Género, Educação e Ambiente
Maria José Varandas
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
ABSTRACT
Evolving on Maria Luísa Ribeiro Ferreira’s themes - Gender, Education and
Environment - this paper asserts that environmental education is the key for a new
understanding of the human-nature connection. Aesthetic sensibility plays a crucial
role here by encouraging the development of moral feelings and practical reason, as
well as the pursuit of an ideal of harmony towards a paradigm in which our essential
humanity relies on being a part of the natural world.
I
Desde logo, o título deste texto presta tributo a Maria Luísa Ribeiro Ferreira porquanto
com ele se designam os temas que, de forma persistente, estruturam a sua obra e o seu
percurso académico, reflexões indissociáveis de um labor de sólido e consistente alcance
irradiando a partir da fonte espinosana.
A recuperação de Espinosa na segunda metade do século XX pela Filosofia Ambiental e
pelo ecologismo deveu-se, em primeiro lugar, a um amplo movimento de crítica ao
antropocentrismo, como determinante da crise ecológica, conjugada com a subsequente
necessidade de repensar um novo paradigma que incluísse uma axiologia da natureza,
uma antropologia e uma ontologia não circunscritas a uma perspectiva homocêntrica.
Arne Naess, mentor da Deep Ecology, é o nome que se impõe neste contexto crítico vendo
no espinosismo uma via para o reencontro do ser humano com a natureza. Não se
reduzindo a uma ética, a Deep Ecology assume-se como uma ecosofia fundada numa
metafísica que afirma a unidade homem/natureza e o igualitarismo de todos os entes.
Fazendo da «potência de agir» o vector de determinação dos princípios estruturais da
Deep Ecology em vista a uma Total View, Arne Naess alinha com os movimentos
ambientais caracterizados por um activismo que persegue o declarado propósito de uma
revolucionária transformação dos fundamentos metafísicos na representação do humano
e da sua acção. Este propósito encontra o parceiro privilegiado no Ecofeminismo, uma
abordagem que propõe a desconstrução do paradigma androcêntrico informador da
estereotipia cultural que consagra um modelo hierárquico, oposicional e discriminante.
Razão versus sensibilidade; espírito versus corpo; luz versus obscuridade; homem versus
mulher; cultura versus natureza são dicotomias que definem uma axiologia e uma
realidade polarizada e hierarquizada, num esquema de classificação patriarcal que,
arbitrariamente, legitima o domínio de um dos pares sobre o outro.
Apesar das críticas ecofeministas a aspectos da Deep Ecology que consideram
veladamente antropocêntricos, há entre as duas teorias uma comunhão do ideário de base
que justifica as manifestas vinculações quer de um, quer do outro lado, às propostas gerais
das respectivas abordagens. Assim, entre outros, referimos Carolyn Merchant,
ecofeminista, que alinha a Deep Ecology com o Ecofeminismo na afirmação de uma
ecologia radical (Radical Ecology:The Search for a Livable World, 1992) ou Warwick
Fox que, a partir da Deep Ecology, defende a proximidade entre ambas as abordagens
(«The Deep Ecology-Ecofeminism Debate and Its Parallels»1). Enquanto a antologia de
Moira Gatens, especialista em Espinosa e na filosofia feminista, com prefácio da
ecofeminista Nancy Tuana, Feminists Interpretations of Benedict Spinoza (2009) expõe
e dilucida o solo espinosano em que se alimentam as raízes quer da Deep Ecology, quer
do Ecofeminismo.
Em traços gerais, no Ecofeminismo, Natureza – Mulher – Realização são categorias que
se interligam numa mundividência revolucionária e radical que aspira à instauração de
um novo paradigma pelo qual a libertação do género feminino é entrevista como
libertação da natureza inteira. Segundo Karen Warren (1998), as interconexões simbólicas
entre a natureza e a mulher - históricas, experienciais e teoréticas – confirmam a afinidade
cultural entre a exploração da mulher e a exploração da natureza 2. Nurture Nature é a
expressão ecofeminista que indica a acção conduzida, não em nome da racionalidade, do
dever e da justiça, mas sob o poder do afecto, da compaixão, da responsabilidade, do
cuidado e do zelo como modos de agir que tipificam o género feminino, na sua natural
condição de criação e educação. Tanto para a Deep Ecology, como para o Ecofeminismo
a Realização de Si constitui o termo ou culminãncia do processo de reapropriação do ser
destuído da sua própria entidade (sercom-todo-o-outro) e do seu valor intrínseco.
Longe de permanecer indiferente ao desenvolvimento singular que Espinosa mereceu nas
análises da Deep Ecology e do Ecofeminismo, a obra de Maria Luísa Ribeiro Ferreira
1
Environmental Ethics, 11, 1989: pp. 5-25.
2
Cf. Varandas, 2003a: pp. 30-33.
reflecte, a seu modo, os temas do feminino, da natureza e da educação e afirma-se como
uma referência exemplar na dilucidação do pensar no feminino3 (em toda a sua amplitude
político-cultural), e na divulgação do pensar feminino acerca da natureza 4. O tema do
ensino e da educação inscreve-se plenamente no contexto hermenêutico que ocupa Maria
Luísa Ferreira no ensejo de ligar, relacionar, dilucidar, expor afinidades e dissemelhanças,
abrindo vias de interpretação do real não exclusivistas, mas afirmativas de diferenças que
nunca são antagónicas, mas que sempre se perspectivam em complementaridade porque,
acima de tudo, todas perseguem o comum propósito de realização de si.
II
Este preâmbulo introduz a nossa própria reflexão sobre educação e ambiente que,
evoluindo no horizonte temático de Maria Luísa Ribeiro Ferreira, convoca, como ponto
de partida, o pensamento e a sensibilidade de um nome de referência (feminino) na
literatura ambiental, autor da primeira obra que associa explicitamente a crise ecológica
à acção irresponsável (Silent Spring, 1962). Falamos de Rachel Carson. O rigor científico
da sua análise aos impactes negativos na dinâmica dos ecossistemas provocados pela
utilização massiva de pesticidas químicos constitui a expressão racional de uma funda
sensibilidade à natureza, e o lúcido sintoma da preocupação, sempre presente, com a acção
insensível e irresponsável face às entidades naturais. Em 1956, o seu livro The Sense of
Wonder, respondia a esta preocupação, defendendo a importância do contacto directo com
a natureza desde a infância, considerando esse contacto a via estrutural para a formação
de uma sensibilidade atenta à beleza e ao bem do mundo natural, e, portanto, solo de
germinação de uma humanidade plena. Sublinhamos que Carson configura, através da
sua obra e vida, uma forma de ser e estar que conjuga exemplarmente a sensibilidade, o
conhecimento e a acção na relação do ser humano com o mundo natural, espelhando com
coerência a aliança entre o bem, o belo e a verdade científica. Citamos algumas passagens
do The Sense of Wonder, ilustrativas do género de pensar que afirma a unidade entre a
emoção e a racionalidade, e onde a sensibilidade estética surge como locus privilegiado
para o florescimento do conhecimento comprovado e da acção responsável:
3
FERREIRA, Mª Luísa Ribeiro (2001), Pensar no Feminino, Lisboa: Ed. Colibri.
4
Detacamo os artigos «Um olhar feminino sobre a natureza» e «Ecofeminismo - cantata a quatro vozes»
(2009), As mulheres na Filosofia, Lisboa: Ed. Colibri.
O mundo da criança é cheio de frescura, de novidade, de beleza, povoado de maravilhas e
entusiasmo... Para a criança é menos importante saber do que sentir... Se os factos são as
sementes que produzem mais tarde conhecimento e sabedoria, as emoções são o solo fértil
no qual as sementes terão de crescer. Os anos da primeira infância são aqueles em que se
prepara o solo. Uma vez despertadas as emoções – o sentido do belo, o entusiasmo pelo
novo e desconhecido, o sentimento de simpatia, piedade admiração, amor - surge então o
desejo de conhecimento acerca do objecto da nossa reação emocional [...] Que valor tem
preservar e reforçar esse sentido de respeito e admiração, esse reconhecimento de algo para
além dos limites da existência humana? Será a exploração do mundo natural apenas uma
maneira agradável de passar as horas douradas da infância ou será algo de mais profundo?
Estou certa de que há algo de mais profundo, algo de duradouro e significativo [...] Aqueles
que contemplam as belezas da terra encontram reservas de força que resistirão enquanto
durar a vida. Existe beleza tanto simbólica como real na migração das aves, no fluxo e
refluxo das marés, no botão fechado pronto para a eclosão da primavera. Há nos refrãos
repetidos da natureza algo infinitamente capaz de curar5.
5
«A child world is fresh and new and beautiful, full of wonder and excitement … For the child is not half
so important to know as to feel. If the facts are the seeds that later produce knowledge and wisdom, then
the emotions and the impressions of the senses are the fertile soil in which the seeds must grow. The years
of early childhood are the time to prepare the soil. Once the emotions have been aroused – a sense of the
beautiful, the excitement of the new and the unknown, a feeling of sympathy, pity, admiration or love –
then we wish for knowledge about the object of our emotional response […] What is the value of preserving
this sense of awe and wonder. Is the exploration of the natural world just a pleasant way to pass the golden
hours of childhood or is there something deeper? […] Those who contemplate the beauty of the earth find
reserves of strength that will endure as long as life lasts. There is symbolic as actual beauty in the migration
of the birds, the ebb and flow of the tides, the folded bud ready for the spring. There is something infinitely
healing in the repeated refrains of nature», CARSON in KELLERT, 2005: 72, 73. Versão portuguesa, 2012:
41, 43, 66, 67. De modo idêntico EMERSON afirmava, «Para dizer a verdade poucos adultos conseguem
ver a Natureza. A maior parte das pessoas não vêm o Sol. Pelo menos, têm um ver muito superficial. O Sol
ilumina, apenas os olhos do homem, mas brilha nos olhos e no coração de uma criança. O que ama a
Natureza é aquele cujos sentidos exteriores e interiores estão ainda ajustados uns aos outros, o que guardou
o espírito da infância mesmo na idade adulta», EMERSON, 2001:19.
Implicitamente, Carson parece lembrar que a capacidade de cura própria da natureza
constitui uma espécie de convite à nossa preocupação com ela que conduz ao cuidado e à
responsabilidade por ela. Subsistem no discurso de Carson aspectos que remetem para
uma Ética do Cuidado 6 (o ‘maternal’ e a nurturing sensibility como fundamento dos
valores éticos), convergentes, aliás, com princípios estruturantes de outras éticas
ambientais (nomeadamente a Ética da terra), enquanto éticas de inter-acção, de
companhia, de afecto e que exigem responsabilidade. Uma responsabilidade tanto mais
premente, quanto se constata que o efeito perverso do império da tecnologia tem reduzido
a faculdade estético-contemplativa a uma dimensão crepuscular, implicando, no seu
imparável progredir, uma desvalorização do modo de ser estrutural do ser humano que é
o de ser-com-os-outros.
Por isso, e independentemente do género de abordagem, o grau de ameaça da crise
ecológica obriga à configuração de um novo paradigma ético capaz de realizar a unidade
do ser humano na unidade da acção7. Significa isto que a sensibilidade, o entendimento e
a razão prática confluem numa consciência ecológica que se projecta na acção englobante
da realidade humana e não humana, ampliando o significado e a dimensão de cidadania.
Sendo inseparável deste projecto, a educação ambiental surge como protagonista
fundamental na formação de cidadãos capazes de pensar e agir ambientalmente.
Lembrando-nos de Kant e de Schiller, é-nos muito convincente a ideia de que a
modelação de uma «bela alma», sensível e atenta à beleza do mundo, concorrerá para o
desenvolvimento de uma «boa alma», capaz de agir como se, «A máxima da sua acção
fosse uma lei universal da Natureza»8. Assim sendo, afirmamos que o ponto de partida
para um ‘mundo mais ético’, neste caso, aquele que realiza a unidade da acção
harmonizando o ser humano com a natureza e com todo o outro que faz parte da
comunidade moral, será, então, uma pedagogia da sensibilidade que persuada, desde a
6
Sobre o tema ‘Género e Ambiente’ na sua declinação ecofeminista que postula uma Ética do Cuidado (via
de acção conduzida pelos sentimentos, pelo cuidado, pela compaixão, ao invés da razão, do dever e da
justiça), consulte-se Mª Luísa RIBEIRO FERREIRA, 2009.
7
Hermann COHEN, in SOROMENHO-MARQUES, 1998: 128.
8
«Handle so, als ob die Maxime deiner Handlung durch deinen Willen zum allgemeinen Naturgesetze
warden sollte» KANT, Grundlegung der Metaphysic der Sitten (1785), in SOROMENHO-MARQUES,
1998: 147-148.
infância, a prestar atenção às manifestações naturais de beleza que despertam admiração
e suscitam o respeito. Com efeito, sendo o modo mais imediato e intuitivo de relação com
a realidade natural, a sensibilidade estética será também a via em que mais precocemente
se apreende o belo compreendendo-o9, nessa apreensão, como «símbolo da moralidade».
Será necessário, por isso, configurar uma pedagogia ambiental que afirme como
pressuposto a correlação estrutural da faculdade estética com as outras faculdades, a partir
de uma antropologia que afirma o humano como unidade bio-psico-sociológica dinâmica
e aberta ao mundo (sociedade e ambiente natural), e que assume «A tese de que a
identidade humana não é estático-contemplativa, mas dinâmico-histórica»10. Tal significa
que tanto o entendimento, como a sensibilidade estética e a racionalidade prática são
entendidos no seu significado filogenético, co-evoluindo e reactualizando-se numa
constante dialéctica com o meio. A nosso ver, significará também que a plena realização
das faculdades exigirá apropriada estimulação a partir dos primeiros anos que cultive a
afinidade entre a espontaneidade da percepção estética da natureza e os sentimentos
morais que daí emergem (respeito, cuidado, responsabilidade).
O tema da afinidade natural entre o ser humano e o seu envolvente natural é posto como
hipótese de investigação por Edward Osborne Wilson na sua obra Biophilia (1984), tema
que continua em The Biophilia Hypothesis (1993), obra editada com Stephen Kellert.
Especificamente, a questão da continuidade natureza-cultura e a tese de que há precursão
genética na determinação das faculdades estética e ética é sustentada por uma consistente
linha de investigação que evolui até a actualidade a partir das teses de Darwin (ver
Kirchof, 200811). Na esteira do evolucionismo cultural, a hipótese da biofilia de Wilson
estabelece a vinculação inata entre o ser humano e as outras formas de vida não-humanas,
fruto da co-evolução genes/cultura, e que, segundo o autor, carece de um input constante
9
Usamos aqui o termo compreensão no sentido que lhe é dado por KRISHNAMURTI (1992): «Com a
palavra compreender não me refiro a algo intelectual... Só podemos compreender alguma coisa quando
aplicamos a mente, o corpo, os sentidos, os olhos, os ouvidos, o nosso ser inteiro. E dessa compreensão
nasce a acção total, e não uma acção fragmentária, contraditória»: 29.
10
SOROMENHO-MARQUES, 1998:128.
11
Kirchof sustenta a tese da continuidade natureza-cultura no livro Estética e Biossemiótica (2008) através
de uma sólida argumentação que demonstra a passagem gradual dos fenómenos estéticos da natureza
(biosfera) para os fenómenos estéticos da cultura (semiosfera) .
a partir do meio natural, um conjunto rico e diversificado de experiências exploratórias
em ambiente natural, que o cérebro humano vem preparado para processar tendo em vista
o seu amplo e completo desenvolvimento. Analogamente, Stephen Kellert (da área de
Ecologia Social) afirma a necessidade de actualização das tendências inatas biofílicas
mediante a aprendizagem em contexto natural que contemple a multi-dimensionalidade
das funções humanas, seja a necessidade de conhecimento, o apelo estético, o reforço da
afectividade ou a expansão da criatividade e da imaginação. Analisando três formas de
contacto com a natureza (directo - envolvimento físico em áreas naturais; indirecto participação em naturezas planeadas como zoos, jardins botânicos, museus de História
Natural; simbólico - representações audiovisuais da natureza), Kellert (2002) considera
que apenas a natureza vivida directamente concorre para o pleno desenvolvimento
psicossomático e para a formação de uma consciência ambiental. Segundo o autor, tanto
o contacto com a natureza em zoos como, sobretudo, a visão passiva de realidades naturais
em écrans de televisão carecem de estímulos que desafiem activa e amplamente as
capacidades criativas espontâneas que favorecem o comportamento adaptativo. No livro
Birthright: People and Nature in the Modern World (2012) Kellert analisa a resposta
estética 12 à natureza considerando que esta decorre fundamentalmente de um acto de
curiosidade provocado por um objecto natural que gera uma reacção (estética) que induz
a observação e, frequentemente, a reflexão e a acção. Já Konrad Lorenz apontava o
comportamento de curiosidade (Neugierverhalten) como o motor genético para a acção
exploratória que gera o conhecimento do mundo externo, a pesquisa científica e a criação
da obra de arte13. Lorenz integra as ideias de Darwin sobre a função da aparência na defesa
12
Kellert (2012) identifica e explicita os traços psico-genéticos da relação humana com a natureza:
atracção, aversão, razão, exploração, espiritualidade, ética (entre outros), demonstrando a fulcralidade dessa
relação na formação e desenvolvimento do ser e considerando que o viver moderno constitui uma ilusão
que antagoniza a cultura à natureza, colocando em risco o bem-estar humano e falseando o sentido profundo
da humanidade. A partir da defesa da hipótese da biofilia e das teses leopoldianas, Kellert desenvolve um
robusto trabalho de investigação dirigido à educação das crianças e à demonstração dos efeitos positivos
da aprendizagem em espaços naturais livres.
13
«Quando a curiosidade encontra a sua ação final em algum estímulo externo, gera o comportamento
explorativo que permite o conhecimento do mundo externo. Quando ele não se dirige por qualquer acção
final específica gera uma Leerlaufhandlung: nesse caso, tem-se o comportamento lúdico ou jogo (Spiel)»
KIRCHOF, 2008:47. Segundo Lorenz, o Spiel é mobilizado pelo prazer heurístico, é espontâneo e criativo,
contra predadores e da beleza na selecção sexual, ampliando-lhes o significado e
convertendo-as numa espécie de código perceptivo do mundo externo que distingue o
belo/saudável/atractivo, do feio/doente/repulsivo 14 . Coerente com esta linha teórica
(etologia, biologia, sociobiologia), Kellert integra a resposta estética no contexto biopsico-social evolucionário, admitindo que a reacção estética é uma forma de resolução
adaptativa, ou seja, uma resposta especializada aos desafios particulares da sobrevivência
através da qual o ser humano organiza a sua experiência e o seu mundo, integrando o
particular em totalidades com sentido, ordenando, descobrindo simetrias, enfim,
cosmicizando o caos e contribuindo para os sentimentos de segurança e conforto. Neste
sentido, as vantagens adaptativas da atracção estética transformam-na numa via de coesão
e sobrevivência da espécie que, por isso, se impregna biologicamente nos genes e se
manifesta espontanea e sensivelmente.
Embora não possuindo a envergadura científica de Edward O. Wilson, ou o fôlego de
investigação de Kellert (que tem produzido uma obra sólida e consistente, declaradamente
tributária da Land Ethic e em defesa da hipótese da biofilia), também o mentor da Ética
da terra, Aldo Leopold (1949)15, intuía a associação entre a beleza natural e a evolução
adaptativa humana, sugerindo que a afinidade estética entre humanos e não humanos é
um aspecto central da adaptação bio-ecológica e uma consequência da inter-relação
natureza e homem. Biofilia, simbiose e simbiose benevolente (Varandas, 2003) são,
efectivamente, conceitos operativos epistemologicamente relacionados que, por
princípio, admitem e expõem a natural afinidade do ser humano com a natureza, a matriz
de onde brota a ética, a estética e todo o conjunto de representações culturais.
Indo mais longe, as coordenadas gerais da hipótese da biofilia – tendências inatas de
conexão com a natureza, entre as quais se destaca a atracção estética – ao identificarem
tendências formulam em simultâneo a necessidade que lhes é inerente - a sua estimulação
em contexto ecológico, tendo em vista a actualização e o pleno desabrolhar da matriz
e pode orientar-se em dois sentidos: por um propósito determinado e claro (pesquisa científica) ou
permanece na esfera lúdica, livre e prazerosa (obra de arte).
14
KIRCHOF, 2008: 43.
15
«Leopold, reflecting on the perception of nature’s beauty to an intuitive understanding of the health and
integrity of natural systems, remarked: “A thing is right when it tends to preserve the integrity, stability,
and beauty of the biotic community. It is wrong when it tends otherwise”», KELLERT, 2012: 3.
biofílica. Daí que Kellert (2002) em linha com psicólogos, sociólogos e ecólogos sociais
enfatize a fulcralidade do contacto com a natureza na infância (outdoor education)
dirigido ao desenvolvimento harmonioso do potencial psico-cognitivo do ser16. O modelo
teórico que informa as investigações multidisciplinares de Kellert segue Piaget e
Kohlberg numa linha estruturalista/desenvolvimentista que integra o inato e o adquirido
numa dinâmica de aprendizagem na qual o sujeito activamente constrói as estruturas
cognoscitivas fundamentais à sua adaptação ao meio. Um modelo que, de igual modo,
informa o trabalho do seu colega de investigação, o psicólogo Peter Kahn Jr., e que
orientou o robusto estudo comparativo cross-cultural (um dos estudos foi realizado em
Lisboa) que este investigador realizou sobre as percepções e representações gerais de
crianças e adolescentes acerca da natureza/aspectos da natureza/degradação ambiental
(Kahn, 2002) e cujas conclusões demonstram que os sujeitos considerados encaram a
natureza como uma fonte de múltiplos e variados estímulos que lhes permitem a
construção estruturada de valores e de concepções sobre o mundo. A este respeito, Kellert
(2005) cita a psicóloga Edith Cobb que, no seu estudo The Ecology of Imagination in
Chidhood, constata que a maioria das pessoas mais dotadas atribuem à memória das suas
vivências infantis em ambientes naturais a base emocional da sua produção criativa,
forjando nelas o sentido do maravilhoso, o desejo de exploração e o impulso para a
descoberta.
A situação actual se, por um lado, mostra uma diminuição do contacto directo com a
natureza de uma geração para outra (um estudo dirigido às mães revela que 71% delas
brincaram ao ar livre na infância, contra os 31% das suas crianças que actualmente o
fazem 17 ), por outro, indica uma progressiva habituação a ambientes ecologicamente
degradados (rios poluídos, lixo, desaparecimento de áreas arborizadas na vizinhança) que
16
«Even in today´s world of accumulated knowledge and powerful electronic communication, the natural
world remains the most sensory-stimulating and information-rich environment people ever encounter»
KELLERT, 2012: 4.
17
«Not only have children’s play environments dramatically changed in the last few decades, but also the
time children have to play has decreased. Between 1981 and 1997, the amount of time children ages 6 to 8
in the U.S. played decreased 25 %... a recent study surveyed mothers and found that 70% of mothers played
outdoors everyday when they were children, compared only 31% of their children» KELLERT, 2005: 81.
Kahn designa por «amnésia geracional ambiental»18. Com efeito, a sociedade urbana, hoje
em dia, opta cada vez mais por formas de contacto simbólico com o ambiente natural,
mediante o qual a criança configura representações formais e supervisionadas de uma
natureza meramente virtual, num processo de «extinção» da experiência19 que parece
correr em paralelo com a extinção global da biodiversidade. E, embora, um leque amplo
de literatura especializada, escorada em investigações que contemplam inúmeros casosde-estudo, aponte com reincidência os benefícios das afiliações positivas com a natureza
no bem-estar cognitivo, psicológico, emocional e espiritual dos seres humanos, o
progressivo empobrecimento e destruição do ambiente continua e concorre perigosamente
para a destruição da maturação bem sucedida das aquisições e construções psicológicas
da criança. Para Kahn a resolução de toda a problemática implicada na questão da
«amnésia geracional ambiental», dado que esta tem a sua origem na infância, começa,
justamente, pela própria infância:
Precisamos de comprometer as crianças numa educação ambiental construtivista a fim de
maximizar a exploração e a interacção com a natureza que ainda existe ao seu alcanceinsectos, animais domésticos, plantas, árvores, vento, chuva, solo, sol (...) Precisamos
também de reconhecer que as crianças constroem o conhecimento e os valores não apenas
através da interacção com o mundo físico, mas também através da interacção com o mundo
social e com o discurso social.20
Por seu turno, Kellert sublinha que ainda não se conhecem, na sua total amplitude e a
longo-prazo, os efeitos na maturação psico-cognitiva infantil de quotidianos pobres em
estímulos apropriados e com escassas oportunidades de experiência directa no mundo
natural. Pergunta Kellert, poderá o reforço substancial dos contactos indirectos ou
simbólicos com a natureza substituir e, até, compensar a perda acelerada dos arrabaldes
naturais próximos das habitações? O extraordinário aumento da informação tecnológica
que proporciona o acesso a realidades naturais distantes e exóticas, ou o constante
aperfeiçoamento no design de zoos e similares tendo em vista
18
«People take the natural environment they encounter during childhood as the norm against which they
measure environmental degradation later in their life. With each ensuing generation, the amount of
environmental degradation increases, but each generation takes that degraded conditions as the
nondegraded condition, the normal experience…As we lose daily intimate positive affiliations with nature
and accept negative experiences (such as pollution) as the norm, we suffer physically and psychologically
and hardly know it», KAHN, 2002: 113.
19
KELLERT, 2002: 141.
20
«We need to engage children in a constructivist environmental education to maximize their exploitation
of and interaction with nature that still exists within their purview – bugs, pets, plants, trees, wind, rain,
spoil, sunshine (…) We also need to recognize that children construct knowledge and values not only
through interaction with a physical world but through interaction with a social world and a social
discourse» KAHN, 2002: 113.
recriacções ‘fidedignas’ do habitats originais constituirão uma vantagem geracional
efectiva? Até agora, as investigações que procuram dar resposta a estas questões têm
mostrado que os efeitos positivos no conhecimento pessoal das realidades naturais
experienciadas de forma indirecta são transitórios e raramente contribuem de forma
significativa para o desenvolvimento emocional e cognitivo da criança, talvez porque,
como afirma Robert Pyle, as crianças necessitam de espaços livres para jogar às
escondidas, subir uma árvore, trepar as rochas, descobrir atalhos por entre o matagal19,
pois, como declara Rosario Assunto (Il Paesaggio e l’Estetica, 1973), é na infância que
as coisas do mundo natural são intensamente vividas e é nesse solo vivencial que se dá a
irrupção estética e se apreende o sentido originário do agir:
Aquela perene redescoberta da infância que é saborear uma amora, um mirtilo, um morango
do bosque – ou, simplesmente, sentir o gosto salgado e iodado do ar marinho; ou então,
como em certas longas tardes de Primavera, ter na boca, sem nada ter comido, um sabor
tenro de clorofila, chegado com o vento. Sabores, cheiros; e a doçura da terra batida; a
pedregosidade dos caminhos de montanha (...) este bem é sentido na experiência estética da
paisagem como uma componente da sua beleza20.
Apesar da força e alcance universais das palavras de Assunto, a vivência infantil está,
hoje, atolada de mecanismos tecnológicos e imersa na artificialidade que, pela sua própria
dinâmica de falsificação, é fonte de alienação e de empobrecimento da pessoa e do
cidadão futuros. O contacto directo com os seres vivos (amoras, mirtilos, morangos,
insectos, aves e mamíferos) e físicos (ar, solos, águas, rochas), afecta a criança de um
modo que nenhuma experiência simbólica pode substituir. Porque a riqueza dessa relação
estrutural modela e amplifica toda a riqueza multi-dimensional humana: o sentir em toda
19
KELLERT, 2005: 87.
20
ASSUNTO, 2011: 367, 368.
a sua gama de cambiantes (espanto, aversão, atracção, medo, afecto), o pensar (curioso,
experimentalista ou meditativo), o comunicar, o criar.
«Falta hoje um sentido generalizado de intimidade com o mundo vivo»21; uma intimidade
que se funda na sensibilidade originária, participativa e comprometida com o mundo
natural, desencadeada pela experiência viva e plena de «alegria» que, como afirmava
Schiller, todos sorvemos do seio da natureza22 e que concorre para a modelação de uma
«vontade boa» capaz de se interessar pela protecção das realidades não-humanas.
III
Dado o exposto, e segundo o nosso ponto de vista tributário da Ética da terra, é urgente
a transição do humano de conquistador a cidadão da terra (Leopold, 1949). Uma transição
cujo ponto de partida será o despertar dos sentidos, realizando a afinidade entre o homem
e a natureza de modo a ver a flor, a árvore, cada ser vivo e cada recorte natural não como
realidades apartadas, mas como partes integrantes e indispensáveis do viver e do mundo
humanos. Considerando o sentido do «maravilhoso» de Rachel Carson e admitindo, sem
reservas, que a sensibilidade ao belo natural constituirá, no futuro do ser, o solo fértil do
conhecimento e da acção, a educação ambiental deve ser encarada como via de formação
integral do ser humano, promovendo experiências significativas de estimulação da
sensibilidade e de reforço das vinculações afectivas que não só privilegiem o contacto
directo com a natureza e reavivem afinidades, mas que enquadrem a arte (música,
escultura, pintura, poesia), a ciência (fundamentos da Biologia e Ecologia dirigidos à
curiosidade infantil) e a literatura tradicional na vivência da natureza.
Tal significa que a propedêutica a uma cidadania planetária, capaz de englobar na esfera
de consideração moral a realidade não-humana, deve começar pela atenção ao natural
promovendo e desenvolvendo o comprometimento com o mundo físico, mediante o apelo
ao jogo harmónico das faculdades (imaginação e entendimento) influentes no
florescimento do sentido prático (razão), enquanto faculdade de se interessar pela
preservação da qualidade estética e ecológica das realidades naturais por si mesmas.
Sublinhe-se que a educação de que se fala aqui é estranha ao didactismo carregado de
preceitos e normas, mas inscreve-se no plano que visa o desenvolvimento harmonioso do
21
Robert PYLE in KELLERT, 2005: 84.
22
ASSUNTO, ibid.: 372.
ser, mediante o encorajamento de uma sensibilidade presente tanto na fruição da beleza
como na fruição da liberdade moral. Será essa sensibilidade, expressão exemplar do
género humano na qual cintila sem cessar um ideal de harmonia e de perfeição, o
fundamento de uma consciência exemplar capaz de compreender que o mundo natural é
o constitutivo indestrinçável da essência própria da humanidade.
Terminamos a nossa reflexão com as palavras de Kellert:
A sociedade contemporânea está, justificadamente, orgulhosa do seu padrão de vida, da
sua saúde física, e de todos os confortos materiais que atingiu. Porém, para terem
sucesso e serem sustentáveis, não só do ponto de vista material mas também psicologica
e espiritualmente, as referidas realizações devem fundar-se no leito de uma relação
positiva e formativa (nurturing) com o mundo natural. Esta dependência não é apenas
uma questão de matérias, água potável, solos produtivos, e todo o elenco de serviços
ecossistémicos. Mais profundamente, trata-se da nossa capacidade de sentir, pensar,
comunicar, criar, resolver problemas, amadurecer, formar uma identidade segura e com
sentido e encontrar significado e finalidade nas nossas vidas.23
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de Fogo.
23
«Contemporary society is justifiably proud of its standard of living, physical health, and all the material
comfort it has achieved. Still, to be successful and sustainable, not just materially but also psychologically
and spiritually, these achievements must rest on a bedrock of positive nurturing relationship to the natural
world. This dependence is not just a matter of raw materials, clean water, productive soils, and an array of
ecosystem services. More fundamentally, it is related to our capacity to feel, to think, to communicate, to
create, to solve problems, to mature, to form a secure and meaningful identity and to find meaning and
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