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Frantz Fanon e a alienação do negro e do branco no sistema colonial

2017, ABPN

Resumo: A partir da leitura de Pele negra, máscaras brancas proponho neste artigo refletir sobre as ideias de Frantz Fanon acerca do racismo colonial e da alienação e desalienação do negro e do branco. O objetivo é recuperar alguns de seus aportes mais importantes para a compreensão do racismo colonial a partir de sua teoria da alienação. Fanon apresenta a alienação como uma etapa prévia à escravidão e ao colonialismo necessária para a manutenção da exploração econômica e analisa as condutas identitárias de " vergonha de si " como resultado da dominação colonial. Fanon descreve com precisão o impacto do racismo e do colonialismo e seus efeitos destrutivos mostrando como os mecanismos de alienação determinam as relações entre negros e brancos e reproduzem as hierarquias que regem essas relações. Para Fanon, os comportamentos dos negros e colonizados são o resultado de uma relação colonial desigual e violenta. A desigualdade colonial coloca o dominado em uma situação nevrótica que se traduz por uma negrofobia ou arabefobia. Para sair dessa situação, Fanon argumenta que a solução não está em um discurso moral, não basta dizer que o colonialismo, o racismo e seus efeitos são ruins. É necessária uma operação muita mais profunda que tem, para Fanon, uma relação com sua militância. Retomar o pensamento de Fanon e reconhecer a relevância e atualidade de suas contribuições, mesmo depois de mais de 50 anos após sua morte, é fundamental para podermos realocar a luta contra toda forma de dominação na continuidade da luta contra o colonialismo em uma época em que a identidade racial e o racismo mais que provaram sua capacidade de persistir no tempo e no espaço.

GT 2 – Entrecruzamentos de epistemologias africanas e afro-brasileiras: possibilidades de abordagens, perspectivas emancipatórias Frantz Fanon e a alienação do negro e do branco no sistema colonial1 Ana Catarina Zema de Resende2 Resumo: A partir da leitura de Pele negra, máscaras brancas proponho neste artigo refletir sobre as ideias de Frantz Fanon acerca do racismo colonial e da alienação e desalienação do negro e do branco. O objetivo é recuperar alguns de seus aportes mais importantes para a compreensão do racismo colonial a partir de sua teoria da alienação. Fanon apresenta a alienação como uma etapa prévia à escravidão e ao colonialismo necessária para a manutenção da exploração econômica e analisa as condutas identitárias de “vergonha de si” como resultado da dominação colonial. Fanon descreve com precisão o impacto do racismo e do colonialismo e seus efeitos destrutivos mostrando como os mecanismos de alienação determinam as relações entre negros e brancos e reproduzem as hierarquias que regem essas relações. Para Fanon, os comportamentos dos negros e colonizados são o resultado de uma relação colonial desigual e violenta. A desigualdade colonial coloca o dominado em uma situação nevrótica que se traduz por uma negrofobia ou arabefobia. Para sair dessa situação, Fanon argumenta que a solução não está em um discurso moral, não basta dizer que o colonialismo, o racismo e seus efeitos são ruins. É necessária uma operação muita mais profunda que tem, para Fanon, uma relação com sua militância. Retomar o pensamento de Fanon e reconhecer a relevância e atualidade de suas contribuições, mesmo depois de mais de 50 anos após sua morte, é fundamental para podermos realocar a luta contra toda forma de dominação na continuidade da luta contra o colonialismo em uma época em que a identidade racial e o racismo mais que provaram sua capacidade de persistir no tempo e no espaço. Palavras-chave: Frantz Fanon; Racismo; Alienação. 1 Este ensaio é parte de um artigo apresentado como trabalho final no Seminário Pensamiento Crítico en el Caribe anglófono y francófono da Red CLACSO de Posgrados en Ciencias Sociales, Argentina. Gostaria de agradecer ao professor Doutor Félix Valdés García por todos seus ensinamentos e pela avaliação da versão final deste artigo. 2 Doutora em História Social pela Universidade de Brasília (2014). Membro do Groupe Décolonial de Traduction. Pesquisadora Membro do Grupo de Estudos em Direitos Étnicos Moitará da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Pesquisa Membro do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Acesso à Justiça e Direitos nas Américas LEIJUS do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas CEPPAC da Universidade de Brasília. Contato: ana.zema@gmail.com. Introdução Frantz Fanon nasceu em Fort-de-France na Martinica no dia 20 de julho de 1925. Passou sua infância e juventude na Martinica, onde estudou no Liceu Schoelcher e foi aluno de Aimé Césaire. Morreu muito jovem por causa de uma leucemia em 1961, com apenas trinta e seis anos. Antes de partir, deixou para a posteridade duas obras fundamentais: Pele negra, máscaras brancas de 1952, Os Condenados da Terra de 1961 e duas obras menos conhecidas: L’An V de la Révolution Algérienne (1959) y Pour la Révolution Africaine. Écrits politiques (obra póstuma, 1964). A vida de Fanon foi muito breve, mas por suas experiências vividas e pela grandeza de suas obras é possível dizer que, apesar dessa brevidade, Fanon viveu a vida de forma muito intensa. Seu pensamento livre e sua corajosa ação política marcam sua história de vida e toda sua obra. Seus livros publicados são testemunhos desse pensamento livre, da força de suas ideias políticas e de suas reflexões teóricas que ganharam o mundo. Fanon deixou sua marca em gerações de intelectuais anticolonialistas, atores dos movimentos negros dos EUA e ativistas de extrema esquerda. Ao longo dos anos 1960 e 1970, a leitura de Fanon estava nos programas de formação política dos guerrilheiros da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) e da Frente pela Libertação de Eritréia (FLE) assim como dos Black Panthers. Desde sua morte, suas obras foram traduzidas para muitos idiomas e foram lidas e relidas por várias gerações não apenas de intelectuais, mas também de homens políticos que lhes deram diferentes interpretações. Fanon foi considerado por alguns um herói, por outros um traidor; ficou no esquecimento por um tempo e depois foi redescoberto, reconhecido e, algumas vezes, incompreendido. Por isso sua obra está “coberta por estratos sucessivos de recepção” (Bessone, 2011, p. 24) que não devem, no entanto, aplacar sua importância e complexidade. Nos anos 1980 e 1990, Fanon foi redescoberto por intelectuais do Norte. Seus textos foram discutidos, criticados, analisados no mundo anglo-saxão por filósofos, sociólogos, críticos literários que se inspiraram em suas ideias para renovar a reflexão sobre "raça", a identidade e representação3. Desde então, os escritos de Frantz Fanon 3 Podemos citar os trabalhos de Alan Read (ed.), The Fact of Blackness. Frantz Fanon and Visual Representation, Londres, ICA, 1996; Anthony C. Alessandrini (ed.), Frantz Fanon. Critical reaparecem no mundo acadêmico levantando controvérsias e debates intelectuais intensos. Alguns autores trataram de responder à pergunta acerca do que explicaria este retorno a Fanon (Hall; Lauret, 2014; Bhabha, 2007), outros trataram de explicar sua relevância e atualidade no século XXI (Wallerstein, 2008; García, 2013). Para os pensadores vinculados aos estudos culturais e pós-coloniais, a recuperação dos escritos de Fanon, particularmente, de seu primeiro livro Pele negra, máscaras brancas, se deve sobretudo à atenção que Fanon dá à dialética da identidade, da alteridade e aos mecanismos inconscientes do racismo e do colonialismo. Stuart Hall argumenta que é a proposta fanoniana de "libertar o homem de cor de si mesmo" que explica a atração que ele exerce sobre todos os que trabalham com "questões de representação e subjetividade como constitutiva da descolonização" (Stuart Hall, 1996 apud Vergès, 2005, p. 52). Para Wallerstein, Fanon deve ser compreendido como um pensador que pertence irredutivelmente a seu tempo, e seu livro não pode ser interpretado como uma apelação a uma política de identidade. Wallerstein reconhece que o valor e a importância de uma releitura da obra fanoniana está em que ainda existem muitos dilemas coletivos que não foram resolvidos como a questão da violência necessária, do fim da dominação cultural pan-europeia e da luta de classes. Assim explica Wallerstein: No fim e a cabo, o que nos resta de Fanon é mais do que paixão e mais do que um projeto de ação política. Temos um retrato brilhante dos nossos dilemas coletivos. Sem violência, não podemos conseguir nada. Mas a violência, por mais terapêutica e eficaz que seja, não resolve nada. Sem rompermos com a dominação pela cultura pan-europeia, não seremos capazes de ir em frente. Mas a afirmação pertinaz da nossa particularidade é absurda e conduz inevitavelmente a “percalços”. A luta de classes é central, desde que saibamos quais são as classes que estão realmente em luta. Mas as classes lumpen, por si sós, sem uma estrutura organizativa, exaurem-se. (2008, p. 11). Félix Valdés García, considerando que continuamos ainda enfrentando problemas semelhantes de dominação e opressão e que as noções do racismo, de discriminação e de patriarcalismo continuam vigentes, argumenta que reler Fanon “(…) es volver a rasgar el eurocentrismo y el occidentalismo, afincados en la médula Perspectives, Londres, Routledge, 1999 ; Lewis R. Gordon, T. Denean Sharpley-Whiting et Renée T. White (eds.), Fanon : A Critical Reader, Londres, Blackwell, 1996). de los huesos del colono y el colonizado, del sujeto social del cambio, ese que se levanta en auténticos procesos emancipadores.” (2013, p. 3). Sem dúvida foi a inteligência, a clareza de suas reflexões unindo teoria e prática e a força política e poética dos escritos de Fanon que suscitaram tantas leituras, releituras e interpretações até os dias de hoje. Fanon deixou com seus escritos mais perguntas que respostas e também deixou em aberto muitas tarefas pendentes como desafios para a luta anticolonial e pela libertação dos oprimidos. Há muitas razões para retomar seu trabalho no século XXI. Dessa forma se faz necessário conhecer o pensamento de Fanon no século XXI e reconhecer suas contribuições para poder realocar a luta contra toda forma de dominação na continuidade da luta contra o colonialismo em uma época em que a identidade racial e o racismo mais que provaram sua capacidade de persistir no tempo e no espaço. A partir da leitura de Pele negra, máscaras brancas proponho refletir sobre as ideias de Fanon acerca do racismo colonial, seus efeitos psíquicos e a alienação e desalienação do negro e do branco. O objetivo é recuperar algumas das principais contribuições de Fanon para a reflexão sobre a alienação do negro e do branco. A alienação do negro e do branco Sob a influência da psiquiatria institucional, Fanon pensa a alienação, a enfermidade psíquica e o sofrimento psíquico na sua relação com o entorno social no qual está inserido o paciente (Faustino, 2013, p. 219). Fanon passa a teorizar a alienação pela cor produzida pela escravidão e o colonialismo desde seus primeiros escritos. Em 1952, publica seu primeiro artigo “Le syndrome nord-africain” na Revista Esprit. Fanon observa a semelhança das patologias “sem lesão” dos imigrantes do Magrebe. Denuncia as frequentes explicações culturalistas dos médicos para essas enfermidades e apresenta uma “explicação materialista que situa os sintomas observados na vida de opressão” mostrando que a verdadeira causa da enfermidade psíquica não se encontra em uma lesão objetiva, mas na dominação sofrida (Bouamama, 2014). Desde seus primeiros escritos, Fanon concentrou seus esforços de compreensão na alienação colonial, suas traduções identitárias e nas resistências que essa levanta. Fanon apresenta a alienação como um passo prévio à escravidão e ao colonialismo para manter a exploração econômica e analisa os comportamentos identitários de “vergonha de si mesmo” como resultado da dominação colonial. Em sua primeira obra Pele negra, máscaras brancas, Fanon analisa o impacto do racismo e do colonialismo e seus efeitos destrutivos, em particular os mecanismos de alienação que determinam a relação entre negros e brancos e reproduzem as hierarquias que regem essas relações raciais. Fanon descreve com precisão o impacto do racismo sobre o negro. Ele faz uma análise minuciosa e pormenorizada de todas as patologias que nascem da internalização do racismo pelos negros como a vergonha de si mesmo, os complexos de inferioridade e a fascinação pelo branco. Na introdução, Fanon apresenta o problema do negro com uma questão: Que quer o homem? Que quer o homem negro? Mesmo expondo-me ao ressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem.. (PNMB, 2008, p. 26). Fanon queria saber como o negro poderia chegar a ser um homem, já que "[...] o negro não é um homem." Existe uma zona do não-ser onde se encontra o negro. O negro não é um homem porque é um homem negro, ou seja, foi estabelecido no interior de um universo a partir de uma série de “aberrações afetivas” que o definem primeiro a partir do exterior, mas que são introjetadas por ele. Do interior desse universo seria bom fazê-lo sair, por isso Fanon diz que sua intenção não é outra se não “libertar o homem de cor de si mesmo” (2008, p. 26). Fanon explica que existe um “edifício dos complexos” onde existem anormalidades afetivas que fazem com que “O negro queira ser branco” e que “o branco busca apaixonadamente realizar uma condição de homem”. É dizer que, “(…) para o negro, há apenas um destino. E ele é branco” (2008, p. 28) porque a condição de humano está na existência do branco. Fanon considera então que a compreensão da relação negro-branco passa pela compreensão de um “duplo narcisismo” que prende o branco na sua brancura e o negro na sua negrura e que gerou um círculo vicioso: existem brancos que se consideram superiores aos negros e existem “(...) negros querem, custe o que custar, demonstrar aos brancos a riqueza do seu pensamento, a potência respeitável do seu espírito” (2008, p. 27). Este círculo vicioso corresponde ao complexo de inferioridade do negro que tem como correlato natural o complexo de superioridade do branco. Fanon coloca a questão dessa maneira quando afirma: “A inferiorização é o correlato nativo da superiorização europeia. Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado”. (2008, p. 90). Fanon busca entender primeiro a origem deste complexo de inferioridade a partir de uma análise psicológica para depois pensar em como “libertar o homem negro de si mesmo”, ou seja, na desalienação do negro. Para Fanon, o complexo de inferioridade se deve a um processo duplo: “Econômico, em primeiro lugar. Por interiorização, ou melhor, epidermização dessa inferioridade, depois.” (2008, p. 28). “Epidermização” quer dizer, de acordo com Hall, “a inscrição da raça na pele” (2014, p. 87). A força da escravidão e do colonialismo está em fazer interiorizar esse sentimento de inferioridade até senti-lo na epiderme, até que faça parte e determine a todos nossos gestos e ações, como a imagem do “negro apavorado, trêmulo, humilhado diante do senhor branco” (2008, p. 67) que nem sequer se atreve a levantar a cabeça e olhar nos olhos do senhor. Essa imagem nos dá uma ideia da violência psíquica que representa a escravidão e o colonialismo como processo de destruição da identidade e da alienação. Fanon mostra também como “o colonialismo branco impôs uma aniquilação da existência - sua degradação - a suas vítimas (os negros), na medida em que lhes é exigido que se ajustem a seus valores deformados” (Fotia, 2009, p. 7). A deformação e destruição dos valores da cultura colonizada são efetuadas pelo homem branco para que possa impor sua dominação sobre o negro e o colonizado. Nas palavras de Fanon, A sujeição, no sentido mais estrito, da população indígena é a primeira necessidade. Para isso, é preciso destruir seus sistemas de referência. A expropiação, a despossessão, os ataques, o assassinato objetivo, se somam ao saque dos esquemas culturais ou, ao menos, condicionam esse saque. O panorama social é desestruturado, os valores pisoteados, esmagados, esvaziados. (Fanon, 1964 apud Fotia, 2009, p. 11). A violência e o racismo colonial dizem a todo tempo ao negro e ao colonizado que a causa de sua opressão está na sua própria inferioridade, isto é, que a dominação do branco colonizador está vinculada a uma alienação cultural que acaba por retirar do colonizado sua vontade de resistir. De fato, para sobreviver em um mundo de valores impostos e dominantes, o colonizado tem que se adaptar, “tiene que hacer suyos los significados de esa realidad, de la blanquitud, y hundir los suyos, los de esa otra realidad, que son los de la negritud”, ou seja, para sobreviver o colonizado tem que “adoptar las máscaras blancas del colonizador.” (García, 2013, p. 7). Os indícios do comportamento alienado do colonizado se manifestam não apenas na forma como ele se relaciona com sua própria cultura, se não também na forma como se relaciona, em termos culturais, com a sociedade colonial. Nesse sentido, Fanon passa a analisar os diferentes aspectos das relações entre negros e brancos que mostram como funciona a alienação de um e do outro: a linguagem como ferramenta de inferiorização, os complexos de inferioridades que estruturam as atitudes dos dominados, o “ódio de si mesmo”, a vontade de parecer com o branco, os problemas das relações de sexo mistas entre a mulher negra e o homem branco e entre a mulher branca e o homem negro. No primeiro capítulo “O negro e a linguagem”, Fanon explica que o fenômeno da linguagem é muito importante nesse processo de alienação porque falar significa “empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (2008, p. 33). Nesse sentido, “o negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará mais do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa” (2008, p. 34). O colonizado se sente obrigado a deixar sua cultura e sua própria língua de lado para adotar a linguagem do senhor civilizador. Fanon assim o explica, Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural — toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. (2008, p. 34). Na escola onde se ensina a cultura da metrópole, os antilhanos aprendem a desprezar sua língua local, o patois. Algumas famílias chegam a proibir o uso do créole dentro de suas casas. Fanon lamenta a rarefação dos escritos em patois e comenta sobre a qualidade do valor poético das poucas criacões que conhece em comparação com as “autênticas obras traduzidas do uolofo, do peuhl” e os estudos de lingüística de Cheik Anta Diop (2008, p. 42). Além da experiência da língua, há também uma mudança de personalidade que Fanon descreve do negro que conhece a metrópole e que se torna um “semideus”. O negro que já viveu na França quando retorna a sua terra volta radicalmente transformado. “Geneticamente falando, diríamos que seu fenótipo sofreu uma mutação definitiva, absoluta”, como se houvesse “realizado um ciclo”, como se houvesse “adicionado algo que lhe faltava”. Retornam, nos diz Fanon, “literalmente cheios de si” (2008, p. 35). Fanon identifica também os efeitos do processo de alienação que se passa com o colonizador branco. Para o colono, esses efeitos se manifestam como um mecanismo de “embrutecimento” que o leva a “se conduzir com toda a violência real, o selvageria, a brutalidade sangrenta” que normalmente é atribuída ao colonizado, quando pensa que está em “um lugar de alta imagem civilizacional.” (Fotia, 2009, p. 12). Fanon traz exemplos dos comportamentos de médicos brancos. Frente a este processo de alienação cultural e à ordem racista mantida pela dominação colonial, os negros e colonizados têm, então, a possibilidade de se conformar com a imagem que o branco lhes dá deles mesmos e podem tratar de imitar o branco quando as condições o permitem fazê-lo. Essa conformidade, como sustenta Yvon Fotia, é ao mesmo tempo “produtora de si mesmo” e “destrutiva de toda identidade autônoma” e encontra seu paroxismo na atitude de querer se embranquecer ou de aparecer invisível (2009, p. 12). O negro e o colonizado também têm a possibilidade de optar pela violência, consciente ou inconscientemente. Esta pode voltar-se contra ele como um mecanismo de autodestruição ou voltar-se contra o outro. A violência é uma forma de reação e de recusa de seu lugar de dominado (Fotia, 2009, p. 13). De qualquer maneira, para remover a couraça da servidão construída durante séculos e o “desvio existencial” imposto pela “civilização branca” e a cultura europeia, é necessário “começar a desalinhar a relação estabelecida pelo colonialismo e a exploração, os valores e as construções culturais, humanas, que legam um mundo torcido (…).” (García, 2013, p. 6). Considerações finais Para Fanon, os comportamentos dos negros e colonizados são o resultado de uma relação colonial desigual e violenta. A desigualdade colonial coloca o dominado em uma verdadeira situação neurótica que se traduz em uma negrofobia ou arabefobia. Para sair dessa situação, Fanon sustenta que a solução não está em um discurso moral, não basta dizer que o colonialismo, o racismo e seus efeitos são ruins. Se requer uma operação muito mais profunda que tem, para Fanon, uma relação com seu compromisso, sua militância. Para ele, a desalienação passa pela militância. Mas, como explica Fanon, as motivações para se desalienar são essencialmente diferentes entre o negro doutor em medicina e o negro que trabalha na construção do porto. O primeiro está alienado porque “concebe a cultura europeia como um meio para se desligar de sua raça”, o outro está alienado porque é “vítima de um regime baseado na exploração de uma raça por outra, no desprezo de uma parte da humanidade por uma civilização tida por superior” (2008, p. 185). A solução para que o negro saia de seu complexo de inferioridade é conscientizar seu inconsciente. A tomada de consciência é um primeiro passo que é fundamental e que significa muitas vezes para o negro deixar cair as máscaras que são as diferentes máscaras de imagens impostas pelo branco ou as máscaras da pseudoimagem do branco que se dá o negro imitador (Fotia, 2009, p. 14). Deixar cair as máscaras e lutar: Não levamos a ingenuidade até o ponto de acreditar que os apelos à razão ou ao respeito pelo homem possam mudar a realidade. Para o negro que trabalha nas plantações de cana em Robert só há uma solução, a luta. E essa luta, ele a empreenderá e a conduzirá não após uma análise marxista ou idealista, mas porque, simplesmente, ele só poderá conceber sua existência através de um combate contra a exploração, a miséria e a fome. (FANON, 2008, p. 185 – 186). A verdadeira desalienação do negro, como anuncia Fanon desde a introdução de Pele negra, máscaras brancas, “implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais” (2008, p. 28) por isso, não basta ao negro dizer que tem orgulho de ser negro. Fanon entende que a negritude é um meio necessário para a emancipação do negro, mas não deve ser compreendida como um fim em si mesmo. Para ele, a negritude é o primeiro passo no processo de desalienação, mas é somente um passo que deve ser superado, é o momento da “antítese emocional e lógica desse insulto que o homem branco estava fazendo a humanidade” (Fanon, 1961 apud Bouamama, 2014). Para Fanon, a desalienação e a emancipação se dariam com a conquista da liberdade, uma conquista dura e violenta porque se a “liberdade lhes fosse dada, não haveria emancipação” (Vergès, 2005, p. 49). A conquista da liberdade não depende apenas de uma inversão de comportamentos identitários e psicológicos como, por exemplo, afirmando a superioridade do negro sobre o branco (Bouamama, 2014). Fanon o coloca da seguinte maneira: “Para nós, aquele que adora aos negros está tão ‘doente’ quanto àquele que o execra. Inversamente, o negro que quer embranquecer a raça é tão infeliz quanto aquele que prega o ódio ao branco.” (2008, p. 26). A única maneira de sair da dominação é destruir o sistema transformando suas bases, por isso, Fanon insiste, citando Marx, que “O problema não é mais conhecer o mundo, mas transformá-lo.” (2008, p. 33). Referências bibliográficas BESSONE, Magali. Introduction. Frantz Fanon, en équilibre sur la color line. In: Frantz Fanon. Oeuvres. Paris: La Découverte, 2011, p. 23 – 43. BHABHA, Homi K. O Local da Cultura, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. BOUAMAMA, Saïd. Frantz Fanon. In: Figures de la Révolution Africaine. De Kenyatta a Sankara. 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