase iletrada. Este livro, com sua diversidade e aprofundamento, é um espetáculo. Se tivesse de escolher entre todos os intelectuais que li ao longo de uma vida dedicada aos textos, diria que Debord foi o mais importante “pesquisador” do século XX quando se trata de diagnóstico de um tempo. Ele botou o dedo na ferida dos maiores problemas das nossas sociedades. Agora, estamos no hiperespetáculo. Muito mais do mesmo. Debord vive. Ele percebeu o grande salto, o pulo do gato da mercadoria. Não deixa de ser paradoxal nosso interesse de pesquisadores universitários por esse autor nada acadêmico. Nada do que ele escreveu cabe nas regras da ABNT. Nada do que ele pesquisou entra nos padrões da Capes. Nem de qualquer outra instituição de controle da produção do saber. Guy Debord produziu à margem das instituições, nos subterrâneos da ciência ou nos jardins da existência. Ele compreendeu rapidamente que a institucionalização do conhecimento não é um acaso, mas mais um produto a ser embalado e vendido. Na sua crítica da separação caberia uma tese sobre a separação do pensador e do seu pensamento, do homem e da obra, da ciência e da arte, da mente e do mentalizado. O situacionista queria explorar territórios tão próximos e tão distantes, tão familiares e tão proibidos. A sua metodologia era a liberdade, a irreverência, o descobrimento permanente, o cruzamento vertiginoso de fontes, o questionamento, a desmontagem dos esquemas perceptivos, a reflexão, ora. Sim, ele se amparou no marxismo, no materialismo dialético, no materialismo histórico, mas não foi só. Andou muito além do limite. Não farei o resumo de cada texto deste livro debordiano em todas as suas linhas. Direi apenas que a separação é superada. O homem e a obra aparecem reunidos. Debord foi uma luz numa época que dissimulava as suas trevas. Incendiou mentalidades com sua capacidade incomensurável de apontar o dedo para a realidade. Mostrou o papel contemplativo destinado a todos nós. Sintetizou o espetáculo numa fórmula circular: “O que é bom aparece, o que aparece é bom”. Raras vezes o absurdo foi explicado de maneira tão límpida, lúcida e devastadora. Depois disso, admitimos nosso labirinto. Tudo faz sentido. Por que os intelectuais midiáticos aparecem? Porque são bons. Por que os intelectuais midiáticos são bons? Porque aparecem. Como diria o outro, nossos comerciais, por favor. Tudo é mercadoria. Juremir Machado da Silva Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS. PREFÁCIO DESVIO E REMEMORAÇÃO DE GUY DEBORD O livro que ora prefaciamos foi concebido na ocasião de duas efemérides importantes, comemoradas no ano de 2017: em julho, chegamos aos sessenta anos de fundação da Internacional Situacionista (IS, 1957-72) e, em novembro, aos cinquenta anos da publicação de La société du spectacle (1967), principal livro de teoria de Guy Debord, que tratava justamente de realizar uma síntese das principais críticas situacionistas produzidas até então, sobretudo à arte, ao urbanismo, à sociologia, à economia política e às ideologias revolucionárias modernas. O conceito de espetáculo, tal como originalmente formulado por Debord no contexto do segundo pós-guerra (após trinta anos de glórias econômicas e de Welfare State, na França), opera uma atualização das críticas marxiana, do fetichismo mercantil, e lukacsiana, da reificação capitalista, momento em que a vida cotidiana, para além do horizonte de questões ligadas à dominação estatal e à exploração capitalista, já se encontrava inteiramente colonizada pela lógica alienada da produção moderna. Nesse sentido, embora a palavra “espetáculo” designe algo que se oferece à visão e corresponda, assim, a um elemento constituinte da aparência fenomênica do sistema, o conceito não se refere tão somente ao mundo visível-sensível enquanto tal. O trabalho teórico realizado por Debord visava a mais a um esforço de atualização/renovação do método dialético do que propriamente das filosofias de Hegel e Marx. Sua teoria crítica, bem como o inovador repertório conceitual/categorial com o qual ela opera (crítica do espetáculo, realização da arte, urbanismo unitário, psicogeografia), só pode ser compreendida se lida em conexão com o caráter histórico concreto das contradições do movimento revolucionário de sua época. Pouco se entende de La société du spectacle se suas teses são lidas em desconexão com o movimento de ocupações de maio-junho de 1968 e com as lutas que o antecederam, em desconexão com os onze números da revista Internationale Situationniste publicados pela IS em Paris desde 1958. Pouco se entende, portanto, desse livro, ignorando a influência dos situacionistas nas origens do movimento que levaria a França a uma greve de dez milhões de trabalhadores (algo como não se via no país desde a greve geral de 1936) e a uma crise revolucionária como não se via desde a Comuna de 1871 – porém, dessa vez, com um programa mais avançado e mais moderno, que a IS buscou materializar na experiência do efêmero Conseil pour la mantien des occupations [Conselho para a manutenção das ocupações], após denunciar o aparelhamento e a consequente asfixia da democracia direta na ocupação da Sorbonne, como também partir para um diálogo prático com outras forças sociais que não o corrompido e burocratizado meio estudantil. O espetáculo, na inseparável perspectiva debordiana e situacionista, carrega uma significação histórica mais forte do que a vaga noção de que vivemos em uma realidade cada vez mais “desmaterializada” e submetida à dominação total das imagens. Para Debord, não é o advento de instrumentos técnicos de difusão massiva de imagens que dá origem à sociedade do espetáculo, mas antes a destruição do levante espartaquista pelo partido social-democrata alemão (1919), a derrota dos sovietes durante a segunda revolução russa, imposta pela centralização econômico-estatal operada pelos bolcheviques vitoriosos (1917-21), a destruição do soviete de Kronstadt (1921). Em suma, quando a derrota do projeto de autoemancipação proletária, esboçado pela primeira vez na Comuna de Paris, passa a ser imposta ao proletariado insurreto não mais somente pelas velhas linhas de defesa das forças estatais e econômicas burguesas, mas, fundamentalmente, pela emergência do poder da representação operária que, estruturalmente atado às formas políticas e culturais burguesas que diz combater, opõe-se radicalmente, sobretudo em momentos de agudização das lutas, à classe cujos interesses esse poder diz representar. Contra certas leituras “bolchevizantes” de Debord atualmente em voga, é preciso lembrar que os situacionistas defendiam uma forma de organização revolucionária que já não representa a classe, pois não pode reproduzir em si as condições de cisão e de hierarquia que são as da sociedade dominante. Seguindo o mesmo método usado no livro de 1967, em seus Commentaires sur la sociéte du spectacle (1988), Debord encontra, na origem do espetacular integrado – o novo regime fundado a partir da fusão das duas variantes anteriores do espetáculo (a concentrada e a difusa) –, a derrota dos movimentos revolucionários na França e na Itália entre 1968-78, quando se opera uma renovação da função contrarrevolucionária dos aparelhos partidários e sindicais comunistas, dessa vez sob a hegemonia dos stalinistas. A derrota de 1968, o refluxo e a repressão que se abateram sobre as organizações revolucionárias, levariam a IS a se autodissolver no ano de 1972. Àquela altura, a experiência situacionista, absolutamente vinculada ao assenso das lutas anticapitalistas e antiburocráticas desde o final da década de 1950,1 convertia-se em um anacrônico “situacionismo”, em uma ideologia a mais, à venda no varejo das teorias revolucionárias modernas. Processo semelhante ocorrera, primeiramente, com o “marxismo” posterior à derrota da Comuna de Paris, ou com a teoria do comunismo de conselhos entre os anos 1930-40, tornada “conselhismo” após as experiências conselhistas derrotadas nos anos críticos de 1917-21, ou, ainda, com a experiência da autonomia italiana nos anos 1970, convertida em “autonomismo” após a derrota do movimento del ‘77. Os situacionistas, que buscavam cumprir à risca um dos princípios chave d’A sociedade do espetáculo, segundo o qual não se pode combater a alienação sob formas alienadas, estavam bem atentos a esse movimento de recuperação de sua crítica pelo espetáculo. No documento de dissolução da IS, Debord e Sanguinetti identificam, no que chamam de fenômeno pro-situ, o movimento germinal de recuperação, pelo espetáculo, da práxis situacionista, que levaria rapidamente a uma domesticação de seus aspectos mais selvagens. Enquanto esteve vivo, Debord travou esse combate contra a banalização recuperadora de sua teoria crítica do espetáculo com a sabedoria própria dos velhos estrategistas e com a coragem dos jovens revolucionários. Debord sempre se considerou um homem de ação, recusando os rótulos de “pensador”, “filósofo” ou “teórico das revoluções”, que jornalistas e intelectuais insistiam em lhe atribuir. Sua crítica intransigente às separações constituintes da ordem espetacular sempre esteve amparada por uma práxis que se opunha radicalmente ao estilo de vida do intellectuel: “Nunca dei mais que pouquíssima atenção às questões monetárias e absolutamente nenhum lugar à ambição de vir a ocupar alguma brilhante função na sociedade”, diz, em seu Panegírico (1989), o homem que, na juventude, divertia-se ao se autoproclamar um “antiespecialista”, ou “doutor em nada”. Tanto em 1967 como em 1988, Debord se mostra abertamente hostil à pesquisa científico-social universitária (sobretudo à sociologia norte-americana e ao método estruturalista francês); contudo sempre manteve contatos muito cordiais (principalmente após o fim da IS) com diversos “especialistas”, filósofos, sociólogos, historiadores e médicos, como Giorgio Agamben, Anselm Jappe, Greil Marcus, Pascal Dumontier, Jean-François Martos e Michel Bounan. Alguns deles, como Martos e Dumontier, iniciaram o diálogo com Debord no decurso de suas pesquisas acadêmicas sobre a práxis situacionista, as quais resultariam em trabalhos elogiados pelo autor de La sociéte du spectacle. A recepção de suas ideias no Brasil é tardia com relação à de outros países sul-americanos, como a Argentina, que, desde 1976, contava com uma edição pirata de La sociedade del espectáculo. A primeira tradução d’A sociedade do espetáculo para a língua portuguesa é de Afonso Monteiro, publicada pelas extintas Edições Afrodite, de Lisboa, e data de 1972. No Brasil, a primeira tradução foi publicada pela Editora Contraponto somente em julho de 1997, numa edição que reúne quatro importantes textos de Debord: A sociedade do espetáculo (1967), a Advertência da edição francesa de 1992, o Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo (1979) e os Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1988). A partir de novembro de 2001, passa a circular na Internet uma tradução do Coletivo Acrático Proposta, de Campinas (SP), acrescida de uma introdução de Emiliano Aquino à crítica teórica e prática de Guy Debord e da IS. Em 2006, Aquino publica uma parte de sua tese de doutorado em Filosofia, intitulada Reificação e linguagem em Guy Debord, um rigoroso estudo acadêmico que deslocaria o centro receptor da crítica debordiana da Alemanha para o Brasil, apresentando uma interpretação rigorosamente fiel às aspirações intelectuais originais de Debord, em polêmica com a interpretação dos teóricos alemães “críticos do valor” Anselm Jappe e Robert Kurz – ligados ao grupo Exit!, formado em 2004 a partir de uma cisão do grupo Krisis (1989-2004). Jappe é autor de um estudo pioneiro sobre o pensamento de Guy Debord, publicado na Alemanha em 1992 e no Brasil em 1999, pela Editora Vozes. Em 2002, a Editora Conrad publica, pela coleção Baderna, o livro A arte de viver para as novas gerações (também de 1967), do situacionista belga Raoul Vaneigem, além de uma pequena antologia com quatro textos da IS. Entre 1999 e 2004, ecos da crítica situacionista se fizeram presentes no movimento antiglobalização paulistano. Nas universidades brasileiras, o pensamento situacionista de matriz debordiana ainda é pouco explorado, apesar de existirem nesse momento excelentes grupos de pesquisa espalhados pelo Brasil, debruçados no exame de diferentes aspectos de sua herança intelectual. Em 2017, a Editora Veneta (antiga Conrad) reeditou A arte de viver para as novas gerações que, na ocasião de seu cinquentenário, foi acrescida de um novo prefácio, recentemente escrito por seu autor. A sociedade do espetáculo também ganhou, no ano de 2017, uma nova edição “comemorativa” da Contraponto. A irrupção, no início do século XXI, de movimentos de contestação anticapitalistas e antiautoritários em diversos pontos do país, movimentos antiglobalização, movimentos pela gratuidade da tarifa do transporte urbano, movimentos de ocupação de universidades, atingiu seu “ponto de não retorno” em junho de 2013. Em 2015-16, o aspecto não vencido do movimento vencido das “jornadas de junho” seria recolocado em jogo pelo fértil movimento autônomo (em relação a partidos e representações estudantis tradicionais) dos estudantes secundaristas contra as reformas educacionais governamentais, principalmente nos estados de São Paulo, Goiás e Paraná. Em junho-julho de 2013, a revogação do aumento das passagens de ônibus na capital paulista resultava de uma vitória da combinação de duas táticas inteligentemente conduzidas por dois movimentos autônomos (em relação a partidos e sindicatos), o Movimento Passe Livre (MPL) e os Black Blocs. De modo semelhante, os secundaristas de São Paulo, que forjaram, em novembro-dezembro de 2015, de modo autônomo, suas próprias mediações (como a experiência associativa e comunicativa aglutinada em torno do jornal digital O mal educado), também sairiam vitoriosos, forçando o governo a recuar em relação à chamada “reorganização escolar”, um eufemismo governamental criado para dissimular o real fechamento de salas e escolas na rede pública de Ensino Básico do estado. Ora, se há uma atualidade, ou um uso revolucionário possível das ideias de Debord, meio século depois da publicação de sua teoria crítica do espetáculo, ela reside justamente em movimentos de negação como esses, de ruptura com a lógica da ordem espetacular. É hora de voltarmos ao biênio 1967-68 e, portanto, à relação entre a crítica debordiana de 1967 e a crise da sociedade do espetáculo, que se manifesta radicalmente em 1968. As principais teses debordianas de 1967 seriam, logo no ano seguinte, confirmadas pela história, justamente porque elas não foram de encontro ao movimento que explodiria nas barricadas da Rua Gay-Lussac no mês de maio, mas chegaram com ele. Debord e os situacionistas desenvolveram o ponto de vista antecipador do estrategista (aquele que se coloca no ponto de vista dos atores), por isso foram os únicos (até onde se sabe) a prognosticar o retorno das tentativas revolucionárias de transformação social, o segundo assalto proletário contra a sociedade de classe, como Debord denominava, em novembro de 1967, o movimento que efetivamente eclodiria alguns meses mais tarde nas ruas do Quartier Latin, em Paris. O importante, no entanto, não é que Debord tenha dito isso em 1967 e, portanto, antes de 68, mas que ele o tenha dito. Pois, a despeito de a França ainda permanecer calma em meados de 1968, a agitação de coloração libertária e revolucionária já era, no entanto, bem perceptível nas ruas de vários países modernos, como Japão, Polônia, Tchecoslováquia, Inglaterra, Bélgica, Alemanha, Itália (cuja rebelião estudantil antecede a francesa em um ano), Brasil, Venezuela, México e Estados Unidos. Nesse sentido, o ano de 2018 marca outra efeméride importante para a concepção debordiana de história: o cinquentenário do movimento de Maio de 68.2 Porém, efemérides revolucionárias como essa são sempre dilaceradas pela contradição entre comemoração e rememoração. A comemoração de um evento revolucionário passado, trazendo-o de volta à mente, apenas na forma unilateral da lembrança, acaba por confiná-lo ao passado que, petrificado, conclui sua relação com o devir histórico. Já a rememoração de uma situação revolucionária passada pode encontrar uma via de acesso ao presente pelo desvio do passado. Opera, nesse sentido, uma atualização/renovação daquilo que, no presente, pode obter um sentido prático. Voilà tout! O desvio [détour], na perspectiva debordiana, refere-se mais a uma relação dialética com o devir histórico, nucleada por uma perspectiva presentificada, do que propriamente a um inofensivo método de produção cultural baseado na ressignificação de elementos estéticos preexistentes. Rememorar uma situação revolucionária passada significa também recolocá-la em jogo no agora, trazê-la de volta à vida histórica. Assim procedendo, o historiador materialista, em oposição ao historiador historicista (conforme a distinção operada por Walter Benjamin em suas teses Sobre o conceito de história, de 1940), torna-se capaz de ler a história de modo inédito. Tal ineditismo identifica-se imediatamente com o ponto de vista dos vencidos, isto é, das vítimas históricas da opressão e da exploração, e de todos aqueles que a combateram, em todas as frentes, inclusive nas trincheiras historiográficas. A aposta contida neste livro reside, portanto, num retorno ao próprio Debord. Mas não por um interesse ingênuo pelo passado de uma teoria revolucionária. Trata-se, sim, de um retorno, mas de um retorno visto como um desvio de volta ao nosso tempo. Portanto, caros leitores, desejamos a vocês uma boa leitura, isto é, atenta ao tempo presente! Maria Ribeiro do Valle Professora livre-docente do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCLAr). Erick Quintas Corrêa Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGSC) da Unesp/FCLAR, bolsista Capes. SUMÁRIO 1 UM ESBOÇO DE PERFIL MARA ROVIDA 1.1 Cineasta e militante 1.2 Ingenuidade ou clareza de ideias? 1.3 Debord, Lefebvre e o urbano 1.4 Um mecenas, a esposa e a morte 1.5 Um perfil esboçado Referências 2 Guy Debord e a crítica da sociedade do espetáculo CLÁUDIO NOVAES PINTO COELHO 2.1 O conceito de sociedade do espetáculo 2.2 A revolução segundo Debord 2.3 A crítica da sociedade contemporânea Considerações finais Referências 3 ARTE CONSUMADA: DA SEPARAÇÃO À CONTEMPLAÇÃO, SEM DESVIOS MÁRCIA ELIANE ROSA 3.1 A arte como participação 3.2 A separação como raiz do processo 3.3 Da alienação à contemplação 3.4 Uma parte para (dois) desvios Referências 4 As experiências humanas enquanto mercadorias JHONATHAN W. S. PINO 4.1 O consumo enquanto espetacular integrador 4.2 A conversão da produção e consumo em estilo de vida Pequenas considerações Referências 5 Unidade e divisão na aparência: o espetáculo e suas contradições DEYSI CIOCCARI 5.1 Uma breve introdução ao capítulo III 5.2 O capítulo III 5.3 O poder espetacular difuso, o concentrado e sua unificação: o poder integrado Considerações finais Referências 6 Autoemancipação contra burocratização: o proletariado como sujeito e como representação ERICK QUINTAS CORRÊA 6.1 Considerações introdutórias acerca da centralidade do capítulo IV d’a sociedade do espetáculo 6.2 Autoemancipação: o proletariado como sujeito 6.3 Burocratização: o proletariado como representação 6.4 Às portas da revolução de 1968: um prognóstico do “segundo assalto proletário contra a sociedade de classes” Referências 7 A estrutura e a conjuntura no tempo histórico de Debord TATHIANA SENNE CHICARINO 7.1 A multiplicidade do tempo histórico como recurso metodológico 7.2 A sociedade do tempo cíclico e o seu rompimento 7.3 O tempo espetacular: a transformação do tempo irreversível combinada à mobilidade do tempo cíclico Considerações finais Referências 8 TEMPO E HISTÓRIA PARA GUY DEBORD GILBERTO DA SILVA E VIVIAN PAIXÃO 8.1 A essência humana é idêntica ao processo histórico 8.2 O tempo cíclico 8.3 Tempo irreversível: o tempo daquele que reina 8.4 O renascimento 8.5 A burguesia e o tempo irreversível Considerações Referências 9 O TEMPO ESPETACULAR: ALGUMAS REFLEXÕES VANDERLEI DE CASTRO EZEQUIEL 9.1 O tempo em Debord 9.2 Tempo pseudocíclico 9.3 Tempo-mercadoria 9.4 Tempo e consciência de classe Considerações Referências 10 GUY DEBORD E O ESPAÇO URBANO: O DIREITO À CIDADE E A CIDADE COMO DIREITO FÁBIO DEL NERO 10.1 Planejamento urbano: uma abordagem debordiana 10.2 A parceira público-privada: a crítica debordiana do espaço 10.3 O “direito à cidade” e a retomada da dialética 10.4 A “cidade de direito” e a disputa pela hegemonia 10.5 O vagabundo em deriva: Debord e o espaço comunicacional Referências 11 A NEGAÇÃO E O CONSUMO DA CULTURA GILBERTO DA SILVA 11.1 11.2 11.3 11.4 11.5 11.6 A procura da unidade perdida O barroco e a arte que perdeu seu centro Dadá, o surreal e a incapacidade de superação da arte Crítica à sociologia americana Boorstin e a imagem espetacular Crítica ao estruturalismo 11.7 O desvio como técnica 11.8 A negação da cultura Conclusão Referências 12 A CRÍTICA DA CULTURA NA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO EMERSON IKECOAN 12.1 Alienação e contemplação passiva na sociedade do espetáculo 12.2 A dialética e a negação da cultura 12.3 O estilo da crítica e o desvio Considerações Referências 13 A IDEOLOGIA MATERIALIZADA VIVYANE GARBELINI CARDOSO VICTOR VARCELLY MEDEIROS FARIAS 13.1 Debord, dialética e diálogo desviante com a tradição filosófica 13.2 Ideologia, falsa consciência e o triunfo do recorte 13.3 Dialética, dialogismo, democracia Considerações Referências SOBRE OS AUTORES 1 UM ESBOÇO DE PERFIL Mara Rovida Todo perfil, biografia ou história de vida tenta apreender, ainda que parcialmente, a alma do protagonista. O personagem central dessas narrativas é nomeado, descrito, investigado e minimamente identificado. Esse modelo de trabalho não parece muito simples diante da complexidade da natureza humana, mas certamente alguns personagens impõem uma dificuldade extra. Guy Debord é, sem dúvida, um desses protagonistas históricos que dificultam qualquer tipo de enquadramento ou definição mais corriqueiro. É quase impossível identificá-lo por profissão, dada a variedade de investidas de sucesso realizadas desde muito jovem. Entendê-lo por sua obra é um desafio propositalmente elaborado por ele mesmo. Afinal, o espetáculo “é o contrário do diálogo”.3 Esse diálogo demanda uma participação ativa entre os sujeitos em interação, não é possível estabelecê-lo se uma das partes for apenas contemplativa, passiva. Assim Debord, o provocador, não se deixa tomar/domar facilmente. Seu texto, seu contexto, suas crenças, suas contradições, sua arte extrapolam os círculos conceituais mais comuns e demandam um esforço de quem tenta apreendê-lo. “Pour savoir écrire, il faut avoir lu. Et pour savoir lire il faut savoir vivre”4. Diante de figura tão ímpar, não é prudente se propor a um perfil definitivo e acertado, mas talvez um esboço que ajude a apreendê-lo no tempo e no espaço. 1.1 Cineasta e militante Guy Debord nasceu em 28 de dezembro de 1931, em Paris. Passou parte de sua juventude com certo conforto, mas já demonstrava desacordo com o modo de vida e com os padrões de sua época. Seu anseio se pautava numa busca por formas alternativas de viver com mais prazer.5 Esse desejo começa a ganhar contornos de possibilidade em 1951, durante o Festival de Cinema de Cannes, quando Debord entra em contato com uma produção cinematográfica dos Letristas do grupo de Isidore Isou.6 O filme inspira o jovem Debord e uma relação é estabelecida naquele momento com Isou e seus companheiros, que já eram reconhecidos por suas intervenções públicas em peças teatrais, shows e exposições. De acordo com Jappe, essas intervenções se resumiam a pequenas situações que desconcertavam o público por sua espontaneidade e surpresa, como a interrupção de uma peça sendo encenada. Os letristas do romeno Isou, nascido em 1924, serão a inspiração para a estreia de Debord como cineasta. Aos 20 anos, em 1952, Guy Debord exibe seu primeiro filme, Hurlements en faveur de Sade. Já em seu primeiro trabalho, Debord irá experimentar a arte de vanguarda como intervenção, como participação social (política), contrapondo-se à arte-contemplação. Ele quer provocar sensações, incomodar, ele quer estabelecer diálogo com o público. Por isso, seu primeiro filme é uma sucessão de telas em branco, com falas, e preto, com silêncio.7 O estranhamento promovido é ainda hoje perceptível, principalmente em audiências desavisadas. Debord pensava-se como cineasta, apresentava-se como um artista das telas. Mas sua concepção de arte e de artista não se alinha à ideia de genialidade e de autores como pessoas destacadas a serem veneradas. Para Debord, arte e vida se misturam e é a experimentação o que permite a arte como totalidade da vida.8 Em sua busca por uma experiência que permitisse uma vida de mais prazer, Debord levará às últimas consequências sua máxima, pichação a ele atribuída em 1968, “Ne travaiez jamais”9. No mesmo ano de sua estreia como cineasta, ele irá formar, com três amigos, a Internacional Letrista.10 Seu grupo era obviamente inspirado em Isou e seus companheiros, com a diferença de congregar pessoas das mais diversas origens. A IL de Debord sempre foi mantida em número reduzido de integrantes. Em parte isso se devia ao nível de exigência do próprio Debord, que requeria uma atitude alinhada ao discurso. Nenhum passo aquém era aceito, assim incontáveis brigas e desentendimentos resultavam na expulsão de membros com recorrência.11 Os doze integrantes que formavam o núcleo duro do grupo incluíam Alice Becker-Ho, esposa de Debord.12 Os integrantes da Internacional Letrista se encontravam em bares e lugares underground, muito antes desse tipo de espaço entrar na moda.13 Era nesse ambiente fora do circuito corriqueiro que os letristas planejavam, discutiam e refletiam sobre suas ações. Segundo Jappe,14 o programa que começa a ser desenvolvido pelos letristas da IL é o de superação da arte como contemplação, da arte como esfera separada da vida. Debord coloca em andamento um plano de revolucionar a vida cotidiana,15 o que só seria possível pela intervenção concreta em sociedade. Esse grande objetivo faz com que as pesquisas do grupo se encaminhem na direção de outros ilustres pensadores da época. Nesses novos encontros que se sucedem na trajetória debordiana, as questões do espaço urbano trarão direcionamentos tão relevantes que produziriam mudanças até mesmo no nome do coletivo integrado por Debord. Se a cidade é o espaço que parece concentrar a dinâmica cotidiana nas sociedades ocidentais capitalistas, ele se tornará alvo das atenções dos vanguardistas da IL. Por isso, Debord e seus companheiros começam a se interessar cada vez mais pelo espaço urbano e pelas questões abarcadas por esse cenário. De acordo com Jappe, “O interesse dos letristas pelo urbanismo é fruto da ‘psicogeografia’, termo que utilizam para designar a observação sistemática dos efeitos produzidos pelos diferentes ambientes urbanos sobre o estado de espírito”.16 Serão publicados inúmeros textos com descrições de partes da cidade e observações bastante precisas dos lugares por meio dessa noção ou técnica. De acordo com esse padrão de trabalho, tal processo é executado durante uma dérive, “técnica de passagem rápida através de vários ambientes”; são passeios de mais ou menos um dia durante os quais a pessoa “se entrega às solicitações do lugar e dos encontros”.17 Obviamente, quanto mais conhecer o espaço, mais o sujeito da dérive poderá escolher, No entanto, apenas o “Urbanismo Unitário” poderá fornecer uma verdadeira solução: a construção de ambientes que permitam, não expressar, mas suscitar novas sensações. O interesse por tal arquitetura antifuncionalista aumenta durante a agitação letrista e constituirá um dos primeiros pontos de identificação com os grupos artísticos europeus que irão convergir, de seguida, para a Internacional Situacionista.18 As letras se mostram insuficientes para o audacioso plano revolucionário em curso. Para dar conta dessa demanda, será criada a Internacional Situacionista (IS), que se dedicará a diferentes frentes de ação e terá tamanha organização que publicará, de 1958 a 1969, 12 edições da revista Internationale Situationniste.19 Na primeira edição da revista, Debord assina um pequeno texto que responde à crítica feita por um amigo, Henri Lefebvre,20 e os situacionistas apresentam as marcas de sua visão revolucionária. • Situação construída: Momento da vida, concreta e deliberadamente construída pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de eventos. • Situacionista: O que se relaciona com a teoria ou a atividade prática de uma construção das situações. Aquele que se dedica a construir situações. Membro da Internacional Situacionista. • Psicogeografia: Estudo dos efeitos precisos do meio geográfico conscientemente organizado ou não, que age diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos. • Deriva: Modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem rápida através de ambiências variadas. Designa também a duração do exercício contínuo desta experiência. • Urbanismo unitário: Teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que se conjugam na construção integral de um meio ambiente dinamicamente ligado a experiências de comportamento. • Cultura: Reflexo e prefiguração, em cada momento histórico, das possibilidades de organização da vida cotidiana; complexo da estética, dos sentimentos e dos costumes, pelo qual uma coletividade reage sobre a vida que lhe é objetivamente dada por sua economia. • Decomposição: Processo pelo qual as formas culturais tradicionais destruíram a si próprias, sob o efeito do aparecimento de meios superiores de dominação da natureza, permitindo e exigindo construções culturais superiores. Distingue-se entre uma fase ativa de decomposição, demolição efetiva das velhas superestruturas – que cessa nos anos 30 –, e uma fase de repetição, que domina desde então. O atraso na passagem da decomposição a construções novas está ligado ao atraso na liquidação revolucionária do capitalismo.21 Os situacionistas eram ferrenhos críticos do establishment, dos vanguardistas – incluindo os surrealistas com quem contribuíram apenas uma vez, em 1954, contra as comemorações do centenário de Rimbaid22 –, do urbanismo funcionalista, dos intelectuais da academia. Sua análise da sociedade do século XX baseia-se no deslocamento de alguns elementos do pensamento marxiano, como a luta de classes, retirada da economia e pensada no espaço da cultura e do cotidiano.23 Nessa abordagem, os situacionistas indicam que a revolução – necessária e, nessa visão, possível – dar-se-á pelas artes no campo das subjetividades e só dessa forma ela será eficaz.24 Os situacionistas repudiavam no surrealismo precisamente a concepção idealista da história, que a encara apenas como a luta entre o irracional e a tirania do lógico-racional. De igual modo, os situacionistas não gostavam da desordem enquanto fim em si mesma: segundo Debord ‘a vitória será daqueles que souberem provocar a desordem sem armas’.25 De certa forma, essa perspectiva dialoga com os conceitos centrais de Debord e, ao mesmo tempo, ajuda a compreender o pensamento apresentado de forma tão condensada nas teses que compõem A sociedade do espetáculo, de 1967, e Comentários sobre a sociedade do espetáculo, de 1988. 1.2 Ingenuidade ou clareza de ideias? A vida, como ação revolucionária que promove mudanças na visão de mundo estabelecida. Provocar situações que produzam a transformação das subjetividades. A arte como totalidade da vida e não como esfera separada. Uma arte efêmera que não foi feita para durar, mas para provocar sensações.26 Os objetivos que mais parecem slogans foram encampados pelos situacionistas. Os situacionistas buscavam expressar sua percepção, ainda que confusa e fragmentada (de certa forma ingênua), da importância de um novo fenômeno no campo cultural que iria transformar radicalmente a vida cotidiana e as estruturas simbólicas da sociedade.27 O ponto de apoio para essa práxis revolucionária se dá na leitura de sociedade desenvolvida pelo grupo e apresentada por Debord em seus textos mais conhecidos. Um autor de poucas palavras e muita densidade, Guy Debord esmiúça essa análise do capital atualizado em espetáculo. Para quem pregava o não trabalho, o autor era, sem sombra de dúvidas, um pesquisador organizado e esmerado, que produziu, durante 40 anos de estudos, mais de 1.400 fichas com anotações e diálogos com autores que o antecederam.28 Desse árduo trabalho intelectual resulta a ideia de Sociedade do Espetáculo, isto é, o momento atual da sociedade capitalista em que se alcança o auge da acumulação que transforma o capital em imagem.29 “Uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.30 A definição de espetáculo apresentada pelo autor indica uma noção de sociedade, uma visão crítica sobre a dinâmica da vida nesse período histórico. Mais do que uma teoria pós-moderna das mídias, como propagou Baudrillard,31 Debord desenvolveu uma teoria social total que indica a esfera da arte e da cultura como alternativa revolucionária para o domínio do espetáculo. Jappe chama a atenção para o fato de que Debord, ao tratar do conceito de espetáculo, deixa clara sua posição sobre a amplitude e complexidade da realidade social. Se “o espetáculo é, ao mesmo tempo, a própria sociedade e uma parte da sociedade”,32 ele não domina totalmente a realidade, embora pareça estar entremeado em todas as esferas da vida. O mundo, nessa perspectiva, é um reflexo infiel do sujeito, isso porque a distinção sujeito-objeto é uma forma de oposição à reificação. Se o sujeito não se confunde com a materialidade do entorno, sente-se sujeito dessa materialidade, ele será capaz de ‘alterar’ a ordem das coisas, ele é capaz de ultrapassar a alienação.33 É justamente nessa possibilidade que Debord depositará todas as suas expectativas revolucionárias, principalmente no período de atuação dos situacionistas, que culmina em Maio de 1968. A elaboração e a difusão da teoria de Debord tiveram mais o caráter de uma aventura apaixonante do que o de um seminário de estudos marxiológicos. Enquanto a futura “elite” preparava a sua carreira na École Normale Supérieure, no Quartier Latin, o jovem Debord, a poucos passos, em botequins a evitar por qualquer estudante respeitável, iniciava uma trajetória que havia de leva-lo, também a ele, a exercer uma certa influência sobre o mundo.34 Essa influência à qual se remete Jappe certamente tem seu ápice em 1968, apesar da discordância dos situacionistas, especialmente de Debord, em se tornarem exemplos de ativistas ou artistas. Os situacionistas pregavam outro tipo de revolução e não se colocavam como vanguarda, como modelo a ser seguido, mas como simples detonador de algo que seria promovido por iguais. Para eles, não havia necessidade de fazer discípulos; muito pelo contrário, eles se viam como um pequeno grupo que tinha por objetivo manter uma participação em alto nível naquele processo de transformação social.35 Mas em maio de 1968, os slogans dos situacionistas e de Debord circularam e, à revelia de sua vontade, tornaram-se fonte de inspiração dos jovens que invadiram a Sorbonne e tomaram as ruas na França. A sequência é um resfriamento e a desarticulação de um movimento que prometeu mudar a ordem das coisas, mas acabou muito rapidamente. Nesse período, também a alta rotatividade dos membros da Internacional Situacionista (IS) implica na desarticulação e consequente extinção do grupo. Assim, a IS se dissolve na primavera de 1972.36 1.3 Debord, Lefebvre e o urbano Debord não era afeito aos intelectuais de sua época. Colecionava inimigos na academia e o fazia propositalmente porque sua teoria não poderia ser dissociada da práxis cotidiana. Desprezava aqueles que viviam em desacordo com os discursos que proferiam. Sua postura rígida promoveu isolamento por muitos períodos em sua trajetória, com algumas poucas exceções. O sociólogo (urbanista) Henri Lefebvre é uma dessas parcas exceções de figuras ligadas à Universidade – e também às instâncias políticas da época. Ele foi membro do Partido Comunistas Francês (PFC) por muitos anos, com quem Debord e seus companheiros estabeleceram relações com alguma duração. Ainda na Internacional Letrista, a técnica do détournement (desvio) começa a ser trabalhada. A ideia é utilizar o que já existe – seja forma de expressão ou modelo de arte, seja a estrutura da própria cidade –, mas atribuindo um novo sentido, um novo significado. Essa técnica se pauta por uma relação dialética entre desvalorização e revalorização em que se nega o valor primeiro atribuído e o resultado é um novo sentido para o alvo do détournement (Jappe, 2008). A aplicação desses desvios não se restringe a uma produção artística, cultural ou urbana. O pensamento feito em texto também pode ser e é alvo desse tipo de ação. A sociedade do espetáculo de 1967 é talvez um dos mais densos trabalhos em que a prática do desvio é usada. “Reconhecer todas as citações détournées presentes no texto exige uma sólida cultura”.37 Com o objetivo claro de colocar em prática a experimentação da ciência das situações pelo détournement, os pioneiros membros da Internacional Situacionista, criada em julho de 1957 em Cosio d’Arroscia, costa da Ligúria, se organizam. A arte deixa de ser uma forma de resgatar velhas emoções e passa a ser vista como meio para promoção de novas experiências inseridas no cotidiano e não apartadas da vida comum. “O teatro de operações será a vida quotidiana”.38 Nessa perspectiva de arte como totalidade da vida, a dicotomia entre momentos artísticos e momentos banais é colocada em discussão. Os situacionistas defendem a arte que contribui com a criação de situações, uma arte que permite a transgressão. Assim a cidade situacionista é aquela em que o Urbanismo Único pode ser vivenciado, isto é, as situações podem ser criadas e as experiências que elas permitem também.39 Como a cidade se torna palco essencial desse projeto revolucionário, a questão urbana passa a ser estudada, refletida e discutida por Debord e seus companheiros. É dessa forma ou por esse interesse que Henri Lefebvre é “descoberto” pelos situacionistas. Essa aproximação rendeu uma amizade e a mútua admiração entre Debord e Lefebvre. Segundo Jappe, Lefebvre e Debord se encontram no final da década de 1950, tendo ambos chegado a ideias, por vias diferentes, muito semelhantes. Durante alguns anos, os dois foram muito próximos intelectual e pessoalmente, porém esse é, como outras tantas relações de Debord, um encontro que acabou mal. “[...] segundo Lefebvre, ‘Uma história de amor que acabou mal’”.40 Mas durante o período de proximidade, Debord passou a frequentar as reuniões do grupo de pesquisa de Lefebvre e esse é talvez o único intelectual ligado à universidade que ganha o respeito dos situacionistas. Tal relação inclui uma participação ativa de Debord nos encontros do citado grupo, e é nesse ambiente que ele fará uma conferência em maio de 1961, posteriormente publicada na revista Internationale Situationniste, denominada “Perspectives de modifications conscientes dans la vie quotidienne”. Segundo Jappe, esse texto é muito parecido com – e em alguns pontos a estrutura das frases e até as palavras se repetem – o segundo volume de Critique de la vie quotidienne de Lefebvre.41 Quando rompem, ambos se acusam mutuamente de plágio, o que parece contraditório da parte dos situacionistas porque a ideia de apropriação (que beira a noção de plágio) é defendida na lógica do détournement. Apesar do rompimento, Lefebvre manteve seu status de único intelectual aceito e respeitado não só por Debord, mas também pelos situacionistas. A indisposição do grupo se estendia aos defensores de um marxismo apoiado nas revoluções da URSS, da China e de Cuba. Diferentemente daquilo que estava em voga na época entre os intelectuais de esquerda, os situacionistas não economizavam em críticas a essas experiências.42 Para Debord, o exemplo soviético resultava num reino da ideologia e da mentira. A noção de espetacular concentrado corresponde justamente a essa experiência revolucionária falha que cristalizou no poder a classe burocrática que passou a ser detentora dos meios de produção.43 A União Soviética é “denunciada” como uma sociedade de classes, uma forma de capitalismo de estado, na voz de Debord, o que não era comum na época entre os teóricos de esquerda.44 1.4 Um mecenas, a esposa e a morte Como todas as passagens da vida e obra de Debord são permeadas de um certo inusitado, não seria de tudo diferente a presença, a relação e a história de seu maior incentivador. Gérard Lebovici, empresário ligado ao mundo das artes cinematográficas, atuará como mecenas de Debord, permitindo ao autor publicar seus livros e produzir parte de seus filmes. A reedição de A sociedade do espetáculo na década de 1970 será promovida por Lebovici. Assim como Debord, seu mecenas mantém uma relação conturbada com a imprensa e com o establishment da época. Sua editora Champ Libre, pela qual a principal obra de Debord é reeditada, tem por especialidade a publicação de trabalhos controversos com críticas que levantam suspeitas. O mecenas de autores de ultraesquerda, como vários dos situacionistas, é ao mesmo tempo um “capitalista afortunado”.45 Lebovici colecionava desafetos e é assassinado em circunstâncias estranhas em 1984. Debord será alvo de desconfiança e passa a ser observado como suspeito de envolvimento com grupos que estariam por trás dessa tragédia, que nunca foi totalmente esclarecida. Em 1985, Debord publica Considérations sur l’assassinat de Gérard Lebovici, texto em que fala da morte do mecenas, mas em vez de apresentar a vítima como protagonista, mantém a si próprio em primeiro plano na narrativa e mais uma vez aproveita a situação para polemizar, como lhe era típico.46 Casado com Alice Becker-Ho, ou Alice Debord, no início dos anos 1970, Debord viveu entre várias cidades de diferentes países desenvolvendo seus trabalhos.47 Alice, integrante ativa da Internacional Situacionista, acompanhava Debord nessa trajetória. É ao lado de sua esposa que Debord tomará uma de suas mais importantes definições. Debord sofria, em estágio avançado, de polineurite ou polineuropatia alcóolica. A enfermidade é, por sua própria caracterização na literatura médica, decorrente do alcoolismo crônico, uma das marcas de Debord. O autor, cineasta e militante não apenas fazia dos bares e do cenário underground seu ponto de encontro, seu espaço de trabalho, como tinha nesses lugares uma vivência ou imersão na embriaguez severa e constante. O alcoolismo acentuado e longevo – Jappe (2008) comenta que Debord não apenas bebia constantemente, mas o fazia em demasia –, aliado a uma alimentação deficiente e pobre em proteína e outras vitaminas essenciais, resultou num quadro crônico de dores musculares, atrofias, câimbras e outros sintomas típicos desse mal. Em 30 de novembro de 1994, Debord decide colocar fim no sofrimento provocado pela polineurite alcoólica, decorrente de sua vida boêmia marcada pelo abuso do álcool. Com um tiro de espingarda no coração, o autor de A sociedade do espetáculo sai de cena.48 1.5 Um perfil esboçado Debord levou o exercício de ser sujeito da experiência às últimas consequências. Dessa forma, ele manteve sob sua própria autoria cada manifesto ou manifestação de sua arte, de seu pensamento e também de sua existência. O ápice dessa atuação em sociedade, que longe de se qualificar como narcísica é enfática defesa do indivíduo como sujeito da realidade, pode ser encontrado em Panegírico.49 Nessa que é uma de suas últimas produções, ele vai discutir sua visão teórico-prática a partir de sua própria experiência. Se não havia intenção de se colocar sob holofotes, ele foi, nesse aspecto, vencido por sua própria trajetória de vida. À sua revelia, talvez, Debord hoje é sujeito de fama, celebrado por uns, criticado por outros, mas sobretudo reconhecido como vanguardista e revolucionário que acreditava na transformação do mundo. A alternativa ao espetáculo, seu principal objetivo durante anos, era mais do que um sonho, era uma meta possível e que, por um breve momento, pareceu tangível. Para alguns, a ingenuidade de Debord e de seus companheiros era flagrante. O mundo em que vivemos não permite brechas tão facilmente aproveitáveis. Mas, sem sombra de dúvidas, o legado debordiano é definido por sua práxis, pela defesa de uma postura alinhada ao discurso. O conjunto de todas as suas teses tem muito mais força nesse legado porque faz parte de um pensamento balizado pela ação real e concreta. Debord, que nunca trabalhou para o capital, percebeu e apontou as brechas da dinâmica social capitalista que serviriam de apoio para uma mudança de comportamento no sentido mais profundo, uma mudança subjetiva. Para ele, a superação do espetáculo se daria de dentro, em outras palavras, pelo próprio espetáculo. Assim seu nome é hoje sujeito e verbo de uma visão que parte da análise e pretende chegar à transformação de uma realidade que permeia a vida, mas nunca foi e nunca será a totalidade da realidade. Como sujeitos que produzem a realidade, as pessoas podem ser donas de seu destino e, por isso, seriam capazes de mudar a experiência cotidiana. Para Debord, nada mais lógico, nada mais esperado. Vencer o espetáculo e retomar o controle pela ação interventora é mais do que uma possibilidade, é uma experiência que ele próprio degustou em sua trajetória. O que Debord parece nos propor é que vivamos intensamente a experiência de sermos sujeitos do cotidiano, sujeitos da história. Referências BELLONI, Maria Luiza. A formação na sociedade do espetáculo: gênese e atualidade na atualidade. Revista Brasileira de Educação, v. 1, n. 22, Rio de Janeiro, p. 121-136, jan./fev./marc./abr. 2003. BNF. Guy Debord – un art de la guerre. Communiqué de presse, Bibliotèque Nacional de France François-Mitterrand (Bnf), Paris: 27 de mar. a 13 de jul. de 2013. COELHO, Cláudio Novaes Pinto. Indústria cultural e sociedade do espetáculo: a dimensão política da crítica cultural. Libero, v. 19, n. 37, São Paulo, p. 31-42, jan./jun. 2016. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. ______. Panegírico. São Paulo: Conrad, 2002. JAPPE, Anselm. Guy Debord. Lisboa: Antígona, 2008. LÖWY, Michael. A estrela da manhã – surrealismo e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 2 GUY DEBORD E A CRÍTICA DA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO Cláudio Novaes Pinto Coelho Um revolucionário. Essa é a melhor definição possível para Guy Debord. Ele nasceu em Paris, no dia 28 de dezembro de 1931, e morreu em Auvergne, no dia 30 de novembro de 1994. Produziu uma das principais interpretações sobre a sociedade capitalista do século XX, mas nunca concluiu um curso universitário. Participante de movimentos artísticos de vanguarda, lutou contra a separação entre a arte e a vida. Nasceu numa família de fabricantes de calçados, mas defendeu a revolução proletária contra o capitalismo. Vítima de uma doença degenerativa, preferiu se matar. Debord destacou-se como cineasta, pensador crítico do capitalismo e a principal liderança de um dos grupos que influenciaram o movimento de maio de 1968 na França, a internacional situacionista. A luta contra a passividade esteve presente em toda a sua trajetória. Em 1952, lançou um filme, Hurlements en faveur de Sade, cujos 24 minutos finais eram marcados pela tela escura e pela ausência de qualquer som. O público reagiu de forma indignada, saindo da condição de meros espectadores. Em seu texto mais significativo, o livro Sociedade do espetáculo, publicado em 1967, Debord defendia a necessidade de se combater o papel alienante que as imagens estavam desempenhando na sociedade capitalista. No ano seguinte, a Internacional Situacionista incentivava a ocupação das escolas e das fábricas por estudantes e operários, defendendo uma transformação revolucionária do capitalismo, a partir da formação de conselhos operários que dariam origem a uma sociedade baseada na autogestão das instituições sociais pelos que fazem parte delas. A teoria e a prática caminham juntas em Debord: há uma grande coerência entre a sua vida e a sua obra. Crítico radical do capitalismo, não se deixou capturar por nenhuma das suas instituições. Crítico da burocracia, nunca foi militante partidário, mesmo de partidos de esquerda, assim como rejeitava a condição de socialista para países como a União Soviética ou a China na época de Mao. Chamar a atenção para a importância da interpretação de Debord sobre a sociedade capitalista é, ao mesmo tempo, refletir sobre um pensador vinculado à teoria crítica, que recusava a transformação das ideias de Marx em dogmas. Crítico do uso dos meios de comunicação para o incentivo da produção e do consumo de mercadorias e para a manutenção de relações de poder, ele é um pensador que defende o diálogo como base para a construção do conhecimento e de uma sociedade, de fato, democrática. 2.1 O conceito de sociedade do espetáculo Com o conceito de sociedade do espetáculo, Debord revolucionou a maneira como compreendemos a sociedade capitalista. Adepto da teoria crítica, corrente teórica que se baseia no pensamento de Marx, praticava com relação a esse autor, assim como com outros, o que caracterizou como “desvio”. O sentido original de um conceito era desviado, e outros sentidos eram acrescentados. Trata-se de reconhecer a dimensão histórica dos conceitos, que devem ser revistos e atualizados, como é a proposta da teoria crítica. Para Marx,50 a principal característica do modo de produção capitalista é o processo de acúmulo de capital. Sendo que, nesse modo de produção, as relações sociais acontecem mediante a presença das coisas (mercadorias). Debord “desvia” o sentido das observações de Marx, afirmando que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”.51 Além disso, para ele “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.52 O “desvio”, nesse caso, não é uma negação do sentido original. Continua a haver acúmulo de capital e relações sociais mercantilizadas; só que, agora, o acúmulo de capital é inseparável do acúmulo de espetáculos, e as relações sociais mercantilizadas acontecem mediante a presença de coisas e imagens: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”.53 A existência da sociedade do espetáculo depende do desenvolvimento das forças produtivas que, no caso da sociedade norte-americana, a mais desenvolvida do ponto de vista capitalista, foi alcançado a partir da década de 1920. Com a implantação das linhas de montagem nas fábricas, o crescimento da capacidade de produção fez com que fosse necessário que mesmo os operários se transformassem em consumidores das mercadorias. O capitalismo precisou desenvolver estímulos para que o consumo das mercadorias passasse a ocupar o lugar central nos momentos de lazer. O uso dos meios de comunicação, em especial com a divulgação de imagens publicitárias, passou a ser indispensável: “O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo”.54 A sociedade do espetáculo ampliou a alienação inerente ao capitalismo. Agora não é mais apenas a realidade material que aparece com algo separado para aqueles que a produzem. O mesmo se dá com o universo simbólico, com a representação da realidade: “Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”.55 Aqui, também, Debord está atualizando o pensamento de Marx. A partir do momento em que o trabalhador só é proprietário da sua força de trabalho, isto é, da sua capacidade de trabalhar, o uso da dessa força pertence ao capitalista que paga por ela. O produto do trabalho não pertence ao trabalhador e aparece para ele como uma realidade separada. Essa é, em linhas gerais, a caracterização da alienação feita por Marx.56 Com a sociedade do espetáculo, vemos o mundo por imagens que são elas mesmas produtos de consumo, ou que existem para nos induzir ao consumo. Perdemos a capacidade de representarmos a realidade de acordo com a nossa subjetividade, com base naquilo que nós mesmos vivenciamos. Nossas experiências reproduzem imagens que são anteriores ao que estamos vivenciando. Mesmo quando produzimos imagens, elas seguem um padrão, de beleza, por exemplo, que não é definido por nós, mas pelas grandes corporações, com o objetivo de venda de mercadorias. A capacidade que as grandes corporações empresariais possuem, de produzirem espetáculos, ou seja, imagens que orientarão o nosso comportamento em direção ao consumo dos seus produtos, corresponde ao que Debord definiu como sendo o exercício do poder espetacular difuso e que está presente na vida cotidiana. Para Debord, há uma relação intrínseca entre a produção de espetáculos e o exercício de poder. Essa relação não é uma exclusividade da sociedade capitalista. A existência do espetáculo está vinculada à existência das classes sociais, que por sua vez são uma consequência da presença de uma divisão social do trabalho, com a distinção entre proprietários e não proprietários dos meios de produção, e com a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual. Nas sociedades pré-capitalistas, o espetáculo está associado à dimensão do sagrado e serve para justificar o exercício do poder pelas classes dominantes. Mas a sociedade do espetáculo só existe em sociedades capitalistas, quer seja como o resultado do exercício do poder das corporações capitalistas, na forma do poder espetacular difuso, quer como um produto da ação do Estado, em países onde o Estado concentra em torno de si boa parte da vida econômica, devido ao fato de serem sociedades com um grau menor de desenvolvimento capitalista. Nesse caso, trata-se do que Debord denominou como sendo o poder espetacular concentrado. Aqui, o Estado é o principal produtor de espetáculos, pois controla os meios de comunicação, utilizados para divulgarem versões positivas da imagem do “Líder da Nação”, ao qual toda a população deve obediência. As décadas de 1920 e 1930 podem ser vistas como marcos iniciais do poder espetacular concentrado, pois nesse período aconteceram importantes manifestações do que Debord caracterizou como capitalismo burocrático: as experiências nazifascistas, em vários países europeus, ou o estabelecimento do stalinismo na União Soviética. 2.2 A revolução segundo Debord Debord revolucionou o próprio conceito de revolução. Para ele, a revolução só é digna desse nome se transformar a vida cotidiana. Nesse aspecto, há um diálogo com o pensamento de Henri Lefebvre, autor francês que, a partir da segunda metade da década de 1940, começou a publicar uma obra, em três volumes (o último publicado em 1981), intitulada Crítica da vida cotidiana, em que defendia que o marxismo constituía-se numa crítica da vida cotidiana, principalmente no que diz respeito ao cotidiano como momento de reprodução das relações de alienação. A alienação não acontece apenas nas fábricas ou nos locais de trabalho de modo geral. Ela diz respeito ao esvaziamento da condição de sujeito dos trabalhadores, que repetem, no cotidiano, o estilo de vida, os valores da classe dominante, a burguesia. A alienação está presente nas relações com os meios de comunicação, com os espaços urbanos, manifestando-se também nas relações familiares, nas relações afetivas etc. Nas palavras de Debord, em texto sobre a vida cotidiana publicado na revista da Internacional Situacionista: A enorme pobreza da organização consciente, a falta de criatividade das pessoas na vida cotidiana expressam a necessidade fundamental de inconsciência e mistificação numa sociedade exploradora, numa sociedade da alienação.57 Mas se os trabalhadores são os sujeitos da revolução para os situacionistas de modo geral, e para Debord, em particular, a crítica da alienação não era dirigida apenas a eles. Os estudantes, por exemplo, foram duramente questionados num texto da Internacional Situacionista intitulado A miséria no meio estudantil, e que exerceu importante influência no movimento de maio de 1968. Nesse texto, questiona-se de forma veemente a subordinação do conhecimento à reprodução do capitalismo, mediante a massificação da educação: Recolhendo um pouco do prestígio em frangalhos da universidade, o estudante ainda se sente feliz por ser estudante. Tarde demais. O ensino mecânico e especializado que lhe é ministrado já se encontra tão profundamente degradado (em relação ao antigo nível da cultura geral burguesa) quanto seu próprio nível intelectual no momento em que ele tem acesso a esse ensino. Pela simples razão que a realidade que domina tudo isso, o sistema econômico, exige a fabricação maciça de estudantes incultos e incapazes de pensar.58 Ainda nesse texto, argumenta-se que, para o proletariado, [...] transformar o mundo e mudar a vida são para ele a única e a mesma coisa, as palavras de ordem inseparáveis que acompanharão a sua supressão, como classe, a dissolução da sociedade presente, como reino da necessidade, o acesso enfim ao reino da liberdade. A crítica radical e a livre reconstrução de todas as condutas e valores impostos pela realidade alienada são seu programa máximo, e a criatividade liberada na construção de todos os momentos e eventos da vida é a única poesia que ele irá reconhecer, a poesia feita para todos, o início da festa revolucionária.59 Não foi por acaso que as palavras finais do texto sobre A miséria no meio estudantil, que é de novembro de 1966, foram utilizadas como slogans no maio de 1968: As revoluções proletárias serão festas ou não serão nada, pois a vida que anunciam será, ela própria, criada sob o signo da festa. O jogo é a última racionalidade dessa festa, viver sem tempo morto e gozar, sem impedimentos, são as únicas regras que ele poderá reconhecer.60 Sem dúvida, a revolução feita por Debord e pelos situacionistas, no conceito de revolução proletária, com a aproximação entre revolução e festa, contribuiu de forma significativa para a influência dos situacionistas sobre o movimento de maio de 1968, e para a identificação dos estudantes e de jovens operários, com a ideia de revolução proletária. Mas os situacionistas não foram a única corrente política a exercer influência sobre Maio de 1968. Correntes políticas anarquistas, trotskystas e maoístas também estiveram presentes. Na verdade, os acontecimentos de maio foram o ponto culminante de um movimento iniciado em 22 de março de 1968, na Universidade de Nanterre, na periferia de Paris, quando aconteceu a ocupação da universidade pelos estudantes, em protesto contra a prisão de um estudante militante de um comitê de luta contra a Guerra do Vietnã. Nanterre já havia sido palco de outros confrontos que envolviam, por exemplo, protestos contra a proibição de casais nos dormitórios estudantis. De Nanterre, as manifestações estudantis e o confronto com forças policiais passaram para a Sorbonne, em Paris, a partir de um protesto contra o incêndio da sede da União Nacional dos Estudantes Franceses. A polícia chegou a invadir a universidade, gerando conflitos que resultaram na sua ocupação pelos estudantes e, durante o mês de maio, na formação de barricadas nas ruas de Paris, em especial no Quartier Latin, bairro onde se localiza a Sorbonne. A partir do dia 13 de maio ocorre uma ocupação de universidades em todo o país. Em seguida, no período de 15 a 27 de maio, a classe operária se incorporou ao movimento com uma greve que envolveu 10 milhões de trabalhadores, inclusive com ocupações de fábricas. Parecia que a Revolução Proletária estava a caminho. No entanto, o Partido Comunista Francês, stalinista e contrário ao movimento, e seu braço sindical, a Central Geral dos Trabalhadores, conseguiram desmobilizar a classe operária, direcionado a luta para reinvindicações salariais. No dia 30 de maio, o governo do General De Gaulle retoma a iniciativa política convocando eleições parlamentares, que serão vencidas por forças políticas de direita. No dia 13 de junho, o governo inicia uma repressão contra os grupos de extrema-esquerda que deram sustentação ao movimento de maio. Universidades e fábricas são desocupadas e a Revolução não se concretiza. 2.3 A crítica da sociedade contemporânea A não concretização da Revolução Proletária em maio de 1968 é o ponto de partida para a análise crítica que Debord faz sobre o período contemporâneo do capitalismo, no seu texto Comentários sobre a sociedade do espetáculo, de 1988. Escrito nos momentos iniciais do atual período da sociedade capitalista, quando (pelo menos desde a segunda metade da década de 1970) ocorre o predomínio do capital financeiro em escala mundial e a hegemonia ideológica do neoliberalismo, trata-se de um texto que possibilita a compreensão da dimensão ideológica do neoliberalismo, evidenciando-o como manifestação de uma falsa consciência. O vínculo entre a ideologia e uma falsa compreensão da realidade já aparecia no livro de 1967, em que se pode ler que: “os fatos ideológicos nunca foram simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, como tais, fatores reais que exercem uma real ação deformante”.61 A concepção de ideologia adotada por Debord corresponde à visão de Marx, e também do pensador húngaro Lukács, autor do livro História e consciência de classe, que exerce grande influência sobre o pensamento de Debord. Para os três autores, a ideologia dificulta a compreensão efetiva da realidade. De acordo com Marx, em texto escrito junto com Engels, “em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura”.62 No caso do neoliberalismo, ele dificulta, com o seu discurso contrário à intervenção do Estado na vida econômica, o entendimento de que essa intervenção é necessária para a manutenção da sociedade capitalista, e que ela sempre ocorre, ainda que sob formas que variam historicamente e que precisam ser sempre investigadas. Debord chama a atenção para um processo de fusão entre a atuação do Estado e os interesses empresariais como sendo uma das principais características da contemporaneidade, sendo que essa fusão significa que tanto o Estado como as empresas atuam misturando ações legais e ilegais, pois, nesse contexto, a máfia “reina como modelo de todas as empresas comerciais avançadas”,63 sendo que “é um engano opor a máfia ao Estado: nunca são rivais”.64 Para compreender as características específicas do exercício do poder na contemporaneidade, Debord desenvolveu o conceito de poder espetacular integrado. Com esse conceito, ele procura dar conta do processo de fusão entre as formas de poder anteriormente existentes: o poder difuso e o concentrado. O conceito de poder espetacular integrado procura compreender o fortalecimento em escala mundial da sociedade do espetáculo no pós-maio de 68 e que está vinculado à combinação, nas sociedades capitalistas contemporâneas, de elementos democráticos e ditatoriais: Só se ouviu falar com frequência de “Estado de direito”, a partir do momento em que o Estado moderno, chamado democrático, deixou de ser democrático: não por acaso, a expressão se popularizou no início da década de 1970, em primeiro lugar na Itália. Em vários domínios, são feitas leis que posam ser dribladas por aqueles que terão todos os recursos para isso. Em certas circunstâncias, a ilegalidade – por exemplo, em torno do comércio mundial de armamentos, e na maioria das vezes referente aos produtos de tecnologia de ponta – não passa de uma espécie de complemento da operação econômica, que assim se torna mais rentável.65 A fusão empresas/Estado é, juntamente com o desenvolvimento tecnológico incessante, o principal aspecto do poder espetacular integrado, segundo Debord. Mas essa fusão está vinculada a outros aspectos importantes da contemporaneidade, como “o segredo generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo”.66 Na sociedade do espetáculo há uma dialética entre o visível e o invisível. O olhar da sociedade é direcionado para o que é superficial, como a vida pessoal das “celebridades”, permanecendo na invisibilidade aquilo que é, de fato, significativo para a vida social, como as condições de funcionamento das instituições, que permanecem em segredo. No máximo, existe a aparência, quando ocorre a divulgação de escândalos envolvendo políticos e instituições públicas, que a realidade está sendo mostrada; quando o que acontece é que o que está sendo mostrado corresponde apenas à superfície do real funcionamento das instituições. Os escândalos são o resultado de disputas, com a participação importante das corporações da mídia, pelo controle do Estado, e que são resolvidas mediante a construção/desconstrução das imagens de grupos políticos e seus aliados no mundo empresarial. Se o conhecimento da realidade está esvaziado, se a comunicação está reduzida ao processo de construção/desconstrução de imagens, vivemos sob o domínio da mentira sem possibilidade de contestação. Para Debord, a opinião pública não existe mais, pois também não existe mais o que garantia a sua existência: o espaço público: Já não existe ágora, comunidade geral; nem existem comunidades restritas a grupos intermediários ou a instituições autônomas, a salões ou cafés, aos trabalhadores de uma mesma empresa; nem nenhum lugar onde o debate sobre as verdades que concernem àqueles que lá estão possa se libertar do discurso midiático e das diferentes forças organizadas para substituí-lo.67 O esvaziamento dos espaços públicos, já que, em hipótese alguma, as redes sociais virtuais podem ser confundidas com espaços públicos, conforme definidos por Debord, é inseparável do esvaziamento da busca pela verificação do que é real, do que se constitui em um fato: “Agora já não existe juízo, com garantia de relativa independência, daqueles que constituíam o mundo erudito, daqueles que, outrora, colocavam seu orgulho numa capacidade de verificação, próxima do que se chamava a história imparcial dos fatos, e acreditavam ao menos que ela merecia ser conhecida”.68 Considerações finais A luta contra a sociedade do espetáculo não poderá ser retomada se não acontecer uma ruptura não só com a ideologia neoliberal, mas com a subordinação à ideologia de modo geral, ou seja, se não houver socialmente um reconhecimento de que é fundamental a busca pela diferenciação entre o imaginário (ideológico) e o real. É indispensável que a luta política não se reduza à disputa entre visões de mundo diferentes (ideologias de esquerda ou de direita), mas que faça parte dessa disputa uma indagação a respeito de qual visão de mundo é capaz efetivamente de compreender e transformar a realidade contemporânea. Nesse aspecto, a crítica da sociedade contemporânea feita por Debord é uma arma política fundamental. Se o projeto de vida de Debord, a concretização de uma revolução que superasse a sociedade capitalista do espetáculo, não se efetivou, a principal tentativa de transformação social, que aconteceu na segunda metade do século XX nos países capitalistas desenvolvidos, não pode ser compreendida sem uma reflexão sobre a sua atuação como revolucionário político/cultural e como teórico que revolucionou o entendimento da sociedade capitalista. Referências DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. ______. Perspectivas de modificações conscientes na vida cotidiana. In: JACQUES, Paola. (Org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p. 143-152. INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Livros, 2002. LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Porto: Publicações Escorpião, 1974. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Fuerbach). São Paulo: Hucitec, 1989. MATOS, Olgária. Paris 1968: as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Coleção Tudo é história). 3 ARTE CONSUMADA: DA SEPARAÇÃO À CONTEMPLAÇÃO, SEM DESVIOS Márcia Eliane Rosa 3.1 A arte como participação Na introdução do livro Participation,69 a pesquisadora e crítica de arte, Claire Bishop, enumera “ativação”, “autoria” e “comunidade” como sendo as motivações que frequentemente são citadas para quase todas as tentativas artísticas de encorajar participação na arte desde a década de 1960 e salienta como é significativo que todas as três motivações também apareçam na escrita situacionista de Guy Debord, assim como, da mesma forma, esses elementos fazem parte de sua crítica à Sociedade do espetáculo. Sob o olhar da autora, o espetáculo é, por definição, imune à atividade humana, inacessível a qualquer revisão ou correção projetada. Se o espetáculo denota um modo de passividade e subjugação que detenha o pensamento e evita a determinação da realidade, então é precisamente como uma injunção à atividade que Debord defendeu a construção de ‘situações’.70 Bishop cita as ‘situações construídas’ na Internacional Situacionistas (final da década de 1960) não apenas como um despertar da consciência crítica, mas também como um movimento que produzia novas relações sociais e, portanto, novas realidades sociais. O espetáculo é ‘uma relação social entre pessoas, mediada por imagens’ (a autora aqui faz referência à quarta tese citada por Debord no primeiro capítulo do livro Sociedade do espetáculo), o único modo como podemos analisar e resistir é produzir novos modos de relações humanas.71 A ideia de “situações construídas” também foi um importante referencial para Nicolas Bourriaud ao tratar de Estética Relacional.72 Para ele, o conceito situacionista de uma “situação construída” tratava de substituir a representação artística pela realização experimental de energia artística em ambientes cotidianos. Bourriaud compreende que, enquanto o diagnóstico de Guy Debord sobre o espetacular e o processo de produção era rigoroso, a teoria situacionista ignorava o fato de que os principais alvos do espetáculo eram as formas de relações humanas. O autor interpreta esse cenário como sendo possível criar imagens que são “construídas” para uso particulares, ou mesmo situações que excluem deliberadamente os outros. A noção de situação reintroduz as unidades de tempo, lugar e ação em um teatro que não envolve necessariamente um relacionamento com o outro. Dá-se, portanto, um panorama em que a prática artística se envolve em um relacionamento com o outro ao mesmo tempo em que estabelece relação com o mundo. No entanto, uma situação construída não necessariamente corresponde a um mundo relacional fundado com base em uma figura de troca. Bourriaud entende que é apenas uma coincidência em que Debord divide a temporalidade do espetáculo no “Tempo trocável” do trabalho. (“acumulação sem fim de intervalos equivalentes”) e o “tempo consumível” dos feriados, que imita os ciclos da natureza e que é, ao mesmo tempo, um espetáculo “a um grau mais intenso”. Para atualizar aqui o situacionismo e reconciliá-lo com o mundo da arte, seria, talvez, pensar o trabalho artístico formando um “mundo relacional”, ou uma fresta social. Portanto, sob os olhos de Bourriaud, a “separação” suprema, a que afeta os canais relacionais, constitui a última etapa da transformação rumo à Sociedade do Espetáculo que foi descrita por Guy Debord. Seria, assim, uma sociedade em que as relações humanas não são mais “diretamente vividas”, mas que se afetam em sua representação “espetacular”. Para o autor, é nesse momento que se situa a questão mais candente da arte atual, em que se pergunta se ainda é possível gerar relações no mundo, num campo prático (história da arte), tradicionalmente destinado à representação delas mesmas. E então ele responde: Ao contrário do que pensava Debord, para quem o mundo da arte não passava de um depósito de exemplos do que seria preciso “realizar” concretamente na vida cotidiana, hoje a prática artística aparece como um campo fértil de experimentações sociais, como um espaço parcialmente poupado à uniformização dos comportamentos.73 Seria possível resistir e produzir novas relações humanas? Existem brechas na força imposta pelo mercado? Ocorreu uma reconciliação do situacionismo com o mundo da arte a partir da compreensão da arte relacional que consiste para Bourriaud, um conjunto de práticas artísticas em que seu ponto de partida teórico e prático é a totalidade das relações humanas e seu contexto social, no lugar de um espaço independente e privado? Não se trata de dar respostas nesse texto, mas refletir sobre as questões colocados por Debord a partir da perspectiva da arte. 3.2 A separação como raiz do processo A distância que existe entre o espectador e o espetáculo, enquanto ideia de representação, é o que podemos imaginar como sendo a procedência de todas as outras relações de distanciamento existentes em Debord. Quando é tratado o tema relacionado às proposições de K. Marx e G. Lukács, essa é a metáfora central para podermos compreender as várias outras separações dadas na sociedade, no processo produtivo, quando o trabalhador é separado de sua mão de obra e logo passa à alienação ao produzir a mercadoria que não lhe concerne e, finalmente, não compreende o valor de consumo. Todo esse processo–separação, alienação e contemplação–pode ser visto como o espetáculo. “A separação entre a atividade real da sociedade respectiva representação é uma consequência das separações no seio da própria sociedade”.74 No entanto, para Anselm Jappe,75 a separação genuína foi dada no campo do poder, no qual foram geradas todas as outras. A partir da dissolução das comunidades primitivas, todas as sociedades conheceram, no interior de si mesmas, um poder institucionalizado, uma instância separada, e todos esses poderes tinhas algo de espetacular.76 Mesmo que a metáfora central para compreensão do pensamento de Debord esteja na ideia da separação, Jappe chama a atenção para a questão de que o problema não está na imagem e na representação que é gerada a partir da separação, mas na necessidade de uma sociedade precisar dessas imagens e para o fato desses indivíduos se comportarem como “seres independentes” mesmo na prática coletiva. É nesse contexto que está a relação da religião e do espetáculo. Não é de forma despropositada que o prefácio do primeiro capítulo começa com uma citação de Ludwig Feuerbach (A essência do cristianismo), o qual resume a cerne da crítica que Debord desenvolveu ao longo da obra, dando pistas sobre a genealogia do conceito: E sem dúvida o nosso tempo [...] prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado Feuerbach (prefácio da segunda edição de A essência do cristianismo).77 A noção de espetáculo aqui está ligada à concepção hegeliano-marxista de representação, fazendo amarração à condição de impotência diante de um todo poderoso e concretizando o processo e separação que condiciona ao universo do não vivido. “A contemplação desses poderes é inversamente proporcional à vida individual, a ponto de os gestos mais banais serem vividos por outrem no lugar do próprio sujeito”.78 O que parece interessante analisar é que para Feuerbach, a raiz da religião e do Cristianismo estavam no próprio homem, que pode projetar em uma entidade compreendida como autônoma, idealizada como divindade, o mundo interior de seus desejos, afetos, esperanças, carências. Assim, a religião aparece podendo ser real e verdadeira, mas como objeto de imaginação que aliena, da mesma forma que é gerado o espetáculo. E esse panorama pode se suceder em diversos setores sociais, separando contextos, como na cultura e na arte. Lá no oitavo capítulo do livro, Debord aborda a questão da cultura diante dos elementos sociais contemporâneos e sua transformação. Traz a ideia de que o Dadaísmo e o Surrealismo teriam sido os últimos movimentos artísticos que tentaram “suprimir” a arte e, ao mesmo tempo, realizá-la, ainda que sem muito sucesso. Denuncia, assim, o que seria o início da separação entre arte e cultura, quando a arte, a partir de então, já não teria mais um sentido prático e político. O que pressupõe que a cultura já não pode assim ser reconhecida porque fica separada de sua história e de sua possibilidade de crítica social. Essa questão é central para entender o pensamento de Debord sobre a importância da unificação de arte e cultura. Inicialmente, o autor diz que “a cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido”.79 Para ele, é a cultura que apresenta nossa unificação com a história social e também com a crítica da sociedade. E a arte seria a representação de uma sociedade histórica que teve sua unidade rompida. Debord entende que tal rompimento se dá por causa das características espetaculares das sociedades contemporâneas. Ou seja, que ao se estabelecer uma relação social entre imagens que representam os indivíduos e, ao mesmo tempo, o esvaziamento dos respectivos conteúdos, o que sobra é a separação da unidade pretendida entre sociedade, história e crítica. O que se perde, portanto, é a visão de totalidade. Daí, entende-se que, a partir do processo independente da arte é que acontece a separação entre cultura e seu respectivo processo histórico. No entanto, sob uma leitura dialética, Debord sugere que é esse esvaziamento da cultura e essa ruptura que, na verdade, vão permitir um novo estado de unificação histórica e prática. “A negação real da cultura é a única coisa que lhe conserva o sentido. Já não pode ser cultural. Desse modo, ela é o que sobra, de certa forma, no nível da cultura, embora numa acepção bem diferente”.80 Nesse caso, a cultura teria como função representar novamente uma totalidade que foi perdida. Debord, desde os escritos e das ações da Internacional Situacionista, demonstrava o interesse em superar a esfera de separação da cultura. 3.3 Da alienação à contemplação A superação da alienação e da separação, na visão de Debord, não sugere suplantar a completamente o estado contemplativo, mas pressupõe identificar a diferença entre o sujeito e suas ações objetivas e, consequentemente, ter consciência de seus resultados. A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo.81 O que deve ser observado é que a unidade sujeito-objeto emerge como um conjunto de condições numa ação autônoma para além do capitalismo e das determinações mercadológicas. No campo da arte, sugere o regate da cultura como elemento essencial de contexto que poderá regatar a possibilidade de assumir um universo de totalidade com a apresentação de objetivos e motivos para a ação, permitindo que se vá além do espetáculo. Os conceitos fundamentais realizados por Debord, como a crítica à sociedade do espetáculo, desde a Internacional Situacionista nas décadas de 1950-70, baseiam-se na vida e na sua sujeição ao processo de produção. Dentro do pensamento de Debord, a vida é o processo que se dá na relação com o urbano e no movimento de realização e supressão da arte (movimentos vigorantes na sociedade do espetáculo), no cotidiano como lugar em que ela é submetida ao processo espetacular de separação, alienação e contemplação, mas que, ao final, pode ser resgatada se retomada em sua complexidade. Então a arte não chega ao fim? Em A sociedade do espetáculo, Debord nos remeterá à questão do fim da arte e da cultura desde os “ismos” modernistas: um fim que permite sua superação na história total e sua manutenção rearranjada como objeto aprisionado na contemplação espetacular, mas que também ainda nos gera argumentos de debate sobre algo que acostumamos a chamar de arte contemporânea e na possibilidade de produzir novas relações humanas. 3.4 Uma parte para (dois) desvios As distorções introduzidas nos elementos desviados devem tender a ser simplificadas ao extremo, sendo o impacto de um desvio diretamente proporcional à memória consciente ou semiconsciente dos contextos originais dos elementos. É bem conhecido. Note apenas que, se esse uso de memória envolve uma escolha pública antes do uso do desvio, este é apenas um caso especial de uma lei geral que rege o desvio, bem como qualquer outro modo de ação sobre o mundo. A ideia de expressão absoluta está morta, e só sobreviveu momentaneamente em forma de paródia, apenas enquanto nossos outros inimigos sobrevivem.82 Debord e Wolman escreveram um artigo que foi publicado no jornal surrealista belga Les Lèvres Nues em maio de 1956. Trata-se de um guia de como utilizar o Desvio. Desvio (détournement) referese, em francês, como em português, ao “desviar”, tirar uma coisa de um lugar e colocá-la em outro. Também é atribuir a uma coisa um movimento circular contrário ao que foi atribuído de início. Trata-se de uma política similar de prevenção contra o discurso preestabelecido e de valorização da experiência vivida. O desvio pode ser interpretado como uma ação capaz de transformar o curso dos acontecimentos e de intervir nos rumos da sociedade mercadológica. Aqui duas teses do primeiro capítulo utilizando desvio: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”;83 “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.84 A primeira tese do livro inicia com um desvio sobre a primeira frase de O capital: “Todas a vidas sociedades modernas, onde reinam as condições modernas de produção, se anuncia como uma imensa acumulação de mercadorias”. “Espetáculos” substitui “mercadorias” como ideia de acumulação também na tese 4. Referências AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Memória e consciência histórica. Fortaleza: EdUECE, 2006. BISHOP, Claire. Participation: documents of contemporary art. Cambridge, Massachusetts: Whitechapel and The MIT Press, 2006. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BUENO, Douglas Aparecido. Guy Debord e a nova fase do espetáculo. 236f. 2017. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017. COELHO, Cláudio Novaes Pinto. Indústria cultural e sociedade do espetáculo: a dimensão política da crítica. Líbero, São Paulo, v. 19, n. 37, p. 31-42, jan./jun. de 2016. DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DEBORD, Guy; WOLMAN, Gil. Mode d’emploi du détournement. Les Lèvresnues, Bruxelas, n. 8, maio, p. 6, 1956. Disponível em: <http://sami.is.free.fr/Oeuvres/debord_wolman_mode_emploi_detournement.html>. Acesso em: 30 out. 2017. JAPPE, Anselm. Sic Transit Gloria Artis – O fim da arte segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. 1995. Disponível em: <http://www.krisis.org/1995/sic-transit-gloria-artis-portugues>. Acesso em: 15 out. 2017. ______. Guy Debord. Lisboa/Portugal: Antígona, 2002. RICARDO, Pablo Alexandre Gobira de Souza. Guy Debord, jogo e estratégia: uma teoria crítica da vida. 258f. 2012. Tese (Faculdade de Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. ROSA, Márcia Eliane. Jornalismo cultural para além do espetáculo. Líbero, São Paulo, v. 16, n. 31, p. 69-76, jan./jun. de 2013. 4 AS EXPERIÊNCIAS HUMANAS ENQUANTO MERCADORIAS Jhonathan W. S. Pino Guy Debord85 enfatiza que a mercadoria poderia ser compreendida como uma categoria universal do ser total pontuando que ela deixa de ser um objeto, separado do indivíduo e avaliado conforme seus atributos físicos, para ser todo e qualquer processo envolvido na produção e consumo, ou melhor, está presente em todos os aspectos de vida humana existentes, enquanto ela estiver sob o guardachuva do capitalismo. Nesse sistema, cada vez mais de forma natural, as pessoas são colocadas como elementos integrantes da mercadoria e têm suas interações mediadas por uma dinâmica do lucro, responsável pela transformação da antiga dialética de exploração entre proprietários e empregados, numa relação de escolha e consumo de estilos de vida. É pensando em refletir esse processo de submissão e suavização das relações de produção pelo capitalismo tardio que o capítulo “A mercadoria como espetáculo”, de A sociedade do espetáculo, volta ao menos dois séculos para pontuar como se deu o início do processo progressivo de espetacularização e mercantilização da vida humana. Debord86 lembra que um dos elementos mais importantes na caracterização dos primeiros estágios do desenvolvimento da sociedade industrial foi a passagem do trabalho artesanal ao assalariado, que se tornou a regra nas relações de produção no mundo ocidental. Essa transformação foi responsável por colocar a força de trabalho como principal fonte de lucro e propulsora daquilo que viria a marcar as relações de produção nos séculos seguintes: de um lado, os proprietários dos meios de produção obtinham lucros por meio da exploração dos indivíduos; do outro, os empregados usavam seu tempo e energia como moeda de troca. A partir da integração dos diversos setores econômicos à divisão do trabalho, esse modelo produtivo separou os ambientes entre domésticos e laborais, cisão que foi responsável por dar maior liberdade aos indivíduos quanto à dispensabilidade do conhecimento das etapas de produção. Mas para Debord,87 a partir do momento em que desconhecem as etapas de produção, os indivíduos tornaram-se reféns da própria cadeia produtiva; ou como seres alienados de seus corpos e mentes, inaptos para viver e pensar além das engrenagens do sistema vigente. Contextualizado na década de 1960, o autor irá conceituar de “sociedade do espetáculo” um momento posterior a essa dialética de produção e consumo, quando a mercadoria torna as duas esferas miscíveis e partes integrantes e indistinguíveis de todos os espaços da vida humana. As sociedades ocidentais foram as primeiras a sentir a passagem da situação de exploração do trabalho operário a de um cidadão consumidor, como parte integrante da mercadoria. Por outro lado, com a evolução tecnológica, os recursos físicos se tornam tão abundantes que passam a ser elementos secundários na cadeia produtiva. Com recursos em excesso, o mercado utilizou-se de novas estratégias para que as mercadorias se transformassem e continuassem a ter sua exploração economicamente viável: a principal delas seria o enriquecimento simbólico de seus produtos e a inserção deles em parte de um espetáculo integrado ao cotidiano da vida humana. Debord88 chamaria de “fetichização das mercadorias” o desenvolvimento de representações simbólicas e a justaposição de crenças e valores capazes de agregar valor econômico aos produtos e serviços, independentemente da relação de oferta e demanda. O autor ressaltaria que a partir dos diversos veículos midiáticos, trazidos pela evolução tecnológica, e a disseminação de estilos de vida, como a incorporação de vestes e utensílios aos roteiros das ficções, por exemplo, tais elementos ajudariam a promover toda uma simbologia, a ser desejada e copiada pelo público. Hoje, tal exemplo não se restringiria aos comerciais televisivos, ou pelos outdoors espalhados nas cidades, mas se estenderia a todos os aspectos da vida privada e estaria disponível em narrativas de consumo cultural, seja no jornalismo, cinema, música, reality shows ou mesmo na disseminação de produtos entre influenciadores das mídias sociais, que são patrocinados para exibirem e difundirem determinados bens e serviços, por meio de seus conteúdos midiáticos, numa relação miscível entre o comercial e a vida pessoal. O processo de agregação de valor e enriquecimento simbólico das mercadorias foi um fenômeno radicalizado pelo desenvolvimento do setor terciário, inicialmente restrito aos países desenvolvidos, mas que, ao longo das últimas duas décadas, ganhou maior difusão nos países em desenvolvimento, como América Latina e em todo o continente asiático. Um exemplo da mudança de foco do setor produtivo secundário para o terciário foi o modo como os indivíduos passaram a lidar com seus próprios corpos: se a automação industrial tornou dispensável o esforço físico como moeda de troca para os assalariados, como acontecera nos primórdios da Revolução Industrial, nos estágios mais avançados o ganho de massa muscular entre os trabalhadores, por exemplo, passa a não ser em si uma ferramenta laboral importante para a geração de riquezas, enquanto fonte de energia produtiva, porém ele se torna elemento responsável pelo enriquecimento simbólico dos indivíduos que, a partir da tendência à valoração estética, é inserido numa cadeia comercial do setor terciário que relaciona o vigor físico à vida saudável, campo que passou a ser explorado economicamente, principalmente pelas novas indústrias farmacêutica, estética e desportiva. Se as mercadorias dos setores primários e secundários estavam ligadas à necessidade de uso real, como seriam típicos de alimentos ou combustíveis, as mercadorias do setor terciário moderno são demandadas a partir de justificações valorativas, expressas de forma clara na publicidade e indústrias ligadas ao comportamento, cujas diferenciações monetárias não são estabelecidas pela relação de escassez ou custos dos produtos, mas pelo capital simbólico que carregariam. 4.1 O consumo enquanto espetáculo integrador luc Boltanski e Ève Chiapello89 e Jonathan Crary90 atualizariam essa discussão de Debord91 quanto ao investimento simbólico do capital a partir das possibilidades de agregação de experiências e valores humanos às mercadorias. Para Boltanski,92 faz parte do rol de estratégias do capital utilizar-se de qualidades humanas como elementos para o aperfeiçoamento das relações econômicas. Elas são formas tácitas de exploração e coerção dos indivíduos. Para ele, no capitalismo, a exploração se dá a partir de ações que a dissimulam. O uso sistêmico de cadeias longas de produção e negociação de bens e serviços, com um número infinito de mediações, provocaria a eufemização da relação de exploração; sem faces, tais relações de coerção entre exploradores e explorados não seriam tão visíveis e se manifestariam por meio do autocontrole dos explorados. Parte desse processo de suavização das relações de exploração foi desenvolvida por Jonathan Crary,93 na obra 24/7. Ali, ele apontaria que o fim dos limites das barreiras existentes entre a produção e o consumo foi uma saída encontrada pelo neoliberalismo para a extensão de seu sistema produtivo: se um indivíduo estiver integrado por completo ao espetáculo, como Debord94 anunciaria décadas atrás, ele não teria que pensar em diferentes espaços/tempos para o trabalho e o lazer, mas poderia vivê-los 24/7 e, assim, retroalimentá-los. Assim como Debord95 evidenciara, para Crary96 já passou o tempo em que o consumo se restringia às coisas. A contemporaneidade é marcada pela união de nossos corpos e identidades às imagens, e os procedimentos químicos, genéticos e tecnológicos seriam métodos disponíveis à integração do espetáculo. Por meio deles, o capital estimula uma corrida para o preenchimento das únicas barreiras existentes ao consumo–o sono seria um deles. A maioria das necessidades aparentemente irredutíveis da vida humana – fome, sede, desejo sexual e recentemente a necessidade de amizade – foi transformada em mercadoria ou investimento. O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um local de crise no presente global.97 Para Boltanski e Chiapello,98 a evolução das tecnologias e do próprio mercado vem induzindo aos indivíduos a estarem em constante operação, interação, comunicando-se e reagindo, fazendo parte da cadeia, ainda que não intencionalmente. Por meio das mídias de comunicação, por exemplo, há ambientes em que os espaços de cultivo à amizade ou compartilhamento de ideias e imagens pessoais estão lado a lado de estratégias de marketing que ofertam novos serviços e produtos aos seus usuários, independentemente se estão em horário de trabalho ou de lazer. Podemos lembrar o Instagram, o Facebook e o Pinterest: os espaços telemáticos são capazes de familiarizar seus usuários e uniformizar suas condutas, quaisquer que sejam as esferas sociais. Como lembraria Crary,99 foi criado um modelo de normatividade completamente novo, em que o paradigma anterior da ética do trabalho já não atenderia ao panorama conexionista entre a vida privada e laboral. Nesse novo paradigma, as competências adquiridas com aqueles aplicativos não atenderiam apenas às demandas da esfera pessoal, mas as harmonizariam com as exigências funcionais próprias do mundo do trabalho. Debord100 não pensaria numa quebra de paradigmas, mas numa integração global entre o mundo do trabalho e o pessoal. Décadas atrás, ele previra que a comunicação, os meios de produção e a circulação da informação tenderiam a atuar em conjunto e penetrar todos os espaços de vida do indivíduo e pelo alinhamento dele ao funcionamento do mercado. Os aplicativos online são um exemplo disso. Por meio deles, quando em casa, o trabalho pode ser conciliado com as problemáticas familiares e quando nos ambientes laborais, é possível, também aí, entreter-se com assuntos da esfera pessoal, “o fio condutor principal de nossas histórias de vida agora são mercadorias eletrônicas e serviços de mídia por meio dos quais toda experiência é filtrada, gravada ou construída”.101 O consumo dessas imagens, serviços e interações entre os indivíduos, a partir desses produtos, torna-os partes constituintes das identidades e tem consequências diretas e contínuas sobre a formação de tipo de cidadão/consumidor que o indivíduo apresenta: aquele que se adapta aos aplicativos obtém prestígio, no caso inverso, o fracasso. A intensidade da competição diária por acesso a horas de vigília de um indivíduo e o controle delas é resultado da enorme desproporção entre os limites humanos, temporais, e a quase infinita quantidade de ‘conteúdo’ à venda. Mas o sucesso corporativo também será medido pela quantidade de informação que pode ser extraída, acumulada e utilizada para prever e modificar o comportamento de qualquer indivíduo com identidade digital. [...] Na medida em que a oportunidade de transações eletrônicas de todo tipo se torna onipresente, desaparecem os vestígios do que costumava ser a vida cotidiana livre de intrusões corporativas. A economia da atenção dissolve a separação entre o pessoal e o profissional, entre entretenimento e informação, desbancados por uma funcionalidade compulsória de comunicação inerente e inescapavelmente 24/7.102 A partir desse modelo de automodelagem do cidadão contemporâneo é que foi criado um novo modus de vida na relação entre produção e consumo: aquele em que ambos estão presentes em todos os momentos. É em busca da concretização de seus anseios particulares, sejam da esfera privada ou profissional – se ainda assim é possível pensar – que os agentes se submetem a uma cadeia contínua de reinvenção de suas próprias identidades: eles não só são colocados à disposição do julgamento alheio, em suas relações interpessoais, como também do mercado de trabalho, enquanto agente de competências profissionais. Por outro lado, Crary103 apontaria que os novos produtos, aliados ao desenvolvimento das tecnologias, seriam responsáveis também pela criação de novas necessidades e a reconfiguração de um mundo em que tudo pode estar conectado, tornando os interesses dos agentes previsíveis, além de facilitarem a previsão de como, quando e onde serão as plataformas em que os consumidores irão buscá-los. O autor também lembra a noção de sociedade disciplinar, de Gilles Deleuze,104 para explicar como essas novas relações alteram o funcionamento contemporâneo do poder. Deleuze105 chama de ‘sociedades de controle’ o tipo de regulação institucional da vida social e individual que procede de forma contínua, ilimitada, operando, efetivamente, 24/7, indistintamente, se na escola, no local de trabalho ou no lar, sem intervalos e com todos os espaços regulados, como o autor menciona, caracterizada pelo desaparecimento de brechas, de espaços e tempos abertos. A nossa realidade social se tornaria parte, então, desse constructo tecnológico neoliberal. Toda aparente novidade tecnológica é também uma dilatação qualitativa da acomodação e dependência a rotinas 24/7; também é parte de um aumento na quantidade de aspectos sob os quais um indivíduo é transformado em uma aplicação de novos sistemas e esquemas de controle.106 Os aplicativos são demonstrativos evidentes da necessidade de sua integração aos diferentes aspectos da vida para que possam continuar sobrevivendo. Eles necessitam estar conectados não somente a outras plataformas, como também aos esquemas de publicidade e difusão de produtos e serviços. O fato de Facebook, Instagram e Whatsapp, por exemplo, estarem interligados no compartilhamento de conteúdo, não é uma mera coincidência, mas uma estratégia para que possam continuar “parecendo” importantes para a vida das pessoas e assim colaborarem com a lógica do capital. O desligamento de um deles dos demais serviços do sistema significa também o seu desaparecimento da vida social das pessoas e, consequentemente, sua morte comercial. Na sociedade contemporânea, estar fora dessas redes provavelmente também significará o fracasso econômico e social, por isso os indivíduos acabam ficando submersos ao consumo tecnológico e às novas necessidades criadas por elas. Como relataria Crary,107 esses serviços tornam-se essenciais para a organização burocrática das pessoas porque eles ditam as rotinas e hábitos vividos pelos agentes, apesar de as possibilidades de personalização serem anunciadas como potencializadores da livre escolha das condutas. A ilusão de escolha e autonomia é uma das bases desse sistema global de autorregulação. Ainda encontramos em muitos lugares a afirmação de que a ordem tecnológica contemporânea é essencialmente um conjunto de ferramentas neutro que pode ser usado de diferentes maneiras, inclusive de uma política emancipatória. O filósofo Giorgio Agamben refutou tais afirmações respondendo que ‘hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo’. Ele argumenta convincentemente que é ‘totalmente impossível que o sujeito do dispositivo o use “de modo concreto”’.108 Boltanski e Chiapello109 argumentariam que a visualização de ambientes que estejam fora dessas redes de consumo não é só desestimulada, como passam a ser espaços para a revitalização do próprio sistema. Os espaços “virgens” têm seu potencial calculado para que possam ser “espoliados” pelo espetáculo, ou melhor, para que possam se tornar espaços “alternativos” de consumo. Assim, as divergências podem ser aplainadas e o sistema pode conviver com temporalidades superficialmente distintas, pois sua pouca profundidade dificilmente será capaz de alterar a planicidade da lógica do capital. Os desvios não são necessariamente rotas de fuga, mas reconfigurações do próprio sistema. Em consonância com Crary,110 Boltanski e Chiapello111 pontuariam que parte dessas estratégias, disseminadas pelo espírito do capitalismo, a partir da segunda metade do século XX, não seria mais do que “alças de cooptação” ao capital. Ao tempo em que sua rede disponibiliza “brechas” para a autorrealização do indivíduo, essas vias de libertação seriam novas formas de exploração sofisticadas dos sujeitos. O capitalismo atrai atores que percebem terem sido até então oprimidos, oferecendo-lhes certa forma de libertação que dissimula novos tipos de opressão. [...] As alças de cooptação, portanto, criam uma sucessão de períodos de libertação pelo capitalismo e de libertação do capitalismo.112 Esse poder de atração do capital se daria apoiada nas bandeiras de cunho libertador trazidas desde o Iluminismo e extremamente difundidas a partir da propaganda norte-americana, pós-Segunda Guerra Mundial, de que o mercado seria propício à autonomia e autorrealização pessoal, a partir das possibilidades de escolha do próprio estilo de vida, seja no estado social, na profissão, no lugar em que viver, nos tipos de relações que se deseja manter, assim como também nos bens que se deseja consumir, fenômeno que foi ainda mais estimulado pelo desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação e informação. Esses ideais teriam grande papel na formação de um horizonte em que os indivíduos pudessem tomar as rédeas, superando as limitações de classe, expectativas da família, origens e dos estilos de vida ali difundidos, porém os autores aqui lembrados apontam o quanto tais argumentos seriam ilusórios. O consumidor, aparentemente livre, na verdade está inteiramente submetido ao império da produção. Aquilo que ele acredita ser desejo próprio, proveniente de sua vontade autônoma como indivíduo singular é, sem que ele perceba, produto de uma manipulação por meio da qual sua imaginação é subjugada por aquele que oferece os bens. Ele deseja aquilo que querem que ele deseje.113 A “liberdade” aqui estaria então restrita às possibilidades de consumo. Independentemente das origens de classe, religião e etnia, as engrenagens do capital seriam – ou aparentariam ser – capazes de prover os indivíduos de mobilidade, autonomia de suas atividades profissionais e lazer; seria esse potencial de diversidade do consumo e difusão dos diferentes estilos de vidas que demandaria a criação de novos serviços e produtos, produzindo novos ciclos expansivos de consumo e acumulação de capital. Seria a partir desse desejo de libertação e autoexpressão dos sujeitos que os produtos e serviços seriam pensados. E com a ajuda do marketing e da publicidade, o sistema produtivo conseguiria, de certa forma, antever as tendências e transformá-las em novos nichos, não só de consumo, mas de autorrealização pessoal dos próprios indivíduos. 4.2 A conversão da produção e consumo em estilo de vida Essa liberdade nos modos de produção, a possibilidade de levar o trabalho para casa, ou melhor, quando aquilo que fazemos perde o peso semântico da palavra “trabalho”, seriam etapas desse processo de flexibilização do trabalhador. A perda das garantias viria acompanhada dessas mudanças: o empregador se isenta de suas responsabilidades sobre o “trabalhador” e esse, cada vez mais, desvincula-se do papel de empregado e assume-se enquanto colaborador, de contratos esporádicos e fáceis de serem rompidos. A liberdade ocasionada pelas novas relações de produção se faz nos dois sentidos–enquanto o empregador se abdica das formalidades e cada vez mais dos ônus dos encargos trabalhistas, os “colaboradores” assumem os encargos contratuais como parte de sua vida criativa; o exercício profissional transpõe a esfera laboral e passa a fazer parte de sua rotina doméstica, dos momentos de lazer, como diria Crary,114 24/7, sem que isso seja recompensado financeiramente, mas de alguma forma simbolicamente – talvez com repercussões em seus meios profissionais ou vínculos de amizades. Diz-se que a partir de então é possível mudar de atividade e de projeto com a mesma frequência que todos os elos e pertenças locais podem ser rompidos por serem fonte de rigidez; parece afinal reconhecido o direito formal de cada um poder vir a ser o que quiser e quando quiser.115 Para Boltanski,116 esse processo de libertação impõe ao trabalhador não só a precarização de suas garantias, mas novas formas de dependência sistêmica do indivíduo que, diante de seu trabalho solitário, desligado das representações coletivas de outrora, passa a enfrentar, as exigências de um mercado que, marcado por um emaranhado de relações, intermediações e de eliminação de garantias trabalhistas, já não se responsabiliza por qualquer processo de formação e atualização de seus colaboradores. Caso eles não possuam as competências desejadas, podem ser substituídos com cada vez menos custos. A culpa deve ser assumida pelo próprio sujeito e seu desemprego não passaria de um ônus de sua liberdade adquirida. As próprias relações particulares seriam uma miscelânea entre os interesses pessoais e profissionais. Os vínculos criados entre os indivíduos tenderiam a responder às suas demandas, auxiliados pelas redes em convergência, os contatos deveriam somar-se a fim de um ganho mútuo, seja na vida afetiva, seja nos ganhos monetários. Ora, se a busca do lucro continua como horizonte fundamental para a formação dessas relações, segue-se uma confusão bastante perturbadora da distinção entre relação de amizade e relação de negócios, entre comunhão desinteressada entre relação de amizade e relação de negócios, entre comunhão desinteressada de interesses comuns e perseguição de interesses profissionais ou econômicos. Como saber se um convite para jantar, se a apresentação de um amigo querido, se a participação numa discussão é gratuita ou interesseira, contingente ou planejada? E como distinguir os momentos do dia ou do ano dedicados ao trabalho dos momentos de lazer, a vida privada da vida profissional?117 Para Boltanski,118 o mercado exigiria de seus agentes uma compatibilidade entre a autenticidade das relações pessoais e a mobilidade e adaptabilidade diante das novas situações profissionais, sem que isso significasse qualquer contradição, ou mesmo incômodo, a ponto de tornarem-se visualizadas: o poder do simulacro estaria no poder de tornar os interesses de tais relações o mais invisível e naturalizado possível. Ao não perceberem uma linha que separe a vida privada da profissional, os agentes passariam a atuar de forma voluntária em favor da produção de capital. Suas atividades da esfera privada não passariam de uma continuidade da pública. O indivíduo passa a ser consumidor e produtor constante. Por isso, as relações pessoais passam a ser estimuladas pelo lucro potencial que podem proporcionar – ainda que esse lucro seja simbólico, ou cultural – e começa-se a compreender a vida afetiva como um produto à disposição de novos ganhos, 24 horas por dia. Já não haveria uma vida privada. Quando o agente tenta desvincular sua vida profissional da afetiva, quando desconecta seus contatos pessoais dos colegas de trabalho, tais intervalos podem ser compreendidos como ruídos à efetiva comunicação e empecilho ao desenvolvimento de todo o potencial de lucro que o indivíduo é capaz de produzir; mas como relatado pelos autores, será nesses espaços de estranhamento que poderão surgir novos nichos para a obtenção do lucro. Não obstante, em vez de atuarem como oposição efetiva, transformam-se em forças criativas para a autorregeneração do mercado. No entanto, tal processo de mercantilização da esfera pessoal dos agentes não se dá sem que haja alguma perturbação nos modos de atuação do capital. Boltanski119 aponta a necessidade de um reordenamento das ações para que tais oposições entre as atividades desinteressadas e o capital – moralmente contraditórias – se coloquem lado a lado. [...] faz parte da lógica capitalista pôr essa norma sob tensão, deslocar a fronteira entre o capital e o não capital, ou seja, mercantilizar bens e serviços que até então escapavam ao mercado, desempenhando papel muito importante na busca da acumulação. Mas esses deslocamentos, que afetam os princípios nos quais se baseiam os juízos ordinários, para se tornarem aceitáveis, exigem adaptações na relação entre lucro e moral (e, mais profundamente, sem dúvida, uma redefinição da antropologia como modo de qualificação do propriamente humano) que contribuem, por sua vez, para a mudança daquilo que chamamos de espírito do capitalismo. É uma adaptação desse tipo, atenuadora das tensões provocadas pelos novos dispositivos empresariais e pelo deslocamento do lucro para novos setores de atividade, que acompanha a formação de uma cidade por projetos. Essas mudanças têm em comum engajar as pessoas na dinâmica do lucro com mais profundidade do que ocorria no período anterior”.120 Maiores margens de lucro é o resultado a ser alcançado por esse processo de mercantilização das esferas da sociedade humana. A suavização das relações de trabalho se dá por meio de uma cortina que se abre e ‘exibe’ todo o fascínio que a vida pode nos dar, enquanto produto editável e transformável em espetáculo e, ao mesmo tempo, não apresenta aquilo que está por detrás do palco, as relações existentes nos bastidores, pouco interessantes de serem mostradas ao público. Pequenas considerações Debord121 diria que o cidadão se tornou um consumidor de ilusões e o espetáculo seria a sua manifestação geral. Como o mundo disponível é aquele em que se têm acesso por meio do espetáculo e os próprios indivíduos são parte integrante, a tendência é que não mais existam espaços sociais que estejam às margens da produção e do consumo: a mercadoria virou o todo. Esta pequena explanação, a partir da interpretação de Crary122 e Boltanski,123 faz-nos perceber o quanto é atual a essência das denúncias de Debord,124 que ainda na década de 60 apontava a transformação das experiências humanas em um espetáculo global, em que toda a vida passa, então, a fazer parte da lei de oferta e demanda. No entanto, como a oferta não dependerá de uma relação direta com a escassez do produto, a privação se dará pela fetichização das mercadorias, ou melhor, dos valores que o seu consumo, ou não, deixarão de carregar. Os indivíduos são o reflexo dessa dinâmica do capital, pois ao mesmo tempo em que a integram e se tornam a parte substancial das mercadorias, suavizam ou submetem as contradições existentes na sociedade do espetáculo ao esquecimento, mas isso não significa o atendimento de suas subjetividades, tampouco o fim de suas angústias, que estão além do consumo. Referências BOLTANSKI, Luc. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007. CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: 34, 1992. 5 UNIDADE E DIVISÃO NA APARÊNCIA: O ESPETÁCULO E SUAS CONTRADIÇÕES Deysi Cioccari 5.1 Uma breve introdução ao capítulo III Não há nada mais natural que alguém enxergar todas as coisas a partir de si, considerando-se o centro do mundo. Assim procedendo, descobre-se capaz de condenar o mundo sem nem mesmo querer ouvir seus discursos enganosos. É preciso apenas demarcar as fronteiras precisas que inevitavelmente limitam essa autoridade: seu próprio lugar no decorrer do tempo e na sociedade; o que fez e o que conheceu; suas paixões dominantes.125 Debord é, segundo Michael Löwy, “uma máquina infernal difícil de desmontar [...] e arrisca explodir entre as mãos daqueles que a manipulam com o objetivo de torná-la inofensiva”.126 Guy Debord construiu A sociedade do espetáculo num contexto de Revolução Industrial em que o sentido do trabalho sofreu uma mudança profunda. Segundo o autor, onde os sentidos do trabalho foram absolutamente esvaziados. Assim a vida cotidiana foi se transformando tendo domínio da separação e do espetáculo. A esfera da renúncia foi predominando e o que antes era sólido foi se dissipando, numa clara alusão a Karl Marx: “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”.127 A vida é privada da própria vida e as pessoas, privadas de sua história. A crise insere-se nas novas formas da crise do capitalismo, que passam despercebidas. O desaparecimento das referências antes tão explícitas e a impossibilidade de substituí-los por outros valores geram a insatisfação interminável da nossa época. A arte não foge dessa insatisfação. Se antes ela dava conta das crises existencialistas, agora a arte sucumbe ao capitalismo. Com o desejo desenfreado das massas de se aproximar dos objetos, com a ausência ritual da tradição na era da reprodução mecânica, a arte torna-se uma prática política. Walter Benjamin128 afirma que, em sua essência, as obras de arte sempre foram objeto de reprodução. Essa imitação era praticada por discípulos, mestres e por terceiros, cada um com interesses distintos e específicos. Mas a reprodução técnica de obras de arte é um processo novo, que vem se desenvolvendo com intensidade crescente com a dominação do capitalismo. A partir daí, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma historicamente. Benjamin alerta que a aura é uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja, e que existem duas circunstâncias que explicam o declínio atual da aura: fazer as coisas ficarem mais próximas e a tendência das massas de superarem o caráter único dos objetos por meio de sua reprodutibilidade. Na imagem, a unidade e a durabilidade se associam intimamente, como na reprodução, a transitoriedade e a repetibilidade. No momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se na política. O movimento de banalização que, sob as diversões cambiantes do espetáculo, domina mundialmente a sociedade moderna, domina-a também em cada um dos pontos onde o consumo desenvolvido das mercadorias multiplicou na aparência os papéis a desempenhar e os objetos a escolher.129 Tanto em Marx quanto em Benjamin e Debord, observa-se que não é o conteúdo da produção capitalista que é questionado, mas o acesso aos seus resultados. Ou seja, como preconizou Karl Marx, dando a falsa impressão de igualdade, ocultando a real desigualdade. “A cultura é uma mercadoria paradoxal. Ela está tão completamente submetida à lei da troca que não é mais trocada. Ela se confunde tão cegamente com o uso que não se pode mais usá-la”.130 Na obra A sociedade do espetáculo, Debord argumenta que a alienação é uma forma de organização social capitalista específica, mais do que uma sucessão de emoções dos indivíduos. Ela assume novas formas e conteúdos em seu processo dialético de separação e reificação da vida humana. Adorno argumenta que a alta produtividade do sistema capitalista e a necessidade do indivíduo como força de produção levou a uma alienação do indivíduo de seu tempo livre. Não importa o desenvolvimento desse enquanto sujeito, mas seu papel social desenvolvido. O espetáculo torna-se, então, essa moderna luta de classes, uma forma de dominação da burguesia sobre o trabalho que atinge a todos. O proletariado revolucionário, assim como a burguesia, teve que liquidar tudo o que excedia a vida terrestre (céu, inferno, eternidade) e deve, agora, renunciar a tudo que excede a vida cotidiana, sem deixar de existir como tal. Ou seja, o proletariado deve resistir (no sentido de lutar contra) a todos os subprodutos da eternidade que sobreviveram como armas do mundo dos dirigentes. O futuro não mais é vago. A vida cotidiana é transformada diariamente pelo desenvolvimento feroz do capitalismo, em que a escravatura moderna se consolida. Esse capitalismo traz na reflexão o que Debord chamou de “segredo” da sociedade capitalista: a separação das pessoas de todos os momentos de suas vidas mediante a mediação de suas relações por imagens. O que a mercadoria gera em potência o espetáculo atualizou: sua capacidade de submeter os homens à dinâmica absolutizada do sistema de produção e reprodução do capital unificado numa forma de representação que impõe a sua autoridade ao mesmo tempo em que solidifica o seu valor. A mercadoria revestiu-se de um poder absoluto na medida em que tornou o homem submisso pela mediação simbólica corporificada na imagem, quase não percebida, mas que domina a vida. “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.131 É na tirania do econômico que, no sistema capitalista, submete todas as outras esferas da vida humana ao reino da necessidade e da escassez, que está a raiz do espetáculo: é quando ganham autonomia a reificação das relações, o fetiche da mercadoria. Vale ressaltar que as teses de Debord não se reduzem a uma crítica das mídias tão simplesmente e tão obviamente. O que Debord chama de “sociedade do espetáculo” não é apenas a tirania da televisão – a manifestação mais superficial e imediata de uma realidade mais profunda –, mas todo o sistema econômico, social e político do capitalismo moderno (e de sua cópia burocrática no leste europeu), baseado na transformação do indivíduo em espectador passivo do movimento das mercadorias e dos acontecimentos em geral. Tal sistema separa os indivíduos uns dos outros, inclusive por meio de uma produção material que tende a recriar continuamente tudo o que engendra isolamento e separação, do automóvel à televisão.132 5.2 O capítulo III Para Debord, a presença do espetáculo nas relações sociais não significa a existência da sociedade do espetáculo. O espetáculo só existe nas formações sociais capitalistas. É no capitalismo que ocorre a separação entre os trabalhadores e as formas de produção. “A contradição, quando emerge no espetáculo, é por sua vez contradita por uma reinversão do seu sentido; de modo que a divisão mostrada é unitária, enquanto que a unidade mostrada está dividida”.133 Cláudio Novaes Pinto Coelho134 argumenta, nessa linha, que a sociedade capitalista, ao desenvolver técnicas de reprodução em larga escala, inicialmente limitadas aos bens materiais, e em seguida direcionadas também para os bens simbólicos, criou as condições para a existência do fetichismo da mercadoria e, em seguida, para o fetichismo das imagens. Para Jappe,135 não se trata aqui de nenhuma teoria da mídia, mas de uma crítica “incompatível com o capitalismo na época da mídia – o espetáculo não é outra coisa que a ‘economia enlouquecida’”. Nesse contexto, a sobrevivência da religião e da família – que permanece a forma principal da herança do poder de classe – e, portanto, da repressão moral que elas asseguram, podem combinar-se como uma mesma coisa. Com a afirmação redundante do gozo desse mundo, esse mundo não sendo justamente produzido senão como pseudogozo que conserva em si a repressão. A aceitação beata daquilo que existe pode juntar-se como uma mesma coisa a revolta puramente espetacular: isso traduz o simples fato de que a própria insatisfação se tornou uma mercadoria desde que a abundância econômica se achou capaz de alargar a sua produção ao tratamento de tal matéria-prima. A relação social entre as pessoas passa a ser a relação entre coisas. Zygmunt Bauman136 conversa com essa perspectiva quando parte de sua afirmação de que a modernidade imediata é “líquida” e “veloz”, mais dinâmica que a modernidade “sólida” que suplantou. A passagem de uma a outra acarretou profundas mudanças em todos os aspectos da vida humana. Vivemos em tempos líquidos, diz Bauman. Nada foi feito parar durar e hoje se vende, inclusive, o conceito de satisfação. Jappe137 alerta para o fato de que a sociologia da época anunciava que o capitalismo – domesticado como “economia democrática de mercado” – poderia ser melhorado, mas jamais abolido. As teorias sociais que, ao contrário, continuavam a expor a exigência de uma mudança radical, partiam da convicção de que o capitalismo não mais conheceria graves crises econômicas que pudessem desembocar em revoluções; concentravam toda a sua atenção na insatisfação dos indivíduos, na impossibilidade de controlarem suas condições de trabalho e suas vidas em geral. A esperança de que pudesse produzir-se “apesar de tudo” uma ação revolucionária dependia dessa insatisfação.138 Outro ponto importante dessa transformação social aparece na tese 60, quando Debord fala sobre a vedeta: A condição de vedeta é a especialização do vivido aparente, o objecto da identificação à vida aparente sem profundidade, que deve compensar a redução a migalhas das especializações produtivas efectivamente vividas. As vedetas existem para figurar tipos variados de estilos de vida e de estilos de compreensão da sociedade, livres de se exercerem globalmente.139 Onde há frustração, as imagens idealizadas aparecem como um universo de riquezas sem frustração. A metáfora da liquidez é utilizada para apresentar esse momento como um estágio dinâmico de mutações constantes, em que a etapa que substitui a transformação social anterior é logo superada por outra, que será igualmente superada por uma nova, sem que nenhuma se estabeleça. Nada é permanente. Os espetáculos tomam o lugar da supervisão sem perder o poder disciplinador do antecessor. A obediência aos padrões tende a ser alcançada hoje em dia pela tentação e pela sedução e não mais pela coerção – e aparece sob o disfarce do livre-arbítrio, em vez de revelar-se como força externa.140 A vedeta é isso, uma imagem de um possível papel a desempenhar que tem como grande referencial um viver aparente, objeto da identificação com a vida aparente sem profundidade, que deve compensar as infinitas subdivisões das especializações produtivas efetivamente vividas. Para o autor, as vedetas existem para figurar tipos variados de estilos de vida e de estilos de compreensão da sociedade, livres de se exercerem globalmente. Essas substituições encarnam o resultado inacessível do trabalho social, ao colocar como objetivo subprodutos que se fazem entender como objetivo final: o poder e as férias e a decisão e o consumo. Para Coan,141 o próprio trabalhador acredita que o valor de uma mercadoria não é uma consequência de seu tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção, mas que seja algo que decorre da “natureza” do produto. Paralelamente, dá-se a deslocação do trabalho em não trabalho, com a criação espetacular do lazer e dos tempos livres. Aqui ocorre a “submissão inquieta e admirativa às necessidades e aos resultados da produção”, revelando a omnipresença da amarra com que a atividade produtiva restringe a liberdade do trabalhador. Jappe142 acredita que Debord não se opõe à ideia de se perder no mundo circundante, mas acredita que Debord defenda um mundo em que dê vontade de se perder nele. Porém, o próprio Debord cita que os homens só se colocam problemas que podem resolver, mas o grande desafio é que, sim, os interesses que se imponham sejam interesses visados numa ordem social de uma classe inteira. Em sua tese 62, Debord preconiza: Lá onde se instalou o consumo abundante, uma oposição espectacular principal entre a juventude e os adultos vem no primeiro plano dos papéis falaciosos: porque em nenhum lado existe o adulto. Senhor da sua vida, e a juventude, a mudança do que existe, não é de modo nenhum a propriedade destes homens, que são agora jovens, mas a do sistema económico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se deitam fora e se substituem a si próprias.143 Passando no espetáculo como modelo de identificação, (o vedeta) renunciou a toda a qualidade autônoma, para ele próprio se identificar com a lei geral da obediência ao curso das coisas. Recorrendo novamente a Bauman, no atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem. Não há o tempo necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida. Ainda nessa linha: [...] que o destino final de toda mercadoria colocada à venda é ser consumida por compradores; que os compradores desejarão obter mercadorias para consumo se, e apenas se, consumi-las por algo que prometa satisfazer seus desejos; que o preço que o potencial consumidor em busca de satisfação está preparado para pagar pelas mercadorias em oferta dependerá da credibilidade dessa promessa e da intensidade desses desejos.144 Para tanto, Bauman cita que esses desejos que regem a sociedade do consumo precisam levar sempre para a não satisfação de seus membros para que a demanda de consumo não se esgote e a economia mantenha-se continuamente alimentada. Ou seja, a frustração dos desejos é essencial para a movimentação dessa economia e o excesso de informação gerado por ela levará, inevitavelmente, a uma incapacidade de assimilação por parte dos seus membros e a uma atitude “blasé” dessa sociedade, em relação ao conhecimento, ao trabalho e ao estilo de vida.145 Para o autor, quanto mais informação essa sociedade adquire, menor é o poder de assimilação e o seu envolvimento em relação a ela. Nada é levado muito a fundo. Ele considera que o consumismo aposta na irracionalidade dos consumidores, estimulando emoções consumistas e não cultivando a razão. Há uma constante adesão passiva e totalmente alienada à mercadoria. A produção incessante de mercadorias encontra no homem totalmente separado do processo um aglutinador de tão grande fluxo. Na mesma linha, Bauman146 afirma que “é preciso primeiro se tornar uma mercadoria para ter uma chance razoável de exercer os direitos e cumprir os deveres de um consumidor”. A consequência desse processo de socialização é a rendição cada vez mais abrangente do Estado à chantagem das forças do mercado. Quanto mais se tem, mais se deseja ter, e essa lógica do consumo, que rege a cultura consumista, é estimulada pelo mercado de modo contínuo e, consequentemente, nunca consegue satisfazer e realizar esses indivíduos, levando à eterna insatisfação. A tese 66 de Debord:147 O espetáculo não canta os homens e as suas armas, mas as mercadorias e as suas paixões. É nesta luta cega que cada mercadoria, ao seguir a sua paixão, realiza, de facto, na inconsciência algo de mais elevado: o devir-mundo da mercadoria, que é também o devir-mercadoria do mundo. Na mesma linha: A forma mercadoria penetra e transforma dimensões da vida social até então isentas de sua lógica, até o ponto em que a própria subjetividade se torna uma mercadoria a ser comprada e vendida no mercado, como a beleza, a limpeza, a sinceridade e a autonomia.148 Bauman reforça a ideia de que essa sociedade vê seus integrantes na condição básica de consumidores, reforçando estilos de vida pautados em estratégias consumistas e rejeitando toda e qualquer formação cultural. Assim, se na maior parte da história os homens foram vistos e treinados como força de trabalho, agora o são para serem consumidores onde não há distinção de classes ou gêneros e onde os mais ricos apenas reiteram sua hegemonia e os mais pobres lutam para não serem totalmente humilhados. Consumir, nos dias atuais, significa investir na inserção social, almejando obter qualidades para ser pretendido, mesmo que isso seja um ato inconsciente. 5.3 O poder espetacular difuso, concentrado e sua unificação: o poder integrado Vinte anos após 1968, Debord ainda traz uma reflexão fundamental sobre uma forma de poder ainda não discutida: o poder integrado. Se antes tínhamos o poder concentrado, centralizador e estatizante e, o poder difuso, um pluralismo que oferece as diferenças numa equivalência-geral, correspondendo às democracias liberais, com o poder integrado percebemos a incontestabilidade absoluta que a noção de meios e interesses adquiriu dentro do conceito de cultura e natureza. O poder concentrado é o típico do capitalismo burocrático, vinculado aos regimes totalitários. Debord acreditava ser ele a ditadura de uma economia burocrática que justificaria a exploração absoluta. A produção de mercadorias se apresenta sob uma forma concentrada, sendo a burocracia a controlar o trabalho social total. Nele, todos dependem do sistema. O que esse sistema vende como mercadoria é a própria sobrevivência. Para Debord, a ausência total de liberdades que vigora sob o espetacular concentrado é acompanhada de uma violência estatal permanente, “onde o espetacular concentrado domina, a polícia também domina”.149 Já o poder difuso aparece em regimes mais democráticos, em que a produção de mercadorias em larga escala dá a impressão ao consumidor de que ele tem a possibilidade de escolha. Um bom termo para exemplificar esse regime aparentemente mais democrático é “americanização do mundo”, como escreve Debord, que seria a representação do que é o poder difuso. A intervenção do Estado na economia sofre uma mudança qualitativa. O domínio da burguesia não se estabeleceu baseado em relações extraeconômicas de coerção e dependência, mas legitimado pelas relações de livre troca, dando aparência de liberdade e igualdade à dominação burguesa. Como as próprias relações de troca no mercado forneciam a legitimação para a dominação, o Estado pode se abster do uso da força contra a classe trabalhadora, por isso pode cumprir apenas funções mínimas. Mas um conjunto de fatores alterou a situação: a formação dos monopólios e a constante superacumulação dentro dos países imperialistas engendrou a necessidade de exportar os capitais para os domínios coloniais, acarretando uma crescente necessidade de aumentar o aparato estatal para fazer valer o domínio das metrópoles sobre as colônias. Também o acesso dos partidos socialistas ao parlamento e seus esforços para reformar o capitalismo; mais a situação calamitosa produzida pela guerra e a crise modificaram de fato o papel do Estado. Nessa configuração social específica, cada vez mais aumenta a crença na onipresença da tecnologia, sendo essa a característica básica da ideologia no capitalismo tardio, segundo Mandel.150 Na mesma linha de Debord, Mandel afirma que essa sociedade é uma combinação “híbrida” e “bastarda” de organização e desorganização. E de maneira alguma o valor de troca e a concorrência capitalista foram anulados, pois ainda a sociedade não se organiza para a produção de valores de uso destinados à satisfação das necessidades do homem. “A busca de lucro e a valorização do capital continuam sendo o motor de todo o processo econômico, com todas as contradições não resolvidas que elas geram de modo inexorável”. Portanto, se no capitalismo toda racionalidade, em última instância, remete à economia de tempo, vive-se num paradoxo, pois cada vez mais se percebe no âmbito geral um aumento do desperdício de trabalho. No capitalismo tardio, em que impera e especialização técnica, impera o especialista, sinal da cegueira diante do contexto global. Nessas sociedades, para Debord, “a mercadoria ocupou totalmente a vida social”.151 Nas sociedades dominadas pela forma difusa do espetáculo, ocorre uma ruptura com o desenvolvimento orgânico das necessidades sociais ensejando o surgimento de pseudonecessidades. Nas palavras de Debord, a “satisfação que a mercadoria abundante já não pode dar no uso começa a ser procurada no reconhecimento de seu valor como mercadoria: é o uso da mercadoria bastando a si mesmo”.152 Correa153 entende que “além de assinalar o caráter contraditório dessa sociedade, que se encontra simultaneamente unida e dividida, Debord percebe também a possibilidade de que as formas concentrada e difusa do espetáculo coexistam em um mesmo regime”, quando diz que a forma concentrada pode “ser importada como técnica de poder estatal em economias mistas mais atrasadas, ou em certos momentos de crise do capitalismo avançado”.154 Mas qualquer diferenciação, de acordo com Debord, entre os dois tipos de poderes é falsa, pois ambas se reduzem a uma unidade espetacular: O espetáculo, como a sociedade moderna, está ao mesmo tempo unido e dividido. Como a sociedade, ele constrói sua unidade sobre o esfacelamento. Mas a contradição, quanto emerge no espetáculo é, por sua vez, desmentida por uma inversão de seu sentido; de modo que a divisão é mostrada unitária, ao passo que a unidade é mostrada dividida.155 Em 1988, em Comentários sobre a sociedade do espetáculo, Debord reconhece um novo tipo de poder: o integrado. Globalista. São cinco os aspectos principais do espetáculo integrado:156 a incessante renovação tecnológica – que consiste em uma entrega do sistema a um corpo de especialistas; a fusão econômico-estatal – que possibilita maiores ganhos tanto para grupos privados quanto para os Estados; o segredo generalizado (aquilo que está por detrás do espetáculo e nunca aparece); a mentira sem contestação (com a extinção da verdade não há mais como formar a opinião pública) e a perpetuação do presente – pela abolição do conhecimento histórico, de forma geral, e de todas as informações e comentários contundentes de um passado. Em 1967, eu distinguia duas formas, sucessivas e rivais, do poder espetacular: a concentrada e a difusa [...]. Uma terceira forma constituiu-se a partir de então, pela combinação das duas anteriores, e na base geral de uma vitória da que se demonstrou mais forte, mais difusa. Trata-se do espetacular integrado, que doravante tende a se impor mundialmente.157 Há um estímulo ao comportamento passivo da sociedade. Tudo é posto como novidade, o que, nas palavras de Debord não passa de repetição; na verdade, é um artefato para ocultar o que realmente é importante. O indivíduo está em contato com o mundo por meio de imagens escolhidas por outro. Se algo por ventura escapar ao seu domínio, logo é acionada outra arma poderosa: o esquecimento. Lutando contra a marca autêntica do passado histórico, o espetáculo quer fazer esquecer que é um usurpado, como analisa Jappe.158 O espetáculo cria um presente eterno em que a repetição contínua das mesmas pseudonovidades faz desaparecer toda memória histórica a fim de que nenhum acontecimento possa mais ser compreendido. Há um vazio das forças sociais. O fetiche da mercadoria é bastante ilustrativo nesse sentido: um produto é colocado em evidência na vida social, é a última novidade, o lançamento do ano – esse é a auge (apesar de já ter sido feita a escolha do ponto de vista da produção, e esta só fica à espera de sua morte para lançar outra nova mercadoria em seu lugar); depois, seu prestígio tende a declinar; torna-se vulgar, pois sua mediocridade torna-se evidente. E assim, pouco tempo depois, é substituída por outra mercadoria ainda desconhecida. Debord argumenta, ainda, que o fortalecimento da sociedade do espetáculo: “Decorre do fato da dominação espetacular ter podido educar uma geração submissa a suas leis. As condições extraordinariamente novas em que viveu essa geração constituem um resumo exato e suficiente de tudo o que doravante o espetáculo impede e também tudo o que ele permite”.159 Debord não deixa dúvidas de que, ao integrado, nada escapa. Porque o sentido final do espetacular integrado é o fato de ele ter se integrado na própria realidade à medida que falava dela e de tê-la reconstruído ao falar sobre ela. Agora essa realidade não aparece diante dele como coisa estranha. Quando o espetacular era concentrado, a maior parte da sociedade periférica lhe escapava; quando era difuso, uma pequena parte; hoje, nada lhe escapa. O espetáculo confundiu-se com toda a realidade ao irradiá-la. Como era teoricamente previsível, a experiência prática da realização sem obstáculos dos desígnios da razão mercantil logo mostrou que, sem exceção, o devir-mundo da falsificação era também o devir-falsificação do mundo.160 Não podemos nos enganar ao achar que, para Debord, não há mais supressão das condições do capitalismo, que viveríamos em uma sociedade estável. A dominação capitalista, na verdade, está mais instável, bem como o grau alcançado pela falsificação do mundo. É a falsificação da história. Um aspecto do desaparecimento de todo conhecimento histórico objetivo se manifesta a propósito das reputações pessoais, que se tornaram maleáveis e corrigíveis à vontade por aqueles que controlam a informação, a que se colhe e também aquela, que é bastante diferente, que se divulga; eles têm autorização para falsificar. Pois uma evidência histórica que não interessa ao espetáculo não é uma evidência histórica.161 Há, como Debord162 menciona, uma crença absoluta nas inovações tecnológicas sem qualquer refutação mais detalhada ou crítica contumaz. Tudo o que venha dessa crença é tido como permanente e impassível de questionamento. O “falso sem réplica” corresponde ao já conhecido mundo das “pósverdades”, do ruído informativo que anestesia e impede a busca do verdadeiro sentido das coisas, criando espaço para se poder afirmar como Debord o fez “que jamais a censura foi tão perfeita”. Antigamente, dizia Guy Debord, “conspirava-se contra a ordem estabelecida, agora conspira-se a seu favor”. Hoje, a teoria da conspiração é generalizada, está em todo lugar. Economia e Estado não são vistos como forças separadas: pode-se dizer que cada uma das duas possui a outra; é um absurdo opor uma à outra, ou fazer uma distinção entre suas razões e desrazões. Coelho163 aponta que nos textos de 1988 “parece haver (nos Comentários) uma ruptura com argumentos defendidos anteriormente, que permitiam uma aproximação com a teoria crítica da sociedade”. Os comentários sobre o espetacular integrado “parecem semelhantes às afirmações de Baudrillard sobre a indistinção entre o real e o imaginário”,164 de modo que os Comentários marcariam não apenas a “adesão de Debord à perspectiva do ‘fim do social’”, como “parecem repercutir o tema pós-moderno da ‘morte do sujeito’”.165 Segundo Debord, no estágio integrado da sociedade do espetáculo, não há mais a possibilidade de se referir ao autêntico, pois em toda a parte ele é substituído pelo artificial, não havendo, desse modo, mais espaço para nenhuma verificação. Nele, a arte morreu e o fluxo de imagens, como resumo simplificado do mundo sensível, carrega tudo. Como era teoricamente previsível, a experiência prática da realização sem obstáculos dos desígnios da razão mercantil logo mostrou que, sem exceção, o devir-mundo da falsificação era também o devir-falsificação do mundo.166 A relação da sociedade com o espetáculo é concebida como “uma negação da vida que se tornou visível”.167 Considerações finais Max Horkheimer, em seu texto de 1937, “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, já argumentava que um dos principais elementos que diferem nas formas de se construir conceitualmente o conhecimento é que os conceitos da teoria crítica são históricos: não pretendem dar conta da realidade de todas as sociedades em todas as épocas, mas procuram compreender realidades determinadas historicamente. Por sua vez, Debord acreditava que a “crítica teórica” e a “prática da agitação”, destinadas a transformar as condições de uma vida ao serviço do império da servidão, seriam a via mais eficaz para alcançar a Revolução, os acontecimentos do pós-68 e o modo como se foi afirmando que a “Sociedade do Espetáculo” retiram-lhe, em grande medida, esse otimismo. Ao contrário do que se tem escrito sobre o texto de 1988, nele Debord parece entrever uma abertura para o eclipse da história sob o crepúsculo do espetáculo integrado, o que depende de fatores ainda em luta e, por isso, de desfecho imprevisível, afinal, a ideologia do “fim da história” não passa, para o autor dos Comentários, de “um agradável repouso para todo poder presente”. O trabalho da crítica revolucionária seguramente não é o de levar as pessoas a descrer da possibilidade da revolução, muito pelo contrário. Segundo o autor, jamais as condições foram por toda parte tão gravemente revolucionárias, diferentemente também do que pensa Michael Löwy,168 para quem Debord, convencido da derrota do conjunto do ‘projeto revolucionário’ desde os anos 1930 [...] denuncia no ‘espetáculo integrado’ a eliminação sistemática da história e a aniquilação de todo projeto crítico. Coelho169 adverte que “o conceito de sociedade do espetáculo é uma tentativa de compreensão das características de uma fase específica da sociedade capitalista” e por isso [...] não pode ser confundido com aqueles que se propõem, explícita ou implicitamente, a substituir o conceito de sociedade capitalista como o mais abrangente para explicar a realidade social contemporânea, como os conceitos de sociedade pós-industrial, pós- moderna da informação, das redes etc. Na mesma linha, o autor sempre ressaltou em sua obra as contradições existentes no exercício do poder espetacular integrado. O que a obra SE traz, mais do que tudo, é uma reflexão fundamental sobre a problematização das visões extremamente otimistas de que a sociedade do espetáculo não é nada mais do que conjecturas teóricas e não um convite à reflexão. Como antecipou Corrêa,170 infelizmente não encontramos na nossa época um grande estrategista histórico como Debord, capaz de entender a sociedade e visionar aspectos latentes. Enquanto isso, mergulhamos no poder espetacular integrado, acreditando tanto em suas crenças e desprezando fatos. A servidão voluntária alimenta o poder integrado. Referências ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ______. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. 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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 6 AUTOEMANCIPAÇÃO CONTRA BUROCRATIZAÇÃO: O PROLETARIADO COMO SUJEITO E COMO REPRESENTAÇÃO Erick Quintas Corrêa 6.1 Considerações introdutórias acerca da centralidade do capítulo IV d’a sociedade do espetáculo Numa espécie de sumário temático d’A sociedade do espetáculo, publicado em 1969, na primeira (e única) edição da revista da seção italiana da Internacional Situacionista, seus editores advertiam que o capítulo IV, intitulado O proletariado como sujeito e como representação, “ocupa a parte central do livro”.171 Tal centralidade, porém, não se refere tão somente à posição ocupada pelo capítulo IV na ordem expositiva do livro, nem ao fato desse ser o seu capítulo mais extenso, mas principalmente ao lugar central que a luta de classes, nele diretamente tematizada, ocupa na teoria crítica do espetáculo. Apesar disso, alguns intelectuais marxistas, como o sociólogo Claude Lefort (1924-2010), insistiram em ignorar tal centralidade e em afirmar, contra toda evidência e sem qualquer argumentação, justamente o contrário, isto é, que “quando se lê Debord, toda a história parece vã; o espetáculo reina, de uma vez por todas, sobre o império da passividade e se banha indefinidamente sobre sua própria glória”.172 Ora, uma leitura superficial do capítulo IV de A sociedade do espetáculo – em que Debord retoma justamente a história do movimento operário revolucionário, elaborando uma síntese sobre as derrotas da revolução proletária e sobre seu retorno, que incide sobre a questão da organização revolucionária e culmina em uma defesa do poder absoluto dos conselhos proletários – bastaria para colocar por terra a argumentação do antigo membro do Socialisme ou Barbarie (1949-67). Ao contrário do que afirma Lefort, nesse capítulo Debord aposta muito claramente em um retorno da moderna revolução social que, com efeito, irromperia em maio-junho de 1968, ou seja, poucos meses depois de Lefort publicar o seu veredicto sobre Debord e os situacionistas na revista Quinzainelittéraire, em 15 de fevereiro de 1968. Por outro lado, em seu livro Posição contra os tecnocratas,173 Henri Lefebvre (1901-91) reconhecia o prognóstico revolucionário dos situacionistas, porém desdenhava de seu valor heurístico: Ora, eles [os situacionistas] não propõem uma utopia concreta, mas sim uma utopia abstrata. Acreditam de fato que um belo dia, ou numa noite decisiva, as pessoas irão se olhar de frente e dizer: “Basta! Chega de trabalho e de tédio! Acabemos com isso!” e que eles entrarão para a Festa Imortal, na criação de situações? Se isso aconteceu uma vez em 18 de março de 1871, ao alvorecer, essa conjuntura não se reproduzirá mais.174 No décimo segundo (e último) número da revista Internacional Situacionista,175 os situacionistas admitiam, com o deboche que lhes era peculiar, que Lefebvre não seria o único intelectual que o Maio de 68 “definitivamente ridicularizou”: No calor da hora, em maio, todos os pesquisadores do nada histórico admitiram que ninguém tinha previsto o que havia acontecido. Com exceção de todas as seitas de “bolcheviques ressuscitados” que, durante os trinta últimos anos, não haviam parado um instante de assinalar a iminência da revolução de 1917.176 Mas não se tratava, para Debord e os situacionistas, de “profetizar” nem de “calcular cientificamente” a data em que ocorreriam os primeiros grandes abalos da sociedade do espetáculo: “Naturalmente, não profetizamos nada, dissemos o que estava ali”.177 Nos anos que antecedem a detonação francesa de maio-junho de 1968, a agitação de coloração libertária e revolucionária vinha crescendo e já era perceptível na realidade de diversos países modernos, como na revolta dos estudantes de Berkeley contra a hierarquia universitária; na irreverência debochada da contracultura holandesa (Provos) e do tropicalismo brasileiro; na crítica proletária do poder da classe burocrática nos países do leste europeu, como a Polônia, Hungria e Tchecoslováquia (além da zona oriental da Alemanha); no movimento antinuclear inglês e dinamarquês; nas ligas anti-hierárquicas e unificadas dos estudantes e operários japoneses (Zengakuren); nas greves selvagens dos operários belgas (Liège) e dos mineiros espanhóis (Astúrias); no movimento de ocupações de universidades, no ano de 1967, na Itália (Pisa, Bolonha etc.) e na França (Strasbourg, Nanterre etc.), cujas experiências reagiriam como catalisadoras da revolta operária subsequente, que explodiria tanto nas fábricas e escritórios de Paris, em maio-junho de 1968, como no “outono quente” de 1969, na Itália. O mérito da aposta situacionista no retorno da moderna revolução social foi justamente o de ter identificado, nas contestações sociais de seu próprio tempo, as principais características do movimento de ocupações de fábricas e universidades que eclodiria entre os meses de maio e junho de 1968, levando tanto a uma greve geral como não se via na França desde 1936,178 quanto a uma crise sociopolítica cuja gravidade não se via desde 1871 – para a surpresa do professor Lefebvre. Desde então, a cada dez anos, observamos a proliferação de publicações “comemorativas” que, com o objetivo de resgatar a memória histórica de 1968, muitas vezes acabam por mistificá-la, conforme Debord adverte em seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo: “Há vinte anos nada é tão dissimulado com mentiras dirigidas quanto a história de maio de 1968”.179 Vinte anos depois dos Comentários, num artigo acadêmico consagrado à questão das relações entre os intelectuais franceses e o Maio de 68, lê-se que “nenhum deles antecipou os eventos, para todos foi uma surpresa”,180 verificando, assim, quarenta anos depois de 1968, a correção do diagnóstico dos situacionistas publicado já em 1969, no décimo segundo (e último) número da revista de sua organização. O biênio 2017-18 assinala o cinquentenário de uma configuração histórica saturada de expectativas libertárias e revolucionárias como aquela experimentada em âmbito intercontinental nos anos 1960, e cuja efervescência reagiria explosivamente nas crises sociopolíticas de 1967-68, em países onde a extensão e intensidade dos abalos se fizeram sentir de modo mais agudo, como Brasil, México, Estados Unidos, França, Itália, Alemanha, Tchecoslováquia e Japão. Os anos que circundam 1968 seriam marcados pela crise convergente dos regimes democráticos do ocidente e das burocracias totalitárias do leste que, precipitadas e agravadas por revoltas antissistêmicas, como as deflagradas em Paris e Praga, terminariam configurando eventos que Wallerstein chamaria de “histórico-mundiais”, como a Revolução Francesa e a Rebelião de São Domingos, entre 1789-91 – nas/pelas quais coincidem as quedas tanto do Absolutismo como do Colonialismo; ou a reunificação da Alemanha e a queda da URSS, exatamente dois séculos depois, entre os anos de 1989-91 – em que convergem tanto o esgotamento do Absolutismo Soviético como a conclusão da Guerra Fria. Lembrar essas condições históricas é importante para o nosso propósito, pois O proletariado como sujeito e como representação, capítulo situado na sequência dos três primeiros, puramente conceituais (A separação consumada, A mercadoria como espetáculo e Unidade e divisão na aparência), tem o objetivo de apresentar as bases materialistas da exposição conceitual/categorial que o precede. Alguns aforismos do capítulo VIII (A negação e o consumo na cultura) explicam tal procedimento. Ao criticar a sociologia moderna, particularmente o livro The image: a guide to pseudo-events in America,181 do norte-americano Daniel Boorstin, Debord o acusa de não compreender que a proliferação dos “pseudoacontecimentos” que ele denuncia decorre do fato de os homens, na realidade maciça da vida social atual, “não viverem acontecimentos”. Isso porque, segundo Debord, “surge uma pseudo-história construída em todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do atual tempo congelado”.182 No que concerne ao “pensamento anti-histórico” do estruturalismo, Debord diz que seu ponto de vista “é o da eterna presença de um sistema que jamais foi criado e jamais acabará”.183 Esse agudo déficit de consciência histórica, diagnosticado com precisão no texto de 1967, é a razão pela qual Debord repõe uma proposição central da concepção materialista da história,184 que diz respeito à tensa relação entre o plano lógico/conceitual e o plano histórico: “Como em toda ciência social histórica, é preciso sempre manter presente [...] que as categorias expressam formas de existência e condições de existência”.185 Veremos, nesta breve apresentação do capítulo IV d’A sociedade do espetáculo, como as origens do poder espetacular residem justamente nas derrotas das tentativas de revolução proletária ocorridas em diversos países europeus186 no primeiro quarto do século XX (especificamente no período de 1917-21), que na década de 1930 desembocaria nas contrarrevoluções totalitárias fascista, na Itália, nazista, na Alemanha, e stalinista, na Rússia. Em outras palavras, Debord situa as origens do ciclo espetacular do capitalismo justamente no conflito dinâmico entre processos revolucionários e contrarrevolucionários. Isso porque a pedra de toque da crítica social debordiana reside, como veremos, justamente em sua primordial e constante referência ao conflito histórico real da luta de classes moderna, às contradições sociopolíticas subjacentes a um sistema em permanente estado de crise, o que torna difícil, senão impossível, compreender Debord se o que se pretende é dissociar, de modo positivista, a sua crítica do espetáculo tanto da luta de classes quanto dos conflitos ideológicos de sua época. 6.2 Autoemancipação: o proletariado como sujeito Como já foi dito, no quarto capítulo d’A sociedade do espetáculo, Debord tematiza a difícil questão da relação entre os planos lógico/categorial e histórico, entre as correntes teóricas e práticas do “movimento real que suprime as condições existentes”187, segundo a definição de comunismo apresentada por Marx e Engels n’A ideologia alemã (1845-6). Esse movimento teria, segundo Debord, sua gênese “a partir da vitória da burguesia na economia e, visivelmente, desde a tradução política dessa vitória”,188 quando se constitui pela primeira vez algo como um sujeito da história que “só pode ser o ser vivo produzindo a si mesmo, tornando-se mestre e possuidor de seu mundo que é a história, e existindo como consciência de seu jogo”.189 Essa consciência está presente na filosofia de Hegel (1770-1831), cujo “pensamento da história” é indissociável da “época revolucionária” inaugurada pelas forças econômicas burguesas entre os séculos XVII e XVIII. Inspirado pelas Teses sobre Hegel e a revolução,190 do marxista heterodoxo alemão Karl Korsch (1886-1961), Debord lembra que, até como filosofia da revolução burguesa, Hegel não exprimiu todo o processo dessa revolução, “mas apenas a sua conclusão derradeira”191, de modo a reconciliar-se com os seus resultados: “Esse pensamento histórico ainda é a consciência que sempre chega atrasada, e que enuncia a justificativa post festum”.192 Já a “existência em atos” do proletariado manifestaria, a partir da metade do século XIX – na revolução alemã de 1848, na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), em 1864, e na Comuna de Paris, em 1871 –, que esse pensamento da história não fora esquecido, uma vez que “todas as correntes teóricas do movimento operário revolucionário são resultantes do confronto crítico com o pensamento hegeliano, seja em Marx, seja em Stirner e Bakunin”.193 Assim como para outros marxistas heterodoxos, como Rosa Luxemburgo, Karl Korsch, György Lukács e Herbert Marcuse, também para Debord o caráter revolucionário da teoria de Marx é inseparável do método dialético de Hegel, aspecto que seria visto no/pelo revisionismo bernsteiniano, justamente “como o ponto fraco do que se tornava falaciosamente uma doutrina marxista”.194 Segundo Debord, o que aproxima a teoria de Marx do pensamento científico é de fato uma “compreensão racional das forças que se exercem na sociedade”, porém, diferentemente do que defendiam os marxistas ortodoxos da Segunda Internacional (1864-1914), a teoria de Marx compreende uma conservação/superação dialética do pensamento científico, pois a crítica marxiana da economia política exprime antes “uma compreensão da luta, não da lei”:195 Se o projeto de superar a economia e de apossar-se da história precisa conhecer – e trazer para si – a ciência da sociedade, ele não pode ser em si científico. Neste último movimento que acreditou dominar a história atual por um conhecimento científico, o ponto de vista revolucionário permaneceu burguês.196 Se, no pensamento histórico de Hegel, a consciência chegava sempre “atrasada”,197 no processo de ideologização pelo qual a teoria marxiana se transformava em “marxismo”, “a consciência sempre chega cedo demais, e deverá ser ensinada”.198 Debord responsabiliza, em parte, o próprio Marx por tal processo: Durante toda a vida, Marx manteve o ponto de vista unitário de sua teoria, mas a exposição dessa teoria manteve-se no terreno do pensamento dominante ao adotar a forma de críticas de disciplinas particulares, principalmente a crítica da ciência fundamental da sociedade burguesa, a economia política. Foi essa mutilação, ulteriormente aceita como definitiva, que constituiu o “marxismo”.199 Disse “em parte”, pois Debord atribui essa insuficiência na teoria de Marx à “falha da luta revolucionária de sua época”, dado que a classe operária não decretou a revolução permanente na Alemanha de 1848 e a Comuna foi vencida no isolamento: “Portanto, a teoria revolucionária ainda não atingira a sua própria existência total”.200 Marx seria também responsável, além disso, por sustentar, desde o Manifesto de 1847, uma “imagem linear do desenvolvimento dos modos de produção”, cuja locomotiva, como se sabe, é a luta de classes. Contudo, o esquema linear de Marx perde de vista, segundo Debord, “que a burguesia é a única classe revolucionária que sempre venceu”201, dado que “as revoltas de servos nunca venceram os barões, nem as revoltas de escravos na Antiguidade derrotaram os homens livres”.202 Na defesa científica da revolução proletária Debord acusa uma equivocada “identificação do proletariado com a burguesia do ponto de vista da tomada revolucionária do poder”.203 Se, segundo a análise contida n’O capital,204 a burguesia e o proletariado constituem as duas únicas classes revolucionárias da história, um século depois, Debord acrescenta que a primeira chegou ao poder por ser “a classe da economia que se desenvolve”, enquanto o segundo “só poderá ser o poder se ele se tornar a classe da consciência”, de modo que “a conquista jacobina do Estado não pode ser o instrumento do proletariado”.205 Para que a classe proletária se constitua como sujeito da história, é preciso que existam determinadas condições práticas da consciência, que Debord atribui à “organização das lutas revolucionárias” e à “organização da sociedade no momento revolucionário”.206 Assim como para diversos intelectuais ligados à corrente do “comunismo de conselhos” composta por, entre outros marxistas heterodoxos, Anton Pannekoek (1873-1960) e Karl Korsch, Debord e os situacionistas não admitiam, na práxis do movimento proletário, “o uso de métodos estatais e hierárquicos tirados da revolução burguesa”,207 em oposição ao chamado “comunismo de partido” ou “de parlamento”, defendido pela esquerda socialdemocrata e comunista no primeiro quarto do século XX.208 Os conselhos (soviets, em russo; raete, em alemão) que, em oposição a partidos e sindicatos haviam surgido no decorrer da primeira revolução russa em 1905209 e, mais tarde, espraiado-se tanto no/pelo processo revolucionário que retornava na Rússia (1917-21), como na Ucrânia (1917-18), Alemanha (1918-20), Hungria (1919), Itália (1919-20) e China (1925-27), também seriam vistos pelos situacionistas como “o meio prático que faltava à teoria para que ela fosse verdadeira”.210 Segundo Debord, “a mais elevada verdade teórica da Associação Internacional dos Trabalhadores”, segundo a qual a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores, “era sua própria existência prática”.211 Mas a rápida derrota da AIT em 1871 e a dura repressão que se abatera sobre ela deram origem a uma “querela” dentro da organização, entre duas concepções aparentemente rivais, que opunha, de modo inconciliável, marxistas a bakuninistas.212 Mas segundo o situacionista, ambas as concepções “contêm uma dimensão autoritária, que faz com que a autoemancipação consciente da classe seja deixada de lado”213. Ninguém melhor do que o próprio Debord para explicar sua tese: A querela [...] era dupla, referindo-se não só ao poder na sociedade revolucionária, mas também à organização do movimento revolucionário no momento presente. Ao passar de um aspecto para o outro, as posições dos adversários se invertem. Bakunin combatia a ilusão de que as classes pudessem ser abolidas pelo uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma classe dominante burocrática e a ditadura dos mais doutos, ou dos assim considerados. Marx acreditava que um amadurecimento inseparável das contradições econômicas e da educação democrática dos operários reduziria o papel do Estado proletário a uma simples fase de legalização de novas relações sociais que se imporiam objetivamente. Ele denunciava em Bakunin e seus adeptos o autoritarismo de uma elite conspiradora que se colocara deliberadamente acima da Internacional e tinha o intuito extravagante de impor à sociedade a ditadura irresponsável dos mais revolucionários, ou daqueles que iriam se designar como tais. [...] Assim se opuseram duas ideologias da revolução operária, cada qual contendo uma crítica parcialmente verdadeira, mas perdendo a unidade do pensamento da história, e instituindo-se elas próprias como autoridades ideológicas. Organizações poderosas, como a social-democracia alemã e a Federação Anarquista Ibérica, serviram fielmente a uma ou outra destas ideologias; em toda parte o resultado foi muitíssimo diferente do que se pretendia.214 Esse ponto de inflexão histórico repercutiria numa série de derrotas posteriores do proletariado em diversos países europeus. A cesura originária no álbum de família da revolução proletária entre marxistas e bakuninistas (comunistas e anarquistas) refletir-se-ia exemplarmente em eventos traumáticos para a sua memória, como a repressão dos bolcheviques, liderada por Trotsky à Makhnovistchina215 (1918-19), na Ucrânia e, na sequência, a brutal repressão aos marinheiros, operários e soldados revolucionários do soviete, de Kronstadt, em 1921. Sempre refletindo o antagonismo entre os paradigmas conflitantes da autoemancipação (revolucionária) do proletariado e de sua representação burocrática (contrarrevolucionária), essa antiga celeuma se apresentaria novamente no desfecho regressivo das crises espanhola, de 1936-37;216 húngara, de 1956;217 francesa, de maio-junho de 1968218; italiana, de 1968-69219 e 1977;220 portuguesa, de 1974-75,221 quando entra em cena o papel contrarrevolucionário dos partidos comunistas e dos sindicatos sob sua direção. Passemos agora à crítica dos situacionistas e de Debord em relação às diversas “ideologias revolucionárias”, como o anarquismo; o “marxismo ortodoxo”, da Segunda Internacional; o “marxismoleninismo-stalinismo”, da Terceira (1919-43) e o “trotskismo”, da Quarta (fundada em Paris no ano de 1938), sob a direção burocrática das/pelas quais “o proletariado dos países industriais perdeu toda a afirmação de sua perspectiva autônoma”.222 6.3 Burocratização: o proletariado como representação Desde a crise revolucionária dos anos 1917-21, o continente europeu não via uma tentativa de poder proletário ser esboçada como na ocasião surgida na guerra civil espanhola. Contudo, embora reconheça que, “em 1936, o anarquismo conduziu uma revolução social e o esboço, o mais avançado que se conheceu, de um poder proletário”,223 Debord não deixa de lembrar o fato de que os anarquistas confederados na FAI (Federação Anarquista Ibérica), ao invés de propagarem a luta de classes contra a burguesia no auge da crise, optaram pela colaboração de classes na luta contra Franco e o fascismo, juntando-se ao governo da Frente Popular224 – o que lhes valeram muitas acusações de “traição” de diversos grupos anarquistas de outros países. Com efeito, a incorporação das milícias no Exército regular, assim como a supressão do Partido Operário de Unificação Marxista (Poum),225 em Madri, seriam decretadas com sua aprovação.226 Por essa via que, de fato, desviava-se dos princípios de base do anarquismo, a FAI contribuía com a reorganização do poder político burguês na Espanha, enquanto pouco fazia pela formação de um poder político verdadeiramente proletário: “Seus chefes reconhecidos tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruía a revolução para pôr fim à guerra civil”.227 Além disso, diz Debord, por desconsiderar o abismo que separa as condições e formas de existência “entre uma minoria agrupada na luta atual e a sociedade dos indivíduos livres”, os anarquistas demonstram uma frequente fragmentação tática “no momento da decisão comum, como se vê no exemplo de uma infinidade de insurreições anarquistas na Espanha, cerceadas e esmagadas em âmbito local”.228 Já o “marxismo ortodoxo” da Segunda Internacional (expressão teórica do partido social-democrata alemão) representava, segundo Debord, a ideologia científica da revolução socialista, “que identifica toda a sua verdade com o processo objetivo da economia e com o progresso de um reconhecimento dessa necessidade por parte da classe operária educada pela organização”.229 Assim, a “ideologia da organização social-democrata” entregava o proletariado ao poder dos professores que deveriam educar a classe operária, cuja “forma de organização adotada era adequada a essa aprendizagem passiva”.230 Crítica essa que não era nova, pois já havia sido formulada teoricamente no decorrer da primeira revolução russa, em 1905, em textos do russo-polonês Jan Waclav Makhaïski (1886-1926), para o qual a abolição da propriedade privada, apesar de ser uma condição necessária à implementação do socialismo, não seria, entretanto, suficiente, caso fosse mantida a divisão social do trabalho fundada na separação entre o trabalho manual e o intelectual, entre aqueles que pensam/ensinam e aqueles que executam/aprendem.231 Assim, a prática essencialmente reformista da Segunda Internacional, apesar de sua aparência revolucionária, arrastava para o modo de vida burguês e para a agitação legalista (parlamentar e sindical) “aqueles que haviam sido recrutados a partir das lutas dos operários industriais, de cujo meio provinham”,232 como Friedrich Ebert,233 o ex-operário que, na condição de dirigente do partido socialdemocrata alemão, tornar-se-ia, nas palavras de Debord, um “bom precursor da representação socialista que pouco depois devia se opor como inimigo absoluto ao proletariado da Rússia e de alhures”.234 Já as condições de atraso da Rússia não permitiam a prática reformista que a Segunda Internacional conduzia na Alemanha. A Primeira Guerra Mundial (1914-18) estabeleceu “o fim sangrento das ilusões democráticas do movimento operário”,235 de modo que o radicalismo ideológico autoritário dos bolcheviques se estende em escala mundial, quando passa a ser oferecido pelo proletariado de todos os países seu modelo hierárquico e ideológico de revolução. Nesse sentido, para Debord, “Lênin não criticou o marxismo da Segunda Internacional por ser uma ideologia revolucionária, mas por ter deixado de ser essa ideologia”.236 O centésimo aforismo d’A sociedade do espetáculo enuncia uma das principais teses do livro, quando Debord identifica na capitulação do partido socialdemocrata alemão diante da guerra (expressamente indesejada pela classe operária) e no triunfo do bolchevismo contra o poder autônomo dos sovietes na Rússia, “o nascimento completo de uma ordem de coisas que está no âmago da dominação do espetáculo moderno: a representação operária opôs-se radicalmente à classe”.237 Assim, a destruição da minoria radical do movimento operário europeu, como ocorrera primeiro na Alemanha, com a aniquilação do levante spartaquista (1919) e, em seguida, na repressão ao soviete de Kronstadt (1921), na Rússia, constituem, para Debord, alguns dos fenômenos originários da sociedade do espetáculo, uma vez que abriram as portas para a contrarrevolução totalitária nazista e stalinista dos anos 1930: No X Congresso, no momento em que o soviete de Kronstadt era abatido pelas armas e enterrado sob calúnia, Lênin pronunciava contra os burocratas de esquerda organizados na “Oposição Operária” esta conclusão, cuja lógica Stalin ia estender até a perfeita divisão do mundo: “Aqui, ou além com um fuzil, mas não com a oposição... Estamos fartos da oposição”.238 Na esteira da tradição esquerdista,239 minoritária e radical do movimento operário da primeira metade do século XX, Debord considerava a URSS um regime capitalista de Estado, assim como assimilava a burocracia bolchevique a uma classe dominante. Seguia, nisso, o italiano Bruno Rizzi (1901-77) que, em polêmica com Trotsky no final dos anos 1930, defendia que o Estado “soviético” nunca teria sido um “Estado operário”, pois a classe capitalista não havia sido substituída, na Rússia, pela classe operária, mas pela sua representação burocrática, constituída pelos quadros tecnocráticos do Estado e do partido bolchevique: “ao se apossar do Estado, a burocracia revolucionária que dirigia o proletariado forneceu à sociedade uma nova dominação de classe”.240 Segundo Debord, Trotsky “recusou-se a reconhecer na burocracia o poder de uma classe separada, porque ele se tornara durante a segunda revolução russa o adepto incondicional da forma bolchevique de organização”.241 Para Debord, a burocracia bolchevique não constituiu senão “uma classe dominante substituta da economia mercantil [...], sendo a continuação do poder da economia, a salvação do essencial da sociedade mercantil que mantém o trabalho-mercadoria”.242 Referindo-se à ruptura sino-soviética, que havia levado “ao confronto público e completo da mentira russa com a mentira chinesa”, Debord dizia que “a burguesia está perdendo o adversário que objetivamente a sustentava, pois unificava de modo ilusório toda a negação da ordem existente”.243 Afinal, o momento do “internacionalismo” socialista já havia sido definitivamente enterrado com a doutrina staliniana do “socialismo em um só país”, que resultaria na destruição das revoluções de 1925-27, na China, e de 1936-37, na Espanha. Em suas palavras, a partir de então, “cada burocracia no poder, ou cada partido totalitário candidato ao poder que o período stalinista deixou em algumas classes operárias nacionais, deve seguir seu próprio caminho”.244 Com efeito, continua Debord, nos países subdesenvolvidos, “a ilusão neoleninista do trotskismo atual”245 encontrava um “campo natural de aplicação privilegiado”, na medida em que uma burocracia podia surgir “ao enquadrar a luta nacional e a revolta agrária dos camponeses”, ou a partir “da pequena-burguesia dos quadros do Exército que tomam o poder”246: Em certos lugares, como na Argélia ao sair de sua guerra de independência, a burocracia, que se constituiu como direção paraestatal durante a luta, busca o ponto de equilíbrio de um compromisso para fundir-se com uma fraca burguesia nacional. Enfim, nas antigas colônias da África negra que continuam abertamente ligadas à burguesia ocidental, americana e europeia, uma burguesia se constitui – quase sempre a partir da força dos chefes tradicionais do tribalismo – para possuir o Estado: nesses países em que o imperialismo estrangeiro continua sendo o verdadeiro senhor da economia, chegou-se a um estágio em que os compradores receberam, em compensação por sua venda de produtos indígenas, a propriedade de um Estado indígena, independente diante das massas locais mas não diante do imperialismo. Nesse caso, trata-se de uma burguesia artificial que não é capaz de acumular, mas que simplesmente dilapida, tanto a parte da mais-valia do trabalho local que lhe cabe quanto os subsídios estrangeiros outorgados pelos Estados ou monopólios que são seus protetores. A evidência da incapacidade dessas classes burguesas para cumprirem a função econômica normal da burguesia faz surgir diante de cada uma delas uma subversão que tenta adaptar o modelo burocrático às particularidades locais e quer recolher a sua herança. Mas o próprio sucesso de uma burocracia no seu projeto fundamental de industrialização contém necessariamente a perspectiva de seu fracasso histórico: ao acumular capital, ela acumula proletariado, e cria seu próprio desmentido, num país em que ele ainda não existia.247 Para os situacionistas, os modelos de libertação de Frantz Fanon, Fidel Castro e Che Guevara não representavam senão a “falsa consciência através da qual o campesinato conclui a imensa tarefa de desembaraçar-se da sociedade pré-capitalista e suas sequelas semifeudais e de ascender à dignidade nacional”.248 Aqui, eles criticavam os modelos ideológicos vigentes, que resultavam de uma anacrônica personalização ainda em voga no movimento revolucionário “terceiro-mundista” dos anos 1960, sob as formas caricaturais fanonista, castrista e guevarista. Anacrônica, pois a crítica situacionista apenas restaurava, cinquenta anos depois, a crítica do esquerdismo germano-holandês do primeiro quarto do século XX ao mito dos “grandes dirigentes” da época da Segunda e da Terceira Internacional (1919-43), que por deterem um peso tão grande em seu seio chegariam ao ponto de dominar a organização inteira. Pouco antes de romper com o PC holandês e ajudar a fundar o Partido Comunista Operário da Alemanha (KAPD),249 o esquerdista holandês Herman Gorter (1824-1927), em polêmica aberta contra Lênin,250 alertava para o fato de que a organização revolucionária nos países ocidentais mais desenvolvidos, como Alemanha, Holanda e Inglaterra, havia se tornado mais impessoal e mais coletiva, menos verticalizada, portanto: “Você não observou, companheiro Lênin, que não há ‘grandes’ dirigentes na Alemanha? Todos são homens absolutamente comuns”.251 Do mesmo modo, os situacionistas não consideravam em sua época o titoísmo252 iugoslavo, o maoísmo253 chinês, o benbelismo254 argelino e o nasserismo255 egípcio, senão como: [...] ideologias que anunciam o fim desses movimentos e sua apropriação privada por camadas urbanas pequenoburguesas ou militares: a recomposição da sociedade da exploração, mas desta vez com novos mestres e na base de novas estruturas socioeconômicas [...] A burocracia moderna, como a mais antiga (chinesa, por exemplo), edifica seu poder e sua prosperidade sobre a super-exploração dos camponeses: a ideologia não muda em nada a questão. Na China ou em Cuba, no Egito ou na Argélia, em todos os lugares ela cumpre o mesmo papel e assume as mesmas funções.256 Entretanto, tal processo de “burocratização do mundo” (expressão originalmente cunhada por Rizzi, em 1939)257, pelo qual “o proletariado dos países industriais perdeu toda a afirmação de sua perspectiva autônoma e, em última análise, suas ilusões, mas não o seu ser”,258 não teria levado a uma supressão do mesmo, uma vez que ele “permanece irredutivelmente existente na alienação intensificada do capitalismo moderno: ele é a imensa maioria de trabalhadores que perderam todo poder sobre o uso de sua própria vida”.259 Desde a metade da década de 1960, portanto, os situacionistas pareciam intuir que a lógica alienada típica do trabalho assalariado havia se estendido à totalidade da vida cotidiana, ao conduzirem a luta de classes para os domínios dos lazeres, do urbanismo, da arquitetura e da arte moderna. Em 1967, Debord apresenta uma concepção ampla, pluriclassista, de proletariado, que em suas palavras seria objetivamente reforçada tanto pelo “movimento de desaparecimento do campesinato”, como pela “extensão da lógica do trabalho fabril que se aplica a grande parte dos ‘serviços’ e das profissões intelectuais”.260 Com efeito, a composição heterogênea do movimento de maio-junho de 1968, engrossada pela ação espontânea de funcionários do setor terciário, estudantes, professores, profissionais da saúde, dos correios, publicitários, ferroviários, motoristas de táxi, jornalistas, cineastas, jogadores de futebol, prisioneiros, bem como de setores conscientes do lumpemproletariado, além das vítimas da opressão (neo)colonialista, patriarcal e heteronormativa, viria a testemunhar tanto a modernidade do processo revolucionário em curso quanto a validade da concepção situacionista de proletariado. 6.4 Às portas da revolução de 1968: um prognóstico do “segundo assalto proletário contra a sociedade de classes” Embora não polemize diretamente com esse ou aquele teórico, no quarto capítulo d’A sociedade do espetáculo, Debord apresenta um prognóstico bem diferente, senão oposto, daquele que Marcuse havia exposto apenas um ano antes em O homem unidimensional [One-dimensional Man],261 livro no qual o marxista alemão argumentava que o sistema capitalista havia conseguido, a despeito de suas persistentes contradições, canalizar seus antagonismos na integração das classes que antes encarnavam sua negação:262 A Sociedade Unidimensional oscila, do princípio ao fim, entre duas hipóteses contraditórias: 1) a de que a sociedade industrial desenvolvida seja capaz de sustar a transformação qualitativa durante o futuro previsível; e 2) a de que existem forças e tendências que podem romper essa contenção e fazer explodir a sociedade [...]. A primeira tendência é dominante, e quaisquer condições prévias para reversão, possivelmente existentes, estão sendo usadas para preveni-la [...] nem mesmo uma catástrofe ocasionará uma transformação.263 Debord e Marcuse não divergiam tanto no diagnóstico das sociedades tardoburguesas, mas no prognóstico revolucionário. Embora reconheça, assim como Marcuse, que “esse proletariado ainda está subjetivamente afastado de sua consciência prática de classe”, Debord entende, prospectivamente, que: Nenhuma melhora quantitativa de sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica é um remédio duradouro para sua insatisfação, pois o proletariado não pode se reconhecer com veracidade num mal particular que tenha sofrido, nem portanto na reparação de um mal particular, nem de um grande número desses males, mas apenas no mal absoluto de ter sido rejeitado para a margem da vida.264 Bastaram, portanto, apenas duas décadas de Estado de bem-estar social e de pacificação keynesiana da luta de classes para Debord constatar que agora era a abundância capitalista que havia fracassado: Quando as lutas antissindicais dos operários ocidentais são reprimidas primeiro pelos sindicatos, e quando as correntes revoltadas da juventude lançam um protesto informe – no qual, entretanto, já está presente a recusa da antiga política especializada, da arte e da vida cotidiana –, aí estão as duas faces de uma nova luta espontânea que começa com feição criminosa. São o prenúncio do segundo assalto proletário contra a sociedade de classes.265 Numa carta enviada a Mario Perniola e encaminhada à seção italiana da IS, datada de 6 de abril de 1969, Debord comenta diretamente o caráter prognóstico de sua análise, ressaltado pelo filósofo italiano em uma correspondência anterior: Você é gentil demais comigo quando diz que eu ‘lucidamente prognostiquei’, em abril de 68, a ressurreição da agitação revolucionária. Sem dúvida, naquele momento, a França estava calma, e o salto qualitativo que devia levar à crise francesa ainda repousava em um futuro incerto, mas a agitação já era bem visível nas ruas de cinco ou seis países modernos.266 Como visto anteriormente, Debord via na ascensão das lutas sociais contemporâneas à formação e atuação da Internacional Situacionista (desde o fim da década de 1950 até o início da de 70, portanto) uma restauração das tentativas derrotadas de revolução proletária de 1917-21: “Sua existência efetiva ainda não passou de breve esboço, logo combatida e vencida por diferentes forças de defesa da sociedade de classes”.267 Por isso, nosso autor aposta num retorno do “assalto proletário contra a sociedade de classes”, justamente situado na continuidade da forma “desalienante da democracia realizada, o Conselho”.268 O inacabamento das revoluções proletárias passadas que, desde o período crítico de 1917-21 (passando por 1925-27, 1936-37, 1956) tinham sido vencidas por forças contrarrevolucionárias diversas, recolocava em jogo, segundo os situacionistas, “as dívidas não quitadas da história: Fourier e Pancho Villa, Lautréamont e os dinamiteiros das Astúrias – cujos sucessores inventam novas formas de greve –, os marinheiros de Kronstadt ou de Kiel”.269 Nas palavras de Debord:270 O aparecimento dos Conselhos foi a realidade mais elevada do movimento proletário no primeiro quarto do século, realidade que passou despercebida ou disfarçada porque desaparecia com o resto do movimento que o conjunto da experiência histórica de então desmentia e eliminava. No novo momento da crítica proletária, esse resultado volta como o único aspecto não vencido do movimento vencido. Devido a todos os motivos históricos supracitados, Debord defende uma forma de organização revolucionária que já “não representa a classe”,271 pois não pode “reproduzir em si as condições de cisão e de hierarquia que são as da sociedade dominante”,272 e deve “ter aprendido que já não pode combater a alienação sob formas alienadas”:273 Quando o proletariado descobre que sua própria força exteriorizada concorre para o reforço permanente da sociedade capitalista, já não apenas sob a forma de seu trabalho, mas também sob a forma de sindicatos, de partidos ou de poder estatal que ele tinha constituído para se emancipar, descobre também pela experiência histórica concreta que é a classe totalmente inimiga de toda exteriorização rígida e de toda especialização do poder.274 Assim como para os demais representantes da corrente conselhista do proletariado revolucionário da primeira metade do século XX, para Debord e os situacionistas, o comunismo não é um fim a se atingir, mas decorre imediatamente da auto-organização da força de trabalho por meio de organizações anti-hierárquicas (na forma de comissões, comitês ou conselhos), que rompam com o verticalismo predominante na organização das unidades produtivas,275 em seus mais diversos setores, sendo, ao mesmo tempo, precursoras de novas relações sociais de produção, verdadeiramente comunistas, transparentes e horizontais: “O Conselho quer ser a forma de unificação prática dos proletários, dando a si os meios materiais e intelectuais da transformação de todas as condições existentes, fazendo soberanamente a sua história”.276 Não se trata, para eles, de limitar-se a reverter o regime de propriedade, passando-o das mãos da burguesia para as da burocracia tecnocrática (mediante de uma tomada jacobina do Estado), se tal reversão não for acompanhada, como ocorreu na experiência russa, de uma profunda alteração nas relações de produção que se constituem em sua base. Lembrado por Debord no importante aforismo 116 (que retoma a questão dos conselhos operários), sabe-se que Pannekoek levava fortemente em consideração a importância do que chamava de “fator espiritual” no processo revolucionário, uma vez que apenas um proletariado consciente de suas tarefas e expectativas futuras poderia fazer a revolução.277 De modo semelhante, Debord define o conselho precisamente como “o lugar onde as condições objetivas da consciência histórica estão reunidas”278 e, no balanço feito após a revolução de 68, os situacionistas atribuíram a derrota da primeira greve geral selvagem da história justamente a uma inadequação entre a consciência e a práxis do movimento, “marca fundamental das revoluções proletárias inacabadas”, bem como à “falta de consciência histórica, condição sine qua non da revolução social”.279 Debord conclui o seu livro de 1967 dizendo que a sociedade do espetáculo é uma formação social psicopatológica, de onde decorre um processo de perda da realidade passível de ser revertido apenas por uma práxis revolucionária: “Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a autoemancipação de nossa época”.280 E alerta, sobretudo a anarquistas individualistas e comunistas autoritários, que “nem o indivíduo isolado nem a multidão atomizada e sujeita à manipulação” podem realizar essa grandiosa [...] tarefa que cabe, ainda e sempre, à classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes ao resumir todo o poder na forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática controla a si mesma e vê sua ação.281 Como visto, Debord e a IS carregaram, em suas lutas práticas e nas reflexões teóricas sobre elas, um sentido forte de autonomia proletária, sem a qual jamais algo como um sujeito (consciente) da história poderá alinhar-se novamente no horizonte e quem sabe um dia até mesmo triunfar sobre o poder do inimigo de classe que, de acordo com o aviso dos teóricos esquerdistas e com o que demonstraram as sucessivas derrotas do proletariado revolucionário do século XX, já não é mais, como nas revoluções do século XIX, tão somente burguês, mas, simultaneamente, burguês e burocrático. 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Para vivê-lo de fato, deve agora possuir a consciência dele.282 Esse capítulo busca trazer uma reflexão interna da obra de Guy Debord283 no que tange a discussão do tempo em dois planos: o sincrônico, quando o autor se põe a descrever diferentes formações espaço-temporais, e o diacrônico, na medida em que desnuda a nossa capacidade ou incapacidade de apropriação do tempo histórico. Para tanto, deter-me-ei às questões levantadas por Braudel284 e por outros historiadores da Escola dos Annales, como um recurso metodológico que, ao se opor à história tradicional que se atém unicamente à brevidade e que coloca o acontecimento no centro da discussão e do entendimento do processo histórico, colocam em primeiro plano de sua investigação a oscilação cíclica e a longa duração. Pomian,285 por exemplo, interpretando os textos de Braudel, dirá que a história é composta por acontecimentos, ou simples constatações fatuais, episódicas; tempos conjunturais, ou oscilações de amplitudes diversas; e tempos estruturais, caracterizados pela lentidão e pela prevenção às injunções conjunturais; mas quando elas se exacerbam são capazes de trazer mudanças profundas na sociedade. Os acontecimentos são situados por Braudel286 como de curta duração, tempo breve ou microtempo, e sendo explosivo e ruidoso, “faz tanto fumo que enche a consciência dos contemporâneos, mas dura um momento, apenas se vê sua chama”.287 Mas a despeito desse caráter instantâneo, tomando-o como fragmento, ele é constitutivo de uma cadeia de realidades subjacentes, ou seja, embora o autor rompa com a história convencional/ocorrencial, isso não significa uma ruptura com o tempo breve. O que ele faz é chamar a atenção para o entendimento de que as constatações fatuais e episódicas são uma primeira apreensão da realidade, que não pode ser entendida como toda “[...] a espessura da história sobre a qual a reflexão científica pode trabalhar à vontade”.288 Assim, inspirado pelo dito de Marx de que os homens fazem a história mesmo ignorando que a fazem, Braudel289 vai dizer que há uma história inconsciente que se faz na longa duração e na conjuntura. O estudo das estruturas por parte da História Nova possui uma multiplicidade de enfoques, não distinguindo a priori quais elementos são próprios da base – para usar nomenclatura de Williams290 – e quais são próprios da superestrutura. Nesse sentido, tal como Williams,291 que compreende a superestrutura em interação com a base, esses historiadores, especialmente Braudel,292 tratam o conceito de estrutura como contendo a história econômica, a história social e a história das mentalidades, ou seja, tomando-a em um sentido mais amplo. Em nosso caso especificamente, destaco como área de investigação correlata a história das mentalidades ou das ideias, um campo privilegiado da longa duração em que se inscrevem as atitudes e representações coletivas.293 Assim, ainda que traços comuns permaneçam imutáveis, como alguns hábitos de agir e pensar, as estruturas convivem com outras continuidades, rupturas e abalos, como o terreno do tempo conjuntural, que é diferente da superfície relampejante a que nossos olhos estão acostumados do tempo breve – ainda que a ele se articule –, e que esteja sujeito a oscilações cíclicas. Le Goff,294 tomando esse tempo cíclico, propõe utilizarmos a periodização para organizá-los e, por fim, compreendê-los. Indica que seu recorte não é neutro e que não se trata de “[...] um mero fato cronológico, mas indica a ideia de passagem, de viragem ou até mesmo de retratação em relação à sociedade e aos valores do período precedente”295. Para o autor, a periodização visa a dominar o tempo da vida cotidiana – lócus do tempo conjuntural – centrado no tempo de longa duração e que essa perspectiva trazida por Braudel não “borra” os períodos, ao contrário, Le Goff296 sustenta que a longa duração associada à periodização permite uma combinação entre continuidade e descontinuidade. Nesse mesmo sentido, Braudel297 vai dizer que a periodização não possui um valor absoluto, mas é a partir dela que podemos construir explicações, “[...] em que a história se pode inscrever, recortando-se, segundo pontos de referência inéditos [...]”; [...] descrever, analisar, comparar, explicar é colocar-se quase sempre fora da narrativa histórica, é ignorar ou quebrar, como que por capricho, os tempos contínuos da história. [...] o tempo não é respeitado em sua continuidade cronológica, mas utilizado como meio de observação.298 Ao narrar as etapas históricas, inevitavelmente nos aproximamos de uma linearidade temporal, mas isso não necessariamente nos afasta da diacronia, uma combinação utilizada por Debord299 e que também será feita a seguir. Nesse sentido, formalizo o texto nos seguintes eixos analíticos: i) o tempo cíclico próprio da antiguidade clássica e o seu fechamento semântico300 e como essa formação espaço-temporal desembocou no tempo irreversível; ii) o tempo irreversível e as contradições entre conjuntura e estrutura (tendo a Escola dos Annales como referencial metodológico) no que tange à produção material da vida e a emergência de um tempo espetacular. Além disso, abordarei como brechas podem ocorrer no nível das mentalidades, operando pela recusa ao fechamento semântico, como é o caso do Lobo da Estepe, desnudando relações de poder estabelecidas no disciplinamento dos indivíduos e na supressão da consciência do tempo vivido. 7.2 A sociedade do tempo cíclico e o seu rompimento Como destaca Castells,301 as novas estruturas sociais que vão surgindo no desenrolar do tempo cronológico alteram substancialmente as fundações materiais de nossa existência, como o tempo e o espaço e as relações de poder delas derivadas, já que “refletir sobre a história é, inseparavelmente, refletir sobre o poder”.302 Assim, tendo como formação espaço-temporal a antiguidade clássica, o tempo cíclico se faz produto da experiência imediata em uma sociedade que é estática, e por essa razão seu etapismo é sucessivo com um desenrolar que tem muito mais a concórdia como fio condutor do que o conflito, e o afiador dessa consensualidade é o mito, mais especificamente uma “[...] construção unitária do pensamento que garante toda a ordem cósmica em torno da ordem que essa sociedade já realizou de fato dentro de suas fronteiras”.303 Aqui há a confluência entre um tipo de mentalidade e uma dada experiência da vida que se ancora e se abrevia numa eternidade que é completamente terrena e secular, ou seja, não é recusa ao divino por não estar posta essa questão, mas também não se volta ao passado e/ou se põe orientada para o futuro, é o viver o momento em um tempo inesgotável que não tem a teleologia, uma finalidade lógica, a lhe amparar. Ou seja, o fluxo da história é estreitamente ligado “aos ritmos naturais das estações e ao ciclo do nascimento e da morte”.304 Assim, cabe destacar que o mito presente no tempo cíclico não tem a racionalidade moderna como um adversário, como ocorre na Odisseia, de Homero, no embate entre a tradição e a modernidade, segundo Adorno,305 mas se coloca como mecanismo simbólico capaz de organizar as dinâmicas e as relações de poder tendo como fundamento as cosmogonias – genealogias sobre a origem – expostas publicamente, e se: Eles desenvolveram discursos históricos, não possuíam de nenhum modo a ideia – cristã e pós-cristã – de um decurso da história linear e dotado de um sentido; a representação do tempo que domina é a do ciclo, que faz reaparecer as mesmas situações; a noção de um progresso global está excluída; a de uma acumulação de riquezas suscita a maior desconfiança; o trabalho material é concebido como algo que deprecia, e somente a atividade do lazer (scholê) é produtiva.306 Após a derrocada dessa estrutura social, ao invés de acompanharmos um retorno das antigas organizações míticas, segundo Debord307 há o aparecimento de: [...] religiões semi-históricas que se tornavam fatores fundamentais da nova consciência do tempo e da nova armadura do poder separado [...] as religiões monoteístas foram um compromisso entre o mito e a história, entre o tempo cíclico que ainda dominava a produção e o tempo irreversível em que se enfrentam e se recompõem os povos. Pois ao se materializarem em textos que são ao mesmo tempo fonte de revelação e de autoridade, essa religiosidade se desprendeu da localidade e da contextualidade e se orientou não automaticamente, mas como condicionada a uma universalidade que “não se apoia mais numa tradição que recebe sua autoridade do passado, dos ancestrais ou da evidência compartilhada de uma cultura”,308 mas de uma imutabilidade de sentido, em que o significado da mensagem deve ser o mesmo sobre hoje, sobre o passado e sobre o futuro pelo emprego de “chaves de interpretação” – definições e axiomas que fazem com que a mensagem se torne autossuficiente, autoexplicativa –, tornando-se o centro de uma racionalidade que tenderá à universalidade e ao fechamento semântico. Não se tem mais o movimento cíclico natural, mas o progressivo solapamento das totalidades territorialmente arraigadas e dos vínculos de consanguinidade rumando para a emergência de um tempo irreversível, que segundo Debord309 tem como primeira medição as dinastias com suas cronologias aparentemente autônomas se libertando do tempo cíclico. Surge, então, a teleologia divina no empreendimento de falar a um grande número de pessoas e fazer delas partícipes em algo que também é grande, que é da ordem do Todo, fazendo valer “o quase impossível como o natural”.310 Esse empreendimento tem como base a história, mas paradoxalmente é contrária a ela na medida em que se espera o Juízo final em uma contagem regressiva do tempo, de um tempo que está além da vivência terrestre. Assim, segundo Debord,311 a corrosão do tempo cíclico não foi a acompanhada por uma conscientização do tempo como lócus das relações de poder, mas tão somente de uma apropriação individual de nossas etapas de vida, mas isso não quer dizer que a esfera do poder não incida nessa forma de pensar.312 Não havia, portanto, separação absoluta entre o secular e o divino. Se lembrarmos, foi com Maquiavel313 que a dessacralização do poder se acentua e que vemos emergir um Estado de feições nacionais. Da Idade Média à Idade Moderna, o Estado vai se apoderando do tempo e secularizando o poder, até a dominação total do Estado burguês, que faz emergir um novo tempo irreversível, um tempo do trabalho não cíclico, mas profundamente transformador das condições históricas, pois passa a ser o valor a reger as relações de poder – “a vitória da burguesia é a vitória do tempo profundamente histórico”314 de uma história da “indústria” da humanidade.315 Assim, não se trata de uma história apenas conjuntural, mas estrutural, na medida em que: A história que está presente em toda a profundeza da sociedade tende a perder-se na superfície. O triunfo do tempo irreversível é também a sua metamorfose em tempo das coisas [...] apenas como história do movimento abstrato das coisas, que domina todo o uso qualitativo da vida. O tempo cíclico anterior havia sustentado uma parte crescente de tempo histórico vivido por indivíduos e grupos; agora, a dominação do tempo irreversível da produção vai tender a eliminar socialmente esse tempo vivido.316 A burguesia desnudou o tempo histórico, mas interdita a sua apropriação! Visto que a valorização do mundo das coisas é diametralmente oposta à valorização do mundo dos homens, pois “o trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral”.317 7.3 O tempo espetacular: a transformação do tempo irreversível combinada à imobilidade do tempo cíclico Segundo Adorno,318 a racionalidade burguesa vai combater o mito, a tradição, mas acaba por se colocar como o próprio mito, mas com uma aparência de racionalidade, tendo o progresso e o pretenso domínio e controle da natureza como a grande mitologia da racionalidade, já que, como disse Weber,319 só podemos captar o fragmento, o provisório, nunca o definitivo. “A ampliação de seu poder histórico efetivo caminha junto com uma divulgação da posse mítica ilusória”320 por parte da racionalidade burguesa, que incide no fluxo de tempo que se faz em um hiato entre o passado e as experiências do presente, “de um lado, e os horizontes continuamente mutáveis das expectativas associadas ao futuro de outro”.321 Essa noção de progresso estruturalmente associada à experiência de viver o tempo tem na introdução do sistema fabril e urbano e nas revoluções tecnológicas o seu paradigma. O poder político ampliado às alturas surge nesse momento e tão “logo que o tempo começou a ser disciplinado pelos objetivos de aumentar a produção das mercadorias houve uma certa troca: os sacrifícios feitos no presente eram trocados pela promessa de um futuro melhor”.322 É o caráter intercambiável do tempo em sua realidade efetiva.323 E a sociedade da mercadoria precisa dessa disciplina e da passividade que ela acarreta para se desenvolver, assim o comportamento religioso moderno e o calendário cristão fazem essa função, de abstrair o homem de si mesmo, mas sem que se manifeste uma conscientização de si e da história, atados ao “não desenvolvimento humano”.324 E para que [...] a seca cronologia sem explicação do poder divinizado que se dirige a seus servidores, e que quer ser compreendida como execução terrestre dos mandamentos do mito, pudesse ser superada e tornar-se história consciente, foi necessário que a participação real na história tenha sido vivida por grupos maiores.325 Como diz Sloterdijk,326 para manter grandes grupos e até milhões de membros juntos lançamos mão da política com a arte de organizar esses laços, seja ela engendrada na tirania ou na cooperação, tendo em vista que o tempo histórico tem o conflito como seu intrínseco motor. Mas esse engendrar requer um sujeito desejável que é enquadrado ao “[...] imperativo da atividade capitalista como uma lei absolutamente natural”,327 relegando o trabalho com um elemento universal de socialização na mediação entre homem e natureza às teias do arcaico. Esse processo pode ser operado por um tipo de cultura que é entendida como a tentativa de superação de uma dualidade presente não apenas no mundo circundante, mas no âmago do indivíduo [...] entre faculdades superiores e inferiores, vontade e desejo, razão e paixão [...] A cultura, assim, é uma questão de autossuperação tanto quanto de autorrealização. Se ela celebra o eu, ao mesmo tempo também a disciplina, estética e asceticamente.328 Dentro dessa perspectiva de Eagleton329 e buscando aprofundar como as relações de poder podem ser operadas no nível das mentalidades quando da formação de um sujeito caro ao tempo irreversível – aquele que é preenchido moral e espiritualmente se constitui como parte da engrenagem de objetivação do produto do trabalho, de objetivação de si mesmo e dos outros – e, portanto, ao capitalismo, acionamos os arquétipos do exagero e do comedido contidos no Tratado do lobo da estepe, de Hermann Hesse.330 TRATADO DO LOBO DA ESTEPE Só para loucos Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo da estepe [...] nele o homem e o lobo não caminhavam juntos, nem sequer se ajudaram mutuamente, mas permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia apenas para causar dano ao outro, e quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na mesma alma, então a vida é uma desgraça (Hesse, 1995: 51-53). Criado num lar burguês e culto, de moral firme, nunca chegara a libertar parte de sua alma desses convencionalismos, mesmo depois de haver-se individualizado na medida do possível dentro da burguesia e haver-se divorciado do conteúdo dos ideais e das crenças burguesas (Hesse, 1995: 62). O “burguês”, como um estado sempre presente na vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares opostos da conduta humana. Tomemos por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer os prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio-termo. Em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranquilidade da consciência; em lugar do prazer, a satisfação; em lugar da liberdade, a comodidade; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável. É compreensível que esta débil e angustiada criatura, embora existindo em número tão grande, não consiga manter-se e que, de acordo com suas particularidades, não possa representar outro papel no mundo senão o de rebanho de cordeiros entre lobos erradios. Contudo vemos que em tempos de governos fortes os burgueses se veem oprimidos contra a parede, mas nunca sucumbem; na verdade às vezes parecem mesmo dominar o mundo. Como será possível? Nem o numeroso rebanho, nem a virtude, nem o senso comum, nem a organização serão suficientes para salvá-lo da destruição, não há remédio no mundo que possa sustentar uma intensidade tão débil em sua origem. E todavia a burguesia vive, é forte e próspera. Por quê? A resposta é a seguinte: por causa dos lobos da estepe. Com efeito a força vital da burguesia não se apoia de maneira alguma nas particularidades de seus membros normais, porém nas dos extraordinários e numerosos outsiders que, em consequência, a querem rodear com a vaga indecisão e a elasticidade de seus ideais. Convive sempre na burguesia uma grande multidão de naturezas fortes e selvagens. O lobo da estepe se antagoniza! Especialmente em relação aos convencionalismos tão valorizados pelo arquétipo burguês em sua busca por individualizar-se completamente e livrar-se dos ditames da racionalidade burguesa. É como se o lobo da estepe carregasse em seu âmago o perigo iminente de tornar-se burguês, de ser controlado por essa sua outra faceta complementar e contraditória, que é o próprio homem. O lobo da estepe só é livre, pois se relaciona consigo mesmo, individualizando-se, mas enquanto um ser universal331 e ser tomado pelos convencionalismos pode carregar o perigo, do ponto de vista do lobo da estepe, de se conformar a um capitalismo que se torna cada vez mais hegemônico não apenas do ponto de vista material – do conjunto das relações sociais de produção, meios de produção e a circulação de capital –, mas também do ponto de vista abstrato e subjetivo. Se, por um lado, o santo se entrega ao ascetismo em uma busca pela elevação espiritual submetido a uma promessa teleológica, por outro, o libertino busca o prazer e a embriaguez na entrega e na exacerbação dos espíritos. Essas díades são transigidas pelo burguês, que busca caminhar em uma zona temperada e vantajosa, que entendemos tendo como referência o dito por Eagleton:332 “Nesse processo de automoldagem, unem-se mais uma vez ação e passividade, o ardorosamente desejado e o puramente dado – desta vez nos mesmos indivíduos”. Se o lobo da estepe é uma dualidade intrínseca, complementar e contraditória, do lobo e do homem, o burguês é a busca do equilíbrio entre o santo e o libertino; das características que lhe parecem úteis, no primeiro vemos uma essência conflituosa, no segundo uma harmonia quase que artificial, mas intrinsecamente objetiva. Mas o lobo da estepe carrega dentro de si o homem, que potencialmente tem dois caminhos a seguir, o do santo ou o do libertino, portanto as proximidades do lobo da estepe para com o burguês podem ser vistas no “emaranhado de fios políticos” 333 que se encontram nos conceitos de cultura e civilização. Nascida no âmago do Iluminismo, na disputa entre tradição e modernidade, entre mito e razão, a cultura, ao buscar refinar os rebeldes, os detratores de uma sociedade alicerçada no materialismo, direcionou-se ao “[...] socorro da própria civilização pela qual sentia tal desprezo”,334 assim: Ser civilizado ou culto é ser abençoado com sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras agradáveis e uma mentalidade aberta. É portar-se razoável e moderadamente, com uma sensibilidade inata para os interesses dos outros, exercitar a autodisciplina e estar preparado para sacrificar os próprios interesses egoístas pelo bem do todo. Por mais esplêndidas que algumas dessas prescrições possam ser, certamente não são politicamente inocentes.335 Portanto não se tratava de qualquer cultura, mas uma inscrita no processo civilizatório, na teleologia que desemboca no tempo irreversível. Tal como o perigo iminente que a parte humana contida no lobo da estepe se coloca, de enquadrá-lo nos convencionalismos burgueses, a cultura, ao se resignar a um tipo de civilização que disciplina os sentidos, os anseios da carne do arquétipo do libertino sem, no entanto, eliminá-los, age também na constituição de disposições espirituais inescusáveis à hegemonia capitalista. Assim, o burguês passa a ser o arquétipo ideal de uma experiência coletiva, já que por suas características, o próprio Hesse336 o chama de “fácil de governar”, aquele que não tem como ideal a entrega absoluta, que lhe é insuportável, nem mesmo a mudança de teor revolucionário, mas a conservação em um misto de subsistência e segurança. O mesmo não podemos dizer do lobo da estepe, que se coloca como uma disrupção entre essa experiência coletiva de estranhamento de si e dos outros337 e um tipo de mentalidade que, ao reconhecer esse complexo causal, pode se orientar para a supressão da alienação. A força surgida da tensão da própria existência do lobo da estepe, um outsider que torna manifesto pela força e selvageria das possibilidades de mudança, não fica incólume, pois se a um passo a apologia atual da grande civilização abrevia a história da humanidade e apresenta o homem a priori como um animal burguês,338 por outro a atividade humana enquanto produtora da história é substituída pela atividade capitalista, calcada na produção, apropriação da mais-valia e consumo,339 relegando a promessa de um futuro melhor340 ao esquecimento. O lobo seria um arquétipo de uma revolta secular, pois ao operar no nível das mentalidades em uma recusa ao fechamento semântico341 se coloca como resistência ao disciplinamento do ser e à supressão da consciência do tempo vivido, no que Debord342 chama de enclausuro de um presente perpétuo. Assim, a complexidade da vida e o progresso tecnológico, ao invés de dominarem o tempo, dominam o homem em sua efemeridade, em sua mudança contínua chapada sem que se consiga reter nada nessa superfície plana,343 moderada e passiva à lógica do capital – “o sujeito da sociedade chapada é sem fundo e sem relevo, sem dobras nem reentrâncias. Um sujeito do “irrelevante” transformado em capital”,344 ao contrário do aparato epistemológico de experimento de contradições que se observa no lobo. Outra questão relativa a essa tomada de consciência do tempo, ou a apropriação social do tempo, é que ele se desenvolve em uma sociedade de classes que tem como esteio o trabalho humano, em que a produção e a apropriação de valor são hierárquica e assimetricamente distribuídas e “[...] a classe que organiza esse trabalho social e se apropria da limitada mais-valia desse trabalho, apropria-se também da mais-valia temporal de sua organização do tempo social”,345 mais ainda, quem goza desse poder se livra do esconjuro sísifico sendo que, “a continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo”.346 E ao se retirar a mais-valia temporal, o não desenvolvimento humano passa a existir a partir do complemento de um tempo consumível que é caro ao tempo da mercadoria, o tempo das coisas, integrando a apropriação do tempo em um não vivenciar na vida cotidiana da sociedade, gerando apenas uma vivência artificial. Essa lógica, Debord347 nomeia de tempo pseudocíclico. O tempo cíclico é o disfarce consumível do tempo-mercadoria da produção. Contém os caracteres essenciais de unidades homogêneas intercambiáveis e de supressão da dimensão qualitativa. Mas, como ele é o subproduto desse tempo destinado ao atraso da vida cotidiana concreta – e a manutenção desse atraso –, deve estar carregado de pseudovalorizações e aparecer numa sequência de momentos falsamente individualizados.348 E continua: [...] O tempo pseudocíclico é o do consumo da sobrevivência econômica moderna, a sobrevivência ampliada. Nele, o vivido cotidiano fica privado de decisão e submetido, já não à ordem natural, mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado; esse tempo, portanto, reencontra naturalmente o velho ritmo cíclico que regulava a sobrevivência das sociedades pré-industriais. O tempo pseudocíclico não só se baseia nos traços naturais do tempo cíclico mas também cria novas relações homólogas: o dia e a noite, o trabalho e o descanso semanais, a volta dos períodos de férias.349 É o criar de uma natureza submetida integralmente ao capitalismo, na qual passamos a consumir o tempo como uma mercadoria. Essas duas temporalidades – o tempo irreversível e a imobilidade do tempo cíclico – geram, segundo Debord,350 o tempo espetacular em que tudo é vivido ilusoriamente. Assim, nos movimentamos sem sair do lugar.351 E a síntese disso está na intensa produção de coisas e em um consumismo individualista gerado em mesma proporção e que retroalimenta o processo de o trabalho morto dominar o trabalho vivo, enquanto o tempo espetacular domina o presente, impregnando-o de efemeridade. “O espetáculo, como organização social da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo”.352 Considerações finais Assim, a expropriação do tempo, do nosso tempo, apresenta a sua faceta mais violenta, pois se torna propriedade. E como não somos lobo, acabamos sucumbindo à imposição da geração crescente de necessidades, materiais ou abstratas, mas sempre monetizadas, pois a “realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo”.353 Nossa mentalidade também é colonizada por essa lógica já que “os possuidores da história colocaram no tempo um sentido: uma direção que também é um significado”:354 A história sempre existiu, mas nem sempre sob a forma histórica. A temporalidade do homem, tal como se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a humanização do tempo. O movimento inconsciente do tempo se manifesta e se torna verdadeiro na consciência histórica.355 Dessa forma, como cada estruturação social exclui de alguma forma a mudança gerando práticas sociais conformistas, fazendo a conjuntura se adequar à estrutura em uma adaptação árdua aos grilhões nem sempre visíveis, mas quase sempre hegemônicos, a nós fica dada uma saída contida em um [...] projeto revolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vida histórica generalizada, é o projeto de enfraquecimento da medida social do tempo, em proveito de um modelo lúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dos grupos.356 Navegamos por acontecimentos que nos são diuturnamente apresentados na forma de mercadorias rapidamente consumíveis, mas não mergulhamos nas profundezas das estruturas. Referências ADORNO, T. W. T. W. Adorno. Gabriel Cohn (Org.). São Paulo: Ática, 1986. BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. BENJAMIN, Walter. 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São Paulo: Cultrix, 1968. 8 TEMPO E HISTÓRIA PARA GUY DEBORD Gilberto da Silva Vivian Paixão Nos capítulos cinco e seis de A sociedade do espetáculo, os menos lidos da obra de Debord, uma breve interpretação da história é apresentada. Debord começa o capítulo citando um trecho de Shakespeare presente em Henrique IV:357 “Ó gentis-homens, a vida é curta. Se vivemos, vivemos para marchar sobre a cabeça dos reis”. William Shakeaspeare escreveu Henrique IV entre 1597 (primeira parte) e 1599 (segunda parte) e cobre o tempo histórico das lutas sanguinárias pelo poder que ocorreram entre 1402 e 1403. Dois personagens se destacam nesse universo shakespeariano: Hal, o príncipe – e futuro rei Henrique IV –, e Falstaff, um personagem fictício, nobre, gordo e vaidoso. Do trecho pequeno, ainda que entrecortado, que Debord cita, notamos a relação à brevidade do tempo e à necessidade da luta cotidiana. Na sequência da mesma fala citada, observamos a seguinte frase proferida pelo personagem Hotspur: “Quanto à consciência, belas sempre são as armas, se o espírito for justo”.358 No século XVI, as pessoas tenderam a ser obsedadas pelo aspecto destrutivo do tempo. A imagem típica do tempo do Renascimento era o do destruidor munido de ampulheta, segadeira ou foice. Essa atitude pode ser vista em Shakespeare.359 Essa preocupação constante com a questão do tempo é que leva Debord a retratar em boa parte de seus trabalhos tanto escritos quanto cinematográficos, em especial em In Girus imus et nocte et consumimur igni. Partindo da concepção da dialética hegeliana de que o tempo é a verdade do espaço, não cronológico e linear, Debord inicia o capítulo V com um processo de inversão, uma análise sobre tempo, história e espaço, tema que é realizado no capítulo VII – O Planejamento do espaço, em que os três são entendidos como uma unidade e o espaço compreendido como local de realização da deriva psicogeográfica e da revolução proletária. 8.1 A essência humana é idêntica ao processo histórico Segundo Jappe, ao apresentar uma breve interpretação da história, Debord considera aqui “ser a vida histórica, e a consciência que os homens tem dela, o principal produto do aumento do domínio humano sobre a natureza”.360 De acordo com mitologia grega e romana, Cronos (ou Saturno) era a principal divindade relacionada à agricultura e também ao tempo. Filho de Urano (Céu) e Gaia (Terra), era o mais jovem da primeira geração de titãs. Cronos tirou seu pai do poder, casou-se com a irmã Reia e governou durante a Idade Dourada da mitologia. Cronos temia uma profecia segundo a qual seria tirado do poder por um de seus filhos. De temperamento violento e negativo, Cronos passou a matar e devorar todos os filhos gerados com Reia. Porém a mãe conseguiu salvar um deles, Zeus, escondendo-o numa caverna da ilha de Creta. Zeus cumpriu a profecia, comendo seu pai. Segundo Debord,361 “o mito é a construção unitária do pensamento que garante toda a ordem cósmica em torno da ordem que essa sociedade realizou de fato dentro de suas fronteiras” e aqueles que detêm a propriedade privada da história, a mais-valia temporal (o nosso tempo seria dominado pelo trabalho, e o tempo da história, pelas grandes narrativas), inventam a história sob a proteção do mito. Recorrendo à técnica do desvio–processo em que se apropria das citações alheias (ou das ideias) sem fazer referências ou deferências–, Debord362 utiliza a frase de Marx:363 “A própria história é uma parte real da história natural, da transformação da natureza em homem” e inverte o ditado para “essa história natural só tem existência efetiva através do processo de uma história humana”. Debord não hesita em utilizar as referências do processo dialético hegeliano e marxista para construir sua visão do processo histórico. 8.2 O tempo cíclico Seguindo o pensamento de Hegel, para Debord364 “a história existiu sempre, mas não sempre sob a sua forma histórica” e há uma relação inseparável entre a “história humana” e a “história natural”. É a burguesia que cria o tempo irreversível. Quanto mais uma sociedade se conscientiza sobre a passagem do tempo, mais ela o nega. Segundo Debord, o modo de produção agrário, dominado pelo ritmo das estações, é a base do tempo cíclico. A passagem do nomadismo pastoril à agricultura sedentária é o princípio do labor. Durante todo o tempo em que a produção agrária permanece, o trabalho principal, o tempo cíclico, que continua presente no fundo da sociedade, alimenta as forças coligadas da tradição, que vão travar o movimento. A classe camponesa não podia atingir uma consciência da sociedade, e da maneira de conduzir a sua própria luta: é porque ela tinha falta das condições de unidade na sua ação e na sua consciência, que ela exprimiu o seu projeto e conduziu as suas guerras segundo a imagética do paraíso terrestre. Assim, explicita Jappe:365 Enquanto predomina a produção agrícola, a vida permanece ligada aos cíclicos naturais e apresenta-se como um eterno retorno; os acontecimentos históricos, como as invasões inimigas, aparecem como perturbações vindas do exterior. O tempo tem um caráter puramente natural e “dado”. Começa a adquirir uma dimensão social quando se constituem as primeiras classes no poder. Para Debord, o tempo cíclico é, em si mesmo, o tempo sem conflito. Mas nessa infância do tempo, o conflito está instalado: a história luta, antes do mais, para ser a história na atividade prática dos senhores. É a melancolia da dissolução de um mundo, o último em que a segurança do mito equilibrava ainda a história; e para essa melancolia, toda a coisa terrestre se encaminha somente para a sua corrupção. O tempo cíclico – um eterno retorno – era o tempo que, gozado qualitativamente e que foi rompido pelo tempo do trabalho e colocado em seu lugar o tempo “pseudocíclico”, o tempo que é irreversível, quantitativo, abstrato e que suprime a vida cotidiana, é também o tempo da mercadoria de consumo. Os gestos repetitivos do trabalho e do consumo, o esvaziamento da comunicação tanto nas relações imediatas quanto genéricas, graças à transformação da quase inteira vida cotidiana em lugar da produção e da realização abstratas da mercadoria, compõem o que Debord chama de “crise da vida cotidiana”, da mesma vida cotidiana que a destruição da tradição, das antigas condições materiais de existência e da unidade casa-trabalho-culto fez surgir.366 Ao longo da história, a estabilidade do tempo cíclico, o tempo do eterno retorno vai se degradando e em seu lugar se instaura um novo tempo linear: o tempo irreversível. 8.3 Tempo irreversível: o tempo daquele que reina Para Debord, aqueles que detêm a propriedade privada da história, a mais-valia temporal (o nosso tempo seria dominado pelo trabalho e o tempo da história pelas grandes narrativas), inventam a história sob a proteção do mito e ao modo da ilusão. O nascimento do poder político, que parece estar em relação com as últimas grandes revoluções da técnica, como a fundição do ferro, no limiar de um período que já não conhecerá perturbações em profundidade até à aparição da indústria, é também o momento que começa a dissolver os laços da consanguinidade. Desde então, a sucessão das gerações sai da esfera do puro cíclico natural para se tornar acontecimento orientado, sucessão de poderes. O tempo irreversível é o tempo daquele que reina; e as dinastias são a sua primeira medida.367 A arma do tempo irreversível, para Debord,368 é a escrita. É nela que “a linguagem atinge a sua plena realidade, independente da mediação entre consciências”. Mas essa independência é idêntica à independência geral do poder separado como mediação que constitui a sociedade. Com a escrita, aparece uma consciência que já não é trazida e transmitida na relação imediata dos viventes: uma memória impessoal, que é a da administração da sociedade. Segundo Hegel,369 “A verdadeira história objetiva de um povo começa quando ela se torna também uma história escrita”. Completando esse raciocínio, Debord370 cita Novalis: “Os escritos são os pensamentos do Estado; os arquivos a sua memória”. Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (2 de maio de 1772 - 25 de março de 1801), mais conhecido pelo pseudônimo Novalis, foi um dos mais importantes representantes do primeiro romantismo alemão de finais do século XVIII e o criador da Flor Azul, um dos símbolos mais duráveis do movimento romântico. Com base na leitura de Heródoto, Debord empreende uma análise sobre a história e o poder; assim, para Debord:371 “A crônica é a expressão do tempo irreversível do poder”, o “tempo daquele que reina”. Na escrita, a linguagem atinge a sua plena realidade, independente da mediação entre consciências. A crônica (de cronos/tempo) é a narração histórica, feita por ordem cronológica. A apropriação social do tempo e a produção do homem pelo trabalho humano desenvolvem-se numa sociedade dividida em classes. O poder que se constituiu sobre a penúria da sociedade do tempo cíclico, a classe, que organiza esse trabalho social e se apropria da mais-valia limitada, apropria-se igualmente da mais-valia temporal, da sua organização do tempo social: ela possui só para si o tempo irreversível do vivo. Pensar a história é pensar o poder. Debord,372 utilizando um conceito usado por Georges Bataille (1897-1962) em A Noção da Despesa, entendia que o poder partilhado das comunidades gregas não existia, senão no “dispêndio de uma vida social cuja produção ficava separada e estática na classe servil. Só vive quem não trabalha”. Na Grécia, para Debord,373 “o tempo histórico tornou-se consciente, mas não ainda consciente de si mesmo”. As divisões das comunidades baseadas no princípio da separação provocavam também uma multiplicidade de calendários. “Tucídides, ao escrever sobre a Guerra do Peloponeso (História da Guerra do Peloponeso) teve de fato que inventar um sistema apropriado de datação, já que cada cidade tinha o seu próprio calendário”.374 Segundo Debord,375 no aforismo 134, “a Grécia, que sonhara a história universal, não conseguiu se unir para enfrentar a invasão; nem mesmo unificou os calendários de suas cidades independentes”. É nesse período grego que surgem as democracias dos senhores da sociedade, e Debord busca extrair desse momento a experiência histórica, mais do que a experiência filosófica. Nesse sentido, Debord refere-se ao orador e escritor francês Jacques-Bénigne Bossuet (1672 -1704), um dos principais teóricos do absolutismo monárquico e da concepção providencialista, que escreveu o Discurso sobre a história universal,376 obra em que retoma as teses de Agostinho (A cidade de Deus) de concepção linear, sentenciando que a história é movida pela Providência, pela determinação de Deus e direcionada para uma única finalidade. Tudo dependia das Ordens Secretas da Divina Providência, desvalorizando, assim, toda e qualquer mudança histórica. Santo Agostinho, em sua teoria e seus escritos, rejeita as teorias cíclicas do tempo Santo Agostinho, no livro XI de suas Confissões, submeteu o conceito de tempo de Aristóteles a uma rigorosa crítica. Afirma que o tempo e movimento deviam ser cuidadosamente diferenciado um do outro do que o eram por Aristóteles. Em particular, condenou a correlação do tempo com os movimentos dos corpos celeste, uma vez que o tempo ainda existia se o céu parasse de se mover mas a roda de um oleiro ainda girasse.377 Debord378 considera a Idade Média como o “mundo mítico inacabado que tinha a sua perfeição fora de si”; o momento em que o tempo cíclico, que regula ainda a parte principal da produção, é realmente corroído pela história. No contexto da Idade Média surge a figura do peregrino, um arquétipo da mudança, o homem que sai em caminhada às suas perguntas, aos seus anseios, que entende que o lugar e o tempo onde está não lhe é satisfatório e então busca uma resposta para o significado da vida terrena e passageira. Nessa diversidade da vida histórica possível, o tempo irreversível que a sociedade profunda levava consigo, inconscientemente, o tempo vivido pela burguesia na produção das mercadorias, a fundação e a expansão das cidades, a descoberta comercial da Terra–a experimentação prática que destrói para sempre toda a organização mítica do cosmos–, revelou-se lentamente como o trabalho desconhecido da época, quando o grande empreendimento histórico oficial desse mundo se malogrou com as Cruzadas. No declínio da Idade Média surgem os movimentos milenaristas, movimentos utópicos da realização terrestre do paraíso. Ao escrever sobre o milenarismo, Debord remete ao livro La Poursuite du millénium, de Normam Cohn (1915-2007), um historiador acadêmico inglês e pai do crítico de rock Nick Cohn. Para Norman Cohn: a) As seitas milenaristas apresentam sempre a salvação com as seguintes características: b) Coletivo, na medida em que deverá ser gozada pelos fieis enquanto coletividades; c) terrena, na medida em que deverá ser realizada neste mundo e não em algum outro reino; d) iminente, na medida em que será súbita e para breve; e) total, na medida em que deverá transformar completamente a vida na terra, de forma que o novo estado de coisas não será apenas um aperfeiçoamento do que existe, mas a própria perfeição; f) miraculosa, na medida em que deverá ser realizada por, ou com a ajuda de agentes sobrenaturais.379 Segundo Cohn, no século IV, reforçado pelas posições de Santo Agostinho no século V em Cidade de Deus, “o cristianismo atingiu uma posição de supremacia no mundo e se tornou a Igreja oficial do Império, a desaprovação eclesiástica do milenarismo tornar-se-ia enfática”.380 Não era raro alguns movimentos começarem a contestar a própria existência de Deus. O milenarismo encontrou em Santo Agostinho (que interpretava os 1.000 anos como um tempo simbólico) um adversário poderoso, que ganhou o apoio da ortodoxia cristã, mas mesmo diante desse forte combate, o milenarismo nunca desapareceu por completo, surgindo aqui e ali liderados por profetas oriundos principalmente das camadas pobres. Mas se colocando contrário às posições de Cohn, Debord381 reafirma que o milenarismo se “desenrola no mundo histórico e não no terreno do mito” e que o movimento–‘uma tendência revolucionária moderna’–é uma luta de classe que ainda falta a “consciência de não ser apenas histórica”. O certo é que essas rupturas dentro da religião católica, que deram origem a várias manifestações populares e à criação de ordens religiosas dedicadas à questão da pobreza, foram reprimidas pela Contrarreforma. Em uma nota de rodapé na obra Concepção dialética da História, Gramsci382 escreve: Os movimentos heréticos da Idade Média – que surgiram como reação simultânea à politicagem da Igreja e à filosofia escolástica que foi a sua expressão, e que se baseavam nos conflitos sociais determinados pelo nascimento das comunas – foram uma ruptura entre massa e intelectuais no interior da Igreja, ruptura “corrigida” pelo nascimento de movimentos populares religiosos reabsorvidos pela Igreja, através da formação das ordens mendicantes e de uma nova unidade religiosa”. 8.4 O renascimento O Renascimento, de rinascitá (renascer de algo antigo) é um termo cunhado por Giorgio Vasari, em sua obra Vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos.383 O Renascimento foi um movimento cultural, econômico e político que surgiu na Itália do século XIV, consolidou-se no século XV e se estendeu até o século XVII por toda a Europa. Por “ter os olhos voltados para o passado”, segundo Whitrow,384 o Renascimento foi um movimento inspirado nos valores da Antiguidade Clássica. Nessa volta ao passado, o Renascimento recupera aspectos do epicurismo, uma doutrina criada pelo filósofo ateniense Epicuro (341-271 a.C.) e que reflete sobre a busca da felicidade a partir do prazer sensível e intelectual. Talvez, a mais marcante característica do Renascimento tenha sido a valorização do ser humano. O Humanismo (ou Antropocentrismo, como é chamado com frequência) colocou a pessoa humana no centro das reflexões. O Renascentismo não se tratava de opor o homem a Deus e medir forças: Deus continuou soberano diante do ser humano. Tratava-se, na verdade, de valorizar as pessoas em si, encontrar nelas as qualidades e as virtudes negadas pelo pensamento católico medieval. “Assim que o renascimento descobriu que o homem é criador de si mesmo e que pode ser aquilo que ele mesmo se faz, anjo ou besta, leão humano e urso humano, ou qualquer outra coisa, tornou-se logo evidente que a história humana constitui o desdobramento destas ‘possibilidades’ no tempo”.385 O Renascimento, que segundo Debord386 “encontra na Antiguidade o seu passado e o seu direito, traz em si a alegre ruptura com a eternidade”, é referendado nas expressões que o movimento reutiliza depois de quase um milênio, as formas características das artes clássicas: a arte grega e arte romana. O profano, acentuado pelas festividades, faz parte das letras das canções nos séculos XV e XVI. Essas festividades foram abolidas durante o regime de Savonarola (1494 e 1498), em Florença, e substituídas por procissões religiosas e cantos de louvor à Virgem Maria. Com a morte de Savonarola e a volta ao poder dos Médici–membros da nobreza florentina, alguns dos responsáveis pelas festas–, os festivais foram reintroduzidos, ganhando novo vigor. Mas os hinos de Lorenço, que somos tentados a considerar o mais elevado produto do espirito dessa escola, expressa o teísmo sem reservas, e, ademais, a partir de uma visão que se empenha em contemplar o mundo como um grande cosmo físico e moral.387 Nesse período, as músicas são executadas em duas versões: profana e religiosa. É o caso de “Quant’è bella giovinezza”, de Lorenzo de’ Medici, que celebra a fartura, o vinho e as ninfas; e, na versão cristã, valoriza a doçura da Virgem Maria. Na vida exuberante das cidades italianas, na arte das festas, a vida se conhece como gozo da passagem do tempo. Mas este gozo da passagem tinha quer ser passageiro. A canção de Lorenzo de Médicis, que Burkhardt considera como a expressão do “próprio espírito da Renascença”, é o panegírico que esta frágil festa da história formulou a respeito de si mesma: “Como é bela a juventude — que parte tão depressa”.388 O historiador de arte suíço Jacob Burkhardt (1818-1897), que em A civilização do Renascimento na Itália389 retoma o conceito de renascimento, inserindo-o no período histórico intermediário entre A Idade Média e a Idade Moderna, expressa-se da seguinte forma: De autoria de Lourenço é, porém, com certeza, a canção assaz bela que acompanhava a cena de Baco e Ariadne, cujo refrão do século XV ecoa hoje como um melancólico pressentimento do breve esplendor do próprio Renascimento: Quant’è bela giovinezza, Che si fugge tuttavia! Chi vuol esser lieto, sia. Di doman non c`è certezza390. Nesse sentido, é possível compreender por que Debord391 dá importância para o barroco quando “o tempo histórico que invade a arte se expressou primeiro na própria esfera da arte”, pois é nele, o Barroco, que, segundo Debord, é revisitada a brevidade da vida herdada dos gregos e do helenismo. “A nova posse da vida histórica, o Renascimento, que encontra na Antiguidade o seu passado e seu direito, traz em si a ruptura feliz com a eternidade”.392 É nesse contexto que surge um pensador muito lido por Debord por conta da sua atuação como estrategista: Maquiavel (1469-1527), autor de O Príncipe (escrito em 1513 e publicado em 1527), obra dedicada a Lorenzo de Médici. Para Debord, “a experiência de Maquiavel e das ‘comunidades democráticas’ da renascença italiana expressa justamente, em termos históricos, uma ruptura alegre com a eternidade”.393 Para Debord, o tempo irreversível do Renascimento é o da acumulação infinita dos conhecimentos e a consciência histórica, saída da experiência das comunidades democráticas e das forças que as arruínam, que em Maquiavel vai retomar o raciocínio sobre o poder dessacralizado, isto é, o indizível do Estado, o poder sem as amarras da moral, levando-se em conta apenas os critérios de eficácia. A virtú, a principal qualidade de um governante, não tem nada a ver com a virtude cristã, mas com a habilidade e coragem do governante. A “monopolização da vida histórica pelo Estado da monarquia absoluta, forma de transição para a dominação total da classe burguesa, faz aparecer em sua verdade o que é o novo tempo irreversível da burguesia”.394 É ao tempo do trabalho, pela primeira vez liberto do cíclico, que a burguesia está ligada. O trabalho tornou-se, com a burguesia, trabalho que transforma as condições históricas. Com base na identidade do homem e do tempo, o que significa para Debord a moderna sociedade burguesa, pela destruição das antigas formas de produção social e os modos de vida nelas existentes, mas de produção social e – nela, contudo, irrealizável– do uso do tempo histórico. Assim como para Baudelaire, os dadaístas e os surrealistas, a experiência primeira das reflexões sobre a sociedade moderna é para Debord a presença da efemeridade, da finitude e da mortalidade de todas as coisas, presença progressivamente se defronta com a crescente racionalização repressiva da ordem social.395 Assim, a Renascença, apesar de conter certa ruptura, ainda está com um olho voltado para o passado e outro para a instauração de uma “pré-modernidade” engendrada num longo processo de transformação social, econômica, política e cultural, que foi a transição do mundo feudal para o mundo capitalista burguês. 8.5 A burguesia e o tempo irreversível A burguesia, segundo o Manifesto Comunista,396 é “produto de um longo desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e troca”, é a primeira classe dominante para quem o trabalho é um valor. A burguesia, ao “criar um mundo à sua imagem e semelhança”, suprime todo o privilégio e não reconhece nenhum valor que não derive da exploração do trabalho, e que identificou, justamente ao trabalho, o seu próprio valor como classe dominante. A burguesia faz do progresso do trabalho o seu próprio progresso. Assim, tempo e história reduzem-se à forma do tempo da produção, [...] tudo o que parece ser absoluto torna-se histórico. No entanto, historicamente falseado pela ilusão do tempo do trabalho unificado abstratamente como tempo linear, ou conjunto de momentos espaciais em sucessão contínua.397 A vitória da burguesia é a vitória do tempo profundamente histórico, porque ele é o tempo da produção econômica que transforma a sociedade, em permanência e de cima a baixo. O triunfo do tempo irreversível é também a sua metamorfose em tempo das coisas, porque a arma da sua vitória foi precisamente a produção em série dos objetos, segundo as leis da mercadoria. Enquanto o tempo cíclico anterior tinha suportado uma parte crescente de tempo histórico vivido por indivíduos e grupos, a dominação do tempo irreversível da produção vai tender a eliminar socialmente esse tempo vivido. A sociedade moderna funda um tempo “profundamente histórico”, pois não é mais uma sociedade de tradição, da permanência, mas nas condições do capitalismo avançado, nega-o enquanto experiência imediata de vida dos indivíduos, mantendo-o recalcado – numa perversa realização histórica da metafisica – em suas “profundezas”: “A história que está presente em toda a profundidade da sociedade, tende a se perder na superfície”.398 A mercadoria encontrou no cristianismo a sua parceira ideal, criando a possibilidade de um acordo mútuo; “abandona seu próprio calendário e seu tempo irreversível volta a moldar-se na era cristã, cujo sucesso ele prossegue”.399 Com efeito, a clareza da consciência e da História só podem surgir juntas. Uma certa imagem do passado coerente e ativa, só se torna possível por obra de uma ruptura do imediato, de uma fissura que trabalha seu corpo monolítico: só com esta negação pode emergir a consciência do ser-em-si e para-si – em outras palavras, a consciência só se instaura na medida dessa ruptura.400 A burguesia “mostrou e impôs à sociedade um tempo histórico irreversível, mas lhe recusa o uso desse tempo”401 e o seu papel enquanto classe é impor a manutenção dessa história reificada. Debord,402 nesse contexto, identifica a classe trabalhadora como base da sociedade e não materialmente estranha à história, porque “agora é por sua base que a sociedade se move irreversivelmente”.403 Impossível, mais uma vez, aqui não lembrar uma possível referência de Debord ao Manifesto:404 “A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas – os operários modernos, os proletários”. Considerações O tempo exerce um papel central na obra de Debord. Ele recorre ao tempo na perspectiva de compreender o processo de alienação humana e procura inserir conceitualmente sua noção de tempo e história dentro de um sistema totalizante. No capítulo V, Debord tece sua versão sobre o desenvolvimento da consciência histórica construída dentro do processo da história humana. A forma com que Debord constrói sua narrativa sobre o tempo cíclico, o tempo irreversível e o tempo pseudocíclico nos ajuda na compreensão do processo de dominação levado a cabo ao longo da história e instiga o leitor a estudar o tempo na perspectiva de refletir sobre as inúmeras possibilidades de “tomada de consciência” e de projetos emancipatórios. Dialeticamente, Debord405 entende que a organização do tempo social é unificada e que “quando uma sociedade mais complexa chega a tomar consciência do tempo, seu trabalho é mais de negá-lo, pois ela vê no tempo não o que passa, mas o que volta”. Debord entende a negação ou “a inquietação negativa do homem” como ferramenta capaz de superar o tempo espetacular, assunto que tratará no capítulo VI – O tempo espetacular, que é o tempo regulado pela lógica do mercado, em que os fatos vividos realmente são fadados ao esquecimento. O tempo que flui é aqui o tempo do consumo, da fragmentação, do tempo do envelhecimento rápido. Portanto, para Debord,406 “na reivindicação de viver o tempo histórico, o proletariado encontra o centro inesquecível de seu projeto revolucionário; e cada uma das tentativas, até aqui destruídas, de executar esse projeto marca um ponto de partida possível da nova vida histórica”. Referências AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza: EdUECE/Unifor, 2006. ARANTES, Paulo Eduardo. Hegel – A ordem do tempo. São Paulo: Polis, 1981. BURKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo: Cia. das Letras, 1981. COHN, Norman. Na senda do milênio – Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Porto: Editorial Presença, 1981. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. TOLEDO, Plinio Fernandes. A astúcia da dialética: o desvio em Guy Debord. São Paulo: LiberArs, 2015. JAPPE. Anselm. Guy Debord. Lisboa: Antigona, 2008. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. MARX, Karl. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Alfa-Omega, sd. SHAKESPEARE, William. Henrique IV. E-books Brasil: RidendoCastigat Mores, 2001. TONIN, Juliana. A imagem em Guy Debord. In: GUTFREIND, Cristiane F.; SILVA, Juremir M. da. Guy Debord: antes e depois do espetáculo. Porto Alegre: Edipucrs, 2007. p. 43-60. WHITROW, G. J. O tempo na história – Concepções de tempo da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. 9 O TEMPO ESPETACULAR: ALGUMAS REFLEXÕES Vanderlei de Castro Ezequiel Cinquenta anos após sua publicação, continuamos a refletir sobre as teses da Sociedade do espetáculo, de Guy Debord, discutindo sobre a atualidade do texto que propõe o entendimento da sociedade contemporânea como uma sociedade em que as relações sociais entre as pessoas são mediadas por imagens. Tarefa tão complexa quanto polêmica, discutir as ideias de Debord é um grande desafio que se explica pela convicção de que seu pensamento e suas ações evocam a radicalidade de seu caráter autenticamente revolucionário. Assim, a intenção é fazer lembrar a validade e a permanência das ideias subversivas do pensador francês, que o espetáculo em seu funcionamento quer a todo custo fazer esquecer. Crítico ferrenho do marxismo oficial economicista, intelectual irrecuperável pelo sistema midiático e determinista, Debord liderou um grupo de intelectuais ultrarradicais que tinham a crença de que a força das ideias poderia transformar o mundo. Talvez seja essa sua mais importante contribuição: combater a ideologia dominante – para ele, o espetáculo –, apostando nas ideias de mudança com potencial político. A sociedade moderna é concebida por Debord como sociedade do espetáculo, e a vida cotidiana, o fundamento de sua crítica. Para ele, a sociedade exibe uma generalização do fetichismo da mercadoria, invadindo todos os espaços da vida cotidiana. A sociedade capitalista fundamentada na mercantilização de tudo e no fetichismo generalizado produz o espetáculo ininterrupto. Nele, o tempo, o espaço, o lazer, a comunicação, a cultura e tudo o mais é perpassado pela alienação. Assim, a sociedade moderna é a sociedade do espetáculo, reino absoluto do fetichismo e do consumo, manifestando-se num mundo fragmentado, separado. Essa é uma acusação severa, porém verdadeira. E para combater a alienação total, Debord propõe a contestação total do capitalismo. Como afirma o pensador francês: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”.407 Importante ressaltar que o conceito de sociedade do espetáculo busca a compreensão das características de uma fase específica da sociedade capitalista, como afirma Cláudio Coelho:408 Não pode ser confundido como daqueles que se propõem, explícita ou implicitamente, a substituir o conceito de sociedade capitalista como o mais abrangente para explicar a realidade social contemporânea, como os conceitos de sociedade pós-industrial, pós-moderna, da informação, das redes etc. Debord parte da ressignificação do conceito marxista de alienação, que é central para a compreensão do que é espetáculo. O autor destaca a evolução histórica desse fenômeno, tido como uma degradação que vai do “ser” pré-moderno ao “ter” capitalista, chegando ao “parecer” do espetáculo. Com essa evolução, ocorre o empobrecimento da vida cotidiana (mundo vivido), com sua consequente fragmentação em esferas cada vez mais separadas. Enfim, tudo o que antes era vivido – real e concreto – afasta-se em imagens e representações do real. Neste breve capítulo, não tenho a pretensão de fazer uma resenha do autor e, tampouco, de sua obra. Pretendo apenas contextualizar um aspecto importante de sua contribuição teórica: o conceito de “tempo espetacular”. Trata-se de uma tentativa, irremediavelmente pessoal e parcial, de apresentar uma leitura ou interpretação apoiada em conceitos e debates teóricos. 9.1 O tempo em Debord Tópico constante na obra de Debord, a reflexão sobre o tempo e sua passagem em relação à vida finita dos seres humanos é utilizada para pensar a construção livre da vida – alienante e regressiva – que a sociedade do espetáculo desenvolve nos e para os sujeitos. Debord traz uma discussão sobre o desenvolvimento da consciência histórica partindo da experiência com a passagem do tempo irreversível, entendida como conteúdo principal da história, possibilidade de criação e luta. Nesse sentido, as reflexões do pensador francês retomam a interpretação materialista da história realizada por Marx, discutindo sobre o desenvolvimento das forças produtivas e a superação das anteriores relações de produção. Em Debord, o objeto da reflexão é a apreciação social do tempo como possibilidade de experiência concreta do vivido a partir da tomada de consciência dos atores sociais: “O espetáculo, como organização social presente da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo”.409 Debord entende que o tempo espetacular não é histórico, pois não há consciência humana na produção. Trata-se de um tempo da economia, marcado pelo ritmo da produção de mercadoria e consumo. Para o pensador francês, o tempo sentido como único é, na verdade, particular, “a dominação social do tempo-mercadoria”.410 O tempo da produção, para Debord, é o tempomercadoria, “uma acumulação infinita de espaços equivalentes”,411 espaços equivalentes na mesma igualdade quantitativa. Ao ser equivalente, permite a permuta, é cambiável. Aqui, as ideias de Marx fazem eco: “O tempo é tudo, o homem não é mais nada; ele é quando muito a carcaça do tempo. Não se trata mais de qualidade. A quantidade decide tudo sozinha: hora por hora, dia por dia”.412 Debord também afirma que o capitalismo concentrado oferece a venda de “blocos de tempo” como mercadoria. Exemplifica sua afirmação com a venda de serviços com tudo incluído, como pacotes de férias: “[...] as pseudo-deslocações coletivas de férias, o abonamento ao consumo cultural e a venda da própria sociabilidade em «conversas apaixonantes» e «encontros de personalidades»”.413 A racionalidade técnica presente na sociedade, afirmam Adorno e Horkheimer, é a própria a racionalidade da dominação. A sociedade, alienada de si, somente pode vivenciar a racionalidade dominante e total a que está submetida: “O paradoxo da rotina travestida de natureza pode ser notado em todas as manifestações da indústria cultural, e em muitas ele é tangível”.414 Para os pensadores alemães, a exclusão do novo é um aspecto fundamental da cultura de massas, pois ao determinar o consumo futuro, descarta qualquer risco da ausência de controle sobre o “novo”. Finalidade da razão iluminista, a libertação dos homens do medo e dos mitos, tornando-os soberanos de seu destino, isto é, emancipados, transformou-se em razão instrumental, submetendo o espírito humano ao trabalho alienado. Já no início da obra Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer indicam a essência do conceito de “esclarecimento”: “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-lo na posição de senhores”.415 Dessa forma, procuram estabelecer a gênese e a própria necessidade de uma racionalidade instrumental. Nesse sentido, Debord estabelece diálogo com os pensadores da escola de Frankfurt: “[...] o que obriga o aprofundamento do racional é também o que alimenta o irracional da exploração hierárquica e da repressão”.416 Essa característica de racionalização instrumental corrobora uma das características do tempo pseudocíclico – que será discutido adiante –, conforme definido por Debord, em que o consumo da sobrevivência moderna é transformado por meio da alienação: “O espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricação concreta da alienação”.417 Sempre presente nas reflexões de Debord, a alienação traduz-se, na contemporaneidade, pela enorme potencialidade das mídias como produtora de aspectos enganadores, ou seja, produtoras da falsa consciência, da sociedade espetacular: [...] Se o espetáculo, tomado sob o aspecto restrito dos ‘meios de comunicação de massa’, que são sua manifestação superficial mais esmagadora, dá a impressão de invadir a sociedade como simples instrumentação, tal instrumentação nada tem de neutra: ela convém ao automovimento total da sociedade.418 Nesse sentido, Juremir Silva alerta que a mídia, ao contrário do que se pensa, não nos diz o que falar ou sobre o que falar, mas em torno do que falar. Complementa o autor: “A imagem é um totem vazio de conteúdo e cheio de atrações [...] quando tudo é imagem não há mais o que refletir”.419 9.2 Tempo pseudocíclico O surgimento do modo de produção agrário e a consequente sedentarização do sujeito, marca o início da constituição do tempo cíclico, referenciado pelo ritmo natural das estações. Já nessa infância do tempo, instaura-se o conflito no seio da sociedade dividida em classes, servindo de impulso para a apropriação social da produção e do tempo do homem pelo trabalho humano. Em contrapartida, Debord vai utilizar o termo tempo pseudocíclico para se referir ao tempo no âmbito da sociedade moderna: “[...] em que o vivido quotidiano continua privado de decisão e submetido, já não a ordem natural, mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado”. O autor esclarece que esse tempo pseudocíclico apoia-se nos traços do tempo cíclico – que regulava a vida nas sociedades pré-industriais –, fazendo novas combinações: “O dia e a noite, o trabalho e o repouso semanais, o retomo dos períodos de férias”.420 Para Debord, a moderna sociedade burguesa, ao destruir as antigas formas de produção social e os modos de vida nelas existentes, possibilitou – embora irrealizável – o uso do tempo histórico. As bases materiais de produção pré-capitalistas eram fundamentalmente agrícolas, dependentes das estações da natureza e organizadas de acordo com o tempo cíclico. A destruição dessas bases materiais de produção possibilitou que a sociedade moderna criasse as condições para uma vida situada num tempo passageiro, linear e irreversível. Dessa forma, a classe dominante, detentora dos meios de produção, organiza o trabalho social dos dominados. Além da apropriação do sobretrabalho, propiciada pela tomada do excedente de produção, o dominado também é expropriado do seu tempo, tempo irreversível do ser vivo; tempo do gozo do vivido. Nesse sentido, o tempo daqueles que estabelecem as regras – os que dominam, que detêm a propriedade da história – difere do tempo cíclico e repetitivo dos dominados, daqueles que se encontram na base social da produção. O tempo geral do não desenvolvimento humano existe também sob o aspecto complementar de um tempo consumível que regressa à vida quotidiana da sociedade, a partir desta produção determinada, como um tempo, pseudocíclico.421 A economia mercantil capitalista, surgida na modernidade, possibilitou a experiência de um tempo profundamente histórico, um tempo irreversível da economia que possibilita a contínua expansão do capital. Porém esse tempo irreversível não é aquele do desenvolvimento humano, da livre atividade, ele é o tempo reificado, tempo das coisas, concebido conforme as leis da produção de mercadorias. O tempo pseudocíclico não é de fato mais do que o disfarce consumível do tempo-mercadoria da produção. Dele contém os caracteres essenciais de unidades homogéneas permutáveis e de supressão da dimensão qualitativa. Mas ao ser o subproduto deste tempo destinado ao atraso da vida quotidiana concreta ‒ e à manutenção deste atraso ‒, ele deve estar carregado de pseudovalorizações e aparecer numa sucessão de momentos falsamente individualizados.422 Debord define o tempo pseudocíclico como um tempo que foi transformado pela indústria, ou seja, o tempo originado na produção de mercadorias, sendo ele próprio “uma mercadoria consumível que reúne tudo o que se tinha anteriormente distinguido, quando da fase da dissolução da velha sociedade unitária em vida privada, vida económica, vida política”.423 Dialogando com Marx, Debord afirma que o tempo, na sociedade contemporânea, transformou-se em matéria-prima de novos produtos, “que se impõem no mercado como empregos do tempo socialmente organizados”.424 9.3 Tempo-mercadoria A evolução do capitalismo confirmou os pressupostos de Marx: o fetichismo da mercadoria (transmutada em espetáculo), a alienação, o não “ser”, a representação fantasmagórica de si próprio. O indivíduo se vê em imagens sem perceber a apropriação do seu tempo – no trabalho e mesmo no ócio –, quando se diverte ou descansa. Dessa forma, como afirma Coelho,425 Debord atualiza e complementa essa concepção de Marx, chamando a atenção para a presença das imagens nas relações sociais de produção, de troca, de consumo, e nas dimensões superestruturais que justificam essas relações. Mesmo considerando-se que Marx não tenha deixado nenhum questionamento direto a respeito da questão “o que é o tempo”, isto é, que não tenha tratado a questão nesses termos, é incontestável que o conhecimento científico do tempo foi revolucionado pelo pensador alemão. Tratado como questão fundamental nos trabalhos de economia política, na sua maturidade Marx rejeita a concepção de tempo abstrato, linear e dissociado dos acontecimentos concretos. Dessa forma, ressalta o caráter político, econômico e cultural do tempo, trazendo à luz um de seus conceitos seminais “sobrevalor” (mais-valia). Nesse sentido, para Marx toda transformação social implica uma mudança fundamental na intuição do tempo. Em suas reflexões, descobriu que o tempo é a medida quantitativa do trabalho, sendo a base do processo de obtenção da mais-valia, isto é, no capitalismo o trabalhador é concebido como tempo de trabalho personificado ou como determinação quantitativa do trabalho. Com isso, Marx examina a teoria do valor de uma perspectiva inteiramente nova, rompendo com os preceitos da economia clássica de Smith e Ricardo. Ele afirma que o trabalho é a única fonte com capacidade de produzir valor, por meio do sobrevalor – excedente de valor produzido pelo assalariado durante seu tempo de trabalho global. Ao utilizar o conceito de sobrevalor (mais-valia), Marx confere um conteúdo real, material e, principalmente, validade conceitual ao termo “valor”, superando a crença de que o valor provém da circulação. O conceito de sobrevalor – criação original de Marx – surge de maneira mais sistematizada nos Grundrisse426que compõe as chamadas obras tardias do pensador: [...] Ela supõe que os trabalhos se igualam pela subordinação do homem à máquina ou pela divisão extrema do trabalho; que os homens se curvam diante do trabalho; que o pêndulo do relógio se torna a medida exata da atividade relativa de dois operários, como o é da velocidade de duas locomotivas. Assim, não se deve dizer que uma hora de um homem vale uma hora de outro homem, mas antes que um homem de uma hora vale outro homem de uma hora.427 Diferentemente da corveia feudal, o sobrevalor não pode ser definido individualmente, nem calculado em tempo real, pois no capitalismo o sobretrabalho é tornado invisível, sendo definido somente de maneira abstrata pelo conjunto do trabalho social. Esse conceito foi dividido em dois por Marx: sobrevalor relativo e sobrevalor absoluto, embora essas duas dimensões não sejam mutuamente exclusivas. O transcurso do processo é o seguinte: com uma dada população de trabalhadores e uma dada magnitude da jornada de trabalho, isto é, a magnitude da jornada de trabalho multiplicada pelo número das jornadas de trabalho simultâneas, o trabalho excedente só pode ser relativamente aumentado por meio de uma maior força produtiva do trabalho, cuja possibilidade já está posta no crescimento pressuposto da população e no |treinamento para o trabalho (o que inclui também certo tempo livre para a população que não trabalha, que não trabalha diretamente, ou seja, desenvolvimento das capacidades intelectuais etc.; apropriação intelectual da natureza).428 De maneira simplificada, pode-se dizer que o sobrevalor relativo é obtido por meio do prolongamento da duração global da jornada de trabalho, ou seja, aumento da produtividade. Já o sobrevalor absoluto é obtido pela transformação de uma parte maior da população em população trabalhadora e o aumento dos dias de trabalho. O que é sempre novo no processo da produção das coisas não se reencontra no consumo, que permanece o regresso alargado do mesmo. Porque o trabalho morto continua a dominar o trabalho vivo, no tempo espetacular o passado domina o presente.429 A “tendência do capital à universalidade”, conforme Marx, favorece a anulação do espaço pelo tempo, diferenciando o capitalismo das formas de produção anteriores. Dessa forma, a compressão espaço-temporal torna-se uma tendência geral do próprio modo de produção. Nesse sentido, Debord430 afirma que o tempo é a alienação necessária – referenciando Hegel –: “[...] Nessa alienação espacial, a sociedade que separa pela raiz o sujeito e a atividade que ela lhe subtrai, o separa primeiro de seu próprio tempo”. De acordo com Marx,431 Quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais distendido, portanto, o mercado em que circula, tanto mais ele se empenha simultaneamente para uma maior expansão espacial do mercado e para uma maior destruição do espaço pelo tempo. De acordo com a teoria marxista, o tempo utilizado para valorização no processo capitalista de produção de mercadorias é o tempo abstrato do trabalho social objetivado. Esse tempo abstrato é puramente quantitativo, sem as características necessárias para um uso do tempo irreversível que possibilite a autoconstrução da vida. Assim, apesar de sua base ser voltada para o tempo irreversível – condição de possibilidade do viver histórico –, a experiência vivida dos indivíduos na sociedade capitalista não possibilita a consciência desse tempo, pois a vida cotidiana se encontra colonizada pela forma mercadoria e pela forma valor. 9.4 Tempo e consciência de classe Nas teses de A sociedade do espetáculo observa-se que a reapropriação das categorias essenciais de História e consciência de classe432 revela um diálogo do pensador francês com o jovem Lukács. Publicado na década de 20 do século XX, nessa obra – que foi referência para os pensadores da Escola de Frankfurt bem como para Debord – o autor “[...] investiga o processo de formação da consciência social, entendida como capacidade de compreensão da realidade e de reconhecimento dos interesses sociais no capitalismo”.433 Do pensador marxista húngaro, Debord se inspira nas categorias: consciência de classe, totalidade, falsa consciência, fetichismo da mercadoria e separação. Característica básica da sociedade do espetáculo, a ideia de separação também é fundamental em Lukács, entendendo a lógica da separação como componente essencial das relações sociais no âmbito do capitalismo. Lukács, tendo Marx como referencial, também assinala a perda das qualidades humanas, individuais, do trabalhador, durante o processo de trabalho, não importando se desenvolve um artesanato, manufatura ou indústria. A racionalização crescente das atividades ao longo do processo de produção favorece a fragmentação e elimina, por consequência, o contato do trabalhador com o produto final de seu esforço. Nesse sentido, Debord434 entende que “com a separação generalizada entre o trabalhador e o que ele produz, perdem-se todo ponto de vista unitário sobre a atividade realizada, toda comunicação pessoal direta entre os produtores”. No processo de trabalho no modo de produção capitalista, o sujeito terá suas propriedades e particularidades humanas subjugadas às leis de um processo de produção cada vez mais mecanizado, automatizado, informatizado: O homem não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizada num sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e a cujas leis ele deve se submeter.435 Lukács também vai observar a relação do trabalho com o tempo e o espaço, independentemente da consciência do sujeito que executa o trabalho. Essas são categorias fundamentais da atitude imediata dos homens em relação ao mundo. O tempo perde seu caráter qualitativo, tornando-se cada vez mais somente quantitativo. Dessa maneira, Lukács destaca a determinação imposta pelo tempo de se ter em iguais intervalos as mesmas quantidades mensuráveis de trabalho realizado. Tem-se, assim, que o tempo acaba se tornando um espaço, e o trabalho realizado, consequentemente, despersonalizado. Nesse ambiente em que o tempo é abstrato, minuciosamente mensurável e transformado em espaço físico, um ambiente que constitui, ao mesmo tempo, a condição e a consequência da produção especializada e fragmentada, no âmbito científico e mecânico, do objeto de trabalho, os sujeitos do trabalho devem ser igualmente fragmentados de modo racional.436 Transformado em realidade cotidiana intransponível, esse trabalho fragmentado e mecânico, que vai caracterizar a atividade do sujeito do trabalho e sua personalidade, perderá toda importância frente ao sistema racionalizado de produção. Assim, ficará rompido o elo da chamada produção orgânica dos sujeitos em relação ao trabalho, caracterizando a produção pela desintegração mecânica. Para levar os trabalhadores ao estatuto de produtores e consumidores «livres» do tempo-mercadoria, a condição prévia foi a expropriação violenta do seu tempo. O regresso espetacular do tempo não se tomou possível senão a partir desta primeira despossessão do produtor.437 Ao transformar a força de trabalho em mercadoria – momento da despersonalização –, o aumento da necessidade do cálculo racional e da precisão temporal possibilitam a fragmentação da produção e a mudança na relação com o tempo. Resulta que todo esse quadro produtivo, caracterizado pela produção capitalista, vai fazer: [...] deles [os trabalhadores] átomos isolados e abstratos, que a realização do seu trabalho não reúne mais de maneira imediata e orgânica e cuja coesão é [...] mediada exclusivamente pelas leis abstratas do mecanismo ao qual estão integrados.438 Na realidade separada produzida pelo espetáculo, a alienação é total: material e intelectual. Presente no processo de produção, a alienação abrange toda a vida social. Além do trabalhador não ser visto e nem se ver como sujeito do processo de produção, qualquer indivíduo no capitalismo, afirma Coelho,439 “[...] deixa de ver e ser visto como produtor da própria realidade social que aparece como se fosse separada das ações humanas”. Porém, conforme Debord,440 a parte irredutivelmente biológica – do sujeito que produz – continua presente no trabalho e, dessa forma, a “[...] dependência do tempo cíclico natural da vigília e do sono como na evidência do tempo irreversível individual da usura de uma vida, não são mais do que acessórios face à produção moderna”. Considerações O tempo da produção mercadológica é reflexo da sincronização dos relógios para o funcionamento do modelo capitalista. Mas além de operar nas fábricas, no processo de controle da produção em si, também o horário dito “livre” do trabalhador é monitorado. Prevalece a lógica que beneficia aos detentores dos meios de produção, já que a sociedade do consumo existe, agora, em tempo consumível: cinema, televisão, games, Netflix e afins. Assim, o processo de espetacularização se impõe por meio da falsa consciência do tempo, materializada de forma aparente, que acontece por meio de imagens sociais de consumo. Atual como nunca deixou de ser, o conceito de sociedade do espetáculo é incontestável. Embora recuperado pelas mídias, tão criticadas por Debord como “vitrine mais visível do espetáculo”, o termo passou para o uso do senso comum, com total esvaziamento do conceito. Prova inconteste do triunfo do espetáculo. Mesmo que Debord tenha se mantido durante toda a vida como marginal ao sistema, sua análise do espetáculo foi se impondo de tal forma que o conceito passou a se destacar, ganhando contornos para a elaboração de uma teoria da sociedade contemporânea. Em contrapartida, o espetáculo é de tal forma eficaz que conseguiu recuperar o conceito e transformá-lo, reduzindo-o a mais uma teoria sobre as mídias, processo que esvazia seu caráter revolucionário de explicação da totalidade. No mundo contemporâneo, com a imposição do ciberespaço, da realidade virtual e da cultura da simulação, falar de revolução pode parecer ingênuo, principalmente quando a realidade concreta exibe uma escalada de violência de toda ordem. Porém é justamente pela manifestação incontestável dessa realidade, na maioria das vezes omitida pelo espetáculo, que aparece de maneira ainda mais clara a falsificação da vida social, construída e mantida pelo espetáculo. Tudo parece propiciar o triunfo da lógica do espetáculo. Resta, entretanto, a possibilidade de apropriação dos instrumentos do espetáculo como ferramentas criativas de sua própria superação, buscando a emancipação dos indivíduos. Referências ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. COELHO, Cláudio N. P. Em torno do conceito da sociedade do espetáculo. In: COELHO, Cláudio N. P.; CASTRO, Valdir J. de (Orgs.). Comunicação e sociedade do espetáculo. São Paulo: Paulus, 2006. p. 13-30. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 1. ed. 5. reimpr. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. LUKÁCS, György. História e consciência de classe. Ensaios sobre dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. _____. Miséria da filosofia. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Global, 1985. SILVA, Juremir M. da. Depois do espetáculo: reflexões sobre a tese 4 de Guy Debord. In: GUTFREIND, Cristiane F.; SILVA, Juremir M. da. Guy Debord: antes e depois do espetáculo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. p. 31-42. 10 GUY DEBORD E O ESPAÇO URBANO: O DIREITO À CIDADE E A CIDADE COMO DIREITO Fábio Del Nero O [...] observador, flâneur, filósofo, chamem-no como quiserem, mas, para caracterizar esse artista, certamente seremos levados a agraciá-lo com um epíteto que não poderíamos aplicar ao pintor das coisas eternas, ou pelo menos mais duradouras, coisas heroicas ou religiosas. Às vezes ele é um poeta; mais frequentemente aproximase do romancista ou do moralista; é o pintor do circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno.441 10.1 Planejamento urbano: uma abordagem debordiana O termo flâneur vem do francês e tem o significado de “vagabundo”, “vadio”, “preguiçoso”, que, por sua vez, vem do verbo francês flâneur, que significa “passear” ou “andar sem rumo”. Charles Baudelaire desenvolveu um significado próprio para essa palavra, de “uma pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la”. O caminho, o andar, o flanar é ponto de partida para este capítulo, que pretende teorizar sobre a produção do espaço urbano na sociedade contemporânea por meio das ideias e reflexões apresentadas pelo pensador francês Guy Debord, presente especialmente no capítulo “O planejamento urbano”, de sua célebre obra A sociedade do espetáculo. O eixo comunicação-espaço urbano suscita diversas articulações com a teoria da “sociedade do espetáculo”. Darei destaque para as concepções debordianas de urbanismo e sua teoria da Deriva, em articulação com a teoria do “direito a cidade”, desenvolvida por Henri Lefebvre,442 e o conceito de flâneur, desenvolvido por Baudelaire.443 O ponto de partida, mas também o de chegada, é a “aldeia” chamada São Paulo. Todas as ideias e reflexões propostas neste capítulo são uma tentativa de refletir, de uma forma ou de outra, sobre a experiência de viver nessa cidade, assim como parte dos rumos que a maior cidade da América Latina vem tomando. Metodologicamente, optei em não adotar um corpus específico para este capítulo, concentrando toda a minha análise na articulação das teorias e conceitos desenvolvidos pelos autores utilizados, especialmente Guy Debord. Meu intuito neste capítulo é brindar as ideias de Guy Debord, afinal, ele foi produzido especialmente para a comemoração dos 50 anos de sua clássica obra, culminando no lançamento deste livro, que celebra e concatena suas principais ideias e reflexões. Mas quero ir além, visando a também contribuir com um aprofundamento no avanço do pensamento crítico na interface do espaço urbano com o campo da comunicação. Outros autores do campo comunicacional, além dos já citados, também terão suas ideias, reflexões, teorias e conceitos utilizados como suporte e contextualização para que meu objetivo seja alcançado. No limite, tangenciarei por questões essenciais para o debate do neoliberalismo e da urbanização na contemporaneidade, a fim de oferecer um caminho teórico-dialético para os problemas socioespaciais encontrados nos grandes centros urbanos mundiais e possíveis de serem percebidos in loco ao vagarmos feito um flâneur pela cidade de São Paulo. 10.2 A parceria público-privada: a crítica debordiana do espaço Guy Debord (1931-1994) é um crítico mordaz da sociedade capitalista. Ao cunhar o termo “sociedade do espetáculo”, que posteriormente vem a ser o título de sua obra mais importante, publicada em 1967, o pensador francês aponta para um aspecto primordial que caracteriza o momento contemporâneo do desenvolvimento do sistema capitalista: o espetáculo, isto é, sua ideia de espetáculo, que pode ser compreendida como uma relação social mediada pelas imagens. Após 50 anos de sua obra, a importância desse apontamento feito por Guy Debord se intensifica, na medida em que a produção de imagens aumenta de forma exponencial, impulsionada pelo desenvolvimento e expansão das tecnologias de comunicação e informação, culminando no advento das redes sociais, algo inimaginável naquele momento, assim como em aparelhos tecnológicos sofisticados, produtores e reprodutores de imagens, como os smartphones. Como consequência dessa grande quantidade de imagens que hoje em dia é produzida, temos o fenômeno para o qual Debord já chamava atenção – e que nos dias de hoje parece ainda mais evidente –, no qual a vida da sociedade moderna torna tudo que é vivido em representação, criando um “monopólio da aparência”.444 Esse fenômeno é uma característica marcante da cultura e das práticas sociais contemporâneas, acentuado pela múltipla e intensa relação dos sujeitos sociais com as tecnologias da comunicação e informação. Ao lermos os aforismos escritos por Debord, é clara a influência de teorias e reflexões de outros célebres pensadores, uns contemporâneos e outros anteriores a sua época, utilizadas para desenvolver algumas de suas principais ideias. Destaco a de que a interação social se faz da práxis dos homens – o trabalho e a linguagem – em clara referência às ideias de Karl Marx e sua teoria de reificação, fetichismo da mercadoria e alienação. Para Marx, trabalho e linguagem são duas formas de mediação social, que ao se relacionarem com o mundo natural, uma base material é criada. Essa base material é repleta de significados que transmitem informações, ordens e pensamentos, que representam a luta de classes, vinculada, sobretudo, à produção de bens e mercadorias, sendo essa base e estrutura da sociedade. O caráter fetichista da mercadoria a que Marx se refere é a característica da sociedade capitalista de tornar o benefício social da troca dinheiro-mercadoria mais importante que a natureza física dos produtos e que as relações materiais presentes no intercâmbio mercantil.445 Debord estende esse conceito para a prática cotidiana afirmando que, na sociedade do espetáculo, o mundo sensível está dominado pelas coisas “suprassensíveis”; o mundo sensível “é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele”.446 A sociedade capitalista, ao desenvolver técnicas de reprodução em larga escala, inicialmente limitadas aos bens materiais, e em seguida direcionadas também para os bens simbólicos, criou as condições para a existência do fetichismo da mercadoria e em seguida para o fetichismo das imagens. Na sociedade do espetáculo essas duas formas do fetichismo são inseparáveis e determinam a vida cotidiana.447 Para Debord,448 a práxis social dos homens “cindiu-se em realidade e em imagem”. A novidade concebida pelo pensador francês, estimulado pelas ideias de Karl Marx, é que em determinado estágio da sociedade capitalista, o valor de troca chega a tal nível de autonomia, pelo superacúmulo de capital e, conjuntamente, pela extensão de sua lógica ao conjunto do espaço-tempo vivido, que a lógica abstrata do caráter de troca social, presente na relação monetário-mercantil, é a única coisa que se faz ver. No desenvolvimento dessa ideia, ele afirma que é por meio das imagens que a supervalorização do caráter social presente na relação mercantil se perpetua, e que no espetáculo substituem o diretamente vivido, introduzindo, portanto, uma relação fantasmagórica entre indivíduo e mercadoria. “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”.449 Na sequência, Debord450 afirma que “o espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo”. Nesse movimento do não vivo, a imagem é a forma final, em que a realidade social e a racionalidade do indivíduo sucumbe à sociedade capitalista, caracterizada por um sistema impiedoso de produção e consumo. Novamente, Debord faz uma referência à teoria marxista da reificação e do fetichismo da mercadoria. Sob o conceito de espetáculo, momento da economia em que a mercadoria teria atingido a ocupação total da vida cotidiana, Debord também ousou pensar questões ligadas ao espaço urbano. Sobre o fenômeno da urbanização, ele afirma: A sociedade que modela tudo o que cerca construiu uma técnica especial para agir sobre o que dá sustentação a essas tarefas: o próprio território. O urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário.451 Para ele, a produção capitalista dissolveu a autonomia e a qualidade dos lugares, forçando uma homogeneização do espaço. Nesse sentido, as ideias do geógrafo e sociólogo britânico David Harvey de que o capitalismo possui um compromisso com o crescimento perpétuo articula-se com a concepção debordiana de urbanização. Harvey utiliza-se da “lógica do crescimento infinito do capital” de Karl Marx452 para explicar os rumos que a urbanização vem tomando na contemporaneidade. É graças a essa lógica que a questão do espaço, para Marx, torna-se um problema para o capital. Harvey explica que a reconstrução da cidade, para Karl Marx, é uma das formas de resolver esse problema da falta de espaço que o capital encontraria, intensificando o progresso. O capital, segundo Marx, precisa crescer para sobreviver, expandindo-se para outras áreas, a fim de manter seu domínio e perpetuar. O urbanismo, nas palavras de Guy Debord,453 demonstra com nitidez a “decisão autoritária” do capital em se expandir como “território da abstração”, e a superação “de um limiar no crescimento do poder material da sociedade e o atraso na dominação consciente deste poder”. Tudo no sistema capitalista precisa ser orientado para o crescimento. A falta dele, no capitalismo, é vista pela grande maioria dos políticos, economistas, empresários, intelectuais e demais pessoas ocupadas em refletir sobre o rumo desse sistema, como uma crise. Aprimorando esse raciocínio, outro fator fundamental para a manutenção do sistema capitalista é o lucro. É preciso prever lucro para que qualquer investimento seja feito no sistema capitalista. Seja ele no urbanismo, em suas subáreas, como segurança, moradia e mobilidade, por exemplo, ou em um outro setor qualquer. Crescimento e lucro são condições sine qua non do sistema capitalista.454 E uma maneira que o composto crescimento e lucro encontrou para se desenvolver foi justamente mediante uma concentração crescente em urbanização, como um meio de acumulação de capital. A cidade capitalista reproduz espacialmente a disputa por lucratividade travada entre os setores público e privado, muitas vezes escamoteada pelo discurso da globalização, da modernização e do desenvolvimento. O que se encontra por detrás dessa disputa são justamente os interesses do capital, que nada se assemelham aos interesses dos cidadãos e da sociedade como um todo. Timothy Garton Ash,455 escritor britânico e professor da Universidade de Oxford, ironizou num artigo de opinião no The Guardian, que, se o Big Brother viesse ao século XXI, “ele retornaria numa parceria público-privada”. O avanço do neoliberalismo nos espaços públicos, que visa à criação de novas maneiras do capital se expandir, conciliada a novas oportunidades lucrativas de investimento, manifesta-se em âmbitos mundial e local, subordinando os cidadãos e o bem-estar social ao interesse das grandes corporações econômicas, em sua grande maioria empresas ligadas ao mercado imobiliário. O processo de entrega do espaço público à iniciativa privada é uma demonstração clara da mercantilização da cidade. 10.3 O “direito à cidade” e a retomada da dialética Para Harvey,456 o “direito à cidade” é muito mais do que o direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora. É um direito de mudar e reinventar a cidade de acordo com os nossos mais profundos desejos. Harvey, por intermédio das ideias de Marx, procura explicar como o capital, com o objetivo de se expandir, direciona seus recursos para a questão do desenvolvimento urbano. Para Harvey, o capital não tem a capacidade de lidar com as necessidades reais das pessoas. Ele está condicionado a construir cidades da forma que ele, o capital, quer. Então a alternativa que resta é pensar além do capital. Pensar em como sair dessa encruzilhada posta pelo próprio capital. Henri Lefebvre (1901-1991), assim como Marx, Debord e Harvey, também aponta a sociedade urbana como sentido e finalidade da industrialização. Embebido de um espírito revolucionário que as revoltas da Comuna de Paris geraram, em 1968, Henri Lefebvre, sociólogo e filósofo marxista, escreveu as obras A revolução urbana457 e A produção do espaço,458 além do clássico Direito à cidade,459 que deu origem à teoria homônima à obra. Lefebvre sustentava a ideia de que o capitalismo precisa da urbanização para sua própria sobrevivência e, portanto, estava destinada a tornar-se um foco crucial da luta política e de classes. O “direito à cidade”, para ele, era o direito de a população (proletários) comandar todo o processo de urbanização. A concepção debordiana de espetáculo possui suas raízes teóricas nas reflexões de Lefebvre sobre a vida cotidiana. Sobre a aproximação de Lefebvre e Debord, assim como a articulação de suas ideias, Celso Frederico460 aponta que: No período de vigência do movimento situacionista encontram-se as primeiras formulações a respeito da sociedade do espetáculo, bem como reflexões sobre a vida cotidiana. Sobre esse último tema, vale lembrar a aproximação ocorrida entre Debord e Henri Lefebvre, suas experiências na deriva e a estreita colaboração intelectual entre ambos. Para Henri Lefebvre, o processo de industrialização obriga-nos a conceber uma estratégia do conhecimento, inseparável da estratégia política, ainda que distinta dela. E para qual direção devemos dirigir nossos esforços na busca de um saber emancipador? Segundo Lefebvre, “na direção da entrada para a prática de um direito: o direito à cidade, isto é, à vida urbana, condição de um humanismo e de uma democracia renovados”.461 A defesa de um saber que não estivesse aprisionado por um “sistema”, que segundo ele “aprisiona a reflexão”, foi uma tentativa de resgate da dialética que o marxismo possui, enfatizando o homem como sujeito da sua história. Lefebvre462 afirma que sua teoria sobre a produção social do espaço “visa abrir o pensamento e a ação na direção de possibilidades que mostrem novos horizontes e caminhos”, tornando, assim, o urbanismo uma ‘ideologia e prática’”. Ao refletir sobre os conceitos marxistas de “valor de uso” e “valor de troca”, tendo a cidade como perspectiva, Lefebvre463 afirma: A própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas, na direção dos produtos. Com efeito, a obra é valor de uso e o produto é valor de troca. O uso principal da cidade, isto é, das ruas e das praças, dos edifícios e dos monumentos, é a Festa (que consome improdutivamente, sem nenhuma outra vantagem além do prazer e do prestígio, enormes riquezas em objetos e em dinheiro). Em um resgate fundamental da teoria de Marx, o sociólogo e filósofo francês enfatizava o homem como sujeito da sua história. Nesse intuito, o autor questiona a vida cotidiana da sociedade moderna a partir de sua expressão mais manifesta: o espaço. O fenômeno urbano se estende sobre o território, criando o que Lefebvre chama de “tecido urbano”, designado a ampliar as condições técnicas e sociais do trabalho e geradoras de “rede de malhas desiguais” que, em perspectiva, ampliam fortemente as periferias, as redes bancárias, comerciais e industriais, as habitações e os locais de lazer. O ponto chave da questão proposta por Lefebvre é que o tecido urbano cria um “modo de viver, mais ou menos intenso ou degradado”, o qual ele define como sociedade urbana. A dialética das ideias de Lefebvre advém da constatação de fenômenos sociais e culturais que surgem da base econômica do tecido urbano. Para pensar a urbanização de maneira “complexa”, é necessário “distinguir a indução e o induzido, ao observar a importância dos fenômenos induzidos e sua inteiração sobre os indutores”.464 O “indutor” é o próprio processo de urbanização que se intensifica conforme o sistema capitalista se desenvolve, e o “induzido” são os problemas que esse desenvolvimento urbano gera, porém sem omitir a importância do lazer e da cultura produzidos nesse processo. Os dois aspectos que a urbanização gera, sendo um ela em si própria, e o outro, aquilo que ela produz, permitem, em um exercício gramsciano, retomar o papel da cultura e do sujeito na disputa pela hegemonia do espaço urbano. Em última instância, não seria essa a proposta de Lefebvre? 10.4 A “cidade de direito” e a disputa pela hegemonia A arte de flanar é a arte de percorrer os sentidos da cidade. O flâneur é considerado o “alegorista da cidade, detentor de todas as significações urbanas, do saber integral da cidade, do seu perto e do seu longe, do seu presente e do seu passado”.465 Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugida.466 Cláudio Novaes Pinto Coelho,467 sociólogo, professor da pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero e coordenador do Grupo de Pesquisa Comunicação e Sociedade do Espetáculo, associado à mesma instituição, em uma apresentação de uma das obras realizadas pelo grupo, afirmou que “o culto ao dinheiro, tão típico do capitalismo neoliberal, não é um componente da “natureza humana”, é uma criação histórica, podendo muito bem desaparecer”. Ao enfrentarmos as críticas feitas neste capítulo ao sistema que delineia nossa cultura e sociedade, é importante não perdermos o caráter humano do indivíduo, autor e protagonista de sua própria história, criativo e transformador por natureza. Nessa perspectiva, as palavras de Coelho são revigorantes, pois acenam para a possibilidade de mudança dentro de um cenário em que a vida social dos indivíduos foi tomada pela lógica da mercadoria e que, nas palavras de Debord,468 “já não pode ser se não a sobrevivência ampliada”. É impossível, para compreendermos esse fenômeno que é a cidade, desconsiderar as inter-relações que ela mantém com os contextos socioculturais, que conforme explicou Lefebvre, localizam-se a nível meso, escapando do engessamento econômico que a produção capitalista do espaço possui. Nessa perspectiva, o “lugar” torna-se significante de um povo, produzindo e reproduzindo significados, sendo constantemente ressignificado, sem vê-la única e exclusivamente pela lógica do capital e dos seus mecanismos de massificação. Em uma sociedade civil, tanto na visão hegeliana quanto na visão marxista ou na gramsciana, o que está em jogo é a institucionalidade. Para Hegel, a sociedade civil é a mediação entre o público e o privado, que segundo ele não passa de uma divisão metodológica, um artifício intelectual para entender que, organicamente, não há distinção alguma. Isto é, a separação do “político” e do “civil” é puramente metodológica.469 O ponto de partida para o conceito de sociedade civil de Antonio Gramsci é Hegel, que a cinge como instituições e vida econômica. Na perspectiva gramsciana de cultura, a sociedade civil se localiza na “superestrutura”, diferentemente de Karl Marx, que a posiciona na “estrutura”. Por meio de uma perspectiva gramsciana, entendemos que questões socioculturais não são exclusivamente vistas apenas pela lógica econômica, mas também pelas instituições que constituem a sociedade, como a igreja, a escola, o exército, o folclore (tradições culturais) e, na contemporaneidade, a própria comunicação. Todos esses elementos juntos formam, durante uma temporalidade diacrônica, o caminho percorrido de um povo, formando suas particularidades. “Gramsci não rejeitava a ideia marxista de estrutura e superestrutura. No entanto, acreditava que a política e a cultura reagiam sobre a economia de várias maneiras”.470 Nesse sentido, é no próprio materialismo histórico que encontramos a lógica dialética com seus pressupostos epistemológicos para uma compreensão das relações que o indivíduo possui com a realidade social e o cotidiano que o permeia, permitindo-nos ir mais a fundo para entendermos as possibilidades de intervenções que há para que uma mudança radical do atual cenário urbano possa acontecer. A dialética social é a transformação da sociedade a partir da solução das contradições do presente em novas formações sociais do futuro. O pensamento dialético lida com a contradição como o motor a partir do qual novos caminhos e procedimentos são encontrados. Assim, o método dialético da conta das relações sociais e dinâmicas e contraditórias em si sem o risco de se cair em um determinismo econômico ou social.471 O próprio Marx, em sua obra A ideologia alemã, desata o que parecia ser um problema insolúvel, proclamando que “na práxis revolucionária coincidem a mudança das circunstâncias e a transformação das consciências”, apresentando a sua nova concepção de revolução, que visa a, de maneira dialética, analisar criticamente a investida do capital, convocando-o à sua derrocada, exigindo “eliminar todas as condições no seio das quais o homem é um ser diminuído, submetido, abandonado, desprezado”.472 10.5 O vagabundo em deriva: debord e o espaço comunicacional Os antigos ritos, costumes, grandes narrativas que serviam para dar visibilidade às classes hegemônicas foram substituídos por um universo semiótico, cada vez mais concentracionário e controlado pelo fórum midiático da esfera pública. E é a isso que se institui aquilo que a sociologia reconhece como campo cultural.473 O campo cultural é um espaço de produção e distribuição de produtos culturais, mas também um cenário de lutas pelo domínio simbólico. Domínio simbólico é o domínio e o poder de impor representações, estilos de vida, perspectivas, enfim, tudo que confere visibilidade pública a determinadas frações da classe social. É nesse campo cultural que a mídia se constituiu, localizado na superestrutura orgânica da sociedade, na qual se dá uma disputa pela hegemonia, segundo Gramsci. A monotonia e a previsibilidade perdem força diante de um espaço em que corpos em movimento caminham com liberdade de escolha, em uma agitação policromática, polivisual, polifônica e, sobretudo, cinética e em constante mudança.474 A disputa inexorável e rígida pelo espaço, em muitos momentos travada no campo político, que possui em suas entranhas o movimento único e independente da economia, também é travada no campo da cultura, dos movimentos sociais, da mídia e, sobretudo, na subjetividade de cada indivíduo que deseja uma mudança das atuais condições existentes de espaço. As novas tecnologias da comunicação estabelecem uma sensível mudança no uso e na percepção das cidades. O espaço público urbano constitui elemento vital para caracterizar essa mudança, pois ela o leva a atingir outra etapa, inscrevendo-o como espaço mediado.475 Se, por um lado, Guy Debord acena com um espaço público deslocado, composto por indivíduos sedados e anestesiados pela “pseudocomunicação” – se o pensador situacionista já o previa, agora, com o avanço da tecnologia da comunicação e da informação, a produção da imagem é ainda mais intensa –, por outro, ele mesmo aponta para uma saída contra a passividade e a alienação geradas pelo acúmulo de imagens. Nesse espaço movente do jogo, e das variações livremente escolhidas das regras do jogo, a autonomia do lugar pode se reencontrar, sem reintroduzir um apego exclusivo ao solo, e assim trazer de volta a realidade da viagem, e da vida entendida como uma viagem que contém em si mesma todo o seu sentido.476 Esse desejo de mudança era o espírito situacionista, no qual Guy Debord, um dos líderes do movimento, militou por uma nova sociedade. Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se encontra como uma técnica ininterrupta por meio de diversos ambientes. O conceito de deriva está ligado indissoluvelmente ao reconhecimento de efeitos da natureza psicogeográfica, e à afirmação de um comportamento lúdico construtivo, o que se opõe em todos os aspectos às noções clássicas de viagem e passeio.477 Debord irá criticar a estreiteza da concepção de cidade que os indivíduos possuem, criticando a representação que eles fazem dela. Por intermédio da deriva, uma técnica psicogeográfica, mais do que o próprio relevo e as características geográficas da região, assim como suas características econômicas, um bairro urbano “está determinado pela representação que seus habitantes e os de outros bairros têm dele”.478 A deriva tem dentre seus principais intuitos “trazer novas condições objetivas de comportamento que implicam à desaparição de muitas das antigas”.479 O exercício da deriva é uma tentativa, utilizada por Guy Debord e por outros situacionistas, bem como por Henri Lefebvre, como já mencionado, de se desvencilhar dos atrativos econômicos da cidade. Em deriva, o indivíduo torna-se o ator da sua própria cidade, o flâneur, que agora, em um espaço publicizado, considerando a mídia como uma instituição civil,480 e que, juntamente com outras instituições civis e o Estado, visa a explicar o funcionamento do social e a legitimar certas decisões, possui as condições de assumir um papel na ativação do “direito à cidade” e na preservação da memória do espaço público, utilizando, dentre outras ferramentas, a própria comunicação. Em uma sociedade como a nossa, em que a democracia é o sistema em vigor, muito se discute sobre o que de fato essa forma de sistema propicia para seus cidadãos no usufruto de seus direitos, assim como quais são as possibilidades que ela oferece na elaboração de novas leis e mudanças constitucionais com mais participação popular. A comunicação, como ferramenta política, que supera sua potência tecnoeconômica, é capaz de ser o motor da democracia e proporcionar as mudanças necessárias que ajudem a solucionar os problemas causados pelo capitalismo. Por ser o elemento central da sociedade contemporânea, ela permite que os mais diversos temas da sociedade, especialmente aqueles mais urgentes e importantes, como a retomada do espaço urbano pelos cidadãos, possam adquirir voz e força. Debord, Lefebvre, Marx e Baudelaire estão em um mesmo cenário econômico e político, a grande cidade, na qual se concentram diversas contradições relacionadas ao progresso e um por vir de grandes possibilidades, mas que culminou em sucateamento do espaço, exploração do trabalho, grandes multidões sem ter as condições minimamente necessárias para usufruírem da cidadania que lhes é devida. Há uma relação intensa entre a recusa ao progresso com o estilo de vida do flâneur, com a teoria da Deriva e com a concepção de direito à cidade. De alguma maneira, essas teorias procuraram uma forma especial de dar a devida atenção aos inadaptáveis da cidade moderna, assim como tecer críticas aos avanços de um sistema que tenta suprimir o sonho de uma cidade mais humana e democrática. Referências ASH, Timothy Garton. If Big Brother came back, he’d be a public-private partnership. The guardian, Inglaterra, 2013. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2013/jun/27/big-brother-public-private-partnership-nsa>. Acesso em: 16 out. 2017. BAUDELAIRE, Charles. Sobre modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. COELHO, Cláudio N. P.; CASTRO, Valdir J. de. Comunicação e sociedade do espetáculo. São Paulo: Paulus, 2006. COELHO, Cláudio N. P. Comunicação e política na sociedade do espetáculo: o conceito de poder espetacular. In: Anais do II Seminário de Comunicação e Política na Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2012. _________. 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O mito é a linguagem das primeiras palavras, a história fantástica de origem anônima e coletiva inventada para explicar os fenômenos. Debord realiza o primeiro desvio – técnica que veremos mais adiante – ao apropriar-se da discussão do jovem Hegel no livro Diferença entre o sistema de Fichte e de Schelling, obra em que Hegel “coloca a antinomia como uma questão central da época moderna e da filosofia como um todo”482 e dialoga com os dois filósofos neokantianos: Johann Gottlieb Fichte483 e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling.484 No texto, Hegel realiza um diagnóstico e uma crítica da cultura (Bildung) de sua época e analisa do ponto de vista da filosofia que se vive numa época em que a fragmentação e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida. Hegel sustentará “que a sociedade moderna é caracterizada pela separação das esferas da vida pública que a leva à necessidade da filosofia, a qual tem como incumbência pensar essa cisão no todo”.485 Ao ganhar essa “independência”, a cultura abre seu caminho para a mercantilização, ou seja, uma autonomia burguesa. Essa independência é o começo de sua dissolução. A cultura, então, para Debord, é o lugar da procura da unidade perdida: “A unidade da vida se perdeu quando a sociedade original baseada no mito se dissolveu com a divisão crescente do trabalho, fato que originou várias esferas separadas, independentes umas das outras”.486 Debord fala em supressão de toda separação, conceito que podemos extrair do suprassumir hegeliano da palavra Aufhehung– utilizada posteriormente por Karl Marx em A crítica do Direito de Hegel – conceito que quer dizer, simultaneamente, superação, aniquilação e conservação: O suprassumir apresenta essa dupla significação verdadeira que vimos no negativo: é ao mesmo tempo um negar e um conservar. O nada, como nada disto, conserva a imediatez e é, ele próprio, sensível, porém é uma imediatez universal.487 A aparente harmonia é uma harmonia mentirosa, pois todo bom artista prefere a ruptura. Debord488 afirma que a linguagem da comunicação se perdeu: A arte devia ser a ‘linguagem da comunicação’, mas a perda progressiva de todas as condições de comunicação levou a linguagem – a da literatura e das artes figurativas – a constatar justamente a impossibilidade de uma comunicação.489 A antiga arte, para tornar-se independente, retira-se do universo religioso, destruindo-se criticamente a si mesma como pertencente àquele universo. Debord afirma que: [...] o desenvolvimento dos conhecimentos da sociedade, que contém a compreensão da história como o cerne da cultura, adquire por si próprio um conhecimento sem retorno, expresso pela destruição de Deus” e remete a um Marx desviado de Filosofia do Direito de Hegel (a crítica da religião é a premissa de toda crítica) ao escrever que “esta «condição primeira de toda crítica» é de igual modo a obrigação primeira de uma crítica infinita.490 A autonomia relativa que a arte consegue atingir é criada pela história. Debord declara que a cultura provém da história que dissolveu o gênero de vida do velho mundo. “Mas, como esfera separada, ela não é tão-somente a inteligência e a comunicação sensível que continuam parciais numa sociedade parcialmente histórica. Ela é o juízo de um mundo pouquíssimo capaz de julgar”.491 Segundo Rosa,492 para Debord é “a cultura que apresenta nessa unificação com a história social e também com a crítica da sociedade. E a arte seria a representação de uma sociedade histórica que teve sua unidade rompida”. Para Debord, a cultura é entendida como contradição entre duas forças. A cultura tem o poder de manifestar-se de maneiras opostas. Ele confere à cultura um fundamento para a emancipação e é nela que o sujeito se realiza na sua plenitude. Deve-se, portanto, esperar a aniquilação do espetáculo como reino da separação. O fim da história da cultura manifesta-se por dois lados opostos: o projeto de sua superação na história total e a organização da sua manutenção organizada como objeto morto, na contemplação espetacular. Um desses movimentos ligou seu destino à crítica social: o outro, à defesa do poder de classe.493 Debord494 comenta que: Cada um desses lados do fim da cultura existe como uma unidade. Em todos os aspectos dos conhecimentos e em todos os aspectos das representações sensíveis – naquilo que era a arte no sentido mais geral. No primeiro caso, opõem-se, de um lado, a acumulação de conhecimentos fragmentados que se tornam inutilizáveis, porque a aprovação das condições existentes deve finalmente renunciar aos seus próprios conhecimentos, a teoria da práxis que detém sozinha a verdade de todas ao deter sozinha o segredo de seu uso. No segundo caso, opõem-se a autodestruição crítica da antiga linguagem comum da sociedade e sua recomposição artificial no espetáculo mercantil, a representação ilusória do não vivido. Ao tecer sua crítica à arte, o autor de A sociedade do espetáculo expressa, na tese 186, como algo vinculado à sociedade de classes: Ao perder a comunidade da sociedade do mito, a sociedade deve perder todas as referências de uma linguagem efetivamente comum, até ao momento em que a cisão da comunidade inativa pode ser superada pelo acesso à real comunidade histórica. A arte, que é essa linguagem comum da inação social desde que se constitui como arte independente no sentido moderno, quando emerge de seu primeiro universo religioso e se torna produção individual de obras separadas, conhece, como caso particular, o movimento que domina a história do conjunto da cultura separada. Sua afirmação independente é o começo da sua dissolução.495 Ao ganhar essa independência, a cultura abre seu caminho para a mercantilização, ou seja, uma autonomia burguesa. Essa independência é o começo de sua dissolução. Baseado na leitura de Teoria do romance, de Lukács, Debord entende que houve uma perda da linguagem e o que se perdeu foi a linguagem da comunicação, levando a arte a sua decomposição e a seu aniquilamento; uma nova linguagem deve ser reencontrada na práxis, no diálogo. Toda a arte moderna foi a manifestação, conscientemente positiva, da destruição da antiga linguagem comum sobre a forma da estética expressiva. Debord elabora, com precisão, uma crítica da comunicação cotidiana reificada da sociedade capitalista e, coerente com uma visão marxista, apregoa que a arte moderna vai ao encontro das experiências dos “sovietes” ou dos conselhos e assembleias. Para Debord,496 outra linguagem deve ser buscada com base nas experiências destas novas formas de organização e usa um desvio poético de Hegel para afirmar que “a grandeza da arte só começa a aparecer no ocaso da vida”.497 11.2 O barroco e a arte que perdeu seu centro Debord debruça-se sobre o Barroco, estilo dominante entre 1600 a 1750. Para Debord, o Barroco – cuja palavra significa pedra irregular e disforme – constitui-se na perda da “segurança do mito” e considera que, a partir do Barroco, a arte começa a se desconectar cada vez mais fortemente da linguagem comum e da vida. Diz Debord:498 “O barroco é a arte de um mundo que perdeu o seu centro: a última ordem mítica reconhecida pela Idade Média, no cosmos e no governo terrestre – a unidade da Cristandade e o fantasma de um Império – caiu”. A experiência do Barroco, para Debord, é a emergência da sociedade histórica. Debord faz referência a Eugenio d’Ors, autor da obra O Barroco, de 1924. Ensaísta espanhol, filósofo dialético de tradição socrática, d’Ors destaca que o Barroco tem aspectos importantes por ser um fenômeno que interessa não só à arte, mas também à civilização inteira. Assim, dizia d’Ors:499 “Sempre que encontramos reunidos num só gesto várias intenções contraditórias, o resultado é o barroco”. No pensamento de Eugenio d’Ors, o Barroco é concebido como eon, definido como uma “constante” humana subjacente, que emerge em determinados momentos históricos e propicia o desenvolvimento de estilos culturais que, embora diferentes, possuem um espírito comum (a ênfase nos valores da sensibilidade) como denominador comum entre diversos fenômenos e modas culturais. A cultura seria, pois, o eon da vida, uma espécie de elemento aglutinador da dicotomia entre razão e vida. O espírito barroco refere-se a tudo aquilo que, fundamentando-se em uma matriz pulsional, caracteriza-se por traços de vida, curvas, dinâmica, voo. Em Debord, o que se preserva de d’Ors é a concepção de uma fundamental continuidade entre o barroco, compreendido sob o princípio dissolutivo das formas, expressão mesma de seu elemento “bárbaro”, “carnavalesco”, “desordenado”, e a experiência da arte moderna, na qual se encontra um processo constante de dissolução formal, até mesmo através de transições e conexões dos diversos gêneros entre si.500 Para Debord,501 “o tempo histórico que invade a arte exprimiu-se, antes de tudo, na própria esfera da arte, a partir do Barroco. A arte da mudança deve trazer em si o princípio efémero que ela descobre no mundo”. 11.3 Dadá, o surreal e a incapacidade da superação da arte O Dadaísmo efetivou-se em Zurique, Suíça, no Cabaré Voltaire, em 1916, junto a um grupo de artistas e escritores europeus que se abrigaram na neutralidade política daquele país, fugidos da instabilidade e do horror da Primeira Guerra Mundial. “Essa atmosfera foi a condição básica para que pessoas diferentes umas das outras se reunissem numa ação comum”.502 O Surrealismo nasceu como um movimento literário e sofreu forte influência das teorias psicanalíticas construídas por Freud e reconstituídas a partir das ruínas do Dadaísmo. O Surrealismo, palavra escrita por Guilherme Apollinaire em 1917, foi explicitado por Breton, em 1924, em vários trechos que podemos ler e analisar em Manifesto do surrealismo. Breton disse:503 “Dadá é um estado de espírito. Dadá existiu para destruir a linguagem vigente”. O relacionamento entre o surrealismo e o Dadá é complexo, porque sob muitos aspectos, eles eram bastante semelhantes. Politicamente, o surrealismo herdou a burguesia como inimigo, e continuou, pelo menos em teoria, seu ataque às formas tradicionais de arte. [...] O surrealismo foi, por assim dizer um substituto do Dadá.504 Para Debord,505 “o dadaísmo e o surrealismo são as duas correntes que marcaram o fim da arte moderna” ao abordar a questão da cultura no nosso texto em análise constata que O Dadaísmo e o Surrealismo teriam sido os últimos movimentos artísticos que tentaram “suprimir” a arte e ao mesmo tempo realizá-la, ainda que sem muito sucesso. Denuncia, assim, o que seria o início da separação entre arte e cultura, quando a arte, a partir de então, já não teria mais um sentido prático e político. O que pressupõe que a cultura já não pode assim ser reconhecida porque fica separada de sua história e de sua possibilidade de crítica social.506 O Dadaísmo e o Surrealismo começaram a destruir a linguagem (alienada); mas não souberam encontrar um novo estilo de vida. A crítica ao Surrealismo era de que os situacionistas negavam o caráter revolucionário do inconsciente na produção artística. Segundo Coelho,507 “o motor do movimento de auto-supressão da cultura é a superação da arte. Debord analisa comparativamente o dadaísmo, o surrealismo e os situacionistas, da perspectiva da articulação entre realização e supressão da arte”. Para Debord, o Dadaísmo pretendia negar a arte sem realizar o seu projeto de integração da arte na vida; e o Surrealismo, por sua vez, propunha a integração da arte na vida sem negar a arte – no fundo uma ação positiva. Para Debord, negar o projeto era negar o inconsciente e transformar o mundo a partir de situações e oportunidades; negar a arte para realizá-la na vida. Não se trata, para Debord,508 apenas de um projeto que une a arte à vida, mas de suprimir a arte e, ao mesmo tempo, realizá-la para que ocorra a sua superação. “Superação e realização da arte são aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte”.509 Debord coloca a ideia de cultura como algo vinculado à sociedade de classes. Quando a arte deixa de ser serva da religião, ela ganha uma dita “autonomia” e começa um “movimento imperialista de enriquecimento”. Debord diz que essa autonomia relativa é criada pela história, o que também propicia o surgimento de “certas ilusões ideológicas”. Aqui entra a concepção da arte como algo elevado e separado da vida vulgar, cotidiana. Concepção que, para Debord, é errônea. Nem mesmo o Dadaísmo, com toda a transgressão e a proposta da antiarte, foge à sua crítica. Não se trata apenas de uma proposta que una a arte à vida, mas de suprimir a arte e, ao mesmo tempo, realizá-la para que ocorra a sua superação. 11.4 Crítica à sociologia americana Debord critica a sociologia americana citando, nominalmente, alguns teóricos. Entre eles: William Whyte, Clark Kerr e Riesman. Whyte é autor de The organization man, obra em que descreve o homem americano que participa das grandes organizações como um homem individualista [...] apresentando o quadro de uma sociedade em que o conformismo social é crescente, ele a descreveu em termos muitas vezes amargos. Abandonou o ponto de vista puramente científico para passar para o campo da crítica social. O homem da organização é o homem que pensa em grupo, que toma decisões em grupo, que trabalha e se diverte em grupo, é o homem cujos valores e as crenças das organizações de que participa, é o homem cujo comportamento é condicionado pela organização, de forma a tornar mínima, senão existente, sua área de autonomia individual.510 William H. Whyte foi editor da revista Fortune quando escreveu The organization man. Filmou e pesquisou a vida das pessoas nas ruas de New York. No livro, ele descreve a vida das organizações, os escritores, as salas de reuniões e os laboratórios. Whyte escreveu que as normas corporativas são baseadas na busca da segurança e caracterizadas pela conformidade e que se espalhou por meio de outros indivíduos. Ele observou que as esposas dos homens das organizações “concordam com a corporação”, eles sentem que a boa esposa é a mulher que se ajusta graciosamente ao sistema. Ele entendia que o conflito entre indivíduos e as organizações são ruins. Para Whyte, a predominância é do homem da organização que pensa em grupo, diverte-se e trabalha em grupo. Seus valores e suas crenças são os da administração e seu comportamento é condicionado. Riesman, em A multidão solitária, obra em que analisa a “nova classe média urbana americana” e a alienação dos indivíduos nas sociedades, caracteriza a cultura como um passado em que a vida era regrada por tradições e costumes instituídos pela modernidade, que é necessária a aprovação de seus pares, por isso estamos sempre na multidão e que nos, dias de hoje, não somos definidos pela tradição ou pela certeza, mas pelo o que os outros pensam de nós. Reismann utiliza os termos introdireção e alterdireção e mostra que o indivíduo alterdirigido é condicionado pela educação e pelas relações interpessoais com educadores, ou seja, uma sociedade voltada para o olhar do outro. Riesmann analisa as caraterísticas do novo lazer e do fascínio exercido pelos meios de comunicação de massa sobre os indivíduos em seu tempo livre, utilizando uma visão positivista da sociedade de consumo. Nessa sociedade, o indivíduo alterdirigido é cosmopolita e um produto da modernidade. Debord511 afirma que a “cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade espetacular” e cita Clark Kerr “como um dos ideólogos mais avançados desta tendência”. Clark Kerr é – entre inúmeros trabalhos – autor de A sociedade multidimensional, uma série de conferências proferidas em Cambridge, em abril de 1968, em que fala sobre Alfred Marshall, Karl Marx e capitalismo. Para Debord,512 [...] o conjunto dos conhecimentos, que continua a se desenvolver atualmente como pensamento do espetáculo, deve justificar uma sociedade sem justificações e constituir-se em ciência geral da falsa-consciência, esse pensamento está inteiramente condicionado pelo fato de não poder, nem querer, pensar sua própria base material no sistema espetacular. A questão fundamental nessa tese é a de que há uma impossibilidade da comunicação: A impossibilidade de qualquer comunicação é, então, reconhecida com um valor em si que deve ser recebido com júbilo e assumido como um fato inalterável. A repetição da destruição formal no teatro do absurdo, no novo romance, na nova pintura, abstrata ou na pop-art, não expressa mais a história que dissolve a ordem social: já não é outra coisa senão a monótona réplica do existente, com um valor objetivamente afirmativo, “simples proclamação da beleza suficiente da dissolução do comunicável”.513 E nesse universo de esvaziamentos, o sujeito perde também a unidade do mundo. É quando a cultura ocupa o papel de mercadoria, produzida e consumida com a interferência do sujeito e limitada nas relações de representações de imagens. 11.5 Boorstin e a imagem espetacular O livro The Image - A guidetopseudo-events in America, de Daniel J. Boorstin,514 torna-se um clássico da sociologia nos Estados Unidos. Boorstin, que foi advogado, historiador e bibliotecário, trabalha o tema das celebridades como sintoma da degradação cultural, em que a celebridade é vista como uma pessoa conhecida por sua notoriedade. A alma de uma celebridade é concedida em razão da sua imagem ou da marca ostentada por seu nome. As mídias de massas teriam, para Boorstin, um papel legitimador. Cada um pode tornar-se uma celebridade, basta cair nas graças das mídias. O conceito de pseudoeventos parte do princípio de que a sociedade americana precisa saciar “expectativas extravagantes” para tornar a vida mais excitante. O pseudoacontecimento pode ser político, musical, cinematográfico, criminal, esportivo etc. Os acontecimentos irreais acabam por dominar a própria realidade e tornam-se mais reais do que os reais, ou seja, é a não realidade o fator dominante da vida contemporânea; nesse sentido, até Deus torna-se uma celebridade. Para Debord,515 o que Boorstin descreve nunca atinge o conceito de espetáculo “porque julga poder deixar fora deste desastroso exagero a vida privada. Não compreende que a própria mercadoria fez as leis cuja aplicação «honesta» deve provocar tanto a realidade distinta da vida privada, como a sua reconquista ulterior pelo consumo social das imagens”. Para Debord,516 Boorstin descreve os excessos de um mundo que se transforma num estranho para nós. A vida humana real, de que fala Boorstin, está, para ele, “no passado, inclusive no passado da resignação religiosa”, fato que Boorstin não pode compreender com toda a profundidade de uma sociedade da imagem: “a verdade dessa sociedade não é mais do que a negação desta sociedade”. O trabalho de Boorstin foi um marco, o primeiro estudo sobre a gênese da hiper-realidade e pósmodernidade e eventos na sociedade americana. Ele descreve a cultura americana por meio da qual a reprodução ou a simulação de um evento é percebida como “mais real” do que o próprio evento. Assim, Boorstin forjou o conceito de pseudoevento para descrever eventos ou comportamentos cuja única função é criar um gancho para a publicidade e as várias formas de anúncio publicitário. Mas, para Debord,517 esse conceito não “compreende que a proliferação dos ‘pseudo-acontecimentos’ préfabricados que ele denuncia deriva deste simples fato: que os próprios homens, na realidade maciça da atual vida social, não vivem acontecimentos”. Debord518 afirma que a “história persegue a sociedade moderna como um espectro, que se encontra a pseudo-história construída a todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do atual tempo congelado”, relacionando um vínculo direto entre a produção de espetáculos marcados por esse congelamento do tempo e a negação da história no interior da própria história. 11.6 Crítica ao estruturalismo Tão em moda no período da sociedade do espetáculo, Debord empreende uma crítica ao estruturalismo, pois vê, nessa corrente, a principal ideologia da apologia ao espetáculo. O estruturalismo, em voga nos anos 1970-1960, visa a uma análise sincrônica das estruturas e projeta a perspectiva de ser um novo paradigma para as ciências sociais. Para Debord,519 “a estrutura é filha do poder presente. O estruturalismo é o pensamento garantido pelo Estado, que pensa as condições presentes da comunicação espetacular como absoluto” e que entende a sociedade como estruturas imutáveis. Tal concepção se situa naturalmente nas antípodas da proclamação da “morte do homem“, da “história sem sujeito“ e da particularização do motor da história nas “estruturas“. Debord vê no estruturalismo a principal ideologia apologética do espectáculo (Sde, §196), porque nega a história e quer fixar as condições actuais da sociedade como estruturas imutáveis. Debord ridiculariza-o como “pensamento universitário de quadros médios” (Sde, §201) e pensamento garantido pelo Estado.520 Dialogando com Roland Barthes, de O grau zero da escrita,521 Debord522 afirma que “a teoria crítica deve comunicar-se na sua própria linguagem” e essa linguagem é a dialética, um movimento duplo. Barthes afirma a existência de uma realidade formal independente da língua e do estilo: [...] a Forma torna-se assim, mais que nunca, um objeto autônomo, destinado a significar uma propriedade coletiva e defendida, e tal objeto tem um valor de poupança, funciona como um sinal econômico graças ao qual o ‘scripteur’ impõe permanentemente sua própria conversão sem nunca traçar-lhe a história.523 A escrita é uma função que se realiza entre a criação e a sociedade e é uma realidade formal que nasce entre a língua e o estilo [...] pelo próprio estilo, a exposição da teoria dialética é um escândalo e uma abominação segundo as regras da linguagem dominante e para o gosto que elas educaram: no emprego positivo dos conceitos existentes, essa exposição inclui também a compreensão de sua fluidez reencontrada, de sua destruição necessária.524 11.7 O desvio como técnica No aforismo 206, Debord explicita sua ideia da técnica do desvio, com referência a Hegel, Marx, Feurbach e Kierkegaard, pois, para Debord,525 a crítica do presente deve apossar-se inclusive criticamente do seu passado. Trata-se da necessidade da teoria crítica “exprimir a dominação da crítica presente sobre todo o seu passado”. Debord526 recorda o jovem Marx que [...] ao preconizar, conforme o uso sistemático que dela tinha feito Feuerbach, a substituição do sujeito pelo predicado, atingiu o emprego mais consequente desse estilo insurrecional que, da filosofia da miséria, tira a miséria da filosofia. O desvio submete à subversão as conclusões críticas passadas que foram petrificadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras. Debord,527 ao escrever que [...] as ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo. O plágio é necessário. O progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma ideia falsa, a substitui pela ideia correta [...] refere-se a “o plágio [que] é necessário, o progresso exige” de Lautréamont, autor da obra Os cantos de Maldoror.528 Influenciado pela prática do plágio de Lautéamont, Debord empregará o desvio como uma técnica artístico literária. A palavra francesa détournement (deturnamento) significa desvio, diversão, descaminho, extravio, reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, sequestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito normal. Às vezes, é traduzida como «diversão», mas essa palavra gera confusão por causa de seu significado mais comum como entretenimento inativo. A proposta de Debord529 é tornar todo enunciado válido em si, no presente de sua enunciação. desvio é o contrário da citação, da autoridade teórica sempre falsificada, pelo próprio fato de se ter tornado citação; fragmento arrancado ao seu contexto, do seu movimento, e, da sua época como referência global e à opção exta que representava dentro dessa referência, exatamente reconhecida ou falseada. O desvio é a linguagem fluida da anti-ideologia. Ele aparece na comunicação que sabe que não pode deter nenhuma garantia em si mesma e definitivamente. Ele é, no mais alto nível, a linguagem que nenhuma referência antiga e supracrítica pode confirmar. Ao contrário, sua própria coerência, em si mesmo e com os fatos praticáveis, pode confirmar o antigo núcleo de verdade que ele traz de volta. O desvio não fundamentou sua causa sobre algo exterior à sua própria verdade como crítica presente. É um método de construção, momento do desvio, em que tudo pode ser desviado, retorcido. O movimento do desvio é retirar o enunciado da sua rota original e inserir em um novo percurso ou novos sentidos. É a submissão estética, a contínua apropriação pelo uso e o aprendizado que se dá na experimentação. É uma apropriação que é, posteriormente, ressignificada para representar a reificação. A prática do desvio foi bastante utilizada pela Internacional Situacionista (IS) e está presente nos textos da IS e de Guy Debord que, em 1956, publicou, em conjunto com Gil J. Wolman, um Guia prático para o detournement, obra em que ambos conceituam e orientam as pessoas para práticas realizadas pela IS. O desvio reivindica da propriedade sua contínua abertura à apropriação pelo uso, das funções e ideias, a contínua possibilidade de atualização, dos condicionamentos, a possibilidade de variações e inversões, das rotas predeterminadas, a emergência de rotas de fuga. É, assim, um aprendizado que se dá na experimentação, na tentativa e no risco. 11.8 A negação da cultura Para a teoria crítica que luta contra a sociedade do espetáculo, só resta uma saída: “A negação real da cultura é a única a conservar-lhes o sentido. Ela já não pode ser cultural. Assim, ela é aquilo que permanece de algum modo ao nível da cultura, embora numa acepção totalmente diferente”.530 Negar a cultura deve ser, portanto, uma negação e uma afirmação, uma crítica e uma realização. Negar-se para justamente alcançar um nível superior. Debord531 afirma no aforismo 211, “É essa crítica teórica unificada, e apenas ela, que vai ao encontro da prática social unificada”; a cultura é entendida tanto como conhecimento quanto como a criação em torno da qual se articula toda a estrutura social. A cultura é uma parte da totalidade social cuja especificidade seria representar simbolicamente essa totalidade, chamando a atenção para a necessidade de uma retomada da existência de uma totalidade social não mais dividida internamente. Quanto mais a sociedade de classes se desenvolve, mais a cultura adquire autonomia, processo que atinge seu ponto máximo na sociedade capitalista. A partir daí, principalmente no interior da produção artística, concretiza-se a tendência para a auto-supressão da cultura enquanto uma realidade autônoma. Na sociedade capitalista do espetáculo, a dialética da cultura se dá pelo combate entre a afirmação e a negação do vínculo cultura – consumo-espetáculo.532 Debord propõe uma radicalização da crítica entendida na sua totalidade, que leva em consideração a historicidade e o exercício da dialética. A teoria crítica vista como prática que é elaborada como tática e estratégia. Debord propõe, então, embasado no hegelianismo, a superação da cultura, em que a arte não deve ser apenas destruída, mas metamorfoseada dentro de uma nova práxis. A arte deve ser não apenas uma prática de especialistas eternizada em museus, mas deve estar incorporada à própria vida, ao negar as coisas como dadas, o homem cria. Assim, como para Hegel, [...] era inevitável que a arte entrasse num momento histórico novo, no qual todas as categorias estéticas se tornariam flexíveis. Mas por trás dessas transformações haveria de se manter firme o próprio sentido último da arte, o de ser algo feito pelo homem e para o homem, como expressão de sua liberdade e autoconhecimento.533 Conclusão Löwy534 afirma que “é preciso reconhecer o seguinte: ao contrário de tantos outros de sua geração, ele jamais aceitou, sob qualquer forma que fosse reconciliar-se com a ordem de coisas existentes”. Portanto, não se trata aqui de entendermos a visão debordiana como uma mera crítica da sociedade capitalista em nome de valores do passado, mas de uma crítica negativa e prática da destruição da linguagem em e pela arte moderna. Debord deseja a destruição da sociedade burguesa e a fundação de outra civilização baseada na sociedade sem classes, livres de hierarquias e desalienada. Partidário da dialética negativa, propõe, enfim, uma revolução da linguagem. Ao negar a sociedade espetacular, Debord “namora” com a esperança de uma construção de uma linguagem comum – uma nova comunicação – que não seja a comunicação da sociedade do espetáculo. Referências ADES, Dawn. Dadá e o surreal. In: STANGOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Memória e consciência histórica. Fortaleza: Eduece, 2006a. ______. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza: Eduece, 2006b. ______. Comunicação e comunismo em Guy Debord. 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Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v. 1, n. 19, p. 107-125, jan.-jun. 2012. 12 A CRÍTICA DA CULTURA NA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO Emerson Ike Coan “É o sol que nunca se põe no império da passividade moderna”.535 12.1 A contemplação passiva na sociedade do espetáculo O espetáculo é um conceito histórico. Ele não é um substituto para o conceito de sociedade capitalista; corresponde a uma fase específica dela, quando há uma interdependência entre o processo de acúmulo de capital e o processo de acúmulo de imagens. O domínio pelos meios de comunicação, particularmente pelos mecanismos de produção de imagens, é tão só a sua parte mais visível e mais superficial, porque a técnica é apenas um momento das relações sociais. Torna-se necessário ir ao encontro das teses radicais – de raiz; de profundidade – defendidas por Guy Debord. Enquanto organização social da aparência, ele não pode ser compreendido como o abuso da visão, o produto das técnicas de difusão maciça das imagens, mas como uma visão de mundo que se objetivou: a capitalista mais avançada.536 O que causa indignação a Debord e o que lhe serve de motivo de denúncia – elementos essenciais da crítica537 – é que a vida concreta dos homens na totalidade social se degradou “em universo especulativo”.538 O espetáculo é um elemento articulador, ao estabelecer mediações entre as várias dimensões da realidade social capitalista – economia, política, cultura e ideologia. Sua compreensão exige a investigação sobre as características da sociedade enquanto uma totalidade articulada internamente. Daí que [...] o ponto de partida para o entendimento dessa totalidade são as relações sociais de produção. O conceito de sociedade do espetáculo, em Debord, está vinculado a uma interpretação materialista – marxista – da vida social.539 O materialismo marxista não diz respeito a uma apreensão da matéria no sentido atômico, molecular, a questões físicas, biológicas ou naturais – materialismo vulgar; é histórico. Cuida do homem cientificamente em sociedade, considerado na prática social – práxis –, em processo histórico, nas relações sociais produtivas que o conforma. O primeiro ato histórico é a produção dos homens dos meios de vida material para satisfação das necessidades de comer e beber, habitação, vestuário etc. Esse “é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história”.540 O mesmo ocorre em relação ao método de tal evolução histórica: o dialético. O conceito basilar dessa concepção metodológica é o de totalidade concreta em movimento. Na concepção marxista, prioriza-se a práxis humana numa situação social e histórica concreta da sociedade capitalista, com o objetivo de promover a transformação das condições de existência, de dominação de uma classe sobre outra e de alienação decorrente disso. Trata-se de um materialismo dialético. A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essência desse método como fundamento de uma ciência inteiramente nova.541 A dialética marxista capta a totalidade concreta e dá conta de entender as contradições intrínsecas à própria complexidade da realidade, porque as partes do todo se articulam estrutural e historicamente, indo além de um mero ajuntamento, e há um fluxo permanente de transformações. A partir daí, Lukács estende ao limite o conceito marxista de fetichismo da mercadoria ao cuidar da reificação e estabelece que essa é uma espécie de condição de alienação que atinge todas as manifestações sociais. E, no capitalismo, a mercadoria é o elo fundamental entre todas as coisas, entre as pessoas e as coisas e entre as próprias pessoas. Ela passa a “coisificar” o mundo, tornando-o objetivo. Uma objetividade “fantasmática” – da mercadoria – que se pretende lógica/racional/“natural”, mas que escamoteia as reais relações humanas e sociais de fundo que lhe dão base. Debord542 sustenta que o princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas suprassensíveis embora sensíveis”, realiza-se completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído – separado – por uma seleção de “imagens” que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência. Da concepção de Marx de que o fetichismo da mercadoria é “uma relação social definida que, estabelecida entre homens, assume uma forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”,543 o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas imagens”.544 Se Marx chamará de fetichismo tal relação entre mercadorias separada das concretas relações entre homens concretos que lhe sustenta, Debord chamará de espetáculo tal relação entre imagens separada das concretas relações entre pessoas concretas que lhe sustenta. A imagem se tornou a forma final da reificação. A crítica do espetáculo é a crítica do processo de separação entre a realidade e a representação imagética da realidade. A separação é o “alfa e ômega” do espetáculo,545 ao se impor de tal modo que o consumo envolve relações imaginárias – baseadas nas imagens vinculadas às mercadorias –, e a produção envolve relações reais entre as classes sociais. A lógica da separação é um componente essencial das relações sociais capitalistas para a perda de controle sobre a vida social pelos que a produzem: alienação. Com a separação generalizada entre o trabalhador e o que ele produz, perdem-se todo ponto de vista unitário sobre a atividade realizada, toda comunicação pessoal direta entre os produtores. Seguindo o progresso da acumulação dos produtos separados, e da concentração do processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se atributo exclusivo da direção do sistema. A vitória do sistema econômico da separação é a “proletarização” do mundo.546 A alienação traduz-se em contemplação, pois o sujeito só pode contemplar o que se opõe a ele como separado dele. Esse estágio de passividade, de não intervenção, é exatamente o contrário da vida; “é o movimento autônomo do não-vivo”.547 A realidade considerada “parcialmente” apresenta-se em sua própria unidade qual como um pseudomundo “à parte”, objeto de mera contemplação.548 O espetáculo é o “lugar do olhar iludido e da falsa consciência”.549 Há uma confusão entre a imagem da sociedade capitalista produzida pelo espetáculo e a realidade dessa sociedade. Debord segue a tradição marxista segundo a qual a ideologia é um processo de falsificação da consciência – de que os homens são produtores da sociedade; de que a consciência é adquirida da práxis humana, e não antes dela: “Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”.550 O espetáculo é a ideologia materializada, que “conseguiu recortar todo o real de acordo com seu modelo”.551 A experiência mais fundamental, na reflexão de Debord sobre a aparência social no capitalismo mais desenvolvido, é “a extensão – junto com a da forma-mercadoria – da lógica disciplinar, ‘contemplativa e passiva’ do trabalho assalariado à totalidade da vida cotidiana”.552 Essa experiência é determinante ou constitutiva do fenômeno nesse regime da “estética” e “aparência” do produto mercantil, cujo centro é a “imagem”. Na sociedade do espetáculo, o sujeito não vive suas próprias experiências; perde a capacidade de produzir sua própria representação da realidade, substituída pelas imagens espetaculares produzidas por outrem. Em parte, produzidas por profissionais da publicidade, da propaganda política, do entretenimento e da formação de opinião pública, enfim por profissionais de mídia, é certo. Mas há toda a estrutura da sociedade capitalista: a produção e o consumo de mercadorias passam a ser inseparáveis do processo de produção e consumo de imagens: as imagens se transformaram em mercadorias ou existem para incentivar o consumo de mercadorias. Não é possível ver nitidamente os contornos e os limites da indústria que fabrica as imagens que organizam a vida cotidiana. A crítica da sociedade do espetáculo é o questionamento da forma contemporânea assumida pelo processo de alienação inerente ao capitalismo, quando as representações se descolam da realidade, passando a ter autonomia. Na sociedade do espetáculo, “Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”.553 A contemplação passiva das imagens, que foram escolhidas por outros, substitui o vivido e o poder de determinar os acontecimentos do próprio indivíduo. A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo.554 Márcia Rosa explica que, segmentados e desorientados, os indivíduos na sociedade do espetáculo estabelecem outra relação com a cultura, como esfera das representações do vivido. As temáticas da separação e do isolamento assumem a concepção que vai gerar um estado alienado diante da vida cotidiana. “O consumo e a imagem assumem o lugar da atividade, do diálogo e da ação direta, gerando o estado de contemplação”.555 Jaime Patias coloca que o ponto de partida para se entender o papel da cultura deve ser uma compreensão crítica dos seres humanos como sujeitos, isto é, como seres conscientes e não apenas no mundo; como seres capazes de transformar o mundo por meio de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora. O espetáculo se dá quando o ser humano torna-se mero espectador.556 12.2 A dialética e a negação da cultura “A dialética... se eleva ao conhecimento da dissolução de tudo o que é; e no movimento dissolve toda separação”.557 Na sociedade do espetáculo, estabelece-se uma relação social entre as imagens que representam os indivíduos e o esvaziamento dos respectivos conteúdos. O que sobra é a separação da unidade pretendida entre sociedade, história e crítica. Perde-se a visão de totalidade. A cultura é também uma parte da totalidade social. Sua finalidade específica é a de representar simbolicamente essa totalidade e chamar a atenção para a necessidade de uma retomada de sua existência não mais dividida internamente. A cultura é o lugar da busca da unidade perdida. Para Debord, ela é o fruto de uma sociedade dividida internamente, marcada pela separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, e a contradição todo/parte por ela estabelecida. Ele sustenta que a unidade da vida se perdeu quando a sociedade original, baseada no mito, dissolveu-se com a divisão crescente do trabalho, fato que originou várias esferas separadas, independentes umas das outras. Quanto mais a sociedade de classes se desenvolve, mais a cultura adquire autonomia, processo que atinge seu ponto máximo na sociedade capitalista. Como a filosofia, no instante em que ganhou sua plena autonomia, toda disciplina tornada autônoma deve desmoronar, primeiro como pretensão de explicação coerente da totalidade social e, depois, até mesmo como instrumentação parcelar utilizável em suas próprias fronteiras.558 Assim, a cultura, como esfera separada, é tão-somente a inteligência e a comunicação sensível que continuam parciais numa sociedade “parcialmente histórica”.559 Nesse ponto, Debord é influenciado por Hegel, de Diferença entre o sistema de Fichte e de Schelling, obra na qual há um diagnóstico e uma crítica da cultura de sua época e analisa, sob o ponto de vista da filosofia, que se vive num período em que a fragmentação e o isolamento passaram a ser dominantes em todos os aspectos da vida. Hegel denuncia a “harmonia dilacerada” (zerrissene Harmonie) e a “cisão” (Entzweiung) no interior da cultura (Bildung) na qual “a manifestação do absoluto se isolou do absoluto e se fixou como algo autônomo”. Este mundo cindido é, ele mesmo, um “todo” (Ganzes) da multiplicidade de suas limitações. Para Hegel, porém, este todo não é a totalidade, mas apenas uma relação não viva entre as partes; por isto, a cisão do mundo não é superada no todo, mas nele se encontra expressa e reposta como mundo cindido.560 A cultura se origina da divisão como uma esfera separada das outras atividades sociais e é, ao mesmo tempo, um possível ponto de partida para a crítica dessa separação, porque procura representar a realidade como um todo. A cultura possui uma dimensão dialética. “A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido, na sociedade histórica dividida em classes”.561 Portanto, pensar sobre a possibilidade de superação da sociedade do espetáculo é pensar sobre a possibilidade de a produção cultural criticar o espetáculo, servindo como ponto de partida para um questionamento do processo de fragmentação da realidade e de esvaziamento, particularmente no que diz respeito aos trabalhadores, na condição de produtores da realidade. O fim da história da cultura manifesta-se por dois lados opostos: o projeto de sua superação na história total e sua manutenção organizada como objeto morto na contemplação espetacular – separação. “Um desses movimentos ligou seu destino à crítica social; o outro, à defesa do poder de classe”.562 O reconhecimento dessa dimensão contraditória da cultura está no fato de que ela pode servir tanto para a reprodução quanto para o questionamento da sociedade capitalista. Eis a dimensão política da crítica cultural. Debord apresenta as primeiras concepções sobre a função questionadora da cultura ainda junto aos Situacionistas, em um relatório na I Conferência da Internacional Situacionista, em julho de 1957: O que se costuma chamar de cultura reflete, assim como prefigura, em determinada sociedade, as possibilidades de organização da vida. Nossa época se caracteriza, sobretudo pelo atraso da ação política revolucionária em relação ao desenvolvimento das possibilidades modernas de produção, que exigem uma organização superior do mundo. [...] ao usar a palavra cultura [...] designamos assim um complexo de estética, dos sentimentos e dos costumes: a reação de uma época sobre a vida cotidiana.563 Para ele, o aspecto central é a defesa de uma não separação entre vida e arte, o que inclui a não separação entre artistas e não artistas – público. Esse deve abandonar a sua condição de mero espectador. A indistinção arte/vida funde revolução artística e revolução política. Ao se referir à extensa tradição moderna de crítica à arte como separada da vida humana, afirma que a luta entre a tradição e a inovação, que é o princípio de desenvolvimento interno da cultura das sociedades históricas, só pode prosseguir por meio da vitória permanente da inovação. Mas na cultura, a inovação só é sustentada pelo movimento histórico total que, ao tomar consciência de sua totalidade, tende à superação de seus próprios pressupostos naturais e vai no sentido da supressão de toda separação.564 Ele reconhece que a cultura é parte do movimento da sociedade e é nela que estaria a história e a crítica possível e também inseparável da arte. Para ele, quando uma se separa da outra é necessário um movimento de resgate porque a arte é a forma política e transformadora que o indivíduo tem para manifestar-se socialmente. A dialética da cultura, para tanto, deve se dar pelo combate entre a afirmação e a negação do vínculo cultura/consumo-espetáculo. Esse vínculo faz com que as produções culturais sejam “mercadorias vedetes” e “pseudonovidades” com a função de “fazer esquecer a história na cultura”.565 “A cultura como esfera separada é obrigada a negar a si própria”.566 Na crítica da sociedade do espetáculo, a ideia básica é a de que os sujeitos, ao negarem a sociedade que os nega, negam a si mesmos, como seres contemplativos, assim constituídos pela cultura/consumo-espetáculo, e se reinventam e, em consequência, reinventam a sociedade. Debord sustenta que a negação real da cultura é a única coisa que lhe conserva o sentido. Já não pode ser cultural. Desse modo, ela é o que sobra, de certa forma, no nível da cultura, embora numa acepção bem diferente.567 Uma acepção bem diferente surge, apoiada na teoria/prática da crítica social, como possibilidade de uma vida autêntica que pressupõe a ultrapassagem de uma série de dualismos que encerram a alienação do homem: sujeito/objeto; ação/contemplação; situação/espetáculo; e criação/consumo. Desse modo, “quem quer permanecer fiel ao ‘sentido’ da cultura, só o pode fazer negando-a como esfera separada e realizando-a na teoria e na prática da crítica social”.568 O que confere sentido à arte moderna autônoma é a sua assunção da crise. [...] pondo-se a si mesma como o lugar da “autodestruição crítica” – da experiência e da linguagem comuns da tradição. Liberada para sua autonomia, a arte moderna se constitui enquanto tal ao se colocar como uma experiência na qual aquela destruição é assumida como “autodestruição crítica” da antiga linguagem comum.569 E se a destruição da antiga linguagem comum é componente da natureza destrutiva da sociedade capitalista, a sua assunção pela arte moderna numa estética expressiva é também uma posição crítica em face dessa forma de sociabilidade, caracterizada pela “pseudocomunicação”. Conclui Gilberto da Silva não se tratar de entender a visão debordiana como uma mera crítica da sociedade capitalista em nome de valores do passado, mas de uma crítica negativa e prática da destruição da linguagem “em” e “pela” arte moderna. Debord deseja a destruição da sociedade burguesa e a fundação de outra civilização com base na sociedade sem classes, livres de hierarquias e desalienada. “Partidário da dialética negativa, propõe, enfim, uma revolução da linguagem”.570 A centralidade do negativo em Debord diz respeito à centralidade do diálogo prático como linguagem da negação dessa forma de sociabilidade pseudocomunicativa; remete todo o horizonte da crítica ao terreno da comunicação prática, pensando-a a partir do elemento mesmo da negação em ato no tempo presente. A transformação da sociedade/cultura/comunicação é decisiva, ao assumir uma dimensão dialógica. Para Debord,571 no plano político, a superação da sociedade do espetáculo só acontecerá com o exercício do poder pelos conselhos operários. Os conselhos operários podem ser entendidos como: mecanismos de soberania popular; órgãos de poder do proletariado; mecanismos de organização da classe trabalhadora no período de transição ao socialismo com o papel estratégico na politização dos trabalhadores.572 O conselho operário é o lugar onde as condições objetivas da consciência histórica estão reunidas; a realização da comunicação direta ativa, na qual terminam a especialização, a hierarquia e a separação, na qual as condições existentes foram transformadas em condições de unidade. Aqui o sujeito proletário pode emergir de sua luta contra a contemplação; sua consciência é igual à organização prática que ela mesma se propôs, porque essa consciência é inseparável da intervenção coerente na história.573 Os situacionistas participaram do movimento de maio de 1968, na França, com a intenção de promover a vitória da cidade-história contra a cidade-espetáculo, defendendo a formação de conselhos de trabalhadores e a transferência do poder para esses conselhos. Na comunicação prática: [...] uma linguagem comum tem de ser reencontrada, mas não na conclusão unilateral que, para a arte da sociedade histórica, “sempre chegava tarde demais”, falando com “outros” do que foi vivido sem diálogo real, e admitindo essa deficiência da vida. Essa linguagem precisa ser reencontrada na práxis, que reúne em si a atividade direta e sua linguagem. Trata-se de possuir efetivamente a comunidade do diálogo.574 Debord formula uma teoria tanto da constituição histórica quanto da crise da arte autônoma. Ele expõe que, ao perder a comunidade da sociedade do mito – tradicional, de inação social, pois inseparável do universo religioso –, a sociedade deve perder todas as referências de “uma linguagem efetivamente comum”, em razão da natureza destrutiva das relações sociais pré-modernas pela sociedade capitalista – moderna, que confere independência a arte, momento em que essa afirmação é o começo de sua dissolução. A arte, quando emerge de seu primeiro universo religioso e se torna produção individual de obras separadas, conhece, como caso particular, “o movimento que domina a história do conjunto da cultura separada. Sua afirmação independente é o começo de sua dissolução”.575 O acesso à “real comunidade histórica” pela nova linguagem comum, dialógica, deve ser, na realidade, “encontrada” num outro contexto histórico, numa sociedade a ser construída pelos homens. Logo, nada dessa nova linguagem comum foi de fato “perdida”, pelo simples fato de que nunca existiu.576 Isso porque esse movimento busca precisamente indicar a “natureza transitória do presente” e um sentido transitivo da atual experiência reificada da linguagem social. Não há qualquer descrição historiográfica, uma vez que, [...] se é lícito falar – na perspectiva debordiana – de algo comum na linguagem ali experienciada, é apenas como persistência da tradição, do passado na organização de sentido no presente, enfim, do presente perpétuo na experiência do tempo cíclico, sendo este justamente o significado da linguagem comum recomposta artificialmente pelo espetáculo.577 Se há uma expropriação da atividade autônoma no trabalho e uma expropriação da linguagem comunicativa, a elaboração prática de uma nova comunicação é necessária para que a contemplação seja superada por uma atividade livre, criativa, lúdica e dialógica na vida cotidiana. Trata-se de uma linguagem comum verdadeiramente humana. A proposta é a superação da cultura, em que a arte “deve ser não apenas uma prática de especialistas eternizada em museus, mas deve estar incorporada à própria vida, ao negar as coisas como dadas”.578 No plano estético, portanto, o motor do movimento de autossupressão da cultura, como uma dimensão separada, autônoma, é a superação da arte, mediante sua realização/intervenção direta na realidade – vida cotidiana, para que o artista deixe de ser mais um mero “produtor de representações”. De acordo com o texto apresentado por Debord em 1957, anteriormente mencionado, a criação de situações nos ambientes urbanos é o que produziria a realização/supressão da arte: Nossa ideia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram. Nossas perspectivas de ação sobre o cenário chegam, no seu último estágio de desenvolvimento, à concepção de um urbanismo unitário. O urbanismo unitário (UU) define-se, em primeiro lugar, pelo emprego do conjunto das artes e técnicas, como meios de ação que convergem para uma composição integral do ambiente. [...] Deverá conter a criação de formas novas e o desvio das formas conhecidas da arquitetura e do urbanismo – assim como o desvio da poesia ou do cinema antigos.579 Ele analisa comparativamente o dadaísmo, o surrealismo e os situacionistas, da perspectiva da articulação entre realização e supressão da arte: o dadaísmo quis suprimir a arte sem realizá-la; o surrealismo quis realizar a arte sem suprimi-la. A posição crítica elaborada desde então pelos situacionistas mostrou que a supressão da arte e a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte.580 A arte se suprime e se realiza ao se retirar dos museus e dos circuitos comerciais, como prática total e de todos, sem distinguir artistas e público, confundindo-se com a própria vida, uma forma orgânica instituída contra a especialização. Por intermédio do urbanismo unitário aconteceria a superação da arte – poesia, com o fim da distinção arte/vida. É esse o sentido da construção de situações, conforme argumenta Debord em artigo publicado em 1958, no primeiro número da revista Internacional Situacionista. O objetivo dos situacionistas é a participação imediata numa abundância passional da vida, através da mudança de momentos perecíveis que são deliberadamente preparados. O êxito desses momentos só pode ser seu efeito passageiro. Os situacionistas pensam a atividade cultural, sob o aspecto da totalidade, como método de construção experimental da vida cotidiana, a ser permanentemente desenvolvido com a extensão dos lazeres e o desaparecimento da divisão do trabalho (a começar pela divisão do trabalho artístico).581 Na realidade, [...] é o próprio poder que é necessário suprimir para realizar a arte, que é o objetivo último. A realização da poesia, que será também a sua ultrapassagem, exige, evidentemente, um reconhecimento dos seus próprios desejos (asfixiados pela sociedade do espetáculo e rebaixados a pseudonecessidades): a palavra livre, a comunicação verdadeira (e não mais unilateral e manipulada), a recusa do trabalho produtivo como trabalho produtivo, a recusa igualmente da hierarquia, de toda a autoridade e de toda especialização. O homem libertado não será mais o “homo faber”, mas o artista, quer dizer, o criador das suas próprias obras. A revolução será, portanto, um ato de afirmação da subjetividade de cada um no terreno da cultura, que é o terreno mais vulnerável da civilização moderna. [...] Trata-se de retomar esse fio que, depois, se perdeu (pois que a obra de arte moderna se tornou uma mercadoria como qualquer outra). Trata-se de recriar uma linguagem de comunicação na comunidade do diálogo: a contestação será também a procura dessa linguagem, é o motivo por que será antes de mais uma revolução cultural. O dadaísmo e o surrealismo começaram a destruir a linguagem (alienada) antiga: mas não souberam encontrar um novo estilo de vida. [...] Parafraseando os esquerdistas, poderíamos dizer que os homens serão felizes no dia em que forem todos artistas.582 12.3 O estilo da crítica e o desvio “As ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo.”583 Debord afirma que, para destruir de fato a sociedade do espetáculo, é preciso que os homens ponham em ação uma força prática. Gilberto da Silva584 esclarece que ele “confere à cultura um fundamento para a emancipação, e é nela que o sujeito se realiza na sua plenitude. Deve-se, portanto, esperar a aniquilação do espetáculo como reino da separação”. É que a teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática rigorosa da negação na sociedade. E essa negação, a retomada da luta de classes revolucionárias, tornar-se-á consciente de si ao desenvolver a crítica do espetáculo, que é a teoria de suas condições reais, das condições práticas da opressão atual, desvelando incessantemente o segredo do que ela pode ser.585 Esse segredo é a separação das pessoas de todos os momentos de suas vidas pela mediação de suas relações por imagens produzidas por outros. Isso [...] decorre do simples fato de os homens, na realidade maciça da vida social atual, não viverem acontecimentos. Porque a própria história assombra a sociedade moderna como um espectro, surge uma pseudo-história construída em todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do atual “tempo congelado”.586 O espetáculo é a “afirmação” da aparência e a afirmação de toda vida humana – isto é, social –, como simples aparência no presente perpétuo. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo o descobre como “negação” visível da vida, como negação da vida que “se tornou visível”.587 A teoria crítica do espetáculo deve “comunicar-se” em sua própria linguagem, a linguagem da contradição, que deve ser dialética na forma como o é no conteúdo – os conceitos da teoria crítica são conceitos históricos; procuram compreender realidades determinadas historicamente.588 A teoria crítica não invalida a teoria tradicional – a lógica formal –, uma vez que o princípio da identidade é considerado lei inafastável do pensamento. O que se nega é a identidade poder ser estabelecida originária e primordialmente sem relação e sem negação alguma como base de todo o existente. Sem relação de diferença que lhe é inerente, a identidade transforma as coisas em absolutas, imóveis, fixas, isoladas e totalmente independentes. A dialética registra o fato de que a negação inerente à realidade é “o princípio motor e criador”. Todo fato é mais do que mero fato; ele é a negação e a restrição de possibilidades reais. O trabalho assalariado é um fato, mas ao mesmo tempo é uma restrição ao trabalho livre que pode satisfazer às necessidades humanas. A propriedade privada é um fato, mas é ao mesmo tempo a negação da apropriação coletiva da natureza pelo homem. A prática social do homem incorpora a negatividade, bem como a superação da negatividade.589 A ausência do sujeito histórico e da consequente desconsideração da atividade humana, da ação do homem, faz com que a forma meramente conceitual seja dissociada do respectivo conteúdo e da maneira como foi produzida. A teoria crítica/dialética [...] intranquiliza os comodistas, assusta os preconceituosos, perturba desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários [por sua] inevitabilidade da mudança e da impossibilidade de esconder as contradições, incomoda os beneficiários de interesses constituídos e os dependentes de hábitos mentais ou de valores cristalizados.590 Como linguagem da oposição, sustenta-se na ideia que já não se detém na busca do sentido do sendo. O absoluto deve se tornar histórico. Uma linguagem que não é a negação – um “grau zero” – do estilo, “mas o estilo da negação”591. Por esse estilo, a exposição da teoria crítica é um escândalo e uma abominação segundo as regras da linguagem dominante, porque comprova o espírito negativo que existe nela. Desse modo, o estilo da negação não se afina à lógica do poder, mas aos processos da vida. É uma forma de ação: [...] linguagem como guerra contra a subordinação da linguagem pelo poder de nivelar o sentido segundo os parâmetros políticos de uma razão administrativa. A linguagem supera seu rigor formal e entra no jogo como um movimento imanente das potências sociais, dotadas, por um instante, de significado singular, pela ação criativa do sujeito emancipado, que dela se serve com meio não só de expressão, mas fundamentalmente de contestação política e libertação.592 O conteúdo da revolta alcança sua inteligibilidade na forma de uma tensão construída a partir de materiais pré-existentes, com os quais o discurso dialoga explorando suas potencialidades críticas. Tal proceder constitui um perigo ao leitor moderno “incapaz de ler nas entrelinhas ou de se esforçar para perceber o que se esconde por detrás do aparentemente óbvio. De desconstruir o óbvio para construir o sentido”.593 Como ato político, toma-se o que se tem e se sabe para se expressar o que não se sabia que se tinha. A linguagem dominante não só não pode dar conta da realidade efetiva dos eventos em sua multiplicidade e movimento – complexidade – como trai e falsifica o conteúdo concreto da experiência, transformando-o em um procedimento mecânico de articulação de meras representações: espetáculo. Na linguagem da contradição, a crítica da cultura se apresenta “unificada”, porque domina toda a cultura – seu conhecimento (ciência) e sua poesia (arte), e porque ela já não se separa da crítica da totalidade social. É essa “crítica teórica unificada”, e apenas ela, que vai ao encontro da “prática social unificada”.594 A linguagem da crítica deve ser a crítica da linguagem. Daí que, por seu movimento, de cuja consciência teórica o próprio vestígio do movimento deve estar presente, a linguagem manifesta-se pela “inversão” das relações estabelecidas entre os conceitos e pelo “desvio” (détournement) de todas as aquisições da crítica anterior. Um exemplo clássico de inversão nesses termos é a resposta – livro – de Marx ao livro de Proudhon. Para este, tratava-se da “Filosofia da miséria”, para aquele, da “Miséria da Filosofia”. Marx critica o pensamento utópico de Proudhon e trata da economia política com base no materialismo histórico e na luta de classes, conceitos que se tornariam definitivos na construção de seu pensamento. O desvio “subverte as conclusões críticas passadas que foram cristalizadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras”.595 Verdades respeitáveis transformadas em mentiras, porque carecedoras de atualização histórica e crítica. É o contexto e a situação concreta de realidade, de representação racional e de expressão linguística que, em conjunto integrado e dialético, promovem o sentido. O desvio é a retirada de um texto de seu contexto e a posterior inserção num novo, com o fim de melhorar o seu sentido, conforme a pretensão do autor desviante. Ou mais precisamente, [...] o recurso utilizado pelas vanguardas estéticas que consiste na citação de fragmentos de outras obras feitas por meio de uma descontextualização do original [...] tal recurso, que confere ao texto uma sensação de falsa familiaridade e uma beleza surpreendente, torna a leitura um difícil quebra-cabeça, exigindo um esforço de “adivinhação” das fontes originais.596 As pistas dessa prática estilística aparecem no texto novo por meio de montagens – alusões, paráfrases, cópias etc. Sob essa ótica, Debord diz que o plágio é necessário. “O progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta”.597 O uso desviado é o contrário da citação, da autoridade teórica sempre falsificada pelo simples fato de ter se tornado citação; fragmento arrancado do seu conteúdo, do seu movimento, da sua época, como referência global e da opção exata que representava dentro dessa referência, exatamente reconhecida ou falseada.598 E mais: O desvio é a linguagem fluida da anti-ideologia. Ele aparece na comunicação que sabe que não pode deter nenhuma garantia em si mesma e definitivamente. Ele é, no mais alto nível, a linguagem que nenhuma referência antiga e supracrítica pode confirmar.599 No materialismo marxista, por seu método dialético, os conceitos são fluidos numa totalidade aberta, de modo que é impossível reduzir a infinita riqueza da realidade ao conhecimento, como supõe a ideologia burguesa. Isso nada tem a ver com o “relativismo”. “Ao contrário, sua própria coerência, em si mesmo e com os fatos praticáveis, pode confirmar o antigo núcleo de verdade que ele traz de volta. O desvio não fundamentou sua causa sobre algo exterior à sua própria verdade como crítica presente”.600 A caracterização dos conceitos se dá de forma fluida, como momentos provisórios sempre a serem ultrapassados em um momento no qual uns se transformam em outros, negando-se e afirmando-se ao mesmo tempo, em uma relação universal que a práxis revela. A fluidificação dos conceitos destinados a tratar dos dois lados da realidade só pode ocorrer por meio da determinação reflexiva: os conceitos funcionam como pares inseparáveis. Assim, a dialética não pode admitir contraposições metafísicas, tais como mudança/permanência, absoluto/relativo, finito/infinito, singular/universal, etc. “Para a dialética, tais conceitos são como ‘cara’ e ‘coroa’: duas faces da mesma moeda”.601 Significa dizer que a existência do teórico não é nada em si mesma, pois só se pode conhecer sua verdadeira fidelidade pela práxis – pela ação histórica e pela “correção histórica”. Teoria e prática social determinam-se reflexivamente. Numa perspectiva mais ampla, pode-se dizer que o desvio Junta uma concepção histórica do passado com base na crítica do presente a uma concepção histórica da própria linguagem, já que o contexto em que é apresentado “A sociedade do espetáculo” este método busca justamente explicar e justificar a “linguagem”, o “estilo” e o “modo de exposição” do livro. Precisamente neste sentido, o “détournement” aparece em Debord como uma concepção dialética por excelência.602 O desvio no livro se apresenta, antes de tudo, como resposta à busca da linguagem crítica e dialética, da qual a teoria mesma se constitui. Nele, Debord exprime o seu próprio modo de exposição da negatividade em face dos conceitos existentes, incluindo a inteligência de sua fluidez reencontrada e sua destruição necessária; a dialética, em sua forma, como é o seu conteúdo, ao testemunhar o espírito negativo que está nela. Veja-se o exemplo de Debord na primeira tese do livro: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”.603 Esse trecho é uma atualização/correção histórica – desvio, da primeira frase do livro O capital, de Karl Marx:604 “A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em ‘imensa acumulação de mercadorias’”. Cuida-se da prática linguística proclamada por Debord como negação da cultura e busca da destruição da sociedade do espetáculo pela derrubada do poder dominante, ao se opor ao argumento de autoridade – mesmo de uma referência teórica sua, como Marx. Os conceitos de mercadoria e de espetáculo se tornam pares inseparáveis – duas faces da mesma moeda. Nesse caso, [...] como fragmento desviado, a crítica passada se apresenta imediatamente, em sua própria linguagem, na linguagem crítica do presente; a crítica presente contém em seu próprio modo de exposição a persistência e a modificação da crítica passada, mantendo em sua própria linguagem crítica um vestígio histórico de que ela se apropria e torna seu.605 Diante da passagem destruidora do tempo histórico, o texto anterior se tornaria somente uma “mentira” caso usado como “citação” à qual se deveria reconhecer “autoridade”, como em seu contexto de origem, sem a determinação – dialética; crítica – histórica presente. Por excelência, a dialética se torna um método comunicativo. Comunicação que se diferencia daquela da linguagem dominante/espetacular, portanto. A rigor, o poder não cria o sentido das palavras, mas vive de “receptação” e “furto”: em outras palavras, ele somente o “recupera”. Na constante recuperação, pelo poder, da criação de sentidos pela linguagem, Debord concebe uma potencialidade que a esta é permanentemente ínsita de recriação de sentidos, o que faz dela um campo de batalha entre o poder e a criação histórica (neste contexto, nomeada de “poesia”).606 A concepção histórica do passado com base na crítica do presente está radicalmente ligada à própria concepção histórica da linguagem. E sua apresentação deve exprimir a dominação da crítica presente sobre todo seu passado, como comunicação histórica. Por isso, só o desvio é a negação real da cultura e pode conservar seu sentido. Considerações Como estágio adiantado do fetichismo da mercadoria, o espetáculo – “o sol que nunca se põe” – é um desdobramento que invade a realidade vivida ao falsear a consciência dos indivíduos e ao impor a todos uma postura contemplativa; passiva. No capitalismo mais avançado, a imagem reproduz a forma-mercadoria em seu mais alto grau de desenvolvimento, isto é, a prática social alienada dos homens. Debord busca superar a sociedade do espetáculo ao realizar a sua transformação por meio das duas atividades primárias fundadoras e estruturantes da sociabilidade humana: o trabalho e a linguagem. Ainda, visa ao resgate da interação social por meio da práxis humana. Daí ser a cultura, como esfera geral do conhecimento e das representações do vivido na sociedade histórica dividida em classes, contraditória: serve à reprodução ou ao questionamento dessa mesma sociedade. Nessa última hipótese, a partir de sua negação e superação pela arte moderna. A crítica de Debord ao espetáculo e à cultura considera que o fetichismo é um fenômeno transitório e superável, a partir do momento em que houver um encontro entre estética e política. A criação de uma nova linguagem pela arte moderna, que seja acompanhada pela política, é fruto da ideia de uma comunicação direta e dialógica. Essa ideia está presente tanto na reflexão sobre a arte, ao vê-la reconciliada com a vida cotidiana, quanto na sobre a política, pela ação dos conselhos operários; exprime-se na crítica a qualquer representação – delegação da palavra ou da ação; na crítica a toda separação. Contra a linguagem espetacular, produto de formas enrijecidas de pensar, Debord adota a linguagem da contradição, o recurso à dialética para “dissolução de tudo o que é; e que no movimento dissolve toda separação”607. A dialética é invocada para o combate da imediatez da sociedade mercantil. A fluidez dos conceitos surge em contraponto: ao mundo estanque da imagem e ao conformismo que seus reflexos produzem na consciência dos homens; e à lógica da separação entre o monopólio da aparência e a realidade concreta da vida. “As ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo”608. O estilo da negação, em sua insurgência, alcança sua inteligibilidade na forma de uma tensão construída a partir de materiais préexistentes, com os quais o discurso dialoga explorando suas potencialidades críticas. Exploração cuja prática estilística se dá pelo desvio, ao dar aos conceitos nova configuração histórica. Por meio do desvio, a dialética não é apenas um método de investigação da práxis humana numa situação social e histórica concreta da sociedade capitalista, com o objetivo de promover a transformação das condições de existência, de dominação de uma classe sobre outra e de alienação decorrente disso; é, também, sua força prática comunicativa por excelência. 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São Paulo: LiberArs, 2015. 13 A IDEOLOGIA MATERIALIZADA Vivyane Garbelini Cardoso Victor Varcelly Medeiros Farias 13.1 Debord, dialética e diálogo desviante com a tradição filosófica Guy Debord609 inicia o capítulo nove de A sociedade do espetáculo com a seguinte citação de Hegel em Fenomenologia do espírito: “A consciência de si existe em si e para si quando e porque ela existe em si e para si diante de uma outra consciência de si; isto é, ela só existe como ser reconhecido”. O excerto sublinha o caráter relacional da constituição da consciência. O “porque” nos indica a causalidade dessa relação: existe um eu porque existe um tu. Existe, portanto, um mutualismo entre identidade e alteridade. Debord parece retomar Hegel, com sua força dialética, para trazer à tona a questão de a autoconsciência ser determinada pela consciência do outro. Provavelmente, o pensador francês não estava preocupado em encontrar o “espírito absoluto”, não era sua ambição filosófica a busca por uma verdade totalizante por meio do aprofundamento dos estágios da consciência. Em sua obra, Debord, sujeito histórico, parece ter descartado certas pretensões da modernidade, como o desejo de uma compreensão filosófica total. Mas é justamente uma totalidade que ele critica, não a totalidade da consciência, mas a totalidade do capitalismo, que conseguiu a façanha de apresentar-se à humanidade como única realidade possível. Em 1967, quando foi publicada A sociedade do espetáculo, os efeitos nefastos da Segunda Guerra Mundial já haviam sido registrados e analisados. Tal guerra, realizada com alto grau de racionalidade, havia deixado um enorme rastro de sangue como evidência de sua excepcional eficiência. O Holocausto atingiu excelência em logística. A bomba atômica demostrou a excelência científica. Ao que parece, tudo muito produtivo. A partir de tais resultados, o projeto de modernidade passou a ser revisto pelos pensadores. Guy Debord (1931-1994), escrevendo no meio do século passado, não falou propriamente em uma irracionalidade. Ele questionou como a racionalidade humana existe e funciona no capitalismo, com ênfase no estágio por ele nomeado como sociedade do espetáculo. Georg Hegel (1770 -1831), que não leu as notícias da Primeira Guerra e tampouco viu as imagens da Segunda, não poderia saber o que ocasionariam a supervalorização da Ciência e a centralidade do indivíduo. Como o próprio autor escrevera, “quando as sombras da noite começaram a cair é que levanta voo o pássaro de Minerva”,610 ou seja: a sabedoria se constituiria no final dos tempos. Disso não podemos ter certeza. Mas sabemos com Hegel que o olhar para o passado deve visar ao entendimento do presente. Esse passado, por sua vez, constitui-se de contradições que constroem o motor da História. Para o moderno filósofo alemão, a realidade seria dialética. Para além do método dialético, dialética seria a própria realidade. Por sua vez, Karl Marx (1818-1883) incorporou a dialética em sua obra e dialogou com Hegel. Cabe aqui destacar um importante ponto: para Hegel, a consciência definiria o sentido das coisas. Marx, no entanto, inverte essa lógica afirmando que as condições materiais, incluindo as relações de trabalho, seriam as verdadeiras responsáveis pela definição da consciência humana. A observação da Obra de Marx revela que desde o início o pensador dialogava não apenas com Hegel, mas igualmente com outros autores, como Ludwig Feuerbach, por exemplo em Teses sobre Feurbach, que foram escritas na primavera de 1845. Lembremos que no ano anterior havia acontecido a Revolta dos Tecelões, um levante proletário na Europa Central. Esse protesto na Silésia, com caráter antiburguês, chamou a atenção do jovem Marx para a potencialidade, na prática, da força do proletariado. A partir desse momento, sua teoria passou a priorizar a práxis. Para Marx,611 “Toda a vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam a teoria ao misticismo encontram a solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis”. O autor ratifica que “é na práxis que o homem tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno, do seu pensamento”.612 Essa divergência teórica foi motivo para a veemente crítica a Feuerbach que, segundo Marx,613 não tomava “o mundo sensível como atividade humana sensível prática”. Para Marx, a essência humana não seria uma abstração inerente a cada indivíduo, mas o conjunto das relações sociais. Complementarmente, o sentimento religioso analisado por Feuerbach seria também um produto social, de acordo com a visão de Marx, que deixava para trás o idealismo e os resquícios neo-hegelianos. A referida crítica pode ser sintetizada logo no primeiro trecho de seus escritos sobre Feuerbach: A insuficiência principal de todo o materialismo até os nossos dias (o de Feuerbach incluído) é o de a coisa (Gegenstand), a realidade, o mundo sensível, serem tomados apenas sob a forma do objeto (Objekten) ou da contemplação (Anschauung); mas não como atividade humana sensível, práxis, não subjetivamente. Daí o lado ativo desenvolvido abstratamente, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – o qual naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objetos (Objekten) sensíveis – realmente distintos dos objetos do pensamento: mas não toma a própria atividade humana como atividade objetiva.614 Depois de oitenta e dois anos, uma revolução russa e duas guerras mundiais, Debord retoma essa discussão, argumentando que, ao contrário do projeto resumido em Teses sobre Feuerbach, “o espetáculo conserva ao mesmo tempo, e impõe no pseudoconcreto de seu universo, os caracteres ideológicos do materialismo e do idealismo”.615 Para o pensador francês, então, não teria acontecido a realização da filosofia na práxis, preconizada por Marx, que superaria a oposição entre idealismo e materialismo. Segundo Debord, na sociedade do espetáculo o lado contemplativo do velho materialismo foi mantido e completado, já que as coisas concretas foram “automaticamente donas da vida social”.616 O idealismo, por sua vez, tem sua atividade sonhada mantida e completada, na sociedade do espetáculo, “pela mediação técnica de signos e sinais, que afinal materializam um ideal abstrato”.617 Durante o reinado das mercadorias e das imagens, Debord apropriou-se de parte do pensamento hegeliano e, ancorado no pensamento de Marx, teceu A sociedade do espetáculo. Os diálogos com os autores do passado, todavia, ocorrem com discordâncias e criticidade, como poderia se esperar de um pensador afiliado à Teoria Crítica. Além disso, Debord realizou a interlocução com desvio (deteurnement), sem, por exemplo, o cumprimento de normas acadêmicas. Contra a propriedade privada, era ele também contra a propriedade intelectual que encastelava o conhecimento. Entendemos que o pensador buscava não separar forma e conteúdo, mas integrá-los. A separação alfa e ômega do espetáculo618 era refutada. A busca por uma forma-conteúdo autêntica, não espetacular e dialógica propunha–e propõe–, uma leitura atenta e ativa. O leitor de Debord deve pensar, refletir, procurar conexões dentro e fora do texto, tentar decifrar o que não está ali explicitado. A ação desse leitor é valorizada e incentivada. Rasgando a vocação fetichizadora da sociedade do espetáculo, Debord desejava confrontar o mundo de aparências, buscando rastrear as realidades ocultadas. 13.2 Ideologia, falsa consciência e o triunfo do recorte O espetáculo coloca-se como crença absoluta, correspondendo a uma percepção parcial da realidade: não de todo mentirosa, porém incompleta, falseada. Corresponderia ao contrário da consciência. Seria, então, a pura ideologia. Para Debord,619 [...] quando a ideologia, que é a vontade abstrata do universal e sua ilusão, se encontra legitimada na sociedade moderna pela abstração universal e pela ditadura efetiva da ilusão, ela já não é a luta voluntarista do parcelar, mas seu triunfo. O parcelar que triunfa nos remonta à mistificação marxista: essa exasperação de apenas um aspecto da realidade, justaposição que ilude os indivíduos, como que em um feitiço. Indubitavelmente, essa concepção de ideologia possui caráter pejorativo e perigoso na obra aqui analisada. A ideologia é a base do pensamento de uma sociedade de classes, no curso conflitante da história. Os fatos ideológicos nunca foram simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, como tais, fatores reais que exercem uma real ação deformante; tanto mais que a materialização da ideologia provocada pelo êxito concreto da produção econômica autonomizada, na forma do espetáculo, praticamente confunde com a realidade social uma ideologia que conseguiu recortar todo o real de acordo com seu modelo.620 Podemos pensar que a ideologia funciona como fundamento da sociedade de classes uma vez que justifica essa divisão. O curso conflitante da história nos remete a Hegel e a Marx, com a dialética, o caráter processual do fazer histórico e a importância de nos entendermos, no presente, enquanto seres históricos. A realidade social, por sua vez, confunde-se com essa ideologia, ou seja: falsa consciência. Para Debord, o todo do real ficou reduzido a uma forma de vida, única maneira de pensar e produzir – e as vozes espetaculares tentam nos fazer crer que não há nada lá fora porque nem existe um fora. Essa realidade social recortada elimina, apenas em aparência, as contradições sociais, que permanecem concretas. O recorte triunfa, o fragmento torna-se déspota. A ideologia, então, materializa-se. Essa é a “nova força do embuste”.621 O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de todo sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida real. O espetáculo é, materialmente, ‘a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem’.622 Separação, cisão, divisão. “Esquizofrenia” é uma palavra de origem grega que significa “mente dividida”. Sociedade dividida, mente dividida: “O paralelismo entre ideologia e esquizofrenia estabelecido por Gabel (La Fausse conscience) deve ser compreendido nesse processo econômico de materialização da ideologia. O que a ideologia já era, a sociedade tornou-se”.623 Debord, então, problematiza a ideia da ilusão do encontro, remarcando que em uma sociedade “em que ninguém consegue ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo torna-se incapaz de reconhecer sua própria realidade. A ideologia está em casa; a separação construiu seu próprio mundo”.624 A ideologia, materializada, faz do mundo social sua casa. Debord625 continua: “Nos quadros clínicos da esquizofrenia”, diz Gabel, “a decadência da dialética da totalidade (que tem como forma extrema a dissociação) e a decadência da dialética do devir (que tem como forma extrema a catatonia) parecem bem solidárias”. A consciência espectadora, prisioneira de um universo achatado, limitado pela tela do espetáculo, para trás da qual sua própria vida foi deportada, só conhece os interlocutores fictícios que a entretém unilateralmente com sua mercadoria e com a política de sua mercadoria. O espetáculo, em toda a extensão, é sua “imagem do espelho”. Aqui se encena a falsa saída de um autismo generalizado. No capítulo “Ideologia e Dialética”, de sua A falsa consciência, Joseph Gabel defende que “falsa consciência” e “ideologia” podem ser definidas como formas de apreensão subdialéticas da realidade social. Essas definições expressavam o esforço do pensador em fornecer “um denominador comum às formas concretas muito variadas que revestiu a falsa consciência no curso da história”.626 Tratava-se de uma busca por desembaraçar conceitos que se imbricaram ao longo do tempo, em especial nas conceituações do marxismo ortodoxo. A definição de Gabel centra-se em torno da noção de uma degradação esquizofrênica da apreensão dialética do real que se apresenta como “manifestação de consciência reificada”.627 Outro aspecto importante, explicitado na expressão “telas do espetáculo”, é o da Comunicação. Para Debord, os meios de comunicação em massa seriam a manifestação superficial mais esmagadora do espetáculo. A mídia exercia, portanto, forte domínio social. Na sociedade do espetáculo, a alienação cotidiana era formada, dentre outros elementos, por aquilo que Debord chamou de “pseudocomunicação”. Os meios de comunicação, segundo ele, subordinavam-se à lógica de mercado e tornavam-se, eles próprios, mercadorias, além de agirem na divulgação das mercadorias, especialmente com a produção e o consumo de imagens. O modo de funcionamento mercadológico expandia-se pelos jornais, revistas, televisão, rádio etc. Nesse contexto, a publicidade reinava e o marketing passava a ganhar onipresença. Entendemos que a Indústria Cultural628 fora crescendo e se fortalecendo enquanto ferrenha defensora do capitalismo, ainda que ela quase não pronuncie esse nome, ou seja: não se fala muito explicitamente “capitalismo”, mas se segue agindo segundo suas ordens, imperativos e desmandos. De maneira aparentemente inofensiva e divertida, utilizando inclusive o entretenimento, a Indústria Cultural influenciava–e influencia–, nossa percepção do mundo, consolidando-se de maneira totalitária. Esses mecanismos endossaram a noção de que não haveria outra possibilidade, não há outro meio de produção, não haverá outro modelo de sociedade. Em O sistema de objetos, Jean Baudrillard realiza uma análise do discurso sobre o objeto e sobre a mensagem publicitária, com sua imagem e seu discurso. Para ele, “a publicidade constitui no todo um mundo inútil, inessencial. Pura conotação”.629 O autor explica que, partindo da informação, a publicidade passou à persuasão, depois à “persuasão clandestina” que visaria a um consumo dirigido.630 Baudrillard aponta que “a publicidade que silencia sobre os processos objetivos de produção e de mercado também omite a sociedade real e suas contradições”.631 Baudrillard632 argumentava que “por meio da publicidade, como por meio das festas de outrora, a sociedade oferece à vista e ao consumo sua própria imagem”. Em um mundo inessencial, os indivíduos-consumidores buscam respostas nas mercadorias, porém encontram apenas pseudorresposta, dada a unilateralidade dos interlocutores fictícios. Retomamos Debord633 quando comenta que a necessidade da imitação que o consumidor sente é um desejo infantil, condicionado por todos os aspectos de sua despossessão fundamental. O que nos leva ao comentário de Baudrillard, para quem a publicidade se empenha em recriar uma confusão infantil entre o objeto e o desejo pelo objeto. Nesse mundo de massas crescentes de objetos conotativos, onde fica a cidadania? Entre infinitas mercadorias-imagem, quando pode o consumidor exemplar tornar-se cidadão? Em seu tempo livre? Vinte anos depois da introdução do conceito de Indústria Cultural, Adorno634 investigou a questão do chamado “tempo livre”, sublinhando o fato de se tratar de uma expressão recente, em relação à época da publicação do texto: “Antes se dizia ócio, e este era um privilégio de uma vida folgada e, portanto, algo qualitativamente distinto e muito mais grato”. “O tempo livre é acorrentado ao seu oposto”, é aquele que se distingue do tempo não livre, sendo esse preenchido pelo trabalho. Para o frankurtiano,635 a sociedade de sua época, assim como anteriormente, mantinha as pessoas sob um fascínio, sendo que nem em seu trabalho, nem em sua consciência, dispunham de si mesmas, com real liberdade. O filósofo defendeu ainda que a “distinção entre trabalho e tempo livre foi incutida como norma à consciência e inconsciência das pessoas”.636 Segundo ele, o tempo livre do trabalho seria “um mero apêndice do trabalho”,637 sendo que essa rígida divisão da vida em duas metades enalteceria a coisificação que subjugou quase completamente o tempo livre.638 Essa questão relaciona-se com a apatia política, que remonta ao tema da cidadania, da seguinte maneira: A razão mais importante para esta última [apatia política] é o sentimento, de nenhum modo injustificado das massas, de que, com a margem de participação na política que lhes é reservada pela sociedade, pouco podem mudar em sua existência, bem como, talvez, em todos os sistemas da terra atualmente. O nexo entre a política e os seus próprios interesses lhes é opaco, por isso recuam diante da atividade política.639 A opacidade entre política e interesses próprios assusta, desanima, desestimula. Isso em um contexto de novíssimas novidades, tendências do momento, incalculáveis produtos para consumir e outros mecanismos de distração. Onde se daria, então, a brecha para o diálogo em sua caminhada junto ao reconhecimento? Aqui, parece importante avivar um terceiro pensamento frankfurtiano. Gabriel Cohn640 relembra os esforços de Adorno em “projetar a análise da personalidade autoritária sobre um enquadramento que lhe permitisse transcender o plano estritamente sócio-psicológico”. O pensador alemão constatara que as pessoas propensas a aceitar temas e formas de condutas fascistas tendiam a organizar suas ideias em termos que envolviam, simultaneamente, o pensamento por estereótipos, conforme padrões fixos previamente dados para qualificar pessoas e coisas, e de modo personificado. Estereotipia e personificação, segundo Adorno, seriam inadequadas à realidade, uma vez que se esquivariam do concreto e induziriam ao contentamento com ideias preconcebidas, rígidas e supergeneralizadas, “às quais o indivíduo atribui uma espécie de onipotência mágica”.641 Cohn642 explica que “a estereotipia e a personificação são duas partes divergentes de um mundo não experimentado efetivamente”. Lembremos, com Debord,643 que na sociedade do espetáculo “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”; em outras palavras: foi deixando de ser diretamente vivenciado. Na referida pesquisa, Adorno levantara uma importante noção, embora não a tenha desenvolvido em profundidade, intitulada ticket-thinking. Explica Cohn644 que ela “engloba numa unidade a polarização estereotipia/personalização, associando-as numa forma de pensar ‘em bloco’, conforme padrões prontos”. Trata-se de uma forma de perceber o mundo e de pensar que opera conforme blocos de significados previamente dados, que se apresentam como coerentes para o sujeito (na medida em que aceitar um dos seus elementos leva a aceitar os demais sem esforço de ajuste nem, muito menos, de reflexão) mas que na realidade são intrinsecamente contraditórios .645 Padrões prontos e pensamento em bloco encontram espaço na falta de reconhecimento de si e do outro, dificultam o encontro. Sem encontros, como pode haver diálogo? Cinquenta anos depois da publicação de A sociedade do espetáculo, poder-se-ia, talvez, argumentar que tais conceitos estejam ultrapassados. Conquanto, parece defensável que testemunhemos a persistência da Indústria Cultural, da mercantilização do tempo livre e do pensamento-ticket, que se resume em não pensamento. É inquestionável, porém, que diversas mudanças aconteceram, tal como o advento da internet e o desenvolvimento da internet comercial. Todavia, se, em um primeiro momento, os entusiastas da internet vislumbraram nela uma ferramenta democrática, hoje parece pouco provável que ela auxilie a cumprir tal função em horizonte próximo. Conforme Alex Primo:646 “Na lógica econômica do pós-fordismo, aquilo que poderia ser antes visto como entretenimento na web foi convertido em oportunidade de negócio”. O autor argumenta que o mero divertimento transformou-se em trabalho. Exemplo disso são os participantes dos sites de redes sociais, que produzem o próprio conteúdo consumido. Primo alerta, por exemplo, que todas as atividades realizadas no Facebook são registradas e auxiliam na geração de padrões de consumo constantemente reforçados. Os rastros digitais possuem alto valor no mercado, configurando-se como espécie de trabalho realizado por quem, distraidamente, utiliza-o. “Seria esta a mais perfeita máquina capitalista já́ produzida? A inequívoca fábrica social que transforma o prazer em rentável trabalho gratuito?”.647 Marcos Dantas648 endossa o questionamento argumentando que “trabalhamos todo o tempo, mesmo quando nos divertimos, até quando descansamos”. O autor enfatiza que, nos sites de redes sociais, há muito trabalho não pago realizado pelos usuários. Desconsidera-se aqui o trabalho devidamente remunerado dos funcionários oficiais de tais empresas: trabalhadores qualificados, tais como engenheiros e publicitários, produzem o que poderia ser chamado de um território, que seria o espaço a ser ocupado pelo anúncio publicitário: [...] este espaço precisará ser “semeado” para dar frutos: as palavras serão aí colocadas por milhões de pessoas que aparentemente não mantêm qualquer contrato de remuneração com os donos da rede, mas encontram-se totalmente “aprisionadas” às suas tecnologias, protocolos, dispositivos...e “jardins murados”: os redescravos (“netslaves”).649 Jardins murados. De modo geral, a internet comercial, cada vez mais fechada, alimenta cada vez menos sonhos de emancipação e ampliação democrática. A arquitetura da rede repete a arquitetura urbana que, de modo geral, mais repele do que acolhe. Nas palavras de Dantas650, a internet oferece “a qualquer indivíduo inserido na sociedade capitalista do espetáculo e consumo, amplas condições de também ser participante imediato e direto do espetáculo”. É certo que, por meio de seus vários perfis em sites de rede social, o indivíduo pode se expor e se expressar. Porém, postagens e comentários, dentre outras ações, formulam o trabalho não pago da audiência, que é apropriado e do qual é extraído um valor que se expressa de diversas maneiras. Esta forma de apropriação pode ser entendida como “mais-valia 2.0”: apropriação de trabalho não-pago, literalmente gratuito, através de um sistema de agenciamento social, via meios eletrônicos de comunicação, lineares ou reticulares, que incorpora, na produção de valor, bilhões de pessoas que estariam aparentemente se divertindo ou cuidando de suas atividades profissionais.651 Por exemplo, enquanto os usuários curtem, compartilham e comentam posts no Facebook, a empresa fatura direta ou indiretamente. Afinal, a coleta de dados é sempre produtiva, mesmo que se tratem de comentários negativos sobre tal corporação ou sobre o funcionamento perverso do capitalismo contemporâneo. O espetáculo se expandiu, digitalizou-se, criou perfil e fanpage nos sites de redes sociais. Enquanto isso, o diálogo... 13.3 Dialética, dialogismo, democracia Debord,652 em seu esforço de realizar uma crítica não espetacular do espetáculo, teorizou que: “se a lógica da falsa consciência não pode conhecer a si própria de forma verídica, a busca da verdade crítica sobre o espetáculo tem de ser também uma crítica verdadeira”. Reprovando aqueles a quem chamou de “pseudorrevolucionários”, o pensador postulou que “a crítica que vai além do espetáculo deve saber esperar”.653 Para além da crítica em teoria, Debord buscou a práxis nas ruas. Voltemos ao que Marx654 argumentou, em 1885, quanto à postura dos filósofos perante a realidade: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão é transformá-lo”. Debord, buscando construir-se como sujeito histórico revolucionário, não se limitou ao mero entendimento e distanciada descrição da realidade, uma vez que almejava, de fato, transformála. A atuação política, na prática, fez parte da vida de Debord, que integrava o movimento situacionista. Conforme Coelho,655 [...] na década de 1960, Guy Debord e os demais militantes políticos e culturais aglutinados em torno da Internacional Situacionista destacaram-se pela capacidade de influenciar um dos mais importantes movimentos sociais do século 20, que contou com a participação de milhões de estudantes e operários e entrou para a história como o movimento de maio de 1968. Os situacionistas defendiam uma ação contra a alienação presente na vida cotidiana, postulando que os estudantes e os trabalhadores deveriam retomar o controle sobre suas próprias vidas, ocupando as escolas e fábricas e passando a exercer, com base em decisões tomadas coletivamente em assembleias, o poder nessas instituições. O autor656 explica que, para os situacionistas, seria necessário destruir essas formas de pseudocomunicação para, eventualmente, chegar a uma comunicação real direta. A comunicação, em suma, só se concretizaria se fosse dialógica. Porém, a efetivação de uma comunicação dialógica como componente central da vida social só aconteceria com a superação da sociedade do espetáculo e com o exercício do poder pelos conselhos operários. Coelho657 ensina que essa defesa da comunicação dialógica direta travada pelos situacionistas era coerente com a proposta de democracia direta e serviu como inspiração para a ocupação dos espaços públicos urbanos, das universidades e das fábricas na França de 1968. A luta era por emancipação: Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a autoemancipação de nossa época. Nem o indivíduo isolado nem a multidão atomizada e sujeita à manipulação podem realizar essa ‘missão histórica de instaurar a verdade no mundo’, tarefa que cabe, ainda e sempre, à classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes ao resumir todo o poder na forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática controla a si mesma e vê sua ação. Somente ali os indivíduos estão “diretamente ligados à história universal”; somente ali o diálogo se armou para tornar vitoriosas suas próprias condições.658 Aqui, o pensador-ativista expõe dois importantes conceitos: diálogo e democracia. A questão democrática pode ser entendida como uma questão central em A sociedade do espetáculo e a existência da democracia, em especial a democracia direta, pressupõe a existência do diálogo, sendo esse o contrário do espetáculo.659 A concepção de democracia, para Debord, nega a representação, uma vez que critica os partidos políticos e outras formas de representatividade, enaltecendo apenas o Conselho. No caso: o conselho operário, que seria capaz de ligar os indivíduos ao fazer histórico, com uma percepção mais completa dos processos. Debord660 descreve o conselho operário como um lugar no qual as condições objetivas da consciência histórica estariam reunidas e no qual se realizaria a comunicação direta ativa. Sem especialização, sem hierarquia, sem separação. Um local para um sujeito-proletário revolucionário e histórico. Talvez–e aqui ensaiamos um pensamento em interlocução com Debord–, esse sujeito seria revolucionário justamente porque seria histórico, ativo e dialógico. Com a autoconsciência calcada na consciência da alteridade, poderia, enfim, dialogar e construir uma democracia e, de certo modo, transformar a sociedade. Considerações Investigando esse nono capítulo, notamos que os aforismos dispostos entre 212 e 219 parecem descrever, analisar e historicizar o funcionamento da ideologia na/da sociedade do espetáculo. Aquele numerado como 220 levanta, então, possibilidades de saída dessa sociedade de ideologia-porexcelência. Por fim, o 221 brada, fazendo ecoar a voz situacionista, o posicionamento do autor quanto à alternativa para o espetáculo, e indica para seu antídoto o diálogo. Tal qual Marx, Debord finaliza seus escritos apontando para a teoria-prática, práxis revolucionária. A citação de Hegel, que serve como epígrafe, aparenta transcorrer os excertos, transitar entre os espaços em branco, lembrando-nos da necessidade da consciência de si e para si perante a consciência do outro. No ano de 2017, o reconhecimento da alteridade enquanto tema e prática coloca-se como urgente além de necessário, tendo em vista o crescimento de posturas reacionárias. Mas “revolucionar a sociedade capitalista” passou a parecer, principalmente depois de 1989, uma aspiração inadequada, tolice sonhadora, ideia fora do lugar. Nas últimas cinco décadas, o poder dos conglomerados, inclusive os comunicacionais, cresceu muito, em especial com o avanço do neoliberalismo, a partir dos anos 1980. O espetáculo se expandiu, consolidou-se como um modo unívoco, em relação ao qual, supostamente, não há alternativa. Esse pensamento único remonta à percepção de que o capitalismo é, e sempre foi, o único cenário, como se ele não fosse histórico. Persiste uma cotidiana aurora de objetos e de desejos, massa crescente de objetos-fetiche. Persiste o caráter sistêmico da indústria cultural, em que reina a repetição. Sendo assim, como pode a democracia se realizar? As pessoas sem tempo para encontros reais, identidade sem reconhecimento do outro, sem disponibilidade para pensar o público. Com uma internet controlada por grandes empresas que funcionam de maneira opaca... Como será possível realizar deliberação em jardins murados? Como pode o ser humano realizar-se na condição espetacular? O mergulho na obra de Debord nos transporta para o passado para pensar o presente. Somos convocados a, ativamente, pensar sobre a História, sobre a consciência de si e do outro. Identidade e a Alteridade caminhando juntas para a construção de um pensamento crítico. Reconhecimento de eu e de tu. Atualmente, prossegue o esvaziamento das forças de oposição à sociedade do espetáculo, é certo. “A ideologia materializada” nos lembra, porém, que mapa não é território. Parcial não é total. A crítica que vai além do espetáculo deve saber esperar e pode, igualmente, saber quando agir. Referências ADORNO, Theodor. Tempo livre. In: ADORNO, Theodor. Palavras e sinais. Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 70-82. BAUDRILLARD, Jean. O sistema de objetos. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 1968. COELHO, Claudio. Cultura, arte e comunicação em Guy Debord e Cildo Meireles. Revista Líbero, São Paulo, artigos, p. 75-86, jan./jun. 2014. ______. Mídia e poder na sociedade do espetáculo. Revista Cult, São Paulo, dossiê, p. 59-61, fev. 2011. DANTAS, Marcos. Mais-valia 2.0: produção e apropriação de valor nas redes do capital. Eptic (UFS), v. 16, p. 85, 2014. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. GABEL, Joseph. A falsa consciência. 1. ed. Lisboa: Guimaraes e Ca Editores, 1979. HEGEL, Georg. Princípios da filosofia do direito. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Teses sobre Feuerbach. 1. ed. São Paulo: Moraes, 1984. PRIMO, Alex. A grande controvérsia: trabalho gratuito na Web 2.0. In: In: RIBEIRO, José Carlos; BRAGA, Vitor; SOUZA, Paulo Victor. (Orgs.). Performances interacionais e mediações sociotécnicas. Salvador: EDUFBA, 2015. p. 57-85. SOBRE OS AUTORES Cláudio Novaes Pinto Coelho é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, mestre em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Atualmente, faz parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Libero e é coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPq Comunicação e Sociedade do Espetáculo. Contato: claudionpcoelho@uol.com.br. Deysi Cioccari é pós-doutoranda em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero (SP), doutora em Ciências Sociais. Foi repórter em diversos jornais no Rio Grande do Sul, assessora de imprensa na Liderança do Partido Democratas e na Câmara dos Deputados, em Brasília. É membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Comunicação e Sociedade do Espetáculo Contato: deysicioccari@gmail.com. Emerson Ike Coan é mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Comunicação e Sociedade do Espetáculo. Contato: emersonike@hotmail.com. Erick Quintas Corrêa é doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista, mestre e graduado em Ciências Sociais pela Unesp. Contato: erick.q.correa@gmail.com. Fabio Del Nero é mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Libero, graduado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie e membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Comunicação e Sociedade do Espetáculo. Contato: fabio.delnero@gmail.com. Gilberto da Silva é jornalista, mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, sociólogo (aposentado) da Prefeitura de São Paulo e membro do Grupo de Pesquisa Comunicação e Sociedade do Espetáculo. Atualmente, atua como assessor de comunicação da Prefeitura Regional Ipiranga, na cidade de São Paulo, é escritor e edita a revista Partes (www.partes.com.br). Contato: gilpartes@gmail.com. Jhonathan Pino é doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero e jornalista. Contato: jhonathanw_pino@gmail.com. Mara Rovida é doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Libero e jornalista. É membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba. Contato mara.rovida@prof.uniso.br. Márcia Eliane Rosa é pós-doutora em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, mestre em Comunicação e Mercado pela Faculdade Cásper Líbero e graduada em Jornalismo pela PUC-Campinas, onde, atualmente, faz parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Linguagens, Mídia e Arte. Também é membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Comunicação e Sociedade do Espetáculo Contato: marciaer@terra.com.br. Tathiana Senne Chicarino, é doutoranda e mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Contato: tschicarino@gmail.com. Vanderlei de Castro Ezequiel é mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, pósgraduado em Tecnologia da Informação pelo Mackenzie e em Teorias e Técnicas de Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, graduado em Matemática pela UniSanta’Anna e membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Comunicação e Sociedade do Espetáculo. Contato: vander.ce@gmail.com. Victor Varcelly Medeiros Farias é mestrando em Comunicação pela Faculdade Cásper Libero, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e pesquisador do Grupo de Ensino e Pesquisa em Inovação da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Contato: victorvarcelly@gmail.com. Vivian Santana Paixão é mestre e pós-graduada em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, graduada em Letras pela Universidade de São Paulo e atuou como docente de Língua Portuguesa no ensino médio. Contato: vipaixao80@gmail.com. Vivyane Garbelini Cardoso é mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero e jornalista graduada pela mesma instituição. Também é membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Comunicação e Sociedade do Espetáculo. Contato: vivyanegarbelini@gmail.com. 1 A morte de Stálin e o levante dos operários de Berlim oriental, em 1953, bem como a realização do XX Congresso do Partido Comunista Soviético (PCURSS) e o Relatório de Kruschev denunciando o “Grande Expurgo” (1934-39) stalinista e a insurreição operária de Budapeste, em 1956, deram início à chamada desestalinização do PCURSS e do movimento comunista internacional. É nessa conjuntura que a IS é fundada, no ano de 1957. 2 Debord publica seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1988) vinte anos depois do maio de 68, e não da publicação d’A sociedade do espetáculo, de 1967. 3 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 18. 4 Para saber escrever, é preciso ter lido. E para saber ler é preciso ter vivido (tradução livre) (DEBORD, Guy. In: BNF, 2013. p. 3). 5 BNF. Guy Debord – un art de la guerre. Communiqué de presse, Bibliotèque Nacional de France François-Mitterrand (Bnf), Paris: 27 de mar. a 13 de jul. de 2013. 6 JAPPE, Anselm. Guy Debord. Lisboa: Antígona, 2008. 7 Ibidem, p. 69. 8 COELHO, Cláudio Novaes Pinto. Indústria cultural e sociedade do espetáculo: a dimensão política da crítica cultural. Libero, v. 19, n. 37, São Paulo, p. 31-42, jan./jun. 2016. 9 Jamais trabalhe (tradução livre). 10 JAPPE, 2008, p. 70. 11 Ibidem, p. 76 12 Ibidem, p. 73. 13 Ibidem, p. 74. 14 Ibidem, p. 77. 15 BNF. Guy Debord – un art de la guerre. Communiqué de presse, Bibliotèque Nacional de France François-Mitterrand (Bnf), Paris: 27 de mar. a 13 de jul. de 2013. p. 12. 16 JAPPE, 2008, p. 79. 17 Ibidem, p. 79. 18 Ibidem, p. 79, grifo nosso. 19 Ibidem, p. 17. 20 Os detalhes dessa relação entre Debord e Lefebvre serão apresentados na sequência. 21 IS, n° 1, p. 13, 1958, In: BELLONI, 2003, p. 127-128. 22 LÖWY, Michael. A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 79. 23 BELLONI, Maria Luiza. A formação na sociedade do espetáculo: gênese e atualidade na atualidade. Revista Brasileira de Educação, v. 1, n. 22, Rio de Janeiro, p. 121-136, jan./fev./marc./abr. 2003. 24 Ibidem, p. 125. 25 JAPPE, 2008, p. 193. 26 Ibidem, p. 132. 27 BELLONI, 2003, p. 122. 28 BNF, 2013, p. 10. 29 DEBORD, 2012, p. 25. 30 Ibidem, p. 14. 31 JAPPE, 2008, p. 170. 32 Ibidem, p. 41. 33 Ibidem, p. 41. 34 Ibidem, p. 65. 35 Ibidem, p. 114. 36 Ibidem, p. 123. 37 JAPPE, 2008, p. 80, grifo do autor. 38 Ibidem, p. 85. 39 Ibidem, p. 89. 40 Ibidem, p. 95. 41 Ibidem, p. 95. 42 Ibidem, p. 109. 43 JAPPE, 2008, p. 109. 44 Ibidem, p. 109 45 Ibidem, p. 128. 46 Ibidem, p. 128. 47 Ibidem, p. 128. 48 Ibidem, p. 129. 49 Panegírico. São Paulo: Conrad, 2002. 50 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 13. 52 DEBORD, 1997, p. 14. 53 Ibidem, p. 25. Grifo no original. 54 Ibidem, p. 30. Grifo no original. 55 Ibidem, p. 13. 56 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 57 DEBORD, 2003, p. 146. 58 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Livros, 2002. p. 34-35. 59 Ibidem, p. 58-59. 60 Ibidem, p. 59. Grifo no original. 61 DEBORD, 1997, p. 137. 62 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Fuerbach). São Paulo: Hucitec, 1989. p. 37. 63 DEBORD, 1997, p. 220. 64 Ibidem, p. 220. 65 Ibidem, p. 222-223. Grifo no original. 66 Ibidem, p. 175. 67 Ibidem, p. 181. Grifo no original. 68 DEBORD, 1997, p. 181. 69 BISHOP, Claire. Participation: documents of contemporary art. Cambridge, Massachusetts: Whitechapel and The MIT Press, 2006. 70 Ibidem, p. 12 (Tradução livre). 71 Idem. 72 BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 12-13. 73 BOURRIAUD, 2009, p. 12-13. 74 JAPPE, Anselm. Guy Debord. Lisboa/Portugal: Antígona, 2002. p. 20. 75 JAPPE, Anselm. Guy Debord. Lisboa/Portugal: Antígona, 2002. 76 JAPPE, Anselm. Guy Debord. Lisboa/Portugal: Antígona, 2002. p. 20. 77 DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13. 78 JAPPE, 2002, p. 19. 79 DEBORD, 1997, p. 119. 80 Ibidem, p. 135. 81 Ibidem, p. 24. 82 DEBORD, Guy; WOLMAN, Gil. Mode d’emploi du détournement. Les Lèvresnues, Bruxelas, n. 8, maio, p. 6, 1956. Disponível em: <http://sami.is.free.fr/Oeuvres/debord_wolman_mode_emploi_detournement.html>. Acesso em: 30 out. 2017. (Tradução livre). 83 DEBORD, 1997, p. 13. 84 Ibidem, p. 14. 85 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. 86 Idem. 87 Ibidem. 88 Ibidem. 89 BOLTANSKI, Luc. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 90 CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 91 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. 92 BOLTANSKI, 2009. 93 CRARY, 2014. 94 DEBORD, 2012. 95 Idem. 96 CRARY, 2014. 97 CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 98 BOLTANSKI, Luc. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 99 CRARY, 2014. 100 DEBORD, 2012. 101 CRARY, 2014, p. 67. 102 Ibidem, p. 85. 103 CRARY, 2014. 104 CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 105 Idem. 106 CRARY, 2014, p. 52-53. 107 CRARY, 2014. 108 CRARY, 2014, p. 54-55. 109 BOLTANSKI, Luc. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 110 CRARY, 2014. 111 BOLTANSKI, 2009. 112 BOLTANSKI, 2009, p. 424 113 Ibidem, p. 427. 114 CRARY, 2014. 115 BOLTANSKI, 2009, p. 438. 116 BOLTANSKI, 2009. 117 BOLTANSKI, 2009, p. 460. 118 BOLTANSKI, 2009. 119 Idem. 120 BOLTANSKI, 2009, p. 470. Grifos no original. 121 2003. 122 CRARY, 2014. 123 BOLTANSKI, 2009. 124 DEBORD, 2012. 125 DEBORD, Guy. Panegírico. São Paulo: Conrad, 2002, p. 6. 126 Ibidem, p. 80. 127 MARX, Karl. O capital. Livro 1. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 128 2012. 129 DEBORD, 1997, p. 39. 130 ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M.; Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 151. 131 DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 3. 132 Cf. LÖWY, 2002, p. 81. 133 DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 37. 134 2013, p. 40. 135 1999, p. 7. 136 2008. 137 1994. 138 JAPPE, 1994, p. 8. 139 DEBORD, 1997, p. 40. 140 Ibidem, p. 101. 141 2012, p. 3. 142 1999, p. 182. 143 1997, p. 42. 144 BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 18. 145 SIMMEL apud BAUMAN, 2008. 146 2008, p. 89. 147 1997, p. 44. 148 CAMPBELL apud BAUMAN, 2008, p. 152. 149 1988, 45. 150 1985. 151 1997, p. 30. 152 Ibidem, p. 54. 153 2012, p. 34. 154 1997, p. 37. 155 Ibidem, p. 37, tese 54. 156 DEBORD, 1988, p. 171-172. 157 DEBORD, 1997, p. 172. 158 1999, p. 53. 159 1988, p. 173. 160 Idem. 161 Ibidem, p. 180. 162 DEBORD, 2002. 163 2006, p. 23. 164 COELHO, 2006 p. 23. 165 Ibidem, p. 27-28. 166 DEBORD, 1997, p. 172-173. 167 Ibidem, p. 33-35. 168 2011. 169 2006, p. 14. 170 2017. 171 INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Section italienne de l’Internationale Situationniste. Écrits complets (1969-1972). Paris: Éditions Contre-Moule, 1988, p. 60. 172 LEFORT, Claude. “Le parti situationniste”. In: Le temps présent. Écrits (1945-2005). Paris: Éditions Belin, 2007, p. 214. (Tradução livre). 173 LEFEBVRE, Henri. Position: contre les technocrates. Paris : Éditions Gauthier, 1967. 174 Ibidem, p. 169. 175 1969. 176 IS, 1997, p. 573. (Tradução livre). Grifos nossos. 177 IS, 1969/1997, p. 571. (Tradução livre). 178 COHN-BENDIT, Daniel. Le gauchisme. Remède à la maladiesénile du communisme. Paris: Seuil, 1968. 179 1988/1997, p. 177. 180 GRÉMION, Pierre. Lessociologuesetmai 68. In: Le débat: Mai 68, quaranteans après. Paris: Gallimard: 2008. p. 24. (Tradução livre). 181 1962. 182 1997, p. 129. 183 Idem. 184 “Do mesmo modo que em toda ciência histórica e social em geral é preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das categorias econômicas, que o sujeito, nesse caso a sociedade burguesa moderna, está dado tanto na realidade efetiva como no cérebro; que as categorias exprimem portanto formas de modos de ser, determinações de existência” (MARX, 1857/1982, p. 18). 185 1997, p. 131. 186 E não europeus, como o levante anarquista carioca de 1917 e a greve geral paulistana de 1918 atestam. Cf. ADDOR, 1986. 187 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo; Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo; Comentários sobre A sociedade do espetáculo [1967, 1979, 1988]. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 188 1997, p. 49. 189 Idem. Grifo nosso. 190 1931. 191 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo; Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo; Comentários sobre A sociedade do espetáculo [1967, 1979, 1988]. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 192 Ibidem, p. 50. Grifo nosso. 193 Ibidem, p. 51. 194 Ibidem, p. 52. Grifo nosso. 195 Ibidem, p. 53. Grifo nosso. 196 Ibidem. Grifo nosso. 197 Ibidem, p. 50. 198 Ibidem, p. 55. Grifo nosso. 199 Idem. 200 Ibidem, p. 56. 201 Ibidem, p. 57. 202 Idem. 203 Ibidem, p. 56. De acordo com a crítica esquerdista da revolução russa, os bolcheviques se separaram da vontade das massas e os seus dirigentes, opondo-se a elas durante os períodos decisivos das lutas, entre 1905-07 e abril de 1917: “Como crítica, o esquerdismo repudia todas as revoluções do século XX ou, melhor, renega-lhes a etiqueta de socialistas. Ele vê nelas as últimas revoluções burguesas” (GOMBIN, 1972, p. 23). Grifo nosso. 2041867. 205 1997, p. 58. Grifo nosso. 206 Ibidem, p. 60. Grifo nosso. 207 Idem. 208 GOMBIN, Richard, Communisme de Parti etcommunisme de Conseils: l’exemple de la République de Weimar. Revue d’histoiremoderneetcontemporaine, tomo 23, n. 1, p. 32-43, 1976. Disponível em: <http://www.persee.fr/docAsPDF/rhmc_00488003_1976_num_23_1_2347.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2017. 209 ANWEILER, Oskar. Los sovietsen Rusia (1905-1907) [1958]. Madrid: Biblioteca Promoción del Pueblo, 1975. 210 1997, p. 60. 211 Ibidem, p. 60. 212 TRAGTENBERG, Maurício (Org.). Marx/Bakunin. Marxismo e autogestão, a. 3, n. 05, p. 21-42, 2016. 213 1997, p. 60. 214 Ibidem, p. 60-61. Grifo nosso. 215 “Movimento armado de camponeses organizados em milícias para garantir a democracia e realizar a autogestão social dos meios de produção e a abolição do salário, das classes e das hierarquias verticais” (TRAGTENBERG, Maurício (Org.). Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna, 1986, p. 38). 216 WAGNER, Helmut. L’anarchismeet la révolutionespagnole. International Council Correspondence, n. 5/6, 1937. Disponível em: <https://bataillesocialiste.wordpress.com/1937-04-lanarchisme-et-la-revolution-espagnole-wagner/>. Acesso em: 02 ago. 2017; SEMPRÚN-MAURA, Carlos. Revolución y contrarrevolución en Cataluña (1936-1937). Barcelona: Tusquets, 1978; ORWELL, George. Homenagem a Catalunha. Lisboa: Antígona, 2007. 217 SOCIALISME OU BARBARIE. L’insurrectionhongroise. Supplémentau, n. 20 de Socialisme ou Barbarie, 1956/1957. Disponível em: <http://archivesautonomies.org/IMG/pdf/soub/SouB-insurrection%20hongroise.pdf>. Acesso em: 07 ago. 2017. 218 INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, Enragéset situationniste sdans le mouvement des occupations. Paris: Gallimard, 1998; SOLIDARITY. Paris: maio de 68. São Paulo: Conrad, 2008. 219 INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Section italienne de l’Internationale Situationniste. Écrits complets (1969-1972). Paris: Contre-Moule, 1988; BASCETTA, Marco. Itália, 1960-1981: un laboratorio político de la lucha de classes en la metrópole capitalista. In: NEGRI, Antonio. Los libros de la autonomia obrera. Madrid: Akal, 2004. 220 SANGUINETTI, Gianfranco. Véridiquerapport sur les dernières chances de sauver le capitalisme en Italie [1975]. Paris: Champ Libre, 1976; TARÌ, Marcello. Um piano nas barricadas: autonomia operária (1973-1979). Lisboa: Edições Antipáticas, 2013. 221 FERREIRA, António. A queda do fascismo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1974; SEMPRUN, Jaime. La guerre socialeau Portugal. Paris: Champ Libre, 1975; MAILER, Phil. A revolução impossível? Porto: Afrontamento, 1978. 222 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo; Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo; Comentários sobre A sociedade do espetáculo [1967, 1979, 1988]. Rio de Janeiro: Contraponto,1997, p. 81. 223 Ibidem, p. 64. 224 Aliança “antifascista” composta por socialistas, comunistas (stalinistas) e republicanos. 225 Organização próxima do trotskismo e que, junto à Esquerda Comunista dirigida por AndreuNin (que, em junho de 1937, teria o mesmo destino do trotskista russo Serguei Kirov, assassinado a mando de Stalin dois anos antes), seriam as principais vítimas do Partido Comunista Espanhol (PCE) e do Partido Socialista Unificado da Catalunha (PSUC), que congregavam socialistas e comunistas sob a hegemonia dos stalinistas. 226 WAGNER, Helmut. L’anarchismeet la révolutionespagnole. International Council Correspondence, n. 5/6, 1937. Disponível em: <https://bataillesocialiste.wordpress.com/1937-04-lanarchisme-et-la-revolution-espagnole-wagner/>. Acesso em: 02 ago. 2017. p. 212. 227 1997, p. 64. 228 Ibidem, p. 63. 229 1997, p. 64. 230 Ibidem, p. 65. 231 MAKHAÏSKI, Jan Waclav. A ciência socialista, nova religião dos intelectuais [1905]. In: TRAGTENBERG, Maurício (Org.). Marxismo heterodoxo (Gorter/Makhaïski/Bordiga). São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 96-109. 232 1997, p. 65. 233 Ebert (1871-1925), dirigente conservador, da ala revisionista do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), se tornaria o primeiro presidente republicano da Alemanha, entre 1919 e 1925. 234 1997, p. 66. Grifo do original. 235 Ibidem, p. 67. 236 Idem. 237 1997, p. 68. Grifo do original. 238 Ibidem, p. 69. 239 De acordo com Richard Gombin, tal corrente representa uma “alternativa radical ao marxismo-leninismo”, arraigada tanto em um “acordo geral sobre a realidade revolucionária central, que é a atividade independente dos trabalhadores na sua lutacotidiana”, como em uma prática que prioriza a “autonomia das lutas” e a “rejeição instintiva de todas as direções e de todas as hierarquias, ainda que revolucionárias” (1972, p. 25-26). Nas palavras de Maurício Tragtenberg, “esquerdistas eram [...] aqueles que recusavam a luta parlamentar trocando-a pela ação direta da massa e colocavam dúvidas acerca do papel ‘dirigente’ do Partido em relação à classe operária” (1981, p. 14). 240 1997, p. 69. 241 Ibidem, p. 78. 242 Ibidem, p. 71. Grifo do original. 243 Ibidem, p. 77. 244 Idem. 245 Debord refere-se à crise da IV Internacional que, a partir da década de 1960, ramifica-se em diversas tendências, como o mandelismo, o pablismo, o morenismo e o lambertismo, inspiradas, respectivamente, pelas teses dos trotskistas Ernest Mandel (1923-95), Michel Pablo (1911-96), Nahual Moreno (1924-87) e Pierre Lambert (1920-2008). 246 1997, p. 79. 247 1997, p. 80-81. Grifos do original. 248 IS, 1967/1997, p. 537. Tradução livre. 249 AUTHIER, Denis. A esquerda alemã (1918-1920). “Doença infantil” ou revolução? Porto: Afrontamento, 1975. 250 GORTER, Herman. Carta aberta ao companheiro Lênin [1920]. In: TRAGTENBERG, Maurício (Org.). Marxismo heterodoxo (Gorter/Makhaïski/Bordiga). São Paulo: Brasiliense, 1981. 251 1920/1988, p. 25. 252 Referência a JosipBroz Tito (1892-1980), líder da Liga dos Comunistas da Iugoslávia. 253 Referência a Mao Tsé-Tung (1893-1976), chefe do Partido Comunista Chinês. 254 Referência a Ahmed Ben Bella (1916-2012), líder da Frente de Libertação Nacional da Argélia. 255 Referência a Gamal Abdel Nasser (1918-1970), líder do Movimento dos Oficiais Livres [do Egito]. 256 IS, 1967/1997, p. 537. Tradução livre. 257 RIZZI, Bruno. Il collettivismo burocratico. Imola: Galeati, 1967. 258 1997, p. 81. Grifos do original. 259 Idem. 260 Idem. 261 1966. 262 GOSTER, 1977, p. 152-217. 263 1982, p. 18. 264 1997, p. 82. Grifos do original. 265 Idem. Grifos do original. 266 2004, p. 55. (Tradução livre). 267 1997, p. 83. 268 Ibidem, p. 141, 269 IS, 1963/1997, p. 328. (Tradução livre). 270 1997, p. 84. 271 Ibidem. Grifos do original. 272 1997, p. 85. 273 Idem. Grifos do original. 274 1997, p. 81. 275 Os situacionistas compreendem tais unidades em sentido amplo, para além das unidades de produção fabris, extensiva aos setores da atividade terciária, bem como do trabalho intelectual e dos chamados “serviços”. Da Internacional Situacionista, consultar sobretudo os artigos do 12° (e último) número de sua Revista, de setembro de 1969. 276 IS, 1969/1997, p. 631. Tradução livre. Grifo nosso. 277 MATTICK, Paul. Biografia de Anton Pannekoek (1873-1960). 1960. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/mattick/1960/mes/pannekoek.htm>. Acesso em: 21 ago. 2017; BRICIANER, Serge. Pannekoeket les conseilsouvriers. Paris: EDI, 1969. 278 1997, p. 81. 279 IS, 1969/1998, p. 152-153. Tradução livre. Grifo nosso. 280 1997, p. 141. Grifos do original. 281 Idem. 282 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016. p. 110. 283 2016. 284 BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1972. p. 12. 285 2005, p. 151-152. 286 1972. 287 BRAUDEL, 1972, p. 13. 288 Ibidem, p. 14. 289 1972. 290 WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Unesp, 2008. 291 Idem. 292 1972. 293 VOVELLE, Michel. A história e a longa duração. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 98. 294 2014. 295 LE GOFF, Jacques. A história deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Unesp, 2014. p. 12. 296 2014, p. 132. 297 1972, p. 18. 298 VEYNE, Paul. O inventário das diferenças. História e sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 9. 299 2016. 300 LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: 34, 2010. 301 2015. 302 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016, p. 92. Grifos do original. 303 Ibidem, p. 89. 304 THOMPSON, 1998, p. 63. 305 1986. 306 CHÂTELET, 2009, p. 15. 307 2016, p. 93. Grifos do original. 308 LÉVY, 2010, p. 118. 309 2016. 310 SLOTERDIJK, 1999, p. 32. 311 2016. 312 Essa submissão patriarcal empreendida pela ordem feudal é chacoalhada pelas revoluções burguesas, mas Debord (2016) destaca as revoltas milenaristas que já não usam a linguagem religiosa, possuem uma tendência revolucionária moderna, mas não adquiriram a plena consciência histórica. 3131976. 314 DEBORD, 2016, p. 98. Grifos do original. 315 Terminologia de Jesus Ranieri na apresentação dos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx (2004). 316 DEBORD, 2016, p. 99. Grifos do original. 317 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 80. Grifos do original. 318 1986. 319 1968. 320 DEBORD, 2016, p. 92. 321 THOMPSON, 1998, p. 64. 322 Ibidem, p. 64-65. 323 DEBORD, 2016, p.103. 324 Ibidem, p. 103. 325 Ibidem, p. 92. 326 1999, p. 32. 327 MARX, 2004, p. 12. 328 EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp, 2003. p. 15. 329 2003. 330 1995, p. 63-64. 331 MARX, 2004, p. 84. 332 2003, p. 15. 333 Ibidem, p. 23. 334 Idem. 335 Idem. 336 1995. 337 MARX, 2004. 338 SLOTERDIJK, 1999, p. 21. 339 MARX, 2004. 340 THOMPSON, 1998, p. 65. 341 LÉVY, 2010. 342 2016. 343 TIBURI, Marcia. Chapados: sobre o uso abusivo da linguagem. Revista Cult, São Paulo, p. 11, abril 2017. 344 Idem. 345 DEBORD, 2016, p. 89. Grifos do original. 346 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2007, p. 27. 347 2016, p. 103. 348 Ibidem, p. 104. Grifos do original. 349 DEBORD, 2016, p. 104. Grifos do original. 350 2016 351 BAUMAN, 1999. 352 DEBORD, 2016, p. 108. Grifos do original. 353 Ibidem, p. 106. Grifos do original. 354 Ibidem, p. 91. 355 Ibidem, p. 87. 356 Ibidem, p. 110. 357 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 87. 358 SHAKESPEARE, William. Henrique IV. E-books Brasil: RidendoCastigat Mores, 2001. p. 145-146. 359 WHITROW, G. J. 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Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 217. 386 1997, p. 97. 387 BURKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo: Cia. das Letras, 1981. p. 394. 388 DEBORD, 1997, p. 97. 389 1860. 390 391 1997, p. 123. 392 DEBORD, 1997, p. 97. 393 AQUINO, 2006, p. 58. 394 DEBORD, 1997, p. 97. 395 AQUINO, 2006, p. 58. 396 Sd, p. 23. 397 TOLEDO, Plinio Fernandes. A astúcia da dialética: o desvio em Guy Debord. São Paulo: LiberArs, 2015. p. 212. 398 AQUINO, 2006, p. 61. Grifos do original. 399 DEBORD, 1997, p. 100. 400 ARANTES, 1891, p. 160. 401 DEBORD, 1997, p. 99. Grifos do original. 402 Ibidem, p. 100. 403 Idem. 404 Sd. p. 26. 405 1997, p. 88. 406 Ibidem, p. 100. Grifos do original. 407 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 1. ed. 5. reimpr. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p. 25. 408 COELHO, Cláudio N. P. Em torno do conceito da sociedade do espetáculo. In: COELHO, Cláudio N. P.; CASTRO, Valdir J. de (Orgs.). Comunicação e sociedade do espetáculo. São Paulo: Paulus, 2006. p. 13-30, p. 14. 409 DEBORD, 2004, p. 108. 410 Ibidem, p. 103. 411 Idem. 412 MARX, K. Miséria da filosofia. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Global, 1985. p. 58. 413 DEBORD, 2004, p. 105 414 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 105. 415 Ibidem, p. 19. 416 DEBORD, 2004, p. 47. 417 Ibidem, p. 24. 418 DEBORD, 2004, p. 20-21. 419 SILVA, Juremir M. da. Depois do espetáculo: reflexões sobre a tese 4 de Guy Debord. In: GUTFREIND, Cristiane F.; SILVA, Juremir M. da. Guy Debord: antes e depois do espetáculo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. p. 31-42, p. 33. 420 DEBORD, 2004, p. 104. 421 Ibidem, p. 103. 422 DEBORD, 2004, p. 104. 423 Idem. 424 Idem. 425 2006, p. 16. 426 1857. 427 MARX, 1985, p. 58. 428 MARX, 2011, p. 1.069. 429 DEBORD, 2004, p. 107. 430 Ibidem, p. 109. 431 2011, p. 720-721. 432 1960. 433 COELHO, 2006, p. 17. 434 2004, p. 22. 435 LUKÁCS, 2003, p. 203-204. 436 Ibidem, p. 205. 437 DEBORD, 2004, p. 108. 438 LUKÁCS, György. História e consciência de classe. Ensaios sobre dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 206. 439 2006, p. 16. 440 2004, p. 108. 441 LUKÁCS, György. História e consciência de classe. Ensaios sobre dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 1997. p. 14. 442 2001. 443 1997. 444 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 18. 445 HARVEY, David. Cidades rebeldes. Brasil: Martins, 2014. 446 DEBORD, 1997, p. 28. 447 COELHO, Cláudio N. P. Comunicação e política na sociedade do espetáculo: o conceito de poder espetacular. In: Anais do II Seminário de Comunicação e Política na Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2012. p. 4. 448 1997, p. 15. 449 DEBORD, 1997, p. 13. 450 Idem. 451 Ibidem, p. 112. 452 2003. 453 DEBORD, 1997, p. 114. 454 HARVEY, 2014. 455 2013. 456 2014. 457 1970. 458 1974. 459 1968. 460 2010, p. 179-191. 461 LEFEBVRE, 2001, p. 7. 462 Ibidem, p. 9-10. 463 Ibidem, p. 12. 464 Ibidem, p. 16. 465 ROUANET, Sérgio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? Revista USP, v. 1, n. 15, São Paulo, p. 49-75, set/out./nov. 1992, p. 50. 466 BAUDELAIRE, 1997, p. 21. 467 2006, p. 11-12. 468 DEBORD, 1997, p. 30. 469 COUTINHO, Carlos Nelson. O leitor de Gramsci. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011. 470 MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria da comunicação: ideias, conceitos e métodos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 73. 471 MARTINO, 2013, p. 69. 472 MARX, Karl; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 81. 473 SODRÉ, Muniz. Sobre a episteme comunicacional. Revista Matrizes, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 15-26, 2007. 474 FERRARA, Lucrécia. O espaço público como meio comunicativo. Jundiaí: Editora in House, 2013. Coletânea “A cidade e a imagem”. 475 Ibidem, p. 44. 476 DEBORD, 1997, p. 117. 477 Teoria da deriva. In: Internacional Situacionista. Paris: Fayard, 1958. p. 2. 478 DEBORD, Apud LAWE, 1952. 479 DEBORD, Guy. Teoria da deriva. In: Internacional Situacionista. Paris: Fayard, 1958. p. 3. 480 SODRÉ, Muniz. Sobre a episteme comunicacional. Revista Matrizes, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 15-26, 2007. 481 1997, p. 119. 482 WERLE, Marco Aurélio. A questão do fim da arte em Hegel. São Paulo: Hedra, 2011. p. 108. 483 Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), filósofo nascido na Alemanha, foi um dos criadores do idealismo alemão, sendo considerado também como um dos fundadores do nacionalismo alemão e sua obra considerada de suma importância para a formulação de uma concepção romântica da arte. 484 Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) foi um dos maiores representantes do romantismo e suas ideias sobre a obra de arte possuem especial relevo dentro do sistema idealista transcendental. A filosofia de Schelling constitui um elo importante na passagem do idealismo religioso de Kant e de Fichte para o idealismo objetivo de Hegel. Georg Wilhelm e Friedrich Hegel (1770-1831), assim como Ficthe e Schelling, sofreram a influência do idealismo de Kant. 485 WERLE, 2011, p. 21. 486 JAPPE, Anselm. Guy Debord. Lisboa: Antígona, 2002. p. 92. 487 HEGEL. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 84. 488 1997, p. 122. 489 JAPPE, 2002, p. 92. 490 DEBORD, 1997, p. 120. 491 Ibidem, p. 121. Grifos do original. 492 ROSA, Márcia Eliane. Jornalismo cultural para além do espetáculo. Líbero, São Paulo, v. 16, n. 31, p. 69-76, jan./jun. 2013. P. 72. 493 DEBORD, 1997, p. 121. 494 Idem. Grifos do original. 495 Ibidem, p. 122. 496 1997, p. 123. 497 Desvio da frase “O botão desaparece no desabrochar da flor” – o original de Hegel, no prefácio da Fenomenologia do espírito. 498 1997, p. 123. 499 1994, p. 29. 500 AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza: Eduece, 2006b. p. 153. 501 1997, p. 123. 502 RICHTER, Hans. Dadá: arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 9. 503 ADES, Dawn. Dadá e o surreal. In: STANGOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p. 192. 504 ADES, 2000, p. 192. 505 DEBORD, 1997, p. 125. 506 ROSA, 2013, p. 71. 507 COELHO, Cláudio Novaes Pinto. Cultura, arte e comunicação em Guy Debord e Cildo Meireles. Líbero, São Paulo, v. 17, n. 33, p. 75-86, jan./jun. 2014. p. 76. 508 1997, p. 124. 509 FREDERICO, Celso. Debord: do espetáculo ao simulacro. Matrizes, São Paulo, v. 4 , n. 1, p. 179-191, jul. 2010. p. 182. 510 BRESSER-PEREIRA, Luis Carlos; MOTTA, Fernando C. Prestes. A organização burocrática. In: MOTTA, Fernando C. Prestes. Introdução à organização burocrática. São Paulo: Thomson, 2004. p. 2-3. 511 1997, p. 126. 512 Ibidem, p.127. Grifos do original. 513 JAPPE, Anselm. O fim da arte segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Krisis, 1995. Disponível em: <http://www.krisis.org/1995/sic-transitgloria-artis-portugues>. Acesso em: 10 out. 2017. 514 1961. 515 1997, p. 129. 516 Idem. 517 Ibidem, p. 130. 518 Idem. Grifos do original. 519 Ibidem, p.131. Grifos do original. 520 JAPPE, Anselm. O passado e o Presente da Teoria (de Debord). Krisis, 1999. Disponível em: <http://www.krisis.org/1999/o-passado-e-o-presenteda-teoria-de-debord>. Acesso em: 10 out. 2017. 521 1953. 522 1997, p. 132. 523 BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos - O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 132. 524 DEBORD, 1997, p. 132. 525 Ibidem, p. 133. 526 Idem. 527 Ibidem, p. 134. 528 Isadore Lucien Ducasse, Conde de Lautréamont, foi um poeta franco-urugaio considerado o precursor do Surrealismo. Contos de Maldoror – em que utiliza as máximas de Pascal e Vauvernague – causou grande impacto em Andre Breton e foi até estudado por Raoul Vanegein (IS). 529 1997, p. 134. 530 DEBORD, 1997, p. 135 531 1997, p. 135. Grifos do original. 532 COELHO, 2014, p. 76. 533 WERLE, 2011, p. 103. 534 2002, p. 82. 535 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 17. 536 Ibidem, p. 14. 537 MARX, 2013, p. 153. 538 DEBORD, 1997, p. 19. 539 COELHO, Cláudio Novaes Pinto. Em torno do conceito de sociedade do espetáculo. In: COELHO, C. N. P.; CASTRO, V. J. de (Orgs.). Comunicação e sociedade do espetáculo. São Paulo: Paulus, 2006. p. 15. 540 MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão popular, 2009. p. 41. 541 LUKÁCS, Görgy. História e consciência de classe. Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 105. 542 DEBORD, 1997, p. 28. 543 MARX, K. O capital: crítica da economia política: Livro primeiro: o processo de produção do capital. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 94. 544 DEBORD, 1997, p. 14. 545 Ibidem, p. 21. 546 Ibidem, p. 22. 547 Ibidem, p. 14. 548 Ibidem, p. 13. 549 Ibidem, p. 14. 550 MARX; ENGELS, 2009, p. 32. 551 DEBORD, 1997, p. 137. 552 AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza: Eduece/Unifor, 2006. p. 71. Destaque no original. 553 DEBORD, 1997, p. 13. 554 Ibidem, p. 24. 555 ROSA, Marcia Eliane. Jornalismo cultural para além do espetáculo. Líbero, São Paulo, Faculdade Cásper Líbero, n. 31, p. 69-76 – jan./jun. 2013. p. 74. 556 PATIAS, Jaime Carlos. Os conceitos de Guy Debord sobre a cultura na sociedade do espetáculo. In: COELHO, C. N. P.; CASTRO, V. J. de (Orgs.). Cultura, comunicação e sociedade do espetáculo. São Paulo: Paulus, 2016. p. 57. 557 DEBORD, 1997, p. 50. 558 Ibidem, p. 120. 559 Ibidem, p. 121. 560 AQUINO, 2006, p. 186. Grifos do original. 561 DEBORD, 1997, p. 119. 562 DEBORD, 1997, p. 121. 563 DEBORD, 2003a, p. 43-44. 564 DEBORD, 1997, p. 120. 565 Ibidem, p. 126. 566 Ibidem, p. 120. 567 Ibidem, p. 135. 568 JAPPE, Anselm. Guy Debord. Lisboa: Antígona, 2008. p. 92. Destaque no original. 569 AQUINO, 2006, p. 137. Destaque no original. 570 SILVA, Gilberto da. Debord e a negação real da cultura. In: MORAES, A. L. C.; COELHO, C. N. P. (Orgs.). Cultura da imagem e sociedade do espetáculo. São Paulo: UNI, 2016. p. 144-145. 571 1997, p. 83. 572 PINHEIRO, Milton; MARTORANO, Luciano Cavini (Orgs.). Teoria e prática dos conselhos operários. São Paulo: Expressão popular, 2013. 573 DEBORD, 1997, p. 83. 574 Ibidem, p. 122. Destaques no original. 575 DEBORD, 1997, p. 122. 576 AQUINO, 2006, p. 130-131. 577 Ibidem, p. 125. 578 SILVA, 2016, p. 144. 579 DEBORD, 2003a, p. 54. 580 DEBORD, 1997, p. 125. 581 DEBORD, 2003b, p. 72. 582 GOMBIN, Richard. As origens do esquerdismo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1972. p. 92-94. 583 DEBORD, 1997, p. 134. 584 2016, p. 128. 585 DEBORD, 1997, p. 132. 586 Ibidem, p. 130. Destaque no original. 587 Ibidem, p. 16. 588 HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria crítica. Os Pensadores, São Paulo, v. XLVII, p. 125-162, abr. 1975. p. 125-162. 589 MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 259-260. 590 KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 86. 591 DEBORD, 1997, p. 132. 592 TOLEDO, Plínio Fernandes. A astúcia da dialética: o desvio em Guy Debord. São Paulo: LiberArs, 2015. p. 86. 593 Ibidem, p. 34. 594 DEBORD, 1997, p. 135. 595 Ibidem, p. 133. 596 FREDERICO, Celso. Ensaios sobre marxismo e cultura. Rio de Janeiro: Mórula, 2016. p. 151. Destaque no original. 597 DEBORD, 1997, p. 134. 598 Idem. 599 Idem. 600 Idem. 601 KONDER, 1986, p. 56. 602 AQUINO, 2006, p. 174. Destaques no original. 603 DEBORD, 1997, p. 13. 604 2011, p. 57. Destaque no original. 605 AQUINO, 2006, p. 179. 606 Ibidem, p. 175. Destaques no original. 607 DEBORD, 1997, p. 50. 608 Ibidem, p. 134. 609 1997, p. 137. 610 Referência ao prefácio de Princípios da Filosofia do Direito, de Hegel. 611 1984, p. 109. 612 Ibidem, p. 107-108. 613 Ibidem, p. 109. 614 Ibidem, p. 107. Grifos do original. 615 DEBORD, 1997, p. 139. 616 Idem. 617 Idem. 618 DEBORD, 1997. 619 1997, p. 137. 620 Idem. Grifos do original. 621 Ibidem, p. 138. 622 Idem. 623 DEBORD, 1997, p. 139. 624 Ibidem, p. 140. 625 Idem. Grifos do original. 626 GABEL, Joseph. A falsa consciência. 1. ed. Lisboa: Guimaraes e Ca Editores, 1979. p. 122. 627 GABEL, 1979, p. 124. 628 O conceito de Indústria Cultural foi trabalhado no livro Dialética do esclarecimento, escrito por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, pensadores alemães da Escola de Frankfurt. 629 BAUDRILLARD, Jean. O sistema de objetos. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 1968. p. 174. 630 Idem. 631 Ibidem, p. 187. 632 Ibidem, p. 182. 633 1997, p. 140. 634 1995, p. 70. 635 ADORNO, Theodor. Tempo livre. In: ADORNO, Theodor. Palavras e sinais. Modelos Críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 70. 636 Idem. 637 Ibidem, p. 72. 638 Ibidem, p. 73. 639 Ibidem, p. 74. 640 1998, p. 13. 641 COHN, 1998, p. 13. 642 Ibidem, p. 13-14. 643 1997, p. 13. 644 1998, p. 15. 645 Ibidem, p. 15. 646 2015, p. 71. 647 Ibidem, p. 77. 648 2014, p. 100. 649 Ibidem, p. 98. Grifos do original. 650 Ibidem, p. 103. 651 Ibidem, p. 86. 652 1997, p. 141. 653 DEBORD, 1997, p. 141. 654 1984, p. 111. 655 2011, p. 60. 656 COELHO, 2014, p. 77 657 Ibidem, p. 80. 658 DEBORD, 1997, p. 141 659 Ibidem, p. 18. 660 Ibidem, p. 83.