Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu

"Nuno Fernandes de Ataíde, "o que nunca esta quedo" - De alcaide de Alvor a capitão e governador de Safim

2017, Anais do Município de Faro

Num ano em que passam exactamente 580 anos sobre um dos episó-dios mais negros da História da Expansão Portuguesa, o célebre desastre de Tânger de 1437, torna-se pertinente recordarmos que a gesta marroquina também foi feita de grandes feitos de armas, façanhas militares protagonizadas por capitães como Nuno Fernandes de Ataíde, "o que nunca está quedo" , um dos mais valorosos capitães da História da Expansão Portuguesa em Marrocos. É nesse sentido que o presente artigo pretende apresentar, ainda que em traços gerais, o percurso deste insigne cavaleiro, desde a sua juventude até 1513, ano em que lhe foi atribuída a mercê definitiva da capitania e governo da cidade de Safim. Por outras palavras, os resultados preliminares da dissertação para doutoramento que nos encontramos a preparar para apresentar à Universidade de Huelva e que tem por título "Nuno Fernandes de Ataíde, o que nunca está quedo - A acção do capitão de Safim no apogeu da presença militar portuguesa em Marrocos".

NUNO FERNANDES DE ATAÍDE, “O QUE NUNCA ESTÁ QUEDO” DE ALCAIDE DE ALVOR A CAPITÃO E GOVERNADOR DE SAFIM Fernando Pessanha Arquivo Histórico Municipal de Vila Real de Santo António Num ano em que passam exactamente 580 anos sobre um dos episódios mais negros da História da Expansão Portuguesa, o célebre desastre de Tânger de 1437, torna-se pertinente recordarmos que a gesta marroquina também foi feita de grandes feitos de armas, façanhas militares protagonizadas por capitães como Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo”(1), um dos mais valorosos capitães da História da Expansão Portuguesa em Marrocos. É nesse sentido que o presente artigo pretende apresentar, ainda que em traços gerais, o percurso deste insigne cavaleiro, desde a sua juventude até 1513, ano em que lhe foi atribuída a mercê definitiva da capitania e governo da cidade de Safim. Por outras palavras, os resultados preliminares da dissertação para doutoramento que nos encontramos a preparar para apresentar à Universidade de Huelva e que tem por título “Nuno Fernandes de Ataíde, o que nunca está quedo – A acção do capitão de Safim no apogeu da presença militar portuguesa em Marrocos”(2). Para tal, torna-se imprescindível evidenciar, no presente artigo, o contexto social e 1 | Diz-nos Damião de Góis que Nuno Fernandes de Ataíde era tão astuto e incansável nos negócios da guerra que tanto cristãos como os mouros lhe chamavam “o que nunca está quedo”. Ver Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, IV, Capítulo VI, p.455. 2 | O objecto de estudo desta dissertação prende-se, desde logo, com a análise da acção de Nuno Fernandes de Ataíde nos Algarves Dalém, entre 1510, ano em que foi nomeado capitão de Safim, e 1516, ano da sua morte. Por outras palavras, o período que corresponde ao apogeu da presença militar portuguesa em Marrocos, quando uma série de campanhas vitoriosas levou as armas lusas até ao Atlas. Anais do Município de Faro 2017 43 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha familiar de Nuno Fernandes, assim como a conjuntura em África aquando da sua chegada e a sua acção na capitania de Safim até à consolidação do seu poder. Antes de mais, convém referir que a escolha do tema para a supracitada dissertação teve por motivo o contacto que tivemos com este personagem aquando da investigação para a dissertação para mestrado apresentada à Universidade do Algarve “As Guarnições Militares nas Praças Portuguesas da Região da Duquela, no Algarve Dalém-mar”. Foi com alguma estupefacção que, na altura, constatámos não existir qualquer trabalho exclusivamente dedicado à acção desde cavaleiro do Algarve, apesar da abundante documentação que podemos encontrar no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, nomeadamente, em colecções como Chancelaria de D. Manuel I, Corpo Cronológico ou Cartas dos Governadores de África, já para não falar das crónicas quinhentistas como Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, de Damião de Góis, Da Vida e Feitos de El-Rei D. Manuel, de D. Jerónimo Osório, ou Anais de Arzila, de Bernardo Rodrigues. É certo que, logo em 1930, Durval Pires de Lima publicou História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506 – 1542), obra do maior interesse para o nosso objecto de estudo, na medida em que o autor dedica todo o capítulo terceiro à capitania de Nuno Fernandes. Do mesmo modo, também aqui devemos destacar “Os Portugueses em Marrocos no Tempo de D. Manuel”, de David Lopes, que podemos encontrar no 3º volume da História de Portugal dirigida por Damião Peres e publicada em 1932. Uma obra que, não obstante tratar a presença de Portugal na generalidade das praças norte-africanas até à morte do “Venturoso”, destaca a figura de Nuno Fernandes e a importância da sua acção na política expansionista de Portugal em Marrocos. Porém, e à excepção de artigos como “Nuno Fernandes de Ataíde et l’intervention portugaise à l’interieur des terres du Maroc”, de André Teixeira, ou de artigos por nós publicados nos órgãos de comunicação regionais por altura dos 500 anos do ataque português a Marraquexe liderado por Nuno Fernandes(3), verifica-se não existir, até ao momento, qualquer publicação que aborde em profundidade a acção militar deste cavaleiro algarvio. 3 | Fernando Pessanha, “Nuno Fernandes de Ataíde – Alcaide-mor de Alvor e capitão de Safim”, in Jornal do Baixo Guadiana, Nº178, Abril de 2015, p.21. Do mesmo autor ver também “Os 500 anos do ataque português a Marraquexe e a acção do capitão Nuno Fernandes de Ataíde”, in Jornal do Algarve, Nº3030, 23 de Abril de 2015, p.21; “Nuno Fernandes de Ataíde, Alcaide-mor de Alvor e Capitão de Safim, comandou o ataque português a Marraquexe, há exactamente 500 anos”, in Jornal Barlavento, Nº1955, 23 de Abril de 2015, p.12. 44 Anais do Município de Faro 2017 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha Contexto familiar e social de Nuno Fernandes de Ataíde Analisar a acção de um indivíduo como Nuno Fernandes de Ataíde não é possível sem a apresentação do seu contexto familiar e social. Para tal, procurámos recuar no tempo e, ainda que os condicionalismos de um artigo desta natureza não nos permita apresentar um estudo genealógico aprofundado, importa sublinhar que os Ataídes cresceram em honra e proveito à sombra dos primeiros monarcas de Avis. É, portanto, nesse sentido que os encontramos a combater em Aljubarrota(4) e em Ceuta(5), ao lado de D. João I. Certamente que o prestígio que os Ataídes alcançaram desde inícios do séc. XV se deve ao facto de neles ter recaído o governo da casa dos infantes. Vasco Fernandes de Ataíde, por exemplo, exerceu o cargo de governador da casa do infante D. Henrique até à sua morte, aquando da conquista de Ceuta(6). Álvaro Gonçalves de Ataíde, seu irmão, exerceu as funções de governador da casa do infante D. Pedro(7). Ora, se seguirmos a Crónica da Tomada de Ceuta ou as Cronicas Del Rey Dom João o de Gloriosa memória, o I, rapidamente nos apercebemos que para além destes “cavalleiros, que com el Rey forão naquela expediçao”, encontramos outro Ataíde. Trata-se de João de Ataíde(8), camareiro-mor do infante D. Pedro(9), armado cavaleiro após a 4 | É o caso de Nuno Gonçalves de Ataíde que, em 1385, combateu na batalha de Aljubarrota, integrado na companhia da Madressilva. Ver João de Sousa Fonseca (Dir), Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. III, p.617. 5 | É o caso de Vasco Fernandes de Ataíde, que obrou prodígios de valor na tomada de Ceuta, onde veio a perecer. Acompanhou o infante D. Henrique e o príncipe D. Duarte na sortida e desembarque de 21 de Agosto de 1415, acabando por ser o cavaleiro que faleceu quando foi em socorro do infante, quando este se encontrava a combater no decurso do segundo embate. Pagou com a vida o feito de armas e foi uma das vítimas mais ilustres da conquista da praça africana. Ver Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Capítulo LXXXIV, p.249. 6 | Duarte Nunes de Leão, Cronicas Del Rey Dom João o de Gloriosa memória, o I, Capítulo LXXXVI, p.415 e Capítulo LXXXVII, p.423. 7 | Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Capítulo L, p.178; Duarte Nunes de Leão, Cronicas Del Rey Dom João o de Gloriosa memória, o I, Capítulo LXXXVII, p.423; Monumenta Henricina, vol. VIII, doc.221, p.340, nota 10. 8 | Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Capítulo L, p.178; Duarte Nunes de Leão, Cronicas Del Rey Dom João o de Gloriosa memória, o I, Capítulo LXXXVII, p.423. 9 | António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Tomo II, p.79. Anais do Município de Faro 2017 45 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha conquista da cidade(10) e futuro avô de Nuno Fernandes de Ataíde(11). De referir que a relação deste avô de Nuno Fernandes com o Norte de África não se resumiu à sua participação na conquista de Ceuta. Voltámos a encontrar João de Ataíde em Ceuta, em 1425(12) e em 1440, numa expedição chefiada por D. Fernando de Castro, governador da casa do infante D. Henrique, e que tinha como objectivo proceder à devolução de Ceuta por troca com D. Fernando(13), o que acabou por não vir a acontecer. O pai de Nuno Fernandes foi Álvaro de Ataíde, senhor de Penacova. Depois da morte do infante D. Henrique, Álvaro de Ataíde recebeu os direitos e rendas da Coroa em Alvor. Mais tarde, quando o rei D. João II procurou recuperar a saúde nas termas de Monchique, acabou por falecer na casa deste fidalgo, em 1495. Refira-se que Nuno Fernandes, que na altura era um jovem, esteve presente aquando do falecimento de D. João II, acompanhado pelo pai e por outras personalidades, como o bispo de Coimbra, o bispo de Tânger e o bispo do Algarve(14). Em 1496, D. Manuel determinou que, por falecimento de Álvaro de Ataíde, a guarda do cortijo e a alcaidaria da fortaleza para defesa da vila de Alvor fosse entregue a Nuno Fernandes de Ataíde: “E, por seu falecimento, ficaria a Nuno Fernandes de Ataíde, seu filho. E lhe dava a guarda do cortijo, além da alcaidaria da dita fortaleza, em qualquer tempo que acontecesse haver dele ser guardada”(15). A partir de 1497 começa a aparecer na documentação como fidalgo da Casa Real(16) e, com a morte do seu pai, D. Manuel doa-lhe a alcaidaria de Alvor, bem como o cortigo adstrito ao castelo, com as respectivas rendas e direitos 10 | Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Capítulo XCVI, p.277. 11 | António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Tomo X, p.743; Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Livro Primeiro, p.227, nota 4. 12 | Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, (coord. Filipe Themudo Barata), Livro II, Capítulo XIV, p.287. 13 | Monumenta Henricina, vol. VII, doc.143, pp.224-226. 14 | Segundo Rui de Pina, no momento em que o monarca faleceu, estavam presentes “Álvaro de Ataíde e Nuno Fernandes, seu filho”, para além de outras personalidades. Ver Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo LXXXI, p.152. Ver também Garcia de Resende, Crónica de D. João II, Capítulo CCXIII, p.153. 15 | A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 28, fl. 112v; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 32, fl. 113v. 16 | A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 41, fl. 110v; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 17, fl. 35; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 6, fl. 93; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 21, fl. 8. Anselmo Braamcamp Freire refere-o como moço fidalgo logo em 1484. Ver Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Livro Terceiro, p.148. 46 Anais do Município de Faro 2017 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha do termo. Já no ano de 1498 tinha integrado a comitiva portuguesa que acompanhou D. Manuel e a sua mulher, D. Isabel, no seu périplo por Castela e por Aragão(17). Em 1500, o “Venturoso” fê-lo membro do Conselho. Nestes anos, o seu património foi acrescentado com novos benefícios no Algarve. Com efeito, não são abundantes os documentos relativos à vida do alcaide de Alvor. Se excluirmos alguns documentos presentes na Chancelaria de D. Manuel I, só voltamos a encontrar Nuno Fernandes em 1509, como fronteiro a prestar serviço em Arzila. Aliás, um dos capítulos dos Anais de Arzila, de Bernardo Rodrigues, é relativo a uma entrada de Nuno Fernandes e que foi louvada pelo capitão daquela praça: “o conde de Borba: louvou muito este feito do Nuno Fernândez de Taide, por ser um dos maiores e milhores que em toda a Africa se fez, asi por serem os mouros cento e cincoenta de cavalo, como por sairem da vila a buscar e fazer o feito que fizérão”(18). A conjuntura em África antes da capitania de Nuno Fernandes Não seria cientificamente coerente abordarmos a ascensão de Nuno Fernandes de Ataíde à capitania de Safim sem antes fazermos a devida contextualização histórica, de modo a compreendermos em que circunstâncias o alcaide de Alvor tomou posse do governo desta praça de guerra. Para tal, devemos remontar à década de 80 do séc. XV, período em que D. João II procurou pôr em prática um ambicioso plano para intensificar a presença portuguesa em Marrocos e que Joaquim Veríssimo Serrão atribui ao “desejo de dominar política e comercialmente o Magrebe sem o recurso à força ostensiva”(19). De facto, o primeiro acordo conhecido entre Portugal e Safim remonta ao reinado de D. Afonso V, como foi referido na carta que D. João II enviou 17 | Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, I, Capítulo XXVI, p.28 18 | Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, Vol. I, Capítulo VI, p.31. Também o genealogista setecentista António Caetano de Sousa refere a presença de Nuno Fernandes em Arzila. Ver António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Tomo X, p.540. 19 | Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. II, p.109. Anais do Município de Faro 2017 47 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha a Amadux, o alcaide da cidade em 1488(20). Do mesmo modo, também D. João II impôs a soberania portuguesa aos habitantes mouros de Azamor, em 1486(21). É no seguimento desta política marroquina que, em 1497, D. Manuel estabelece um contrato de suserania com os habitantes de Meça(22), que recebia o tráfico transariano do ouro e dos escravos da Guiné(23). Grosso modo, são acordos em que estas cidades e vilas se comprometem a pagar tributos, conceder facilidades comerciais e permitir a construção de feitorias a troco de protecção. Por outras palavras, tentavam-se explorar as cobiçadas riquezas do sul marroquino através de uma política de intimidação(24). D. Manuel bem procurou manter estes protectorados sobre as cidades do sul, porém, a irregularidade no pagamento dos tributos e a actuação pouco correcta dos feitores portugueses dificultaram a fidelidade das populações locais para com a Coroa. É nesse sentido que, a pretexto de discórdias internas entre os líderes mouros da cidade, D. Manuel enviou para Safim Diogo de Azambuja, o construtor do castelo de São Jorge da Mina, na costa da Guiné, e capitão do Castelo-Real de Mogador, que então tinha 76 anos de idade. Este velho militar tinha sido incumbido de conquistar Safim pelas armas se necessário fosse, porém, e como humoristicamente observou Vergílio Correia, a conquista desta cidade deveu-se mais a um misto de “heroicidade e (…) velhacaria, com que os nossos guerreiros quinhentistas procediam”(25). Em 13 de Dezembro de 1507, Diogo de Azambuja referia ao rei que os trabalhos na fortaleza de Safim estavam a correr bem e dava-lhe conta da sua convicção “de poer a bandeyra em Marrocos” (Marraquexe), esperando que 20 | Carta de D. João II aos habitantes de Safim, em 16 de Outubro de 1488, in Les Sources Inédites de l’Histoire du Maroc, Tomo I, Première Série, doc. III, pp.25. Ver também Durval Pires de Lima, História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506 – 1542), p.15; David Lopes, “Os Portugueses em Marrocos no Tempo de D. Manuel”, in História de Portugal, vol. III, p.463. 21 | “No ano de mil e quatrocentos e oitenta e seis a cidade de Azamor do reino de Fez em África, temendo ser de el-rei tomada e conquistada pela força, para escusarem sua perdição e cativeiro, com acordo e procuração de todos os governantes e moradores dela, enviaram a el-rei, estando em Santarém, sua obediência e o receberam por seu senhor”. Ver Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XXI, p.53. Também Garcia de Resende segue de perto a crónica de Rui de Pina. Ver Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânia, Capítulo LX, p.56. 22 | Carta de D. Manuel I aos moradores de Meça, em 11 de Janeiro de 1497, in Les Sources Inédites de l’Histoire du Maroc, Tomo I, Première Série, doc. IV, pp.31-35. Sobre a presença portuguesa em Meça veja-se David Lopes, “Os Portugueses em Marrocos no Tempo de D. Manuel”, in História de Portugal, vol. III, pp.542-544; Jorge Correia, Implantação da Cidade Portuguesa no Norte de África, pp.321-323. 23 | Cf. Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo De Situ Orbis, pp.71-77. Ver também Vitorino Magalhães Godinho, História Económica e Social da Expansão Portuguesa, pp.118-126. 24 | Note-se que, em Agosto de 1487, pouco antes de Azamor se tornar tributária de D. João II, voltaram os portugueses a Anafé (actual Casablanca), onde mataram novecentos inimigos e cativaram 400 pessoas, que trouxeram para o reino. Ver Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XXVII, pp.58-59. 25 | Vergílio Correia, Lugares Dalém, Azamor, Mazagão, Safim, p.75. 48 Anais do Município de Faro 2017 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha um filho de D. Manuel viesse ali a ser rei(26). Com a conquista de Safim, no ano seguinte(27), D. Manuel nomeou Diogo de Azambuja capitão da cidade, para além de capitão do castelo de Aguz e do Castelo-Real de Mogador. O velho guerreiro acabou por regressar a Lisboa em 1510, queixando-se que “o rei o achara môço para conquistar Cafim e velho para a defender”(28), sendo substituído por Nunes Fernandes de Ataíde. A chegada de Nuno Fernandes a Safim Corria o ano 1510 quando D. Manuel nomeou Nuno Fernandes como capitão de Safim(29). Para tal, em muito terá contribuído a proximidade da família à dinastia de Avis e os serviços por eles prestados no Norte de África. Serviços que começaram com a participação do seu avô João de Ataíde na conquista de Ceuta, onde foi armado cavaleiro(30), e que continuaram com o seu tio e com o seu pai numa expedição até às portas de Tânger(31). Aliás, de acordo com o que conseguimos apurar, o pai de Nuno Fernandes, Álvaro de Ataíde, encontrava-se a servir em Ceuta, em 1454, juntamente com sete escudeiros, seis homens de pé e seis besteiros à sua conta(32). Não sabemos exactamente quanto tempo terá passado em Ceuta, no entanto, uma carta de D. João II refere “os muitos e estremados serviços de dom Álvaro de Ataíde, assim no reino como em África”(33). Por outro lado, o facto de o próprio Nuno Fernandes ter servido como fronteiro em Arzila “com muita e boa jente do Algarve”(34), certamente terá pesado no momento em que D. Manuel decidiu entregar-lhe a capitania de Safim. 26 | Carta de Diogo de Azambuja a D. Manuel I, em 13 de Dezembro de 1507. Documento publicado in Les Sources Inédites de l’histoire du Maroc, Vol. I, doc. XXVII, pp.139-144. 27 | Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel; II, Capítulo XVIII, pp.186-191. 28 | Durval Pires de Lima, História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506 – 1542), p.32. 29 | De acordo com Pierre de Cenival, a capitania de Safim foi entregue a Nuno Fernandes de Ataíde em 17 de Abril de 1510. Ver Pierre de Cenival, Les Sources Inédites de l’Histoire du Maroc, Tomo I, p.159. 30 | Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Capítulo XCVI, p.277. 31 | Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, Capítulo CVII, p.131. 32 | Sabemos, a este respeito, que Álvaro de Ataíde recebeu, em 1454, dinheiro e mantimentos para servir em Ceuta com sete escudeiros, seis homens de pé e seis besteiros. Ver Abel dos Santos Cruz, A Nobreza Portuguesa em Marrocos no século XV (1515-1464), Dissertação de Mestrado em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p.140, nota 18. 33 | A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 40, fl. 6v. 34 | Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, Vol I, Capítulo VI, p.29. Anais do Município de Faro 2017 49 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha As crónicas quinhentistas não referem a chegada de Nuno Fernandes àquela praça. Damião de Góis diz-nos apenas que no ano de 1510 partiu “uma armada que el Rei mandou a çafim, que passaua de trinta velas, de que era Geral Nuno fernandez dataide, com muita gente nobre do regno, pera ficar por capitão, & gouernador da mesma cidade”(35). No entanto, as ordens de pagamento assinadas pelo próprio em 31 de Julho e 6 de Agosto provam que por então já se encontrava a desempenhar o cargo(36). A chegada de Ataíde deve ter sido aguardada com expectativa por mouros e cristãos. Os primeiros porque, efectivamente, não estavam satisfeitos com o domínio português. Aliás, nesse mesmo ano de 1510 os habitantes de Meça escreveram a D. Manuel expondo várias queixas contra os portugueses(37). Por outro lado, reinava em Safim o descontentamento e as reclamações quanto à administração do anterior capitão Diogo de Azambuja(38) e contra o adaíl Lopo Barriga e o almocadém Diogo Lopes, ambos vindos de Arzila(39). Portanto, logo de início, Nuno Fernandes teve a difícil tarefa de gerir as intrigas e invejas que minavam o relacionamento entre os portugueses de Safim. O mais certo é que nem sequer tenha dado muito crédito ao que se dizia de Diogo Lopes e Lopo Barriga, dada a inexistência de documentos que atestem repercussões quanto às acusações de que eram alvo. Nuno Fernandes, que certamente os tinha em grande consideração, manteve-os nos respectivos cargos. Aliás, foi provavelmente por sua recomendação que D. Manuel atribuiu uma mercê a Lopo Barriga, em 1511(40) e que em 1515 foi feito “fydalgo de cora d’armas”(41). Foi, portanto, neste contexto de expectativa e tensão que o novo capitão chegou à cidade. Certamente Ataíde terá compreendido que a maneira mais eficaz de conciliar os portugueses passava por uni-los frente a um inimigo comum, pelo que terá sido nesse sentido que se prontificou em dirigir uma expedição contra o castelo do “mouro sancto”. Da expedição resultou a 35 | Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulo X, p.276. 36 | Cf. Pierre de Cenival, Les Sources Inédites de l’Histoire du Maroc, Tomo I, p.159. 37 | Carta dos habitantes de Meça a D. Manuel I, em 6 de Julho de 1510. Documento publicado in Les Sources Inédites de l’histoire du Maroc, Vol. I, doc. XXXIX, pp.240-247. 38 | Durval Pires de Lima, História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506 – 1542), p.32. Ver também David Lopes, “Os Portugueses em Marrocos no Tempo de D. Manuel I”, in História de Portugal, vol. III, pp.476-479. 39 | Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, Vol I, Capítulo VIII, p.41. 40 | A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 8, fl. 105v. 41 | Carta de nobreza para Lopo Barriga, de 7 de Abril de 1515. Documento publicado in Les Sources Inédites de l’histoire du Maroc, Vol. I, doc. CXXXVII, pp.683-686. Ver também Afonso Eduardo Martins Zúquete, Armorial Lusitano – Genealogia e Heráldica, pp.85-86. 50 Anais do Município de Faro 2017 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha captura do supracitado mouro, juntamente com mais cem cativos, entre os quais muitos guerreiros de Azamor(42). Porém, e mais do que unir os portugueses combatendo um inimigo comum, importava demonstrar ao adversário o poder e a posição de força do novo capitão. E foi assim que Ataíde lançou uma série de entradas coroadas de êxito, cativando e matando muitos inimigos, espalhando o terror a todos os que ousassem contestar a soberania de Portugal. O grande cerco de 1510 Naturalmente que esta política de intimidação e propagação do terror teve as suas consequências. Uma confederação composta por todas as tribos mouras desde a Xiátima ao Atlas e a Azamor começou a unir-se para juntas marcharem contra Safim, de modo a expulsar os cristãos invasores. Ataíde, que estava informado destas intenções pelos espiões que tinha entre os mouros, rapidamente compreendeu a gravidade da situação e fez as diligências necessárias para se preparar para o cerco. Em carta a D. Manuel I, em 4 e 5 de Dezembro de 1510, o contador de Safim, Nuno Gato, relata a aproximação massiva das tribos e refere a perda do Castelo Real do Mogador(43). Também Nuno Fernandes de Ataíde, em carta ao rei de 5 de Dezembro, revela os poucos recursos humanos de que dispunha para defender uma muralha “mui grande de guardar e (…) mui roto”(44). Por outras palavras, a cidade era demasiado grande e os soldados poucos para a defenderem. Era a prova de fogo do jovem capitão, a oportunidade de provar as suas capacidades estratégicas e de comando. Até então, demonstrara as suas competências tácticas ofensivas, saindo vitorioso das incursões que realizava em território inimigo. Impunha-se agora pôr à prova as suas capacidades a nível da táctica defensiva. Em 26 de Novembro de 1510 tocaram os primeiros rebates e em 3 de Dezembro os mouros começaram a assentar arraiais em torno da cidade. 42 | Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulo XII, p.283. 43 | Carta de Nuno Gato a D. Manuel I, em 4 e 5 de Dezembro de 1510. Documento publicado in Les Sources Inédites de l’histoire du Maroc, Vol. I, doc. CLIII, pp.259-264. Não é conhecida a data exacta da perda do Castelo Real do Mogador. Porém, sendo de Maio de 1510 a nomeação do seu último capitão, Nicolau de Sousa, é de supor que o castelo se terá perdido no decurso da segunda metade de 1510. 44 | Carta de Nuno Fernandes de Ataíde a D. Manuel I, em 5 de Dezembro de 1510. Documento publicado in Les Sources Inédites de l’histoire du Maroc, Vol. I, doc. XLIV, pp.265-270. Anais do Município de Faro 2017 51 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha Em 13 de Dezembro o cerco dispunha-se pelo sul e em 23 do mesmo mês já rodeava a praça. Diz-nos o contador que eram mais de 5.000 cavaleiros e 200.000 homens a pé(45). Contra as recomendações dos outros fidalgos, Nuno Fernandes arriscou defender as muralhas da cidade, em vez de concentrar forças na alcáçova. Uma decisão arrojada, se tivermos em consideração de que apenas dispunha de “novecentos omeens de peleja” para defender um perímetro amuralhado na ordem dos 2383 metros(46). Esta opção pela dispersão das forças, de modo a defender o perímetro amuralhado, vem demonstrar o perfil psicológico destemido e belicoso de Nuno Fernandes. Recordamos que, após a conquista de Ceuta, em 1415, ficaram 2700 homens a defender a praça recém-conquistada(47). Por outras palavras, em 1510, Nuno Fernandes apenas contava com um terço desse número. Aliás, a decisão de Nuno Fernandes parece ainda mais ousada se tivermos em consideração que apenas dois anos antes, quando D. João de Meneses socorreu Arzila, durante o cerco de 1508, já o conde D. Vasco tinha perdido a vila e se defendia dentro do castelo com os seus últimos homens(48). Ao seguirmos a crónica de Damião de Góis, ficamos com a impressão de que os reforços chegaram no início do cerco. Porém, a leitura atenta da carta de Nuno Gato ao rei, em 3 de Janeiro de 1511, revela a organização criteriosa de Ataíde na defesa da cidade em vários sectores e o modo inteligente como geriu os recursos disponíveis até à chegada dos reforços(49). O capitão, sempre vigilante, acudia a toda a parte, de modo a responder às necessidades. Em 22 de Dezembro, quando a cidade já se encontrava praticamente cercada, saiu de Safim com a cavalaria para dar combate ao adversário. Não é nossa intenção apresentar uma descrição exaustiva do cerco. Já Durval Pires de Lima(50) e David Lopes(51) o fizeram com grande mestria. Importa, no entanto, destacar os assaltos dos dias 27 e 30, em que Nuno Fernandes acorreu a todos os sectores para animar os combatentes, tendo mesmo descido do cavalo para 45 | Manuel de Faria e Sousa, com evidente exagero, refere que a infantaria moura ultrapassava os seiscentos mil homens. Ver Manuel de Faria e Sousa, Capítulo VII, Africa Portuguesa, p.92. 46 | Jorge Correia, Implantação da Cidade Portuguesa no Norte de África, p.263. Segundo Pedro Dias, o perímetro amuralhado, só do lado voltado para terra, rondava os 2500 metros e incluía 75 torres de origem muçulmana. Ver Pedro Dias, A Arquitectura dos Portugueses em Marrocos, p.188. Do mesmo autor ver também História da Arte Portuguesa no Mundo – O Espaço Atlântico (séculos XV – XIX), p.47. 47 | Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Capítulo C, p.284. 48 | Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, I, Capítulos XXVIII-XXIX, pp.210-215. 49 | Carta de Nuno Gato a D. Manuel I, em 3 de Janeiro de 1510. Documento publicado in Les Sources Inédites de l’histoire du Maroc, Vol. I, doc. XLV, pp.271-280. 50 | Durval Pires de Lima, História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506 – 1542), pp.37-41. 51 | David Lopes, “Os Portugueses em Marrocos no Tempo de D. Manuel I”, in História de Portugal, vol. III, pp.480-481. 52 Anais do Município de Faro 2017 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha se juntar aos defensores do muro do lado do mar num momento de maior pressão. Finalmente, no dia 31 de Dezembro, os mouros levantaram o cerco, convencidos de que não conseguiam tomar Safim. Vencida a provação, Ataíde conquistava glória e prestígio aos olhos de mouros e cristãos. Tinha resistido a tão grande força apenas com um punhado de valentes e assim conquistava a admiração dos soldados e o respeito de D. Manuel. Estava superado o primeiro grande desafio de Nuno Fernandes. Ainda a este respeito, vale a pena recordar as palavras do grande genealogista do séc. XVIII, António Caetano de Sousa: “no grande sitio, que no anno de 1510, sustentou com immortal gloria o insigne capitaõ Nuno Fernandes de Ataide”(52). Nuno Fernandes e a afirmação do seu poder A vitória portuguesa no grande cerco de 1510 terá, certamente, motivado Nuno Fernandes. Desde então que corriam boatos sobre um possível ataque por parte do rei de Marraquexe e, de facto, o soberano muçulmano assentou arraiais no Cabo de Cantim, em 1512(53). O capitão não esperou pelo adversário. Compreendendo que a melhor maneira de defender a sua posição passava pela iniciativa no ataque, optou por uma estratégia ofensiva, assaltando dois dos aduares do rei de Marraquexe pela calada da noite. O assalto, do qual resultaram 300 cativos mouros e muitos cavalos e camelos, ficou conhecido como o “das pedradas”, uma vez que que a retirada portuguesa foi acompanhada “despingardadas, setadas, & sobre tudo de pedradas”(54). Alguns dias depois, Muley Naçer transferiu o acampamento para Benimagra. Segundo D. Jerónimo Osório, este era um sítio fortificado, a que chamavam montanha de Denar(55). Mas nem aí Ataíde o deixou em paz. Juntamente com Bentafufa(56), e outra vez pela calada da noite, atacaram o acampamento do 52 | António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Tomo XI, p.398. 53 | Segundo Manuel de Faria e Sousa, tratava-se do “exercito de Marruecos”. Ver Manuel de Faria e Sousa, Africa Portuguesa, Capítulo VII, p.103. 54 | Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulo XXXIV, p.340. 55 | Jerónimo Osório, Da Vida e Feitos de El-Rei D. Manuel, p.179. 56 | Bentafufa foi, juntamente com Nuno Fernandes de Ataíde, um dos principais responsáveis pelo domínio português na região da Duquela. De origem berbere, desempenhou entre 1510 e 1518 as funções de alcaide dos “mouros de pazes”, sendo responsável pelo arrecadar dos tributos e pela chefia militar dessas forças nas campanhas lançadas contra os soberanos de Fez, Marraquexe ou os xerifes do sul marroquino. Anais do Município de Faro 2017 53 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha rei de Marraquexe, sendo este quase capturado. Segundo Damião de Góis, os portugueses tomaram a tenda de Muley Naçer, assim como uma das suas “mancebas principaes com muitas molheres nobres”(57). Osório, por seu lado, refere que o soberano escapou por um triz, montando “o cavalo (…) primeiro que encontrou em osso saltou em cima, e súbito fugiu nêle”(58). Ainda que tivessem ficado alguns portugueses feridos, entre os quais o próprio Nuno Fernandes de Ataíde ferido no rosto, a audácia do feito cobriu de glória o capitão de Safim, para além de ter conseguido enorme despojo: aproximadamente 400 cativos, mais gado, cavalos e camelos. Ainda sobre este acontecimento, comentou Manuel de Faria e Sousa, em língua castelhana: “toda aquella maquina se quedó tan destroçada, toda aquella soberbia tan abatida, que no ubo quien a nuestro Capitan le alterase el passo”(59). Curiosamente, poucas são as fontes que referem este embate entre Nuno Fernandes de Ataíde e o rei de Marraquexe. É certo que as crónicas de D. Jerónimo Osório e de Manuel de Faria e Sousa seguem de perto o relato de Damião de Góis. Porém, somos da opinião que exagera Pierre de Cenival ao referir que as fontes usadas por Góis “ont malheureusemente disparu”(60), insinuando uma História potencialmente efabulada. Seguramente não concordariam António José Saraiva ou Óscar Lopes, investigadores que incluem Góis no séquito dos historiadores dominados por um “sentimento muito vivo da veracidade histórica”(61). Ainda assim, devemos manter uma atitude crítica quanto às informações avançadas pelo grande humanista e, se possível, confrontá-las com outras fontes(62). O certo é que outros documentos parecem corroborar a narrativa de Góis. O próprio excerto da mercê da Capitania e Governança da cidade de Safim a Nuno Fernandes de Ataíde, que atrás transcrevemos, refere o ataque português ao arraial do rei de Marraquexe, o que indica a existência de outro documento (provavelmente perdido) com que 57 | Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulo XXXIV, p.341. Sobre esta entrada ver também Manuel de Faria e Sousa, Africa Portuguesa, Capítulo VII, p.103; Durval Pires de Lima, História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506 – 1542), pp.50-51; Fernando Pessanha, “Nuno Fernandes de Ataíde – Alcaidemor de Alvor e capitão de Safim” in Jornal do Baixo Guadiana, Nº178, Abril de 2015, p.21. 58 | Jerónimo Osório, Da Vida e Feitos de El-Rei D. Manuel, p.179. 59 | Manuel de Faria e Sousa, Africa Portuguesa, Capítulo VII, p.103. 60 | Pierre de Cenival, Les Sources Inédites de l’histoire du Maroc, p.335, nota 1. 61 | António José Saraiva; António Lopes, “A evolução da historiografia”, in História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI, Vol. II, p.11. 62 | De acordo com Joaquim Romero de Magalhães, a qualidade de Góis nem se revela especialmente notada em Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel. Cf. Joaquim Romero de Magalhães, “Em torno da crónica de D. João III por Francisco de Andrade”, in D. João III e o Império - Actas do Congresso Internacional comemorativo do seu nascimento, pp.139-140. 54 Anais do Município de Faro 2017 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha o monarca foi primeiramente informado do sucedido. Por outro lado, outras pistas encontradas na epistolografia parecem ir ao encontro dos acontecimentos narrados por Góis. É o caso da carta de Nuno Fernandes de Ataíde a D. Manuel, em 20 de Julho de 1512, onde refere estar a recuperar de uma ferida(63), seguramente recebida no decurso de um combate. Com efeito, Góis refere que muitos portugueses saíram feridos do ataque ao acampamento do rei de Marraquexe, “entre os quaes o foi Nuno fernandez no rosto”(64). Tratarse-á de uma coincidência? Ou será a ferida recebida aquando do ataque ao acampamento de Muley Naçer? Tudo leva a crer que sim. Naturalmente que as represálias pela afronta ao rei de Marraquexe não tardaram. Dias depois, vieram 700 cavaleiros de Almedina correr Safim(65), porém, o adail Lopo Barriga desbaratou esta força e matou Iahemazonde, o xeque dos Xerquia. A sua cabeça foi espetada num pique, numa das portas da cidade, para servir de exemplo a quem se atrevesse a atacar Safim. Ainda que os mouros tivessem oferecido avultadas quantias, Nuno Fernandes recusou entregar o cadáver. Este apenas seria entregue em troca da paz, e assim foi. Em troca de tão ensanguentado despojo, a tribo da Xerquia submeteu-se ao rei de Portugal, ficando Bentafufa por seu alcaide. Nuno Fernandes impunha a paz forçada através do terror e da força das armas. Seja como for, o rei D. Manuel rejubilou com o feito de Nuno Fernandes de Ataíde contra o rei de Marraquexe e, em 2 de Julho de 1513, atribuiu-lhe a mercê definitiva da capitania e governo da cidade de Safim com os poderes, jurisdição e alçada inerentes ao cargo, atendendo ao “desbarato que fez em El-Rey de Marroquos que em pesoa icom grande poder de geinte Vinham sobre a Dita nossa cidade de çafim o qual nom somente foy de todo Vencido e desbaratado Emuyta da sua gemte morta ecativa e tomadas suas tenadas e bandeiras mais ajuda em sua própria pessoa foy ferido e se saluou soo fogiindo em huum cauallo…”(66). 63 | Carta de Nuno Fernandes de Ataíde a D. Manuel I, em 20 de Julho de 1512. Documento publicado in Les Sources Inédites de l’histoire du Maroc, Vol. I, Doc. LIX, pp.335-336. 64 | Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulo XXXIV, p.341. 65 | Almedina, situada num campo muito fértil, a oriente do Cabo de Cantim, foi uma das principais cidades da região da Duquela e bastante próspera, até à conquista de Safim. Por se recusar a pagar o tributo, Nuno Fernandes de Ataíde atacou-a por duas vezes, em 1512. Numa das vezes, a cidade resistiu de tal forma que Ataíde deu ordem de retirada. Ver Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulo XXXIII, pp.338-340. 66 | A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 42, fl.78. Excerto transcrito de Durval Pires de Lima, História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506 – 1542), p.51. Anais do Município de Faro 2017 55 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha Deste modo, Nuno Fernandes conseguia o governo e a capitania definitiva de Safim. A partir deste momento, dava-se início ao período mais assombroso da presença militar portuguesa em Marrocos, em que uma série de campanhas vitoriosas acabariam por levar as armas lusas até ao Atlas. Considerações finais Não podemos terminar o presente artigo sem antes recapitularmos, em traços muito gerais, algumas das ideias anteriormente apresentadas. Em primeiro lugar, convém referir que o presente artigo teve como objectivo traçar a acção de Nuno Fernandes de Ataíde desde a sua juventude até ao ano em que lhe foi atribuída a mercê definitiva da capitania e governo da cidade de Safim, em 1513. Assim sendo, tornou-se indispensável apresentar o contexto familiar e social de Nuno Fernandes. Descendente de uma linhagem que cresceu em honra e proveito à sombra dos primeiros monarcas de Avis e sobre a qual recaiu o governo da casa dos infantes, o seu pai, Álvaro de Ataíde, recebeu os direitos e rendas da Coroa em Alvor, depois da morte do infante D. Henrique. Com a morte do seu pai, Nuno Fernandes tornou-se no alcaide-mor da vila algarvia, aparecendo poucos anos depois como fronteiro em Arzila. Em 1510 foi nomeado capitão de Safim. Para tal, certamente terá contribuído a proximidade da família à dinastia de Avis e os serviços prestados pelos seus ascendentes no Norte de África, nomeadamente, pelo seu avô, tio, pai e pelo próprio Nuno Fernandes, em Arzila. Foi então que se começou a evidenciar como um dos mais brilhantes capitães da Expansão Portuguesa. Baixo o seu comando, conseguiu unir os portugueses de Safim através da luta contra todas as tribos que ousassem contestar a soberania de Portugal. As represálias pela sua política bélica materializaram-se com o grande cerco de 1510, no entanto, a sua capacidade de comando e de gestão de recursos deram-lhe a vitória, não obstante a monumental desproporção numérica entre as forças em confronto. Motivado pela vitória e pelo prestígio que começava a granjear aos olhos de mouros e cristãos, atreveu-se a atacar o acampamento do próprio rei de Marraquexe, que escapou por pouco. A audácia do feito cobriu de glória o capitão de Safim, para além de ter conseguido enorme despojo. Foi assim que, por reconhecimento pelos seus serviços, D. Manuel lhe atribuiu a mercê definitiva da capitania e governo da cidade de Safim, em 2 de Julho de 1513. 56 Anais do Município de Faro 2017 FONTES E BIBLIOGRAFIA ARQUIVOS A.N.T.T. Chancelaria de D. Manuel I Livro 6, fl. 93; livro 8, fl. 105v; livro 17, fl. 35; liv. 21, fl. 8; livro 28, fl. 112v; livro 32, fl. 113v; livro 40, fl. 6v; livro 41, fl. 110v; livro 42, fl.78. FONTES IMPRESSAS COUTO, Diogo do, O Soldado Prático, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1988. GÓIS, Damião de, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, Lisboa, 1749. LEÃO, Duarte Nunes de, Duarte Nunes de Leão, Cronicas Del Rey Dom João o de Gloriosa memória, o I, Lisboa, na Offic. de Joze de Aquino Bulhoens, MDCCLXXX. Monumenta Henricina, 15 vols., Coimbra, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henquique, 1960. OSÓRIO, Jerónimo, Biografias da História de Portugal – Volume XXVII – Da Vida e Feitos de El-Rei D. Manuel, Matosinhos, QuidNovi, 2004. PEREIRA, Duarte Pacheco, Esmeraldo de Situ Orbis, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1954. PINA, Rui de, “Crónica do Senhor Rey D. João II”, in Crónicas, Porto, Lello & Irmão Editores, 1977, pp.883-1032. RESENDE, Garcia de, Crónica de D. João II e Miscelânia - Biografias da História de Portugal, Volume XXIX, Matosinhos, QuidNovi, 2004. RODRIGUES, Bernardo, Anais de Arzila, 2 Vols., Lisboa, Academia das Sciências de Lisboa, 1915-1919. SOUSA, António Caetano de, Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, Tomos II XI, Lisboa, Na Regia Officina Aylviana, e da Academia Real, MDCCXXXVI - MDCCXLIII – MDCCXLV. ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica da Tomada de Ceuta, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1992. - Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, (coord. Filipe Themudo Barata), ed. Fac-similada da ed. do Abade Correia da Serra, de 1792, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa/ Porto: Programa Nacional de Edições Comemorativa dos Descobrimentos Portugueses, 1988. BIBLIOGRAFIA CENIVAL, Pierre de, Les Sources Inédites de l’histoire du Maroc, Vol. I, Paris, Paul Geuthner, 1934. CORREIA, Jorge, Implantação da Cidade Portuguesa no Norte de África - Da tomada de Ceuta a meados do Séc. XVI, Porto, FAUP Publicações, 2008. CORREIA, Vergílio, Lugares Dalém, Azamor, Mazagão, Safim, Conferências realizadas em Anais do Município de Faro 2017 57 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha Lisboa, Porto e Coimbra, Lisboa, 1923. COSTA, João Paulo Oliveira; RODRIGUES, Vítor Luís Gaspar, A Batalha dos Alcaides – 1514. No Apogeu da Presença Portuguesa em Marrocos, Lisboa, Tribuna da História, 2007. CRUZ, Abel dos Santos, A Nobreza Portuguesa em Marrocos no século XV (1515-1464), Dissertação de Mestrado em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1995. COSME, João, A Guarnição de Safim em 1511, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2004. FARINHA, António Dias, “O Norte de África”, in História da Expansão Portuguesa, Vol. I, Lisboa, Circulo de Leitores, 1998, pp.118-133. - Os Portugueses em Marrocos, Lisboa, Instituto Camões, 2002. FONSECA, João de Sousa, (Dir), Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. III, p.617. FREIRE, Anselmo Braamcamp, Brasões da Sala de Sintra, Livros I - III, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921 – 1930. GODINHO, Vitorino Magalhães, História Económica e Social da Expansão Portuguesa, Lisboa, Terra Editora, 1947. LACERDA, Teresa, “D. João de Meneses. Um retrato da Nobreza Portuguesa em Marrocos”, in Estudos de História Luso-Marroquina, Lagos, Câmara Municipal de Lagos, 2010, pp.117140. LIMA, Durval Pires de, História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506 – 1542), Lisboa, Imprensa Lucas & C.ª, 1930. LOPES, David, “Os Portugueses em Marrocos no Tempo de D. Manuel”, in História de Portugal, dirigida por Damião Peres, vol. III, Barcelos, Portucalense Editora, 1932, pp.453544. PESSANHA, Fernando, As Guarnições Militares nas Praças Portuguesas da Região da Duquela, no Algarve Dalém-mar, Dissertação para mestrado em História do Algarve apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, 2012. - Subsídios para a História do Baixo Guadiana e dos Algarves Daquém e Dalém-mar, Edições Mandil / 4 Águas Editora, 2014. - “Nuno Fernandes de Ataíde – Alcaide-mor de Alvor e capitão de Safim”, in Jornal do Baixo Guadiana, Nº178, Abril de 2015, p.21. - “Os 500 anos do ataque português a Marraquexe e a acção do capitão Nuno Fernandes de Ataíde”, in Jornal do Algarve, Nº3030, 23 de Abril de 2015, p.21; - “Nuno Fernandes de Ataíde, Alcaide-mor de Alvor e Capitão de Safim, comandou o ataque português a Marraquexe, há exactamente 500 anos”, in Jornal Barlavento, Nº1955, 23 de Abril de 2015, p.12. PINTO, Pedro, “Índice Analítico das Cartas dos Governadores de África na Torre do Tombo”, in Anais da História de Além-Mar, Vol. XI, 2010, pp.249-380. MAGALHÃES, Joaquim Romero de, “Em torno da crónica de D. João III por Francisco de Andrade”, in D. João III e o Império - Actas do Congresso Internacional comemorativo do seu nascimento, Lisboa, CHAM/CEPCEP, 2004, pp.139-145. MORENO, Humberto Baquero, A Batalha de Alfarrobeira - Antecedentes e Significado Histórico, Vol. II, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1979. NOGUEIRA, Bernardo de Sá, “Memórias Navais na corte portuguesa de D. João II a D. Sebastião”, in A Guerra Naval no Norte de África (séculos XV – XIX), Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003, pp.1173-185. 58 Anais do Município de Faro 2017 Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo” - Fernando Pessanha RESENDE, Vasco, “Os Portugueses em Marrocos e a guerra no mar no princípio do século XVI”, in A Guerra Naval no Norte de África (séculos XV – XIX), Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003, pp.101-116. SARAIVA, António José; LOPES, António, “A evolução da historiografia”, in História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI, Vol. II, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenbian,1996, pp.11-14. SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal – Vols. II-III, Editorial Verbo, 2001. TEIXEIRA, André, “Nuno Fernandes de Ataíde et l’intervention portugaise à l’interieur des terres du Maroc”, in Estudos de História Luso-Marroquina, Lagos, Câmara Municipal de Lagos, 2010, pp.97-116. ZÚQUETE, Afonso Eduardo Martins (coord.), Armorial Lusitano – Genealogia e Heráldica, Lisboa, Representações Zairol, 1961. Anais do Município de Faro 2017 59