Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
N719
Nipo-brasileiros: arte, cultura e história / Organizadores Monica
Setuyo Okamoto, José Carvalho Vanzelli. – São Paulo: Pimenta
Cultural, 2023.
Livro em PDF
ISBN 978-65-5939-712-9
DOI 10.31560/pimentacultural/2023.97129
1. História. 2. Relações Brasil-Japão. 3. Imigração japonesa.
4. Nipo-brasileiro. I. Okamoto, Monica Setuyo Okamoto
(Organizadora). II. Vanzelli, José Carvalho Vanzelli (Organizador).
III. Título.
CDD 980
Índice para catálogo sistemático:
I. História da América do Sul.
Jéssica Oliveira – Bibliotecária – CRB-034/2023
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.
Copyright do texto © 2023 os autores e as autoras.
Copyright da edição © 2023 Pimenta Cultural.
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Universidad Internacional Iberoamericana del Mexico, México
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Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
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Thiago Camargo Iwamoto
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Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
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Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
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Instituto Federal de Alagoas, Brasil
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Universidade Federal de São Carlos, Brasil
PARECERISTAS E REVISORES(AS) POR PARES
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Jacqueline de Castro Rimá
Universidade Luterana do Brasil, Brasil
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Alexandre João Appio
Lucimar Romeu Fernandes
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil
Instituto Politécnico de Bragança, Brasil
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Marcos de Souza Machado
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Universidade Federal da Bahia, Brasil
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Michele de Oliveira Sampaio
Universidade de São Paulo, Brasil
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Catarina Prestes de Carvalho
Pedro Augusto Paula do Carmo
Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, Brasil
Universidade Paulista, Brasil
Elisiene Borges Leal
Samara Castro da Silva
Universidade Federal do Piauí, Brasil
Universidade de Caxias do Sul, Brasil
Elizabete de Paula Pacheco
Thais Karina Souza do Nascimento
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil
Instituto de Ciências das Artes, Brasil
Elton Simomukay
Viviane Gil da Silva Oliveira
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil
Universidade Federal do Amazonas, Brasil
Francisco Geová Goveia Silva Júnior
Weyber Rodrigues de Souza
Universidade Potiguar, Brasil
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil
Indiamaris Pereira
William Roslindo Paranhos
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
PARECER E REVISÃO POR PARES
Os textos que compõem esta obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial da Pimenta Cultural, bem
como revisados por pares, sendo indicados para a publicação.
Sumário
Prefácio .......................................................................................... 12
ARTE
Capítulo 1
Arte de Rua no Brasil e no Japão:
vivências do artista nipo-brasileiro Titi Freak ...................................... 17
Robson Mori
Capítulo 2
A Transcriação nos Diálogos Interculturais
da Arte Nipo-Brasileira: Manabu Mabe,
Tikashi Fukushima e Tomie Ohtake .................................................. 48
Felipe Mendes Pinto
Michiko Okano
CINEMA
Capítulo 3
Cinema, Memória e Representação
da Vida Rural dos Japoneses no Brasil ........................................ 70
Alexandre Nakahara
Capítulo 4
A Identidade Nacional em Disputa: memória,
estrangeirismo e fronteira em
“Gaijin – Caminhos da Liberdade” ................................................... 87
Hugo Katsuo
CULTURA
Capítulo 5
Sen no Rikyû: sua influência na estética
e literatura da cerimônia do chá .................................................... 102
Giorgia Vittori Pires
Márcia Hitomi Namekata
Capítulo 6
A Arte dos Tambores Japoneses no Brasil................................. 120
Rafael Mariano Garcia
Eduardo Okamoto
DANÇA
Capítulo 7
Butô no Japão... Butô no Brasil: o processo
de formulação desse projeto poético e suas
reverberações nos artistas brasileiros............................................ 145
Hadiji Yukari Nagao
HISTÓRIA
Capítulo 8
“O mais Curioso e o mais Delicioso
País do Mundo”: a viagem e as observações
de um brasileiro sobre o Japão no século XIX ............................... 166
Kelly Yshida
Capítulo 9
Precursores: japoneses no Brasil antes
do início oficial da migração em 1908 ........................................... 183
Willians Marco de Castilho Junior
Capítulo 10
O Japão e o Trabalhador Migrante:
uma análise dos desafios que o país
enfrenta em seu mercado de trabalho ........................................... 199
Larissa Schmitz Nunes
LITERATURA
Capítulo 11
Do Lar à Liberdade: as (des)identidades
das nikkeis no romance Sonhos
Bloqueados (1980-1991) ............................................................... 221
Luana Martina Magalhães Ueno
Capítulo 12
O Ensaio na Literatura Japonesa:
Makura no Sôshi e Tsurezuregusa .................................................. 241
Victoria Toscani
Márcia Hitomi Namekata
Capítulo 13
Literatura Proletária Japonesa .................................................... 261
Lívia Rodrigues Macedo
Capítulo 14
Nihonjin, de Oscar Nakasato e Peixes
de Aquário, de Rafaela Tavares Kawasaki:
uma leitura da imigração japonesa
e os reflexos da Segunda Guerra Mundial
na comunidade Nipo-brasileira...................................................... 288
Lucimara Ota Eshima
Capítulo 15
A Terra que meus Olhos Rasgou Ficou:
as mulheres nipônicas................................................................... 310
e nipo-brasileiras de Nihonjin
Nathaly Iara Justino do Nascimento
Sobre os organizadores .............................................................. 328
Sobre os autores e autoras ......................................................... 329
Índice remissivel .......................................................................... 333
Prefácio
A coletânea Nipo-brasileiros: Arte, Cultura e História surge com
a proposta de trazer a público estudos de jovens pesquisadores –
graduados e pós-graduandos – que contribuem para o fortalecimento
das relações Brasil-Japão em diversas áreas do conhecimento. Intencionamos oportunizar um espaço para publicação de trabalhos científicos desses pesquisadores em início de carreira, os quais, muitas
vezes, sem o respaldo de uma instituição ou supervisão, dificilmente
conseguiriam visibilidade para os seus estudos. Esta coletânea teve
ainda outro desafio maior: propomos aos autores(as) que os trabalhos
fossem de fácil compreensão à população, uma vez que as pesquisas
científicas podem gerar pouco impacto na comunidade externa às universidades, devido à falta de conhecimento do conteúdo.
Importante esclarecer que tentamos ampliar o sentido da palavra “nipo-brasileiro”, buscando dar espaços a trabalhos que tratam
de brasileiros sem ascendência japonesa e de japoneses que não se
radicaram no Brasil, mas que, igualmente, contribuíram para o estreitamento dos laços entre Brasil e Japão. Da mesma forma, há espaço
garantido para estudos realizados por brasileiros que exploram a cultura e a literatura japonesa, dando também sua contribuição para a
aproximação dos dois países.
O leitor notará o esforço de contemplar estudos de diversas
artes e áreas de saber, tais como as artes visuais, o cinema, a dança,
a literatura, a música, a história, entre outros. Também, uma leitura integral do volume revelará o empenho, por parte dos(as) autores(as),
em se direcionar a um público para além da academia. Como dissemos, é nosso desejo que os estudos aqui realizados possam atingir
um público duplo: os estudantes e os pesquisadores universitários,
bem como demais interessados no universo cultural nipo-brasileiro
sumário
12
que estão fora do contexto do ensino superior brasileiro. Desta forma,
sem deixar de oferecer análises que contribuem especificamente às
fortunas críticas dos artistas contemplados, os textos foram redigidos
de forma que sejam de leitura agradável ao público sem familiaridade
com os rigores da escrita científica.
O volume se abre com o texto de Robson Mori que nos apresenta a trajetória e a arte do artista nipo-brasileiro Hamilton Yokota de
Paula Lima, mais conhecido pelo seu nome artístico “Titi Freak”, sem
deixar, no entanto, de apresentar outros nomes brasileiros e japoneses relevantes no cenário da Arte Urbana. A seguir, Felipe Mendes
Pinto, em coautoria com a Professora Dra. Michiko Okano, nos leva
a conhecer os diálogos interculturais na arte de três artistas nascidos
no Japão, que imigraram ao Brasil e se relacionam com a corrente
artística conhecida como Abstracionismo Informal: Manabu Mabe,
Tikashi Fukushima e Tomie Ohtake.
A relação Brasil-Japão no cinema é estudada nos textos de
Alexandre Nakahara e Hugo Katsuo. O primeiro explora temáticas
caras à história e à memória dos imigrantes japoneses no Brasil, as
quais são abordadas em três filmes que foram dirigidos por nipo-brasileiros ou que tematizaram suas vidas no país: Meu Japão Brasileiro
(1965), Piconzé (1972) e Chá Verde e Arroz (1989). Já o segundo examina o contexto da imigração japonesa no filme Gaijin - Caminhos da
Liberdade (1980), dirigido por Tizuka Yamasaki.
A música está contemplada no estudo de Rafael Mariano Garcia e do Professor Dr. Eduardo Okamoto, que nos revelam algumas
informações sobre a história do Taiko – os tambores japoneses – no
Brasil. Já a dança é tema do estudo de Hadiji Yukari Nagao que fala
do Butō, arte cênica japonesa do século XX que conquistou (e conquista) muitos admiradores no mundo todo. A arte nipônica da cerimônia do chá, sua ligação com a literatura e presença na cidade de
Curitiba estão presentes no texto de Giorgia Vittori Pires, em coautoria
sumário
13
com a Professora Dra. Márcia Hitomi Namekata. Esse texto, de cunho
intimista, tem seu foco nos ensinamentos de Sen no Rikyū.
A História é tema de três trabalhos presentes nesta coletânea.
O primeiro, de Kelly Yshida, resgata o relato inaugural sobre o Japão
feito por um brasileiro no livro Da França ao Japão, publicado em 1879
e de autoria de Francisco Antônio de Almeida. Já o seguinte, de Willians Marco de Castilho Júnior, se detém em oficiais japoneses que
estiveram no Brasil antes do início da imigração japonesa, em 1908,
com especial atenção à figura de Thomas Wasaburo Otake. Por fim,
Larissa Schmitz Nunes reflete sobre a história e a política contemporânea japonesa, se centrando na situação dos trabalhadores migrantes,
sejam eles brasileiros ou de outros países.
A última sessão desta coletânea conta com cinco trabalhos voltados ao universo literário. São estudos que levam em conta a literatura produzida tanto no Japão quanto por escritores nipo-brasileiros.
A literatura japonesa é contemplada nos estudos de Victoria Toscani
B. Fernandes, em coautoria com a Professora Dra. Márcia Hitomi Namekata, e de Lívia Rodrigues Macedo. As primeiras refletem sobre o
gênero zuihitsu – ensaio – da literatura japonesa clássica, oferecendo comparações entre dois textos basilares deste gênero: Makura no
Sôshi (1002), de Sei Shônagon e Tsurezuregusa (1330-1332), de Yoshida Kenkō. Já o trabalho de Lívia apresenta um panorama da Literatura
Proletária Japonesa, da primeira metade do século XX. A chamada
“literatura nikkei” ganha sua primeira reflexão neste volume com o
texto de Luana Martina Magalhães Ueno, que examina as identidades
nikkei no romance Sonhos Bloqueados (1991), de Laura Honda-Hasegawa. O romance Nihonjin (2011), de Oscar Nakasato, vencedor
do Prêmio Jabuti de 2012, é analisado nos dois textos seguintes. Lucimara Ota Eshima o estuda em comparação com o romance Peixes
de Aquário (2021), de Rafaela Tavares Kawasaki, focando em como a
história da imigração japonesa surge nos dois romances. Já Nathaly
sumário
14
Iara Justino do Nascimento se centra nas personagens femininas nipônicas e nipo-brasileiras do romance de Nakasato.
Desta forma, a palavra que resume nossos objetivos neste trabalho é a visibilidade. Desejamos que esta obra possa, por um lado,
aprofundar as pontes construídas entre Brasil e Japão, em homenagem aos 125 anos da Imigração Japonesa em nosso país e, por
outro, dar maior visibilidade aos estudos japoneses e nipo-brasileiros
de nossos jovens pesquisadores.
Profa. Dra.Monica Setuyo Okamoto (UFPR)
Prof. Dr. José Carvalho Vanzelli (UFPR)
Curitiba, fevereiro de 2023.
sumário
15
ARTE
ARTE
Capítulo 1
Arte de Rua no Brasil e no Japão: vivências do
artista nipo-brasileiro Titi Freak
Robson Mori
1
Robson Mori
Arte de Rua
no Brasil e no Japão:
vivências do artista
nipo-brasileiro Titi Freak
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.1
A Arte de Rua ou Street Art faz parte do cotidiano da população
brasileira nos centros urbanos do país. Segundo a historiadora Elizabeth Prosser1, o grafite (grafitti), pichação (pixo), lambe-lambe, stencil
e stickers são as técnicas e os meios utilizados para realizar as interferências na paisagem urbana; e a abrangência não se limita apenas
às suas técnicas, mas também ao seu uso. Ela vai desde a pichação,
que demarca um território, suja, incomoda, desafia a autoridade, até
o grafite, manifestação artística em que se reconhecem preocupações
estéticas e críticas maiores2. Assim, nas mais diversas formas, a arte
urbana tem a intenção de criticar e transformar a ordem vigente.
A Arte Urbana já está inserida em nosso cotidiano seja nos
muros das casas, em exposições de museus, em temas de roteiro
turístico e até mesmo em produtos de marcas famosas. Os exemplos
citados são encontrados no contexto brasileiro, mas nos perguntamos: E para os japoneses?
Hidetsugu Yamakoshi e Yasumasa Sekine3 explicam que a história da arte de rua e do grafite no Japão (em Tóquio, particularmente)
tem início e expansão entre jovens na década de 90 e popularização
em larga escala depois do ano 2000. Apesar do maior contato da população com a arte urbana que passou a ocorrer em demonstrações
de pinturas ao vivo e em espaços institucionalizados como galerias
sumário
1
Aurora da obra Graffiti Curitiba, resultado da tese de doutorado em Meio Ambiente e
Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (PROSSER, 2010).
2
Segundo Alexandre Barbosa Pereira (2005), a pixação e grafites são tratados de forma
diferente. A pixação é relacionada ao vandalismo, sujeira, depredação da paisagem e
o grafite conseguiu obter status de arte, manifestação que embeleza o espaço urbano.
Entretanto, o grafite em seu início enfrentou dificuldade de classificação por estar nas ruas
e não nos museus de arte. Com a entrada das pixações, a repressão passa a ser sobre
estas e motivou uma maior tolerância ao grafite. A aversão a pixação proporcionou ao
grafite adquirir notoriedade junto à mídia e população. A oposição dicotômica rígida entre
pixação e grafite não reflete as relações entre essas duas formas de expressão uma vez
que não estão separadas, mas em uma interação complexa e nuançada. É equivocado
entender que o grafite seria uma evolução natural da pixação. Cabe ressaltar que essa
distinção entre pixação e grafite é específica no Brasil, no restante do mundo o que aqui
é denominado como pixação seria apenas um estilo dentro do grafite.
3
Autores do capítulo Graffiti/street art in Tokyo and surrounding districts da obra Routledge
Handbook of Graffiti and Street Art (YAMAKOSHI; SEKINE, 2016).
18
de arte, a criminalização ocorreu de forma similar a outros locais do
mundo4. Em 2010, foi realizado um relatório pela Secretaria de Assuntos Juvenis e Segurança Pública do Governo Metropolitano de Tóquio
que concluiu que o grafite arruinava a aparência da cidade e aumentava o número de atividades criminosas. A orientação governamental
foi do estabelecimento de organizações comunitárias e remoção das
intervenções urbanas. Residentes voluntários junto de limpadores profissionais contratados pelo governo local realizaram a tarefa. Apesar
desse contexto, ações de inclusão do grafite também ocorreram como
a organização sem fim lucrativo KOMPOSITION com o projeto “Legal
Wall” que buscou realizar negociações com o governo e residentes
atrás de muros que pudessem ser pintados de forma autorizada.
Observamos que a arte de rua se popularizou tanto no Brasil
como no Japão, mesmo que de forma conturbada. A familiaridade da
população com a arte no país oriental é menor do que aqui, visto ser
uma história mais recente5 e a fiscalização ser maior. Apesar disso, como
fazer para praticá-la no país do sol nascente? Provavelmente, a pessoa
mais indicada para responder essas perguntas seria o artista nipo-brasileiro Hamilton Yokota de Paula Lima, mais conhecido pelo seu nome artístico Titi Freak, por produzir Arte de Rua tanto no Brasil, como no Japão.
A carreira artística de Titi Freak pode ser interpretada como uma
representação dos laços entre Brasil-Japão, uma vez que as suas
obras traduzem bem a proposta deste livro e, neste texto, destacamos
as temáticas que tratam dessa relação entre os dois países.
sumário
4
Um exemplo de política sistemática de apagamento de grafites presentes nas vias públicas foi o programa Cidade Limpa de responsabilidade do secretário Andrea Matarazzo na gestão da prefeitura de São Paulo de José Serra/Gilberto Kassab entre 2005 a
2009 (FRANCO, 2009).
5
No Brasil, ainda antes de 1964 já se encontravam pichações de protesto nas paredes das
grandes cidades. O boom do grafite acontece já nos anos 80 com a chegada de filmes
como Wild Style (1982), Style Wars (1983) e Beat Street (1984) que retratavam o estilo
nova-iorquino de grafite e hip hop (PROSSER, 2010).
19
HAMILTON YOKOTA DE PAULA LIMA: TITI FREAK
“Brasil ou Japão? Não tem como, os dois...
Como eu, metade japonês e metade brasileiro. Feijoada no almoço e ramen na janta!”6
Nascido em São Paulo, capital, no ano de 1974, Titi Freak foi
criado no bairro da Liberdade, região conhecida pela concentração
de asiáticos e descendentes, apesar de originalmente ter sido ocupada por negros. Esse artista nikkei, de ascendência japonesa por
parte de mãe e alemã e portuguesa por parte de pai, conviveu boa
parte da infância com os avós japoneses que vieram de Hiroshima
na embarcação Kasato Maru, o primeiro navio da imigração japonesa
a chegar ao Brasil em 1908. Em entrevistas7, Titi Freak conta que tem
a percepção de que seus avós imigrantes mantiveram os costumes,
a culinária, o ambiente da casa de forma tradicionalmente japonesa
mesmo em terras estrangeiras; ele ainda relembra que os avós maternos preservaram as raízes japonesas, ao contrário das gerações
posteriores que se integraram aos brasileiros.
Ainda na infância, o pai, Nelson de Paula Lima, e a mãe, Kiyomi
Yokota de Paula Lima, ao notarem a aptidão do filho para as artes,
passaram a incentivar o pequeno artista que costumava pintar as
paredes da casa. Um impulso mais concreto na carreira de Titi Freak
veio anos mais tarde, quando sua mãe decidiu enviar os desenhos
do filho para o estúdio de quadrinhos do consagrado artista brasileiro
Maurício de Souza8. O retorno foi positivo com um convite ao jovem
sumário
6
Entrevista cedida por Titi Freak ao site Your ID (YOUR ID, 2019).
7
As informações sobre a carreira artística de Titi Freak foram coletadas em suas redes sociais
e pela revisão de reportagens impressas e audiovisuais. Além disso, realizei uma entrevista
com o artista pela plataforma Instagram em 2021. Ver referência bibliográfica (CAVALCANTI,
2014; ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2020; G1 GLOBO, 2009; GUIAME, 2011; KUBOTA,
2010; MORAES, 2008; NOGUEIRA, 2009; YOUR ID, 2019; ZUPI, 2016)
8
Maurício Araújo de Souza (1935 - ) nascido em Santa Isabel-SP é quadrinista e membro
da Academia Paulista de Letras. Iniciou a carreira com tiras de jornal e com o sucesso dos
personagens passou a publicar revistas em quadrinhos por grandes editoras. Suas obras
foram publicadas em diversos idiomas e também adaptadas para televisão e cinema.
20
Hamilton, feito em carta de próprio punho do prestigiado criador dos
quadrinhos Turma da Mônica (1959), para conhecer o estúdio. A visita
resultou em uma contratação do jovem, que atuou, dos treze aos vinte anos, como desenhista. Além do estúdio de Maurício de Souza, Titi
Freak também trabalhou em conceituadas agências de publicidade,
editoras, revistas e marcas como: Editora Abril, Revista CemporcentoSKATE, Marvel, Disney, MTV, Ellus, Nike, Adidas, Converse, New Era,
Eckó, entre outras. No estúdio de Maurício de Souza, o jovem artista
nikkei recebeu o apelido de Titi, inspirado em um personagem já existente dos quadrinhos da Turma da Mônica. Curiosamente, o próprio
cotidiano na infância de Hamilton passou a servir de referência para
as histórias desse personagem de Maurício de Souza.
Além da aprendizagem profissional, o estúdio Maurício de Souza proporcionou a Titi experiências fantásticas como conhecer pessoalmente Osamu Tezuka9 10, o “Deus do mangá”, e autor de obras
como Kimba, o Leão Branco (Jungle Taitei, 1950); Astro Boy (Tetsuwan Atomu, 1952); A Princesa e o Cavaleiro (Ribbon no Kishi, 1953);
entre outros. Titi Freak relatou ainda sua admiração por outros artistas
japoneses como Katsuhiro Otomo11, criador de Akira (1982), assim
como seu filho artista, Shohei Otomo12, além de Keizo Miyanishi13,
Toshio Saeki14 e Yoshitomo Nara15.
sumário
9
Tezuka Osamu (1928 - 1989), nascido em Osaka (Japão), ficou conhecido como “Deus
do Mangá”, devido sua grande influência. Desenvolveu as características básicas dos
mangás por meio de numerosa produção. Tem grande participação na construção da
indústria de quadrinhos japoneses e a divulgação deste mundo afora. Deixou um grande
legado influenciando diversos artistas. Entre eles, Maurício de Souza (ver nota de rodapé
anterior), com quem teve grande relação de amizade (MSP JAPAN, 2021).
10
Tezuka fez uma viagem ao Brasil para dar palestras em São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus a convite da Fundação Japão em 1984. A programação contou com exposição e
aula especial para os associados da Abrademi (Associação Brasileira de Desenhistas de
Mangá e Ilustrações). Na aula conheceu Maurício de Souza e, partir deste encontro, criaram parcerias nos quadrinhos e também uma relação íntima com visitas às respectivas
residências e locais de trabalho (ABRADEMI, 2013).
11
Otomo Katsuhiro (1954 -), mangaká e diretor de anime japonês.
12
Otomo Shohei (1980 -), ilustrador japonês.
13
Miyanishi Keizo (1956 -), mangaká, ilustrador e músico japonês.
14
Saeki Toshio (1945 - 2019), ilustrador e pintor japonês.
15
Nara Yoshitomo (1959 -), artista contemporâneo japonês.
21
Após longo período trabalhando com Maurício de Souza, Hamilton decide deixar o estúdio e partir para um trabalho mais autoral e
com maior possibilidade de liberdade artística. Ele fez ilustrações para
capas de CDs de bandas, flyers de baladas e estampas de vestuário;
e ainda fundou a própria marca de roupa underground chamada FreakArt. Assim, surge seu nome artístico que nasceu da soma do apelido
antigo (Titi) com o apelido deste período (Freak), ficando Titi Freak.
Titi Freak passava a maior parte do tempo nas ruas, principalmente na Galeria do Rock, no Centro de São Paulo, sempre atento
às pichações e aos grafites. Em meados de 1995 passou a se aprofundar nesse campo ao conhecer o pichador John “Da Casa” que
expandiu seu universo sobre Arte Urbana. Titi Freak, ao testemunhar
os artistas osgemeos (pioneiros da Arte de Rua no Brasil) pintando
em um muro perto de sua casa, se inspirou a também fazer intervenções urbanas, e realizou seu primeiro trabalho de grafite no bairro
da Liberdade, local de maior concentração das suas artes. O artista
também passou a integrar o grupo de pichadores Susto”s a convite
de um dos fundadores, uma parceria que dura até hoje. A gangue
de pichadores famosa pelo tempo de atividade iniciada ainda na
década de 90, passou a realizar atividades no Japão através de Titi
Freak. No Japão, os membros do Susto”s, além de intervir nas ruas,
passaram também a confeccionar roupas16.
Paralelamente às pinturas nas ruas, o artista continuou trabalhando com ilustrações em revistas, campanhas publicitárias e outdoors. O reconhecimento do seu talento veio com o convite de exposição na Galeria Most e na Galeria Choque Cultural, ambas situadas
em São Paulo; e essas foram as primeiras de várias exposições que
o artista realizou no país. Notamos também como o crescimento do
trabalho artístico de Titi Freak acompanha a aceitação do grafite nos
espaços institucionalizados de arte, pois importantes galerias como o
16
sumário
Ver referência bibliográfica (ARAÚJO, 2016)
22
Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Instituto Tomie Ohtake17 também receberam o artista. Além das conceituadas galerias nacionais,
não tardou para que os convites de galerias internacionais também
chegassem ao artista nipo-brasileiro. Participando de projetos, instalações, exposições coletivas e individuais, Titi Freak expôs seu trabalho
em diversos países de diferentes continentes como Inglaterra, Japão,
Estados Unidos da América, Espanha, França, Canadá, Alemanha e
Holanda. A intensa produção sempre foi marcada pela constante variação de técnicas tornando Titi Freak uma referência mundial de Arte
de Rua e representante da Arte Contemporânea Brasileira.
Figura 1 – Exposição coletiva “De dentro para fora/ De fora para dentro”
no Museu de Arte de São Paulo (MASP) realizada em 2009 contou com
a presença de Titi Freak e outros artistas urbanos contemporâneos
Fonte: FREAK, 2009b.
17
sumário
Tomie Ohtake foi uma importante artista japonesa naturalizada brasileira. Participou do
histórico Grupo Seibi (também chamado de Seibikai) formado por artistas fundadores
como Tomoo Handa, Hajimi Higaki, Walter Shigeto Tanaka, Kiyoji Tomioka, Yoshiya Takaoka, Yuji Tamaki, Kichizaemon Takahashi, Mário Masato Aki, Iwakichi Yamamoto, Kikuo
Furuno. Posteriormente, o grupo cresceu com a entrada da própria Tomie Ohtake e de
Flávio-Shiró, Tadashi Kaminagai, Manabu Mabe, Tikashi Fukushima, Kazuo Wakabayashi,
entre outros (LOURENÇO, 1995a, 1995b; MENEZES, 1995; TOMIMATSU, 2014).
23
A vivência internacional de Titi Freak fazendo Arte de Rua lhe
permitiu afirmar que o Brasil era o único local em que se pintava de
dia de forma relativamente “tranquila”. Ele entende que o grafite é
visto como uma cultura marginal e a sua prática é a mesma mundialmente, ou seja, fazer o real grafite nas ruas sem autorização é correr
risco de ser preso ou autuado por vandalismo ou crime ambiental.
A fiscalização sobre artistas de rua ocorre em todo lugar do mundo.
No Japão não seria diferente, uma vez que a fiscalização ocorre de
forma rigorosa com guardas averiguando as intervenções urbanas
(sejam autorizadas ou não). Apesar disso, segundo Titi Freak, existem
alguns trabalhos de grafite no Japão com temas muito fortes, mas
que ficam underground, portanto não expostas para a maioria da população. O artista nikkei ainda recomenda ao público conhecer alguns
trabalhos de japoneses como o do casal Kami e Sasu (que assinam as
obras como duo Hitotzuki), ESOW, WANTO e Sorayama.
A cena da Arte de Rua no Brasil já é estabelecida e reconhecida
no mundo inteiro e nela percebemos a presença de outros artistas
nipo-brasileiros. Além de Titi Freak, podemos citar nomes como: Tinho
(Walter Nomura); 8ou80 (Tiago Ishiyama); Sosek (Carlos Eduardo Doy);
Paulo Ito; Katia Suzue; xguix (Guilherme Matsumoto); Tito Ferrara; Erica
Mizutani; Ignore Por Favor (Daniel Pedro Sussumu Sales Corrêa); Nave
Mãe (Rafael Murayama); Rafael Hayashi; Felipe Ikehara; Imai Yusk; Catarina Gushiken; Sandra Hiromoto, entre outros.
É preciso também destacar o grafiteiro japonês Atsuo Nakagawa (Atsuoman), amigo de Titi Freak, que está radicado no Brasil
desde 2011 e tornou-se referência na Arte Urbana. Segundo Titi, além
de Atsuoman, muitos outros japoneses do mundo da Arte de Rua
também gostariam de vir morar no Brasil. Por outro lado, Titi também
conheceu muitos artistas brasileiros que adorariam morar no Japão.
O grafiteiro nikkei costuma incentivar esse intercâmbio de artistas
brasileiros e japoneses, e mostra-se incisivo em aconselhar os artistas a desbravarem as oportunidades.
sumário
24
Titi Freak ressalta também a diversidade existente entre os japoneses, relatando que conhece muitos japoneses mais “loucos” que
brasileiros; um dado interessante, visto que o senso comum brasileiro,
infelizmente, tende a criar um imaginário estereotipado sobre o povo
japonês interpretando-os como reservados, comportados e introvertidos. Essa imagem também acaba se estendendo aos nipo-brasileiros.
JAPAN POP SHOW
Outro momento importante na carreira de Titi Freak foi a curadoria da exposição “Himegoto” com artistas nipo-brasileiros e japoneses
na Galeria Choque Cultural em São Paulo no ano de 200618.
Participaram do evento os artistas: Whip (Rodrigo Yokota19), Taniguchi, Yumi Takatsuka e Atsuo Nagakawa. Nessa experiência teve a
felicidade de conhecer Yumi Takatsuka que viria a se tornar sua esposa
e mãe de seu filho Jin Yokota de Paula.
Posteriormente, realizou outra curadoria com a exposição
coletiva Japan pop show20, também na Galeria Choque Cultural em
200821. O artista relatou que após a sua primeira viagem para o Japão, teve a ideia de convidar ao Brasil os artistas japoneses que
conheceu. Contou que a exposição foi como uma “grande viagem
sumário
18
Ver referência bibliográfica (JORNAL DA CHOQUE, 2006)
19
A família Yokota é farta em talento artístico. Rodrigo Yokota é ilustrador, grafiteiro e jogador de ioiô, assim como seu irmão mais velho, Titi Freak. Desde cedo recebeu influência
deste e seguiu carreira artística. Autodidata, aos quinze anos já começou a trabalhar
com ilustrações e grafitar assinando as obras na rua como Whip. Fez exposições coletivas e individuais em galerias e também trabalhos para grandes empresas. Atualmente
é professor de técnicas de pintura e mantém trabalho autoral com pintura (QUANTA
ACADEMIA DE ARTES, 201-)
20
O título faz referência a um antigo programa televisivo que tinha a colônia de imigrantes
japoneses no Brasil como público-alvo. A produção independente foi transmitida entre a
década de 70 e 90 e tinha o formato de auditório com quadros concursos de karaokê e
de beleza (JAPAN POP SHOW, 2018).
21
Ver referência bibliográfica (CHOQUE CULTURAL, 2008; EZABELLA, 2008; JAPAN POP
SHOW, 2008; UOL ENTRETERIMENTO, 2008a)
25
entre amigos”. Compuseram o evento três artistas brasileiros e nove
japoneses promovendo o diálogo entre a arte pop urbana japonesa e
brasileira. Arte de Rua, mangá, animê, street fashion, junk food, iô-iô,
toy art e skate foram algumas das palavras-chave da exposição. Foram expostos trabalhos dos artistas: Taniguchi, Buia, Depaster, Spancall, Gachaco, Casper, Jps-dise, Atsuo Nakagawa, Kansuke Akaiko,
Whip (Rodrigo Yokota), Yumi Takatsuka e do próprio Titi Freak. O que
ligava os artistas era a relação com a cultura urbana contemporânea, mas as formas que se expressaram nas obras foram bastante
pessoais. A exposição apresentou uma variedade de técnicas para
o público como o uso de madeiras escavadas e aquareladas (Yumi
Takatsuka), pinturas a óleo sobre serras de metal (Taniguchi), colagens resinadas (Atsuo), estêncil e silkscreen sobre madeira (Kansuke Akaiko), spray e canetão direto na parede (Titi Freak).
Em entrevistas22, o grafiteiro japonês Jps-dise comentou sobre
a diferença de estilo entre o grafite japonês e o brasileiro. Segundo
o artista, o grafite japonês usa mais o spray enquanto os brasileiros
desenvolvem várias técnicas de desenho com o rolo e o canetão,
por exemplo. Além disso, comentou a diferença da percepção do
grafite no Brasil e Osaka, cidade no Japão onde residia no período.
Para Jps-dise, “aqui, o estilo é livre, o Brasil usa um monte de cor,
bem colorido. A cidade é como amiga do grafite. (...) Em Osaka não,
cidade e grafiti se confrontam”. Titi Freak confirmou a diferença falando da fiscalização mais rigorosa no Japão, seja pela polícia, seja por
câmeras. Já no Brasil existe um contexto diferente no qual existe a
possibilidade de o artista tentar negociar com o dono da parede ou
simplesmente chegar e pintar num local abandonado.
Baixo Ribeiro, proprietário da Galeria Choque Cultural, afirmou que a exposição demonstrou o melhor modo de criar um intercâmbio cultural e artístico. A aproximação física entre artistas de
diferentes países cria um ambiente propício para aprendizagem de
22
sumário
Ver referência bibliográfica (UOL ENTRETERIMENTO, 2008a)
26
informações e valores. A troca não se limita em conversas entre
eles, mas a observação de perto das técnicas de trabalho e a própria interação fora do ambiente de criação.
EXPOSIÇÕES: KASATO MARU –
PERMANÊNCIA DO OLHAR,
OLHAR NASCENTE
O ano de 2008 foi marcante para a comunidade nipo-brasileira
devido à comemoração do Centenário da imigração japonesa no Brasil. Dentre as diversas homenagens e eventos, citaremos duas exposições com a participação de Titi Freak.
O projeto “Olhar Nascente” promoveu a criação de um grande
mural de grafite em homenagem à colônia japonesa no Brasil. Idealizado e executado pela produtora cultural Celina Yano e com a curadoria do grafiteiro Binho Ribeiro e da artista plástica Zeila Trevisan, o
projeto ocorreu nos dias 27 e 28 de janeiro de 2007 em São Paulo23.
Antecipando as comemorações do centenário de imigração japonesa, foram reunidos 140 artistas para produzir, na época, o maior mural
temático da América Latina. A grande obra foi realizada no Complexo Viário Avenida Paulista/Dr. Arnaldo/Rebouças, também conhecido como Túnel da Paulista. Em 48 horas ininterruptas, artistas de
galerias, ONG’s e coletivos pintaram 430 metros lineares e 2.200 m²
sob os olhares de pedestres que contemplavam as pinturas. Também
foram realizadas apresentações de lutas marciais, culinária e outras
manifestações culturais que provocavam a imersão do público na
cultura japonesa e nipo-brasileira durante o evento. O projeto contou
com o trabalho de pesquisa e consultoria sobre a história do Japão
feita por Carlos Glaujor, pesquisador da Universidade de São Paulo
23
sumário
Ver referência bibliográfica (G1 GLOBO, 2007; HASEGAWA, 2007; JORNAL NIPPAK, 2008;
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 2007)
27
(USP). A partir dela foram selecionados temas como a criação do
mundo na visão da mitologia japonesa, budismo, samurais, imigração para o Brasil, tecnologia, mangás, tatuagens. Essas temáticas
deram a direção artística para que cada colaborador pudesse livremente expressar a sua própria interpretação.
A exposição coletiva “Kasato Maru – Permanência do Olhar” foi
realizada no Sesc Santana em São Paulo no ano de 200824. O título
tem o mesmo nome do primeiro navio de imigrantes japoneses a
chegar ao Brasil. O subtítulo faz referência ao quanto da influência da
cultura japonesa permanece na visão dos artistas contemporâneos
nipo-brasileiros que compunham a exposição. Ela foi realizada com
obras site-specific (obra artística criada de acordo com ambiente
específico) produzidas com diferentes linguagens artísticas (grafite,
desenho, artes gráficas, design e moda). Participaram da mostra: Titi
Freak, Tinho (Walter Nomura), Catarina Gushiken, WHIP (Rodrigo Yokota), Ricardo Ushida, Cisma (Denis Kamioka), Raquel Uendi, Hana-Bi (Thais Ueda) e Paulo Ito. Segundo os artistas, o processo criativo
foi um exercício de revisão de suas origens, memórias pessoais e
memória de familiares. A responsabilidade da curadoria foi de Rachel
Brumana e o projeto expográfico de William Zarella Jr.
PROJETO COMMUNITY X GRAFITTI
O projeto “Community x Grafitti”25, realizado pela Fundação Japão e pela Embaixada do Brasil em 2012, é emblemático de várias
formas, pois expressa o sentimento de comunhão entre Brasil e Japão
e a carinhosa relação de Titi Freak com os japoneses. A cidade que
sumário
24
Ver referência bibliográfica (FOLHA ONLINE, 2008; UOL ENTRETERIMENTO, 2008b)
25
Ver referência bibliográfica (CABINET OFFICE, GOVERNMENT OF JAPAN, 2012; IPTV
USP, 2012; OYAMA, 2012; QUEIROZ, 2011; ROBERTO MAXWELL, 2012; THE JAPAN
FOUNDATION, 2012)
28
recebeu esse projeto do site-specific foi Ishinomaki, localizada ao nordeste do Japão, mais especificamente na província de Miyagi, uma
das áreas mais afetadas pela tragédia de 2011, onde por volta de duas
mil pessoas ficaram desabrigadas e passaram a conviver num complexo de residências temporárias nomeadas Tomorrow Business Town.
Na ocasião, Titi Freak pintou as paredes dos alojamentos provisórios das vítimas atingidas pelo terremoto e pelo tsunami ocorridos
em 11 de março de 201126. As pinturas, além de terem dado personalidade às habitações de aparência fria, passaram a funcionar como uma
espécie de mapeamento local para os abrigados, que costumavam
confundir os alojamentos temporários, uma vez que também dificultava os serviços de entrega de correspondência, mercadorias e até
situações mais complexas como atendimento de ambulâncias.
Convém lembrar que mesmo antes do convite para participar
do projeto, Titi Freak junto com a esposa, a artista japonesa Yumi
Takatsuka, realizaram um evento em prol das vítimas do terremoto
de 2011. O casal lançou uma série limitada de gravuras em conjunto
com a Galeria Choque Cultural e toda renda foi revertida para Cruz
Vermelha do Japão.
O artista nikkei precisou de dois meses para a elaboração de
um plano de ação, com grafites e workshops, considerando o contexto
do local (o material de trabalho, como as latinhas de spray, teve que
ser comprado previamente devido à falta de comércio, por exemplo).
Depois de terminada essa fase de estudo e preparação, o projeto foi
encaminhado para a aprovação dos moradores. Após o aceite dos
residentes, Titi Freak foi conhecer a região devastada no Japão junto à
equipe de produção do projeto. O artista relatou que se chocou com
26
sumário
No dia 11/03/2011 ocorreu o Grande Terremoto de Tohoku, o mais intenso já registrado
na história japonesa e o terceiro na escala mundial. O terremoto aconteceu na região
nordeste e teve como consequência uma série de ondas gigantes (tsunami) que deixou
grande quantidade de vítimas contabilizando mais de 18 mil mortos e desaparecidos.
Além disso, o terremoto causou uma série de explosões na usina nuclear de Fukushima,
gerando um dos piores acidentes nucleares da história.
29
a destruição do local e que foi uma oportunidade de reconsiderar o
significado da vida. Porém o que mais o impressionou foi a postura
resiliente das vítimas da tragédia, que mesmo perdendo tudo, estavam
trabalhando arduamente para reerguer a cidade.
Ao chegar à cidade para iniciar o projeto, o primeiro contato
do artista com os residentes foi de estranhamento e receio. Mas, em
pouco tempo, a aproximação e o interesse entre moradores e o artista
foram se estreitando de forma intensa. Gestos de reconhecimento e
consideração dos residentes japoneses ao artista nikkei (que trabalhava continuamente em ambiente externo em meio a baixas temperaturas) podiam ser observadas no oferecimento de hokkairos (adesivos
usados junto ao corpo para esquentar a temperatura), café, chá quente, panquecas, maçãs e batatas doces cozidas.
A estadia de Titi Freak no conjunto habitacional temporário foi
de dez dias e com quinze casas pintadas nesse período. As pinturas foram inicialmente compostas por três temas: “peixes”, “nuvens”
e “abstrato”. Os temas previamente escolhidos foram baseados no
trabalho autoral do artista, considerando também a relação com a
região. Entretanto, durante a aplicação do projeto, o terceiro tema
“abstrato” foi substituído por “flores” devido à sugestão das moradoras. O artista prontamente acatou a preferência das residentes que
trouxeram flores como tulipas para o artista ver e servir de referência.
É importante destacar a interação entre Titi Freak e a comunidade
local que tornou o processo artístico mais personalizado. Podemos
observar também a sensibilidade do artista na escolha da arte a ser
desenvolvida nas casas, uma vez que preteriu o uso de rostos, comumente encontrados em suas obras, por poder passar a impressão
de lembranças das vítimas da tragédia.
O projeto tornou-se o centro das atenções do complexo residencial com o passar do tempo. Como os moradores eram de diferentes
regiões do Japão, o local passou a ser ponto de encontro para admirar
sumário
30
a sua arte, além de um espaço para brincadeiras com ioiô junto às
crianças (Titi Freak é campeão nacional de ioiô e um dos fundadores
da ABI, Associação Brasileira de Ioiô). O artista relatou que as pinturas
chamaram a atenção de outras pessoas, além das que moravam no
local. Uma senhora idosa, residente de outra região, teria visto o artista
pintando enquanto passava de ônibus e como seu médico havia recomendado atividades físicas, ela decidiu ir andando da residência até o
local do projeto para apreciar as pinturas. Ressalta-se que a união entre os moradores aumentou, visto que muitos passaram a intensificar
as atividades sociais dentro da comunidade. O projeto de arte reuniu
esses moradores, que se mostraram, com o tempo, mais positivos e
otimistas a enfrentarem aquele momento de dificuldade. Ficou claro
que a intervenção artística estava cumprindo a missão de aumentar o
ânimo dos moradores, estimulando-os a seguir em frente.
Este tipo de experiência com os japoneses emocionava o artista
e servia de “combustível” para continuar lutando contra o apertado
cronograma e a previsão de neve que prejudicaria o projeto.
Nos dez últimos dias de trabalho foram realizados workshops com os moradores, quando todos participaram, de crianças a idosos, experimentando o uso do spray com estêncil (stencil)
produzindo peças artísticas que poderiam guardar como lembrança. A escolha dessa técnica foi pensada por Titi Freak levando em
consideração processos artísticos de menor complexidade e mais
executáveis para todos os participantes. Também foi realizada uma
emocionante confraternização de despedida com direito a dança
ao som de música brasileira. Alguns dos residentes mostraram
suas obras artísticas para Titi Freak e relataram terem sido artistas
quando mais jovens, e que retomariam as atividades nas artes devido à influência do projeto. Titi Freak lembra que chorou de emoção durante o evento e que fez amizades para toda a vida.
sumário
31
Figura 2 – O estranhamento inicial do primeiro dia do projeto
já desaparecera no registro do último dia, em que foi realizado
um workshop de estêncil e uma festa de despedida
Fonte: FREAK, 2021.
O projeto teve continuidade com o artista retornando novamente
para pintar outros locais da região e isso foi registrado no documentário “Beyond 3.11” do canal de televisão NHK27. Além disso, Titi Freak
realizou palestras em São Paulo e em Curitiba relatando como foi o
projeto, demonstrando ao público brasileiro a possibilidade de criação
de “pontes” entre os países por meio da arte.
LIVE GRAFFITI @ BRAZILIAN EMBASSY
Outro trabalho de grafite em espaço público governamental
realizado por Titi Freak e Presto (Marcio Penha) ocorreu em 2012,
quando esses dois artistas foram convidados a grafitarem a fachada
da Embaixada do Brasil em Tóquio no bairro de Aoyama28. O convite
sumário
27
Ver referência bibliográfica (FREAK, 2012)
28
Ver referência bibliográfica (BRASEMB1, 2013; TOBACE, 2012)
32
partiu da própria Embaixada e fez parte da Tokyo Designers Week,
semana repleta de atividades ligadas à arte em geral na capital japonesa. A intervenção artística através do grafite destoou no elitizado
bairro japonês que possui ausência deste tipo de arte. A recepção
do público, contudo, foi positiva e a interação com os artistas também. O processo artístico teve duração de cinco dias e foi transmitido
em tempo real na internet. A composição da obra foi constituída de
elementos regionais e folclóricos da cultura brasileira convidando a
população japonesa a conhecer mais sobre o país tropical.
A segunda-secretária da embaixada brasileira Yukie Watanabe explicou o motivo da escolha dos dois artistas e o objetivo do
projeto. A fala dela demonstra bem como a arte pode criar pontes
entre os países:
Titi Freak é nikkei que no momento mora em Osaka. Então, ele
faz muito bem essa ponte entre o que é o Brasil e o que é o
Japão. E o Presto também. Embora não tenha descendência,
ele tem ligações familiares e já morou no Japão. Eles seriam
as pessoas ideais para fazer a ponte entre Brasil e Japão. (...)
As embaixadas do Brasil são um pouco a cara do Brasil no
exterior, o que a gente está trazendo para os outros países.
Trazer o grafite para nossa parede é como colocar o grafite na
nossa casa, para mostrar que temos muito orgulho disso. Para
mostrar aos nossos vizinhos japoneses o que temos de melhor,
de mais colorido. Como tem vários elementos da cultura brasileira, é também despertar um pouco da curiosidade do público
japonês em relação a cultura brasileira (BRASEMB1, 2013)29
Titi Freak considera essa troca de informações interessante
tanto para ele como para a pessoa que está observando o trabalho.
Segundo ele, “naquele momento eu consegui pegar essa pessoa, a
atenção dela focar naquilo que estou fazendo por um certo momento”.
Esse foi mais um exemplo de projeto em espaço institucionalizado realizado por Titi Freak. Podemos citar também a colaboração feita
29
sumário
Ver referência bibliográfica (BRASEMB1, 2013).
33
com a prefeitura de Kobe no Kobe Mural Project Art30 na qual pintou a
parede externa do edifício da prefeitura que seria demolido. Além disso,
realizou palestra na Universidade de Arte Osaka Dentsu em Osaka31.
Ações como essas são importantes para a popularização e quebra
do preconceito da Arte de Rua vista, em geral, como cultura marginal.
Em 2013, novamente em Tóquio, o artista pôde homenagear a
arte e a moda do Brasil através do projeto de marketing “Oi, Brasil!”,
no aniversário de 45 anos da loja Seibu Shibuya, que fica em um
centro comercial do bairro de Shibuya. Neste projeto, vários produtos
brasileiros foram expostos, além da pintura que o artista fez na fachada de 30m do prédio.
Titi Freak, em entrevista da época, relatou:
Achei que é um novo passo em relação ao grafite, em relação à
sociedade. Eu nunca imaginei poder fazer um trabalho de pintar uma vitrine de um shopping logo no centro de Tóquio. (...)
Ontem mesmo que era um domingo em Shibuya, muita gente
parou, ficou interessada. Muita gente perguntou sobre o trabalho, se identificou. (KIKUCHI, 2013)
THE ART OF MIXING
No ano de 2016, a marca de tênis esportivos japonesa Onitsuka Tiger realizou uma campanha global intitulada The Art of Mixing
com o objetivo de mostrar a mistura entre Brasil e Japão32 33. Foram
sumário
30
Ver referência bibliográfica (KOBE MURAL ART PROJECT, 2020)
31
Ver referência bibliográfica (FREAK, 2009a)
32
Ver referência bibliográfica (FINOTI, 2016; FONSECA, 2016; ONITSUKA TIGER JP, 2016).
33
Vale lembrar que a parceria entre Titi Freak e a marca japonesa já existia previamente a
essa campanha. Em 2014, o artista foi o embaixador da marca (pessoa que promove a
imagem da empresa estando alinhada aos valores dela) no Brasil na campanha global My
Town My Tags juntamente com a estilista Thalita Rossi. O lançamento da coleção de tênis
e vestuário contou também com uma exposição de obras de ambos.
34
convidados para compor o projeto os artistas nipo-brasileiros Titi
Freak, Luísa Matsushita (Lovefoxxx) e Felipe Suzuki, além do artista
japonês radicado no Brasil, Atsuo Nakagawa.
Os artistas produziram tênis e camisetas para a marca pensando no hibridismo cultural causado pela longa presença dos imigrantes japoneses no Brasil. O evento de lançamento dos produtos
da coleção contou com a exibição de vídeos e fotos que mostravam
a ligação dos artistas convidados com os dois países, além de uma
exposição com obras inéditas que inspiraram o desenvolvimento do
projeto. Sobre o tênis desenvolvido, Titi Freak falou que teve como
referência a palavra “fusão” que é um conceito que o reflete, ou seja,
um nipo-brasileiro resultado da combinação entre Brasil e Japão.
Segundo o artista, o produto demonstra o contraponto entre duas
culturas, entre natureza e urbano, uma vez que essa campanha foi
criada quando se encontrava no Japão, imerso na cultura do país. É
interessante também ressaltar as oficinas de criação dos artistas com
as crianças da comunidade Morro da Providência, no Rio de Janeiro,
demonstrando a preocupação social adjunta ao projeto.
Por sinal, realizar uma oficina de criação com público infantil
não foi novidade para Titi Freak, uma vez que o artista é engajado
com projetos que envolvam crianças. Seu envolvimento social com
ações que envolvem os pequenos é frequente. O “Projeto Transformações”, no bairro do Grajaú, em São Paulo, que propôs a revitalização do espaço público com murais de arte urbana e oficinas de arte
é exemplar. Titi Freak afirma que adora interagir artisticamente com
as crianças pelo poder que elas costumam emanar.
sumário
35
Figura 3 – Arte de Rua presente na educação pública através
da oficina artística realizado na Escola Estadual Eurípedes
Simões de Paulo para o Projeto Transformações
Fonte: FREAK, 2015.
YOKOSO
A exposição coletiva “Yokoso” foi promovida pela galeria A7MA
em São Paulo no ano de 201634. A palavra japonesa youkoso significa
“bem-vindo(a)” em português e representa a proposta de apresentação
de um panorama da produção da nova geração de artistas nipo-brasileiros. A exposição celebrou a miscigenação étnica e cultural que ocorreu
entre os descendentes de imigrantes japoneses no Brasil, e ocorreu no
mesmo mês em que o navio japonês “Kasato Maru” desembarcou no
Brasil, em 1908. Ela reuniu os artistas: Walter Nomura (Tinho), Titi Freak,
Yumi Takatsuka, Rodrigo Yokota, Thais Ueda, Paulo Ito, Cristiano Kana,
Sosek (Carlos Eduardo Doy), Imai Yusk, Ignoreporfavor (Daniel Pedro
34
sumário
Ver referência bibliográfica (A7MA, 2016)
36
Sussumu Sales Corrêa), Rafael Hayashi, Atsuo Nakagawa, Erica Mizutani, Nave Mãe (Rafael Murayama), Felipe Ikehara, Catarina Gushiken,
Katia Suzue, Guilherme xguix (Guilherme Matsumoto), Dan Mabe e Tito
Ferrara. Ressalta-se também que a própria galeria A7MA foi fundada por
nipo-brasileiros: Alexandre Enokawa e Cristiano Kano, que são descendentes de japoneses e sócios da galeria de arte contemporânea.
TÃO LONGE E TÃO PERTO
A exposição individual do artista “Tão longe e tão perto” foi realizada na galeria A7MA em São Paulo no ano de 201835. Titi Freak já
residia em Osaka nessa época e a exposição ocorreu durante uma
breve passagem do artista no Brasil. As obras escolhidas para a exibição expressam a sensação que o artista sente em relação ao país de
nascença e ao país de recepção. Titi Freak afirmou que apesar dos países serem muitos distantes, uma ligação muito forte ainda é mantida
graças aos imigrantes. As obras da exposição foram todas produzidas
em terras nipônicas e sob influência das referências locais. O artista
utilizou suportes clássicos da arte japonesa mesclando com a estética
urbana, produzindo peças híbridas e únicas. O hibridismo é característico em sua carreira, assim como ele próprio.
NIKKEI BRASILEIROS! & KONNICHIWA BRAZIL
Além de realizar projetos com a temática da relação Brasil-Japão,
Titi Freak já foi retratado em projetos de terceiros com essa intenção. Ele
foi um dos nipo-brasileiros retratados no projeto de fotografia documental “Nikkei Brasileiros!” feito pelo fotógrafo Mizuaki Wakahara36. O projeto
foi realizado entre os anos de 2008 e 2012 com uma série de nikkeis
sumário
35
Ver referência bibliográfica (VISTA, 2018)
36
Ver referência bibliográfica (WAKAHARA, 2012)
37
sendo entrevistados e fotografados. Alguns nomes foram: Jun Matsui
(tatuador); Chiaki Ishii (judoca); Sabrina Sato (modelo); Tomie Ohtake
(pintora); Celso Kamura (cabeleireiro); Fernanda Takai (cantora) e outros.
Titi Freak também foi entrevistado no documentário “Konnichiwa
Brazil”, do diretor Moritz Fortmann37. A produção foi lançada oficialmente em 2015 e explorou diferentes faces da maior comunidade japonesa
fora do Japão, isto é, a colônia japonesa no Brasil. Além do artista, foram entrevistados: Emilie Sugai (dançarina de butoh), Setsuo Kinoshita
(músico criador da música “Taiko de Samba”); Ricardo Ohtake (diretor
do Instituto Tomie Ohtake); Ignácio Moriguchi (presidente do Museu de
Imigração Japonesa) e membros da Comunidade Yuba de Mirandópolis-SP. Titi Freak gravou cenas tanto no Japão onde conheceu o diretor,
como também em seu bairro natal, a Liberdade, em São Paulo.
Cabe citar também o documentário “Grafiteiros” e o livro “Paisagem das Cidades 都市の風景” do designer gráfico japonês Kota Abe,
ambos lançados de forma conjunta em 2019. Apesar de Titi Freak não
ser entrevistado nessas produções, ele foi convidado a participar da
roda de conversa no evento de lançamento no Japão38. Tanto o documentário como o livro são frutos da pesquisa realizada com grafiteiros
brasileiros durante a passagem de Kota Abe no Brasil, entre 2018 e
2019. Foram entrevistados grafiteiros de diferentes cidades do Brasil:
Enivo, Thiago Alvim, Odrus, Atsuo Nakagawa e Piá.
DOTONBORI ART STREET
O projeto “Dotonbori Art Street” tem o objetivo de se tornar uma
atração turística artística na cidade de Osaka, no Japão. Foi iniciado
em 2020 e organizado pela companhia Wall Share39, a qual promove a
sumário
37
Ver referência bibliográfica (MORITZFORTMANN, 2015)
38
Ver referência bibliográfica (ABE KOTA, 2019)
39
Ver referência bibliográfica (WALL SHARE, 202-)
38
criação de murais artísticos nas cidades japonesas. A empresa propõe
utilizar as paredes da cidade para promover arte através de artistas
locais e internacionais com apoio de empresas privadas parceiras.
A área próxima ao rio Tonbori é conhecida como atração turística por concentrar uma rede de loja e restaurantes atraindo inúmeros
turistas para região. As paredes localizadas nas duas margens do
rio passaram por revitalização com a produção de 20 murais artísticos formando uma galeria a céu aberto. Titi Freak foi um dos artistas
convidados e afirmou que, no Japão, os trabalhos de arte de rua
geralmente têm esse aspecto mais institucionalizado mediante a autorização prévia. É uma forma de beneficiar, de dar visibilidade tanto
à cidade, quanto aos artistas e empresas.
Figura 4 – Murais de arte de rua ao longo do rio Tonbori e
detalhe do autor do texto junto ao artista Titi Freak
Fonte: MORI, R. 2023.
sumário
39
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vida pessoal e artística de Titi Freak é composta constantemente pela relação Brasil-Japão. O próprio artista representa uma
ponte entre os dois países. Transitando entre os dois polos, Titi tornou-se a combinação equilibrada de um país aberto e alegre, como
o Brasil, e um país organizado e preciso, como o Japão, retomando
algumas palavras do próprio artista. Sempre atento à diversidade cultural, esse artista nikkei afirma com propriedade que conheceu os
mais diversos perfis de brasileiros e também de japoneses negando
as possíveis generalizações que podem ser feitas aos dois povos.
Como dito anteriormente, ele mesmo destoa do estereótipo
imaginado pelo senso comum sobre os descendentes de japoneses
no Brasil. Artista desde a infância, Titi recebeu muito apoio da família para seguir a carreira na Arte de Rua, apesar da marginalização
existente na época.
Titi Freak reflete sobre nipo-brasileiros e ele próprio:
Acho que a mistura do Brasil ser um país aberto, alegre, e que
se pode fazer muitas coisas. E do Japão de ser uma coisa
mais certinha, mais passo-a-passo, tem tudo que ser preparado direitinho e pensado antes. Acho que a junção dessas duas
coisas, faz da pessoa um equilíbrio interessante. Esse meio
termo, essa balança. Acho que ser por aí. Não pode nem muito
aqui e nem muito ali. (MORITZFORTMANN, 2015)
Suas palavras para descrever os nipo-brasileiros remetem a discussão levantada pela autora Michiko Okano e a pesquisa sobre a noção de Ma40. Segundo a autora, o Ma não deve ser tratado como um
conceito, mas um modus operandi vivo no cotidiano dos japoneses.
É normalmente compreendido como “espaço entre”, “espaço de intermediação”, “pausa” ou “espaço-tempo”. O Ma está presente de várias formas em manifestações culturais japonesas (arquitetura, artes plásticas,
40
sumário
Ver referência bibliográfica (OKANO, 2007, 2012)
40
jardins, teatros, música, poesia, língua, gestos e outros). Suas semânticas
são múltiplas: é do espaço de possibilidade e disponibilidade, é de espaços intervalares, é onde se desconstrói o pensamento dual e aposta na
possibilidade de um espaço intermediário que pode ser concomitantemente as das coisas. Esta última possibilidade se relaciona com o ponto
de partida da pesquisadora sobre o Ma. Michiko Okano nasceu no Japão
e migrou para o Brasil com 8 anos, sendo classificada como jun-nissei
(criança que nasce no Japão, mas cresce no Brasil). Essa expressão
significa “estar entre, sem pertencer, efetivamente, a nenhum dos dois
países, mas a um espaço intermediário entre os dois”. Por estar nesse
espaço-intervalo, teve o interesse em estudar o Ma.
Não por acaso, eu me sinto justamente, na minha condição de
jun-nissei (aquele que nasce no Japão e imigra a outro país sem
terminar o ensino fundamental), no espaço Ma entre o Brasil e o
Japão. Situar-se nesse espaço intermediário pode constituir um
problema para algumas pessoas, mas a meu ver, é um privilégio
viver nesse lugar de intersecção entre as duas culturas tão distintas e ser possível escolher, dependendo da ocasião, modos
de pensar e de agir. Outra forma de encontrar conforto para os
que habitam o espaço intervalar é a o ultrapassamento dessa
bipolaridade criada entre o Brasil e o Japão. (OKANO, 2009)
Trazer a discussão sobre o Ma de Michiko Okano neste texto,
não significa propor uma análise das obras de Titi Freak a partir deste
referencial. Mas pensar a produção deste artista em uma perspectiva
que a interprete como um diálogo entre o Brasil e Japão. Ela está no
espaço-entre, nem tanto para um lado como para o outro.
As obras de um artista nipo-brasileiro (seja Titi Freak ou outro)
não precisam ser classificadas como “mais brasileiras” ou “mais japonesas”, tentar categorizá-las deste modo é um equívoco. Entender
a noção do Ma pode ser um caminho para não cair nessa armadilha.
Por fim, é notável que os projetos e obras de Titi Freak deram
visibilidade à arte nipo-brasileira tanto em território nacional como fora
dele. Mais do que isso, trouxe representatividade para o campo da arte
e inspirou outros artistas e fãs descendentes de japoneses.
sumário
41
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sumário
47
Capítulo 2
2
A Transcriação nos Diálogos Interculturais da Arte NipoBrasileira: Manabu Mabe, Tikashi Fukushima e Tomie Ohtake
Felipe Mendes Pinto
Michiko Okano
Felipe Mendes Pinto
Michiko Okano
A Transcriação
nos Diálogos Interculturais
da Arte Nipo-Brasileira:
Manabu Mabe, Tikashi
Fukushima e Tomie Ohtake
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.2
A experiência humana social se dá pelo diálogo. É com troca de
informações internas e externas que existimos e vivemos em sociedade. Quando pensamos sobre essas dialogias entre o eu e o outro, a reflexão se torna passível de expansão para as mais diversas realidades.
A alteridade pode ser tudo que não sou eu: pessoas próximas como
um parente, o(a) companheiro(a), um amigo, mas também indivíduos
de outras regiões do país, de outros grupos étnicos, de outras nacionalidades... Mas o que define o outro? E, a partir disso, o que nos define?
O que faz do outro o que ele é? E como ele nos diz o que e quem (não)
somos? A noção da diferença entre o eu e o outro nos parece ser algo
definidor das fronteiras da existência de cada um.
Para o início da nossa reflexão, sabemos que a alteridade é o
que é diferente e escapa ao nosso conhecimento imediato e ao nosso
controle. Um dos princípios fundamentais dessa distinção é o fato do
ser humano ter uma relação de interação e dependência com o outro
baseado no reconhecimento da singularidade e da diferença. Nessa
perspectiva, por muito tempo, o Japão foi tratado — e ainda assim o é,
por muitos — como o espaço do outro absoluto. O outro inacessível,
distante, com idioma e costumes tão diferentes que seriam indecifráveis para os ocidentais. Sabemos, contudo, que essa é uma visão
rasa e desprovida de elaboração crítica sobre as possibilidades de
relação entre o Japão e os países do Ocidente, que se desenvolvem
em níveis bastante plurais, da modificação da língua e da vivência em
sociedade à produção artística. Verifica-se que a dialogia e a presença
da alteridade criam, de um lado e, em primeira instância, contradições, tensões, conflitos e desequilíbrios que fazem surgir, por outro
lado, questionamentos, reflexões e, consequente, mudanças de pensamento e de sensibilidade. Certamente, o processo dialógico é polêmico, nada tranquilo e nem passivo, mas, a nosso ver, é transformador
e enriquecedor porque provoca a possibilidade de geração de novos
signos. É nesse instigante caminho que este estudo se desenvolve.
sumário
49
A construção dos indivíduos é sempre baseada no contato com
o mundo externo a este, em menor grau, como na relação entre eu e
outro, mas também em maior nível, como é o caso dos deslocamentos das pessoas para outros países, cujo processo traz, com intensidade, uma relação de transformação sócio-histórica-cultural. No nosso caso, a cultura japonesa modificou e modifica o Brasil, a casa da
maior comunidade de japoneses e seus descendentes fora do Japão.
Do início difícil nas lavouras de café, onde muitos trabalhavam horas a
fio sem direito a descanso, à atuação contemporânea nos mais diversos ambientes de trabalho, os imigrantes japoneses transformaram a
cultura brasileira com as contribuições de seus muitos “Japões” individuais, trazidos na vivência de sua cultura que, ao ser externalizada
e praticada em solo brasileiro, assimilou a realidade local, também
modificando e imprimindo uma marca própria na cultura deste país
continental. Relações mútuas e processos interativos são estabelecidos e possibilitam a presença de reorganizações de pensamentos e
sensibilidades que refletem nas produções de novos objetos, no nosso caso, artísticos, que se assentam a partir de compartilhamentos de
novos sentidos e significados provenientes do encontro com o outro.
Neste artigo, diante desse contexto, voltamos nosso olhar para
três artistas nipo-brasileiros que tiveram uma produção significativa
em quantidade de obras e em relevância no cenário artístico paulista,
seguindo um estilo de pintura abstrata e produzindo, principalmente, entre a segunda metade do século XX e início do XXI, são eles:
Manabu Mabe (1924-1997), Tikashi Fukushima (1920-2001) e Tomie
Ohtake (1913-2015).
Buscamos, com este trabalho, estabelecer uma relação entre
as proposições de Haroldo de Campos sobre transcriação — sobre
a qual discutiremos adiante — e o fazer artístico desses três artistas
que nasceram no Japão e migraram para o Brasil na juventude, tendo
vivido a experiência das realidades sócio-culturais dos dois países, e
sendo também motivados por essas vivências, uma vez que concebemos a experiência humana como dialógica e subjetiva.
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CULTURA “JAPONESA” NO BRASIL,
TRÂNSITOS CULTURAIS E TRANSCRIAÇÃO
Se entendemos hoje que seres humanos são construídos por
subjetividades e singularidades, logo inferimos a impossibilidade
de homogeneização de um grupo com base em algum critério, seja
por raça, gênero ou nacionalidade. Não há como “encaixar” humanidades subjetivas em padrões de comportamento generalizantes.
Nossa abordagem nega, portanto, as afirmações do tipo “os japoneses são desta ou daquela forma”. Como se poderia definir objetivamente cerca de 130 milhões de pessoas — cada uma, subjetiva
e singular à sua maneira — como se todas pudessem se enquadrar
nas mesmas definições? As pluralidades que fundamentam a individualidade de cada um podem e devem ser ressaltadas, numa
celebração de autonomia de ser quem se é.
Estabelecida essa ideia, buscamos pensar em quais aspectos
da cultura do povo japonês se reconfiguram para se manifestarem em
outro contexto, o brasileiro. O antropólogo Koichi Mori (apud KOBAYASHI, 2011), que foi professor do Departamento de Letras Orientais da
Universidade de São Paulo, é da ideia de que não existe, no Brasil, uma
cultura japonesa. Uma vez deslocada de seu contexto de origem, essa
cultura se modifica, ganhando e perdendo elementos a partir do choque e da assimilação da cultura brasileira, passando a operar como
uma nova cultura híbrida, nipo-brasileira.
A proposição de Mori parece ir ao encontro dos diversos aspectos dessa cultura “japonesa brasileira” — ou nipo-brasileira — que experienciamos no Brasil. Pensamos, por exemplo, nas modificações pelas
quais o idioma japonês tem aqui passado ao longo dos mais de 110
anos desde a chegada do primeiro navio com imigrantes japoneses ao
porto de Santos. Referenciado pelo termo koronia-go (コロニア語, língua
da colônia), essa variante da língua japonesa no Brasil é marcada pelas
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modificações que o cenário brasileiro imprimiu sobre a expressão linguística dos falantes. Como afirma a Profa. Dra. Leiko Morales, também
do Departamento de Letras Orientais da USP, a formação dessa variante
linguística no Brasil se deu, em parte, pela falta de proficiência total em
japonês dos descendentes da segunda geração (nissei), que eram interlocutores de seus pais (issei). Com o tempo, palavras do português
brasileiro acabaram sendo incorporadas à língua (MORALES, 2008).
Outro exemplo que nos vem com frequência à mente é o das
modificações e adaptações da culinária japonesa ao contexto brasileiro, inexistentes no Japão. Lamen em versões vegetarianas, temaki de
salmão com cream cheese e muitas variantes do sushi, que recebem
versões com peixes de água doce como a tilápia, e até mesmo com
morango, banana ou doce de goiaba.
Em diálogo com essa discussão, nos parece importante o pensamento do semioticista russo Iuri Lotman (1922-1993) acerca desses
trânsitos entre culturas.41 Na visão de Lotman, a cultura é constituída
de textos, como o do cinema, do teatro, da arquitetura, da ciência, do
jornalismo, das artes plásticas etc, todos esses moldados a partir de
um sistema ou texto primário que seria a língua (LOTMAN, 1990).
Pensando nas relações hierárquicas e de trocas intra e interculturais, o semioticista formula o termo semiosfera, baseado no conceito
de biosfera de Vernadsky. Enquanto esse último diz respeito à esfera
da vida, dos processos químicos e físicos, dos seres e dos elementos
naturais, Lotman introduz a compreensão da semiosfera relativa aos
processos comunicativos, aos sistemas de linguagens e à decodificação de informações, todos inseridos nos textos da cultura.
41
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Iuri Lotman é um dos principais nomes da Escola de Tartu-Moscou, que desenvolveu
pesquisas durante o século XX. Essa vertente dos estudos semióticos é conhecida
hoje como Semiótica russa ou Semiótica da Cultura. Os pesquisadores desse grupo
entendiam a cultura como um texto, que pode interagir com outros, gerando possíveis intertextualidades, ou relações interculturais. Essa ideia de cultura enquanto texto,
segundo Lotman, pensa no desenvolvimento da cultura a partir de um sistema modelizante primário, que seria a língua natural. Seria, portanto, por meio da língua que se
desenvolveriam os mais diversos textos da cultura.
52
No espaço interno da semiosfera, operam, portanto, as informações da cultura. Em cada contexto cultural haveria uma semiosfera
diferente (e várias “subsemiosferas” dentro desta), que poderia interagir trocando informações com outras semiosferas — leia-se: outras
culturas. Por meio de filtros tradutores operantes na fronteira da esfera,
que permitem o trânsito de signos (informação) do meio interno ao
externo e vice-versa, são atualizadas e reorganizadas as informações
que fazem parte da cultura (MACHADO, 2007).
Nesses termos, podemos pensar numa semiosfera brasileira e
em outra japonesa que se entrecruzam em diversos momentos, que
se modificam, enriquecem e transformam, dando origem a novos signos antes inexistentes: é o fenômeno da dialogia e da interação entre
alteridades na construção de algo novo. Língua, costumes culturais,
produções artísticas, tudo isso é passível de trânsito intersemiosferas.
Pensando no contexto artístico brasileiro do século XX, essas
relações intersemiosferas nos remetem ao movimento antropofágico,
que ganhou forma e força no Brasil a partir do Manifesto Antropófago
(1928) de Oswald de Andrade. “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” Com essa frase, Andrade
inicia o texto que inaugura as discussões sobre a natureza antropofágica da arte brasileira: trazer elementos estrangeiros e devorá-los
para regurgitar uma expressão artística própria, algo novo, autoral e
particularmente brasileiro, construído a partir das influências externas, mas com uma marca própria.
Teorizações sobre essas transposições e assimilações interculturais
nos parecem dialogar com o termo transcriação, referenciado por Haroldo
de Campos em seus estudos, que aqui recorremos à publicação Haroldo
de Campos - Transcriação (2015), no qual foram organizados diversos
textos de sua autoria sobre a tradução poética, publicados ao longo de
décadas de pesquisas. Para esse estudioso do Japão, poeta e tradutor
brasileiro, alguns tipos de signo — no contexto da linguagem poética —,
pelas suas especificidades dentro da língua de origem, seriam impossibilitados de tradução, passando, então, pelo processo ao qual chamou
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de transcriação, a reinvenção do signo, por meio da operação tradutória,
para se manifestar em outra língua, ou outro contexto semiótico.
Podemos, aqui, estabelecer uma relação entre as proposições
de Campos e o pensamento de Martin Heidegger, em De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador (2003), no qual
o filósofo alemão discute a especificidade dos termos na linguagem
de origem serem muito particulares do seu próprio contexto linguístico e cultural — e acrescentamos: sua semiosfera originária. No texto,
Heidegger nos propõe que, talvez, em vez de buscar traduzir com exatidão em palavras ideias estéticas japonesas, seja mais interessante
tentar descrever o que elas nos “acenam”, numa relação dialógica com
signos passíveis de assimilação pelo indivíduo ocidental.
Conforme já mencionado, Haroldo de Campos direcionou suas
ideias sobre a transcriação à linguagem verbal, a língua, nos casos
sobre os quais se debruçou da tradução de poesia. No entanto, acreditamos, aqui, que pode haver uma expansão dessa concepção para
além do âmbito verbal, de forma a abranger também outros “textos”
da cultura — nos termos lotmanianos. Se pensamos a transcriação
como operação tradutora aplicável a signos não verbais, como nas
artes plásticas, na arquitetura, dentre outros meios, esse procedimento adquire uma infinitude de possibilidades de aplicação. O bairro da
Liberdade, em São Paulo, nos parece ser um exemplo pertinente a
essa discussão de transcriação que “acena” a um Japão imaginado.
Elementos da cultura japonesa como o torii (鳥居), lanternas, jardins e
até a fachada dos prédios onde funcionam bancos possuem elementos que nos remetem a uma arquitetura japonesa clássica.
Afirmamos a transcriação desses elementos porque, uma vez
deslocados de seu contexto e propósitos iniciais na cultura de origem,
passam a existir com outras propostas. Por exemplo, um torii, no Japão, associa-se às crenças xintoístas (神道, shintō) — ao passar entre
as duas pilastras, o indivíduo estaria adentrando o espaço sagrado
dos kami (神, divindades). Por outro lado, no caso do torii no bairro da
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Liberdade, no Brasil, a ideia religiosa pode continuar presente, mas
entendemos que esta não ocupa mais o lugar central do propósito
da construção, que é preenchido por novos significados nesse outro
contexto cultural, no qual passa a operar uma significação mais relacionada à representação dos “símbolos do Japão” de modo mais
amplo. Verifica-se assim, o deslocamento semântico proporcionado
pela transferência espacial de um signo. Sabemos que existem, atualmente, mais de sessenta torii no Brasil, construídos principalmente no
Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, tornando-o o país com
maior número de torii do mundo, fora do Japão.
Em texto introdutório aos pensamentos de Campos, o pesquisador Marcelo Tápia, um dos organizadores do livro de 2015, faz referência a uma ideia que, de fato, nos parece central para a compreensão
desse termo cunhado pelo poeta, a tradução viva da tradição por meio
da desconstrução e reconstrução, ou seja, da reinvenção:
[...] o ponto mais importante da concepção de Haroldo sobre
transcriação [...] talvez seja a explicitação de que seu caminho,
como transcriador, parte de critérios originados da observação
de elementos intertextuais para chegar a um novo texto que, por
desconstrução e reconstrução da história, traduz a tradição, reinventando-a. Para tanto, o ato de “construção de uma tradução
viva” será “um ato até certo ponto usurpador, que se rege pelas
necessidades do presente de criação”. Em vez de buscar reconstruir um mundo passado, a visão haroldiana decide pela reinvenção de uma tradição, inserida em novo contexto: o texto, portanto,
transforma-se na “viagem”, e seu ponto de chegada acolhe-o de
modo a participar de sua reestruturação, para a qual o presente, a
releitura e a comunicação em novo espaço e em novo tempo são
determinantes (TÁPIA, 2015, p. XVIII, grifos nossos).
Transcriadas, as tradições da cultura japonesa, ao se manifestarem no Brasil, adquirem novas nuances, percepções, características, tornam-se parte de uma cultura nipo-brasileira, híbrida, como
afirma o professor Mori. Essa concepção de hibridismo constitui um
ponto-chave, em nossa visão, para a abordagem almejada da produção dos artistas aqui tratados.
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ARTISTAS NIPO-BRASILEIROS
E A EXPRESSÃO DE UMA
ARTE TRANSCRIADA
Ao adentrar a discussão proposta nesta seção, ressaltamos
que, apesar do termo nipo-brasileiro ser utilizado também para fazer
referência a descendentes de japoneses, fizemos, neste estudo, uma
seleção de três artistas que nasceram no arquipélago, mas escolheram o Brasil como morada e local para desenvolver sua arte, daí
serem conhecidos como artistas nipo-brasileiros. Tiveram o deslocamento espacial entre os países como experiência, somado à vivência
dos primeiros anos de vida no Japão e da migração e adaptação ao
Brasil. Esses artistas foram escolhidos para esta pesquisa devido a
alguns pontos convergentes entre suas produções, como o abstracionismo de suas obras, a observação de influências nipônicas em
consonância com aspectos ocidentais do fazer arte nas temáticas
presentes em suas pinturas e a relevância artística que tiveram e têm
no cenário paulistano e brasileiro. Como aponta Cecília Lourenço,
professora titular da USP, no catálogo da exposição Vida e Arte dos
Japoneses no Brasil, realizado no Museu de Arte de São Paulo (Masp),
em 1988, na ocasião dos 80 anos da imigração japonesa no Brasil:
Ressalte-se [...] o destacado valor dos abstratos, não só por
representarem adesão às forças mais avançadas, mas pela
real qualidade de suas obras. Como se sabe Tikashi Fukushima
(1920), Manabu Mabe (1924) e Tomie Ohtake (1913) iniciaram
na década de 50 uma carreira, ainda figurativa, porém profundamente marcada pela gestualidade, ritmo e espiritualidade no
fazer artístico. Identificados com a tradição japonesa, onde a
incisão sobre a superfície decorre de uma férrea disciplina interior, passaram a desenvolver plena interação com os setores
de ponta do momento, tanto do Salão Paulista de Arte Moderna (iniciado em 1951) do Salão Nacional de Arte Moderna (de
1952) e em especial da Bienal de São Paulo, o verdadeiro ponto
de inflexão entre uma arte referenciada diretamente com as formas cotidianas ‘versus’ a abstração e mesmo o geometrismo
(LOURENÇO, 1988, p. 40, grifo nosso).
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Os nipo-brasileiros marcaram presença na arte brasileira no
século XX, e sua influência pode ser percebida para muito além do
círculo dos artistas com origem nipônica da época, tendo impacto na
produção artística no Brasil, principalmente com o desenvolvimento do abstracionismo. A professora estadunidense Mariola Alvarez
(Universidade de Temple, Pensilvânia) é pesquisadora de arte nipo-latino-americana e nos oferece uma visão externa sobre os artistas
nipo-brasileiros aqui estudados:
Em outras palavras, artistas nascidos no Japão dominaram
o campo da Abstração Lírica no Brasil. Eles não apenas pegavam emprestados ou copiaram estilos europeus ou americanos, mas formavam parte de uma rede transcultural de
artistas que modernizavam as técnicas tradicionais de pintura do leste asiático e inovavam o modernismo caligráfico.
Rompendo com o binarismo nacional e internacional que definira a história da arte moderna, a Abstração Lírica brasileira desenvolveu-se a partir de uma história transnacional de
artistas e arte e da união de elementos japoneses, brasileiros
e europeus para criar uma forma brasileira única de pintura
(ALVAREZ, 2016, p. 79, tradução nossa, grifo nosso).
Essa forma única, transnacional, de fazer arte nos parece estar
diretamente em diálogo com a ideia de transcriação de Campos. No
contexto brasileiro, as influências natais dos artistas aqui estudados fazem nascer uma nova possibilidade de produzir uma arte transcultural,
que converge elementos de diferentes tempos e espaços, em outras
palavras, de outros meios semióticos.
Nesse contexto, foram selecionados três artistas nipo-brasileiros
que se relacionam de alguma maneira com a corrente artística ocidental conhecida como Abstracionismo Informal42: Manabu Mabe (Kumamoto, 1924 – São Paulo, 1997), Tikashi Fukushima (Soma, 1920 – São
Paulo, 2001) e Tomie Ohtake (Quioto, 1913 – São Paulo, 2015). Todos
integraram a segunda fase do Seibi-kai (de 1945 à década de 1950),
42
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Artistas ligados ao Abstracionismo Informal buscam a expressividade artística pelo sensível das cores e formas abstratas, marcadas pela liberdade instintiva, movida pelo impulso
de criação. Alguns dos nomes que se relacionam com esse meio conhecidos no exterior
são Jackson Pollock (1912-1956) e Mark Rothko (1903-1970).
57
um grupo de artistas de origem japonesa criado em 1935 por, dentre
outros, Tomoo Handa (TANAKA, 2019).
Os três artistas começam pelas pinturas figurativas, Mabe desde 1945, Fukushima em 1949, e Ohtake mais tarde, em 1951. A arte
figurativa, que busca uma representação de pessoas, animais, objetos
e paisagens de modo mais aproximado à visualidade, era bastante
difundida no Brasil da época. Apesar de ter os seus inícios marcados
pelo figurativismo, logo o olhar desses artistas nipo-brasileiros voltou-se ao abstracionismo (ibid.). Com isso, conquistaram reconhecimento
nacional e internacional pela sua originalidade, segundo Alvarez, ora
pela gestualidade caligráfica e pela presença de espiritualidade, conforme apontou Lourenço e que se associam à tradição japonesa, ora
pelas cores muitas vezes tropicais em suas obras.
Voltando-nos para suas trajetórias e produções, iniciamos com
Mabe, que migrou com a família para o Brasil aos dez anos de idade,
em 1934. Foram para Lins, interior do estado de São Paulo, para trabalhar em lavouras de café.43 Mabe começou a pintar jovem, num ateliê improvisado no próprio cafezal, principalmente nos dias de chuva,
quando não podia trabalhar com a terra. Conquistando reconhecimento e abrindo espaço para as gerações futuras de artistas nipo-brasileiros, com apenas 29 anos, teve trabalho aprovado para exposição na
Segunda Bienal de São Paulo, em 1953 (LOURENÇO, 1988).
Em 1959, recebeu consagração internacional com prêmios na
V Bienal de São Paulo, na I Bienal de Jovens de Paris, dentre outros.
O crescente reconhecimento internacional o levou a ser homenageado pela revista nova-iorquina Time em 1957, com o artigo The Year
of Manabu Mabe [O ano de Manabu Mabe]. Na VII Bienal de São
Paulo (1963) Mabe é um dos artistas que ganha uma sala especial
ao lado de célebres artistas brasileiros como Anita Malfatti, Emiliano
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Esta era uma realidade comum a muitas famílias japonesas que imigraram ao Brasil durante o século XX. A história de alguns dos primeiros imigrantes, a maneira como viviam
e os costumes que cultivavam podem ser conferidas em visita ao Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, administrado pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa
e de Assistência Social (Bunkyo) e localizado no bairro da Liberdade, em São Paulo.
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Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho, Tarsila do Amaral, Arthur Luiz Piza,
Frans Krajcberg, Iberê Camargo, Lygia Clark, onde mostra 20 pinturas e dois desenhos. Era o reconhecimento consolidado de um artista
nipo-brasileiro no cenário artístico brasileiro.
Mabe realizou exposição individual em 1978, em importantes
museus do Japão, quando o avião que carregava as suas obras de
volta ao Brasil desapareceu.44 Mabe faleceu aos 73 anos, em 1997,
devido a complicações relacionadas a um transplante de rim.
As manchas, o escorrer da tinta no papel, as cores e as formas
irregulares caracterizam as obras do pintor. A gestualidade caligráfica
pode ser notada em suas pinceladas livres, nas quais o acaso faz parte
da constituição. No entanto, os japoneses vêem nas suas obras um
colorido tropical, muito distinto dos artistas do Japão, o que identifica
o seu lado brasileiro.
Figura 1 – Composições de Manabu Mabe:
Abstracionismo, 1967, óleo e verniz sobre tela, 180,3 x 200 cm, à esquerda;
Poema pastoral, 1988, óleo sobre tela, 152 x 191 cm, à direita
Fonte: Família de Manabu Mabe.
44
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O voo 967, operado pela empresa brasileira Varig, desapareceu pouco após a decolagem
no Aeroporto Internacional de Narita, em Tóquio, no dia 30 de janeiro de 1979. Dezenas de
quadros de Mabe estavam sendo transportados no avião de volta ao Brasil, via Los Angeles.
Os destroços da aeronave nunca foram encontrados. Ver: https://veja.abril.com.br/mundo/
ha-35-anos-aviao-da-varig-tambem-sumiu-sem-deixar-rastro/ Acessado em 10 set. 2020.
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Já Tikashi Fukushima, nascido numa pequena vila de pescadores na província de Fukushima, imigrou em 1940, então com 20 anos
de idade. Inicialmente, residiu em Pompéia e Lins, ambas também no
interior do estado de São Paulo, onde conheceu Mabe. Mudou-se para
o Rio de Janeiro em 1946, onde residiu até 1949, trabalhando com Tadashi Kaminagai (1899-1982), artista japonês que viveu por mais de 10
anos em Paris e permaneceu no Brasil por 14 anos. Ao voltar para São
Paulo, montou uma oficina de molduras no Largo Guanabara. No ano
seguinte, em 1950, fundou o Grupo Guanabara que, diferentemente
do Seibi-kai, era composto de membros de etnias diversas. Em 1957,
realizou uma exposição itinerante em São Paulo, Lins e Araçatuba, que,
para o pesquisador japonês Shinji Tanaka (2019), significa o adeus de
Fukushima ao figurativismo e o início de sua vida artística. Durante o
boom do abstracionismo nos anos 1950-60, junto a Mabe, Fukushima
se tornou um dos pintores mais populares, recebendo enorme demanda pelas suas obras (ibid.). Faleceu em 2001, aos 81 anos, durante um
procedimento cirúrgico devido a uma suspeita de enfarte.
Fukushima pinta majoritariamente paisagens, imbuída de uma
estética poética por meio da gestualidade caligráfica, acentuada pelo
uso de texturas e cores que, por sua vez, trazem contrastes de claros e
escuros. A gestualidade caligráfica aparece de modo mais intenso nas
suas obras, e as temáticas se associam aos elementos da natureza
que são, por sua vez, frequentes nas pinturas japonesas, como Anoitecer na Montanha, Anoitecer no Outono, Brisa, Vento do Mar (figura
2, à esquerda), Vento da Montanha (figura 2, à direita), Sol, Estações,
Primavera, Verão, Amigo Terra etc.
De acordo com o crítico de arte Ivo Zanini (2001, p. 11), o artista
empregava “desde o começo da sua produção, a simbiose Oriente-Ocidente. Fukushima tornou-se verdadeiro poeta das cores, quem sabe
realçando sentimentos das duas pátrias, aquela que nasceu e a outra
que o acolheu”, identificando a sua brasilidade “no equilíbrio cromático influenciado pelo esplendor contagiante do tropicalismo brasileiro,
sobretudo nas décadas de 70 e 80”.
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Figura 2 - De Fukushima: Vento do mar, 1991, acrílico
sobre tela, 130 x 162 cm, à esquerda; Vento da montanha,
1978, acrílico sobre tela, 100 x 120 cm, à direita.
Fonte: Família de Tikashi Fukushima.
Em complementação a essas ideias, em Tikashi Fukushima:
um sonho em quatro estações (2012), a pesquisadora Leila Kiyomura Moreno propõe algumas possibilidades de diálogos da ideia não
conceitual japonesa Ma (間) com a obra do artista. Passível de ser
concebido como um signo estético da cultura, o Ma é uma ideia de
difícil tradução pela diversidade de visões sobre ela. Pode se materializar como um entre-espaço, um momento de suspensão, um
espaço intervalar, um silêncio, um vazio. No entanto, não um vazio
no sentido ocidental da existência de nada, mas numa concepção
de um espaço com potencial de preenchimento, a partir do qual tudo
pode surgir (OKANO, 2014). Os quadros de Fukushima representam
momentos de suspensão do tempo, da energia do ar em movimento
e da invisibilidade dos elementos vitais e vigorosos por intermédio de
uma potência gestual que pode ser associada à tradicional caligrafia
ou a pinturas suibokuga japonesas, os quais afloram e aguçam as
sensibilidades daqueles que lançam o olhar sobre eles.
Voltando-nos para a talvez mais conhecida dos três representantes da arte nipo-brasileira incluídos neste trabalho, Tomie Ohtake
veio para o Brasil em 1936, para visitar um irmão. Com o início da Guerra do Pacífico, foi impossibilitada de voltar à sua terra natal, e acabou
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fixando residência em São Paulo: casou-se e teve filhos. A artista tem
uma trajetória um tanto diferenciada em meio aos seus companheiros
de profissão. Pelas tarefas familiares que vêm junto da necessidade
de criar dois filhos, seu início na pintura se deu apenas por volta dos
40 anos de idade. Essa investida na arte já na maturidade, contudo,
não parece ter sido empecilho para trazer à luz suas muitas obras, que
continuou produzindo até suas últimas semanas de vida, em 2015,
quando faleceu aos 101 anos de idade.
No decorrer de mais de cinco décadas, Ohtake desenvolveu pinturas, gravuras e esculturas com temas diversos, nunca se enquadrando
em apenas um estilo, mesclando técnicas e fazendo surgir uma arte permeada de características próprias. Uma delas é a presença recorrente
de círculos, que podem estabelecer diálogos com o ensō (円相), ligado
ao zen-budismo, que traz consigo ideias como a interconectividade do
universo, o ciclo da vida, o cheio e o vazio etc. Traz a compreensão da
potencialidade desse vazio, que pode dialogar com o Ma, no sentido de
ser prenhe de possibilidades, de tudo poder ser, do devir, e, portanto, do
vazio que é também cheio, distanciando-se da visão negativa do nada
e da nulidade. Representa também a aceitação da imperfeição tanto
como elemento estético como participante das nossas vidas.
Esses “retornos” ao Japão e a uma filosofia de origem asiática
também estão presentes na obra yū-gen (1998), que Ohtake desenvolveu em parceria com o poeta e tradutor Haroldo de Campos. Nessa série
composta por doze gravuras, pintora e poeta evocam juntos, em imagens e palavras, em cores e ideias imaginadas numa dança complementar, um Japão de templos, jardins, obras literárias, deuses e teatro nō.
O título dessa série produzida em conjunto próximo à virada
do milênio faz referência a uma ideia estética tradicional do Japão, o
yūgen (幽玄). Comumente relacionada à arte do teatro nō, as contribuições dos autores tanto japoneses quanto ocidentais sobre yūgen
são bastante plurais (FUKUDA, 1994; INAGA, 2015; KUSANO, 1984;
RICHIE, 2007; TAKAHASHI, 2018).
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Figura 3 - De Tomie Ohtake e Haroldo de Campos, série
yū-gen, 1998, 53 x 38 cm, 12 gravuras em metal
Fonte: Instituto Tomie Ohtake.
No dicionário japonês de termos antigos Weblio古語辞典45 (Weblio Kogojiten), o verbete de yūgen traz uma perspectiva sobre a ideia
em três partes: “いうーげん【幽玄】substantivo: 1) estado de espírito/
terreno profundo; 2) charme profundo e elegante; 3) beleza suave e
graciosa.” (KOGOJITEN, verbete yūgen, tradução nossa)46
A pesquisadora brasileira Darci Kusano, em O que é teatro nô
(1984), para discutir yūgen, afirma que o significado dessa ideia vai
além das aparências, fazendo referência a uma “verdade velada, que
a gente sente, mas não consegue descrever, como a sensação do
místico” (KUSANO, 1984, p. 22-23).
Em complementação, Takahashi Hironobu, professor da Universidade da Província de Kumamoto (2018)47, apresenta algumas contribuições elucidativas à nossa discussão.
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Disponível em: https://kobun.weblio.jp/content/幽玄. Acesso em 27 ago. 2020.
Texto original: 名詞 | ①奥深い境地。②優雅な深い味わい。③優雅で柔和でととのった
美しさ。
No texto As mudanças temporais do conceito estético japonês e o seu modelo composicional: Pesquisa básica para a criação de um espaço estético. Em japonês, 日本の美的概
念に関する時代推移とその構成モデル美的空間創造のための基礎的研究。
Disponível em: https://www.jstage.jst.go.jp/article/designresearch/77/0/77_158/_article/-char/ja. Acessado em 04 set. 2020.
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“Yūgen” é uma ideia estética importante principalmente nas
poesias waka, renga e no teatro nō da época Chūsei48. Expressa um sentimento profundo que é externalizado, mas difere de
acordo com o período histórico e social. [...] o antigo significado
de “profundidade” em yūgen foi, gradualmente, tendo a ênfase
deslocada para a ideia de “sutileza”, significando mais intensamente “beleza tênue”, “elegância e delicadeza sofisticada”.
(TAKAHASHI, 2018, p. 162-163, tradução nossa)49
Ao resgatarem esse elemento tradicional da estética japonesa e,
a partir dele, nomearem a sua obra, Tomie e Haroldo constroem, com
um Japão transcriado em terras brasileiras, uma arte que transborda as
fronteiras sígnicas das cultura envolvidas, bem como das linguagens
artísticas, que aqui se plurificam com a manifestação de poesia verbal
e composição visual abstrata.
Em sintonia com as considerações sobre antropofagia apontadas na primeira parte deste texto, o crítico Paulo Herkenhoff, em Tomie
Ohtake: gesto e razão geométrica (2014), aponta para uma confluência
de culturas na produção da artista por meio dessa assimilação antropofágica do outro.
[...] reivindica-se aqui, na pintura da imigrante Ohtake, a realização da síntese entre Ocidente e Oriente em viés singular de sua
Antropofagia própria, emancipada da questão do subdesenvolvimento e da dependência cultural. (HERKENHOFF, 2014, p. 9)
A criação de uma expressividade artística plural observada nesses
três artistas nipo-brasileiros aqui abordados nos evoca essas ricas possibilidades originadas a partir da confluência de culturas, que aqui dão origem a uma arte complexa em conexões, numa celebração da mistura de
possibilidades do fazer artístico antropofágico, transcriado e transcultural.
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A época Chūsei (中世) é referente ao período da história do Japão que compreende,
grosseiramente, do século XII ao XVI, e é marcado politicamente pelo governo dos xogunatos, que representa a classe dos guerreiros. É nesse momento que acontece o maior
desenvolvimento do teatro nō, mais especificamente, na era Muromachi (1336-1573).
Texto original: 「幽玄」
とは、主として中世の和歌・連歌・能などでの重要な美的理念。言外
に漂う奥深い情趣美を言うが、時代や人によって異なる。[...] このように、幽玄の持つ「深
遠」
という古い意味は次第に「微妙」
という意味へと力点を移すようになり、
「かすかな美し
さ」を表すに至って、
「優雅とか、上品なやさしさ」とかの意味へと幽玄は移って行く。
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em meio às relações comunicativas cada vez mais imediatistas
na contemporaneidade, que alcançam e se transformam para além
das fronteiras das nações e das culturas — na perspectiva lotmaniana
da semiosfera —, a construção identitária e artística conquista novas
possibilidades, enriquecida pelo dialogismo cultural. Na produção dos
artistas nipo-brasileiros estudados aqui, o encontro entre realidades
culturais distintas faz nascer uma existência híbrida do fazer artístico,
que costura diferentes técnicas e influências de realidades distintas
geográfica e temporalmente, num espaço-entre que se constitui no intervalo entre o Brasil e o Japão, em conexão com o pensamento do Ma.
Nessa linha, Manabu Mabe, Tikashi Fukushima e Tomie Ohtake
imprimiram cada um ao seu modo, uma marca sobre o contexto de seu
tempo. Com uma produção artística construída de transcriações estéticas e culturais, esses três artistas encontraram um caminho próprio,
transformando o cenário da arte nipo-brasileira e rompendo barreiras
étnicas, econômicas e de gênero artístico (no caso de Ohtake), conquistando espaço em exposições, mostras e festivais de arte.
Consideramos pertinente ressaltar, em vias de conclusão, que
as percepções desenvolvidas neste texto dizem respeito à arte de artistas nipo-brasileiros que nasceram no Japão e depois migraram para
o Brasil, tendo esse deslocamento espacial feito parte de suas vidas.
Se, de um lado, existem os artistas imigrantes que tiveram uma
vivência no Japão, embora em níveis diferenciados (infância, adolescência e uma parte da vida adulta), sempre há um vestígio de “japonesidade” quer seja intencional, quer seja inconsciente, mas não
deixam de sofrer as influências do contexto tropical em que vivem, na
construção de transcriações. Nos casos estudados, houve uma feliz
coincidência entre o Abstracionismo Informal em voga no cenário artístico mundial e a gestualidade caligráfica tradicional no Japão, que
estavam inseridos no corpo desses artistas.
sumário
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Em olhares que partem de perspectivas dos brasileiros com
conexões e aderências com estética e cultura japonesas, como é o
caso de Haroldo de Campos, uma reflexão mais desenvolvida é apresentada por Igor José de R. Machado que considera tal fenômeno
como “japonesidades múltiplas”. O autor propõe “que não analisemos as condições desses sujeitos como ‘menos ou mais’ japonesas,
mas como japonesas à sua maneira” (2011, p. 16). Essa perspectiva
de olhar leva à mesma consideração: tanto a japonesidade, nesse
sentido, pode passar contornos que borram a fronteira demarcada
pela etnicidade, quanto a japonesidade dos japoneses imigrantes
ultrapassa o limite determinado pela nacionalidade, ambos na construção de algo híbrido, dentro de uma visão que valoriza os diálogos,
as conexões, as redes estabelecidas por indivíduos e culturas plurais.
Deixa-se o pensamento fixado pela demarcação rígida de “identidades”, “nacionalidades” e “etnicidades” e investe na relação criada
entre as alteridades, para deslocar da fixidez do pensamento guiado
para uma perspectiva relacional — da fluidez e interação que Haroldo
de Campos denominou de transcriação que, numa perspectiva semiótica, traz a geração de novos signos mais desenvolvidos.
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sumário
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CINEMA
CINEMA
Capítulo 3
Cinema, Memória e Representação da Vida
Rural dos Japoneses no Brasil
Alexandre Nakahara
3
Alexandre Nakahara
Cinema, Memória
e Representação da Vida
Rural dos Japoneses no Brasil
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.3
Os cinemas ambulantes desempenharam uma importante função de entretenimento dos japoneses que moravam no interior e
de amenizar a dureza da sua vida. [sic]
(Tomoo Handa, 1987)
Os cinemas itinerantes sobre os quais Tomoo Handa (1906-1996)
escreveu e que faziam parte do cotidiano dos imigrantes japoneses no
Brasil exibiam principalmente filmes do Japão. As histórias vindas do
país natal, deixado para trás, certamente, amenizavam periodicamente
a rotina de trabalho pesado na lavoura que era enfrentada pela maioria
dos imigrantes e seus familiares até a década de 1960. Mas além de
nos entreter, permitir imaginar formas de vida e inspirar modos de agir
e de se comportar, os filmes também podem nos ajudar a refletir sobre
o passado e sobre quem nós somos hoje. Para isso, é preciso voltar
o olhar para filmes mais próximos da realidade brasileira, nos quais os
imigrantes japoneses e seus descendentes tiveram participação modesta, mas sempre presente ao longo do século XX, tanto à frente das
lentes quanto atrás das câmeras e máquinas de projeção.
Os três filmes que serão analisados neste capítulo têm em comum a imigração japonesa e a representação da vida rural. Esses dois
elementos irão se misturar nos filmes das mais diversas formas e contribuem, aos seus modos, no entendimento da história da comunidade
japonesa no Brasil. Espero que essas análises possam oferecer novos
olhares para os filmes como parte dessa trajetória. Há a tentativa de
focar em perspectivas mais otimistas, mas procurando não desviar
os olhos do que pode ser desagradável. Em meio a acontecimentos
recentes no país como o abandono da Cinemateca Brasileira, e, consequentemente, de todo o seu rico acervo e trabalho, é sempre necessário reafirmar a importância da preservação da história e da memória
para lembrar como chegamos até aqui.
As obras aqui tratadas, apesar de reconhecidas em determinados nichos (uma delas produzida por um dos mais bem-sucedidos
produtores de cinema do Brasil) são de alguma forma marginalizadas
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71
por serem dos gêneros da comédia popular, da animação e do curta-metragem. Essa escolha foi feita para trazer diversidade ao apanhado
de filmes e também para destacar diferentes modos com que o cinema
se apresenta e que são muitas vezes injustamente hierarquizados.
JAPONESES CAIPIRAS
O primeiro filme é Meu Japão brasileiro (1964), dirigido por Glauco Mirko Laurelli (1930-2012) e produzido, escrito e estrelado por Amácio Mazzaropi (1912-1981). Nesse filme, o personagem Fofuca, um
dono de pensão interpretado por Mazzaropi, articula com os japoneses
que moram em sua propriedade a fundação de uma cooperativa agrícola para escapar da exploração e do monopólio do comerciante Seu
Leão. Mas diante disso, Leão tenta enfraquecer o grupo e a comunidade, raptando a esposa de Fofuca e tentando arruinar os planos de
casamento de seu filho Mário com uma mulher nipo-brasileira.
Famoso por seus personagens caipiras, Mazzaropi repete a fórmula narrativa da maior parte de seus filmes em Meu Japão brasileiro.
Grande parte dos acontecimentos do filme são apenas situações que
promovem um modo do ator realizar suas piadas e fazer o público dar risada, mas alguns detalhes do filme são ainda interessantes mesmo hoje
em dia. Interessado em atrair o público nipo-brasileiro para ver seus filmes, Mazzaropi não se utiliza de piadas de teor étnico-racial que visam a
diminuição desse grupo social, mas principalmente a sua diferenciação.
Algumas piadas em relação à língua japonesa são feitas, mas muitas
outras que poderiam derivar de um imaginário preconceituoso em relação aos japoneses não aparecem, fugindo do senso comum. Inclusive
há uma piada que ironiza a percepção de japoneses e brasileiros como
raças diferentes, mas que obtém seu humor na afirmação da diferença
entre homens e mulheres, essas sim duas raças distintas para Fofuca.
Todo o preconceito e racismo não-velado é reservado para o antagonista
Leão, que faz questão de expressar seu desprezo pelos japoneses.
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Aproveitando-se de um tropo cinematográfico bem comum
para ressaltar o preconceito, o filme retrata o amor inter-racial dificultoso entre o filho de Leão e a vendedora de flores nipo-brasileira sem
nome, para simbolizar uma barreira e resistência na interação entre
japoneses e brasileiros. No entanto, apesar do exotismo com que a
comunidade japonesa é retratada, quando há mistura com elementos da cultura brasileira, o resultado é bem interessante. Então, temos japoneses na festa junina típica e outros falando português sem
forçar nenhum sotaque, ao contrário da prática representacional de
asiáticos que se tornou comum mais tarde em filmes e propagandas.
Além disso, o protagonista interpretado por Mazzaropi também usa
algumas palavras em japonês em suas conversas. Uma das principais mensagens do filme é sobre a cooperação entre japoneses e
brasileiros, culminando no próprio casamento entre Mário e a personagem nissei interpretada por Célia Watanabe (1945-).
Para Antonio Candido (1918-2017), a cultura caipira da qual os
personagens de Mazzaropi se alimentam é principalmente um resultado
da mistura entre a cultura dos bandeirantes e dos indígenas da região.
A área de aparecimento dessa cultura é, às vezes, referida por Candido
como Paulistânia e engloba partes dos atuais estados de São Paulo,
Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e Paraná. Como efeito da exploração
e dominação portuguesa na região e do relativo isolamento do litoral por
conta da Serra do Mar, os habitantes dessa região beneficiaram-se da
abundância de terras férteis e recursos naturais para a criação de uma
cultura própria, com hábitos mistos, europeus e indígenas (2001).
A cultura caipira passou por alterações ao longo do tempo, assim como sofreu influências de outros povos e das vicissitudes sociais e ambientais. No imaginário, popularizou-se com Monteiro Lobato
(1882-1948), na década de 1920, e outros escritores de sua época,
como Cornélio Pires (1884-1958). Ali, a figura foi tratada de modo estereotipado, contrapondo-se à modernidade industrial e ao desenvolvimento urbano que se propunha para São Paulo. Valores agregados
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aos caipiras eram todos aqueles que os paulistas que se consideravam modernos não reconheciam em si mesmos. É desse imaginário
que Mazzaropi criou seus personagens.
As relações sociais de Meu Japão Brasileiro são diferentes daquelas do ambiente rural de subsistência que teria dado origem à cultura
caipira. Elas são tingidas pela exploração capitalista de um comerciante
sobre uma população que ainda não possuía os recursos necessários
para ter maior controle sobre seu próprio trabalho e ganha-pão na produção agrícola. A principal causa de conflito vem da busca por essa
autonomia por parte dos japoneses, que são liderados por Mazzaropi.
Em sua obra sobre o imigrante japonês, Tomoo Handa (1987)
descreve os caipiras brasileiros como “os grandes mestres dos japoneses”. Entre outros exemplos, o autor cita o fato dos japoneses terem
aprendido a preparar linguiça e toucinho com os caipiras, além de terem adquirido o hábito de comerem um mingau feito de café adoçado
e farinha de milho pela manhã. Apesar das diferenças, na vida real, as
interações e trocas estavam presentes e ultrapassaram gerações. No
filme, os momentos de interação mais clara entre japoneses e brasileiros estão nas festas (junina e de casamento) e nas demandas políticas
que são mostradas. A vida privada dos japoneses é pouco explorada
e apenas os mais abastados - Fofuca e Leão - são mostrados em
momentos familiares. A única personagem da comunidade japonesa
que ensaia uma subjetividade é a personagem nissei que corresponde
à paixão do filho de Leão e que, simbolicamente, não possui nome.
Então, apesar de presente e respeitável, o grupo de imigrantes é visto
como um conjunto uniforme, com poucas opiniões e vontade própria.
Partindo de um universo bastante masculino e de uma visão
muitas vezes patriarcal e misógina, é comum, no filme, momentos em
que a humilhação da mulher serve de suporte ao humor. Ao mesmo
tempo, a emancipação feminina, na figura da professora que ajuda
Fofuca a arquitetar planos contra Leão, também está presente de alguma forma. Desentrelaçando as contradições, é possível perceber a
sumário
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solidariedade implícita que Amácio Mazzaropi demonstrava em seus
roteiros para grupos mais vulneráveis, e que visava sempre a atração
desses grupos para contribuir na bilheteria do cinema.
O autor Jeffrey Lesser (2008) analisou profundamente Meu Japão brasileiro e afirma que sua narrativa condiz com o mito da democracia racial propagado pelos escritos de Gilberto Freyre. Segundo
este mito, o Brasil seria um país livre do racismo, pois teria já sua
origem na miscigenação do homem branco com mulheres não-brancas. Um grande exemplo dessa ideia, para Lesser, acontece quando
Fofuca duvida da fúria dos brasileiros contra os japoneses no final do
filme. Este tumulto provoca até reações graves como a queima de
casas de alguns dos imigrantes. Dá-se a entender, a partir do ponto
de vista do personagem principal, que o conflito racial nunca poderia
ter gerado essa revolta e que isso só pudesse existir por uma única
razão: a manipulação do povo por parte de Leão. Dentro dessa visão,
o preconceito fica parecendo, no fundo, fruto da ingenuidade da população ao invés de um problema estrutural.
Enquanto o mito da democracia racial funciona na dimensão
cultural do filme, ativando-se sem coincidência na festa de casamento
entre o brasileiro Mario e a personagem nissei, a simbologia desse
casamento trabalha em outro sentido. O amor inter-racial entre os dois
personagens é somente relevante para a história na medida em que se
trata de uma relação miscigenada. Enquanto as relações inter-raciais
foram proibidas de serem representadas no cinema em países como
os Estados Unidos, no Brasil a miscigenação foi incentivada dentro
da ideia de branqueamento da população pela mestiçagem, como foi
bem-conceituado por Kabengele Munanga (1999). Era difícil imaginar,
por exemplo, uma história de amor entre dois descendentes de japoneses sendo representada nesse filme. A falta de subjetividade dos
personagens japoneses é sintomática disso tudo, na medida em que
lhes seria permitida uma opinião e agenciamento somente a partir de
uma aculturação e miscigenação com os brasileiros brancos.
sumário
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O cinema foi parte da vida dos japoneses desde os primeiros
anos da imigração. Um dos primeiros registros dos imigrantes, o filme Japoneses apanhando café nas fazendas paulistas, data de 1908,
ano da chegada do Kasato Maru ao porto de Santos. Mais tarde, as
sessões de cinema itinerante que exibiam filmes japoneses tornaram-se comuns no cotidiano de trabalho dos imigrantes e, numa época
posterior de urbanização e êxodo rural, quando foi realizado o filme de
Mazzaropi, os japoneses passam à frente das telas num filme de um
dos maiores produtores de cinema que já existiu no Brasil. À parte das
generalizações, que não envelheceram bem em Meu Japão brasileiro,
o filme compõe parte de um momento importante para a comunidade
japonesa no Brasil. As discussões que podem ser levantadas a partir
do filme são, sem dúvida, parte dessa relevância e de uma história que
deve ser a todo o momento explorada e recontada.
O SERTÃO NA VISÃO DE UM JAPONÊS
O segundo filme deste conjunto é um desenho animado, um
dos primeiros longas-metragens de animação em cores produzido no
Brasil: Piconzé (1972) dirigido por Ypê Nakashima (1926-1974). Aqui
acompanhamos a jornada do garoto cujo nome dá título ao filme e de
seus amigos animais: Louro Papo e Chico Leitão. Logo no início do
filme, Piconzé presencia o saqueamento de seu vilarejo e o sequestro
de sua amiga (e interesse amoroso) Mariazinha. Revoltado e triste com
o acontecimento, ele parte numa aventura com seus amigos para arranjar ajuda e conseguir trazê-la de volta para casa. Após uma viagem
cheia de reviravoltas, Piconzé não consegue encontrar um “homem
forte” que possa resgatar Mariazinha e restaurar a paz em seu vilarejo.
No entanto, encontra em seu caminho um guru que o faz passar por
um treinamento rigoroso em que adquire habilidade no uso de dardos
feitos a partir de gravetos. Depois de passar por este processo, Piconzé finalmente descobre em si mesmo o herói capaz de enfrentar o sequestrador Bigodão e seu bando, retornando vitorioso para Vila Verde.
sumário
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Escrito e dirigido por Nakashima, o filme possui contribuições
importantes de Décio Pignatari (1927-2012) e Damiano Cozzela (19292018), respectivamente, nas letras e arranjos das músicas que fazem
parte da trilha do filme. A montagem é de Sylvio Renoldi (1942-2004),
importante montador de cinema, conhecido por seu trabalho em
O bandido da luz vermelha (1968) de Rogério Sganzerla (1946-2004).
O universo composto em Piconzé repleto de referências ao folclore brasileiro é único e escapa do realismo desde o primeiro frame.
Os cenários feitos por Nakashima a partir de colagens de revistas e outros materiais remetem a um clima semiárido bem parecido ao deserto
onde Coiote corre atrás de Papa-léguas na animação de Chuck Jones
(1912-2002). Mas a referência é o nordeste brasileiro, cercado de fauna
e pontos mais verdejantes.
Realizado durante alguns anos entre a década de 1960 e 1970,
Piconzé é resultado da pesquisa e trabalho de Ypê Nakashima, japonês nascido na província de Oita e que imigrou para o Brasil em 1956.
Quando jovem, Nakashima frequentou brevemente a Escola de Belas
Artes de Quioto, antes de ser convocado para a guerra e ser alocado
em Nagasaki, onde sobreviveu à queda da segunda bomba atômica.
Após o término da Segunda Guerra Mundial, finaliza seus estudos e
começa a trabalhar em jornais com tiras, charges e ilustrações. Segue
sua carreira até chegar aos principais jornais de Tóquio, cidade em que
morava antes de imigrar para o Brasil. Apesar de carreira promissora
em seu país, Ypê decide imigrar com sua esposa e filho para o Brasil
em 1956, onde logo se envolveu com a comunidade japonesa.
Estabelecido em São Paulo, Ypê contribuiu com todo tipo de
serviço nas áreas de jornalismo e editoração para os jornais da comunidade japonesa e também para a Cooperativa Agrícola de Cotia. Após
algum tempo aprendendo animação, começou a realizar propagandas
de TV utilizando essas técnicas. Tendo vivido a maior parte de sua vida
adulta em cidades como Quioto, Tóquio ou São Paulo, a contribuição
frequente para a cooperativa agrícola chama atenção, pois além do
sumário
77
convívio direto com imigrantes e descendentes que trabalhavam na
lavoura, Ypê também viu a vida rural no Brasil. Por conta disso, talvez
não seja ilusório imaginar que o contato cotidiano com essas vidas,
em conjunto com suas memórias de infância no Japão rural, tenha
também contribuído para a criação de Piconzé.
Composto de muitos personagens estereotipados, mas não
somente disso, Piconzé é outro filme que deve ser analisado com cuidado para tentarmos enxergar a fabulação de Brasil que Nakashima
compõe. A intenção parece ser colocar o máximo de referências nacionais em um liquidificador e contar a história desse garoto brasileiro
e sua vila. Ao contrário dos outros dois filmes aqui tratados, Piconzé
não possui uma representação da comunidade japonesa no Brasil.
Sua relação com essa questão está atrás das telas, com uma equipe
de animadores composta por imigrantes e descendentes, além do
próprio diretor. Reunidos por meio de um anúncio no jornal, o grupo
sui generis era composto por pessoas de diferentes profissões que
foram treinadas por Nakashima para se tornarem animadores. Seu filho, Itsuo, conta mais detalhes da produção do filme no documentário
Ypê Nakashima de Helio Ishii, disponível no YouTube.
As imprecisões na representação do Brasil e dos brasileiros
parecem ser um modo de funcionamento da narrativa, que mistura vários elementos da paisagem, da cultura e do folclore brasileiro
(muitas vezes de forma simplista) a favor da história. O modo estereotipado de tratar diferentes culturas aparece, por exemplo, quando vemos Piconzé procurando um “homem forte” para ajudá-lo no
resgate de Mariazinha. As propostas que aparecem são de caubóis
e indígenas de filmes de faroeste com sotaques forçados de outras
nacionalidades. Muitas convenções comuns em desenhos animados
estadunidenses são utilizadas, mas, numa inversão de poder antagônica a esses desenhos, dessa vez é o brasileirinho Piconzé quem se
torna o verdadeiro “homem forte” e derrota o inimigo no final.
sumário
78
À parte desses breves personagens de outras nacionalidades,
também não existe caracterização ou representatividade regionalista
no modo que os personagens falam e o sotaque escutado é o da região sudeste. A música nordestina é homenageada, mas a roupagem
musical adotada acaba tornando-a uma versão pasteurizada da referência original. Apesar dessas ambivalências, o protagonismo do filme
é nordestino, em plena época de êxodo rural e crescente preconceito
urbano contra essa população migrante.
Ao problematizar politicamente nos dias de hoje a história contada, podemos talvez comentar a falta do protagonismo de personagens
negros ou mesmo a desnecessária vilania antagônica inicial do grupo
de cangaceiros, mas é importante levar em conta que essas características são relevantes na medida em que estejamos considerando o “fardo da representação” do qual tratam os teóricos Robert Stam (1941-) e
Ella Shohat (1959-). Tal fardo é central na análise quando buscamos o
comprometimento da representação com a realidade ou então ações
de reparação e sinais de que grupos minoritários e oprimidos puderam
resistir à invisibilidade imposta (2006).
É difícil analisar a representação brasileira em Piconzé sob esses
aspectos, pois não existe tal comprometimento com a realidade, e sim
uma visão de valorização do Brasil e da sua cultura dentro do mercado
internacional da animação. A própria construção espacial do filme, que
mistura o sertão com a floresta por conveniência narrativa, é bastante
significativa. A ambição dos produtores do filme era a de tornar Piconzé
um produto internacional como os desenhos da produtora Hanna-Barbera. É principalmente por aspirar ao grande público que a maior parte
do folclore e regionalismos da história parecem simplificados e reduzidos a estereótipos. Nesse contexto, a representação da cultura brasileira
pode se tornar facilmente refém de seus próprios valores mais propagados. Mas, pensar também no momento histórico em que o filme foi
realizado, e em algumas características de sua produção, talvez possa
trazer alguns outros agentes interessantes para essa análise.
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Vale a pena ressaltar que, para os imigrantes japoneses da
época e a segunda geração de descendentes nascidos no Brasil, era
importante afirmar, ressaltar e demonstrar nacionalismo e conhecimento sobre o Brasil. Pesquisas acadêmicas mais recentes têm recuperado um passado conflituoso da interação dos primeiros imigrantes com a sociedade brasileira, principalmente durante a Era Vargas,
em que o alinhamento do Japão com o Eixo provocou a perseguição,
a remoção de suas casas e até o confinamento de japoneses no país.
O momento em que Nakashima construiu essa história foi durante os
primeiros anos de ditadura militar, em que o país se encontrava em
profunda divisão política. O lastro histórico do período anterior ainda
era presente na vida de muitos imigrantes.
Nakashima era atraído pelas temáticas brasileiras, isso também
pode ser percebido pelo tema de seus curtas-metragens anteriores.
Não se pode dizer com certeza que isso era consequência direta desse
ambiente político, mas podemos dizer que existe um desejo de Nakashima de tratar especificamente de um tema que discute a identidade
nacional brasileira. Em Piconzé, o ambiente rural é considerado “tradicional” e brasileiro por excelência. Pouco antes do Golpe Civil-Militar de
1964, a reforma agrária havia sido uma das protagonistas na discussão
das questões nacionais. O autor Ismail Xavier (2004) comenta, ao se
debruçar sobre o cinema brasileiro, como somente após o golpe, com
a influência do Tropicalismo, que a dualidade entre o urbano e o rural
não passa mais a ser uma regra nos filmes produzidos . Não é o caso
de afirmar que Piconzé corresponde à trajetória histórica delineada por
Xavier, mas com certeza está inserido na discussão de seu tempo ao
posicionar o rural como local de emergência da identidade nacional.
Por conta do momento em que foi realizado e, também, por se
tratar da criação de um imigrante japonês, Piconzé encontra-se atravessado por questões complexas e de diferentes dimensões de identidade nacional, que poderiam ser mais aprofundadas com um estudo
mais detalhado sobre Nakashima. A discussão da identidade nacional
sumário
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brasileira, que à primeira vista é tão bidimensional na história contada
em Piconzé, ganha mais complexidade com todos esses elementos.
Mas, por fim, resta afirmar que a habilidade e criação do diretor
para a animação são realmente notáveis. A decupagem da ação, o
uso harmônico de diferentes técnicas de animação, o detalhamento
e o cuidado na produção de cenários, assim como algumas das sequências de mundos oníricos, em que a composição gráfica sobrepõe
a representativa, são levados do começo ao fim com perfeição.
Durante os anos 1960, Nakashima havia viajado ao Japão, acionando contatos e procurando produtores para seu projeto. Infelizmente, ele não conseguiu fechar nenhum acordo e gastou todas as suas
energias nesse projeto, que lhe trouxe principalmente reconhecimento
artístico antes de sua morte precoce. Caso tivesse se tornado um êxito econômico e popular, talvez Piconzé e sua visão peculiar do Brasil
tivessem ocupado um espaço melhor ao lado de outros personagens
famosos da animação nacional e internacional.
O CINEMA JAPONÊS NO INTERIOR
No curta-metragem Chá verde e arroz (1989) de Olga Futemma
(1951-), um importante episódio da relação entre o cinema e a imigração japonesa no Brasil é homenageado. O filme de pouco mais de
doze minutos conta a história da passagem do cinema itinerante de
Kenji por uma pequena cidade do interior habitada por uma comunidade japonesa. Chegando às mais diversas comunidades rurais em
sua caminhonete cheia de equipamentos de projeção, Kenji vive do
dinheiro que as famílias podem contribuir para assistir a filmes japoneses nas sessões que prepara.
Como Tomoo Handa (1987) bem notou na epígrafe que abre
esse texto, o cinema era uma forma de entretenimento que amenizava
sumário
81
o duro cotidiano de trabalho na lavoura. No filme, que provavelmente
se passa entre as décadas de 1950 e 1960, a diretora decide abordar
esse fato por meio do encontro entre duas gerações que compartilham um carinho especial pelo cinema. A história ressoa um filme com
a mesma temática lançado no ano anterior: Cinema Paradiso (Nuovo
Cinema Paradiso, 1988) de Giuseppe Tornatore (1956-).
De um lado temos Jo, um garoto que se anima com a chegada
do cinema e que ajuda Kenji a realizar algumas tarefas no vilarejo.
Para ele, o cinema é a própria realização da imaginação, que contribui para fabular sobre a vida dos outros e inventar brincadeiras em
casa. Do outro lado, temos o viajante Kenji, cuja relação com o cinema é um pouco pragmática como sustento. No entanto, o contato
com a arte é essencial para sua vida e também lhe permite conhecer
pessoas e lugares diferentes.
Ao longo do filme, descobrimos que Kenji, além de exibir filmes, também havia sido benshi no passado. Os benshis foram figuras presentes no cinema japonês até a popularização do cinema
sonoro. Uma figura performática, que se situava entre o narrador, o
dublador e o apresentador, os benshis também ajudavam o público a compreender a história e direcionavam a atenção a detalhes
importantes para a narrativa. No Brasil, essas figuras também eram
comuns nas exibições ambulantes e a mãe de Jo, em determinada
cena, relembra como muitas vezes assistir aos filmes não fazia sentido sem os benshis, que eram o próprio cinema.
Nostálgico com sua época de benshi, Kenji recita sentado nas
escadas uma fala inspirada nos filmes do cineasta japonês Yasujiro Ozu
(1903-1963), que aparece de formas diferentes, por exemplo, nos filmes
Começo de primavera (早春, Sōshun, 1956) e Bom dia (お早よう, Ohayō,
1959). A fala que Kenji reproduz diz respeito a como a aposentadoria
parece uma ingratidão após tantos anos de trabalho. Isso evoca nos
personagens uma sensação de que a vida não passaria de um sonho
fugidio. O tema levantado é bastante comum tanto na filmografia de Ozu
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quanto na cultura japonesa e diz respeito à passagem do tempo e à efemeridade das coisas. Uma prova disso é o fato de que alguns de seus
filmes são nomeados com épocas de estações do ano (como Começo
de primavera, por exemplo) para expressar as fases da vida de seus personagens. Claramente inspirada em Ozu, a diretora também realiza um
recorte delicado da vida dos imigrantes japoneses por meio desses dois
personagens, que estão um em plena infância e outro na vida adulta.
Futemma também faz escolhas direcionadas na direção e roteiro para homenagear o impacto que Ozu deve ter tido em sua própria
relação com o cinema. Durante uma viagem, após enfrentarem uma
chuva repentina e ficarem com o caminhão encalhado, Kenji e seu
companheiro de trabalho sentam à beira da estrada para apreciar a
paisagem sob o final da tarde. O companheiro pergunta a Kenji se na
época do benshi as coisas eram melhores, ao que ele responde que,
na verdade, não. O plano final do filme, com os dois sentados e vistos
de costas, usa o mesmo enquadramento que se tornou uma das assinaturas do diretor japonês Ozu. A reflexão sobre a passagem do tempo
torna a cena ainda mais emblemática dessa homenagem.
Trabalhando com uma temática inspirada em sua própria ancestralidade, Futemma faz parte de uma geração que se utiliza do cinema
para inscrever o passado da imigração japonesa na história do cinema
brasileiro. A vida no campo, que foi representada por seus lados sociais
e lúdicos nos dois filmes tratados anteriormente, tem um peso diferente
aqui. O trabalho no campo é deixado de lado e esse raro momento
de lazer é posto à frente. O ambiente doméstico em que Jo aparece
muitas vezes também proporciona um olhar intimista para a infância e
a vida familiar. Além disso, de modo bem diferente dos personagens
nipo-brasileiros do filme de Mazzaropi, Kenji e Jo são dotados de subjetividade, são independentes e possuem personalidades fortes.
Futemma também se concentra na vida dos japoneses e trata a
interação entre imigrantes e brasileiros de forma discreta. Num primeiro momento de interação com brasileiros, um nipo-brasileiro explica
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a história do filme que vai ser exibido a partir de um folheto para um
morador da região que não lê ou fala japonês. No segundo momento,
na cena que marca a relação entre Kenji e Jo, o garoto explica para o
projecionista que, quando o comerciante que o atende responde em
português “pois não”, ele quer dizer “sim” ao invés de “não”.
Jo, o garoto cuja perspectiva acompanhamos durante grande
parte do filme, observa o mundo da janela de casa, o que dá ao filme
uma identidade menos rural e, talvez, mais característica da vida urbana.
Na história, isso se torna simbólico porque a janela também faz uma
alusão ao próprio cinema, pelo qual ele pode observar a vida dos outros
e também imaginar o que estaria acontecendo com elas fora de seu
campo de visão. Mas Jo também pode ser visto como representante
de uma geração de transição entre os descendentes de imigrantes que
deixaram o ambiente rural da lavoura e foram viver nas cidades, algo que
se tornaria mais comum a partir da década de 1950 e 1960.
O filme também não parece estar preocupado em sua narrativa
em discutir uma perspectiva política sobre o país ou a presença de imigrantes japoneses no Brasil. A inspiração em Ozu torna o filme uma meditação sobre a passagem do tempo e a nostalgia do cinema itinerante.
Sua inserção no debate nacional sobre os japoneses está mais no estilo
que mistura temáticas e enquadramentos inspirados no cinema do diretor japonês com a paisagem nacional e parte da história recente do país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os três filmes aqui discutidos foram vistos a partir de suas relações com a vida rural e com a história dos imigrantes japoneses (e seus
descendentes) no Brasil. Os diferentes modos de representar essas relações tornam os filmes exemplos ricos de interpretações como todas
as formas de arte. Temáticas como etnicidade, preconceito, identidade
nacional, representatividade, história, cinema e ancestralidade podem
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ser abordadas facilmente a partir de cada um desses filmes. Preservar
essa memória é essencial para o entendimento de como chegamos
até o momento atual. Todos esses filmes, ao contrário de muitos outros
que foram perdidos ou destruídos, podem ser acessados de forma
digital com relativa facilidade hoje em dia, em plataformas digitais. No
entanto, a preservação diz respeito não somente à reprodução das
imagens e dos sons dos filmes, mas também à conservação, à restauração, à pesquisa, à difusão, ao acesso e à recriação de condições de
apresentação dos filmes e formas audiovisuais, entre outras coisas.
A preservação da história e da memória da comunidade japonesa no Brasil é bastante cultivada de tempos em tempos com a celebração de datas comemorativas históricas. Mas, de acordo com as
pautas e prioridades de cada época, alguns pontos são escolhidos
para serem destacados em detrimento de outros. Com a passagem
de gerações, os mesmos registros vão adquirindo novas leituras e
outras faces da história vão sendo reveladas. No entanto, isso só se
torna possível com a existência dessa memória. Preservar objetos,
documentos e conhecimento sobre a história nacional é importante
na medida em que a história da comunidade japonesa e seus descendentes começa a se confundir com a história do Brasil, de suas
paisagens e de seus ideários nacionais. Agora com mais de um século desde o marco inicial da imigração, o momento é propício para
defrontar-se com essa memória, filmes e cineastas.
REFERÊNCIAS
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Editora 34, 2001.
FRANCISCO, Luiz Roberto de. A gente paulista e a vida caipira. In: SETUBAL,
Maria Alice (org.). Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e
espaços domésticos. São Paulo: Cenpec, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2004. p. 23-49.
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85
HANDA, Tomoo. O Imigrante japonês: história de sua vida no brasil. São
Paulo: T. A. Queiroz e Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1987.
LESSER, Jeffrey. Uma Diáspora Descontente: Os nipo-brasileiros e os
significados da militância étnica 1960-1980. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade
nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.
RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe (org.). Enciclopédia do cinema
brasileiro. 3. ed. São Paulo: Senac São Paulo e Edições Sesc Sp, 2000.
SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo:
Cosac Naify, 2006.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
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86
Capítulo 4
4
A Identidade Nacional em Disputa: memória, estrangeirismo
e fronteira em
“Gaijin – Caminhos da Liberdade”
Hugo Katsuo
Hugo Katsuo
A Identidade
Nacional em Disputa:
memória, estrangeirismo
e fronteira em “Gaijin –
Caminhos da Liberdade”
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.4
A IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL
O aclamado filme Gaijin - Caminhos da Liberdade (1980), dirigido
pela cineasta Tizuka Yamasaki, conta a história da imigração japonesa
no Brasil inserindo estes imigrantes e seus descendentes como parte
da construção da história e da cultura do país. Para que possa haver,
no entanto, uma compreensão maior sobre o que esse longa-metragem agrega em relação às reflexões em torno da brasilidade é necessário entender os processos de criação da identidade nacional que é
inventada, diversas vezes, a partir de noções raciais. Um dos méritos
de Tizuka reside justamente nesse lugar: no fato de ter percorrido um
caminho distinto dos ideais de nacionalidade vigentes no imaginário
brasileiro. Neste contexto, é necessário compreender e contextualizar
a construção da identidade nacional brasileira em relação à imigração
japonesa antes de nos aprofundarmos, de fato, em sua obra.
O cinema brasileiro, a partir dos anos 80, passou a ter como tema
recorrente uma nova ideia: a de que nós, brasileiros, nos sentíamos
estrangeiros no nosso próprio país (HEFFNER, 1995). Era indispensável que, para tratar desta temática, os cineastas explorassem um fato
até então negligenciado e também tratado, segundo Sylvia Nemer, de
“forma unilateral e superficial tanto na filmografia nacional quanto nos
filmes estrangeiros ambientados no país” (NEMER, 2016, p. 290): era
necessário explorar a história da imigração. Pois explorá-la significava,
sobretudo, entender a origem da sensação de não pertencimento que
perpassava a vida do povo brasileiro e desconstruir a noção de que o
país era um “paraíso racial”. Entre os filmes que partem dessa proposta,
destaca-se Gaijin – Caminhos da Liberdade, considerado, em um artigo
do cineasta David Neves para a revista Filme Cultura (1980), como o “Rio
Quarenta Graus da era da comunicação ou dos anos 80”.
Gaijin acompanha a história de um grupo de imigrantes nipônicos, que veio ao Brasil em busca de novas oportunidades no primeiro
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navio de imigração japonesa, em 1908, e suas dificuldades para adaptar-se à sua nova realidade e aos abusos do patrão. Ele foi o primeiro
longa-metragem brasileiro de ficção a tratar da imigração japonesa no
Brasil, e, entretanto, o que torna o filme uma grande obra da década
de 80 não é somente seu pioneirismo, mas sim o fato d’ele levar a ideia
do não pertencimento a um nível extremo ao retratar imigrantes japoneses, cuja cultura não possuía quase nenhuma similaridade com a
brasileira. Ademais, essa mesma ideia é também tensionada e levada
a outros lugares em relação à própria noção do que é ser brasileiro.
Vale, para a melhor compreensão da análise fílmica, uma contextualização acerca do período anterior à chegada dos primeiros imigrantes japoneses no Brasil. A partir de 1875, os EUA foram o país preferencial para imigrantes japoneses em busca de uma melhoria financeira.
Contudo, os nipônicos passaram a ser vistos como concorrentes dos
cidadãos estadunidenses na procura de emprego e, portanto, o país
começou a restringir a imigração japonesa, tal como fez o Canadá. Foi
necessário, portanto, rever as opções de países para tornar a imigração
japonesa viável novamente, e o Brasil foi uma das saídas encontradas.
A necessidade de importar mão-de-obra japonesa veio tanto do Japão
quanto do próprio Brasil. O Japão estava com excedente populacional
e diversos problemas sociais e econômicos por conta da Guerra Russo-Japonesa. O Brasil, por outro lado, estava tendo problemas com
imigrantes italianos que constantemente revoltavam-se contra as condições de trabalho, o que ocasionou uma restrição da imigração italiana e,
consequentemente, uma deficiência de mão-de-obra para as fazendas
de café em São Paulo. Os japoneses passaram, então, a ser considerados pelos fazendeiros e pelo governo paulista. Ao mesmo tempo, havia,
desde o final do século XIX, uma preocupação em torno da identidade
nacional brasileira, que já estaria corrompida em razão de ser composta
também por negros e indígenas, ambos vistos como inferiores a brancos. Logo, os japoneses trariam para o Brasil uma ainda maior ameaça
racial – além de política e militar (TAKEUCHI, 2008, p. 13-17).
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O filme Gaijin, especificamente, não trata de forma explícita de
questões raciais, trazendo seu foco mais para o viés da cultura e da
luta de classes. No entanto, pensando o contexto da sensação de não
pertencimento vivenciado pela população nipo-brasileira, não é possível dissociarmos a noção de raça do movimento que o filme faz de
inserir esses indivíduos no imaginário nacional. Isso porque a brasilidade, na maior parte das vezes, é pensada a partir do mito das três raças
que consiste na ideia de que o Brasil é fundado pela mistura de negros,
indígenas e brancos. Nesse sentido, é importante também frisar que
tal percepção reitera outro mito: o da democracia racial, de modo que
constrói uma ideia de que esses três grupos “têm em comum espaço
e representação na ‘brasilidade’” (HIGA, 2015, p. 192).
Os debates em torno da entrada ou não de imigrantes japoneses esteve longe de ser homogênea e teve como base as disputas
entre as elites e os intelectuais brasileiros em torno da construção da
brasilidade. Se Oliveira Vianna apontava que o japonês era insolúvel
como enxofre (SUZUKI, 2008), Nestor Ascioli defendia que “[o sangue
japonês] terá a melhor ação na população nacional que o sangue preto
ou qualquer outro não branco” (LESSER, 2015, p. 210).
Em um contexto mais geral, durante o final do século XIX e começo do XX vigoraram, na Europa, teorias raciais que apontavam para a
existência de hierarquias entre raças e os malefícios da miscigenação.
Ao chegarem tardiamente ao Brasil, a adesão a essas teorias apresentou um grande problema: ao mesmo tempo em que legitimavam cientificamente estruturas hierárquicas raciais, atrapalhavam o projeto do
Brasil, já miscigenado, a ser visto como um país “viável”. Foi, preciso,
portanto, encontrar uma saída:
É na brecha desse paradoxo – no qual a contradição entre a aceitação da existência de diferenças humanas inatas e o elogio do
cruzamento – que se acha a saída original encontrada por esses
homens de ciência [...]. Do darwinismo social adotou-se o suposto de diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que
se problematizassem as implicações negativas da miscigenação.
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Das máximas do evolucionismo social sublinhou-se a noção de
que as raças humanas não permaneciam estacionadas, mas em
constante evolução e “aperfeiçoamento”, obliterando-se a ideia
de que a humanidade era una. (SCHWARCZ, 1993, p. 18)
É quando a problemática da identidade nacional se articula
com a noção de raça dentro de uma perspectiva explicitamente racista
que “nacionalidade e raça transformam-se em elementos retóricos
interligados, estabelecendo-se hierarquias entre diferentes povos
na formação de um projeto nacional que articulavam noções como
trabalho, civilização e população nacional” (HIGA, 2015, p. 166). Não
é possível, no entanto, pensarmos a articulação entre nacionalidade e
raça sem mencionarmos uma política extremamente necessária que
esteve presente nesse projeto de branqueamento do país a partir da
miscigenação: a imigração. Acreditava-se “que a população brasileira
poderia ser fisicamente transformada por meio da combinação de
casamentos mistos e políticas de imigração” (LESSER, 2015, p. 41).
Kemi, articulando a ideia de triangulação racial proposta por
Claire Jean Kim (1999) com o já mencionado mito das três raças, sublinha que desde antes da imigração japonesa “existe uma apreensão
quanto à assimilação dos japoneses, vistos como um grupo homogêneo, cuja preferência por casamentos e alianças inter-raciais formam
‘quistos étnicos’ na nação que optasse por abrigá-los” (KEMI, 2018).
Desse modo, além de terem sido vistos por muitos brasileiros como
imigrantes indesejáveis naquele contexto, a população nipo-brasileira
(tal como a população amarela, de forma geral) é excluída de uma
ideia de brasilidade e coloca-se fora do imaginário racial brasileiro.
Essa inquietação causada pela demarcação de um lugar de estrangeiro em relação a pessoas de ascendência japonesa nascidas no
Brasil perpassou também a vida da diretora Tizuka Yamasaki:
Mesmo nascida no Brasil, sou discriminada, passo a ser estrangeira, destacada pela atenção que dão à minha pele, minhas
feições, meu jeito. [...] É claro que muitas vezes senti o problema de perto. A começar pela minha carteira de identidade que
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diz que sou brasileira de cor amarela. Na realidade, os outros
é que produzem em nós um sentimento de complexo pelo que
somos. Os outros, quero dizer, são certas pessoas que antes de
nos ver como brasileiros e seres humanos, nos qualificam pela
cor e grupo social. (BARRETO, 2014)
O longa-metragem de Tizuka, como o próprio nome sugere, trabalha com a questão do estrangeirismo ao mesmo tempo em que tensiona a ideia de um país cordial que recebe todos de braços abertos
e compreende a comunidade nipo-brasileira como parte indispensável
da construção do Brasil. Essa compreensão, no entanto, não parte da
afirmação da brasilidade de forma acrítica ou enquanto meramente
um lugar de conforto. Gaijin entende a inserção desses indivíduos na
identidade nacional através, sobretudo, da percepção deles enquanto
agentes políticos, inseridos nas dinâmicas da luta de classes.
GAIJIN: ENTRE MEMÓRIAS
E ESTRANGEIRISMOS
Retornemos ao filme. Gaijin inicia-se no Japão e contextualiza
a ida da protagonista Titoe para o Brasil: um cenário de miséria que
levou muitos japoneses a se aventurarem em outros países em busca
de uma vida melhor. Entre a chegada dos japoneses ao Brasil e a ida
deles à fazenda onde vão trabalhar, parte da elite brasileira conversa
sobre a produção de café. Em dado momento, culpabilizam a substituição de mão-de-obra escravizada negra pela europeia livre. Em longo prazo, segundo um fazendeiro, a entrada de imigrantes europeus
brancos seria um bom negócio, mas que, naquele momento, estava
optando por trabalhadores japoneses que, em suas palavras, seriam
“mais disciplinados, mais trabalhadores”.
O primeiro navio de imigração japonesa trazendo a nossa protagonista e sua família, no entanto, aporta em Santos no dia 18 de
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junho de 1908 após 52 dias de viagem. Fogos de artifícios estouram no
céu, fazendo com que os imigrantes acreditassem que estavam sendo saudados quando, na verdade, era comemoração de festa junina.
À caminho da fazenda, há o primeiro choque cultural: a alimentação.
Acostumados com outro tipo de comida, alguns dos japoneses passam mal ao ingerir o pão com mortadela oferecido a eles no porto.
O marido de Titoe, orgulhoso de suas origens e dos feitos de sua pátria, não se deixa abalar pelas adversidades e aponta que, por serem
nipônicos, todos iriam sobreviver no Brasil, enriquecer e retornar. Mas,
em meio ao seu discurso motivacional, uma das crianças adoece.
As condições de trabalho, análogas à escravidão, são postas na
apresentação das regras da fazenda: salário apenas após um ano de
trabalho, descontos das despesas que a fazenda teria e proibição de
associações de natureza política. Apesar dos japoneses recém-chegados não questionarem nada, logo percebem aquela realidade.
Atritos entre os imigrantes e os fazendeiros, originados pelas
más condições de moradia, baixos salários e, também, pelas
dificuldades de relacionamento com os administradores das
fazendas devido às diferenças culturais, eram freqüentes. As
penúrias da vida nas fazendas fizeram com que os nipônicos
sentissem diminuir o orgulho de sua raça, representante de um
país que se tornava potência mundial. (TAKEUCHI, 2008, p. 19)
Nesse cenário de precariedade em relação ao trabalho, à moradia e à alimentação, as memórias funcionam como válvulas de escape:
flashbacks da vida no Japão permeiam a memória dos nipônicos quase
como uma forma de resistir à dura vida no Brasil, com a esperança do
retorno. Ao mesmo tempo, essas mesmas memórias também podem
possuir um efeito contrário. Durante uma sequência do filme, uma das
imigrantes japonesas se perde em suas próprias memórias e alucina,
acreditando ter retornado ao Japão e estar vendo o mar de sua terra
natal. Enlouquecida e sem a esperança de regressar ao Japão, ela comete suicídio. A memória acaba, portanto, sendo um elemento central
do filme. É ela que o conduz, desenvolvendo os personagens e a ideia
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do estrangeirismo. Na verdade, o filme poderia ser considerado por si
só uma memória, visto que Tizuka se inspirou na história de sua avó
para fazê-lo. Mais que isto, Gaijin, ao ter contado, para sua elaboração,
com pesquisas e entrevistas com imigrantes japoneses (KISHIMOTO;
HIKIJI, 2008) preserva parte importantíssima da história da comunidade nipo-brasileira e a coloca como centro do enredo, como parte
indispensável da configuração de uma “identidade nacional”.
Apesar dessa tentativa dos imigrantes em salvaguardar a cultura
nipônica e a memória dos antepassados, alguns elementos acabaram
se perdendo pelas gerações que nasceram já em terras brasileiras. Segundo Matinas Suzuki, as gerações nikkeis posteriores ao período de
forte opressão contra nipônicos preocuparam-se mais com a ascensão social e, consequentemente, a “história foi sendo esquecida, junto
com o idioma e os hábitos culturais de seus pais e avós” (SUZUKI,
2008). Gaijin, nesse sentido, configura-se, por conseguinte, como um
movimento contra o esquecimento desse passado histórico.
Tal movimento é percebido não só em Gaijin, mas em um “cinema nipo-brasileiro”, em geral. Percebe-se que existe um empenho de
recuperar as raízes culturais e históricas da comunidade nikkei brasileira – recuperar uma identidade até então perdida, procurar um lugar
de pertencimento. A mesma diretora de Gaijin, Tizuka Yamasaki, por
exemplo, em 1973, lançou o curta-metragem Bon Odori, que documenta uma dança japonesa que homenageia os mortos. No mesmo ano,
estreia o curta de Olga Futemma intitulado Sob as Pedras no Chão,
cujo intuito seria mostrar a fusão entre a cultura japonesa e brasileira no
bairro da Liberdade. Futemma também dirigiu outros curtas, como Hia
Sa Sá – Hai Yah e Retratos de Hideko, resgatando a cultura e a história
de seus antepassados (KISHIMOTO; HIKIJI, 2008).
A necessidade desse resgate surge, também, devido ao repressor processo de aculturação que ocorreu com a comunidade nikkei no Brasil, sobretudo, nos anos de 1930, quando foi implementado
um projeto de nacionalização. Esse projeto procurava “disciplinar as
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relações entre estrangeiros e a população brasileira” (TAKEUCHI,
2008, p. 60) e os imigrantes japoneses foram os que mais sofreram
com tais medidas devido ao modo como se organizavam – em núcleos coloniais no intuito de preservar a cultura asiática – e às grandes diferenças de costumes. Esta resistência foi vista como perigosa
e, portanto, outras medidas foram implementadas, como o Conselho
de Colonização e Imigração cujo objetivo refletia os ideais eugenistas
do Estado Novo e “tinha como funções fiscalizar o uso e o cultivo de
idioma e costumes estrangeiros nos núcleos de colonização, além de
evitar a concentração de indivíduos de uma mesma nacionalidade e
aquisição de terras por parte deles” (TAKEUCHI, 2008, p. 61).
De volta ao filme, em sua penúltima sequência, que se desenvolve após a intensa fuga noturna da fazenda, Titoe agora trabalha
como operária: planos das máquinas em movimento na fábrica e de
um contexto insalubre, onde uma mulher grávida também trabalha, retratam agora um cenário urbano no qual também há desigualdade e a
iminência de conflitos de classe. A protagonista, então, retorna ao seu
lar onde sua filha brinca com outras crianças brasileiras. No cotidiano,
ela mistura palavras em português e em japonês para se comunicar
com os outros. Uma mulher negra que aparenta trabalhar em sua casa
aparece por poucos segundos em cena com uma panela na mão e
pergunta onde está o feijão. Percebe-se que, por mais que Titoe ainda
esteja em uma situação de operária de fábrica, houve uma ascensão
econômica rápida, sobretudo em relação à população afro-brasileira.
As relações de raça e de classe brasileiras, portanto, se apresentam ao
final do filme de forma tímida e, ao mesmo tempo, complexa de modo
que já apontam para certas vantagens que a população nipo-brasileira
possui em relação a outros grupos socialmente racializados.
A partir de um corte brusco, Titoe agora coloca sua filha para
dormir, contando a história de quando chegou ao Brasil e também de
seu falecido marido. Quando comenta sobre a possibilidade de voltarem ao Japão, sua filha pergunta se poderia levar seus amigos com
ela e, caso não possa, ela se propõe a ficar no Brasil enquanto a mãe
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voltaria para terras nipônicas. Por ter nascido aqui, a filha de Titoe não
parece nutrir tanto o sentimento de estrangeirismo que sua mãe e tem
o Brasil como sua referência, além de possuir laços com outros brasileiros já consolidados. Há, portanto, um choque geracional entre os
imigrantes japoneses e seus filhos nascidos no Brasil. Na busca de
preservar a memória dos ancestrais nipônicos que aqui vieram em busca de uma vida melhor e que, em muitos casos, foram enganados e
obrigados a passar por situações precárias de trabalho no Brasil, Gaijin
também reafirma uma dentre muitas formas de ser brasileiro.
Na sua sequência final, Titoe aparece durante um protesto organizado por grevistas. Nesse movimento, parte da brasilidade compartilhada entre ela e outros grupos étnico-raciais brasileiros se dá por
uma solidariedade de classe que os une a partir de uma causa comum: a luta por direitos. A afirmação dos imigrantes japoneses e seus
descendentes como parte constitutiva do país, nesse sentido, se dá,
sobretudo, pela sua atuação enquanto agentes políticos que também
transformam a realidade brasileira, de modo que a ideia do japonês
“dócil e disciplinado” é deslocada.
SOBRE REPRESENTAÇÃO:
TENCIONANDO A BRASILIDADE,
VIVENDO NA FRONTEIRA
Vimos, até então, que o longa-metragem dirigido por Tizuka
Yamasaki compreende a memória como uma força de resistência
contra o processo de apagamento em relação às identidades nipo-brasileiras do imaginário da brasilidade, além de reiterar esse lugar
de forma crítica partindo da representação desses corpos enquanto
agentes políticos dentro de um contexto de luta de classes. Precisamos, no entanto, para melhor entender essa dinâmica, nos aprofundarmos na questão da identidade nacional brasileira como um todo,
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para além da inserção das comunidades nikkei (ou, de forma mais
ampla, das comunidades amarelas brasileiras).
A ideia de identidade nacional é complexa por si só se levarmos em consideração que ela não é autêntica, ou seja, é sempre
uma construção simbólica a partir do momento em que existe “uma
pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais
em diferentes momentos históricos” (ORTIZ, 1985, p. 8). Em outras
palavras, os entendimentos sobre a identidade nacional variam a
depender dos tempos históricos e dos contextos que os permeiam.
A identidade nacional se dá através de disputas e negociações entre
grupos específicos e, a partir disso, é conferido um status de legitimidade e autenticidade a ela. Sendo assim,
a luta pela definição do que seria uma identidade autêntica é
uma forma de se delimitar as fronteiras de uma política que procura se impor como legítima. Colocar a problemática dessa forma é, portanto, dizer que existe uma história da identidade e da
cultura brasileira que corresponde aos interesses dos diferentes
grupos sociais na sua relação com o Estado. (ORTIZ, 1985, p. 9)
É necessário pensarmos também que não é possível dissociar
a identidade da representação e do conhecimento (HALL, 2016) e,
consequentemente, que a construção da ideia do que é ser uma pessoa
brasileira está em íntima relação com a forma como a brasilidade é
representada. Pessoas amarelas no Brasil são sub-representadas no
cinema nacional50 e, por conta disso, faz-se necessário disputar esse
espaço para construirmos novos repertórios imagéticos no que diz
respeito ao Brasil. Não podemos, no entanto, olhar para as políticas
de “representatividade” de forma acrítica, sem entender suas contradições e nuances, de modo que “não se trata de igualar a antiguidade da
presença e das histórias das raças que compõem o Brasil, mas antes
50
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Uma pesquisa realizada em 2016 pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA) analisou a questão da representatividade em relação a gênero e à raça no
cinema brasileiro abrangendo de 1995 a 2014, levando em consideração o universo dos
blockbusters, e demonstra que amarelos e indígenas são, racialmente, o grupo menos
representado. (CANDIDO; CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2016)
97
de colocar um corpo racialmente marcado e aparentemente deslocado
e inorgânico em nosso imaginário racial” (HIGA, 2015, p. 192).
O retorno às origens parece também ser necessário dentro de
uma construção coletiva da identidade nipo-brasileira: não se pode
esquecer-se dos que vieram antes e pavimentaram caminhos para
que fosse possível a existência das gerações posteriores. Do mesmo
modo, também é preciso compreender o novo lugar que o presente
ocupa, sobretudo no que diz respeito às novas formas de pertencer
e agir no mundo. Faz-se importante, portanto, reformular a maneira
como lidamos com as nossas próprias questões de identidade no contexto brasileiro e como as utilizamos de forma política, tanto no âmbito
das representações quanto fora dele.
O filme Gaijin - Caminhos da Liberdade empreende esse movimento de representar tal grupo dentro do cinema brasileiro, mas não
demonstra ter pretensão de subverter coisa alguma - ele o faz a partir
do tensionamento da própria noção de identidade nacional. Se as definições em torno da brasilidade são arbitrárias e dependem também
de um “Outro” para se consolidarem, Tizuka Yamasaki parece insistir
em formas mais múltiplas e abrangentes de pensar o Brasil. Ao mesmo
tempo em que ela retoma a memória de sua ancestralidade japonesa,
ela também reafirma um lugar em território brasileiro, quase como se
ela se apropriasse das fronteiras para constituir sua própria identidade.
Não há, nesse sentido, necessidade de escolher um lado e renegar o
outro: ambos são imprescindíveis para a rememoração do passado, a
construção do presente e o vislumbre de um futuro.
Reivindico, portanto, Gaijin, tal como a cineasta Tizuka Yamasaki, como fortes referências para pensarmos a ancestralidade nipo-brasileira - como parte da nossa memória coletiva. Há muito mais a se
aprender com o filme do que o presente artigo pôde dar conta e, sendo
assim, mostra-se necessário que novas pesquisas se proponham a investigá-lo de maneira, até mesmo, mais minuciosa. Destaco também,
junto ao longa-metragem, a importância de compreendermos nosso
sumário
98
lugar no contexto brasileiro de maneira mais crítica que possibilite uma
ação política coerente no que diz respeito às questões étnico-raciais.
E proponho, enfim, a possibilidade de assumirmos as fronteiras
como um lugar de pertencimento.
REFERÊNCIAS
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imigração japonesa no Brasil”. Midiacidada, 2014. Disponível em: http://
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TAKEUCHI, Marcia Yumi. Japoneses: a saga do povo do sol nascente. 1ª
Edição. São Paulo: Lazuli Editora, 2008.
sumário
100
CULTURA
CULTURA
Capítulo 5
Sen no Rikyû: sua influência na
estética e literatura da cerimônia do chá
Giorgia Vittori Pires
Márcia Hitomi Namekata
5
Giorgia Vittori Pires
Márcia Hitomi Namekata
Sen no Rikyû:
sua influência
na estética e literatura
da cerimônia do chá
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.5
A cerimônia do chá (chanoyu) é um cerimonial tradicional japonês
no qual o anfitrião prepara e serve o matcha – uma espécie de chá verde
em pó – para seus convidados. É uma cerimônia com grande influência
do Budismo e do Taoísmo, e aqueles que a praticam seguem o caminho
do chá (chadô). Ao longo da minha pesquisa a respeito da cerimônia
do chá, desenvolvida no decorrer do curso de Letras Japonês na UFPR,
analisei diversos pontos e venho estudando esse cerimonial com o professor Vinícius Monfernatti, da Sala de Chá, localizada na praça do Japão, em Curitiba. Com o conhecimento adquirido nesses anos foi possível compreender melhor como e porque essa tradição é considerada
uma representação da sociedade japonesa. Por isso não poderia deixar
de falar da literatura relacionada a ela, sendo a coletânea de poemas
Rikyû Hyakushu (“Os cem poemas do Rikyû”) a mais conhecida.
Apesar do nome, não se sabe realmente de quem é a autoria
dos poemas, sendo que a teoria mais aceita é a de que Rikyû, aquele
que padronizou e difundiu a cerimônia do chá como a conhecemos
hoje, juntamente com seus alunos, escreveram a coletânea. O objetivo
deles era criar uma maneira mais interessante de ensinar a didática do
cerimonial. Justamente por esse caráter educativo é que algumas das
poesias se parecem mais com uma explicação do que com um poema
propriamente dito. A seguir será apresentado quem foi Rikyû, a história
da literatura da cerimônia do chá e a tradução e explicação de cinco
dos poemas do Rikyû Hyakushu.
RIKYÛ
Sen no Rikyû (1522-1591) é considerado um dos mais importantes mestres de chá, já que teve um grande papel no aperfeiçoamento da cerimônia. Sua influência era tanta que foi o mestre de chá de
dois dos senhores feudais mais importantes do Japão: Oda Nobunaga
(1534-1582) e Toyotomi Hideyoshi (1537-1598).
sumário
103
Rikyû começou a aprender sobre o caminho do chá ainda quando jovem: tinha apenas 19 anos quando conheceu o mestre de chá
Takeno Jôô (1502-1555), e acabou se tornando seu discípulo. Durante
o reinado de Hideyoshi, foi convidado para ter uma posição na corte,
porém recusou, aceitando apenas ser conselheiro honorário.
Juntamente com Takeno Jôô, aprimorou a cerimônia e transformou vários de seus conceitos, até que ela se tornou o que é hoje. De
acordo com Varley (1998) uma teoria interessante é a de que Rikyû foi
intimado a cometer seppuku (suicídio ritual) justamente por “transformar montanhas em vales”. Sua influência e pensamento revolucionários teriam assustado Hideyoshi e, por isso, em 1591, cometeu suicídio após oferecer uma última tigela de chá aos seus amigos. Apesar
disso, seus descendentes puderam continuar a praticar o chanoyu
e quando Sôtan - neto de Rikyû - cessou as atividades, dividiu sua
propriedade entre seus três filhos. A partir dessa divisão foram fundadas as escolas de chá que continuam ativas até hoje: a Urasenke,
a Omotesenke e a Mushanokojisenke.
Com Rikyû o estilo da cerimônia do chá japonesa ficou mais
refinado, formalizando a estética do wabi, que determinou o gosto do
japonês pelo simples. Ele afirma que a decoração sóbria, de despojada elegância, é uma “expressão simbólica de toda uma arte de viver
em harmonia perfeita” (SOSHITSU, 1981)
OS PRINCÍPIOS ESTÉTICOS DO CHÁ
Rikyû redefiniu o chanoyu em todos os seus aspectos: as regras
de preparo, os utensílios, a arquitetura do aposento em que o chá deve
ser preparado e até a necessidade de um jardim que induz à meditação. Ademais, ele introduz os quatro princípios da cerimônia, os quais
serão apresentados a seguir.
sumário
104
Para Rikyû, o espírito do chá pode ser sintetizado em quatro
princípios a serem seguidos, os quais são chamados de wakeiseijaku (和敬静寂). Percebe-se que cada ideograma representa um dos
princípios, que são a harmonia, o respeito, a pureza e a tranquilidade.
Estes podem ser explicados da seguinte maneira:
Wa (和) – Significa “harmonia” e na cerimônia do chá faz referência à relação harmoniosa entre o anfitrião, convidado, natureza e
os objetos presentes. Dessa forma, é possível percorrer o caminho
com humildade, livre de caprichos. De acordo com Soshitsu Sen XV,
a harmonia “reflete tanto a evanescência de todas as coisas como o
imutável no mutável” (SOSHITSU, 1981, p. 25).
Kei (敬) – O segundo princípio significa “respeito”. De forma
bem simples, é a sinceridade do coração, reconhecendo a importância
de tudo o que está à nossa volta. Seja o ser humano ou a natureza, ambos devem ser tratados com o mesmo respeito. Ele é responsável por
estruturar o encontro da cerimônia e rege a interação entre anfitrião,
convidado e o meio ambiente.
Sei (静) – São dois os significados de “pureza” de Sei, o de
limpeza externa (física) e o de limpeza interna (moral). O ato de limpar
propicia um entendimento maior da verdadeira essência das coisas
e pessoas. De acordo com Soshitsu isso acontece, pois, a limpeza e
organização do serviço de chá “[...] Representam o afastamento do
coração e da mente da ‘poeira do mundo’ ou do apego às coisas
mundanas.” (1981, p. 26), capacitando o indivíduo a tratar a tudo e a
todos com um coração puro.
Jaku (寂) – É a capacidade de pôr em prática todos os elementos anteriores de forma tranquila em nosso cotidiano. Para Hammitzsch (2016), é o princípio de mais difícil compreensão. De acordo com
o autor, a tranquilidade está relacionada a uma solidão e serenidade
do coração, alcançada ao viver longe do mundo material, em equilíbrio com a natureza. Já para Sen Soshitsu XV, “Podemos encontrar a
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105
tranquilidade última dentro de nós próprios em companhia dos outros,
esse é o paradoxo.” (1981, p. 26).
São necessários anos de prática para que todos os princípios
sejam seguidos corretamente, principalmente o último; afinal, só será
possível alcançar a tranquilidade quando todos os outros princípios
estiverem sendo exercitados juntos. Somente quando os quatro princípios estão em harmonia é que anfitrião e convidado terão um momento
de união com a natureza.
O wakeiseijaku é influenciado pela filosofia Zen Budista. Ao ser
inserido no Japão, o Zen impactou tão fortemente a cultura que muitas
das artes japonesas incorporaram-na em suas técnicas e princípios,
focando na calma, simplicidade e desenvolvimento pessoal. Rikyû, influenciado pela filosofia, procura harmonizar a vida cotidiana ao ato de
beber chá criando, assim, uma cerimônia rica em detalhes, onde se
estuda não só a arte por ela mesma, mas sim o que ela significa, e qual
o seu propósito espiritual.
O objetivo do Zen, assim como o de outras escolas do Budismo,
é a busca pela Iluminação, que nessa vertente é alcançada através do
zazen (meditação). Essa meditação é um tipo de vigilância e autodescoberta, e foi com essa prática que Siddhartha Gautama alcançou a
Iluminação e tornou-se Buda. Budas são seres que atingiram o estado máximo de clareza espiritual e não são mais influenciados pelos
acontecimentos mundanos. Para Rikyû o treino do preparo do chá se
equipara à finalidade do zazen.
Assim como no Zen, o caminho do chá visa conduzir a uma
compreensão do próprio ser, por isso todo o seu conhecimento deve
ser utilizado para cultivar a si mesmo. É justamente pelos objetivos e
princípios em comum que se pode dizer que o sabor do chá e do Zen
é um e o mesmo (SOSHITSU, 1981).
Para o Zen a relação corpo e mente é extremamente importante e, se trabalhada, ela auxilia muito no momento de se desenvolver
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106
habilidades artísticas. Um exemplo disso é que, ao praticar a arte
com uma mentalidade Zen, o foco fica no agora e se afasta das ilusões e distrações da vida material, ou seja, não somos influenciados
por aquilo que está ao nosso redor.
Quando tive minha primeira aula de cerimônia do chá, Vinícius
Monfernatti escolheu um kakemono - pinturas, poemas ou provérbios
escritos em papel ou seda em rolo, emolduradas com brocado - cuja
mensagem me marcou profundamente. “日々是好日” (nichi nichi kore
kojitsu), é um provérbio Zen que pode ser traduzido como “todo dia
é um bom dia” (Figura 1) e passa o ensinamento de que o presente
é o melhor momento que vamos viver. A realização mais importante
de nossas vidas é a de que as estamos vivendo. Esse provérbio nos
incita a ter isso em mente e viver plenamente cada dia. Só assim poderemos criar um futuro melhor.
Figura 1 – Kakemono com os dizeres nichi nichi kore kojitsu
Fonte: Foto da autora.
sumário
107
Com o Zen surge uma ideia de estética muito única denominada wabi. De acordo com Sôtan, ela é única porque vê beleza no
que normalmente é considerado imperfeito e incompleto, mas que
não se compreende como incompleto. Mais do que isso, o wabi é um
estado de espírito que enxerga o mundo como um olhar de pureza
alva. Focando no natural, sóbrio e simples, mantém a humildade tão
pregada pela filosofia Zen, como disse Hammitzsch em Zen na arte
da cerimônia do provável (2016), “Wabi é o bastar-se-a-si-mesmo que
os monges e poetas Zen vivenciam [...] assim aprendiam a estar sós
interligados a cada movimento da natureza”.
Essa estética é manifestada, no caminho do chá, na modéstia,
sinceridade e elegância da beleza sutil de objetos simples. De acordo
com Okakura, “A natureza dinâmica dessa filosofia sublinha mais o
processo através do qual se aspira lograr a perfeição do que a perfeição em si” (HAMMITZSCH, 2016). Com Rikyû começam a ser apreciados utensílios de origem japonesa de diferentes formas e cores que,
quando combinados, revelam o coração do anfitrião. Apesar de simples, os objetos tinham uma alta qualidade e funcionalidade específica,
harmonizando os elementos do chá com a vida cotidiana.
No wabi destaca-se a simplicidade e recriação da natureza. O
equilíbrio que existe nela tem a essência do yin e yang do Taoísmo, que
simbolizam o princípio gerador de todas as coisas do universo a partir da
união de duas energias opostas e complementares entre si, o positivo,
yang, e o negativo, yin. Esse pensamento é intrínseco da sociedade japonesa e a cerimônia se define na união desses contrastes para formar
o conceito estético do wabi. De acordo com Soshitsu é necessária muita
sensibilidade para descobrir beleza no que ainda não é belo, sensibilidade essa que deve ser cultivada ao percorrer o caminho do chá.
No caminho do chá a relação com o meio ambiente é de harmonia, e isso só é possível porque, além de absorver a filosofia Zen,
também tem influências do Xintoísmo. Nessa religião existe uma sensibilidade pela natureza e não se tenta controlá-la, mas sim formar um
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108
vínculo, onde o homem e a natureza vivem como um todo, sem comparar suas forças. As mudanças que ocorrem na natureza durante as
diferentes estações do ano são extremamente importantes. Em Vivência e sabedoria do chá (1981), Soshitsu diz que “A primavera tem as
flores, o verão tem as brisas frescas, o outono tem a lua, o inverno tem
a neve.”, por isso as estações devem ser levadas em consideração ao
se escolher o kakemono e o chabana - arranjos de flor da cerimônia de tal forma que se complementem, harmonizando com a sala de chá,
a estação do ano e o tema da cerimônia a ser feita.
Na sala de chá localizada na Praça do Japão, em Curitiba, podemos observar a representação da araucária na parte superior da sala
(Figura 2). Esta árvore é considerada o símbolo da capital paranaense,
e demonstra claramente a harmonia da sala de chá com o ambiente
em que se encontra.
Figura 2 – Sala do chá na Praça do Japão em Curitiba
Fonte: Foto da autora.
Com o kakemono o anfitrião expressa o tema da reunião, por
isso deve ser escolhido com cuidado. Ele pode ser um poema, um
provérbio ou uma pintura, “Quando os convidados olham para o kakemono eles podem ser tocados por uma mensagem ou provar o
sabor da estação.” (SOSHITSU, 1981), por isso mudam conforme o
convidado e a época do ano.
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109
Por outro lado, o chabana não deve ser um buquê cheio e elaborado, mas sim um ou dois ramos de flores locais e colhidas no dia. De
acordo com Rikyû elas devem ser dispostas como se ainda estivesse
no campo, por isso cada flor exige um cuidado e arranjo diferente. Além
disso, devem estar em harmonia com a natureza do lado de fora, não
repetindo temas e usando flores da época. O ideal seria usar flores que
não demoram a murchar, assim o convidado pode perceber a efemeridade da vida. Ao contrário do ikebana, no chabana as flores não são o
foco, mas sim uma faceta da cerimônia completa, elas “introduzem as
estações do ano no interior das salas de chá.” (HAMMITZSCH, 2016).
Figura 3 – Modelo de chabana
Fonte: Foto da autora.
Como podemos perceber, o caminho do chá resulta no equilíbrio entre os elementos artísticos, formais e filosóficos. Nenhum é
independente e é a união de suas melhores qualidades que formam
o aspecto cerimonial do chanoyu. A apreciação artística se torna
uma meditação da filosofia Zen Budista e a fluidez da cerimônia surge apenas quando se domina a forma. Para facilitar o entendimento
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110
de como esses componentes e os princípios do chá são aplicados
no cotidiano, Rikyû e seus discípulos criaram os poemas didáticos,
que serão apresentados a seguir.
RIKYÛ HYAKUSHU
De acordo com Zalewska (2015), o primeiro escrito sobre cerimônia do chá (chasho) se chamava Sôjinmoku (1626) e era composto
de três volumes: o primeiro apresentava as maneiras do anfitrião e
convidado agirem; o segundo, as regras da sala do chá e como este
era produzido; e o último era voltado para a prática do chá.
Existiam diversas formas de chasho como, por exemplo, coleções de anedotas (itsuwashû), sobre os encontros de cerimônia ou
sobre famosos mestres. Outro exemplo eram os kaiki, notas sobre tudo
o que se relacionava à cerimônia do chá, como a comida, jardinagem
e até mesmo imagens sobre o assunto. Porém, o gênero literário apresentado neste trabalho é a poesia tanka.
Tanka são poemas curtos compostos de trinta e uma sílabas
poéticas, divididas em cinco versos de 5-7-5-7-7 sílabas. Apesar de
serem escritos como um único poema, era comum encontrar coletâneas que reuniam uma determinada quantidade de poemas, sendo
que o modelo mais famoso eram os hyakushu uta, conjuntos de cem
poemas. Tsutsui (2003) afirma que o primeiro hyakushu uta sobre a
cerimônia do chá foi o Sachô hyakushuka (1642), cujos poemas eram
bem técnicos, com a ideia de ajudar a lembrar os detalhes sobre
utensílios e o restante da cerimônia.
Na metade do século XVII existiam diversos poemas sobre os
utensílios do chá e os seus temae - procedimentos da cerimônia do chá
-, mas começavam a surgir autores que tentavam expressar uma ideia
mais geral sobre o caminho do chá. Esses eram denominados dôka
sumário
111
(poemas do caminho), cujo objetivo, de acordo com Sen Sōshitsu
(1977), era transmitir o conhecimento e as técnicas de diferentes artes
e ideologias. Um dos motivos principais para fazerem isso era facilitar
a memorização de tais regras.
O dôka de cerimônia do chá mais conhecido é a coletânea Rikyû
Hyakushu (“Cem poemas de Rikyû”), ou Rikyû dôka (“Poemas do caminho de Rikyû”), ou Jôô Hyakushu (“Cem poemas de Jôô”). Takeno Jôô
(1502-1555) foi um mestre de cerimônia do chá e professor de Rikyû,
que formalizou a prática e é o nome mais conhecido dentre os mestres
da cerimônia do chá. Zalewska (2015) reconhece que até hoje não se
sabe a autoria dos poemas, mas acredita-se que tenha havido uma contribuição de ambos. Além disso, também não se tem uma data oficial de
publicação, pois os poemas foram escritos no decorrer de suas vidas.
Deixando essa questão de lado podemos observar o seu conteúdo: cento e dois poemas didáticos sobre ensinamentos importantes
da cerimônia do chá; dentre eles podemos encontrar aqueles cujo tema
consiste nas técnicas e também aqueles que almejam expressar a essência do caminho do chá. Independentemente do tema, os poemas só
podem ser entendidos por aqueles que já conhecem os utensílios e procedimentos, pois utilizam um vocabulário muito específico da cerimônia.
A coletânea começa com cinco poemas voltados para a iniciação ao caminho do chá, ao aprendizado e aos ensinamentos sobre
a cerimônia. Eles variam entre a perspectiva do aluno e do professor,
explicando as qualidades que devem ter para se seguir o caminho
de maneira correta. A maioria dos poemas que seguem esses cinco
retratam o significado dos detalhes dos procedimentos, a maneira de
lidar com os diversos utensílios e a relação entre anfitrião e convidado.
Chegando ao fim da coletânea voltam os poemas com ideias mais
gerais. Em todos os poemas podemos perceber os esforços do autor
em captar a essência da cerimônia do chá.
sumário
112
TRADUÇÕES
A seguir serão apresentadas as traduções de cinco poemas de
Rikyû retirados da edição Rikyû Hyakushu Handbook (2013), da Tankosha Publishing Co Ltd. Foram selecionados os três primeiros poemas, que falam sobre a iniciação à cerimônia do chá, e outros dois que
compartilham temas sobre flores na cerimônia do chá. Ao fim de cada
tradução, constará uma análise pessoal, levando-se em consideração
o aprendizado no decorrer das aulas de cerimônia do chá e em leituras
realizadas para a pesquisa sobre o caminho do chá.
•
Poema 1
Poema em japonês
Leitura do poema
Tradução
その道に
Sonomichi ni
Se for espontâneo
Hairan to omou
Ao percorrer
Kokoro koso
O caminho do chá
Wagaminagara
Seu coração
Shishô narikere
Lhe guiará
入らんと思ふ
心こそ
我が身ながら
師匠なりけれ
Análise pessoal:
Apesar de não praticar a cerimônia do chá há tanto tempo, vi
muitos alunos chegarem e irem embora. Em minha experiência, os alunos que começam a praticar por influência de alguém ou só por curiosidade tendem a desistir antes mesmo de conseguirem aprofundar os
seus estudos. Também existe o caso daqueles que participaram de
uma cerimônia do chá e acreditam que durante as aulas vamos apenas
beber chá, quando na realidade a cerimônia envolve todo um estudo e
reflexão por trás de uma simples xícara de chá.
O caminho do chá é árduo, é necessário muita concentração,
dedicação e disciplina. Somos responsáveis pela limpeza do começo
ao fim da aula, e muitas vezes isso pode ser exaustivo. São vários
detalhes para aprender, cuidados a serem tomados e repetições dos
sumário
113
procedimentos para podermos compreendê-los em sua plenitude.
Acredito que, apesar de complexo, o caminho do chá possibilita um
grande crescimento pessoal; basta que os seus estudos sejam feitos
de maneira dedicada e sincera.
•
Poema 2
Poema em japonês
Leitura do poema
Tradução
ならひつつ
Narai tsutsu
Tentar aprender
Mite koso narae
Sem por as mãos
Narawazu hazu ni
Torna negligente
見てこそ習へ
習はずに
よしあしいふは
愚かなりけり
Yoshi ashi iu wa
Aquele que só olha
Oroka Narikeri
E diz que sim e que não
Análise pessoal:
Durante esses quatro anos de pesquisa, perguntei diversas vezes às pessoas ao meu redor se conheciam a cerimônia do chá, e
se tinham interesse em saber mais a respeito. Porém, na maioria das
vezes, a resposta que obtive foi “acho que é muito difícil para mim” ou
“tem muitos detalhes e é muito longa, eu não aguento”. Assim como no
poema, nenhuma dessas pessoas havia tentado praticar e já excluíam
a possibilidade baseando-se em uma suposição. O caminho do chá é
longo e rico em detalhes, porém é um aprendizado que deve ser feito
no ritmo de cada praticante e com constância. Se houver uma intenção sincera - assim como mencionado no poema anterior - todos são
capazes de praticar essa cerimônia.
•
Poema 3
Poema em japonês
こころざし
探き人には
いくたびも
あはれみ探く
奥ぞ教ふる
sumário
Leitura do poema
Tradução
Kokorozashi
Um mestre compassivo
Fukaki hito ni wa
Deve acolher
Iku tabi mo
A verdadeira intenção
Awaremi fukaku
Do aprendiz que se entrega
Okuzo oshiuru
De coração
114
Análise pessoal:
Todas as minhas aulas de cerimônia do chá foram ministradas
pelo professor Vinícius Monfernatti. O primeiro contato que tivemos foi
em uma cerimônia do chá que ele estava ministrando na Sala de Chá
na Praça do Japão, em Curitiba. Eu, juntamente com duas colegas de
sala, fomos participar e, ao final da cerimônia, fizemos perguntas e explicamos que estávamos fazendo um trabalho sobre o assunto para a
faculdade. Um mês depois, aproximadamente, ele nos enviou uma mensagem avisando que tinha percebido o nosso interesse e que, caso quisessemos, ele voltaria a ministrar as aulas. A partir de então ele sempre
esteve presente, tirando dúvidas, fornecendo materiais e balanceando o
momento de ser acolhedor e o de ser um pouco mais severo.
Assim como no poema ele nunca fez os alunos passarem para
um outro nível sem estarem preparados, mas também nunca deixou
que as inseguranças de alguns alunos os impedissem de avançar. Eu
sempre fico muito animada quando se trata de cerimônia do chá, e o
professor Vinícius sempre soube como direcionar essa animação para
um bom uso. Ele é um bom exemplo de um professor cordial.
•
Poema 77
Poema em japonês Leitura do poema
Tradução
花見より
Hanami yori
Na réplica não há cortesia
かへりの人に
Kaeri no hito ni
Com ramos e figuras
Chanoyu seba
Para aquele que acabou de voltar
花鳥の絵をも
Kachô no e o mo
De contemplar flores
Hanachi maji
Na cerimônia do chá
茶の湯せば
花置まじ
Análise pessoal:
Assim como foi explicado anteriormente, o Japão é um país
onde as divisões das estações do ano são fortemente delimitadas.
Seus alimentos, cores de vestimentas e até mesmo embalagens são
sumário
115
específicas para cada período: verão, outono, inverno e primavera, e
não se repetem em outro momento.
Na cerimônia do chá isto também ocorre. Os utensílios mudam de
acordo com a época, e também existem temas que representam cada
estação do ano; porém, a repetição não é considerada cortês. Isso significa que, se for outono, na época em que as folhas estão avermelhadas,
não deveremos colocar representações dessas folhas, e sim buscar um
novo elemento que remeta ao outono como, por exemplo, um cervo.
Em uma de minhas aulas tive de escolher um chawan (tigela usada
para beber o chá) para ser usado durante a cerimônia e, aleatoriamente,
escolhi uma com rodas de vento pintadas em sua lateral. Entretanto,
meu professor explicou-me que aquela não era uma boa escolha, pois
estava ventando muito naquele dia, logo eu iria repetir o tema “vento”.
Esse cuidado com a não repetição visa não banalizar a essência
de cada estação do ano, assim como providenciar uma experiência
harmônica para o convidado. Levar em consideração o que o convidado tem em seu entorno, de forma a elevar a natureza sem copiá-la,
é uma qualidade que o anfitrião deve ter para ser hospitaleiro. Aqui o
objetivo não é a mimese - imitação -, mas sim a experiência.
•
Poema 97
Poema em japonês
茶の湯には
梅寒菊に
黄葉み落ち
青竹枯木
あかつきの霜
Leitura do poema
Tradução
Chanoyu ni wa
Na cerimônia do chá
Umekangiku ni
Flores de inverno
Kiba mi ochi
Folhas outonais
Aodake kareki
Bambus verdes e geadas
Akatsuki no shimo
Não podem faltar
Análise pessoal:
A cerimônia do chá é repleta de paradoxos que se complementam. Tal como na cultura japonesa a cerimônia também busca
o equilíbrio de forças opostas, isso ocorre porque existe uma forte
sumário
116
influência do yin e yang. Para todo momento pesado e escuro haverá um momento de leveza e claridade; dessa forma, devemos tentar
balancear nossas ações.
No poema, o exemplo do bambu verde em contraste com as
árvores secas do outono mostra claramente a harmonia contraditória
ligada ao aspecto visual exterior. Além disso, é preciso ressaltar a importância do arranjo dos utensílios.
Para se criar um ambiente agradável, o anfitrião prepara a sala de
chá de forma a se equilibrar com o ambiente externo. Por exemplo: no
inverno o convidado se sentará mais próximo do fogareiro para se manter aquecido; já no verão ficará mais distante. Aqui podemos perceber o
cuidado em manter em equilíbrio as temperaturas opostas. Como último
exemplo, o texto salienta a conduta do anfitrião. Em minha experiência, o
que melhor representa o yin e yang, quanto à conduta, é a maneira com
que o anfitrião manipula os utensílios: caso estes sejam leves devemos
segurá-los como se fossem pesados, assim como o seu oposto.
O cuidado com a tradução de alguns poemas e a pesquisa
histórica e cultural desenvolvidas na execução deste trabalho aprofundam as questões sobre a poesia clássica e as diversas manifestações da cerimônia do chá. Acredito que isso seja importante, dada a
complexidade dos poemas e sua intersecção com diversos aspectos
da cultura japonesa, como a poesia, a língua e as artes clássicas.
Considerando que o Brasil é o país com maior comunidade japonesa
fora do Japão, surpreende que não existam muitas pesquisas sobre
esse material em língua portuguesa, sendo que o único material disponível está restrito às escolas de chanoyu.
Como dito anteriormente, o Rikyû Hyakushu se enquadra em diversos estilos literários clássicos, como por exemplo chasho, dôka e
tanka. Mesmo assim, só são conhecidos por aqueles que estudam mais
profundamente a cerimônia do chá. Inseri-lo como referência da poesia
clássica japonesa apresenta-se como ponto de importância deste texto,
levantando novas questões sobre a origem dos poemas e sua função.
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É possível ainda salientar a importância dos poemas didáticos
para os praticantes da cerimônia do chá e para os estudantes da literatura e poesia clássica japonesa, mesmo que essa coletânea não
seja muito difundida no ambiente acadêmico. Embora sejam considerados complexos e específicos, os poemas possuem a finalidade
de instruir os praticantes da cerimônia para uma forma mais natural e
de fácil memorização, além de evidenciar um profundo entendimento
sobre a estética japonesa, chinesa e até mesmo coreana por parte
daqueles que conviviam nesse meio artístico.
O chadô é um caminho que vem sendo trilhado há séculos e
cuja essência é um híbrido de filosofia religiosa e estilo de vida. Nele
é possível aprender a importância do equilíbrio e do respeito a tudo
aquilo que nos cerca. E também na dedicação total à ação que está
se realizando no momento e levando-se em consideração as pessoas com quem vai passar o seu tempo, não só dentro da cerimônia
do chá, mas também em nossa vida cotidiana. No Japão existe um
provérbio budista, muito utilizado na cerimônia do chá, – 一期一会
(ichi go ichi e, em uma tradução literal “uma vez um encontro”) – que
expressa a ideia de que os encontros da nossa vida são únicos. Ele
pode ser relacionado com a experiência única de cada um ao percorrer o caminho do chá, por isso é importante para aqueles que estão
interessados em estudar o chadô, vivenciá-lo.
REFERÊNCIAS
CHIKAMATSU, Shigenori. Stories from a tearoom window. Lore and legends
of the japanese tea ceremony. Tokyo: Tuttle publishing, 1982
HAMMITZSCH, Horst. O Zen na Arte da Cerimônia do Chá. Clássicos Zen.
São Paulo: Editora Pensamento, 2016.
Kogujiten zen’yaku dokkai. 2ª edição. Tokyo: Sanseidô, 2001
Met’s Heilbrunn Timeline of Art History. The Metropolitan Museum of Art.
Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/. Acesso em: 20 jul. 2017.
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118
OKAKURA, Kakuzo. O livro do chá. Tradução: Leiko Gotoda. 3ª edição. São
Paulo: Estação Liberdade, 2008.
Rikyû hyakushu handbook. Kyoto: Tankosha publishing co ltd, 2013.
SÔSHITSU Sen. The Japanese Way of Tea: From Its Origins in China to Sen
Rikyu. Trandução: V. Dixon Morris. Hawaii: University of Hawai’i Press, 1998.
ZALEWSKA, Anna. Expressing the essence of the way of tea: tanka poems
used by tea masters. Varsóvia: Analecta nipponica, journal of polish
association for japanese studies, 2015
裏千家今日庵. The urasenke chado tradition. Disponível em: https://www.
urasenke.or.jp/textc/about/spirit4.html. Acesso em Fevereiro, 2023.
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119
Capítulo 6
A Arte dos Tambores Japoneses no Brasil
Rafael Mariano Garcia
Eduardo Okamoto
6
Rafael Mariano Garcia
Eduardo Okamoto
A Arte dos Tambores
Japoneses no Brasil
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.6
Taiko (太鼓 ou, em hiragana, たいこ) significa tambor em japonês, e no Japão refere-se aos diversos formatos de tambores
ou membranofones que compõem uma significativa diversidade de
estilos, tamanhos, características e sonoridades. A sua existência é
muito antiga e seu uso isolado sempre esteve presente em diversas manifestações sociais, religiosas e culturais nipônicas desde
o período Jomon (10.500 – 300 a.C), seja nos rituais destinados
à conexão com o divino, na guerra durante o período Kamakura
(1192 – 1333), nos teatros clássicos Nô (能), Kabuki (歌舞伎), ocasionalmente no tradicional teatro de marionetes Bunraku (文楽), nas
danças de Bugaku (舞楽), como relógio para anunciar as horas da
vida cotidiana, durante as lutas competitivas de Sumō, em rituais
religiosos budistas, em festivais populares de Bon Odori, nas tradicionais músicas folclóricas, etc.
Já o taiko contemporâneo surge, de fato, no pós-guerra japonês, graças ao baterista de jazz Daihachi Oguchi (1924 – 2008). Em
1951, na cidade de Okaya, província de Nagano, Oguchi idealiza um
tipo de performance em grupo, onde várias categorias e tamanhos de
taiko pudessem ser executados de maneira conjunta, como uma orquestra ocidental, em oposição às tradicionais performances de taiko,
onde os instrumentos eram tocados até então individualmente, ou em
pares. Pouco tempo depois esse estilo é denominado por Masahiro
Nishitsunoi de kumi-daiko (kumi de juntos e daiko de tambor).
No Brasil, a trajetória do taiko é permeada de incertezas e lacunas. A falta de registros oficiais e a pouca existência de pesquisas a este respeito, abrem brechas para equívocos e imprecisões.
E, além disso, mesmo que haja uma diversidade de estudos sobre as
diversas fases da imigração japonesa (SAITO, 1961; HANDA, 1987;
LEÃO NETO, 1989; KIMURA, 2006; NUCCI, 2011 etc.), dados históricos acerca do instrumento de percussão são raramente mencionados. Ao revisitar a história do teatro Nô no Brasil, Ângela Mayumi
sumário
121
Nagai confessa que se trata de uma história viva que ainda flui nos
corpos de velhos atores imigrantes (NAGAI, 2014, p. 429). O mesmo
se dá ao revisitarmos a história dos tambores japoneses no Brasil.
É possível dizer que notáveis relatos nunca foram sequer registrados,
desaparecendo com o falecimento de familiares das primeiras gerações de imigrantes. Além disso, muitas memórias ainda ecoam nos
corpos daqueles que vivenciaram de forma admirável e excepcional
a prática dessa arte desde a chegada dos primeiros taikos. Por essa
razão, este texto esmera-se na investida de vasculhar bibliografias
e apresentar relatos na tentativa de iluminar alguns rastros sobre a
história dos tambores japoneses em terras brasileiras.
Como se sabe, a história da imigração japonesa no Brasil é permeada de conflitos, disputas e esquecimentos. As décadas que sucederam a chegada dos primeiros imigrantes, em 1908, especificamente entre o período de 1930 e 1940 foram marcados por conturbadas
crises. Projetos de lei e teorias científicas antinipônicas foram sendo
defendidas pela burguesia brasileira na tentativa de barrar a imigração
de asiáticos. O deputado estadual Fidélis Reis acreditava que o idioma
confuso, os costumes estranhos, o cruzamento de raças e o aspecto físico dos japoneses causariam transtornos à sociedade brasileira,
ocasionando um “mal irremediável” (OKAMOTO e NAGAMURA, 2015,
p. 172). Já o deputado federal do Rio de Janeiro, Miguel Couto, defendia um tipo de “imigração seletiva” em prol da raça brasileira. Para o
político, havia uma necessidade de “seleção” cuidadosa daqueles que
chegassem em terras brasileiras, bem como temia que os imigrantes
japoneses transformassem o Brasil em um “cadinho da fusão das raças” (OKAMOTO e NAGAMURA, 2015, p. 174).
No final da década de 1930, medidas foram sancionadas com o
intuito de parar as chamadas “ideologias estranhas”. Dentre elas, o ensino
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122
da língua japonesa passou a ser proibido a qualquer criança51. Em 1941,
ocorre a suspensão do processo migratório que finda apenas em 1952.
No mesmo ano, os jornais de língua estrangeira foram proibidos de circular em todo território nacional, a exemplo do Seishu Shimpo e Burajiru Jihô
(OKAMOTO e NAGAMURA, 2015, p. 176). Tudo isso, de alguma forma,
dificultou não apenas o desenvolvimento cultural e social dos imigrantes,
como também buscou impedir o próprio japonês de ser japonês.
A eclosão da Segunda Guerra Mundial criou um cenário de conflitos entre brasileiros e imigrantes. Vistos como perigosos, os japoneses foram considerados inimigos. De acordo com Ennes:
O conflito mundial reforçou a tendência observada com o
surgimento do Estado Novo e deu origem a várias medidas
restritivas que passaram a cercear a liberdade de locomoção
e de comunicação de imigrantes de origem japonesa, alemã
e italiana. No caso de Pereira Barreto, imigrantes japoneses
e seus descendentes foram proibidos de falar seu idioma de
origem na frente de brasileiros. Além disso, tiveram seus rádios
confiscados e suas correspondências violadas. Ainda nesse
período, a Cooperativa Agrícola Fazenda Tietê, entidade que
congregava a grande maioria dos produtores rurais de origem
japonesa, sofreu intervenção federal e passou a ser dirigida
por um não-nipo-brasileiro (ENNES, 2010, p. 199).
Já anos mais tarde, com o término da guerra e a derrota do
Japão imperial, um clima de tensão entre as comunidades dos nipo-brasileiros se estabelece. De um lado, famílias conhecidas como “vitoristas”, insistiram na narrativa da vitória do povo japonês na guerra e,
51
sumário
Em 4 de maio de 1938, o decreto-lei n. 406, originalmente publicado no Diário Oficial da
União - Seção 1 - 6/5/1938, Página 8494, decretava que: art. 85 – Em todas as escolas rurais
do país, o ensino de qualquer matéria será ministrada em português, sem prejuízo do eventual emprego do método direto no ensino das línguas vivas; e em seguida determinava: § 1º
As escolas a que se refere este artigo serão sempre regidas por brasileiros natos; § 2º Nelas
não se ensinará idioma estrangeiro a menores de quatorze (14) anos; § 3º Os livros destinados ao ensino primário serão exclusivamente escritos em línguas portuguesa. Destaco,
também, os seguintes artigos: Art. 86 – Nas zonas rurais do país não será permitida a publicação de livros, revistas ou jornais em línguas estrangeira, sem permissão do Conselho
de Imigração e Colonização; e Art. 87 – A publicação de quaisquer livros, folhetos, revistas,
jornais e boletins em língua estrangeira fica sujeita à autorização e registro prévio no Ministério da Justiça. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-406-4-maio-1938-348724-publicacaooriginal-1-pe.html. Acessado em: 9 jun. 2021.
123
do outro lado, os “derrotistas”, considerados “mais informados sobre
os fatos” (MORALES, 2011, p. 88), acreditavam nas notícias que chegavam sobre a derrota. A exacerbação dos ânimos foi tão grande, em
ambos os lados, que os “vitoristas” chegavam a proibir que seus filhos
brincassem com filhos dos “derrotistas”, se recusando também a mantê-los em escolas que mencionavam explicitamente a derrota do Japão
em materiais didáticos (MORALES, 2011). Sem contar o caos promovido pelo Shindo Renmei, associação de caráter nacionalista. Tudo isso
não promoveu apenas consequências irreparáveis naquele conturbado momento, mas criou marcas sentidas até os tempos atuais.
Foi apenas a partir da retomada das atividades das Escolas
Comunitárias Japonesas em 1947; com a volta do fluxo imigratório
em 1952; a entrada em vigor do Tratado de Paz no mesmo ano; a chegada de jovens imigrantes a partir de 1955 (Cotia seinen52, hanayome
imin, imigrantes industriais, etc); e a formação de novos núcleos de
imigrantes, em Colônia Funchal (RJ), Colônia Guatapará (SP), Colônia Jacareí (SP), Colônia Pinhal (SP) e Colônia Kyoei (MS) (MORALES,
2011, p. 83), que a comunidade japonesa iniciou o seu processo de
ascensão e enraizamento social, cultural e, acima de tudo, territorial.
A contar desse período ocorre um progressivo desaparecimento dos
discursos e práticas antinipônicas (LUIZ e ANDRÉ, 2018, p. 898), possibilitando, por exemplo, que associações de províncias, tal como a
Associação Fukushima Kenjin de Atibaia53, estreitassem laços com
suas origens (MIZUNO, 2005, p. 52).
A partir dos anos de 1950, “[...] nomes japoneses começaram
[...] a despontar na política brasileira, nas artes, nos esportes e no comércio das grandes cidades” (SAKURAI apud SILVA, 2008, p. 62). Já
na perspectiva do estudioso Jeffrey Lesser (2007, p. 40), verifica-se a
sumário
52
Jovens imigrantes de Cotia
53
A Associação Fukushima Kenjin de Atibaia é uma das diversas organizações pertencentes à Federação das Associações de Províncias do Japão no Brasil, a exemplo das associações, Fukushima Kenjin do Brasil, Hokkaido de Cultural e Assistência, Província de
Kagawa no Brasil e Associação Cultural e Assistencial Iwate Kenjinkai do Brasil.
124
partir das décadas de 1960 e 1970, o que ele denomina de “visibilidade
positiva nos nikkeis”, graças ao sucesso econômico e da presença do
Japão como potência econômica mundial.
OS PRIMEIROS TAMBORES NO BRASIL
Aos eventos anteriormente apresentados a respeito das primeiras
décadas de imigração japonesa, considerado um período de ostracismo para a comunidade de nipo-brasileiros, parece pouco provável que
algum instrumento de percussão tenha desembarcado de algum navio
naquele período. Contudo, ao falar da origem oficial do Nô no Brasil,
em seu artigo “Nô Brasil: Aspectos da tradição hoje” (2014), Nagai nos
revela uma informação bastante preciosa. Após destacar a fundação
do primeiro grupo de teatro Nô brasileiro, o Hakuyou Kai, idealizado em
1939 pelo pioneiro Nobuyuki Suzuki54, a estudiosa salienta:
Entre 1939 e 1941, aconteceram seis apresentações abertas
de Youkyoku com um programa variado. Além do canto, havia
também a prática dos bailados e dos instrumentos de Nô. Após
o episódio de Pearl Harbor, em dezembro de 1941, o uso da
língua japonesa sofreu severa restrição no Brasil e as reuniões
se tornaram esparsas e secretas [...] Terminada a conflagração, em 1945, houve tensão entre os colonos japoneses que
acreditavam na derrota do Japão (os derrotistas) e os vitoristas radicais, do chamado Shindo Renmei. No grupo Hakuyou
Kai, havia dois grandes amigos: o (já mencionado) ex-tenente
coronel Kikkawa, vitorista, seguidor da escola Hosho e que
tocava o tamboril agudo (ôtsuzumi) e o ex-coronel Wakiyama,
derrotista, seguidor da escola Kanze e que tocava o tamboril
grave (kotsuzumi). O senhor Kikkawa foi escolhido como o líder
máximo do Shindo Renmei, cujos integrantes acabaram por
assassinar o senhor Wakiyama. O fato levou o senhor Kikkawa
a se tornar um praticante do budismo e a rezar diariamente
pela alma do amigo até a sua morte (NAGAI, 2014, p. 433).
54
sumário
Nobuyuki Suzuki chegou ao Brasil em agosto de 1939. Na época, foi enviado pelo Ministério das Relações Exteriores e da Educação para divulgar a cultura japonesa.
125
De acordo com Eico Suzuki (1936 – 2013), neta do senhor Nobuyuki Suzuki, arquiteta, escritora, atriz e instrumentista de Nô.
Certo dia, as duas filhas do senhor Kikkawa vieram me procurar, e me entregaram o ôtsuzumi que ele usava com tanto carinho. [...] Atualmente, o kotsuzumi que está em nossas mãos
é uma lembrança do senhor Wakiyama, derrotista, e ôtsuzumi
é uma lembrança do senhor Kikkawa, vitorista. Esta união simbólica é um dos grandes mistérios deste mundo (SUZUKI apud
NAGAI, 2014, p. 433).
No teatro Nô, quatro principais instrumentos são utilizados pela
orquestra conhecida como hayashi (囃子), sendo eles: o kotsuzumi (tambor pequeno de ombro); ôtsuzumi (tambor agudo); fue (flauta); e taiko
(tambor de baquetas). Ainda no artigo de Nagai, a seguinte informação
pode ser relevante. Ao chegar ao Brasil e integrar o grupo Hakuyou Kai,
o senhor Masakuni Yamaguchi passou a aprender shimai (bailado) e
kotsuzumi com Eico Suzuki, além de ir diversas vezes ao Japão para
estudar hayashi, transmitindo, posteriormente, seus conhecimentos aos
integrantes do Hakuyou Kai (NAGAI, 2014, p. 436). Por esse motivo, é
possível afirmar, até o momento, que os tambores percussivos utilizados
no Nô tenham então sido os primeiros taikos a desembarcar no Brasil,
período em que esta arte começou a ser transmitida por aqui.
Já a chegada de novos instrumentos de percussão ocorreu alguns anos mais tarde, entre as décadas de 1960 e 1970, devido à popularização e consolidação das cerimônias de Bon Odori55. Graças a isso,
negociações entre associações de imigrantes e províncias no Japão,
possibilitaram a chegada dos primeiros tambores de nagadô-daiko56.
sumário
55
Bon Odori (literalmente, “Dança dos Finados”), é um rito mortuário inerente ao Budismo
japonês marcado por certa animosidade, envolvendo músicas, danças, alimentos e decoração específica (LUIZ e ANDRÉ, 2018, p. 891). No Japão, o Bon Odori é realizado na
conjuntura do Obon Matsuri (Festival dos Finados), período em que os espíritos ancestrais
retornariam do mundo espiritual, exigindo dos vivos a realização de uma série de ritos (LUIZ
e ANDRÉ, 2018, p. 895). Nas cerimônias, danças circulares baseadas em movimentos de
atividades cotidianas como colheita e pesca são realizadas em torno de uma estrutura de
madeira em que um ou mais indivíduos trajados com roupas tradicionais tocam o taiko.
56
É um tipo taiko feito de árvore centenária. Na sua fabricação, o miolo do tronco é retirado,
restando apenas o seu cilindro. Em seguida, ele é secado, escavado, desenhado, envernizado e, ao fim, recebe o couro pregado por taxas de metal, conhecidas como byô.
126
O pesquisador Flávio Rodrigues57, em sua dissertação de mestrado, revela o testemunho de Masayuki Mizuno acerca do desembarque de taikos no porto de Santos.
Os primeiros taikos chegaram aos imigrantes japoneses em
Atibaia quando do convite para que o governador de Fukushima, Kimura, viesse ao Brasil inaugurar o busto do médico Hideyo Noguchi, famoso por suas pesquisas sobre febre-amarela, em Campinas no ano de 1967. As famílias de Atibaia,
muitas delas oriundas da província de Fukushima e fundadoras do Fukushima Kenjinkai da região Bragantina, presidida
por Mitsuri Kurosawa, foram convocadas para os preparativos
da recepção ao governador, a quem solicitaram a doação de
um taiko. O pedido foi atendido: dois taikos chegaram ao porto
de Santos junto de 28 lanternas para ornamentação de palco.
A doação foi feita por alunos do ensino de base da província
de Fukushima e tocados pela primeira vez no Brasil pelo cônsul-geral do Japão, Kondo, e o deputado Susumu Hirata em
uma quermesse beneficente destinada a ajudar o abrigo de
menores em Atibaia. Nascia o Bon Odori de Atibaia, que em
1970 já fazia parte das comemorações do aniversário da cidade (MIZUNO apud RODRIGUES, 2021).
Em entrevista, o agricultor Edimur Yassushi Hirosue destaca que
os primeiros tambores chegaram a Piedade, interior de São Paulo, graças ao Bon Odori, celebrado pela primeira vez em 1972. No começo, o
taiko era emprestado pela Fukushima Kenjinkai, aonde alguns colaboradores iam até à cidade para tocar e ensinar a canção folclórica Soma
Bon-Uta (相馬盆唄), originária da região de Soma, cidade localizada
na província de Fukushima. Devido a desavenças, um taiko nacional
vindo do Paraná foi adquirido pelo kaikan de Piedade e, pouco tempo
depois, uma compra de shime-daikos e um couro para nagadou-daiko
foram financiadas com a ida de um senhor ao Japão.
Como revela o livro “História e desenvolvimento da colônia Nipo-brasileira de Ibiúna” (1999), organizado por Saburo Murayama, Bunzo
Watanabe, Hirofumi Goishi e Hissashi Sumiya, a primeira celebração
57
sumário
Flávio Rodrigues é músico e mestrando na área de etnomusicologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob orientação da Profª Drª Suzel Ana Reily, onde desenvolve
uma pesquisa junto aos tocadores de taiko da cidade de Atibaia, o Kawasuji Seiryu Daiko.
127
do Bon Odori na cidade de Ibiúna ocorreu precisamente em 30 de
setembro de 1973, encabeçado pelo Shukei Hokari (CENTRO CULTURAL DE IBIÚNA, 1991, p. 61). Naquela época, o taiko, as lanternas e a torre foram emprestadas pela sub-sede da Associação dos
Fukushima-kenjins de Piedade. Para a realização da cerimônia, em
1974, os tambores foram temporariamente cedidos pela Associação
dos Kagoshima-kenjins (CENTRO CULTURAL DE IBIÚNA, 1991). Foi
somente em 1983 que os doadores Shigueteru Nishioka e Kazuhiko
Maeda presentearam a cidade como um taiko. Em seguida, Hiroyuki
Takagui doou o pequeno tambor e, posteriormente, Shiguemassa Saito contribuiu com as bases. No ano seguinte, em 1984, o município de
Kushima, província de Miyazaki, no Japão, enviou um jogo completo
de tambores (CENTRO CULTURAL DE IBIÚNA, 1991).
A realização desses primeiros eventos dependia não somente
de tambores emprestados, que viajavam de cidade em cidade pelo
interior de São Paulo, mas de músicos e tocadores especializados,
o que ocasionava pequenos conflitos e opiniões controversas. Até
1975, por exemplo, Ibiúna ainda necessitava da colaboração de
membros do Minyo Hozon Kai, da cidade de São Paulo, para a execução das músicas. Nesse período, Shossaburo Mogui ficava encerrado por tocar fue, e a cantora Midori Urayama pelos cânticos folclóricos. Foi quando Hiroyuki Takagui, com a supervisão da Minyo Hozon
Kai, decidiu então formar tocadores locais (CENTRO CULTURAL DE
IBIÚNA, 1991). Rapidamente, novos imigrantes que vieram do pós-guerra para o Brasil se juntaram ao Takagui, a exemplo do tocador
Hachiro Fukutome. Quase duas décadas depois, precisamente em
1995, começaram a surgir jovens tocadores e cantores ibiunenses.
Já entre as décadas de 1980 e 1990, a tradicional percussão
japonesa chega a diversas regiões do país, essencialmente para as
comunidades nikkeis do estado de São Paulo e Paraná. Reportagens
do Paraná Shimbun de Londrina (PR) já noticiavam o Bon Odori no
começo da década de 1980. Destaco, ainda, uma fotografia (Figura 1)
sumário
128
retirada no ano de 1982, durante as comemorações do cinquentenário
da pequena cidade de Assaí, situada no norte do estado do Paraná.
O registro não somente aponta a ascensão das festividades de Bon
Odori naquela época, como também já evidencia o uso dos tambores
japoneses para essas celebrações.
Figura 1 – Celebração do Bon Odori em Assaí,
em 1 de maio de 1982
Fonte: Acervo LACA/Autor desconhecido.
O TAIKO CONTEMPORÂNEO
NO BRASIL: PRIMEIRA FASE
Após um período de desenvolvimento e popularização entre os
japoneses, o kumi-daiko, então, se internacionaliza. Como revelam
algumas pesquisas estadunidenses (CARLE, 2008; AHLGREN, 2011;
BENDER, 2012), a globalização do taiko contemporâneo iniciou-se
precisamente na década de 1960. O japonês Seiichi Tanaka, nascido em Tóquio, é um dos responsáveis pelo início do movimento
internacional do taiko nos Estados Unidos, em 1967. O grupo japonês Ondekoza de Den Tagayasu, por exemplo, é creditado como um
sumário
129
dos primeiros coletivos a desenvolver as primeiras turnês mundiais,
entre as décadas de 1970 e 1980. Os tocadores do Oedo Sukeroku
Taiko são apontados como os principais responsáveis pela disseminação dos desconhecidos “tambour japonais”, sobretudo na França.
Os tocadores do Kodô, Leonard Eto, Ryutaro Kaneko e Kan Kurit, em
setembro de 1991, levaram pela primeira vez a arte dos tambores
japoneses aos países africanos Gana, Nigéria e Senegal.
Ao se falar da origem oficial do taiko contemporâneo no Brasil,
um nome deve ser lembrado: Tangue Setsuko, pioneira do kumi-daiko
em terras brasileiras. Tangue Setsuko nasceu na cidade de Tóquio,
no Japão. Filha da renomada atriz japonesa, Tangue Kiyoko, Setsuko
é praticante de Nihon-Buyo (dança tradicional japonesa) desde os 6
anos. Também iniciou os seus estudos em Onna-Kengeki (teatro de espadas) após se formar no ensino fundamental japonês (TANGUE, on-line). Chegou ao Brasil no ano de 1964 junto de sua mãe com o intuito
de promover apresentações pelo Brasil e por diversas colônias nikkeis
da América do Sul. Antes mesmo de desembarcar no Brasil, Setsuko
já havia aprendido taiko no Japão com o mestre Yutaka Imaizumi, do
Sukeroku Daiko, primeiro grupo profissional de taiko do Japão.
Em entrevista, Yoshikazu Hamasaki58, um dos primeiros alunos
da sensei, conta que conheceu Tangue Setsuko em 1978. Ela estava
andando pelo bairro da Liberdade, em São Paulo, quando o viu, ao
lado de outros colegas, tocando taiko no estabelecimento de roupas
e acessórios japoneses de seu pai, Minikimono Confecções. Após
entrar na loja e conversar com os meninos, Setsuko obteve a aprovação dos pais para ensiná-los taiko. A partir desse momento, originou
o primeiro grupo de kumi-daiko no Brasil, na época formado pelos
seguintes membros: Yoshikazu Hamasaki, Massamitsu Hamasaki,
Yuichi Hamasaki, Sônia Mie Otani, Marcos Fujiwara, Massao Uechi,
Wilson Miyawaki e Claudia Miyuki Fukugakiuchi.
58
sumário
Aqui fica o meu singelo agradecimento ao Sr. Yoshikazu Hamasaki pela generosa disponibilidade em reavivar memórias e compartilhar histórias a respeito do taiko brasileiro.
Agradeço, ainda, o Almir Kajihara, atual líder do grupo Tangue Setsuko Taiko Dojo.
130
Pouco tempo depois, na década de 1980, os integrantes ao lado
de Tangue Setsuko, começaram a se apresentar no antigo programa
de atrações musicais e variedades da TV Bandeirantes, conhecido
como Japan Pop Show. Comandado pelo casal Nelson e Suzana Matsuda, o programa promovia apresentações com bandas convidadas
e concursos de karaokê com juízes. Na mesma época, os tocadores
passaram a participar de eventos tradicionais e inaugurações de empresas na cidade de São Paulo. Em seguida, o grupo formou a caravana Japão Pop, onde passou a percorrer por diversas cidades do
Brasil, como Brasília (DF), Rio Quente (GO), Belém (PA), Manaus (AM),
etc. As turnês não só contavam com apresentações de taiko, mas incluíam também encenações teatrais de jidai-geki59 e de dança solo da
Tangue Setsuko, exibições de danças do grupo Hanayagui Kinryu e
apresentações de karaokê. Em média, trinta artistas, entre tocadores e
dançarinos, viajavam de ônibus aos finais de semana. Yoshikazu Hamasaki enfatiza, ainda, que as turnês eram muitas vezes financiadas
pela Reiyukai do Brasil, na época sob a direção de Tanaka sensei.
Os anos subsequentes promoveram um grande crescimento e
popularização do grupo. Além das turnês, Setsuko idealizou também
a primeira escola de taiko do Brasil, a Tague Setsuko Taiko Dojo, onde
passou a ensinar o famoso estilo Sukeroku. Ao saber do trabalho feito
pela sensei no Brasil, Imaizumi Yutaka tornou-se um grande colaborador
do grupo, ensinando novas técnicas do seu famoso estilo. Em 2002, o
coletivo de tocadores então se afilia ao grupo de Yutaka, o Sukeroku Daiko de Tóquio, onde começaram a desenvolver músicas autorais, além
de executar algumas músicas desse grupo. Posteriormente, no ano de
2004, a pedido do Bispo Yomei Sasako, Setsuko levou, pela primeira vez,
o estilo Sukeroku ao estado do Paraná, onde passou a ensinar taiko ao
grupo Seishimaru Taiko, em Maringá (PR) (TANGUE, on-line). Já em 2008,
no Auditório do Bunkyo, na cidade de São Paulo, o grupo comemorou o
seu aniversário de 30 anos. A apresentação comemorativa contou com a
59
sumário
Jidaigeki (時代 劇), literalmente “dramas da época”, é um gênero que apresenta encenações de várias épocas no Japão.
131
participação de Tsukasa Kaito, Hanayagi Ryuchita, do grupo de Sapateado Debora Costa e dos precursores do estilo Sukeroku, Imaizumi Yutaka
e o próprio Sukeroku Daiko, de Tóquio (SEISHIMARU TAIKO, on-line).
O TAIKO CONTEMPORÂNEO
NO BRASIL: SEGUNDA FASE
A segunda fase do taiko contemporâneo em terras brasileiras
inicia-se entre as décadas de 1990 e 2000. Segundo o depoimento
do vice-presidente da ABT (Associação Brasileira de Taiko), Fernando
Kuniyoshi, extraído do livro comemorativo “Kizuna – Jûnen No Nagare”
(2012), foi graças a um pedido do administrador da subprefeitura de São
Miguel Paulista que o taiko no Brasil deu o primeiro grande passo rumo à
sua popularização (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TAIKO, 2012, p. 42).
Em 1994, os associados do Bunkyo (Sociedade Brasileira de
Cultura Japonesa e Assistência Social), em São Paulo, receberam a
missão de realizar um pequeno festival da cultura nipônica aberto ao
público. Na época, o senhor Pedro Yano, integrante da diretoria da
associação, esteve à frente da execução do que seria um dos eventos
mais importantes para a comunidade nikkei. Com o apoio da Fundação Japão, Consulado Geral do Japão e do Kokusai Kankô Shinkôkai
(Japan National Tourist Organization), os organizadores do evento conseguiram, mesmo tendo poucos recursos, mobilizar uma programação
com apresentações de coletivos culturais nipo-brasileiros (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TAIKO, 2012, p. 43). Ainda segundo Kuniyoshi,
“dentre esses grupos haviam sido convidados a participar o Fukushima Bon Odori; Sara Odori; Urassaki Taiko, e outros Kenji Kai foram
chamados” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TAIKO, 2012, p. 43).
Depois da grande repercussão em São Miguel Paulista, o senhor Pedro Yano, já à frente da Fukuoka Kanto Shinkôkai, tentou a todo
custo trazer do Japão novos instrumentos de percussão e um professor, visando formar novos tocadores. Porém, seu pedido de apoio foi
sumário
132
negado por não envolver toda a comunidade nikkei. No depoimento de
Isao Tanaka, o senhor Pedro Yano estava preocupado com a formação
das gerações futuras e com o empenho das comunidades de imigrantes que não eram suficientes. Dessa forma, “[...] foi escolhido o taiko
para ser divulgado nas regionais [...] e com isso tentar despertar o interesse dos jovens” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TAIKO, 2012, p. 33).
Segundo Tanaka, o taiko contemporâneo era até então praticamente
desconhecido no Brasil. Sabia-se do seu uso em templos xintoístas e
em ofícios religiosos, mas a sua utilização como instrumento musical
era totalmente inimaginado, ainda mais para uma plateia.
Todavia, foi apenas a partir dos anos 2000, diante das incessantes tentativas de levantar fundos e do real interesse dos nipo-brasileiros em difundir o taiko contemporâneo no Brasil, que voluntários
japoneses se juntaram para cumprir este objetivo. Naquela época,
a equipe de doadores, batizada de “Burajiru ni Wadaiko wo Okuru
Fukuoka-ken Yuushi no Kai”, ou Associação de Voluntários para Doação de Taiko ao Brasil, arrecadaram doações para a compra de seis
tambores de nagadô-daiko. Como revela Kuniyoshi (ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE TAIKO, 2012, p. 44), dentre os doadores interlocutores estavam Hirofumi Yamaguchi; Mitsumoto Haguio; Akira Tobinaga;
Naoko Tobinaga; Yoshio Seki; Kasui Tanaka e Tamae Otaki.
Posteriormente, o sensei Yukihisa Oda, fundador da escola Kawasuji de Taiko, em Fukuoka, no Japão, se prontificou a ensinar a arte dos
tambores nipônicos aos brasileiros. Na época, ele havia sido enviado
pela Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA). Assim, em
julho de 2002, Oda-sensei, sob a responsabilidade da Associação Fukuoka do Brasil, desembarcou em território brasileiro pela primeira vez,
permanecendo aqui até junho de 2004. Ao longo de dois anos, Oda-sensei percorreu por incontáveis regiões do sul e sudeste, visitando mais de
66 associações nipo-brasileiras, sendo encarregado por uma expressiva
criação de grupos, tornando-se um dos principais precursores do instrumento de percussão em nosso território. Além do mais, Oda-sensei foi
o responsável pela disseminação do okedô-daiko, um formato de taiko
leve e barato, ainda desconhecido pelos tocadores brasileiros.
sumário
133
Figura 02 – Recepção dos taikos doados pela Associação
dos Voluntários para Doação de Taiko ao Brasil,
no Nikkei Palace em São Paulo
Fonte: Imagem extraída do livro Kizuna – Jûnen No Nagare, 2012.
Inicialmente apenas quatro equipes treinavam com o Oda-sensei, entre elas: São Miguel Paulista, Suzano, Guarulhos e São Bernardo
do Campo. Os encontros aconteciam em locais alugados, como ginásios e escolas, e os taikos eram substituídos por pneus e bambus. Até
o final de 2002, já existiam diversos coletivos espalhados pelo interior
de São Paulo e outras regiões, dentre os principais: Grupo de Taiko do
Colégio Harmonia, Guarulhos Sounem Taiko, Suzano Taiko, São Miguel
Paulista Taiko, Associação Fukushima Kenkin do Brasil Taiko, Guarulhos Sinem Taiko, Tenryuu Wadaiko, Atibaia Kawasuji Seiryu Daiko, etc.
Já em 2003, surgem os coletivos Shinyuu Daiko, de Pilar do Sul, Hibiki
Wadaiko, de Marília, Ishindaiko, da cidade de Londrina, Paraná, e etc.
Durante esse período, houve uma “explosão” do taiko no Brasil
e grande interesse de jovens, adultos e crianças [...]. Em outubro de 2002, houve a primeira apresentação de taiko no Colégio Harmonia de São Bernardo do Campo, São Paulo [...]. Em
21 de dezembro de 2002, graças a JICA, a Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Fundação Japão, houve a doação de
vinte taikos de tamanho médio e um grande com 1.10 metros
de diâmetro para a Associação Brasileira de Taiko. E em 2003,
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134
iniciaram-se as apresentações de grupos de taiko em vários
eventos: festas de aniversário de entidades e de cidades; fazendo parte da programação de abertura jogos, competições
esportivas e concursos de canto. Em 12 de outubro do mesmo
ano, a Associação Brasileira de Taiko foi fundada. Ainda em
2003, estava sendo criado um departamento de taiko dentro
da estrutura organizacional da Aliança Cultural Brasil Japão do
Paraná (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TAIKO, 2012, p. 43).
Além disso, antes mesmo da ampla difusão do taiko no Brasil
através do Oda-sensei, um pequeno grupo de adolescentes batizados
de Himawari Taiko já treinavam no início da década de 2000, na cidade
de São Paulo. Os coordenadores Milton Mitsuo Shimada e Arlindo Eiji
Ito revelaram que os treinos eram realizados com pneus velhos em
encostos de cadeiras, e muitas vezes as apresentações aconteciam
com instrumentos emprestados (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TAIKO, 2012, p. 156). Foi somente em 2002, com a vinda do Oda-sensei,
que o grupo Hamawari pôde participar de ensaios, juntamente com o
coletivo já formado de Guarulhos, aos sábados de manhã.
Figura 03 – Treinamento e visita de diretores da ABT na
cidade de Ibiúna, em 15 de novembro de 2002
Fonte: Imagem extraída do livro Kizuna - Jûnen No Nagare, 2012.
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135
Já em 2004, o sensei Yoichi Watanabe, membro do departamento técnico e secretário chefe da sede em Tóquio da Nippon Taiko
Foundation e líder do grupo Amanojaku Watanabe, veio ao Brasil para
iniciar uma grande colaboração com os tocadores brasileiros. Nesse
momento, o foco dos grupos estava no aprendizado de técnicas apuradas, além de um mergulho na postura e disciplina oferecidas pelo
Watanabe-sensei, visando uma prática mais aprimorada, como também possibilitou aos praticantes, através do fazer prático, a descoberta
de novos princípios básicos ligados a uma tradição japonesa.
O auge do taiko nacional aconteceu na cerimônia do “Centenário da Imigração Japonesa no Brasil”, realizada em junho de
2008, no sambódromo de São Paulo. No total, mil tocadores foram
convocados para aquela que seria a maior apresentação coletiva de
taiko no Brasil. Pela primeira vez, o solo brasileiro se viu estremecido
pelos tambores nipônicos. A partir daí, o “boom” do taiko, de certo
modo, se concretizou.
Com a vinda de Watanabe-sensei para o Brasil, foi possível a
difusão ainda mais concreta do taiko, com a criação da Associação Brasileira de Taiko, havendo também a realização de
campeonatos, inclusive com grupos tendo condições de se
apresentar no Japão. Com isso, houve uma tendência muito
grande dos grupos criarem suas próprias performances com
muita coreografia e força nas batidas. Apesar de tal crescimento, o Brasil ainda está um pouco longe de possuir uma
homogeneidade em relação ao taiko, muito devido à falta de
uma orientação profissional. Apesar de que de 5 anos para
cá, com o surgimento da escola Kawasuji no Brasil, foi criado
também o Festival Kawasuji, que sempre com vários grupos
do Brasil junto com alguns grupos do Japão. (ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE TAIKO, 2012, p. 45).
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136
Figura 04 – Ensaio no Sambódromo da cidade de São Paulo para
o evento do Centenário Da Imigração Japonesa, em 2008
Fonte: Imagem extraída do livro Kizuna - Jûnen No Nagare, 2012.
A CONSTRUÇÃO DO NOSSO TAIKO
O desenvolvimento do taiko brasileiro deu-se não só graças a
um processo de “ressignificação” e “adaptação” de elementos, técnicas e tradições, observados em grupos japoneses como estratégias
para a elaboração de uma poética e expressão própria, mas fez-se
também através de um processo de “invenção”, o que impulsionou
a criação do taiko contemporâneo brasileiro. Na análise da estudiosa
Raissa Romano Cunha:
Estudar o processo de como se deu a invenção do taiko moderno no Brasil elucida aspectos da relação dos descendentes japoneses com os seus antepassados e a construção da
memória dessa ligação. A análise comparativa do taiko “daqui”
com o taiko “de lá” foi sentida através da percepção dos nativos,
que demonstraram a plena consciência de que há diferenças
fundamentais que devem ser vistas como positivas e valorizadas (CUNHA, 2017, p. 30).
sumário
137
Antes de qualquer coisa, é importante apontar que a compreensão de “invenção” dentro do “taiko daqui” está atrelada ao tipo de
prática artística que não se restringe simplesmente a um único estilo
ou técnica específica, mas que busca em influências tantas e tradições
a elaboração dos seus valores, dos seus ritmos e do seu próprio corpo. Trata-se de um hibridismo consciente, onde “[...] a “criatividade”
e os ritmos tidos como brasileiros somados à disciplina associada ao
Japão geram uma afirmação positiva da identidade através dos estereótipos acerca dos dois países” (CUNHA, 2017, p. 77).
É preciso considerar também o taiko brasileiro como um símbolo de desenvolvimento e reafirmação da identidade e niponicidade
dos nikkeis nos espaços públicos após um longo período de silenciamento. Nas palavras de Henrique Okajima Nakamoto, “[...] o taiko foi
transformado em símbolo da paz” (NAKAMOTO, 2010, p. 60). De alguma forma, o próprio instrumento de percussão passa a buscar certo
reconhecimento étnico, capaz de propor aproximações de fronteiras e
quebras de determinados estereótipos, herdados por um Brasil que,
até o século passado, entendia os nipo-brasileiros como “inimigos de
costumes estranhos”, misteriosos e até subservientes.
O autor Paul Jong-Chul Yoon em “She’s Really Become Japanese Now! Taiko drumming and Asian American Identifications”, aborda
algumas questões pertinentes ao pesquisar a prática do taiko no contexto estadunidense. No artigo de Yoon, um dos integrantes do grupo americano Soh Daiko em entrevista destaca: “Eu nunca tinha visto
asiáticos fazer algo remotamente tão legal ou poderoso, [...] Era claramente uma expressão de afirmação cultural [...]” (YOON, 2001, p. 425,
tradução nossa). Ao compreender o mesmo artigo, Cunha aponta uma
informação bastante importante. Para ela, “[...] através dos toques dos
tambores japoneses, Soh Daiko confronta estereótipos que atribuem
características de “naturalmente” quietos e subordinados à população
asiática ou descendente de asiáticos” (CUNHA, 2017, p. 80).
sumário
138
Já em “Reconsidering ethnic culture and community: a case
study on Japanese Canadian Taiko Drumming”, Masumi Izumi destaca
que a realidade canadense após a Segunda Grande Guerra era complexa. Segundo o professor, “[...] ser japonês estava associado à vergonha, culpa e à imagem do inimigo” (IZUMI, 2001, p. 41, tradução
nossa). Além disso, os nisseis foram desencorajados a falar o próprio idioma e constituir comunidades. Assim, naquele período, o taiko
passou a representar um símbolo de orgulho e de redescobrimento
de histórias e identidades diásporas, bem como possibilitou aos praticantes a participação em comunidades étnicas, promovendo uma
ligação simbólica e concreta com a sua terra ancestral (IZUMI, 2001).
Izumi aponta também o taiko norte-americano como um importante
meio de mulheres canadenses asiáticas reivindicarem e combaterem
discursos estereotipados e socialmente construídos sobre elas, visto
que a imagem da “mulher oriental” esteve sempre associada a certa
gentileza dócil e mansidão. Assim, o taiko possibilitou a formação
de diversas tocadoras que viram na sua prática a oportunidade de
expressarem sua cultura de forma poderosa e grandiosa.
Da mesma forma, tudo isso nos revela uma característica significativamente notável em grupos, tanto norte-americanos quanto canadenses: o caráter ativista. Segundo Izumi (2001, p. 46), muitos praticantes do Katari Taiko assumem claramente uma posição política de
centro-esquerda, participando ativamente de eventos e comícios antirracistas, feministas, LGBTQIA +, etc. Como ainda nos revela o autor:
As performances de taiko contêm algum potencial de tensão na
comunidade étnica, especialmente se as questões forem introduzidas de forma política aberta. No entanto, como o taiko é uma
forma de arte, e que parece ser uma arte tradicional japonesa, é
mais fácil para a comunidade aceitar os artistas. E, assim, o taiko
fornece uma ferramenta subversiva de autoexpressão para minorias dentro de uma minoria [...] (IZUMI, 2001, p. 47, trad. nossa).
Já o taiko, por aqui, tornou-se, nas últimas décadas, um importante símbolo de força e de reafirmação étnica entre seus tocadores
brasileiros, ou como muitos chamam “espírito japonês”. Contudo,
sumário
139
acredito que muitos grupos estejam ainda descobrindo a sua real capacidade de transformação e impacto no tecido social em que eles
estão inseridos, mesmo que boa parte já o faz sem perceber. Além
disso, a ideia de romper com paradigmas estereotipados sobre como
os brasileiros observam a cultura japonesa, o taiko brasileiro busca
construir através da sua arte uma ponte sensível com o seu público,
propondo uma aproximação de fronteiras através de potentes performances e repertórios, na tentativa de conquistar certo reconhecimento,
contrariando a ideia de que a cultura japonesa é indecifrável e exótica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O taiko brasileiro passa a desarticular uma visão construída e
imaginada da cultura japonesa, sempre posta em uma posição reduzida, com hábitos estranhos e complicada demais, frequentemente
observada, como menciona Edward Said (2007, p. 154), pelo quadro
vivo de estranheza. De alguma forma, o taiko passa então a nutrir um
determinado conhecimento e reconhecimento sobre o oriente e os
nipônicos através de uma manifestação que torna visível um Japão
que nunca lhes foi verdadeiramente apresentado, de histórias que tão
pouco foram de fato ouvidas, apresentando um povo próspero e substancialmente importante nas construções de diversas esferas sociais
e culturais, mas que sempre foi posto à margem, condicionados na
história apenas como coadjuvantes invisíveis de uma sociedade.
Desse modo, o taiko estabelece, por assim dizer, uma arte que
resiste ao esquecimento, que luta contra o fenecimento da cultura, da
linguagem e da comunidade japonesa através do tempo. É por esse
motivo, acredito eu, que o taiko contemporâneo brasileiro tornou-se
uma expressão que traz consigo não somente a sua luta por reconhecimento, mas se faz como uma arte que nos leva a aprender por outras
vias a importância de valorizar a nossa cultura e as nossas histórias
sumário
140
que vamos jogando para o canto do esquecimento sem perceber, as
menosprezando enquanto potentes, heterogêneas e multifacetadas.
Nas palavras da ex-diretora presidente da Nippon Taiko Foundation, Kazuko Shiomi (2012, p. 9), o instrumento de percussão vem
conquistando espaço como um valioso meio para incutir atitude respeitosa e sensibilidade coletiva, tornando-se uma arte que transcende
idade e gênero. Para Katsuhiko Haga (2012, p. 11), ex-diretor-geral
da JICA no Brasil, o taiko é repleto de significados, que transparecem
em cada mesura, cada gesto, cada ritmo, levando a transmissão da
cultura nipônica. Segundo Agostinho Toshio Minami (2012, p. 13), ex-presidente da Associação Fukuoka do Brasil, o tambor japonês aconteceu graças a uma iniciativa de despertar o interesse dos jovens com
seus antepassados e com a cultura nipônica. Por fim, Hirofumi Tsuruga (2012, p. 16), ex-diretor da Associação Fukuoka do Brasil, confessa
que o som do taiko ecoa alto atingindo os céus do Brasil, e se recorda
das palavras do Oda-sensei: “Taiko que alimenta a alma”.
Para encerrar, é importante acrescentar a relevância de diversos outros proeminentes pioneiros do taiko que não foram aqui mencionados. Fica o agradecimento da comunidade de taiko do Brasil a
cada pessoa que ao decorrer das últimas décadas carregaram em
seus braços os primeiros tambores pelos cantos desse país, e que
com muita sensibilidade e dedicação transmitiram a beleza, a energia
e os elementos que compõem essa arte, mesmo diante das incertezas. Desse esforço, descendeu um taiko que vem desde então se
redesenhando pelas comunidades, ganhando novos formatos e especificidades, mas sem deixar de carregar consigo os aspectos mais
tradicionais do Japão. É bonito imaginar que talvez as primeiras batidas tenham sido entoadas antes mesmo dos dados aqui apresentados, talvez em algum quarto pequeno de uma família de imigrantes
em meio às escuras de uma plantação de café, ou até mesmo no
repousar da tarde, após uma longa jornada de trabalho na fazenda.
Mas isto também é um dos grandes mistérios deste mundo.
sumário
141
REFERÊNCIAS
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Paulo: [s.n.], 2012.
CAMARGO, Renata Asato de. DANÇAR YUYA: UM ENCONTRO COM
O TEATRO NÔ. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas). Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2019.
CENTRO CULTURAL DE IBIÚNA. História do Desenvolvimento da Colônia
Nipo-Brasileira de Ibiúna. Ibiúna: Editora Gráfica Topan-Press Ltda, 1991.
CUNHA, R. R. O soar dos tambores japoneses: uma etnografia sobre arte,
tradição e etnicidade. Trabalho de Conclusão de Curso para o Bacharelado
em Ciências Sociais. Centro de Letras e Ciências Humanas – Universidade
Estadual de Londrina, 2017.
ENNES, M. Bon-Odori: fronteiras simbólicas, identidades e estratificação
social. Teoria e Pesquisa, São Carlos, v.19, n.1, p. 195-211, 2010.
IZUMI, Masumi. Reconsidering Ethnic Culture and Community: A Case
Study on Japanese Canadian Taiko Drumming. Journal of Asian American
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LESSER, Jeffrey. A discontented diaspora: Japanese Brazilians and the
meanings of ethnic militancy, 1960-1980. Durham: Duke University Press. 2007.
LUIZ, Leonardo Henrique; ANDRÉ, Richard Gonçalves. O retorno dos
ancestrais: Bon Odori e ritos mortuários no Templo Budista Honpa
Honganji em Londrina. Antíteses 11 (22), 890-915, 2018.
MIZUNO, Massayuki. Atibaia Bunkyo: 50 anos de história. São Paulo: [s. n.], 2005.
MORALES, L. M. O Ensino de Língua Japonesa nas Escolas Comunitárias
no Pós-guerra. Estudos Japoneses (USP), v. 1, p. 81-98, 2011.
NAGAI, A. M. Nô Brasil: aspectos da tradição hoje. In: Encontro
Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental - Oriente-se: Ampliando
Fonteiras, 2014, São Paulo. Anais do Encontro Internacional de Arte Oriental,
2014. v. 1. p. 428-446.
NAKAMOTO, Henrique Okajima. Significados do taikô no Instituto
Cultural Nipo Brasileiro de Campinas. 2010. 173f. Dissertação
(Mestrado) – Faculdade de Educação Física. Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2010.
sumário
142
OKAMOTO, Monica; NAGAMURA, Yukako. Burajiru Jihô (Notícias do Brasil)
e Nippak Shimbun (Jornal Nipo-Brasileiro): os primeiros tempos dos
jornais japoneses no Brasil (1916-1941). Revista Escritos, No.9, Fundação
Casa de Rui Barbosa, pp.147-179, 2015.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
Seishimaru Taiko. História. Disponível em: http://seishimaru.coolpage.biz/
seishimaru.htm. Acessado em 26 jun. 2021.
SILVA, Carla Holanda da. O encontro de territorialidades na diáspora
: japoneses e nordestinos em Assaí-PR. Dissertação (Mestrado em
Geografia) - Universidade Federal do Paraná, 2008.
Tangue Setsuko Taiko Dojo. História do grupo. Disponível em: http://
tanguetaiko.com.br/historia/. Acessado em 07 jun. 2021
YOON, Paul Jong-Chul. She’s Really Become Japanese Now! Taiko
drumming and Asian American identifications. American Music. Vol. 19,
No. 4, Asian American Music (Winter, 2001), pp. 417-438 (22 pages), 2001.
sumário
143
DANÇA
DANÇA
Capítulo 7
7
Butô no Japão... Butô no Brasil: o processo de formulação desse
projeto poético e suas reverberações nos artistas brasileiros
Hadiji Yukari Nagao
Hadiji Yukari Nagao
Butô no Japão... Butô no Brasil:
o processo de formulação
desse projeto poético
e suas reverberações
nos artistas brasileiros
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.7
Quando falamos em cultura japonesa é muito comum lembrarmos, por exemplo, dos mangás, animes e cosplays, ou associarmos
com os Matsuri (Festivais) onde, de forma geral, ocorre a venda de
pratos típicos da culinária japonesa e apresentações culturais como
o bon odori, taikô, matsuri dance, shows de karaokê, mostra de artes
marciais, entre outros. Mas, fora essas atrações culturais mais próximas ao nosso cotidiano, houve uma manifestação artística – especificamente uma arte cênica japonesa – que fascinou, em especial,
muitos dos artistas e dançarinos brasileiros fazendo com que vários
deles viajassem para o Japão para se aprimorarem. Esse modo expressivo que estamos nos referindo é uma dança chamada butô.
Assim, este estudo tem como objetivo apresentar um pouco do processo de formulação do projeto artístico de Tatsumi Hijikata (19281986), principal mentor de butô, bem como as experiências iniciais e
pioneiras de artistas brasileiros desse gênero de dança.
Normalmente, quem já ouviu falar, viu fotografias ou assistiu algum espetáculo, associa o butô a certas imagens: artistas pintados de
branco, movendo-se lentamente, muitas vezes se contorcendo, fazendo
caretas e revirando os olhos. Ou o butô é vinculado ao bombardeio nuclear como um produto direto desse episódio (PERETTA, 2015; KURIHARA, 2000). Às vezes, inclusive, acredita-se que seja uma dança moderna
japonesa, ou logo recordam do dançarino Kazuo Ohno, no qual a lembrança de suas apresentações, muitas vezes, é mais forte devido às
suas turnês internacionais que acabaram gerando um impacto maior do
que a pesquisa artística de Tatsumi Hijikata (GREINER, 2017).
O butô, na realidade, foi se desenvolvendo com base em diferentes fontes de estudo, com inspiração em muitos campos artísticos,
sobretudo da literatura. O projeto artístico proposto, inicialmente, por
Tatsumi Hijikata é difuso e complexo, por isso seria mais proveitoso
tentar compreender o butô segundo uma leitura que não fosse determinista, isto é, a partir de sua competência em perturbar a fixação.
sumário
146
ALGUNS MAL-ENTENDIDOS
Os dados sobre a biografia de Tatsumi Hijikata não são claros
e são difíceis de serem confirmados. O que se sabe é que nasceu
em 9 de março de 1928, no bairro de Asahikawa, prefeitura de Akita,
região nordeste do Japão conhecida como Tôhoku, sendo registrado como Kunio Yoneyama. Tôhoku era uma região rural de cultura camponesa e um local muito frio (GREINER, 2013b; GREINER,
2015; PERETTA, 2015).
Foi após o fim da Segunda Guerra Mundial que Hijikata entra
em contato com a dança na capital de Akita, em virtude de ter sido
“atraído pelo trabalho da dançarina Katsuko Masumura, discípula de
Baku Ishii, e, portanto, influenciada pela potência expressiva da neue
Tanz alemã.” (PERETTA, 2015, p. 48, itálico do autor). Mas, somente
na segunda metade da década de 1950 que Hijikata envolve-se em
uma comunidade artística e começa a participar de espetáculos de
Mitsuko Andô – dona de uma academia de dança famosa na época
– e Hironobu Oikawa. E foi neste lugar que conhece Kazuo Ohno e
seu filho Yoshito Ohno60, “parceiros importantes dos primórdios da
experiência butô.” (GREINER, 2013b, p. 04).
Um fato interessante foi que, em 1956, Hijikata conheceu o
estúdio Asbestos, cuja dona do estabelecimento era Akiko Motofuji.
O marido de Akiko, chamado Tsuda Nobutoshi, foi “um artista com
quem Hijikata colaborou e que, consoante a crítica de dança Kuniyoshi Kazuko, foi quem começou, de fato, a formulação de uma
dança das trevas” (GREINER, 2015, p. 139), como mais tarde seria
nomeada, ao menos no início, a dança proposta por Hijikata (ou seja,
ankoku butô ou dança das trevas). Esse estúdio passou a ser de
Hijikata desde quando ele e Akiko começaram a viver juntos, sendo
60
sumário
Aos que possuírem maior interesse a respeito de Yoshito Ohno, há uma dissertação de
mestrado a respeito desse artista intitulada Hana to Tori: a trajetória expressivo-poética de
Ohno Yoshito, de Ana Chiesa Yokoyama.
147
desativado pouco tempo antes do falecimento de Akiko Motofuji, em
outubro de 200361 (GREINER, 2013b; GREINER, 2015).
A performance62 reconhecida como sendo inaugural da dança
butô foi Cores Proibidas (1959). Ao que tudo indica, essa obra teve
como inspiração o romance – de mesmo nome – de Yukio Mishima e
de alguns escritos de Jean Genet (GREINER, 2015). Após essa apresentação, Tatsumi Hijikata dá continuidade a muitos outros projetos,
abastecendo-se e inspirando-se a partir de fontes diversas, além de
apresentar tantos outros espetáculos e performances.
Contudo, ao invés de se propagar a respeito da complexidade
do butô, o que foi sendo estabelecida foram certas imagens e ideias,
relacionando-o com comentários do tipo:
1 – Butô é o inconsciente.
2 – Butô está para os primórdios da humanidade assim como
para o mundo pós-atômico, dialogando com a Física Moderna.
3 – A ancestralidade do butô está nas tragédias de Hiroshima
e Nagazaki.
4 – A ancestralidade do butô está no útero materno.
5 – A ancestralidade do butô está no caminhar dos agricultores
japoneses da região de Tôhoku.
6 – Butô é a negação das tradições ocidentais e orientais.
7 – Butô é o expressionismo alemão à la japonesa. (GREINER,
1998, p. 01-02, itálico do autor).
sumário
61
“Até esse momento, contou com uma história bastante agitada sendo utilizado como sala
de cinema, sala de ensaio, clube noturno (Bar Gibbon) e teatro.” (GREINER, 2013b, p. 04).
62
“A performance está ontologicamente ligada a um movimento maior, uma maneira de se
encarar a arte; A live art. A live art é a arte ao vivo e também a arte viva. É uma forma de
se ver arte em que se procura uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o
espontâneo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado.” (COHEN, 2002, p. 38).
Ademais, “a performance é basicamente uma linguagem de experimentação, sem compromissos com a mídia, nem com uma expectativa de público e nem com uma ideologia
engajada. Ideologicamente falando, existe uma identificação com o anarquismo que resgata a liberdade na criação [...] A apresentação de uma performance muitas vezes causa
choque na platéia (acostumada aos clichês e à previsibilidade do teatro). A performance é
basicamente uma arte de intervenção, modificadora, que visa causar uma transformação
no receptor.” (COHEN, 2002, p. 45-46).
148
Já dentre os movimentos estéticos existentes, o butô é fortemente associado ao Surrealismo, por sua busca, hipoteticamente falando,
pela não-razão e pela ausência de forma e de códigos, ou relacionado
com o movimento Dadá, possivelmente por considerá-lo uma dança
em que não há uma conclusão definitiva ou por identificar uma busca
pelo espírito infantil (GREINER, 1998).
Entretanto, vale ressaltar que Tatsumi Hijikata não alicerçou-se
em um único movimento artístico, embora possuísse grande interesse
pela literatura. Além disso, apesar do butô ter surgido no pós-guerra,
não foi um produto direto dessa circunstância em função de outras
condições terem sido importantes, como as experiências pessoais, as
dificuldades vividas na região onde nasceu e a afinidade com outros
filósofos e artistas que “também estavam mobilizados pela questão do
esgotamento do corpo e da vida.” (GREINER, 2020, p. 02).
Ao apreciarmos o projeto artístico como um todo, podemos
considerar que Hijikata contribuiu, nas décadas seguintes à Segunda
Guerra Mundial, para uma sequência de episódios que marcaram a
investigação japonesa que tinha como foco o corpo, em virtude de
ser um contrassenso
se subjugar às referências de corpo nacional ou de corpo do
imperador que haviam marcado a tradição japonesa desde o
período medieval. A situação no final dos anos 1950 era claramente outra. Sem hegemonia ideológica e abrigado por cidades
em ruínas, o ideal de corpo nacional no Japão estava claramente ameaçado. (GREINER, 2015, p. 142).
O butô, em vista disso, surge como uma espécie de resposta
para os discursos dominantes:
“Uma resposta bastante diferente do estilo japonês conhecido [...]. A polidez asséptica e bem comportada é revirada pelo
avesso.” (GREINER, 1998, p. 16).
Para tanto, Tatsumi Hijikata necessitou buscar diversas referências e fontes de estudo para formular sua dança.
sumário
149
FONTES DE ESTUDO
DE TATSUMI HIJIKATA
Pesquisas mais recentes têm mostrado que além do interesse
por diferentes estilos de dança – como o balé de Vaslav Nijinsky, os
solos de Mary Wigman e as danças folclóricas japonesas –, Tatsumi
Hijikata, inicialmente, foi impactado pela apresentação de Katherine Dunham, chegando a testar movimentações observadas na obra
dessa dançarina, coreógrafa e antropóloga afro-americana, articulando o jazz e a cultura negra ritual em sua pesquisa (GREINER, 2008;
GREINER, 2015; ARAMITSU, 2018).
Tendo o jazz como referência, na coreografia Shisei “Os bailarinos trabalhavam uma postura em que só se viam as costas e
as plantas dos pés.” (GREINER, 2015, p. 145). Mas, com base na
movimentação observada na obra de Katherine Dunham, Hijikata
chegou a pintar o “seu torso de negro e fazia um movimento que
ia de baixo para cima do estômago, como um objeto estranho que
promovesse movimentos peristálticos.” (GREINER, 2015, p. 145).
Esse aspecto também pode ser visto na obra inaugural do butô,
Cores Proibidas, pois Hijikata pintou o corpo com tinta preta, escolheu uma melodia63 tocada com uma gaita, além da presença
de uma galinha64 em um momento da performance, indicando uma
possível referência das culturas afro-diaspóricas (ARIMITSU, 2018).
sumário
63
Essa melodia, provavelmente, estava presente em uma das versões de Cores Proibidas
– pois, segundo os textos de Nario Goda (apud UNO, 2018), houve mais de uma versão
dessa performance –, quando contou com a participação de Kazuo Ohno, em razão da
obra inaugural não ter possuído música. Em vista disso, Greiner (1998, p. 19) pontua que
“A dança levava cerca de cinco minutos e não tinha música.”. Já conforme Aramitsu (2018,
p. 38, tradução nossa) “Hijikata e Ohno dançaram nesta peça ao som de uma ‘música
levemente de blues de uma gaita (composta por Yasuda Shugo)’, que acrescentou uma
dimensão sonora à ‘negritude’ da performance.”. Do original: “Hijikata and Ohno danced
in this piece to the ‘faintly bluesy tune of a harmonica (composed by Yasuda Shugo)’,
which added a sonic dimension to the ‘blackness’ of the performance.”. Mas, Uno (2018)
somente afirmou que uma gaita tocou um blues nesta obra.
64
A presença da galinha, na performance de Hijikata, pode estar relacionada com o show, provavelmente visto por ele, de Katherine Dunham em Tóquio, no qual havia uma “dança que
apresentava com destaque a matança sacrificial de uma galinha.” (ARIMITSU, 2018, p. 41, tradução nossa). Do original: “dance that prominently featured the sacrificial killing of a chicken”.
150
No entanto, vale evidenciar que o vínculo entre a galinha e as pesquisas corporais de Tatsumi Hijikata também está associado a uma
preocupação com o corpo morto:
Não se trata de pensar na morte em si, que fica difícil de provar, já
que uma experiência, de fato, implicaria na não-existência, sobre
a qual ninguém pode adivinhar. Por isso, a proposta não era pensar no conceito abstrato mas no “corpo” morto. Observando um
cadáver em degradação, ainda se vê uma série de movimentos
da deterioração do corpo, sob a ação das bactérias, da natureza,
enfim. Não há mais a atuação do cérebro comandando os movimentos. Mas eles existem e são visíveis, pelo menos por algum
tempo. Este corpo que se movimenta, biologicamente em degradação, era uma das matérias-primas fundamentais de Hijikata
[...] Ele também fazia o exercício de observar uma galinha, depois
que a cabeça era cortada, e ela continuava se movimentando durante um certo tempo. Sob este ponto de vista, a morte é o fim do
comando cerebral. Mas os movimentos do corpo não partem só
do cérebro, há processos que continuam, conquistando pequenas existências de outra qualidade, ainda que temporariamente,
após a morte. (GREINER, 1998, p. 27, grifo nosso).
Para além do jazz, ao que se sabe, as fontes de estudo de Tatsumi Hijikata foram, também, fortemente voltadas à literatura. Principalmente por meio da amizade com Tatsuhiko Shibusawa e Yukio Mishima
que muitos autores foram apresentados a Hijikata, como Jean Genet,
Conde Lautréamont, Arthur Rimbaud, Henri Michaux, George Bataille,
entre outros, integrando elementos vindos da literatura e da contracultura francesa, associando à sua pesquisa várias perspectivas da
sexualidade, crueldade e criminalidade (PERETTA, 2015).
Outro autor francês que tocou profundamente Tatsumi Hijikata
foi Antonin Artaud. De acordo com Marenzi (2018), podemos considerar que esse encontro com Artaud ocorreu de duas maneiras: a primeira, foi através das aulas de mímica e trabalho colaborativo65 com
65
sumário
“Ao treinar a ligação entre imaginação e movimento e usar sugestões literárias, Oikawa
elaborou um método de ensino que influenciou muito Hijikata e que até hoje é conhecido
pelo nome de Sistema Artaud” (BARBER, 2005, p. 27-28 apud MARENZI, 2018, p. 143,
tradução nossa). Do original: “By training the link between imagination and movement and
using literary suggestions, Oikawa put together a teaching method that very much influenced Hijikata and that to this day is known under the name of Artaud System.”.
151
Hironobu Oikawa – fundador do Artaud-kan em Tóquio – que estudou
em Paris, adotando técnicas do mesmo ambiente em que Artaud havia
se desenvolvido como ator; a segunda, foi por intermédio de Tatsuhiko
Shibusawa, estudante e tradutor da língua francesa, servindo como
mentor para o pensamento de Artaud.
Apesar do foco, sobretudo, na literatura e nos autores franceses, Hijikata também cultivou o interesse pelo surrealismo introduzido,
particularmente, pelo crítico e poeta japonês Shûzô Takiguchi. Hijikata
ficou “encantado pela escrita automática, pelos deslocamentos, pelo
uso dos sonhos, pela colagem de imagens e pelas palavras.” (UNO,
2018, p. 52), dispondo “a língua japonesa a ‘torções’ não habituais.
Perverteu a gramática e toda e qualquer ordem preestabelecida.”
(GREINER, 2015, p. 144). Assim, o que Takiguchi realizou com as
palavras, Hijikata testou com o corpo.
Contudo, desde o espetáculo A Revolta da Carne até o Projeto
do Kabuki de Tôhoku, período que corresponde ao final da década de
1960 até o início da década de 1970, houve uma predileção em elucidar como sendo uma fase que representou o retorno ao Japão, uma
espécie de regresso aos gestos e ao corpo japonês, ou como uma
busca pela emancipação da contaminação ocidental (UNO, 2018).
Hijikata, em 1967, retorna a sua terra natal, e essa volta pode
ser compreendida como uma ocasião em que lidou com novas
possibilidades. Kuniichi Uno66 (2018) revela que, quando regressava dos seus estudos na Europa, Hijikata apreciava ouvi-lo falar sobre os acontecimentos na França, na filosofia e na literatura, sendo
66
sumário
Na obra Hijikata Tatsumi: pensar o corpo esgotado (2018), Kuniichi Uno relata que, quando
retornou ao Japão, foi por intermédio de Tanaka Min que conhece Tatsumi Hijikata: “Em
fevereiro de 1983, eu havia retornado ao Japão, depois de uma temporada de seis anos e
meio na França, e encontrei Hijikata, que me foi apresentado por Tanaka Min. Imediatamente após esse primeiro encontro, eu lhe ofereci uma fita gravada dessa peça [Para acabar
com o juízo de deus] com um ensaio que tinha escrito sobre Artaud. Hijikata me contou da
sua fascinação quando leu Héliogabale, cujos extratos haviam sido traduzidos por seu grande amigo Shibusawa Tatsuhiko. Nosso encontro foi sem dúvida a ignição para que Hijikata
prestasse uma atenção singular em Artaud.” (UNO, 2018, p. 248, itálico do autor).
152
muito suscetível ao “corpo sem órgãos” proposto por Artaud. Uno
considera que a preservação de uma imagem potente de Artaud nas
pesquisas de Hijikata foi, mais uma vez, ocasionada nesse ínterim.
Esse aspecto pode ser notado pelo seu trabalho, não finalizado, em
conjunto com Tatsumi Hijikata nomeado Experiment with Artaud. Em
função disso, Uno alega que “Seus interesses não estavam de modo
algum limitados a um ‘retorno ao Japão’.” (UNO, 2018, p. 142).
Kuniichi Uno não rejeita o fato de Tatsumi Hijikata manter ativas
as experiências da infância em sua terra natal, mas Hijikata também era
mobilizado pela iminência em ser moderno para possibilitar a liberdade
do corpo, pois sua arte estava “suspensa entre esses dois pólos, essas
duas necessidades que sempre ativaram sua criação. A dança não cessa de colocar questões entre ambas as motivações, sem jamais assegurar formas ou técnicas elaboradas e matriciais.” (UNO, 2012, p. 46).
Então, a dança de Hijikata não estava limitada a uma procura
pela sua origem ou busca de identidade, tampouco, a favorecer as
referências orientais em detrimento das ocidentais e vice-versa. Essa
oposição entre Ocidente e Oriente tinha um sentido intenso e conflituoso, mas criativo: “Não vivemos mais na mesma distribuição geográfica
e histórica. E o próprio Hijikata nunca particularizou ou privilegiou o
Japão em sua busca.” (UNO, 2018, p. 140).
Ainda que Tatsumi Hijikata não tenha procurado desenvolver
alguma espécie de “vocabulário”, padrão de movimento ou passos
de dança, a partir da década de 1970, nos últimos anos de sua vida,
elaborou um sistema de notação denominado butô-fu: “um sistema de
notação de movimentos com base em metáforas” (GREINER, 2015, p.
142), como uma forma de registrar seu processo criativo.
Seu caderno de notação era repleto de imagens: atletas, figuras
de família, rachaduras de muro, corvos, pinturas de Francisco Goya,
Willem De Kooning, Pablo Picasso, Gustav Klimt, Leonardo da Vinci,
citando apenas alguns. Mas, também haviam onomatopeias, poemas
e outras anotações. De acordo com Uno (2018), esses registros eram
sumário
153
feitos constantemente com base na observação atenta de uma imagem e da sua tradução em movimentos.
Ao invés de enrijecer o processo de pesquisa, o corpo no contexto butô “foi concebido, assim, como um processo inacabado, perecível, indistinto dos diversos ambientes onde constituiu (rua, estúdio,
campo, mídia, etc.).” (GREINER, 2015, p. 143). Hijikata chegou a definir
sua dança com a seguinte formulação: “um cadáver que se coloca em
pé, arriscando a própria vida.” (UNO, 2018, p. 73).
Tatsumi Hijikata buscou suas fontes de estudo e sua inspiração
em diferentes lugares, possivelmente para não se conformar com alguma maneira de dançar. Desse modo, podemos supor que o butô
compromete-se com o devir, ao inacabamento, tendo como foco o
processo de criação e não o produto.
AS POSSÍVEIS ORIGENS
DA FASCINAÇÃO PELO BUTÔ
As primeiras apresentações de butô no Ocidente ocorreram a
partir do final da década de 197067. Kazuo Ohno – que trabalhou em
colaboração com Tatsumi Hijikata, além de ter sido um importante
divulgador do butô pelo mundo –, foi o responsável por gerar grande interesse em artistas brasileiros pelo butô (GREINER, 2018). No
Brasil, Kazuo Ohno apresentou-se em três oportunidades, a primeira
no ano de 1986, uma realização do Intercâmbio Cultural Brasil-Japão-Argentina, com o apoio cultural da Fundação Japão e do SESC. Já
a segunda visita ocorreu em 1992 e a última em 1997 (ABEL, 2017).
67
sumário
“A primeira apresentação de butô realizada no Ocidente O Último Éden, dirigida por Murobushi Kô e executada por Ikeda Carlotta, apresentada na França em 1978. Mesmo ano
em que Ashikawa Yoko apresentou-se no Festival d’Automme.” (ABEL, 2019, p. 62, itálico
do autor). Já Kazuo Ohno, “Em 1980, estreou A mesa no Festival de Nancy e, a partir de
então, passou a viajar pelo mundo inteiro, sendo reconhecido como um dos maiores
intérpretes de todos os tempos.” (GREINER, 2015, p. 116, itálico do autor).
154
Desde a sua primeira apresentação no Brasil, Kazuo Ohno tornou-se grande referência no cenário artístico brasileiro, fazendo com
que muitos artistas, descendentes e não descendentes de famílias
japonesas, reavaliassem seus conceitos sobre a dança, e alguns
chegaram ao ponto de irem estudar butô pessoalmente com Ohno
no Japão. Além disso, no início, as fontes que vinham ao Brasil a
respeito do butô eram não mais que poucos artigos e livros dos estudos realizados por pesquisadores, principalmente, da França e dos
Estados Unidos, fora as cópias de vídeo, de péssima qualidade, das
performances. Sem falar nos equívocos cometidos na primeira turnê,
quando Kazuo Ohno foi citado como o criador da dança butô, sem
mencionar o nome de Tatsumi Hijikata, levando certo tempo para que
houvessem maiores esclarecimentos (GREINEIR, 2018).
Apesar de ter causado grande inspiração e suas três visitas
terem sido extremamente importantes para a divulgação do butô no
Brasil, Kazuo Ohno não iniciou um processo de formação de atores
e dançarinos. Na verdade, quando falamos sobre o butô no Brasil,
ele já estava presente antes do grande impacto que Ohno causou
no ano de 1986. Isso porque, segundo Greiner (2018), um dos primeiros68 acessos à dança butô no país foi, particularmente, através
do artista plástico e diretor japonês Takao Kusuno (1945-2001) que
desenvolveu um movimento único, possuindo como base o butô e
outros treinamentos japoneses, concebendo uma versão própria de
butô nascido no Brasil e materializado por artistas brasileiros.
68
sumário
Conforme Greiner (2018), a presença do butô no Brasil ocorreu também por intermédio
da chegada da dançarina Akiko Ohara na comunidade Yuba, localizada em Mirandópolis
(São Paulo), em 1961. Essa dançarina estava presente no princípio do butô no Japão e
participou dos primeiros experimentos de Hijikata. Nos seus trabalhos é difícil identificar
alguma referência ao butô, além de ter feito um esforço intencional para se distanciar de
sua filosofia e estética. Sem contar que seu grupo em Yuba trabalha em uma perspectiva
diferente do butô. Mas, em todo caso, foi a primeira pessoa a se estabelecer no Brasil que
possuía experiências com o butô.
155
EXPERIÊNCIAS INICIAIS
Takao Kusuno69 é natural de Yubari, localizada na província de
Hokkaido no Japão. Após um momento de incertezas, Kusuno acaba
decidindo se estabelecer no Brasil em 1977. Não se sabe ao certo quais
foram suas experiências com o butô em sua terra natal. A principal colaboradora em suas produções foi sua esposa Felícia Ogawa (19451997), que sempre o auxiliou tanto na direção e iluminação quanto na
pesquisa sonora e produção cultural. Nascida em São Paulo, possuía
formação em filosofia e sociologia da arte e do teatro (ABEL, 2017).
Nos primeiros anos, Kusuno nunca usou a palavra butô para
nomear o que fazia, mas introduziu aos poucos “alguns exercícios de
percepção corporal e explorou cuidadosamente as possibilidades criativas de cada intérprete.”70 (GREINER, 2018, p. 295, tradução nossa),
além dos seus trabalhos iniciais apresentarem ritmos e velocidades
extremamente lentos, muito diferente do que o público brasileiro estava
habituado. Ou melhor, para Takao Kusuno, “uma das formas de lidar
com o butō seria usá-lo como um operador para conhecer o corpo e a
sua própria história.” (GREINER, 2017, p. 120).
De acordo com Abel (2017), os dois primeiros espetáculos de
Takao Kusuno, no ano de 1978, foram Transformações – realizado no
Museu de Arte de São Paulo (MASP) – e Corpo 1 – encenado no Teatro
FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) também em São Paulo.
Mas, Takao Kusuno também teve um outro importante colaborador entre seus dançarinos: Denilto Gomes71 (1953-1994). Com Takao
sumário
69
Mais detalhes a respeito de seus trabalhos realizados no período em que morou no Japão
podem ser vistos na dissertação de mestrado, de Thiago Abel, intitulada (Po)ética do
ctônico: Primeiros movimentos do butô no Brasil.
70
Do original: “some exercises of body perception and carefully explored the creative possibilities of each interpreter.”
71
Na dissertação de mestrado de Andréia Vieira Abdelnur Camargo, sob o título Procura-se
Denilto Gomes: um caso de desaparecimento no jornalismo cultural, é possível encontrar
a respeito da trajetória artística de Denilto Gomes. Mas, além disso, “Esta dissertação
utiliza a ação do jornalismo cultural em relação à obra do bailarino Denilto Gomes como
um estudo de caso para discutir o papel dos meios de comunicação na cultura da dança
do Brasil.” (CAMARGO, 2008, n.p.).
156
Kusuno, Denilto Gomes foi guiado para a descoberta de um caminho
singular na dança, alcançando grande sucesso nas décadas de 1980
e 1990. Porém, essa parceria foi interrompida por conta de seu falecimento em 1994, aos 41 anos de idade (BAIOCCHI, 1995).
De 1980 a 1990, Kusuno criou e dirigiu muitos outros espetáculos. Mas, em 1995, Takao Kusuno e Felícia Ogawa criaram a Cia.
Tamanduá de Dança Teatro e “pela primeira vez, apresentaram seu
trabalho como butoh.”72 (GREINER, 2018). Nesse espetáculo que
marcou a formação da companhia, O Olho do Tamanduá (1995), foi
configurado “pensando no corpo no Brasil”, além de propor “a presença de um indígena em cena.” (GREINER, 2017, p. 120). Evidenciou um contexto de alteridade, representando no palco as várias
etnias e “Buscou com seus dançarinos-atores paisagens da alma
brasileira, buscou entender essa identidade multifacetada na sua unidade poética.”73 (MIRALÉ, s.d, n.p.). A última criação da companhia e
de Kusuno foi Quimera – O Anjo Vai Voando (1999).
PARA ALÉM DE TAKAO KUSUNO
A década de 1990 foi marcada por uma espécie de febre a respeito da dança butô, sendo mais localizada em São Paulo. Segundo
uma reportagem74 da Folha de S.Paulo, do dia 18 de agosto de 1991,
nesse período havia pelo menos quarenta artistas brasileiros estudando butô. Pelo medo e receio do modismo, que foi de certo modo
sumário
72
Do original: “for the first time they presented their work as butoh.”. Além disso, tal constatação pode ser verificada em um texto de Felícia Ogawa – presente no catálogo do
espetáculo O Olho do Tamanduá – em que diz: “Seu último trabalho, O Olho do Tamanduá,
é considerado um espetáculo de dança Butoh brasileiro.”. Disponível em: https://emiliesugai.com.br/o-olho-do-tamandua-o-butoh-e-o-rito/. Acessado em: 27 Jul. 2021.
73
Disponível em: https://emiliesugai.com.br/a-quimera-de-takao-e-a-utopia-do-tamandua/.
Acessado em: 27 Jul. 2021.
74
Disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=11424&anchor=4899214&origem=busca&originURL=&pd=be40f800f4b79ad61792ba5f23c91439.
Acessado em: 21 de Mar. 2021.
157
inevitável, Takao Kusuno nomeava, no início, o que introduziu “na
cena brasileira [...] como ‘dança moderna’.” (MIRALÉ, 1995, p. 158).
Na perspectiva de Kusuno, não poderia ser considerado que
suas obras proporcionavam experiências de butô em razão de seus
dançarinos não terem tido condições adequadas para trabalhar com
essa dança pela falta, do que ele chamava, de shugyô75 – ou treinamento disciplinado. Isso não ocorria pela ausência de comprometimento, mas como Kusuno não tinha nenhum tipo de auxílio financeiro
para conseguir pagar seus dançarinos, eles treinavam quando podiam,
apenas algumas horas na semana, impossibilitando o aprofundamento
da pesquisa e não desenvolvendo a atenção necessária para aprender
o butô. Nesse sentido, “Essas experiências foram inspiradas por imagens de butoh; no entanto, seria arriscado considerá-las como ‘obras
de butoh’.” 76 (GREINER, 2018, p. 296, tradução nossa). Porém, apesar
da posição de Kusuno, muitos dançarinos que trabalharam com ele
consideram que o que desenvolvem é uma experiência de butô.
Independentemente dessas posições, é importante destacar
que Takao Kusuno deixou um legado para muitos artistas brasileiros,
gerando marcas profundas. Estas marcas, transformaram-se em uma
espécie de guia, orientando esses artistas em suas carreiras e na condução de seus trabalhos artísticos.
Muitos deles continuam atuando no cenário artístico e são figuras importantes, como: Ismael Ivo – já possuiu reconhecimento internacional e trabalhou como diretor no Balé da Cidade de São Paulo até
o ano de 2020, mas, em algumas entrevistas, já comentou a respeito
das experiências com Kusuno; Emilie Sugai – continua compondo
sumário
75
Conforme um texto presente no site oficial da dançarina de butô Emilie Sugai, shugyô
também pode significar severidade, no sentido de realizar uma imposição ao corpo feita
de maneira rigorosa, para proporcionar o desenvolvimento do praticante, essencial para
o dançarino de butô. Disponível em: https://emiliesugai.com.br/a-dificil-arte-de-dar-aulas-de-butoh/. Acessado em: 26 Jul. 2021.
76
Do original: “These experiences were inspired by butoh images; however, it would be risky
to consider them as ‘butoh pieces’.”.
158
espetáculos e performances tendo sempre como base a metodologia
de Takao Kusuno, sendo o espetáculo AKA uma de suas últimas obras
de dança butô, com estreia no ano de 2021; Patrícia Noronha – é
pesquisadora e professora de dança e teatro, realizou investigações
de mestrado e doutorado, ambas na Universidade de São Paulo, tratando a respeito da relação entre o Ma e a arte, algo que aprendeu
com Kusuno; Dorothy Lenner – mesmo com “Os cabelos brancos e
os gestos adaptados pela limitação física da idade”77 (SESC | SÃO
PAULO, 2017), ainda realiza suas pesquisas artísticas, além de carregar consigo os ensinamentos de Kusuno; José Maria Carvalho – é
fundador e diretor do Espaço Viver Dança & Cia., onde possui o Viver
Núcleo de Dança Pesquisa e Criação, em que desenvolve investigações com dança contemporânea e butô; Key Sawao e Ricardo Iazzeta
– são fundadores e diretores do Núcleo KeyZetta e Cia., onde trabalham com dança contemporânea, mas, para o trabalho deles, a dança
butô experimentada por intermédio de Kusuno foi essencial.
OUTRAS EXPERIÊNCIAS DE BUTÔ
Paralelamente ao empenho de Takao Kusuno, algumas artistas
chegaram a estudar o butô no Japão, sendo o ponto de partida para a
divulgação de importantes compreensões a respeito do butô no Brasil
(GREINER, 2018). Um exemplo é a atriz, dançarina, coreógrafa e diretora-fundadora da Taanteatro Companhia – Maura Baiocchi – que, em
1987, estudou por cinco meses com Kazuo Ohno e Min Tanaka78. No
seu retorno ao Brasil, ministrou oficinas e publicou, em 1995, o livro Butoh: danças veredas d’alma, um referencial teórico pioneiro sobre butô,
colaborando com a apresentação dessa expressão artística no Brasil.
sumário
77
Disponível em: https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/10418_A+BAILARINA+DOROTHY+LENNER+APRESENTA+A+PERFORMANCE+WABI+SABI. Acessado em:
26 Jul. 2021.
78
Foi dançarino de balé e dança moderna. Mais tarde, deu início a uma investigação mais
experimental, além de ter estudado com Tatsumi Hijikata.
159
Já a atriz Ligia Verdi frequentou as aulas semanais no estúdio de
Kazuo Ohno no período de 1987 até os anos de 1990. Tal experiência
resultou em uma dissertação de mestrado realizada na Universidade
de São Paulo e finalizada em 2000, com o título O butô de Kazuo Ohno:
através das transcrições de aulas, faz-se a síntese das principais características da filosofia do butô de Kazuo Ohno. Sua pesquisa serviu
de referência para vários artistas e pesquisadores, muito pelo fato de
possuir entrevistas transcritas com Kazuo Ohno e Yoshito Ohno.
Outra artista, poeta e dançarina é Ciça Ohno que, após a graduação em dança na Universidade de Campinas, foi estudar com Kazuo
Ohno de 1991 a 1994. De modo simultâneo, também estudou o teatro
nô com Osamu Kobayakawa, além do seitai-ho e do-ho com Masanori
Sasaki e Toshi Tanaka. Em 2001, Ciça e Tanaka criam o projeto Jardim
dos Ventos, um centro que oferece cursos e realiza apresentações.
Apesar desse projeto não focar no butô em si, em algumas de suas
apresentações é possível identificar certos elementos da dança butô.
O último exemplo seria a coreógrafa brasileira Marta Soares que
foi estudar, em 1995, no estúdio de Kazuo Ohno por conta de uma
bolsa para artistas da Japan Foundation e ficou por um ano. Apesar de
não classificar sua dança como butô, considera que o butô foi fundamental para o desenvolvimento de seu trabalho, em virtude do contato
com Ohno ter funcionado “antes de mais nada, como um operador de
desestabilização das informações relativas à dança contemporânea
que ela [Marta Soares] havia construído em seu corpo depois de anos
de estudo em Nova York” (GREINER, 2013a, p. 62).
O que foi apresentado até o momento não foi uma historiografia geral do butô no Brasil, mas algumas experiências pioneiras de
artistas brasileiros com o butô que tiveram orientações de artistas imigrantes, como Takao Kusuno, ou que foram por conta própria estudar
no Japão e voltaram para transmitir o que aprenderam lá. Vale ressaltar que após o período de grande efervescência do butô, momento
que corresponde entre o fim dos anos de 1980 e a década de 1990,
sumário
160
houve novas experiências de butô de outros artistas e grupos. Isto é,
as reverberações das imagens do butô ainda permanecem vivas de
diferentes formas e em diferentes lugares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O butô já foi muitas vezes explicado como uma dança que não
possui códigos, uma espécie de não-dança, uma dança que vem do
interior ou do inconsciente, um produto da devastação das bombas nucleares, entre outras alegações. O episódio da bomba atômica pode até
ter apontado possibilidades, mas não seria adequado resumir o butô
como sendo apenas um produto desse evento. Ou ainda, associá-lo a
certas ideias ou relacioná-lo com algum movimento artístico específico.
Embora sua origem seja complexa e seus reais propósitos sejam
difíceis de serem compreendidos, Tatsumi Hijikata propôs um corpo de
carne, perecível e impermanente, que dança com a presença constante
da morte. Uma experiência radical e singular, e não um modelo estético
a ser seguido. Mais do que uma dança em si, instaurou um pensamento
“no mundo a partir da apresentação do que seria um corpo em crise em
suas múltiplas possibilidades.” (GREINER, 2013a, p. 65).
No Brasil, é possível dizer que a grande empatia pelo butô não se
deve por uma mera curiosidade ou pelo desejo em copiar um modelo,
mesmo que já tenha ocorrido de alguma maneira tal situação. Mais do
que uma fascinação somente pelos aspectos estéticos, o impacto mais
profundo foi devido à concepção filosófica e política sobre o corpo tão
presente no butô. Porém, Greiner (2013a, p. 66) comenta que “poucos
foram os artistas que incorporaram, antropofagicamente, algumas de
suas questões mais importantes”, sem cair na mera imitação.
De qualquer maneira, seja o butô de Tatsumi Hijikata, Kazuo
Ohno, Takao Kusuno ou de qualquer outra pessoa, essa dança ainda é
sumário
161
significativa para muitos artistas independentes, grupos e companhias
de dança espalhadas pelo Brasil, servindo como base, referência ou
inspiração para realizar a preparação corporal ou criar seus espetáculos. Provavelmente, o butô é tão enigmático e admirável para muitos
artistas brasileiros porque ele possibilita sair da zona de conforto e ir
em busca de outros movimentos, outros modos de se expressar e de
pensar sobre o corpo e a dança até então inimagináveis.
REFERÊNCIAS
A bailarina Dorothy Lenner apresenta a performance Wabi Sabi. SESC | SÃO
PAULO. Disponível em: https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/10418_
A+BAILARINA+DOROTHY+LENNER+APRESENTA+A+PERFORMANCE
+WABI+SABI. Acessado em: 26 Jul. 2021.
ABEL, Thiago. (Po)éticas do ctônico: primeiros movimentos do Butô
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Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, Campinas, 2017.
ABEL, Thiago. Reflexões (po)éticas na dança butô. Revista Ephemera, v. 2,
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BAIOCCHI, Maura. Butoh: dança veredas d’alma. São Paulo: Palas Athena, 1995.
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Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, São
Paulo, 2008. Disponível em: https://ariel.pucsp.br/handle/handle/5016.
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sumário
164
HISTÓRIA
HISTÓRIA
Capítulo 8
8
“O mais Curioso e o mais Delicioso País do Mundo”: a viagem e
as observações de um brasileiro sobre o Japão no século XIX
Kelly Yshida
Kelly Yshida
“O mais Curioso e o mais
Delicioso País do Mundo”:
a viagem e as observações
de um brasileiro sobre
o Japão no século XIX
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.8
Em 1895 foi assinado o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre Brasil e Japão, e em 1908 o navio Kasato maru chegou ao
porto de Santos, iniciando oficialmente a imigração japonesa no Brasil.
Entretanto, alguns contatos ocorreram anteriormente, como foi o caso
dos náufragos do navio Wakamiya maru que desembarcaram no Brasil em 1803 acompanhando uma tripulação russa (GAUDIOSO, 2003).
Mas é de quando o Japão refazia seu contato com o mundo exterior
após a longa política de isolamento, na segunda metade do século
XIX, que encontramos relatos de brasileiros que viajaram ao país e
registraram suas impressões. Um deles, possivelmente o primeiro, foi
o estudante Francisco Antônio de Almeida79.
Almeida foi ao Japão no ano de 1874 em uma missão científica
que partiu da França. Isto foi possível, pois em 1872, ele e Julião de
Oliveira Lacaille, vinculados ao Imperial Observatório Astronômico do
Rio de Janeiro, foram enviados para estudar astronomia na França.
Em julho de 1874, o Ministério dos Negócios da Guerra do Brasil divulgou a notícia de que custaria o envio de Almeida para acompanhar
os pesquisadores franceses na observação da passagem do planeta
Vênus pelo Sol, que seria visível em Nagasaki, no Japão, no mês de
dezembro daquele mesmo ano.
De acordo com o Ministério da Guerra, o estudante brasileiro
deveria elaborar um “relatório ou memória”, mas Almeida nos deixou
duas publicações decorrentes desta empreitada: o livro científico A paralaxe do sol e a passagem de Vênus (1878) e o relato de viagem intitulado Da França ao Japão: narração de viagem e descrição histórica,
usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países
da Ásia (1879) 80. Neste segundo podemos acompanhar as percepções do viajante sobre o Japão em seus primeiros anos de abertura ao
exterior, após mais de duzentos anos de isolamento.
sumário
79
Seu nome completo é Francisco Antônio de Almeida Junior, entretanto é recorrente a variação do uso do último nome. Utilizamos apenas Francisco Antônio de Almeida, pois é como
está na autoria de seu livro Da França ao Japão: narração de viagem e descrição histórica,
usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia (1879).
80
Os títulos de livros e trechos transcritos de documentos oitocentistas foram atualizados
para o português brasileiro contemporâneo, a fim de facilitar a compreensão.
167
Da França ao Japão (1879) não é um livro científico, mas o viajante-cientista considerava que suas observações seriam feitas a partir
de uma análise inicial das primeiras impressões, uma segunda para
confirmação dos dados e, ao final, concluiria com uma interpretação
do “ponto de vista da moderna civilização” (p. 31), cujo parâmetro era
a Europa. Isto já demonstra que o relato não é imparcial. Almeida era
um homem de vinculações cristãs, positivistas e republicanas, e a narrativa sobre outros lugares, pessoas, governos, hábitos eram formadas
de acordo com seus os valores, crenças e dentro das possibilidades
interpretativas do mundo em que vivia. Portanto, mesmo que utilizasse
de recursos como notas explicativas e citações, indícios de um texto
elaborado após a viagem, o relato não era neutro.
No Brasil, o livro foi anunciado em diversos jornais, sendo destacado especialmente por sua qualidade gráfica e pelo ineditismo
do tema. Entre 1879 e 1880, os anúncios criavam expectativas em
torno da publicação que chamava a atenção por ser “a primeira vez
que no Brasil se faz cromos em doze cores” (GAZETA DE NOTICIAS,
12/02/1879). Este era um importante chamariz para o público brasileiro, no exterior as edições ilustradas de relatos de viagem faziam
sucesso e auxiliavam os leitores a satisfazerem suas curiosidades,
tornando-se um mercado lucrativo.
As ilustrações foram produzidas na Imperial Litografia de S.
Speltz e eram assinadas por três reconhecidos desenhistas estrangeiros que atuavam no Brasil: Alexandre Speltz, Bordalo Pinheiro e
Joseph Mill. O livro trazia figuras de pessoas da China, Aden, Ceilão e
Japão. Havia também um manifesto publicado pelos chineses contra
os estrangeiros e um mapa do Japão, ambos dobrados por terem
dimensões maiores do que as páginas do livro. Eram reproduções de
imagens que percorreram percursos distintos, havia reproduções de
outros relatos, de fotografias e até mesmo de publicações de jornais,
ou seja, não necessariamente foram feitas ou adquiridas durante a
viagem de Francisco Antônio de Almeida.
sumário
168
Ao total o relato foi composto por dezoito capítulos, onde o autor narrou sua viagem a bordo dos navios Ava, Tanais, Golden Age,
Neva, La Provence, passando por diversas localidades como Marselha e Toulon, Nápoles, Cairo, Suez, Aden (Iêmen), Ponta de Galles,
Ceilão (Sri Lanka), Malaca, Singapura, Saigon (Vietnã), Hong Kong,
Macau, Pequim, Shangai, Yokohama, Edo (Tóquio) e Nagasaki. Nas
paradas acompanhava a expansão imperialista inglesa, francesa e estadunidense, fazia suas descrições e julgamentos, trazia curiosidades
e referências de autores consagrados, e demonstrava aguardar ansiosamente pela chegada ao destino final: o Japão.
O JAPÃO VISTO E VIVIDO POR
FRANCISCO ANTÔNIO DE ALMEIDA
A viagem rumo ao Japão iniciou na França, que era mais do
que uma referência geográfica naquele momento, pois no século XIX o
país era internacionalmente influente em relação à cultura e à ciência.
Enviar uma missão internacional para acompanhar um acontecimento
astronômico de grande relevância era um investimento fundamental.
No mais, a adesão aos eventos científicos e empreitadas além-mar
eram politicamente importantes para as nações, como forma de demonstração de poder e capacidade de desenvolvimento tecnológico.
Se o Brasil naquele momento não enviava uma missão própria ao Japão para acompanhar a passagem de Vênus pelo Sol, ao menos teria
um cientista para registrar sua presença.
Foi assim que, em 19 de agosto de 1874, o navio Ava, propriedade da Compagnie des Messageries Maritimes, partiu de Marselha
com destino à Nagasaki e, na tripulação, estava a missão francesa
com o jovem cientista brasileiro Francisco Antônio de Almeida. A última
parada antes de chegar ao Japão foi em Hong Kong, onde presenciou
um ciclone de grandes dimensões que destruiu navios estrangeiros,
sumário
169
demonstrando as dificuldades da longa viagem marítima. Após oito
dias de navegação, a missão francesa que estava a bordo do navio
Tanais chegou à Yokohama. No relato, antes de apresentar este porto,
Almeida escreveu longamente sobre o Japão, país cujas peculiaridades despertavam os interesses dos estrangeiros no século XIX.
Dedicou-se inicialmente a explicar sobre a presença do cristianismo no país e, ao chegar, ficou animado ao encontrar uma
pequena capela com fiéis orando, onde poderia agradecer pela
viagem. A religião era um fator importante em suas considerações
positivas sobre os japoneses, em especial devido aos mártires católicos e à população convertida. Almeida transcreveu longos trechos da narração de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, sobre
o Japão do século XVI. A chegada do cristianismo no Japão era tão
relevante em relação à aproximação do país com o mundo europeu
que a este debate foram dedicados três capítulos, articulando fatores religiosos e comerciais. Considerava que a religião era parte da
explicação da mudança do Japão, assim, o cristianismo também
fazia parte de uma narrativa de progresso.
Em 1874 havia passado cerca de duas décadas do fim do isolamento do Japão, mas foi em 1868, com a queda do Xogunato Tokugawa, que o poder do imperador foi restabelecido, inaugurando uma
nova fase da história japonesa: a Era Meiji (1868-1912). Esta conjuntura
foi apresentada pelo viajante e ela era fundamental para compreender
a realidade vivida pelo país naquele momento, em especial a rápida
modernização. A abertura também era decorrente da ascensão imperialista de nações europeias e dos Estados Unidos da América, fator
que foi visto e comentado por Almeida tanto pela ação estrangeira na
política e economia quanto pelas mudanças nos hábitos japoneses.
Isto pode ser notado logo de início. Quando desembarcaram,
em 3 de outubro de 1874, a tripulação foi recebida por funcionários
japoneses de casaca militar no modelo ocidental, o que desapontou
sumário
170
Almeida que esperava algo diferente do que era recorrente nas burocracias dos portos. Em sua estadia visitou Edo, Yokohama, Kobe
e Nagasaki. Em todas as cidades constatou a crescente interferência exterior na instalação de portos, consulados, escolas, repartições públicas, alfândegas, casas de comércio e hotéis. Quando
a missão francesa desembarcou em Yokohama havia no local um
navio francês com oficiais de serviço nos mares da China e do Japão, estes e outros estrangeiros eram recebidos com uma estrutura
planejada, com hospedagens e tradutores.
Mesmo considerando a recente abertura, o país estava se
preparando para receber viajantes, burocratas, negociantes, que
agora podiam aportar. Almeida e os demais cientistas ficaram hospedados em hotéis que se adequavam aos padrões de hospitalidade estadunidense e europeus. E, para visitar a cidade, foram
conduzidos por riquixás, descritos como “pequenos carrinhos, semelhantes aos em que as crianças saem a passear”, úteis “para o
estrangeiro percorrer a cidade” (p. 153). Quanto à receptividade dos
japoneses, dizia que o povo era “agradável, cortês, simpático, e de
um amor próprio nacional sem limites” (p. 154).
O viajante apresentava o Japão aos seus leitores brasileiros e
garantia: “o leitor não se enganará supondo por esta descrição, que o
Japão é o mais curioso e o mais delicioso país do mundo” e que “ali
não se encontra a indolência e a perversidade do chim, tudo é animação, alegria, excelente e encantador; o chá, a porcelana, os belos
objetos de charão, a seda, os japoneses e finalmente, até os deuses
são risonhos e meiguiceiros” (p.157). Cabe lembrar que antes de chegar e de escrever sobre o Japão, Almeida havia passado por diversos
portos onde a violência imperialista se fazia presente, como ocorria na
China e na Índia. E, como não era incomum, o caráter elogioso sobre o
Japão se dava em comparação aos chineses, cuja situação era recorrentemente comentada pela precariedade e pelo vício do ópio, muito
em decorrências da violência do imperialismo inglês.
sumário
171
A lista de curiosidades e as vivências do viajante reforçavam a
imagem elogiosa sobre os japoneses. Dentre o que havia de característico do Japão, chamava-lhe atenção as casas de banho e as casas de
chá. Para explicar ao leitor, comparava a casa de chá ao café francês e
à taverna inglesa, dizendo ser diferente de tudo isso. Descrevia as lanternas, as divisórias de papel, o chão de esteiras, o hábito de sentar no
chão, o serviço de chá, a porcelana, mas lhe agradava principalmente
as japonesas que faziam o serviço do salão e que “levavam vantagem
sobre os ocidentais na arte de agradar” (ALMEIDA, 1879, p.156).
Para apresentar aquela sociedade aos leitores, dedicou-se a
entender o sistema penal, incluindo a tradução e transcrição de leis
sobre roubo, jogos de azar, prostituição, homicídios, falsificação, além
de “atentados contra os costumes”, como estupro, incesto, adultério,
bigamia e, entre outro, “suicídio mutuo pelo amor”. Destacava, pela peculiaridade, que as penas de morte eram feitas por “decapitação pelo
sabre, a da cruz, a do fogo, e a decapitação feita com uma serra feita
com bambus, sendo qualquer delas, na ordem em que as nomeamos,
agravações aflitivas da que procede” (p.207), dependendo da classe
social do culpado. Estas formas de morte não eram bem vistas pelo
viajante que acreditava que essas “barbaras usanças” tenderiam a desaparecer com a “modernização” do país.
Almeida utilizava o longo período de isolamento pelo qual o Japão havia passado para explicar costumes que seriam vistos como
pecaminosos ou incivilizados pelos leitores. Isso pode ser notado em
sua descrição das casas de banho, onde ao comentar sobre o ambiente ser compartilhado por mulheres e homens, ponderava que isto dava
a “ideia de simplicidade dos costumes japoneses e nos autoriza a pôr
em dúvida que este povo participe do pecado do primeiro homem”
(ALMEIDA, 1879, p.155). Essa estratégia demonstra a imagem positiva
que buscava construir sobre os japoneses, uma vez que outras populações haviam sido criticadas pelo viajante em relação aos pudores
sumário
172
dos corpos, como as mulheres em portos onde o comércio com os
estrangeiros aumentava a pobreza e a prostituição.
Nos anos iniciais da abertura ainda eram mantidas vinculações com o imaginário do isolamento, isto incluía a sexualidade
feminina representada na arte, na nudez presente nas casas de banho, na abertura das roupas. As considerações sobre inocência,
entretanto, não impediam o autor de descrever com erotismo as
mulheres japonesas. Foram diversas as vezes em que Almeida se
colocou como voyeur nas casas de chá, nas ruas, nos espaços
privados, como em sua narração sobre jovens que entretinham os
visitantes nas casas de chá com brincadeiras em que se despiam,
onde concluía que “parecem não compreender a pouca moralidade
deste jogo que as obriga a despojarem-se de suas vestes” (ALMEIDA, 1879, p.174). Esta imagem era diferente da que seria construída
sobre elas no século XX, representadas como submissas aos maridos e oposta à liberdade da mulher ocidental.
Além das descrições, as ilustrações nos ajudam a entender o
que circulava sobre o Japão no exterior e o que foi acessado por Almeida para que, enfim, fosse publicado e visto pelos leitores brasileiros. Como dito, em meados do século XIX não eram raras as publicações que traziam figuras de pessoas não europeias cujos costumes
eram considerados exóticos. Sobre o Japão havia ainda a circulação
das estampas denominadas ukiyo-e que, entre outras temáticas, representavam jovens, atrizes, cortesãs, amantes, mulheres em suas
mais diversas atividades: no banho, vestindo-se, maquiando-se, arrumando seus cabelos, lendo, dormindo.
Este é o caso da ilustração replicada em Da França ao Japão
(1879), intitulada Dama japonesa dormindo a sesta, onde podemos
notar o decote, a leveza da roupa e os dois homens que a observam.
Além de ser uma cena presente na arte tradicional do período, para o
público brasileiro a imagem trazia ainda outra das “excentricidades”
sumário
173
comentadas pelos viajantes: a maneira de dormir dos japoneses. Trata-se de algo simples, mas comentado em diversos relatos de viagem
dos oitocentos. Em Da França ao Japão (1879) há também duas outras figuras que fazem referência aos temas comuns nestas estampas,
são elas: Barca de passeio tripulada por mulheres japonesas e Jovens
japonesas tocando bandolim, em referência ao instrumento de cordas
shamisen. E, sobre as ilustrações em Da França ao Japão (1879), do
total de dezoito, incluindo um mapa, sete tinham como personagens
principais as mulheres e três delas eram coloridas.
Figura 1 – Dama japonesa dormindo a sesta
Fonte: ALMEIDA, Francisco Antônio de. 1879. 81
81
sumário
ALMEIDA, Francisco Antônio de. Da França ao Japão: Narração de viagem e descrição
histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia.
Rio de Janeiro: Typ. do Apostolo e Imperial Lithographia de A. Speltz, 1879. n.p.
174
Figura 2 – Jovem dama japonesa e sua criada
Fonte: ALMEIDA, Francisco Antônio de. 1879.82
Entre outras imagens, chama atenção a figura da Jovem dama
japonesa e sua criada. Ela possui origem diferente da anterior, pois
havia sido publicada, em versão monocromática, no jornal nova-iorquino Harper’s Weekly, em 1870. Na produção brasileira ganhou cores
e, nos traços e escolhas dos ilustradores, os japoneses tiveram suas
feições europeizadas, como pode ser notado com maior evidência na
pintura da criança que está sendo carregada pela mulher. Assim como
nas demais ilustrações, as roupas, adereços, cenário, formavam um
imaginário dos japoneses que circularia no Brasil e em outros países.
82
sumário
ALMEIDA, Francisco Antônio de. Da França ao Japão: Narração de viagem e descrição
histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia.
Rio de Janeiro: Typ. do Apostolo e Imperial Lithographia de A. Speltz, 1879. n.p.
175
Quando Francisco Antônio de Almeida chegou ao Japão era
algo grandioso poder acompanhar os primeiros esforços daquele país
insular da Ásia rumo à constituição de uma nação moderna nos moldes ocidentais. Tamanha era a articulação em torno deste objetivo que
quando, ainda no século XIX, outros brasileiros atravessaram os mares
e se propuseram a escrever sobre o Japão, como Custódio de Mello
(1889) e Aluisio Azevedo (1897), a intensidade das mudanças faria com
que o cenário fosse muito diferente daquele visto por Almeida em 1874.
Almeida considerava que a “revolução” ainda estava em fase
de formação de um novo cenário de progresso e industrialização.
Ele via como positiva a permanência de costumes japoneses, como
as vestimentas, casas de banho, lutas de sumô, cerimônia do chá e
mesmo hábitos do cotidiano como tirar os sapatos antes de entrar em
um recinto. Mas chamavam sua atenção, especialmente, as cenas de
transição, ou seja, a relação entre a presença das tradições e costumes japoneses e o processo rápido de mudança e adaptação ao que
chegava de outros países.
Nesse sentido, havia uma figura importante na imagem que o
Japão projetava ao exterior, tratava-se do imperador Meiji, Mutsuhito.
Da França ao Japão (1879) trouxe ao país a ilustração Os Imperantes
do Japão, uma reprodução da fotografia de 1873, feita por Uchida Kuichi. Era intencional que o imperador estivesse trajando uniforme militar
ocidental, demonstrando também a capacidade de ser protagonista
de sua abertura e de dialogar, como igual, com potências imperialistas.
A imagem ganhava ainda mais destaque no livro quando comparada
a outra, intitulada Príncipe Japonês, onde era apresentado um jovem
da realeza com roupas tradicionais. Aliado a isso, em 1872 as roupas
europeias se tornaram obrigatórias para os funcionários do governo
em cerimônias oficiais (SUKEHIRO, 1989, p. 471), o que não fez com
que as roupas tradicionais ficassem em desuso para outros fins, como
demonstra a presença da imperatriz na ilustração.
sumário
176
Figura 3 – Os Imperantes do Japão
Fonte: ALMEIDA, Francisco Antônio de. 187983.
Diante deste contexto, esta fotografia não era uma tentativa isolada de demonstrar a mudança que o país pretendia para seu futuro.
O estabelecimento da imprensa e da linha férrea em poucos anos de
abertura política fez com que o viajante visse naquele país um modelo de
progresso a ser seguido; considerava que faltava apenas a instauração
da república. Afinal, Almeida era um republicano e defensor da ideia
positivista de Auguste Comte, questões que emergiam com força no
Brasil naquele último quartel do século XIX. Isto demonstra que o relato
foi também um espaço dedicado a pensar seu próprio país, inclusive
como uso consciente para reivindicação de suas demandas políticas.
83
sumário
ALMEIDA, Francisco Antônio de. Da França ao Japão: Narração de viagem e descrição
histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia.
Rio de Janeiro: Typ. do Apostolo e Imperial Lithographia de A. Speltz, 1879. n.p.
177
Havia também instabilidade nas mudanças que ocorriam no
Japão, pois eram mundos ainda profundamente distintos. As armas
de fogo entraram no país subjugando as espadas, vestimentas europeias cobriram os corpos impondo novas condutas, o pecado cristão
estabeleceu suas regras e situações improvisadas no cotidiano se
tornaram recorrentes naquele final de século. A questão do fim das
atividades dos samurais ganhava destaque, demonstrando a profundidade da mudança de sistema social e político, afinal, tratava-se
de uma classe que antes tinha função, status e certo monopólio da
violência. Tornaram-se memórias de um passado recente, presentes
nas lembranças dos governantes japoneses que a missão estrangeira encontrou, como foi o caso de um ministro apoiador da abertura
dos portos que tinha cicatrizes no rosto por conta de um ataque de
samurais descontentes com a nova política.
Estes encontros com políticos japoneses foram descritos em
pormenores por Almeida e traziam informações tanto sobre questões
materiais quanto sobre interesses entre os países. Na capital japonesa,
a missão científica francesa com seu integrante brasileiro foi convidada
a um encontro com o ministro da Instrução Pública. Como exemplo
das cenas de transição, era significativo que naquele momento fossem
servidas “as mais delicadas iguarias francesas” preparadas por um
cozinheiro japonês que havia aprendido as técnicas em Paris. Mas,
sendo ainda os anos iniciais da abertura, o serviço ao estilo francês
não se dava por completo, não por desconhecimento, mas por falta
de recursos materiais. O viajante descrevia que, sem haver cadeiras
no entorno da mesa, os convidados foram direcionados às poltronas
dispostas na sala, onde comeram com os pratos sobre os joelhos até
serem colocados “diante de cada conviva um pequeno banco que assim nos tirava o embaraço” (ALMEIDA, 1879, p.167).
A experiência de intercâmbio do cozinheiro não era um caso
isolado, naqueles anos japoneses eram enviados aos países da Europa e aos Estados Unidos da América. Eram estudantes, burocratas
sumário
178
e cientistas, dedicados a conhecer os modelos estatais, sistemas
jurídicos, desenvolvimentos da medicina, dinâmicas de fábricas, escolas, bancos, ferrovias e costumes. Trava-se de uma estratégia importante para que o Japão pudesse ter condições de se tornar uma
nação forte e se manter independente.
Em outro momento, ao final da viagem, a comitiva foi convidada em nome do ministro da Marinha para um banquete em Nagasaki,
onde o salão era “decorado à europeia”, sobre o que comentou que
“desta vez podemos chegar as nossas cadeiras à mesa” (p. 213).
Neste encontro, o anfitrião teria dito que “sentia não ter o Micado do
Brasil representantes no Japão, e que, apesar do seu país sair de
uma guerra civil, era com imenso prazer que aceitava a amizade das
nações civilizadas do globo” (p. 169). Almeida também não tardou a
ver as vantagens de uma relação entre o Japão e o Brasil, inclusive
sugeriu que houvesse representações brasileiras na China e no Japão e navegação regular a fim de facilitar as trocas comerciais de
produtos como chá e especiarias. Avaliava também a possibilidade
de inserir no Brasil a produção de seda e a fabricação de chá, além
de considerar a vinda de imigrantes chineses.
Estas questões haviam sido ensaiadas desde o início do século XIX e permaneciam relevantes uma vez que os asiáticos eram
vistos como possíveis trabalhadores temporários diante dos encaminhamentos para o fim da escravidão. Nesse sentido, um fato curioso
ocorreu em sua passagem pelo sudeste asiático onde Almeida encontrou um brasileiro interessado nesta imigração, a quem chamou
de “traficante de carne humana”. Considerava assim porque o que se
debatia no país sobre o uso da mão de obra asiática para o trabalho
na lavoura, baseado nas experiências de colônias europeias, era um
sistema de contratos temporários que, por vezes, escamoteava relações semelhantes à escravidão.
Apenas ao final de seu relato é que se dedicou ao que chamou
de “rara entrevista da caprichosa deusa com o galante Sol” (p. 191).
sumário
179
Em Nagasaki, para o acompanhamento do evento astronômico, a
missão francesa ficou hospedada junto a um templo cedido por
religiosos budistas, os bonzos. Na passagem de Vênus vista em
1874, Almeida teve papel de destaque por ter operado o “revólver
fotográfico” de Jules Janssen, ferramenta que possibilitou que o
evento fosse considerado o “primeiro trânsito ‘público’ e fotografado” (AUGUSTO; SOBRINHO, 2007, p. 7).
Nos dias finais de dezembro de 1874, após quase três meses
de estadia no Japão, a missão francesa se preparou para retornar,
deixando registrado em um monumento local que um brasileiro havia
participado daquela importante empreitada científica. Seguiram então
para Shangai e logo para a Europa. Almeida retornou à França com
suas descrições, registros da passagem de Vênus, amostras de animais, fotografias e outros documentos.
No dia 16 de fevereiro de 1876, o jornal O Globo, do Rio de Janeiro, publicou a notícia do retorno do cientista após a conclusão de
seus estudos na Europa. Anunciava que ele passaria pela Bahia e enaltecia seus serviços prestados ao governo para acompanhar e fazer as
observações astronômicas do evento de 1874. Estabelecido no Brasil,
foi nomeado para lecionar na Escola Politécnica, no Rio de Janeiro;
depois assumiu diversos cargos públicos e se envolveu diretamente
nos embates políticos da nascente república brasileira.
A Francisco Antonio de Almeida caberia o ineditismo que o tornaria porta-voz relevante sobre a Ásia no Brasil; não apenas sobre o
Japão, mas também sobre a questão dos trabalhadores chineses. Se
por um lado o Japão ia se constituindo como modelo de modernização, ajustando, ainda que inicialmente, suas instituições e costumes
– e aparecendo como uma possível potência futura – por outro lado,
alguns dos debates mais importantes no Brasil eram em torno da abolição da escravidão. Assim, além de tratar de impressões sobre usos
e costumes, o relato e a experiência de Almeida fariam parte das discussões e iniciativas que ocorreram ainda no século XIX em relação à
polêmica possibilidade da vinda de asiáticos.
sumário
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O relato de Almeida não é uma apresentação neutra, ele pressupõe acesso a determinados materiais e escolhas. O Japão encontrado
pelo viajante em 1874 estava em fase de transição e, mesmo diante de
sua originalidade, ele não apresentava um mundo totalmente desconhecido dos leitores brasileiros, que fosse por intermédio de viajantes europeus e estadunidenses ou pelo desenvolvimento do comércio, tinham
algumas, mesmo que escassas, referências sobre o país distante. Mas
Da França ao Japão (1879) trazia a particularidade do viajante e escritor
brasileiro, apresentando suas experiências em diálogo com as demandas nacionais, além de estabelecer comparações com o que era familiar
para os leitores. Quanto ao Japão, aquele era o momento em que estava
se consolidando no cenário internacional e se estruturando para, em
poucos anos, tornar-se política e economicamente forte.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Francisco Antônio de. Da França ao Japão: Narração de viagem
e descrição histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do
Japão e de outros países da Ásia. Rio de Janeiro: Typ. Do Apostolo e
Imperial Lithographia de A. Speltz, 1879.
AUGUSTO, Pedro; SOBRINHO, José L. O transito de Venus e a Unidade
Astronomica. Grupo de Astronomia. Universidade da Madeira: nov, 2007.
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionário Biliographico
Brasileiro, Vol. 2: Letras C-Fr. Rio de Janeiro: Conselho Federal de
Cultura, 1970.
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sumário
181
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Imigração, identidade e preconceito racial (1860-1945). Tese de doutorado
em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês, USP. 2010.
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Paulo: Cia. Das Letras, 2001.
SAKURAI, Célia. Os japoneses. São Paulo: Editora Contexto, 2008.
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The Cambridge History of Japan. vol. 5: The Nineteenth Century. Cambridge
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UFSC, 2020.
sumário
182
Capítulo 9
Precursores: japoneses no Brasil antes do
início oficial da migração em 1908
Willians Marco de Castilho Junior
9
Willians Marco de Castilho Junior
Precursores:
japoneses no Brasil
antes do início oficial
da migração em 1908
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.9
As relações entre Brasil e Japão já completaram o seu centenário, tendo sido estabelecidas em 05 de novembro de 1895, em Paris,
com a assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre
os dois países. Juntos, construíram uma longa história de intercâmbio
cultural e econômico. Atualmente, o Brasil possui a maior população
de origem japonesa fora do Japão, com cerca de 1,5 milhões de nikkeis84, de acordo com censo realizado no Brasil e publicado em junho
de 2017 pelo governo brasileiro.
Ao longo de toda a história de sua imigração, a comunidade
japonesa no Brasil alcançou maiores espaços em diversos campos
profissionais. Nomes como o do tenista Hugo Hoyama, da cantora
Fernanda Takai e da apresentadora Sabrina Sato são bastante conhecidos pela sociedade brasileira e representam parte do extenso
processo de integração iniciado em 1908, com o começo oficial da
imigração japonesa no Brasil.
Nos anos que sucederam a Assinatura do Tratado de Amizade,
de Comércio e de Navegação e antes do efetivo início da imigração, alguns japoneses começaram a vir ao Brasil com a finalidade
de intensificar as relações comerciais. Da mesma forma, brasileiros
também iam ao Japão com a finalidade de fortalecer essas relações.
Contudo, antes mesmo da vinda de imigrantes, comerciantes, políticos ou diplomatas, há registros de japoneses que estiveram no Brasil
no século XIX. E é a esses personagens que este capítulo se dedicará, buscando apresentar ao leitor um pouco das curiosas histórias
vividas pelos primeiros japoneses a estarem em terras brasileiras,
pois eles, sendo precursores85 da imigração, fazem parte da longa
amizade existente entre o Brasil e o Japão.
sumário
84
O termo nikkei é usado para se referir a todos os descendentes de japoneses nascidos
fora do Japão.
85
Este capítulo poderia citar alguns outros nomes como o de Ryu Mizuno (1859-1951), considerado o pai da imigração japonesa no Brasil, mas optou-se por focar naqueles japoneses que
estiveram no Brasil antes do início oficial das relações diplomáticas entre os dois países.
184
O EPISÓDIO DE NOSSA SENHORA
DO DESTERRO, EM FLORIANÓPOLIS
Sabe-se que anteriormente às visitas oficiais entre os dois países, o primeiro contato entre japoneses e brasileiros aconteceu num
episódio bastante curioso, no ano de 1803, período em que ainda éramos um estado sob o comando do reino de Portugal. Em 1793, quatro
pescadores japoneses partindo da província de Miyagi, a bordo do
barco a vela Wakamiya-Maru, naufragaram no Mar do Japão. Salvos
por uma embarcação russa, os pescadores foram conduzidos, via Sibéria, para Leningrado, que na época era chamada de São Petersburgo, capital dos czares russos.
Na Rússia, ficaram até 1803, quando a bordo do navio russo
Nadeshuda, via Oceano Atlântico, rumaram em direção ao Oriente.
Durante a viagem, o navio enfrentou uma forte tempestade que o
danificou e o arrastou até o porto de Nossa Senhora do Desterro,
atual Florianópolis. Enquanto o barco era consertado, os japoneses
Tsudayu, Sahei, Gihei, e Tajuro ficaram no Brasil durante cerca de dois
meses. Aqui, adentraram pelo interior do Estado de Santa Catarina,
fazendo contato com a população e a natureza catarinense. De acordo com matéria publicada no jornal O Estado86, os pescadores japoneses nunca mais voltaram ao Brasil, mas registraram a experiência
vivida, relatando o contato com as ferramentas agrícolas usadas na
época, como o secador de arroz movido à água, e as comidas em
abundância no Brasil, como a banana e o coco.
Após o período em que ficaram atracados no Brasil, os quatro
pescadores embarcaram rumo ao Pacífico, partindo para a península
de Kamtchatka, localizada na região oriental da Rússia, onde se encontraram com outros japoneses e, juntos, no navio Nadeshuda chegaram
ao porto de Nagasaki, em 6 de setembro de 1804. Além de terem sido
86
sumário
Jornal O’Estado, Florianópolis, domingo, 25 de junho de 1978. nº19.095. p12.
185
os primeiros japoneses a conhecerem o Brasil, Tsudayu, Sahei, Gihei, e
Tajuro também foram os primeiros nipônicos a circum-navegar o globo.
Sua viagem ao redor do mundo foi repleta de aventuras e experiências únicas. O próprio fato de terem viajado tão longe de terras
japonesas, durante o período Edo, época em que o Japão estava sob
uma rígida política de isolamento, já nos mostra que foi um episódio
ímpar na história do Japão. Resumidamente, o caminho percorrido
pelos japoneses a bordo do navio Nadeshuda compreendeu as seguintes paradas: Copenhagen, Falmouth (Grã-Bretanha), Santa Cruz
(Ilhas Canárias, Espanha), Santa Catarina (Brasil) e Nuku Hiva (Ilhas
Marquesas, Oceano Pacífico Sul) ao longo do caminho, chegando a
Petropavlovsk na Península de Kamchatka cerca de um ano depois. De
lá, ele virou para o sul em direção a Nagasaki, onde terminou a rota.
O NAVIO KAIYÔ-MARU
NO RIO DE JANEIRO
Após o episódio de Desterro, em Florianópolis, há o registro de
outros nove japoneses que estiveram no Brasil, no ano de 1867. A bordo do navio a vapor Kaiyô-Maru, chegaram ao Brasil, em 21 de janeiro
de 1867, os estudantes japoneses Takeaki Enomoto (também conhecido como Kamajiro), Tsunejiro Uchida, Tarozaemon Sawa e Shunpei Taguchi, juntamente com mais cinco outros técnicos, tendo permanecido
na capital do Império Brasileiro por cerca de onze dias.
Os japoneses chegaram ao Brasil depois de voltarem de um
período de estudo na Holanda. O intercâmbio desses estudantes representou parte do processo de reaproximação do Japão87 com o
87
sumário
Durante o período compreendido entre 1603 e 1868, o Japão viveu sob o regime de shogunato, uma ditadura militar feudal que manteve o Japão isolado do restante do mundo,
com seus portos fechados para embarcações estrangeiras. A reabertura para o Ocidente
veio a ocorrer em 1868, com o início da Era Meiji.
186
restante do mundo, na segunda metade do século XIX. Após a ida de
Comodoro Mathew C. Perry (1794-1858) ao Japão e a abertura dos
portos japoneses para o comércio internacional, o avanço tecnológico e o conhecimento científico do Ocidente tornaram-se um dos
focos do governo do shogunato japonês, que passou a elaborar um
plano de envio de estudantes para países ocidentais.
De início, o shogunato Tokugawa planejava comprar um navio de guerra dos Estados Unidos, a fim de enviar seus primeiros
estudantes para lá. Entretanto, a eclosão da Guerra Civil Americana
(1861-1865) atrapalhou os planos do governo japonês, que decidiu
por escolher, então, a Holanda como o seu novo destino. Assim, em
11 de abril de 1862, o primeiro grupo de intercambistas viajou para
a Europa, onde ficaram até dezembro de 1866, ocasião em que zarparam do porto de Vlissigen rumo ao Japão. Passando pelo Oceano
Atlântico, o vapor Kaiyô-Maru finalmente chega ao Brasil.
Dentre os estudantes japoneses, um merece especial destaque:
Takeaki Enomoto. Enomoto, nos anos finais do período Edo, comandou a resistência do shogunato em Hakodate, na província de Hokkaido, mas posteriormente aderiu ao governo Meiji (1868-1912), tendo
ocupado diversos cargos políticos importantes nos ministérios de
Correio e Telegrafia; Educação; Negócios Estrangeiros; e Agricultura e
Comércio. Seu principal trabalho ocorreu quando assumiu o Ministério
das Relações Exteriores do Japão, em 1892.
Por ter uma grande experiência no exterior, Enomoto via na
emigração uma ferramenta de suma importância para o Japão e começou a implementar um novo projeto colonizador, sendo inclusive
um grande incentivador da imigração para o México, que teve início
em 1897. Dentre suas propostas, estava a de enviar emigrantes que
não mais teriam o objetivo de juntar dinheiro no exterior e retornar ao
Japão, mas sim de desbravar novas terras e nelas fixarem residência.
sumário
187
Nesse sentido, ele foi responsável pela criação de uma seção
de emigração dentro do Ministério das Relações Exteriores do Japão,
incentivando empresas privadas a investir no processo emigratório.
Sendo assim, seu trabalho à frente da chancelaria japonesa teve grande influência no início da emigração nipônica para a América do Norte,
América Central e América do Sul, inclusive o próprio Brasil.
O CURIOSO CASO
DE JUROZAEMON MAEDA
Outro contato entre japoneses e brasileiros ocorreu no ano de
1869, quando dois jovens oficiais da Marinha Imperial Japonesa, a bordo do navio de guerra Liverpool, visitaram a cidade de Salvador, na Bahia. Um deles foi Jurozaemon Maeda, famoso por ter cometido seppuku88
no Brasil e ter sido sepultado no Cemitério dos Ingleses, em Salvador.
Os possíveis motivos para o seu suicídio não são precisos, mas ao que
se sabe Maeda o fez motivado pela depressão que enfrentava na época.
Natural de Kagoshima, o oficial da marinha havia sido enviado
à Inglaterra para participar de um treinamento em belonaves inglesas.
Em uma das viagens, junto com seu colega japonês Itsuki Ichiro, fez
uma parada no estado da Bahia. Entretanto, após atracar em Salvador, o navio Liverpool saiu do Brasil com apenas um dos dois oficiais
da Marinha Japonesa.
Maeda, segundo relatos do diário de Marcus McCausland,
aspirante da Marinha Inglesa, estava bastante descontente por ter
dificuldades em aprender o inglês e também por estar tão distante de
seu país, por isso decidiu cometer haraquiri no salão dos oficiais, no
dia 7 de outubro de 1870.
88
sumário
Também conhecido como haraquiri, refere-se ao ritual de suicídio japonês, no qual há a
execução de um corte horizontal na região da barriga, partindo do lado esquerdo até o
direito. No universo dos samurais, o seppuku é um ato de bravura, que registra a honra
de quem o pratica.
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Apesar de ser budista, o jovem oficial foi enterrado em uma
cerimônia celebrada por um Reverendo, seguindo os ritos anglicanos, sendo sepultado no cemitério local, na área reservada para os
judeus. Seu colega Itsuki Ichiro ergueu para ele uma lápide e, anos
mais tarde, outro navio de guerra japonês aportou na Bahia para
prestar homenagens à Maeda.
Mas, misteriosamente, não foi possível encontrar o local do
enterro, sendo que seu corpo e sua lápide haviam desaparecido.
O suicídio de Jurozaemon Maeda ainda intriga a população local e
os sumiços de seu corpo e de sua lápide são um mistério até hoje.
A PRIMEIRA VISITA OFICIAL AO BRASIL
Em 1884, o Brasil recebeu pela primeira vez um cidadão japonês em visita oficial. Não se sabe exatamente quando se deu o
interesse do Japão pelo Brasil, mas acredita-se que tenha ocorrido
durante o Império. Assim, o Ministério das Relações Exteriores do Japão, que estaria avaliando as condições de trabalho para uma possível imigração japonesa, enviou o então deputado Massayo Neguishi
ao Brasil para verificar qual seria o estado brasileiro mais adequado
para adaptação desses imigrantes.
Neguishi, como representante do governo japonês, adentrou
diversas localidades de Pernambuco, visitou Minas Gerais e também
o estado de São Paulo. E, após avaliar as terras pelas quais passou,
regressou ao Japão, apresentando seu relatório com o que observou
aqui. Decidiu, dentre os estados visitados, por indicar São Paulo como
o mais propício a receber imigrantes japoneses, tendo em vista a qualidade das terras disponíveis e das características climáticas, condições
que facilitariam a adaptação dos japoneses.
sumário
189
Em 1894, Tadashi Nemoto, outro deputado japonês, fez uma visita a países da América Latina, também com o objetivo de verificar as
condições para recebimento de imigrantes, e indicou o Brasil como o
melhor país para tal fim. Assim, em 1895, era estabelecido o primeiro tratado comercial marítimo entre os dois países, cujos princípios incluíam,
dentre outros, a paz entre Brasil e Japão, a instalação de representações
diplomáticas e a liberdade econômica e comercial, sendo este tratado já
efetivado com a instalação de um diplomata japonês no Brasil.
UM CIRCO IMPERIAL
JAPONÊS NO BRASIL
Uma das histórias mais inusitadas envolvendo a vinda de um japonês ao Brasil é a do acrobata Manji Takezawa. Dizem que Takezawa
veio de uma família de samurais e que seu pai, Toji Takezawa, era um
famoso acrobata no Japão. Quando criança, Manji foi levado à Europa
como malabarista e por lá viveu durante alguns anos, desenvolvendo
sua prática em trabalhos circenses. Casou-se com um uma mulher italiana e foi contratado por D. Pedro II para servir como instrutor de artes
marciais para os oficiais da guarda imperial.
Takezawa era professor de Jiu-Jiutsu e acredita-se que chegou a
dar aulas dessa arte marcial ao imperador D. Pedro II. Não se sabe ao
certo quando e nem como ele chegou ao Brasil, mas acredita-se que
tenha sido durante um de seus serviços para a guarda imperial. Alguns
relatos dizem que ele havia chegado ao Brasil em 1870, outros que havia
visitado o estado do Paraná, em 1880, com uma comitiva de D. Pedro II,
e também de que teria chegado ao Rio de Janeiro, em 1888.
Entretanto, deixada de lado a data certa de sua vinda ao Brasil,
o que se sabe efetivamente é que Takezawa ficou desempregado
depois que a República Brasileira foi proclamada em 1889 e a sua
sumário
190
relação com a corte imperial portuguesa foram cortadas. O acrobata
japonês decidiu ficar no Brasil e montou um circo denominado Circo
Imperial Japonês, com o qual realizou espetáculos em vários países
da América do Sul, como Uruguai, Argentina e Brasil, onde inclusive
se apresentou, em Manaus.
Manji Takezawa durante esse período teve quatro filhas e um
filho com sua esposa italiana. As crianças se apresentavam com os
pais nos espetáculos exibidos nas cidades em que visitavam. Com o
tempo, o trabalho do circo passou a dar prejuízo e, acumulando muitas
dívidas, o acrobata japonês teve de vender a companhia no ano de
1898. Após o fim do Circo Imperial Japonês, não se sabe muito acerca
de Takezawa, tendo ele falecido em 1918, segundo relatos, após um
acidente durante uma acrobacia.
Como não existem registros oficiais sobre a vida de Takezawa no
Brasil, ele não é considerado o primeiro japonês a fixar moradia aqui.
O próprio trabalho itinerante que ele efetuava também mostra que passou por diversos países, não criando raízes em nenhum desses locais.
Foi provavelmente o primeiro japonês a pisar na Amazônia e sua vida
foi dedicada às artes marciais e às acrobacias, sendo o período passado no Brasil marcado pela criação de seu circo japonês.
O PRIMEIRO JAPONÊS
A MORAR NO BRASIL
Em 1889, quase duas décadas antes dos primeiros imigrantes
japoneses chegarem ao Brasil a bordo do navio Kasato Maru, um
jovem japonês tornou-se a primeira pessoa de origem asiática a fixar
residência em terras brasileiras. Wasaburo Otake iniciou sua relação
com o Brasil aos 17 anos de idade, quando, em ocasião de uma
missão de oito oficiais da marinha brasileira ao Japão, foi designado
intérprete daquela comitiva.
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191
A visita ao Japão foi organizada pelo contra-almirante brasileiro Custódio José de Melo, que ao lado de outros oficiais foi
recebido na cidade de Yokohama, no dia 20 de julho de 1889, pelo
imperador Meiji. Na época, Brasil e Japão ainda não possuíam relações diplomáticas e o encontro com o imperador do Japão ocorreu
sob influência do encarregado de negócios de Portugal. A comissão
contava com a presença de uma figura ilustre: o neto do imperador
D. Pedro II, príncipe Augusto Leopoldo. O encontro, inclusive, foi o
primeiro (e último) entre a família imperial japonesa e a brasileira.
Na ocasião, tendo em vista a ausência de conhecimento do
idioma português pelos japoneses e também pelo fato de nenhum
membro da comissão brasileira saber o idioma japonês, a língua inglesa foi usada como intermediário nas conversas. Wasaburo Otake,
que costumava visitar os navios da região portuária de Yokohama para
praticar inglês e, com isso, havia desenvolvido suas habilidades no
idioma, foi responsável por ser o intérprete nas reuniões com os militares e logo ganhou a simpatia de Augusto Leopoldo.
O príncipe, que fazia parte da comissão recebida pelo imperador
Meiji, soube da vontade de Otake em conhecer o Brasil e o convidou
para que o acompanhasse em sua viagem de retorno ao país. Assim, a
bordo do navio brasileiro Almirante Barroso, o aristocrata japonês embarcou junto com os oficiais da marinha brasileira rumo a terras distantes.
No meio do caminho, no entanto, o primeiro contratempo já
ocorreria. Era a proclamação da República, em 1889, e o fato obrigava a família real portuguesa a se afastar das instituições brasileiras.
Desse modo, sem sequer ter saído da Ásia, o navio foi forçado a
parar no Ceilão (região do Sri Lanka) e o príncipe Augusto Leopoldo
teve de descer. Otake seguiu em frente com o navio. O roteiro de
viagem da belonave compreendeu os portos de Xangai, Hong Kong,
Singapura, Batavia (atual Jakarta, capital da Indonésia), passando
pelo Canal de Suez, alguns portos da Europa e, por fim, o Brasil.
sumário
192
A circum-navegação durou cerca de 21 meses e, no dia 29 de
julho de 1890, aportou no Rio de Janeiro o navio Almirante Barroso.
Sem a proteção real, Otake teve de se virar e aqui aprendeu a língua
portuguesa, tendo conquistado o diploma de maquinista de quarta
classe, o qual foi assinado pelo comandante que o trouxe ao Brasil,
Custódio de Melo, que no momento da expedição desse diploma era
Ministro de Estado dos Negócios da Marinha. O documento, emitido
em 24 de abril de 1893, é o único oficial existente e contém o nome
Thomas Wasaburo Otake, cujo prenome Thomas é considerado o
nome de batismo do aristocrata japonês no Brasil.
A NACIONALIDADE BRASILEIRA
DE THOMAS WASABURO OTAKE
O fato de Otake, um estrangeiro, ter conseguido ingressar em
um curso administrado pelo Ministério da Marinha e obtido um diploma
daquela instituição brasileira gerou algumas dúvidas envolvendo sua
nacionalidade. Até os dias atuais, a exigência para poder se matricular
em um curso de formação de oficiais da Marinha é de que o candidato
seja brasileiro nato. Inclusive, o diploma de Maquinista de Quarta Classe só podia ser obtido por cidadãos brasileiros, natos ou naturalizados.
Como, então, o aristocrata japonês conseguiu realizar tal feito?
Inicialmente, é importante fazer uma breve explicação sobre o
cargo de maquinista alcançado por Otake. Pesquisas mais antigas
afirmavam que o japonês havia ingressado na Academia da Marinha
(atual Escola Naval), com o aval do contra-almirante Custódio de
Melo. Entretanto, o diploma de maquinista de Otake disponibilizado
pelo Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em junho
de 2007, por ocasião do evento “Os Imigrantes Precursores – um
olhar histórico sobre o período pré-Kasato-Maru”, mostra que ele
não foi aluno da Academia da Marinha, mas sim de um curso de
sumário
193
formação profissional vinculado ao Ministério da Marinha Brasileira.
Ainda assim, mesmo não sendo um cargo de oficial, era necessária
a cidadania brasileira para obtê-lo.
Masato Ninomiya (2015) em pesquisa envolvendo a história de
Wasaburo Otake observa que o jovem se tornou um brasileiro nato,
ante o disposto no Decreto n. 58-A, de 14 de dezembro de 1889,
que previa que todos os estrangeiros residentes no Brasil no dia 15
de novembro daquele ano eram considerados cidadãos brasileiros.
Assim, uma vez que estava a bordo de um navio brasileiro à época
e tendo em vista que as belonaves, à luz do direito internacional, podem ser consideradas uma extensão de seus territórios de origem,
Otake havia, portanto, alcançado o status legal de brasileiro nato,
ainda quando estava viajando ao Brasil.
A REVOLTA ARMADA DE 1893
Após se demitir do Ministério da Marinha, Custódio de Melo,
em 6 de setembro de 1893, comandou um levante juntamente com
outros oficiais da Marinha, a fim de exigir do então presidente do
Brasil, Floriano Peixoto, a realização de eleições que cumprissem os
requisitos constitucionais.
O episódio, conhecido historicamente como A Revolta Armada,
teve a tomada pelos oficiais e cadetes da Marinha de vários navios de
guerra na Baía de Guanabara, que ameaçavam atacar a capital. A ação
só foi reprimida com a ajuda dos navios de guerra dos Estados Unidos,
Grã-Bretanha, França, Itália e Portugal. Incapazes de superar a ofensiva, os líderes da revolta se renderam em março de 1894, recebendo
asilo a bordo dos navios portugueses. Melo, que havia fracassado em
seu levante, foi forçado a buscar mais tarde asilo político na Argentina.
sumário
194
O real envolvimento de Otake com a Revolta Armada ainda é
incerto, mas o que conta a história é que o japonês estava ao lado
do almirante Custódio de Melo na tomada dos navios e queria lutar
juntamente com seus colegas marinheiros. Em meio à derrocada dos
revoltosos, Otake estaria disposto a morrer pelos seus companheiros,
mas, por ser estrangeiro, foi desencorajado pelos demais, embarcando num bote e escapando, às escondidas, para a terra.
DE VOLTA AO JAPÃO
Com a derrota, apesar de sua proximidade com a revolta e com
o almirante Custódio de Melo, Otake não sofreu problemas diretos e teria sido contratado para ser maquinista de uma embarcação comercial
na Baía de Guanabara. Mais tarde, abandonou a Academia da Marinha
e partiu para Ribeirão Preto, em São Paulo, para trabalhar numa fábrica
beneficiadora de café.
Alguns meses depois, ao receber a notícia da Guerra Sino-Japonesa, iniciada em 1894, Otake decidiu voltar ao Japão. No entanto,
considerando a distância e o tempo despendido na viagem, ele não
conseguiu chegar a tempo, pisando em terras japonesas já quando o
conflito havia se encerrado. Lá, foi investigado por deserção pelas autoridades de seu país, ante a suspeita de que, para escapar do serviço
militar obrigatório, teria fugido clandestinamente do Japão.
O retorno de Otake ao Japão se deu após a celebração do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre Brasil e Japão, em 1895.
E, no ano de 1897, com a abertura da primeira missão diplomática
brasileira de caráter permanente no Japão, sob o comando do ministro
Henrique Carlos Ribeiro Lisboa, ele foi contratado para ser intérprete e
tradutor oficial daquela legação.
sumário
195
Enquanto trabalhava na Legação Brasileira em Tóquio, Otake
passou a ensinar português aos interessados e inclusive ajudou na tradução de documentos dos primeiros imigrantes japoneses que saíram
de lá a bordo do navio Kasato Maru. Otake aproveitava também para
contar sobre as tradições do Brasil e as diferentes comidas que fazem
parte da culinária brasileira. Dedicava-se, nesse sentido, efetivamente
no fortalecimento das relações entre os dois países.
O PRIMEIRO DICIONÁRIO
PORTUGUÊS-JAPONÊS
Após muito estudar, Wasaburo Otake preparou e publicou, no ano
de 1918, o primeiro dicionário português-japonês da história, cujo conteúdo teve diversas outras edições. Vale destacar que antes da publicação desse dicionário, a única tradução do idioma japonês para o idioma
português tinha sido elaborada por missionários jesuítas do século XVII,
com a finalidade de propagar termos cristãos no Japão. Assim, sua obra
era a primeira que fazia a tradução do português para o japonês.
Em 1925, publicou a versão do seu dicionário em japonês-português, que é considerado um trabalho de suma importância na história
da imigração japonesa, tendo sido trazido pelos japoneses que vinham
ao Brasil. Sua obra era essencial no aprendizado da língua portuguesa
pelos imigrantes. Tamanha foi a importância desse trabalho que, de
acordo com Kokei Uehara89, havia apenas duas coisas que todos os
imigrantes japoneses traziam ao Brasil: uma imagem do imperador e
uma cópia do dicionário de Wasaburo Otake.
89
sumário
Professor emérito e livre docente da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo
(USP). Nascido em Okinawa no Japão, veio ao Brasil aos nove anos, chegando aqui
em dezembro de 1936.
196
O FALECIMENTO DO JAPONÊS
BRASILEIRO THOMAS WASABURO OTAKE
Em consequência da ruptura das relações diplomáticas do Brasil com os países do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, as relações políticas entre Brasil e Japão foram encerradas, após mais de 40
anos de duração. Por conta disso, as representações diplomáticas em
ambos os países foram fechadas e Wasaburo Otake, que trabalhava
na Legação Brasileira em Tóquio desde 1897, teve de se desligar do
órgão no ano de 1942.
Por ter se dedicado tanto ao fortalecimento das relações Brasil-Japão, certamente Otake ficou bastante descontente com aquela ruptura. Anos mais tarde, veio a falecer após sofrer um ataque cardíaco,
no dia 23 de fevereiro de 1944, aos 71 anos de idade. Por conta disso
não teve – felizmente – a notícia de declaração de guerra do Brasil ao
Japão, ocorrida em 6 de junho de 1945, poucos meses antes da rendição japonesa perante as forças aliadas.
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sumário
197
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North America, 2010. v. 31, p. 46-68.
NINOMIYA, Masato. Na história dos 120 anos do Tratado de Amizade BrasilJapão, a presença de Thomas Wasaburo Otake, autor do dicionário JaponêsPortuguês. [Apresentação]. Relatório do Encontro de Colaboradores Regionais
do CIATE - 2013: Simpósio Internacional: perspectivas futuras da migração
Brasil-Japão, 25 anos após o início do movimento decasségui [S.l: s.n.], 2013.
NOGUEIRA, Arlinda Rocha. Uma epopéia moderna: 80 anos da imigração
japonesa no Brasil. São Paulo: HUCITEC: Sociedade Brasileira de Cultura
Japonesa, 1992.
O primeiro japonês brasileiro: Wasaburo Otake embarcou de gaiato para o
Rio e acabou escrevendo o primeiro dicionário japonês-português de que se
tem notícia. SUPERINTERESSANTE, 2016. Disponível em: https://super.abril.
com.br/historia/o-primeiro-japones-brasileiro/. Acessado em: 24/03/2021.
OSHIMA, Mikio. The First Japanese to Circle the Globe: Castaways of the
Wakamiya-Maru. Ship & Ocean Newsletter No. 209, April 20, 2009, pág. 22-24.
sumário
198
Capítulo 10
10
O Japão e o Trabalhador Migrante: uma análise dos desafios
que o país enfrenta em seu mercado de trabalho
Larissa Schmitz Nunes
Larissa Schmitz Nunes
O Japão e o Trabalhador Migrante:
uma análise dos desafios
que o país enfrenta
em seu mercado de trabalho
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.10
Em decorrência da globalização econômica e política, que
ocorreu após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e a mudança
no estilo de vida das pessoas nas últimas décadas, os países desenvolvidos enfrentam anualmente uma constante queda no número
de nascimentos e um aumento exponencial na expectativa de vida
da sua população mais idosa, resultando em menos trabalhadores
disponíveis para dar sustentação ao sistema previdenciário, fazendo
com que a procura por mão de obra estrangeira seja intensificada
para garantir o contínuo desenvolvimento da economia do país.
Com a entrada de novos trabalhadores migrantes, aumenta a
preocupação por parte de setores da sociedade japonesa quanto à
cultura do país e seus costumes, número de estrangeiros em situação
irregular, e também a respeito dos casos de preconceito que os trabalhadores estrangeiros podem ser expostos.
Mesmo sendo considerado um dos países mais monoculturais
existentes, o Japão busca, ainda que tímido, por medidas que, além de
beneficiarem sua economia, também possam contribuir com a diversidade populacional e cultural do país, mas mantendo a sua identidade.
CAUSAS E ORIGENS DA MIGRAÇÃO
POR TRABALHO E A CLASSIFICAÇÃO
DO TRABALHADOR MIGRANTE
Ainda que seja um modo de migração amplamente estudado hoje
em dia, os fatores que levam uma pessoa a optar pela migração, sob
qualquer circunstância, não devem ser tratados de forma generalizada.
As interpretações para esse movimento de pessoas em busca de melhores condições de vida, tendo como destino países com uma economia
mais bem desenvolvida que a de seu país de origem, se mostra muitas
vezes simplificada, não levando em consideração todos os obstáculos
que precisam ser pontuados e que afetam diretamente esse fluxo.
sumário
200
O fator econômico é o primeiro a ser explorado, pois a diferença entre a renda per capita em países asiáticos mais e menos
desenvolvidos pode chegar a valores que variam entre 200 dólares
e 40 mil dólares (WICKRAMASEKERA, 2002). Países como Japão,
República da Coréia do Sul, Taiwan, Singapura e Honk Kong, que
passaram por um crescimento recorde nas décadas de 1970 e 1980,
e que foram uma vez descritos como “Os Milagres Econômicos do
Leste Asiático”, tornaram-se os principais receptores de mão de obra
migrante no leste asiático (ALVES, 2021).
Além do desafio econômico, há migrantes que são movidos
pela decisão de se reunir com suas famílias ou amigos; aqueles que
estão sempre em busca de aventuras e novidades, e por fim, os que
não possuem a escolha entre ficar em seu país ou migrar, uma vez
que habitam locais que estão sob conflitos armados ou religiosos,
doenças, entre outros.
Podemos ainda citar as dificuldades internas dos governos
de alguns países, como a falta de oportunidades de emprego, resultando no envio de seus trabalhadores para outros lugares, a fim de
diminuir a pressão em seus mercados de trabalho. Outra questão
que pode ser discutida por ser importante para o aumento do fluxo
migratório entre países do sul e sudeste asiático é o aumento populacional de algumas áreas. Esses países passaram por um aumento
populacional não proporcional à modernização da infraestrutura do
seu mercado de trabalho, sendo assim, milhares de pessoas em
idade de contribuição econômica, e em início de carreira, foram
enviadas para países que enfrentavam um aumento expressivo no
envelhecimento da sua população. Usamos o Japão como exemplo
para ilustrar esse caso, onde existem vagas de emprego na maioria
das áreas de atuação, porém enfrenta uma constante diminuição na
quantidade de pessoas aptas para ocupar essas vagas.
O Escritório Internacional para o Trabalho (ILO/UN), na convenção sobre migrações por trabalho, em 1949, relatou que o migrante por
sumário
201
trabalho é uma pessoa que vai de um país para outro com o objetivo
de ser empregado no país de destino. Mas uma nova definição, mais
compreensível, foi usada em 1990 e continua atual, na Convenção sobre a Proteção dos Migrantes por Trabalho e suas Famílias, sediada
pela ONU: uma pessoa que será empregada, está empregada ou foi
empregada em uma atividade remunerada, em um país que não é o
seu de nascimento (WICKRAMASEKERA, 2002).
Alguns termos que devemos prestar atenção:
sumário
•
Diferenças entre as palavras “Imigrante” e “Migrante”: o imigrante é uma pessoa ou uma família inteira que troca o seu país de
origem por outro em definitivo. O migrante faz parte de um fluxo
constante, onde a troca de país e trabalho é intensa.
•
Migrante “Voluntário”: pessoa que deixa o seu país em virtude
de restabelecer uma reunião familiar, para estudo ou lazer.
•
Migrante “Forçado”: pessoa que abandona o seu país de origem
para fugir de perseguições armadas ou religiosas, repressão,
doenças, desastres naturais ou outras situações que coloquem
a sua vida em risco.
•
Migrante “Temporário”: pessoa que não tem pretensão em fixar
moradia no país receptor.
•
Migrante “Definitivo”: pessoa que já possui a intenção de fixar moradia no país de destino, muitas vezes levando consigo a família.
•
“Transmigrantes”: nova definição para os trabalhadores que vivem em regiões de fronteiras. Esses não possuem moradia ou
trabalho fixo, pois costumam permanecer pouco tempo em cada
local. Um exemplo para essa categoria é o transmigrante que vive
na fronteira dos Estados Unidos com o México, ou na fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. Costumam trabalhar em um país,
mas vivem em outro, não estabelecendo moradia fixa.
202
sumário
•
Trabalhador de “alto nível” e “baixo nível”: substituídos por “profissionais” ou “não profissionais”.
•
“3-D WORK” ou “3-K WORK” (em específico no Japão): termo derivado do japonês kitanai, kiken e kitsui, que foi traduzido do inglês
como “sujo”, “perigoso” e “difícil”. Essa nomenclatura descreve
as funções que a população local não deseja realizar e que são
geralmente direcionadas aos trabalhadores estrangeiros.
•
“Ajudante Doméstico”: prefere-se o uso de “empregado doméstico”, em sua grande maioria executada por mulheres, essa função vai além de algumas tarefas dentro de uma residência. Ida
ao mercado, o deslocamento de crianças entre casa e escola,
e a manutenção da organização da casa fazem parte da função
do empregado doméstico.
•
“Estoque de Trabalhadores Migrantes” e “Fluxo de Trabalhadores Migrantes”: o número total de trabalhadores no país receptor até determinada data, incluindo aqueles que migraram
antes desta data e ainda permanecem no país, e o número de
pessoas saindo de um país que envia mão-de-obra e entrando
em um país receptor dessa mão-de-obra durante um período
específico, geralmente de um ano, respectivamente.
•
Mão de obra “importada” e “exportada”: por não se tratarem de
produtos ou objetos, deve-se evitar o uso desses termos, preferindo assim “envio de mão de obra” e “recebimento de mão de
obra” estrangeira.
•
“Migração Ilegal”: Elie Wiesel, vencedor do Prêmio Nobel da Paz
em 1986 e escritor judeu sobrevivente dos campos de concentração nazista que dedicou 57 livros à memória do Holocausto,
disse que “nenhum ser humano é ilegal”, um termo de conotação negativa, pois ignora todas as contribuições que o migrante
proporciona para a nação que o recebe. Por isso, deve-se optar
pelo uso do termo “migração regular” ou “migração irregular”,
203
procurando lembrar que por trás de uma situação ilegal existem
muitas vezes pessoas ou empresas locais agindo ilegalmente.
Portanto, o trabalhador é uma vítima de um sistema ilegal.90
A migração irregular é vista como um dos maiores problemas enfrentados por diversos países atualmente. Temos como exemplo para
migrante irregular: pessoas que permanecem em um país fazendo uso
do visto de turismo para trabalho, estudantes que ocupam uma vaga
remunerada, trabalhadores regulares que permanecem no país além da
data estipulada nos seus contratos de trabalho, trabalhadores migrantes
regulares que quebram o vínculo com a empresa contratante, e pessoas
que foram vítimas de tráfico humano para trabalharem com prostituição.
Na maioria dos casos, o trabalhador não percebe que está entrando em um país de forma irregular (principalmente pela ação de
agências recrutadoras em seus países de origem), onde passam a
receber salários baixos e a terem o seu passaporte retido pela empresa
ou pessoa contratante.
JAPÃO E O MERCADO DE TRABALHO
A migração por trabalho é um assunto presente em diversos
estudos e também amplamente discutido em países como o Japão.
Foi criado pelo governo japonês, no início dos anos 1990, o Programa
Trainee, que tinha como meta a contratação de mão-de-obra estrangeira provinda de seus países vizinhos do sul e sudeste asiático, com
o objetivo de ensinar técnicas que pudessem ser aplicadas por esses
trabalhadores em suas comunidades após 3 anos de trabalho no Japão. Durante os 30 anos do programa houve diversas irregularidades,
90
sumário
FERREIRA, Ana Bela. Morreu Elie Wiesel, para quem “nenhum ser humano é illegal”.
Diário de Notícias, 2 jul. 2016. Disponível em: https://www.dn.pt/mundo/morreu-o-nobel-da-paz-elie-wiesel-5263079.html#:~:text=Morreu%20Elie%20Wiesel%2C%20
para%20quem%20%22nenhum%20ser%20humano%20%C3%A9%20ilegal%22&text=Foi%20mandado%20para%20Auschwitz%20aos,a%20defender%20os%20direitos%20
humanos. . Acessado em: 11 mai. 2022.
204
como o pagamento de salários baixos e uma alta taxa de trabalhadores adoecidos por terem sido submetidos a longas horas de trabalho
sem a devida remuneração extra91, o que levou o governo japonês a
dar início, em abril de 2019, a dois novos meios de contratação de
mão-de-obra estrangeira, a fim de possuir um controle maior sobre
a contratação desses trabalhadores. Com os dois novos vistos o governo pretende receber, até 2030, 500 mil trabalhadores92 que serão
empregados em 14 setores, como agricultura, indústria automotiva e
naval, hotelaria e serviços de atendimento ao público, entre outros.
O Japão, com 125 milhões de habitantes, possui 36 milhões de
pessoas acima de 65 anos, ou 29% da população em 2020, com uma
expectativa de vida de 81 anos para homens, e 87 anos para mulheres93. A população japonesa enfrenta uma queda acentuada em sua
taxa de natalidade, e um aumento significativo no número de pessoas
idosas. De acordo com os resultados da projeção média de fertilidade
realizada pelo Instituto Nacional de Segurança Social e Populacional
Japonês (IPSS), é esperado que o Japão entre em um longo período
de declínio de sua população. É esperado um declínio no número total
da população japonesa para 110,92 milhões de habitantes até 2040, e
até 2065 a população deve atingir 88,08 milhões de habitantes94. Em
2016, pela primeira vez desde 1899, o número de nascimentos registrados permaneceu abaixo de 1 milhão – chegando a 976,979 mil95.
sumário
91
Japan Training Program Is Said to Exploit Workers. The New York Times. 20 jul. 2010.
Disponível em: https://www.nytimes.com/2010/07/21/business/global/21apprentice.html.
Acessado em 11 mai. 2022.
92
JAPAN TO OPEN DOORS TO 500,000 NEW WORKERS BY 2025 TO ALLIVIATE LABOR SHORTAGE. Real Estate Japan, 30 mai. 2018. Disponível em: https://resources.
realestate.co.jp/news/japan-to-open-doors-to-500000-new-workers-by-2025-to-alleviate-labor-shortage/. Acessado em: 11 mai. 2022.
93
Surviving Old Age Is Getting Harder in Japan. The Diplomat. 19 jan. 2023. Disponível em:
https://thediplomat.com/2023/01/surviving-old-age-is-getting-harder-in-japan/. Acessado em: 31 jan. 2023.
94
Population Projections for Japan (2016-2065): Summary. National Institute of Population
and Social Security Research. Disponível em: https://www.ipss.go.jp/pp-zenkoku/e/zenkoku_e2017/pp_zenkoku2017e_gaiyou.html. Acessado em: 31 jan. 2023.
95
Birth rates are shrinking in Japan - and it’s part of a worldwide trend. World Economic
Forum. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2022/01/japan-global-birth-rate-decline/. Acessado em: 31 jan. 2023.
205
Em 2020 foram 840.832 mil nascimentos, com taxa de fertilidade bruta em 1.3, uma das menores do mundo96.
Essa inversão nos gráficos populacionais do país contribui diretamente para a falta de pessoas em idade econômica produtiva
inseridas no mercado de trabalho (entre 15 e 64 anos). Em 2014 havia
65.37 milhões de japoneses nessa faixa etária, mas estima-se que
essa população tenha uma diminuição para 37.95 milhões de pessoas até 206097. Com isso, o número de trabalhadores ativos para
dar suporte ao Sistema Previdenciário diminui. As Nações Unidas estimam que o Japão vá precisar, até 2040, de 400 mil imigrantes por
ano para impedir que a sua população diminua. Para aumentar o número de trabalhadores no país em 1% anualmente, seria necessária
a entrada de 800 mil trabalhadores por ano98.
De acordo com o números atualizados em 2021, divulgado pelo
Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-estar (MHLW), o número de residentes estrangeiros era de 2,795,45099 de pessoas, um número superior aos 850,612 mil estrangeiros registrados em 1985100. Mesmo tendo
quase 3% da população formada por estrangeiros, ainda existe uma
grande resistência na aceitação desses números, tanto pela população japonesa em geral como por alguns representantes do governo
japonês. O fato de vivermos em uma época que está sendo marcada
por grandes migrações por trabalho acentua o quanto a adequação do
Japão a essa realidade seria benéfico.
96
Japão teve redução recorde no número de nascimentos em 2020. CNN Brasil. Disponível
em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/japao-teve-reducao-recorde-no-numero-de-nascimentos-em-2020/. Acessado em: 31 jan. 2023
97
Declining birthrate and aging population. Why We Are. Disponível em: https://vwx.co.jp/
english/why-we-are. Acessado em: 31 jan. 2023.
98
Japan wants to monitor the elderly with robots, which says a lot about what’s wrong with
Abenomics. Quartz, 14 jun. 2013. Disponível em: https://finance.yahoo.com/news/japan-wants-monitor-elderly-robots-121518873.html. Acessado em: 11 mai. 2022
99
Statistics on foreign residents in Japan (formerly registered alien statistics) - statistics
table. Disponível em: https://www.e-stat.go.jp/stat-search/files?page=1&layout=datalist&toukei=00250012&tstat=000001018034&cycle=1&year=20210&month=24101212&tclass1=000001060399&tclass2val=0. Acessado em: 24 jan. 2023
100 Population Statistics of Japan 2008. National Institute of Population and Social Security
Research (IPSS). Disponível em: https://www.ipss.go.jp/p-info/e/psj2008/PSJ2008-10.
pdf. Acessado em: 31 jan. 2023.
sumário
206
Dentre os setores que necessitam de mais trabalhadores, o
setor da agricultura é o que mais enfrenta dificuldades. A maioria
dos trabalhadores dessa área possui mais de 67 anos, e falta quem
ocupe seus lugares, pois na maioria dos casos, os filhos desses
trabalhadores rurais se mudam para grandes centros, como Osaka
e Tóquio, em busca de melhores oportunidades de trabalho e salários mais altos. Atualmente, o desemprego no Japão é de 2,6%,
existindo 122 vagas de emprego para cada 100 pessoas, o maior
número registrado desde 1974101.
GRÁFICO 1 – Número de residentes estrangeiros
no Japão, até junho de 2020
Fonte: Agência de Serviços de Imigração Japonês, 2020102.
101 TAKEO, Yuko. Japan’s Jobless Rate Nears Two-Year Low as Covid Curbs Eased. Bloomberg,
25 abr. 2022. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-04-25/japan-s-unemployment-rate-drops-as-omicron-wave-subsides. Acessado em: 11 mai. 2022.
102 Immigration Services Agency of Japan. Dispoível em: https://www.isa.go.jp/en/publications/press/nyuukokukanri04_00018.html. Acessado em: 31 jan. 2023.
sumário
207
OS NOVOS VISTOS
O governo japonês, representado na época pelo ex-Primeiro
Ministro Shinzo Abe, do Partido Liberal Democrata, realizou algumas
medidas, com início em maio de 2018, para atrair para o Japão cada
vez mais trabalhadores do sul e sudeste asiático, entre elas a criação
de dois novos vistos de trabalho conforme quadro a seguir:
Quadro 1 – Detalhamento dos novos vistos de trabalho
Visto tipo 1 - SSV1 特定技能1号
Visto tipo 2 - SSV2 特定技能2号
Conhecimento na área de atuação comprovado Conhecimento avançado na área de atuação
mediante teste
comprovado mediante teste
Permanência aprovada para até 5 anos
Permanência garantida por até 10 anos podendo requerer visto de residência permanente
Requer revisão de visto a cada 1 ano, 4 ou 6 Requer revisão de visto a cada 3 anos, 1 ano
ou 6 meses
meses
Conhecimento da Língua Japonesa comprova- Não requer comprovação de conhecimento da
do em nível N4
Língua Japonesa
Não é permitido migrar com familiares
Permitido migrar com familiares
Abrange 14 áreas de atuação
Disponível somente para construção civil e
construção naval, mas está em análise para ser
expandido
Quem possui visto SSV1 pode solicitar a mudança para o visto SSV2
Quem possui visto para o Programa Trainee Não recebe solicitação de mudança de visto
pode solicitor a mudança para essa categoria
para quem está no Programa Trainee
Fonte: Japan International Trainee & Skilled Worker
Cooperation Organization (JITCO)103.
Com as duas novas categorias de visto o governo estima empregar em seu mercado de trabalho milhares de trabalhadores até
2025, mas de acordo com uma pesquisa realizada por um instituto
103 What is a “Specified Skilled Worker” Residency Status?. Japan International Trainee &
Skilled Worker Cooperation Organization (JITCO). Disponível em: https://www.jitco.or.
jp/en/skill/ . Acessado em: 14 fev. 2023.
sumário
208
suíço, o Japão ocupa a 29° posição entre os países em que estrangeiros gostariam de migrar104, com ou sem seus familiares. Idioma, cultura trabalhista, sociedade com base hierárquica e falta de
oportunidade de crescimento dentro das empresas são alguns dos
motivos que justificam essa colocação. Também existe a impressão
de que o trabalhador migrante nunca fará parte da sociedade japonesa, sendo considerado sempre como um turista. Uma das falas
muito repetida por esses trabalhadores é:
Este não é o nosso país e não é o nosso lugar para que façamos
protestos em relação a discriminação que sofremos diariamente. Nós somos convidados aqui e devemos deixar que o Japão
continue sendo um país para os japoneses105 (tradução nossa).
Políticas públicas para conscientização da população possuem
um papel de destaque quando se trata da garantia do sucesso da aceitação de novos estilos de vida. Outros meios vêm sendo criados para
garantir o sucesso dessas novas medidas, dentre os quais a obrigação
da equiparação de salários de acordo com os salários pagos aos japoneses – um dos principais motivos de evasão de trabalhadores estrangeiros106. Também foi banido o recrutamento de trabalhadores estrangeiros por agências internacionais, sendo a contratação atualmente
realizada diretamente pelo governo japonês, com poucas exceções,
a fim de evitar os mesmos problemas existentes no Programa Trainee.
104 JIJI. Japan less attractive than 28 other countries for highly skilled foreign workers, survey
shows. The Japan Times, 22 nov. 2018. Disponível em: https://www.japantimes.co.jp/
news/2018/11/22/business/japan-less-attractive-28-countries-skilled-foreign-workers-survey-shows/. Acessado em: 11 mai. 2022.
105 “This isn’t our country and it isn’t our place to make any waves. We are guests here and
should let Japan continue to be a country for the Japanese”. CAPRARA, David. The strange taste of Japanese immigration Kool-aid: How living in Japan can transform you into
a conservative. The Japan Times, 7 mar. 2018. Disponível em: https://www.japantimes.
co.jp/community/2018/03/07/voices/strange-taste-japanese-immigration-kool-aid-living-japan-can-transform-conservative/. Acessado em: 11 mai. 2022
106 KAWABE, Ana Laura. Salário baixo é a principal causa da fuga de estrangeiros durante
estágio no Japão. Alternativa, 17 nov. 2018. Disponível em: https://www.alternativa.co.jp/
Noticia/View/78536/. Acessado em: 11 mai. 2022.
sumário
209
Outra forma de entrada no mercado de trabalho japonês que
migrantes do sul e sudeste asiático recorrem é através da matrícula
em escolas de ensino de língua japonesa. De acordo com a lei vigente, estudantes podem trabalhar por até 28 horas semanais107 mediante aprovação de pedido prévio junto ao Ministério da Justiça (MOJ),
e essas escolas estão liberadas para ser uma via de contratação
de trabalhadores, contanto que não haja cobrança por este serviço.
O Ministério do Trabalho (MHLW) estima que 58% dos trabalhadores
não nativos são contratados para trabalharem em pequenos negócios locais, que contam com menos de 30 funcionários. Do volume
total calculado, 60% são trabalhadores de meio período, e 40% são
de estagiários inseridos na área de manufatura.
JAPÃO E O PRECONCEITO
De acordo com uma pesquisa realizada pelo jornal The Guardian, em março de 2017, 1 em cada 3 estrangeiros foram vítimas de
preconceito no Japão108. Outro levantamento feito pelo Ministério de
Justiça (MOJ) do governo japonês, com 4.252 participantes, mostrou
que o racismo está presente em lojas, empresas, entre colegas de
trabalho e chefes de departamento, e também é encontrado quando
estrangeiros tentam alugar uma residência109. Com essas informações
o governo concluiu que seria necessário investir em educação e direitos humanos, assim como também informar melhor aos estrangeiros
dos seus direitos e em como proceder nessas situações.
107 The Basics of Working as a Student in Japan. GaijinPod, 09 fev. 2017. Disponível em: https://study.gaijinpot.com/guide/working-as-a-student-japan/. Acessado em: 11 mai. 2022.
108 Japan racism survey reveals one in three foreigners experience discrimination. The
Guardian, 31 mar. 2017. Disponível em:https://www.theguardian.com/world/2017/
mar/31/japan-racism-survey-reveals-one-in-three-foreigners-experience-discrimination.
Acessado em: 11 mai. 2020
109 30% of foreigners living in Japan claim discrimination: gov’t survey. The Mainichi, 31 mar.
2017. Disponível em: https://mainichi.jp/english/articles/20170331/p2a/00m/0na/016000c.
Acessado em: 11 mai. 2020.
sumário
210
Em decorrência disso, houve um aumento no número de discursos ultranacionalistas pelas cidades japonesas e também na internet110. Essas falas preconceituosas também estão presentes entre
representantes do governo japonês111, sendo ele com representação
local ou federal. Em abril de 2000, Shintaro Ishihara, então governador de Tóquio, disse que crimes ultrajantes estariam sendo cometidos por Sangokujin (三国人), ou pessoas do terceiro mundo, e que
caso houvesse algum desastre em Tóquio, os estrangeiros seriam
responsáveis por criar o caos na cidade112. O ex-governador foi muito
criticado, porém não renunciou ao cargo, conseguindo se reeleger
por três vezes até se aposentar em 2012.
Ayako Sono, 83 anos, disse em 2015 para o Sankei Shinbun, um
jornal conservador, que trabalhadores estrangeiros seriam cada vez
mais necessários para ajudar a economia do país, porém estes deveriam viver isolados da sociedade japonesa em um sistema de Apartheid, assim como na África do Sul, entre 1948 e 1994:
Desde que eu aprendi sobre a situação da República da África do Sul, uns 20 ou 30 anos atrás, não tive dúvidas de que
é melhor para as raças viverem separadas uma das outras,
como é o caso dos brancos, asiáticos e negros naquele país113
(tradução nossa).
110 GaijinPod Blog. Far right group staging a nationwide anti immigrant. GaijinPod, 14 out.
2018. Disponível em: https://blog.gaijinpot.com/far-right-group-staging-anationwide-anti-immigrant-day/. Acessado em: 11 mai. 2022.
111 REYNOLDS, Isabel. Abe wants foreigners to bolster Japan’s shrinking workforce but finds
vocal resistance. The Japan Times, 16 out. 2018. Disponível em: https://www.japantimes.
co.jp/news/2018/10/18/national/social-issues/japan-first-led-protesters-slam-abe-plan-allow-foreign-workers/. Acessado em: 11 mai. 2022.
112 “In the event of an earthquake, it’s possible that Sangokujin will incite violence, so I want
to be able to deploy the Self-Defense Forces (SDF).” Ideas behind anti-Korean prejudice
unchanged in 100 yrs: Japanese author. The Mainichi. Disponível em: https://mainichi.jp/
english/articles/20201207/p2a/00m/0dm/021000c . Acessado em: 11 mai. 2022
113 “Ever since I learned of the situation in the Republic of South Africa some 20 or 30 years
ago, I have been convinced that it is best for the races to live apart from each other, as
was the case for whites, Asians, and blacks in that country.” Traduzido do japonês para o
inglês por Peter Durfee, fev. 19, 2015, “A letter to Sono Ayako”. Disponível em: https://www.
nippon.com/en/nipponblog/m00076/ . Acessado em: 11 mai. 2022
sumário
211
EXTREMISMO
O partido político Nippon Daiichi (Japão em Primeiro) organizou em 2018, em 28 localidades no país, o “Dia sem imigrantes”114,
alegando que quanto mais estrangeiros no país, mais crimes poderiam acontecer. Como resultado, haveria o crescimento dos impostos, pois o governo precisaria gastar mais com intérpretes e ações
para lidar com “o problema”.
A professora da Universidade Kokushikan, Eriko Suzuki, pesquisadora sobre imigração, disse ao jornal The Japan Times, que grupos
políticos de direita recebem pouco apoio do governo japonês, mas
que medidas devem ser criadas para conter o fluxo extremista desses
grupos já que o Primeiro Ministro na época, Shinzo Abe, aprovou novas
medidas para liberação da entrada de trabalhadores estrangeiros115.
OS BRASILEIROS
Conhecidos como dekasseguis, ou “trabalhador migrante temporário”, a comunidade brasileira que hoje está presente no Japão
conta com 211.178 mil pessoas116. São descendentes dos japoneses
que se mudaram para o Brasil a partir de 1908, em virtude das dificuldades que enfrentavam no Japão da época. Na grande maioria dos
casos, esses brasileiros vão ao Japão para trabalhar na indústria e,
114 Far right group staging a nationwide anti immigrant. GaijinPod, 14 out. 2018. Disponível
em: https://blog.gaijinpot.com/far-right-group-staging-a-nationwide-anti-immigrant-day/.
Acessado em: 11 mai. 2022.
115 RUSSEL, John. Face the reality of racism in Japan. The Japan Times, 3 jun. 2018. Disponível em: https://www.japantimes.co.jp/opinion/2018/06/03/commentary/japancommentary/face-reality-racism-japan/. Acessado em: 11 mai. 2022.
116 Number of foreign residents as of June 2020. Immigration Services Agency of Japan
(ISA), 9 out. 2020. Disponível em: https://www.isa.go.jp/en/publications/press/nyuukokukanri04_00018.html. Acessado em: 21 mai. 2022.
sumário
212
mesmo tendo em mente voltar para o Brasil em um prazo de 2 a 5 anos,
acabam permanecendo no país por décadas.
O fluxo de brasileiros em direção ao Japão, que contou com
uma diminuição em 2008117, voltou a subir em 2018118, impulsionado
pela crise financeira no Brasil. O movimento tem como característica
a mudança de país em busca de melhores condições de trabalho,
e aumenta ou diminui de acordo com os momentos econômicos de
cada um dos dois países.
Um dos maiores problemas que esses brasileiros enfrentam no
Japão é a barreira linguística-cultural, e o fato deles “parecerem japoneses”, mas não serem capazes de se comunicar em seus empregos e na comunidade local. Os filhos desses trabalhadores, também
não sabendo a língua, deixam de ir à escola, ou aprendem a falar o
japonês deixando o português de lado e não conseguindo mais se
comunicar em sua língua materna.
O governo japonês permite a entrada dos brasileiros descendentes em virtude da reforma da Lei de Imigração de 1990, que criou
o status “residentes por longo período”, para os brasileiros descendentes até a 3° geração, e libera o trabalho sem alta qualificação profissional desses migrantes em diversas áreas da indústria e comércio.
Os dekasseguis no início dos anos 1990, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), enviavam para o Brasil, anualmente,
cerca de $2 bilhões de dólares119.
117 FREITAS, Bruno Alexandre. Crise financeira de 2008: você sabe o que aconteceu?. Politize, 13 fev. 2020. Disponível em: https://www.politize.com.br/crise-financeira-de-2008/?doing_wp_cron=1652286753.2261719703674316406250. Acessado em: 11 mai. 2022.
118 FLEURY, Fábio. Imigração brasileira para o Japão volta a crescer após dez anos. R7, 26
ago. 2018. Disponível em: https://noticias.r7.com/internacional/imigracao-brasileira-para-o-japao-volta-a-crescer-apos-dez-anos-26082018. Acessado em: 11 mai. 2022.
119 SARDENBERG, Carlos Alberto. Dekasseguis enviam US$ 2 bi para o Brasil. Folha de São
Paulo, 28 jan. 1996. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/1/28/dinheiro/27.html. Acessado em: 11 mai. 2022.
sumário
213
A comunidade brasileira no Japão está menor do que no início
dos anos 2000 ao mesmo tempo que o governo japonês tenta encontrar formas para aumentar o número de trabalhadores em diversas
áreas da indústria e comércio, a fim de garantir o futuro econômico
do país. Com o aumento de outras comunidades, como Vietnamitas e
Filipinos entrando no país pelos novos vistos de trabalho, é incerto o
futuro dos trabalhadores dekasseguis nos próximos anos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tempos de globalização, o movimento de pessoas em busca de melhores oportunidades de vida aumenta a cada ano, seja
como consequência de crises econômicas, locais ou de âmbito mundial, beneficiando tanto os países que enviam mão-de-obra assim
como aqueles que a recebem. No estudo apresentado, onde procurei
da maneira mais objetiva pelo detalhamento dos desafios da migração por trabalho, pudemos entender melhor sobre as dificuldades
que o trabalhador migrante enfrenta, e o panorama atual que o Japão
vive diante do baixo número de nascimentos, a constante diminuição
na quantidade de pessoas em idade ativa de contribuição, e da porcentagem de pessoas idosas que cresce a cada ano em virtude da
alta expectativa de vida que o país possui.
O Japão, ao buscar soluções para um mercado de trabalho,
que necessita cada vez mais de mão-de-obra estrangeira, abre portas para uma nova fase em sua história. Através do trabalhador migrante, o país espera contar com a ajuda que precisa para garantir o
desenvolvimento da economia do país, passando a ter uma sociedade mais diversa e receptiva no futuro.
sumário
214
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Acesso em: 11 mai. 2022
sumário
219
LITERATURA
LITERATURA
Capítulo 11
11
Do Lar à Liberdade: as (des)identidades das nikkeis
no romance Sonhos Bloqueados (1980-1991)
Luana Martina Magalhães Ueno
Luana Martina Magalhães Ueno
Do Lar à Liberdade:
as (des)identidades
das nikkeis no romance
Sonhos Bloqueados (1980-1991)
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.11
A visão sobre a mulher japonesa, que permeou o imaginário
social do Ocidente, enfatizava que elas eram silenciosas, obedientes,
aquelas que aguentavam qualquer sofrimento caladas e que “deveriam
andar três passos atrás do marido”. Tal imaginário começou a ser construído anterior à imigração japonesa e foi influenciado pelas representações propagadas por obras estrangeiras, que salientavam os estereótipos étnicos, o exotismo, a submissão das mulheres japonesas, a
fetichização e a inferiorização dos amarelos120 (OKAMOTO, 2010; 2016).
No Brasil, essas imagens foram reforçadas com os primeiros contatos:
inicialmente as japonesas, assim como o próprio país, eram “desconhecidas” e vistas como o “outro”, muitas vezes retratadas por imagens
estereotipadas da gueixa, que, ao mesmo tempo, era dócil, submissa
e sexualizada (DEZEM, 2005); posteriormente, com a chegada dos primeiros imigrantes japoneses, essas representações foram se alterando, contudo, permaneceram alguns elementos, como o da submissão.
Ao ocuparem espaços na sociedade, as nikkeis121 ganharam
novas visibilidades, embasadas primeiro no cotidiano das imigrantes
japonesas na lavoura e depois pela ascensão social e econômica das
descendentes por intermédio dos estudos. Esse imaginário social foi
construído, em parte, pelo próprio grupo japonês, no caso os homens
nikkeis, com o intuito de reforçar a imagem positiva da colônia (MIZUMURA, 2011). Assim, enfatizavam-se, sobretudo as representações
que definiam o papel das nikkeis: o cuidado com a casa e a família; a
ligação com as práticas culturais fundamentadas no ryōsai-kenbo; a
sujeição à autoridade masculina; os esforços e a dedicação no trabalho. Roger Chartier (2002) disserta que as representações são forjadas
pelos grupos sociais segundo os seus interesses. Todavia, questionamos se essas mulheres aceitavam essas práticas e representações.
Quais eram seus pensamentos? Como se viam? Como agiam?
120 Conforme Monica Setuyo Okamoto (2016, p. 101), a construção da imagem dos imigrantes
japoneses foi influenciada por agentes como os Estados Unidos, China, Portugal e França.
A autora defende em sua tese que os brasileiros se apropriaram de um discurso sobre o
Japão que provém da França, selecionando o que nos era favorável “[...] e descartando ou
minimizando aquilo que nos era indesejado. O intuito era mostrar que a nação brasileira,
apesar de não ser um país desenvolvido, ao menos era ‘civilizada’, cristã e moralista”.
121 Termo utilizado para designar o grupo japonês no Brasil.
sumário
222
Conhecer as produções de autoria feminina nikkei possibilita
entender a vida dessas mulheres e desconstruir o imaginário social
que é, frequentemente, marcado por estereótipos não correspondentes à realidade delas. Da mesma forma, analisar essas produções
as tiram da sombra, como apontado por Michelle Perrot (2005), e
ao “fazer a sua história” nos permite conhecer como elas mesmas
se percebiam, viam e viviam. Além disso, ao analisá-las, é comum
nos confrontarmos com um bloco de representações, muitas vezes,
estereotipadas e que as reduzem.
A partir dessas reflexões, o objetivo deste artigo é analisar as
(des)identidades das mulheres nikkeis, tendo como fonte primária o
livro Sonhos Bloqueados, escrito pela autora Laura Honda-Hasegawa,
e publicado em 1991. Focaremos nas (des)identidades, percebendo
os desvios e as insurgências em relação aos papéis generificados e
socialmente construídos, baseados em dois princípios: o sistema familiar ie e o fundamento ryōsai-kenbo, buscando compreender como
as nipo-brasileiras resistiram e subverteram uma espécie de identidade
petrificada, que as colocavam em um bloco representativo de “mulheres silenciosas, obedientes e submissas”.
O primeiro configurou-se em um quadro no qual se moldaram
as relações sociais da sociedade japonesa, determinando a formação
de famílias patrilineares, hierarquizadas e submetidas à autoridade
do pai, considerado o chefe do ie. Portanto, estabelecia-se a posição
de cada membro: os filhos deveriam obedecer aos pais e as mulheres eram consideradas inferiores aos homens, designando a elas um
status muito limitado (MUTA, 2006; MARTINEZ, 2017). Por outro lado,
o segundo determinava que as mulheres deveriam receber uma educação para os interesses familiares para se tornarem “boas esposas
e sábias mães”, ou seja, incumbiam a elas uma imagem de mulher
submissa, obediente e que realizava uma autonegação em prol de
sua família (BARY, 2005; SILVA, 2010). Ambas as estruturas eram alicerçadas no sistema filosófico confucionista, que determinava papéis
sumário
223
rígidos aos indivíduos e propagava a subordinação das mulheres,
colocando-as como importantes apenas para gerar filhos e perpetuar
a família (REISCHAUER, 1980). Além disso, essas estruturas foram
trazidas pelos imigrantes como uma herança cultural e ramificadas
dentro da colônia japonesa, principalmente na família.
O romance de Honda-Hasegawa aproxima-se das obras memorialísticas produzidas por nikkeis, que emergiram como uma literatura mais
“publicizada” a partir da década de 1980 e que denominamos de “literatura nikkei”. Com isso, surgiram, mais expressivamente, os livros escritos
por imigrantes japonesas e descendentes, manifestando uma literatura de
autoria feminina nikkei. A década de 1980 é relevante por ser um período
que rompeu com um certo silenciamento sobre o papel das mulheres no
processo da imigração japonesa e a vida delas no Brasil. São obras que
expressam a visão feminina sobre o processo da imigração, o cotidiano,
os conflitos, as questões de gênero e colocam as nikkeis como protagonistas nas histórias, formulando uma narrativa feminina e possibilitando o
conhecimento sobre seus pensamentos e sentimentos.
O LIVRO SONHOS BLOQUEADOS
Como apresentado, Sonhos Bloqueados foi publicado em 1991,
pela editora Estação Liberdade, e contou com o apoio da Aliança Cultural Brasil-Japão de São Paulo. O lançamento foi organizado pela Comissão Cultural da Câmara Junior Brasil-Japão, como um dos eventos
da comemoração dos 83 anos da imigração japonesa, em 18 de junho
de 1991. Ocorreu no Nikkei Palace Hotel e contou com a palestra “As
correntes imigratórias japonesas”, do professor da Universidade de São
Paulo e diretor do Centro de Estudo Nipo-Brasileiro, Katsunori Wakisaka
(DIÁRIO NIPPAK, 1991, s/p). Ainda que não fosse escolha da autora
estrear o livro no Imin 83, Honda-Hasegawa relata que foi de extrema
importância, à medida que isso possibilitou a rememoração de sua obra
em anos posteriores e em outras comemorações (UENO, 2019, p. 4).
sumário
224
Embora não seja uma obra publicada nos 80 anos da imigração japonesa, em 1988, esse romance pertence à literatura nikkei, em
especial porque os eventos do Imin 80 marcaram Honda-Hasegawa.
Conforme seu depoimento ao jornal “Diário Nippak” (1991, s/p): “[...]
‘senti que, muito mais do que festa, era um momento para reflexões.
Era um momento de revolucionar as ideias do que preocupar-se com
coisas passageiras’ [...]”. Isso serve para corroborar que o Imin 80 foi
significativo por sua construção de memória e pelo surgimento de uma
literatura nikkei, além de emergirem questões como o esvaziamento da
colônia japonesa e a enfatização da imagem positiva dos nikkeis.
A obra chegou a duas edições, manifestando a sua expressiva
propagação. A estreia da segunda edição aconteceu em uma noite de
autógrafos em Ibiúna, em dezembro de 1991, no Centro Comunitário
da cidade, e foi promovido pela prefeitura, conjuntamente com a Biblioteca Monteiro Lobato e a Associação das Senhoras do Centro Cultural
de Ibiúna (SÃO PAULO SHIMBUN, 1991, s/p). Do mesmo modo, ocorreram consideráveis noites de autógrafo nos estados de São Paulo e
Paraná. De acordo com o “Jornal Paulista” (1991, s/p), “Laura Honda Hasegawa viu-se obrigada a requisitar livros em livrarias paulistas.
Os volumes trazidos à véspera para Apucarana haviam sido todos
vendidos”, indicando a significativa recepção da obra tanto por brasileiros como por descendentes. Entretanto, o romance não ocupou
um lugar de destaque no campo da literatura brasileira nacional122.
São presentes no romance elementos da vida da mãe da autora, como também da própria Honda-Hasegawa, isso porque ele foi
baseado nas histórias de sua mãe, ou se não, de sua avó, porém
122 Apesar de a obra não ter ocupado uma “grande posição” na literatura brasileira, deve-se destacar a competência literária apresentada ao longo do romance, lembrando que
“Sonhos Bloqueados” se destacou entre as obras da literatura nikkei. Trata-se de um dos
mais reconhecidos romances nikkeis das décadas de 1980 e 1990 e um dos mais pesquisados e analisados na academia. Todavia, sugerimos que essa falta de reconhecimento
é relacionada ao fato de a literatura nikkei permanecer à margem no campo da literatura
nacional brasileira e por representar apenas um grupo da sociedade brasileira; outra hipótese é devido à Honda-Hasegawa trabalhar com assuntos que refletem os preconceitos
do grupo japonês, assim a obra pode não ter sido bem recebida pela colônia japonesa.
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225
a autora argumenta que não é uma biografia. Todavia, percebemos
as influências de memórias e histórias das mulheres que, de alguma
forma, a marcaram e foram expressas, em partes, nas personagens
femininas nipo-brasileiras. Defendemos que os romances, principalmente “Sonhos Bloqueados”, foram baseados em histórias de vidas,
em relatos e em memórias herdadas de determinado sujeito ou de um
grupo. No caso da literatura nikkei, no grupo japonês e mais específico na literatura de autoria feminina nikkei, nas histórias de mães, avós,
tias, ou seja, na vida de mulheres nikkeis. De acordo com Vera Lúcia
Pires e Fátima Andréia Tamanini Adames (2010, p. 68), o autor em sua
produção não está sozinho, “[...] mas inserido numa série, criando
uma teia entre seu trabalho e os que o precederam e os que o sucederam, sintetizando muitas vozes com a sua”. Desse modo, encontra-se
na relação dialógica com os outros, isto é, em interação com outros
pensadores e vozes da sociedade à qual pertence. O ponto de vista
do autor emerge a partir do contato de sua voz com as de outros indivíduos, resultando em uma “interação dialógica e inacabada”.
O romance é uma escrita de autoria feminina e expressa a visão das mulheres sobre o cotidiano, as colocando como sujeitos da
história e rompendo com os silenciamentos ou com a representação
estereotipada globalizante do imaginário social. Por isso, é significativo analisar as produções feitas por mulheres, uma vez que viabiliza
a construção de uma história delas, possibilitando que as compreendamos em suas particularidades, entendendo como elas se enxergavam e entendiam o mundo (PRIORE; PINSKY, 2018). Portanto, Honda-Hasegawa é uma das autoras que produzem essa literatura de
autoria feminina e coloca como protagonista uma nikkei, exprimindo
os sentimentos, os pensamentos e os conhecimentos dessas mulheres. É até mesmo a proposta da autora de retratar as nikkeis, porque
entende melhor o lado feminino (UENO, 2019).
Ademais, percebemos que na escrita feminina é habitual que as
autoras enfrentem o fantasma denominado “Anjo da Casa”, definido
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226
por Virginia Woolf (2019) como uma mulher compreensiva, encantadora, altruísta e que “se sacrificava diariamente. Se havia uma galinha,
ela ficava com o pé; se havia uma corrente de ar, sentava-se no local
por onde ela passava – em suma, ela era constituída de tal forma que
nunca tinha uma opinião ou vontade própria, sempre preferindo não
ser preciso dizê-lo”. Portanto, conforme apontado pela autora, torna-se
necessário que as escritoras assassinem o “Anjo da Casa”, pois é ele
que impede a desenvoltura da escrita feminina ou de as mulheres se
dedicarem em outras profissões. Notamos isso na escrita de Honda-Hasegawa, visto que apesar de tentar romper com os papéis sociais e
de gênero e abordar uma maior libertação das mulheres nikkeis, ainda
é perceptível o “Anjo da Casa” rondando as personagens e buscando
estabelecer as formas de opressão.
O romance Sonhos Bloqueados contêm 198 páginas e quatro
capítulos. Conta a história e os pensamentos de Kimiko Fujii, uma nisei que após a morte de sua mãe assumiu as responsabilidades de
casa e da família, portanto responsabilizou-se pelo papel das mulheres
nikkeis. A narrativa é em primeira pessoa, ou seja, Kimiko é protagonista-narradora, e, diferentemente dos outros romances, não segue uma
estrutura linear e cronológica: o passado e o presente se entrelaçam, em
constantes flashbacks da personagem, vivendo as nostalgias do passado. A história se passa entre as décadas de 1960 e 1990, retratando
as conjunturas desses períodos, assim sendo é perceptível como os
eventos influenciaram na vida dos nikkeis, pois há representações desse
contexto nos personagens, como a ascensão social, o medo da perda
das práticas e o movimento dekasegi. A obra aborda diversos elementos, desde as obrigações da mulher nikkei em casa e com a família, os
conflitos de gerações, até a busca pela liberdade e a emigração para o
Japão (SAKURAI, 1993; OTENIO, 2015; INUMARU, 2019).
Nas análises da obra notamos as (des)identidades das personagens nikkeis, percebendo como as mulheres não permaneceram no
status de submissão, mas resistiram e subverteram as características
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227
normatizadoras e os papéis sociais generificados. As nipo-brasileiras,
principalmente a segunda geração, foram educadas em um sistema
baseado no código moral chinês, que ensinava e colocava como essencial o ryōsai-kenbo, como também foi estabelecido o modelo familiar ie. Em razão de seus pais, os imigrantes japoneses buscaram
a manutenção das práticas culturais japonesas, com o intuito de preservar a cultura, pois acreditavam em um possível retorno ao Japão.
No entanto, com a desilusão de volta para o país de origem e o constante contato com a cultura brasileira, por intermédio dos descendentes, as práticas culturais alteraram-se e modificaram-se. Nas análises
de “Sonhos Bloqueados”, notamos que a (des)identidade é um dos
pontos centrais nas personagens femininas, entretanto é perceptível
um conflito entre romper com os papéis sociais, aproximando-se dessa (des)identidade, e a continuidade dos sistemas de dominação.
Verificamos que há nikkeis mais ligadas às práticas culturais japonesas, continuando os hábitos aprendidos com os pais, ou seja,
aceitando os papéis sociais e de gênero fundamentados no ryōsai-kenbo e na hierarquização do ie; há também outras descendentes
educadas por e nesse sistema, porém, ao ocuparem outros espaços
na sociedade, como as universidades e empregos, não seguem as
regras estabelecidas pelos papéis sociais; e por último, constatamos
os casos mais extremos, que são aquelas que recusam veemente sua
etnicidade e preferem não ser identificadas com o Japão, ou seja, são
nikkeis que, além de recusar os papéis sociais generificados, estabelecem uma (des)identidade, até mesmo fisicamente.
A personagem principal, Kimiko, é pertencente às nikkeis ligadas mais às práticas culturais japonesas e ao país de origem de seus
pais. Anteriormente explicitado, Kimiko é nisei e foi educada via sistema educacional nacionalista japonês, embasado no pensamento de
“boas esposas e sábias mães”, assim como em sua família seguia-se
a estrutura do ie. Dessa maneira, na sua formação como mulher nikkei,
é enfatizada a aceitação dos papéis sociais e do seu lugar na sociedade. Essa aceitação, pela personagem, das práticas culturais japonesas
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e dos papéis sociais generificados são causados por alguns fatores:
aos 12 anos, Kimiko assumiu o papel destinado às mulheres nikkeis,
a partir do falecimento de sua mãe; sendo assim, foi obrigada a abandonar os estudos e passou a cuidar da casa e dos irmãos mais novos,
ficando mais próxima do pai e da família. Conforme apontado por Takashi Maeyama (1973), os filhos que se mantiveram nos empreendimentos da família e próximos dos pais tendem a se identificarem mais
com a “niponicidade”, ou seja, dão continuidade aos ensinamentos, no
caso de Kimiko, dos papéis sociais e de gênero.
Kimiko também estudou na nihongo-gakkō123, que eram escolas
onde se aprendia a língua e a cultura japonesa, mas não somente isso,
era um lugar onde se conservavam os valores e a fidelidade religiosa
ao imperador, almejando que as crianças adquirissem o espírito japonês, pois os isei acreditavam que “[...] o japonês traz em si o espírito
japonês, que somente pode ser adquirido através da educação moral
e cívica ministrada por livros didáticos de língua e origem japonesa
[...]” (TSUKAMOTO, 1973, p. 28). Conjuntamente a isso, Kimiko foi criada para respeitar a hierarquia familiar, norma pertencente ao sistema ie.
Por isso, a personagem temia e obedecia ao pai e ao irmão mais velho:
O bilhete de meu irmão mais velho era breve e impessoal,
mas não precisava pensar duas vezes, porque se havia duas
pessoas no mundo a quem eu devia obediência e de que
tinha até um certo medo, essas pessoas eram papai e Kunio
(HONDA-HASEGAWA, 1991, p. 23).
Segundo Ruth Benedict (2014), era na família japonesa que
se aprendia meticulosamente as regras de respeito e uma hierarquia baseada no sexo, na geração e progenitura. Não consistia em
ser apenas formalidade, mas era considerada uma autorização para
os pais interferirem em diversos assuntos da vida dos filhos. Desse
modo, as mulheres ocupavam um lugar inferior aos homens da família, não importando a sua idade.
123 Nihongo-gakkō (日本語学校) são escolas de língua e cultura japonesa.
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Percebemos que a personagem também respeitava o on e costumava submeter o seu desejo pessoal em detrimento aos interesses
coletivos, isto é, optava pelo sistema cooperativo, apreendido pelas
normas de ninjo e giri124. Diante disso, Kimiko, na maioria das vezes,
subordinava as vontades individuais em prol da família e por sentir o
on em relação a sua mãe. Isso é corroborado quando ela abandona os
estudos, apesar de querer continuar, para ajudar o pai em casa, cuidar
dos irmãos e porque sentia que sua mãe deixou um dever: “[...] Mamãe
tinha partido, deixado para mim a difícil tarefa de cuidar da casa, de
olhar pelos meus irmãos menores... Como pude pensar apenas em
mim? [...]” (HONDA-HASEGAWA, 1988, p. 73).
Outra perpetuação dessas práticas japonesas e que demonstra
a sujeição de Kimiko aos papéis sociais das mulheres nikkeis é o casamento por miai, embora ela não quisesse esse tipo de casamento e
nem morar com a sogra, acabou aceitando quando isso foi proposto
pela família: “Papai foi quem pareceu ficar mais feliz, quando respondi
afirmativamente à proposta de casamento trazida pelo casal Matsumoto [...]” (HONDA-HASEGAWA, 1991, p. 111). Esse tipo de casamento
no Brasil é uma perpetuação das práticas culturais, entretanto com outras características. Como narrado no livro, foi tudo arranjado por uma
família conhecida como casamenteira e não havia um oficial responsável para isso. Diferentemente do miai no Japão, que era organizado por
um intermediário oficial, intitulado nakodo, que era o responsável por
procurar uma noiva para a família interessada e intervinha em todas as
negociações. O casamento era igualmente considerado assunto tratado pelos chefes de família e visto como uma aliança, gerando outras
famílias patrilineares (VIEIRA, 1973, p. 145).
Mesmo após o casamento é mantido o respeito a hierarquia familiar, sustentado pela obediência de Kimiko ao marido, mantendo-se
sob a autoridade masculina, expresso quando desejava buscar emprego para auxiliar nas despesas em casa, porém é censurada por Yukio:
124 Conforme Ruth Cardoso (1995) o giri é a espécie de uma compulsão moral, obriga os
indivíduos a assumirem e ajustarem-se aos seus papéis sociais.
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230
“[...] Bem que eu havia insistido para me deixar trabalhar fora, mas,
teimoso como ele só, Yukio não me deu ouvidos. ‘Você tem trabalhado
suficiente dentro de casa’, sentenciara” (HONDA-HASEGAWA, 1991,
p. 29). Em razão disso, a personagem aceita o seu “lugar” e a estrutura familiar, não por ser apenas uma imposição, mas por respeito às
normas e práticas aprendidas desde criança. A aceitação da posição
na estrutura familiar é elencada diretamente com o “devotamento filial”,
uma vez que expressa o respeito com os “mais velhos” e por ser uma
“questão circunscrita a uma limitada família convivente” (BENEDICT,
2014, p. 50). Ademais, dificilmente os nisei conseguiam se desvencilhar por completo das práticas culturais, devido à educação ser baseada em um sistema nacionalista japonês e por serem ensinados a
obedecer ao conceito de família fechada etnicamente e que valorizava
as atitudes em prol dos interesses coletivos (NAKASATO, 2008).
Outra passagem que retrata a aceitação da estrutura familiar e a
hierarquia é a obrigação de Kimiko com a sogra. Mesmo não morando
com ela, por Yukio não ser o filho mais velho, a personagem assume
o dever de auxiliá-la em casa, lidando com as pressões e cobranças
impostas às noras. É abordado o papel das noras em obedecer à sogra e seguir suas ordens, ao mesmo tempo em que interpretamos que
essa relação não é a mesma no Japão, em que a sogra dirige o “reino
doméstico com a mão tão firme”, descrito por Benedict (2014, p. 107).
No Brasil ocorreram adaptações dessa relação, ainda existia o respeito
à hierarquia familiar, contudo a sogra não era tão severa e mandante
da casa, visto que as imigrantes japonesas trabalhavam na lavoura
e a nora responsabilizava-se pelo cuidado da casa e das atividades
domésticas. Porém, havia certa cobrança e o dever das descendentes
com a família, como expresso pela apreensão de Kimiko.
Apesar disso, é perceptível uma contradição na formação da
protagonista, pois observamos uma submissão de Kimiko aos papéis
sociais e de gênero e, simultaneamente, há certas independências e a
expressão de desejos pessoais. Contudo, defendemos que embora a
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231
personagem manifeste mais autonomia, ela não quebra e se insurge
contra as formas de dominação. Isso pode ser analisado no segundo
capítulo do livro, em que Kimiko muda-se para São Paulo e começa
a trabalhar em um salão de cabelereiro, adquire certa emancipação
da família, inclusive indo a passeios com as colegas da pensão, a
piqueniques da turma da Associação Harmonia e até participando do
carnaval. Ocorre até um namoro com um nikkei denominado Koji, que
era mais novo do que Kimiko. Entretanto, como apontado, a narrativa
volta-se para a casa e a família quando a personagem decide casar
por miai, mesmo que a contragosto: “Eu sentei na minha cama e comecei a folhear uma revista de fotonovela, seriamente preocupada com o
meu futuro: e se tiver que morar com a sogra? Também não queria um
casamento arranjado... [...]” (HONDA-HASEGAWA, 1991, p. 69). Dessa forma, ainda que ocorra uma libertação da personagem, é notável
que Kimiko não consegue romper com as amarras da opressão.
Para finalizar, a personagem é marcada pelas práticas culturais
japonesas, pelos papéis sociais generificados e que foram aprendidos
tanto em casa quanto na nihongo-gakkō, permeando a sua formação
como sujeito pensante. Embora Kimiko se sujeite a esses papéis, ou
seja, aceite seu “devido lugar” tanto na sociedade quanto na família e se
subjugue às ordens do pai, do irmão mais velho e do marido, notamos
uma aproximação com a (des)identidade, que é expressa por sua maior
emancipação quando se mudou para São Paulo e, posteriormente, ao
decidir emigrar para o Japão, mesmo com as críticas severas. Todavia,
suas atitudes não foram suficientes para se desvencilhar das formas de
opressão, visto que a protagonista, muitas vezes, se submete à dominação e sujeita-se ao papel de mulher “submissa, obediente e que se
sacrifica”. Isso demonstra a dificuldade dos indivíduos em transgredir as
formas de dominação enraizadas há muito tempo na sociedade.
Em contrapartida, notamos certa (des)identidade das nikkeis
que foram educadas por esse sistema nacionalista japonês, porém
não seguiram fielmente as normas, influenciadas, em parte, por ocuparem outros lugares na sociedade brasileira, como as universidades
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e profissões de maior prestígio, o que é causado pela movimentação
que iniciou na década de 1960, em que os nikkeis começaram a trocar as zonas rurais pelas urbanas, objetivando melhores condições
de vida e mais oportunidades para os filhos. A personagem que passou por esse processo foi Teresa, ela era a caçula da família e foi a
que mais recebeu incentivo para estudar. Mesmo que outros irmãos
tivessem a mesma oportunidade, Teresa era considerada a “doutora
da família”, dessa maneira é a filha mais afastada do grupo familiar e,
consequentemente, das práticas culturais japonesas.
Teresa é marcada pelo rompimento com as práticas culturais
japonesas e com os papéis sociais generificados, causado, em parte,
pelo acesso à universidade e por ocupar cargos importantes na sociedade brasileira. A elaboração da personagem é baseada nos nipo-brasileiros que ascenderam economicamente por meio dos estudos.
Portanto, Teresa foi educada via práticas culturais japonesas, todavia
não as seguiu fielmente e ainda rompe com a prática de colocar os
interesses do grupo acima dos individuais, porque se muda para São
Paulo, aproxima-se mais dos não nikkeis e afasta-se do núcleo familiar. Notamos isso quando é expressa no livro a problemática de quem
cuidaria do pai na velhice, e tanto Teresa quanto Akira, ambos os filhos
mais novos e que tiveram a oportunidade de investir nos estudos, não
participam da questão, visto que estavam envolvidos nos próprios problemas – em específico, Teresa viajaria para os Estados Unidos.
A personagem é considerada desde criança a mais empenhada
nos estudos, segundo a narrativa: “[...] A caçula contava com onze anos
na ocasião, uma criança quieta e muito estudiosa que preferia ficar no
quarto lendo ou cuidando de suas experiências de ciências” (HONDA-HASEGAWA, 1988, p. 25). Assim, os nikkeis que se mostrassem mais
propensos a estudar recebiam mais investimentos por parte de seus
pais e, muitas vezes, era o único filho em que os imigrantes conseguiam
investir para seguir outros caminhos. É notável que a segunda geração,
os nisei, receberam mais escolarização, realizando o projeto dos imigrantes japoneses em ver seus filhos alcançarem profissões de maior
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233
prestígio. No entanto, como explicado, o investimento sobre os nisei
resultou na desestruturação do ie e no afastamento em relação à família
e às práticas culturais (CARDOSO, 1995; ANDRÉ, 2011).
A vida de Teresa é marcada pelos estudos e pelo ganho financeiro. Ela se muda para São Paulo com 17 anos para investir na formação educacional, gradua-se em Farmácia e passa a ser considerada a
“doutora da família”. A personagem não casou nem teve filhos. Stuart
Hall (2003) expõe que muitos indivíduos, principalmente das gerações
mais jovens, estabelecem seus próprios acordos dentro e fora das
comunidades, além de ser comum, entre as gerações mais novas,
expressarem certa “fidelidade” às práticas de origem e, de modo simultâneo, demonstrarem um declínio visível e concreto dessas práticas. Compreendemos que Teresa distancia-se dos papéis sociais estabelecidos às mulheres e assume uma (des)identidade: opta por sua
independência e pelo sucesso econômico, marcando, dessa maneira,
a resistência das nikkeis em relação às formas de submissão.
Diferentemente das personagens anteriores, Érica é o caso mais
emblemático, pois além da (des)identidade há uma recusa da etnicidade e a reivindicação para ser identificada como brasileira. Isso é motivado pelos descendentes viverem com a pressão de serem educados
como japoneses e, ao mesmo tempo, sentirem-se brasileiros. Como
apontado por Jeffrey Lesser (2008), alguns nikkeis buscavam salientar
a sua “brasilidade”, uma vez que não agiam como japoneses, e verifica-se isso quando a personagem rejeita sua etnicidade tanto cultural
como fisicamente. Érica não era ligada às práticas culturais japonesas
e não se sentia pertencente ao grupo étnico: não falava japonês, embora tenha estudado por um tempo na nihongo-gakkō; não seguia os
papéis sociais e de gênero estabelecidos às mulheres com a casa e
a família; não se identificava com os artistas japoneses, mas sim com
bandas brasileiras. Dessa maneira, Érica afastava-se das práticas culturais, definindo a sua (des)identidade, tanto cultural quanto fisicamente, assim como empenhava-se em reforçar a sua “brasilidade”.
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234
Da mesma maneira, percebemos que a personagem se aproxima dos nikkeis que são denominados como “militantes étnicos” 125,
visto que Érica utilizou-se da tática comum entre esses indivíduos de se
relacionar com brasileiros. Ela, inclusive, namorou com o personagem
Mark, e o motivo maior para a relação era a possibilidade de exibir-se
para as brasileiras. Embora não seja um casamento interétnico, o relacionamento de Érica segue a mesma linha de pensamento das análises de Lesser (2008), em que os casamentos mistos, a partir da década de 1960, aumentaram significativamente, e entre os nikkeis que
se autodenominavam de “militantes étnicos” chegava a quase 100%.
Alguns apontaram esse tipo de casamento como uma prova de sua
“brasilidade”. Apesar dos “militantes étnicos” adotarem táticas para
reafirmar sua “brasilidade”, isso só destacou a sua “niponicidade”, o
que ocorre com Érica, uma vez que representar a si mesma como brasileira através do namoro só resultou na diferenciação e na enfatização
das características “nipônicas” por parte das brasileiras.
Compreendemos que os descendentes eram identificados pelos
não nikkeis como japoneses, o que era motivado, principalmente, pela
fisionomia oriental, causando certos incômodos, pois mesmo que os
nipo-brasileiros não se identificassem com as práticas culturais japonesas, seriam definidos por sua etnicidade, ou sejam delineados de forma
normatizada e uniformizadora como “japoneses”, os colocando como
um grupo idêntico e homogêneo, ignorando as suas particularidades.
Posto isso, é perceptível que alguns nikkeis começaram a sentir que só
se tornariam brasileiros se mudassem a aparência, então uma das saídas encontradas foi a cirurgia plástica nos olhos (LESSER, 2001). Essa
é uma tática adotada por Érica, e o estopim para a decisão de operar
foi causada por um concurso chamado “A mais bela gata oriental”, o
qual perdeu para mestiças, a deixando furiosa: “[...] A Érica ficou furiosa
porque das cinco finalistas do tal concurso, quatro eram mestiças, quer
125 Conforme Lesser (2008, p. 24): “[...] Para os nipo-brasileiros, militância étnica significava
escapar, de forma enfática, das classificações étnicas, tanto da sociedade majoritária
quanto da geração de seus pais imigrantes [...]”.
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dizer, mais vistosas, olhos grandes e expressivos, você sabe... Então
ela jurou que um dia operaria as pálpebras [...]” (HONDA-HASEGAWA,
1991, p. 148). Sugerimos que a personagem pertence a um grupo em
que a (des)identidade não se estabeleceu apenas cultural, mas também
fisicamente, na medida em que se buscou uma (des)identificação com
as características normatizadoras propagadas pela fisionomia.
A (des)identidade e a negação da etnicidade pela personagem
Érica são baseadas nas vivências de colegas da autora:
LHH: [...] Então eu lembro que um colega meu de faculdade,
falou assim: “aí eu conheço muita gente que fez cirurgia da pálpebra, por que você não faz?” (risos). Eu acho que devo ter
respondido: “não é da sua conta” (risos). Mas era uma época
que tinha isso sabe? Operar ou não operar? É melhor operar,
ficar mais bonito. Então, foi isso, por isso que... porque ela já
era revoltada com a situação de ser filha de japoneses e por
causa... acho que do namorado que era brasileiro, alguma coisa
assim, então o esforço era maior sabe? Para atingir aquele ideal
de beleza, porque ela... agora que estou lembrando, ela queria
ostentar o namorado como se fosse um troféu: “oh olha o que
eu consegui”. E eu conheci muita gente assim, muitas amigas,
muitas pessoas da minha geração assim e que fazia questão,
não era porque gostava ou simpatizava, sei lá, não, porque ele
é bonito então vou arrasar aí. Então, tinha isso, agora acho que
não tem isso evidente assim, mas naquela época era. Então eu
falei: “bom, então, a Érica vai ocidentalizar os olhos”. E naquela
época era assim sabe: “é faz ou não faz a cirurgia, eu quero parecer mais bonita, mais bonita quer dizer, mais brasileira, mais
ocidental” [...] (UENO, 2019, p.10-11).
Portanto, essa recusa e a ânsia por parecer brasileira eram habituais entre os nikkeis que não queriam ser reconhecidos por sua descendência, contudo eram facilmente classificados por sua aparência,
pelos “olhos puxados”. De acordo com Joyce Rumi Suda (2005), a cirurgia plástica realizada nos olhos é conhecida como bioplastia, algo
muito desejado entre os nikkeis. Essa recusa pode ser considerada uma
tática da (des)identidade. Por fim, é notável que a autora escreveu o romance partindo de memórias herdadas, como analisado, expressando
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236
a literatura, mesmo a ficcional, se constrói a partir da realidade, ou seja,
da visão de mundo do autor (CHALHOUB, 2019).
A personagem Érica rompe com os papéis sociais generificados e assume, então, uma (des)identidade, entendida como uma
insurgência às normatizações, às identidades que unificam e homogeneízam os indivíduos, isso ao rejeitar as práticas culturais japonesas e sua etnicidade, desfazendo a identificação com as imagens
cristalizadas sobre as mulheres japonesas e criando figuras subjetivas. Ademais, a (des)identidade de Érica se determina também por
meio do corpo, ao recusar seu fenótipo e realizar uma operação nos
olhos para se diferenciar do grupo nipônico. Sugerimos que é um
desvencilho de sua definição apenas pela etnicidade e uma busca
pela construção da subjetividade individual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra de Honda-Hasegawa nos chama a atenção por ser uma
escrita feminina e que salienta as mulheres nikkeis, na medida em
que a maioria das personagens são mulheres e aparecem com destaque. Ademais, os papéis da avó e, sobretudo, da mãe foram relevantes na criação do romance. Embora não seja uma (auto)biografia,
contém em suas linhas memórias e histórias das mulheres da família
da autora. Portanto, Honda-Hasegawa evidencia as nikkeis e possibilita o conhecimento sobre as ações delas no processo imigratório
e no dia a dia no país. Ademais, um dos temas centrais na obra são
as (des)identidades das nipo-brasileiras, colocadas como resistência aos papéis sociais generificados que normatizam as mulheres
e subjugavam-nas aos homens e à sociedade patriarcal, dissipando suas singularidades e subjetividades. Ainda, é trabalhado que as
(des)identidades também se desenvolvem no corpo, como o caso
daquelas nikkeis que não aceitam serem normatizadas fisicamente.
sumário
237
Honda-Hasegawa é uma mulher do seu tempo, trabalhando
com as problemáticas presentes nas décadas de 1980 a 1990 e que
eram preocupações constantes entre os autores da literatura nikkei.
Todavia, destaca-se por trabalhar com assuntos que não eram muito abordados pelos imigrantes japoneses e os descendentes. Assim,
“Sonhos Bloqueados” é uma obra que desconstrói a ideia de uma
comunidade unida e homogênea, que trabalha com a subjetividade
das mulheres, demonstrando que não são “silenciosas, obedientes e
submissas”, mas seres pensantes, individuais, independentes e que
constroem diversos “eu”, e que rompem com o imaginário social que
classificam os nikkeis como bem-sucedidos.
REFERÊNCIAS
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de jun. de 1991. Acervo pessoal.
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BARY, Brett de. Gender Politics and Feminism. In: BARY, Theodore de et al.
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Press, 2005. p. 1946-2001.
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Tradução de César Tozzi. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.
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japoneses no Estado de São Paulo. São Paulo: Primus comunicação, 1995.
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Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2 ed. São Paulo: DIFEL, 2002.
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orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
sumário
238
Em Registro, lançamento de Sonhos Bloqueados, São Paulo Shimbun, São
Paulo, 18 de jul. de 1991. Acervo pessoal.
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo
Horizonte: Editor UFMG, 2003.
HONDA-HASEGAWA, Laura. Entrevista cedida por e-mail a Luana Martina
Magalhães Ueno. 2019. Acervo pessoal.
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sumário
240
Capítulo 12
12
O Ensaio na Literatura Japonesa: Makura no Sôshi e Tsurezuregusa
Victoria Toscani
Márcia Hitomi Namekata
Victoria Toscani
Márcia Hitomi Namekata
O Ensaio na Literatura Japonesa:
Makura no Sôshi e Tsurezuregusa
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.12
Como surgem as “caixas organizadoras” da literatura? Os acadêmicos do ocidente trabalharam muitos anos para classificar obras e
identificar padrões para referenciar as produções literárias dos vários séculos de avanços da humanidade, e os gêneros surgiram dessa labuta
erudita. Contudo, por terem sido estudos que nasceram na Europa, no
mundo ocidental, as manifestações orientais encontram certas dificuldades de adequação às classificações, e é esse obstáculo que o estudo
dos gêneros deve considerar, estando atento para as diversas formas
de adaptação, desde a estrutura até a função, estando sempre aberto
para novas adições de conceitos. Assim, um dos objetivos deste projeto
consiste em ajudar a organizar uma das caixas esquecidas no sótão dos
anais literários, especialmente os que abrangem o oriente.
Cada autor cria seus próprios símbolos comunicativos, sua mitologia particular, e da mesma forma os gêneros literários têm seus
arquétipos126 caracterizando a sua manifestação; a escrita é a transformação do arquétipo em gênero e todas as formas literárias buscam
sua origem. Sempre que praticamos a leitura recorremos aos seus arquétipos, às referências que os pariram.
O que torna o mito e a lenda (formas de produção literária
popular) mais produtos humanos que os rituais diários do cotidiano
é a criatividade e a ficção, que prendem a atenção da audiência; é,
como exemplo, o diferencial do gênero chamado zuihitsu127 para os
acontecimentos gerais das respectivas épocas, das fofocas e ideais
vigentes, que seriam seu arquétipo direto, supondo aqui que a origem deste gênero seria a própria movimentação do ambiente dos
autores. O gênero e a ficção solidificam e demonstram a necessidade
da comunicação de forma planejada, criada e filtrada por aquele que
126 Aqui utilizamos o significado de “arquétipo” como o modelo inicial, gerado na sociedade,
que será a causa da existência de certo gênero, como classificado por Northop Frye nas
obras Fábula de Identidade e Anatomia da Crítica.
127 O Zuihitsu é o chamado gênero de ensaio japonês, representado atualmente pelas obras
O Livro de Travesseiro, Tsuresuregusa e Hôjôki, e caracterizado por sua anatomia composta por excertos em primeira pessoa relatando detalhes, fofocas, fatos históricos, histórias
mitológicas e causos presenciados pelo autor.
sumário
242
a produz, com ritmo, tema e outros aspectos nomeados posteriormente pela crítica moderna e contemporânea.
Como disse Frye (1973), o ritmo da literatura é a narrativa e o padrão (a caracterização) é o significado, e no caso do objeto de estudos
desse trabalho, o ritmo ganha realce pela inovação do padrão, ou seja,
a inovação do gênero não é 100% o conteúdo e sim o modo como foram
dispostas e disseminadas as obras por ele caracterizadas. Um exemplo
é a sequência dos excertos do Livro de Travesseiro composta por ondas
alternadas de listas, relatos históricos e divagações, criando uma sinfonia de formas de apresentação do conteúdo, revelando a sua inovação.
Por essa variedade de elementos internos, para analisar essas
obras é objetivado rejeitar os objetivos puramente externos, sejam da
moral, da beleza ou da verdade, julgando o valor da arte por ela mesma,
apesar da fusão básica irrecuperável de texto e contexto em ambas as
produções que serão trabalhadas (Makura no Sôshi e o Tsurezuregusa).
E é justamente uma dessas ligações inevitáveis de texto e
contexto, das condições sócio-históricas, que surge um grande desafio para a análise dos livros dessa época: os termos. Todavia,
aqui cabe uma breve explicação de somente um deles, pela intrínseca ligação com o conteúdo e a forma das obras a serem analisadas: tsurezure (徒然). Ele aparece tanto no Makura no Sôshi, de Sei
Shônagon, quanto no Tsurezuregusa, de Yoshida Kenko, em duas
formas, a indesejável e a desejável, sendo a primeira em casos de
excesso de ociosidade ou de insatisfação com a monotonia, e a
segunda em situações espirituosas, divertidas ou confortáveis.
O Makura no Sôshi (“O Livro de Travesseiro”) é uma obra que
demonstra grande sensibilidade da autora ao relatar a vida na corte
da Era Heian (aproximadamente de 996 a 1002) e os fenômenos naturais, dando, em certo momento, um tom cômico e, em outro, certa
perspectiva atual, especialmente em relação a posicionamentos e sentimentos universais, como no trecho “coisas que desapontam: cão que
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243
ladra o dia todo.” ou em “coisas que causam tumulto: o grito ‘Fogo!’
na vizinhança”, dentre outras situações. Inicialmente, Sei Shônagon
não tinha a intenção de divulgar sua obra, como conta no considerado
posfácio, portanto nela se encontram diversos relatos, pensamentos
e comentários sem nenhum tipo de censura. O conteúdo deles é o
mais diversificado possível, abrangendo desde opiniões de moda até
observações da natureza, sempre em tom espirituoso.
Por sua vez, o Tsurezuregusa (“Essays in Idleness” ou “Ensaios
na Ociosidade”), demonstra essa mesma tendência de confidência e
julgamento de valores que o livro citado anteriormente, contudo com
um olhar de três séculos à frente, no período Kamakura (entre os
anos 1319 e 1331). Entretanto, considerando sua vocação eclesiástica e o período histórico mais instável do que na imponente e pacifica
Era Heian, Kenko coloca um tom mais religioso e melancólico que os
excertos de Shônagon, apesar da clara reverência à cultura clássica
e ao próprio “O Livro de Travesseiro”.
Apesar da imponência estética, pode-se dizer que a beleza
não foi um objetivo nem de Sei Shônagon nem de Yoshida Kenko,
mas o termo okashi128, designado a ambos, atesta sua animosidade
elegante. Além disso, ambas são narradas com elementos literários
do mesmo plano que o leitor, por se tratar de obras imitativas da realidade, com todos os resquícios da etiqueta clássica esperada, atestando que todos os artistas têm de chegar a um consenso com suas
comunidades, prevendo suas necessidades, o que James Joyce
chamou de “antena da raça”.
Mas, como afirma Antônio Candido (2008), apesar dos elementos externos adicionados pelos autores, o crítico é compelido a afastar-se do âmbito de conhecimento do autor, não pode ater-se ao provável
conhecimento deste, considerando que sua análise tem de ultrapassar
a intimidade com o autor, ele deve prever a sua intenção considerando
128 Termo clássico que designa a elegância divertida, jocosa; coisas encantadoras.
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244
o mais importante: a atenção e os efeitos na audiência; existem precauções, mas os recursos modernos espantaram o temor ao anacronismo pela própria impossibilidade de ler o autor como um telepata.
São obras que criam juízos para além da experiência literária,
que possuem itens esféricos históricos, sociais e estéticos; todavia,
é essencial saber que as formas literárias não existem fora da literatura, nem mesmo no zuihitsu. Por exemplo, a percepção do trecho do
Tsurezuregusa: “Pessoas não refinadas, de outra forma, irão discursar
com excitação exagerada mesmo após um breve passeio” está além
da possível regra de etiqueta envolvida, sendo feita pela elaboração
ficcional dessa possibilidade por Yoshida Kenko.
O que falta à crítica literária ao avaliar esse gênero de poucas
obras é uma válvula reguladora, posições avaliativas que promovam as
análises decorrentes desse processo acadêmico como embriões de
algo produtivo em nível internacional, pois falta consenso em algumas
definições atribuídas ao zuihitsu e, principalmente, falta representatividade dos estudos que o cercam. Contudo, como disse Candido (2008),
devemos lembrar que não cabe à crítica precisão nem busca por uma
verdade única, pois a possibilidade de análises sempre está presente.
REVISÃO DA LITERATURA
TEORIA LITERÁRIA
Para melhor compreensão do desenvolvimento teórico e analítico que será proposto nos próximos tópicos, foi feita uma revisão de
reflexões de Northrop Frye e de Antônio Candido que foram bases para
discussões do presente trabalho. Além disso, uma breve investigação
histórica será de grande auxílio para a análise comparativa planejada.
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245
O primeiro tópico, que é em si muito simples, mas muito importante, é a “Literatura flanqueada pela filosofia e pela história”, ou seja,
a ficção é diretamente influenciada pelo modo de pensar do autor e por
seu cotidiano e momento histórico. Yoshida Kenko escreveu sob a filosofia budista e as movimentações da Era Kamakura e Sei Shônagon,
sob a filosofia aristocrática da Era Heian, e não se pode em momento
algum se esquecer disso ao olhar para suas obras.
O segundo seria o questionamento após a ideia levantada anteriormente; Frye elegeu duas concepções do nascimento dos gêneros: a pseudoplatônica, onde eles simplesmente existem, pois nela o
zuihitsu seria um novo gênero que apenas surgiu; e a pseudobiológica,
onde seriam como espécies em evolução, e o zuihitsu seria uma forma
de aprimoramento dos diários, que por sua vez surgiram do cotidiano.
Outro ponto essencial para a obra de Frye e que será de extrema
necessidade para o desenvolvimento deste projeto é o conceito de
“arquétipo de gênero”. Segundo Frye (2000, p. 18/19):
O gênero tem uma origem histórica. [...] Um arquétipo deveria
ser não somente uma categoria unificadora da crítica, mas ele
próprio uma parte de uma forma global. [...] A procura dos arquétipos é um tipo de antropologia literária, preocupada com a
maneira como a literatura é informada por categorias pré-literárias tais como o ritual, o mito e o conto popular.
Ele afirma que a narrativa se constrói em torno da figura arquetípica. Além disso, constrói uma metáfora relacionando os ciclos sazonais com as fases de arquétipos: a primavera representaria o arquétipo
da elegância e do romanesco, o verão da comédia, o outono da tragédia e do melancólico, e o inverno o da sátira. Como exemplo, o elemento pré-literário do zuihitsu seria as conversas da corte e os diários,
e conteria em si a primavera e o inverno (ao Tsurezuregusa poderíamos
acrescentar um toque do outono).
Os parâmetros elencados estão além do país de origem, pois
mesmo a ficção oriental tem conexões de estrutura com a ocidental,
sumário
246
como nos muitos casos em que a representação do divino e da etiqueta são reflexos das fórmulas míticas e romanescas da Europa.
Todavia, públicos diferentes exigem tratamentos diferentes, “o
poeta que usar as associações apropriadas comunicar-se-á mais rapidamente e precisamente” (FRYE, 1973, p. 105). A literatura exige dos
autores a capacidade de comunicar-se no tempo e no espaço.
Também considerando a transição de conteúdo entre produtor
e receptor, Frye diz que o gênero é determinado pelas condições estabelecidas entre o autor e seu público, como classe, época e hierarquia. Candido (2008) corrobora elencando como influências concretas
da literatura a estrutura social, os valores e ideologias vigentes e as
técnicas de comunicação, o “arsenal comum da civilização”. Itens que
serão exemplificados na comparação dos textos selecionados.
REVISÃO HISTÓRICA
Cabe agora a revisão histórica da Era Heian de Sei Shônagon e
da Era Kamakura de Yoshida Kenko.
A Era Heian é o período delimitado na história japonesa entre os
anos de 794 e 1185, sendo seu marco inicial a mudança da capital para
Heian-Kyô (atual Kyoto) e o final o início do primeiro xogunato do clã
Minamoto. Foi um período basicamente burocrático, pacífico, ocioso
e de adaptação dos códigos promulgados pela Reforma de Taika.129
A contribuição mais importante dessa reforma foi o código
legislativo-administrativo, Ritsuryô, que reformulou a cobrança de
impostos e a distribuição de terras. Esse movimento histórico foi responsável por uma grande reforma agrária, onde a permanência de
privilégios e propriedades privadas para templos e nobres de alto
129 Conjunto de mudanças políticas na segunda metade do século VII, cujo principal motivo
era reestabelecer a força do poder Imperial.
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247
escalão na Era Heian, deixou brechas para a decadência do sistema,
com a venda de cargos e a taxação provincial.
Os 30 títulos de hierarquia da nobreza vigentes na era de Sei
Shônagon foram importados da China, assim como o Ritsuryô. Todos
esses nobres tinham privilégios em relação à população, apesar de
não representar maioria numérica. Em um período sem grandes dificuldades administrativas e em uma capital de um país bem menor, tais
cargos eram puramente decorativos. A polícia palaciana, igualmente,
era apenas cerimonial, pois eram os guerreiros provinciais dos Minamoto que resolviam os problemas de segurança.
Diante desse problema de inutilidade da nobreza, o poder
ficou estagnado por cerca de 300 anos nas mãos dos mesmos clãs,
o que desvalorizou a educação geral, pois apesar da erudição ser
artigo essencial para os que já tinham cargos na corte, não garantiriam mais privilégios.
Nessa época, o valor da hierarquia estava nela própria: quanto
mais alto o cargo e mais próximo da capital (dando ênfase na cultura urbana), mais glorificado era e a mais prestígios tinha direito.
Sei Shônagon inclusive descreveu sobre isso em um excerto chamado
“A posição hierárquica sim, é maravilhosa”. Os créditos concedidos
aos notáveis variavam de acordo com o grau e poderiam garantir campos cultiváveis, títulos de posse, servos, guardas e/ou subsídios.
Apesar de toda suntuosidade, a economia não progredia muito
bem. Altos impostos somente para os não membros da corte, dificuldade de recolhimento destes nas províncias por difícil deslocamento e,
durante a estadia de Shônagon na corte, a falta de utilização da moeda
corrente (até citada em certo trecho da obra onde o pagamento pela
entrega de uma carta foi feito com kimono) são premissas do declínio
financeiro. Contudo, a pompa disponível na corte e apresentada no
livro não condizia com esse problema socioeconômico.
sumário
248
Conquanto, se a burocracia estagnava alguns setores político-econômicos, a Era Heian foi um deleite para as artes. O complexo
de palácios foi arquitetonicamente refinado, os festivais eram grandes
acontecimentos, os instrumentos musicais e, principalmente, a poesia, foram ressaltados. Comentar adequações estéticas fazia parte da
identidade de integração dos partícipes da corte.
A literatura teve um grande ápice nesse período, grandes obras
e diários literários foram escritos, e inclusive novos gêneros (como o
zuihitsu) surgiram. A linguagem desenvolveu-se profundamente.
Enquanto a população no geral vivia para pagar os impostos e se
sustentar em um país de certa forma largado à própria sorte pela política
regente, os nobres e aristocratas dispunham de uma sensibilidade para
com a natureza aflorada, resultado das horas inoperantes, estudos poéticos e também da considerável liberdade de observação e de críticas.
A exaltação social das classes, do sangue e da hierarquia acima
de qualquer outro quesito comunitário vigente, gerou e manteve as políticas de retenção de poder do clã Fujiwara, que ascendeu no século
VII, dominou a Era Heian, e manteve influência através dos ramos de
linhagem até o século XX.
Já a Era Kamakura é definida entre os anos 1186 e 1333, e contempla um sistema muito diferente da Era Heian. O poder administrativo,
político e até mesmo cultural é transferido da aristocracia para os militares, e a ordem samurai, que vinha se estruturando sobre o desleixo da
nobreza no século anterior, ganha forma.
Além disso, novas organizações e cargos político-militares nascem com a finalidade de controlar os governadores provinciais e corrigir os erros de administração dos políticos do fim da Era Heian, emergindo assim a era dos bakufu130, pelas mãos dos próprios Minamoto
que faziam a segurança da corte anteriormente.
130 Governos militares, também chamados de xogunatos; sistema que funcionou por cerca
de 700 anos, até a Era Meiji (1868-1911).
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249
Foi um período de muitas guerras civis e rixas entre clãs que
resultou em uma sucessão inconstante de xoguns e governos de regência. Essa instabilidade também se refletiu na opinião do povo e
inclusive nos posicionamentos do Yoshida Kenko em relação à vida.
Além das questões internas, foi durante o período Kamakura que
os japoneses enfrentaram duas vezes a ameaça do Império Mongol de
Kublai Khan, que agitou os poderes japoneses, apesar de sua melhor
defesa ter sido as catástrofes naturais e o kamikaze (“deus vento”).
Quanto à questão social e cultural, os nobres de Heiankyô lá permaneceram com sua futilidade, contudo, sem o grande aparato da nova
corte dos guerreiros, que haviam transferido a capital para Kamakura
em 1192, um dos motivos elencados por Kenko para sua melancolia.
Todavia, Heiankyô continuou sendo devidamente amparada
com os produtos da capital diante do grande desenvolvimento do comércio entre as cidades. A ligação manteve a importância de ambas,
gerando divisões nas linhagens nobres e segurando a existência de
rankings sociais que há muito já tinham perdido sua finalidade.
Quanto à questão religiosa, desenvolve-se nessa era uma nova
modalidade do Budismo, composta por ensinamentos de fácil assimilação e muita influência sobre as pessoas, que evidencia os monges
mais fervorosos e dedicados, ainda que mantenham a relação com a
estética da nobreza. Uma inovação significativa é o fato de os templos
passarem a ser o centro dos estudos e das artes.
RELIGIÃO
O Xintoísmo é uma religião politeísta japonesa e representa a
ligação com a natureza, o respeito, a admiração e a devoção que tinham por ela, algo que influenciou as produções literárias por muito
tempo no Japão. Possuem deuses incorporados em elementos terrenos e conceitos específicos de purificação.
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250
Já o Budismo é uma religião que não envolve uma ideia própria
de Deus, pois seus objetivos principais são a eliminação do desejo, da
aversão e da desilusão e, para alcançá-los, o desligamento das coisas
terrenas, a reflexão, a meditação e a iluminação da alma. No Japão foi
representante da erudição e da educação formal.
Ambas as religiões se uniram, formando um povo xinto-budista.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O ZUIHITSU
Para se determinar qual a origem das características observadas nas obras é relevante saber julgar a sua importância em diferentes
âmbitos da análise; deve-se ressaltar que quando é algo particular do
autor atribui-se à propriedade psicológica deste; se o atributo é encontrado em diversos literatos contemporâneos é razão da convenção
sociocultural e histórica; todavia, quando vemos o mesmo padrão em
vários autores de épocas distintas encontra-se então o gênero.
A principal característica que se pode atribuir ao zuihitsu é a
construção da estrutura total a partir de fragmentos aleatórios e empíricos. É um composto de valores narrativos populares e epifanias de sofisticação, abrangendo diferentes formas de comunicação com o leitor.
Como já citado na introdução, o texto sente necessidade de
ser desatado das memórias e associações pessoais do autor, e o
zuihitsu é um gênero que faz sofrer muitos analistas nessa questão,
pois possui muito do exterior sem deixar de ser o interior; e uma das
soluções utilizadas pelos críticos literários é compará-lo com o gênero de ensaio ocidental.
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251
Contudo, apesar das muitas semelhanças, um não é idêntico
ao outro. Compartilham certas características como: possuir reflexões
subjetivas, defender ideias, ter um ponto de vista pessoal, uma linguagem mais simplificada, elevar a criatividade e criar jogos de palavras,
levantar problematizações e provocações e abranger variados temas.
Mas o zuihitsu não apresenta atributos particulares do ensaio como:
exposições de argumentos, texto com objetivo crítico, coesão e concisão do texto como um todo. O gênero japonês visa a exposição, a
observação, e não o convencimento.
As divergências entre esses gêneros similares também nos levam a considerar que são as necessidades socioculturais que produzem os gêneros e suas características, e, no caso do objeto de estudo
deste trabalho, pode-se dizer que surgiu da carência de uma elegância
informal e divertida que ultrapassasse o alcance dos tão difundidos
diários (日記, “nikki”), uma forma de evolução social deste, promovida
pela primeira vez por Sei Shônagon.
Outra posição interessante para investigar esse gênero é a partir
de um distanciamento que permita observar a obra como um todo, a
composição e não as partes.
Além disso, as personagens que permeiam os relatos são do
mesmo plano que o leitor. As produções contêm elementos sócio-históricos adaptados pelos autores seguindo as exigências requeridas
pela literatura, portanto, podemos considerar que se trata de uma forma de ficção histórica, e quem é citado e, até mesmo a voz de quem
narra os excertos com suas opiniões, têm uma conexão de realidade e
humanidade com o leitor.
“As obras literárias são a união de objetos sócio-históricos com
elementos estéticos que irão realçar esses objetos” (FRYE, 1973) e o
zuihitsu é uma profusão de elementos externos filtrados por um ponto de vista único e cautelosamente dispostos em pequenos trechos
acompanhados de poemas, citações e outros aparatos estéticos e
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252
literários que formam a composição geral das obras. A questão da
disposição desses componentes e de seu conteúdo é em regra seriamente pensado pelo autor, que deve calcular a adequação da estrutura pensando em seu público, como exemplo, quando Sei Shônagon
insere poemas de própria autoria como forma de embelezar o texto e
também contextualizar os comentários que foram feitos ou que virão
em seguida, além de demarcar sua posição sócio-histórica. Há uma
busca pelo equilíbrio entre ética e estética.
Junto com as reflexões subjetivas e o ponto de vista pessoal
que o relacionaram ao ensaio ocidental, o zuihitsu possui uma característica geral da literatura que ganha ainda mais importância nele: o
aspecto social. As obras que foram e que serão parte dele são feitas do
ambiente sociocultural do autor para esse ambiente, e servem como
prova histórica desse ambiente, seja ele a corte imperial, o templo ou
a aristocracia abandonada. Os excertos são a versão única e transformada dessa matéria-prima social.
É também necessário ponderar sobre o nascimento dos escritos literários. Frye (1973) diz que a mãe do texto é sempre a natureza,
de onde vem a inspiração, o pai é a forma, e a parteira é o autor, o
elemento externo que intermedia, e dizer que o zuihitsu é a união da
constituição do estilo com a inspiração da natureza (humana ou silvestre) feita pelas mãos do escritor é deveras condizente.
Quanto ao seu amadurecimento, as “caixas organizadoras” do
ocidente desenvolveram-se a partir dos três gêneros modelo, concebidos pelos gregos no auge da civilização antiga: drama, épica e lírica,
dos quais nenhum foi pensado para a escrita. A existência do zuihitsu,
por sua vez, depende dessa habilidade, sendo um dos motivos da
dificuldade de classificá-lo de acordo com os modelos gregos, apesar
de possuir elementos semelhantes e compatíveis, especialmente com
a lírica. Ao considerar esses tópicos nasce a necessidade da “caixa
própria”, proposta por este trabalho.
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MAKURA NO SÔSHI E TSUREZUREGUSA
– UMA ANÁLISE COMPARATIVA
Após compreender as características da forma que tomaram,
far-se-á aqui uma análise comparativa entre a obra pioneira do zuihitsu,
Makura no Sôshi (“O Livro de Travesseiro”), e sua discípula, Tsurezuregusa (Essays in Idleness ou “Ensaios na Ociosidade”).
Deve-se dizer que a comparação toma como base as seis modalidades de estudo literário propostas por Antônio Candido (2008):
relacionar com o período e o gênero, correlacionar elementos do livro
com aspectos da realidade, relacionar o autor com o público, relacionar a posição social do autor com a produção e a sociedade, investigar
a função política e análise hipotética das origens.
Pensando nesses tópicos e nas considerações feitas anteriormente sobre as características gerais do zuihitsu, o primeiro ponto a ser
analisado está relacionado com uma convenção social tradicional japonesa: a contemplação da natureza e sua ligação com a arte e com os
sentimentos. Yoshida Kenko coloca da seguinte forma: “A lua de outono
é especialmente esplêndida. É um homem tremendamente insensível
aquele que não consegue diferenciá-la da lua das outras estações.” Sei
Shônagon, por sua vez, demonstra essa sensibilidade de forma muito
semelhante: “Do outono, o entardecer. São os momentos do arrebol da
tarde em que o sol se acha prestes a tocar as colinas quando se tornam
comoventes os corvos que se apressam para os ninhos em grupos”.
A efemeridade implícita nos ciclos naturais que inspiraram esses excertos também está diretamente ligada com a questão religiosa, especialmente no caso desses autores, ligados ao xinto-budismo; contudo eles divergiram em suas colocações pelas diferentes
perspectivas pessoais, diferentes “razões psicológicas”; Kenko era
um monge que vivia fielmente sob os preceitos budistas, como prova
o trecho em que usa um religioso como modelo de vida: “Jôshin era
sumário
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pobre, mas ensinava em seu leito de morte [...] era excelente em
caligrafia, nos estudos e na oratória [...] liberdade possuía para fazer
tudo a seu modo. Deve-se tudo isso as suas grandes virtudes”.
Da mesma forma mostra essa essência em seus comentários sobre a vida. Por outro lado, Sei Shônagon vivencia uma relação social com
a religião, onde os eventos budistas e xintoístas são prerrogativas de
encontros e passeios, de socialização e de julgamentos estéticos, como
vemos no seguinte excerto (“O monge que se encarrega do sermão”):
O monge que se encarrega do sermão, que este seja bonito. [...]
Se o monge é feio, viramos os olhos e esquecemos o teor da sua
fala [...] (Os Secretários Particulares) Quando encontram conhecidos, festejam e tomam assento juntos, conversam, concordam,
falam coisas divertidas e riem abrindo os leques frente à boca.
Entretanto, ambos se encontram cercados de superstições e
cerimônias de cunho sagrado e partilham dessas como algo inato à
sua existência, como a peculiaridade da existência das direções de
sorte ou azar, por conta da suposta movimentação dos deuses: “Após
desviar o percurso para evitar a má sorte da noite anterior ao primeiro
dia da primavera, retornar tarde da noite com muito esforço, batendo
sem parar o queixo por conta do frio é muito agradável”.
Que também é relatada por Yoshida quando pragueja que as
antigas convenções de sorte e azar estavam sendo deturpadas pelos
mestres de seu tempo.
Outra questão relevante, que está relacionada com o estilo de
vida desses autores, é o gênero, ou melhor, o sexo biológico. A princípio, pode parecer não influenciar diretamente nos textos pela sua
fluidez e pessoalidade, mas, ao observar as questões práticas, percebe-se através dos excertos que Kenko tem muito mais liberdade de
movimento e de circulação entre cidades e pessoas, diferente da dama
que, devido aos códigos sociais femininos, possui somente uma experiência teórica demonstrada em listas como “Quanto a ilhas” e “Quanto a templos”. Todavia, Shônagon tem muito mais intimidade com os
sumário
255
acontecimentos da corte e seus jogos socioculturais e comunicativos,
como prova nos relatos sobre trocas de poemas e visitas de amantes.
Conquanto, apesar dessas diferenças, as regras sociais foram demasiadamente rígidas tanto na Era Heian, como vemos em:
“Coisas detestáveis: pessoas com vozes desagradáveis que falam e
riem sem reservas”; quanto na Era Kamakura: “Não se deve chamar
alguém sem nenhuma razão em particular. Mesmo se tiver motivo,
deve se retirar logo após o assunto seja resolvido. É verdadeiramente
incômodo se uma visita se arrasta demais”.
Mas, para Sei, a etiqueta era muito mais crucial e mais usualmente vista como fundamento de julgamentos, desde o vestuário até
o comportamental, por exemplo: “Torna-se gratificante ver todas as
pessoas em trajes esmerados a se desejar felicitações com o espírito renovado.” ou “Acima de tudo mesmo, ser atencioso é qualidade
admirável tanto nos homens quanto nas mulheres” ou “Coisas desagradáveis de ver”: vestir-se deixando a nuca demasiadamente à
mostra”. Diferente do que foi para Yoshida, que já vivia em uma era
de decadência e em um meio religioso, apesar de demonstrar um
senso aguçado de refinamento em certos trechos, como no já citado
anteriormente: “Pessoas não refinadas, de outra forma, irão discursar
com excitação exagerada mesmo após um breve passeio”.
Relacionado com as regras sociais e de etiqueta, percebe-se
que a erudição era de alta estima para ambos. Os dois autores viveram
em épocas em que a escrita e o conhecimento da literatura tradicional
(chinesa e japonesa) era imprescindível para a convivência tanto com
os religiosos quanto com os nobres da corte; ambos dividiam uma
admiração pelos escritos como vemos no Tsurezuregusa em “Coisas
que são prazerosas em grande quantidade são livros acumulados em
carrinhos, e rascunhos em pilhas”, e em “a arte da poesia e da música
são conhecimentos de verdadeira e refinada sensibilidade”.
sumário
256
No Makura no Sôshi a forma de maior ocorrência é a troca e os
concursos de poemas, como quando a escritora envia um bilhete à
consorte imperial: “Servi-vos deste doce que chegou através da cerca”, e para entender a mensagem é necessário conhecer a antologia
clássica Kokin Rochujô, pois é uma referência a um dos poemas dessa
obra; e como esse, há vários exemplos.
Quanto ao período em que foram redigidas, existem nas obras
diversas aparições políticas e históricas (casamentos políticos, personas importantes, eventos sócio-históricos, dentre outros). Por exemplo:
O enlace matrimonial de Shigeisa com o príncipe herdeiro Okisada, como não poderia deixar de ser, foi sem dúvida o mais
jubiloso dos acontecimentos. Sua vinda para o Palácio ocorreu
no décimo dia do primeiro mês [...].
Ou em: “O Imperador Retirado decidiu canalizar água do rio
Ôi para o palácio Kameyama. [...] chamou os aldeões de Uji para
realizar o trabalho”.
O clã Fujiwara, que manteve políticas de retenção de poder e
que dominou a Era Heian, aparece no Makura no Sôshi de diversas
formas, pois casaram suas filhas com imperadores ou príncipes, cuidaram dos herdeiros do trono, colocaram-nos no poder, e também
os tiraram jovens do poder e ocuparam-nos com funções religiosas,
tornando-se assim uma família onipresente. Sei Shônagon faz alusão
ao fato da casa dos Fujiwara ser a provedora de imperatrizes:
O modo como o mensageiro do Imperador é tratado em residências nobres em que a filha já é Consorte Imperial, ou que
ainda é chamada de Princesa, ou que virá a ser Imperatriz [...].
Foi uma família que permaneceu muitos séculos no poder, portanto aparecem também no Tsurezuregusa: “O Grande Conselheiro
Contador Takachika (Fujiwara)”; todavia, por não ser um clã guerreiro,
sua influência em Kamakura era muito menor do que na corte de Heian.
sumário
257
Outro quesito interessante, de origem social, mas que ganha
uma visão muito interessante na visão desses dois japoneses, é a
questão amorosa. Assim como a etiqueta, os encontros amorosos
tinham muitas regras em ambas as épocas: havia um ritual que envolvia desde as primeiras visitas na calada da noite até as cartas
bem planejadas e perfumadas que deveriam ser enviadas na manhã
seguinte. Yoshida Kenko escreve:
Se alguém com quem você divide intimidade em algum momento se torna polido, não se deve recear em perguntar ‘Por
que tão formal de repente?’ É para mim um sinal de integridade
e excelência de caráter.
Sei Shônagon registra: “Um homem bastante galante e de muitos amores [...] É elegante a sua figura descontraída, e é atencioso o
modo com que escreve a carta da manhã seguinte.”.
Por fim, uma característica que as duas obras também têm em
comum, e que aviva o sentido de estudá-las até os dias presentes: a
atualidade de diversos excertos, a presença de sentimentos, questionamentos e comentários que estão além do momento e fazem parte
da própria natureza humana, o lado de comunicação universal da
obra com o leitor de qualquer século, como no Tsurezuregusa em:
“Independente do campo, gente especializada é uma ótima coisa”
ou em “É melhor para os bem-nascidos, sem mencionar para os de
baixos recursos, não terem filhos”. E no Makura no Sôshi em: “Coisas que parecem penosas: A ama cuidando de um bebê que chora
durante a noite toda” ou em “É muito difícil responder a uma menina
que nos faz uma pergunta constrangedora”.
Como podemos ver, com semelhanças e diferenças, essas
obras tocam diversos tópicos socioculturais e históricos, além de construir as paredes da “nova caixa” do gênero zuihitsu.
sumário
258
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise comparativa realizada no presente trabalho foi uma
amostra de pontos regularizadores para um possível julgamento das
obras e do gênero. Buscou-se usá-la como ferramenta para buscar
unidade, para compreender as diferentes manifestações dos símbolos
comunicativos de cada autor e as ligações de texto e contexto.
Do choque entre os escritores, percebeu-se a influência que um
teve sobre o outro, mas também que as suas respectivas realidades
expuseram as divergências das mitologias particulares de cada um.
Ainda, criou-se uma especulação sobre as características gerais do gênero na incubadora e, a partir disso, incita-se aqui a construção de um protótipo com a base de um modelo oriental para desbloquear novos padrões a partir de diferentes arquétipos, sem, contudo,
empregá-los exclusivamente para obras do oriente distante, ou seja,
analisar as obras como legados da manifestação do ser humano
como um animal social de abrangência mundial, sem obstante deixar
de considerar os devidos contextos sociopolíticos e históricos do espaço-tempo em que se ambientam as empresas literárias.
Para que essa hipótese seja devidamente considerada, e que
sirva como uma das justificativas para a construção da definição teórica do zuihitsu apresentada nas linhas deste projeto, cita-se a obra O
Diário do Gueto, de Janusz Korczak: um livro escrito por um polonês
durante a Segunda Guerra Mundial e que, apesar dos quase 1000
anos e 8.435 km que o separam dos excertos de Sei Shônagon, apresentam as mesmas características, desde a estrutura revezada entre
poemas, mitos, fofocas, casos e causos, até a percepção de ficção
histórica misturada com sátira, elegância e melancolia.
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259
REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora
Ouro Sobre Azul, 2008.
FREDERIC, Louis. O Japão, dicionário e civilização. 1. Ed. São Paulo:
Editora O Globo, 2008.
FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. 1 ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1973.
FRYE, Northrop. Fábulas de Identidade. 1 ed. São Paulo: Editora Nova
Alexandria, 2000.
KENKO, Yoshida; CHOMEI, Kamo. Essays in Idleness and Hôjôki. 1 ed.
Londres: Editora Penguin Books, 2014.
MORRIS, Ivan. The World of the Shining Prince. 1. Ed. Nova York: Editora
Vintage, 2013.
SAEKI, Umetomo et al. 例解古語辞典第三版 (Reikai kogo jiten daisanban).
Tokyo: Sanseido, 1993.
SHÔNAGON, Sei. O Livro de Travesseiro. 1. Ed. São Paulo: Editora 34, 2013.
YAMASHIRO, José. Pequena História do Japão. 1. Ed. São Paulo: Herder, 1964.
sumário
260
Capítulo 13
13
Literatura Proletária Japonesa
Lívia Rodrigues Macedo
Lívia Rodrigues Macedo
Literatura
Proletária Japonesa
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.13
Estamos acostumados com um Japão de cartão postal, fruto da
propaganda farta entre nós, nos dias de ontem [...] Um Japão
de cerejeiras e gheisas, de montes nevados e sombrinhas coloridas. Onde tudo parecia ser pequeno, risonho e feliz, um paiz
(sic) de sonho. [...] Nunca tivemos ideia da existência de um
Japão inconformista, esfomeado, revoltado, lutando [...]
Jorge Amado131
A literatura japonesa constitui um importante objeto de estudo,
sobre o qual já se debruçaram diversos pesquisadores brasileiros.
Apesar de os primeiros imigrantes japoneses terem aportado no Brasil
em 1908, a recepção da literatura japonesa no nosso país, não raro, é
marcada por uma visão estereotipada da cultura japonesa.
De acordo com o levantamento feito por Elisa Corrêa (2021), a
segunda obra literária japonesa em prosa traduzida no Brasil foi publicada em 1945, pela Editora Brasiliense, sob o título Rua sem Sol, de autoria de Tokunaga Naoshi, com tradução assinada por Jorge Amado. Até
recentemente, essa obra era considerada a primeira edição comercial
brasileira de prosa japonesa (KATO, 2006; CUNHA, 2014, 2015, 2016,
2021). Ainda que não tenha sido nossa primeiríssima publicação desse
tipo, ela foi umas das primeiras, o que lhe confere certa centralidade.
Andrei Cunha (2014, 2015, 2016, 2021) identifica Taiyō no nai
machi [太陽のない街 – “Rua sem Sol”] como a obra japonesa que
deu origem ao romance em português e reafirma a hipótese de Fabio
Kato (2006), de se tratar de uma tradução indireta. Além disso, os
pesquisadores destacam uma confusão na transliteração do prenome do autor. Embora Naoshi seja uma das possibilidades de leitura
para o ideograma, como pontua a professora doutora Luiza Nana
Yoshida (USP), citada por Kato (2006), em japonês, seu nome é Tokunaga Sunao [徳永直]. Isso evidencia a distância desse escritor em
relação aos responsáveis por sua edição em terras brasileiras e do
público leitor de seu romance traduzido.
131 Extraído do prefácio do livro Rua sem Sol (AMADO, 1945, p. 1).
sumário
262
Ele era um dos escritores proletários do Japão. Apesar de receber pouca visibilidade nos estudos literários, a literatura proletária
japonesa é bastante significativa e merece destaque.
CONJUNTURA SOCIAL
Antes de tratar da literatura proletária do Japão, analisaremos
a conjuntura da sociedade japonesa do período em que ela tomou
forma. Primeiramente, há de se considerar que, nos séculos XVII, XVIII
e na primeira metade do século XIX, o país permaneceu fechado, com
quase nenhum contato com outras nações, com exceção do comércio
com a China e a Holanda. Sendo assim, quando ocorreu a Revolução
Industrial na Europa Ocidental – que também atingiu os Estados Unidos, a nação nipônica não passou pelo mesmo processo. Na década
de 1850, quando reabriu seus portos132, seu sistema de produção era
predominantemente agrário. Essa reabertura gradativa culminou com
a industrialização e a adoção do sistema capitalista.
Nessa esteira, emergiu um grupo social composto por industriais e comerciantes, de um lado, e as massas de operários e demais trabalhadores braçais, de outro. Entre essas duas camadas,
estavam os pequenos proprietários de terras, pequenos industriais,
pequenos comerciantes e os assalariados que exerciam trabalhos
não-manuais, constituindo a classe média. Começaram, então, os
choques de interesses entre essas três classes. Vale ressaltar que,
enquanto os países que viveram a Revolução Industrial no século
XVIII levaram cerca de um século para concretizar o novo sistema de
produção, o Japão – assim como outros países, cuja industrialização
foi tardia – resumiu-o em poucas décadas. Consequentemente, as
tensões sociais foram mais acentuadas.
132 A reabertura se deu, por pressão dos Estados Unidos, com a assinatura do Tratado de
Kanagawa em março de 1854. Para mais informações, ver Henshall (1999), mais especificamente p. 64-65.
sumário
263
Durante o período de fechamento do Japão, a estratificação
social era extremamente rígida. Com a reabertura do país, o sistema de classes foi abolido, uma nova constituição foi adotada e um
parlamento foi criado. Concomitantemente, crescia o interesse por
direitos humanos e pela democracia. Os primeiros partidos políticos
foram fundados e as primeiras eleições ocorreram. Contudo, o governo adotou medidas antidemocráticas. Em 1875, instituíram-se leis
que cerceavam a liberdade de expressão (HENSHALL, 1999). Em
1880, estabeleceu-se a Shūkai jōretsu [集会条列 - “Regulação de
Reuniões”], restringindo a realização de reuniões públicas e quem
poderia participar delas (HENSHALL, 1999). Em 1900, foi sancionada
a Chian keisatsuhō [治安警察法 - “Lei de Polícia e Ordem Pública”],
que proibia greves e ações sindicais (SORTE JUNIOR, 2021). Houve
a promulgação da Chian ijihō [治安維持法 - “Lei de Preservação da
Ordem Pública”], em 1925, tornando ilegal formar e integrar organizações para alterar a estrutura fundamental do Estado (SORTE JUNIOR,
2021). Além disso, em 1928, a infração dessa lei passou a ser punível
com pena de morte (BOWEN-STRUYK; FIELD, 2016).
Em paralelo, o Japão desenvolveu suas forças armadas. De
acordo com Tsurumi (1970), o governo japonês adotou políticas educacionais, além de políticas voltadas para os soldados e marinheiros,
com o objetivo de unir a população e se preparar para a iminente guerra na Ásia entre a Inglaterra e a Rússia, devido à facilidade de acesso
ao continente asiático, com a conclusão da ferrovia Canadian Pacific e
da Transiberiana e o início da construção do Canal do Panamá. Ainda,
para fazer frente às grandes potências ocidentais e evitar ser colonizado por elas, o país procurou expandir seu território. Inicialmente, na
década de 1880, anexou Hokkaido e Okinawa. Em seguida, travou a
primeira guerra sino-japonesa pelo domínio da Coreia (1894-1895). Na
sequência, empreendeu a guerra russo-japonesa pela posse da Sacalina (1904-1905). Depois, anexou a Coreia em 1910. Na Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), combateu ao lado dos Aliados, devido ao Tratado Naval Anglo-Japonês, assinado em 1902, que previa a aliança e a
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264
ajuda naval mútua entre os dois países. Em todas essas empreitadas,
saiu vitorioso, o que fortaleceu ainda mais seus propósitos imperialistas. Com base na Chian ijihō, ir contra esses intentos era ilegal.
ANTECEDENTES
Segundo Donald Keene (1987), antes mesmo da publicação
das primeiras obras de literatura proletária no Japão, já havia algum
indício de literatura de esquerda no país, como os ensaios e poesias
de Ishikawa Takuboku [石川啄木]. Esse escritor passou a se interessar
pelo socialismo em 1910. Suas obras permitiam vislumbrar que um
novo tipo de literatura podia estar a caminho (KEENE, 1987).
No entanto, a suposta conspiração para assassinar o imperador
Meiji, conhecida como Kōtoku jiken [幸徳事件 - “Incidente Kōtoku”] ou
Daigyaku jiken [大逆事件 - “Incidente da alta traição”], de 1910, que levou à prisão e execução do jornalista anarquista Kōtoku Shūsui [幸徳
秋水], de sua esposa escritora feminista Kanno Suga [菅野スガ] e de
outros acusados, deu início à perseguição massiva de dissidentes do
regime imperial. Essa repressão abafou os movimentos de esquerda
por quase uma década. A partir de 1919, diversas revistas de cunho
socialista começaram a ser editadas, mas foi a fundação da Nihon
Shakai shugi dōmei [日本社会主義同盟 - “Associação Socialista do
Japão”], em 1920, que abriu o caminho para o desenvolvimento do
movimento literário proletário japonês (KEENE, 1987).
SURGIMENTO DO MOVIMENTO
O marco inicial do movimento literário proletário no Japão é a
publicação da revista Tane Maku Hito [種蒔く人 - “Semeadores”], em
maio de 1921, em Akita (KEENE, 1987). Seu editor foi Komaki Ōmi [小
sumário
265
牧近江], que viveu e estudou na França, onde conheceu Henri Barbusse, escritor do romance Clarté, publicado em 1919. Barbusse iniciou
sua carreira como poeta neo-simbolista, escreveu romances neo-naturalistas e serviu na Primeira Guerra Mundial, da qual foi dispensado,
após ser ferido na frente de batalha. Seus trabalhos, a partir de Clarté,
têm orientação política. O autor, juntamente com outros intelectuais,
organizou, na França, um grupo homônimo a esse romance que fazia
parte dos movimentos pacifistas. Komaki teria prometido a Barbusse
fundar um movimento similar no Japão e, com esse intuito, criou a
revista Tane Maku Hito, em sua cidade natal, quando retornou ao país.
Um dos financiadores da revista era amigo do escritor Arishima Takeo [有島武夫], cujas obras tinham influência socialista. Além de Arishima Takeo, contribuíram com a primeira edição da revista Tane Maku Hito
o escritor japonês Akita Ujaku [秋田雨雀], líder do movimento proletário
esperantista, e Eguchi Kiyoshi [江口渙], escritor que se filiara ao movimento socialista no ano anterior. Nessa edição, também havia textos
dos escritores franceses Henri Barbusse e Anatole France – Nobel de
Literatura de 1921 – organizadores do grupo Clarté, com o qual Komaki
tivera contato na França, bem como do poeta e filósofo socialista inglês
Edward Carpenter. Já a terceira edição, contou com a contribuição do
escritor, pintor e filósofo humanista Mushakōji Saneatsu [武者小路実篤].
A primeira tiragem foi de 200 exemplares, mas em outubro de
1921, sua publicação foi transferida para Tóquio e esse número subiu para três mil exemplares (KEENE, 1987). O conteúdo da revista
era predominantemente político. Ela circulou até 1923, quando houve
um terremoto de magnitude 7,9 na escala Richter na região de Kantō,
ceifando a vida de mais de 140 mil habitantes e destruindo a capital
japonesa. O desastre e a subsequente intensificação da repressão do
governo japonês impossibilitaram a publicação do periódico.
Na primavera de 1924, ex-membros da Tane Maku Hito juntaram-se para publicar uma nova revista. A Bungei Sensen [文芸戦線 - “Frente de Batalha Literária”], menos radical que a Tane Maku Hito, começou
sumário
266
a ser veiculada em junho de 1924, foi suspensa em janeiro de 1925 e
voltou a circular em junho do mesmo ano (KEENE, 1987).
Em julho de 1924, durante o encontro dos escritores proletários na União Soviética, houve um apelo para que os artistas de
todo o mundo participassem da luta pela libertação do proletariado. Com isso e com o apoio da Bungei Sensen, em dezembro de
1925, a Nihon Puroretaria Bungei Renmei [日本プロレタリア文芸連盟
- “Federação Literária Proletária do Japão”] reuniu-se pela primeira
vez. Participavam da organização pessoas de diversas vertentes de
esquerda (KEENE, 1987).
Em março de 1928, formou-se a Zen’nihon musan-sha geijutsu
renmei [全日本無産者芸術連盟 - “Federação dos Artistas Proletários
Japoneses”], cujo nome oficial em esperanto é Nippona Artista Proleta Federacio (NAPF). Vale destacar que a escolha por uma denominação em esperanto era comum nessas organizações, em grande
medida, para seguir o projeto soviético de um movimento proletário
internacional. A NAPF editava a revista Senki [戦旗 - “Bandeira de
Batalha”], na qual foram publicadas, em 1929, as obras kanikōsen [
蟹工船 - “O Navio Carangueijo”]133, de Kobayashi Takiji [小林多喜二]
e Taiyō no nai Machi, de Tokunaga Sunao.
Em 1931, estabeleceu-se a Nihon puroretaria bunka renmei [日
本プロレタリア文化連盟 - “Federação da Cultura Proletária Japonesa”], em esperanto, Kultura Organizoi Proleta Federacio (KOPF). Essa
organização absorveu a NAPF e expandiu as atividades para outras
áreas, tais como: teatro, cinema, artes visuais, fotografia, música e
associou-se a organizações de esperanto, ateísmo, controle reprodutivo, pesquisas científicas e bibliotecas (BOWEN-STRUYK; FIELD,
2016). Extinguiu-se em 1934.
133 KOBAYASHI, Takiji. kanikōsen. Traduzido do japonês por Ivan Luis Lopes. Londrina:
Aetia Editorial, 2022.
sumário
267
PERSONALIDADES NOTÁVEIS
Nesta seção, discorreremos brevemente sobre alguns dos
expoentes da literatura proletária japonesa. Primeiramente, apresentaremos três teóricos do movimento, seguidos por oito escritores e
escritoras que não exerciam trabalhos manuais e, por fim, mais oito
representantes do proletariado.
HIRABAYASHI HATSUNOSUKE [平林初之助]
Formado pela Universidade Waseda, Hirabayashi Hatsunosuke
foi o teórico da revista Tane Maku Hito. Segundo Keene (1987), era
corrente entre os teóricos da época considerar que a “intelligentsia
proletária” contribuía grandemente com a causa dos trabalhadores.
Hirabayashi, por outro lado, não considerava que a intelligentsia estava
acima das demais classes.
Ele viveu de 1891 a 1931 e produziu traduções de literatura francesa, além de tratados sobre a literatura proletária. Em março de 1929,
escreveu o texto Seijiteki Kachi to Geijutsuteki Kachi [政治的価値と芸術
的価値 - “Valor Político e Valor Artístico”], no qual defende que obras
que não estão calçadas na ideologia proletária têm menos valor artístico (KEENE, 1987).
AONO SUEKICHI [青野季吉]
Formado pela Universidade Waseda, o crítico literário Aono
Suekichi viveu de 1890 a 1961. Em 1925, traduziu parcialmente a
obra “Que fazer?”, de Lênin. Finalizou-a, posteriormente, em conjunto
com o ator Sasaki Takamaru [佐々木孝丸] (BOWEN-STRUYK, 2016).
Nos ensaios Shizen Seichō to Mokuteki Ishiki [自然成長と目的意識 sumário
268
“Crescimento Natural e Consciência do Propósito”], publicado na
edição de setembro de 1926 da Bungei Sensen, e Shizen Seichō to
Mokuteki Ishiki Sairon [自然成長と目的意識再論 - “Crescimento Natural
e Consciência do Propósito Revisado”], publicado na mesma revista
em janeiro de 1927, Aono defendeu a aplicação das teorias políticas
da obra leninista para discutir literatura. Keene (1987) aponta que essa
ideia é rebatida por George Tyson Shea, estudioso de literatura japonesa de esquerda, em seu livro Leftwing Literature in Japan: A Brief History
of the Proletarian Literary Moviment (“Literatura de Esquerda no Japão:
uma breve história do Movimento Literário Proletário”), publicado em
1964. Para o pesquisador, o ensaio de Lênin constitui teoria política e
não poderia virar teoria literária, nem teoria de um movimento literário.
Além disso, Aono acreditava que não bastava que as obras produzidas no âmbito da literatura proletária tivessem como temática a
luta da classe proletária, a qualidade literária e o valor artístico das
obras também eram importantes (KEENE, 1987).
KURAHARA KOREHITO [蔵原惟人]134
Kurahara Korehito viveu de 1902 a 1991 e foi um dos responsáveis pela criação da KOPF. Com formação em Literatura Russa pela
Faculdade de Tóquio de Línguas Estrangeiras, o escritor e crítico viveu
em Moscou por dois anos, onde trabalhou como correspondente do
Miyako Shinbun [都新聞 - “Jornal Miyako”]. Quando retornou ao Japão,
em 1927, filiou-se à literatura proletária japonesa.
Publicou, em maio de 1928, na primeira edição da revista Senki,
o ensaio Puroretaria rearizumu e no michi [プロレタリア・レアリズムへ
の道 - “O caminho ao Realismo Proletário”], no qual começou a desenhar o suporte teórico para o realismo proletário. De acordo com Sorte
Junior, o realismo proletário defendido por Kurahara:
134 Esta seção foi elaborada com base em Sorte Junior (2021).
sumário
269
deveria 1) dedicar-se a retratar quaisquer tipos de problemas
individuais pelo prisma social; 2) oferecer uma interpretação
mais dinâmica e precisa da realidade com base na natureza
exploradora e desigual da sociedade capitalista; e 3) analisar o
mundo sob a ótica do proletário militante, o que ele denominava
proletário de vanguarda (SORTE JUNIOR, 2021, p. 77-78).
Em agosto de 1929, ele publicou mais um ensaio intitulado
Futatabi puroretaria rearizumu ni tsuite [再びプロレタリア・レアリズム
について - “Revisitando o caminho ao Realismo Proletário”], no qual
enfatiza a importância de representar as pessoas em sua complexidade, não como uma massa homogênea. Sorte Junior afirma que, de
acordo com Kurahara:
as três principais condições para o realismo proletário que deveriam ser observadas pelos escritores do movimento proletário
eram as seguintes: 1) partir da realidade e de suas próprias
interpretações da realidade; 2) descrever a realidade sempre
de uma perspectiva social; e 3) compreender as pessoas em
sua complexidade e totalidade (SORTE JUNIOR, 2021, p. 78).
Kurahara também advogava pela importância de pessoas pertencentes à classe proletária escreverem obras literárias sobre suas
experiências. Ainda, o crítico defendeu a inclusão das vilas no movimento, pois considerava que a arte proletária precisava envolver tanto
operários, quanto camponeses.
KOBAYASHI TAKIJI [小林多喜二]135
A crítica considera Kobayashi Takiji o autor mais notável da literatura proletária japonesa. Sua infância foi desafortunada, mas graças
a um tio que o levou para Hokkaido, recebeu uma boa educação. Em
1924, fundou, junto com alguns colegas da escola, a revista Clarté, em
referência à obra de Barbusse. Após sua formatura, ele trabalhou em
um banco em Otaru, onde conheceu textos de Marx, Lênin e Fukumoto
Kazuo [福本和夫], um dos teóricos do Partido Comunista Japonês.
135 Esta seção foi elaborada com base em Keene (1987).
sumário
270
Em 1929, foi demitido do banco, após a publicação de kanikōsen e de Fuzai Jinushi [不在地主 - “Senhorio Ausente”]. Em 1930,
foi preso e torturado sob suspeita de coletar dinheiro para o Partido
Comunista Japonês, embora ele só tenha se filiado ao partido oficialmente no ano seguinte. Chegou a ser libertado, mas voltou à prisão
acusado do crime de lesa majestade, por uma passagem de kanikōsen e ficou preso por mais seis meses.
Em 1932, após a invasão da Manchúria pelas forças armadas
japonesas, a opressão governamental se intensificou, resultando em
prisões em massa de membros da KOPF e de outras pessoas de
esquerda. Por esse motivo, Kobayashi passou a viver na clandestinidade. Mesmo escondido, continuou a escrever e publicar sob pseudônimos. Em 1933, ele caiu numa armadilha, foi preso e torturado
até a morte. A polícia alegou que a causa da morte foi um ataque
cardíaco e não permitiu uma autópsia. No entanto, o estado de seu
corpo contrariava a versão policial.
NAKANO SHIGEHARU [中野重治]
Escritor filiado ao Partido Comunista Japonês, Nakano Shigeharu viveu de 1902 a 1979 e frequentou a Universidade Imperial de Tóquio. Sua esposa Hara Sen [原泉], que viveu de 1905 a 1989, foi atriz
do movimento teatral proletário (FIELD, 2016). Assim como Aono Suekichi, Nakano criticava a falta de competência literária das obras do
movimento proletário (KEENE, 1987).
De acordo com Norma Field (2016d), ele conseguiu traduzir, de
forma concreta, em obras de ficção, argumentos abstratos contra o sistema imperial. Em março de 1929, poucos meses após a ascensão do
imperador Hirohito ao trono, saiu na revista Senki, sua obra Tetsu no Hanashi [鐡の話 - “A História de Tetsu”], na qual o autor retrata o ônus social
e financeiro e as desastrosas consequências, inclusive para o psicológico
do protagonista, da visita do príncipe herdeiro a um vilarejo (FIELD, 2016).
sumário
271
HAYASHI FUSAO [林房雄]
Gotō Toshio [後藤寿夫], que mais tarde adotou o nome de Hayashi Fusao, viveu de 1903 a 1975. Graças aos sacrifícios que sua
mãe viúva fez para provê-lo, Hayashi estudou direito na Universidade
Imperial de Tóquio, onde teve contato com os pensamentos de esquerda (KEENE, 1987).
Tokunaga Sunao o conheceu nas reuniões do sindicato de tipógrafos de Kumamoto no começo da década de 1920. Foi por seu intermédio que Tokunaga conseguiu publicar Taiyō no nai Machi na revista
Senki, anos mais tarde. Segundo Donald Keene (1987), Hayashi foi
mais que um intermediário, foi uma espécie de mentor e, supostamente, teria reescrito as primeiras páginas do romance para que Tokunaga
seguisse escrevendo a narrativa nos mesmos moldes, além de ter feito
revisões de todo o texto.
Em fevereiro de 1926, Hayashi publicou na revista Bungei Sensen, sua primeira obra intitulada Ringo [林檎 - “Maçã”], resultado de
sua participação em protestos. Além das obras de sua própria autoria,
Hayashi também produziu traduções de contos de fadas socialistas
alemães (FIELD, 2016).
MIYAMOTO YURIKO [宮本百合子]136
Apesar de Miyamoto Yuriko ser estudada, em geral, como uma
escritora do movimento proletário, sua obra não se resume à sua
filiação ao movimento. Seu primeiro trabalho foi Mazushiki Hitobito
no Mure [貧しき人々の群 - “Grupo de Pessoas Pobres”], publicado
em 1916, na revista literária Chūō Kōron [中央公論 - “Revista Central”], quando ela estava com 17 anos de idade. Baseada em suas
estadias na propriedade de sua avó, na região nordeste do Japão,
136 Esta seção foi elaborada com base em Phillips (1979).
sumário
272
onde costumava passar as férias de verão, a história retrata a vida
de trabalhadores rurais. Já é possível observar na narrativa, embora
de forma incipiente, a consciência da autora sobre desigualdades
socioeconômicas. A opressão foi tema central de seus romances,
contos e ensaios ao longo de seus mais de 30 anos de carreira.
Em 1918, o pai de Yuriko foi aos Estados Unidos (EUA) a trabalho
e ela o acompanhou. Permaneceu lá, estudando na Universidade de Columbia, mesmo depois que o pai voltou à terra natal. Ao retornar ao Japão, Yuriko passou a engajar-se em movimentos sociais. Nessa época,
seus trabalhos tinham como temática o papel da mulher na sociedade.
Além da estadia nos Estados Unidos (EUA), a literata também
passou uma temporada de três anos na União Soviética (URSS), onde
aprofundou seu interesse pelo bloco e pelo socialismo. Ela teria ficado
impressionada com o papel que as mulheres tinham na construção da
nova organização social por lá. Em 1931, Yuriko entrou para a NAPF
e começou a escrever ensaios para apresentar a URSS para o Japão.
Quando a KOPF foi criada, ela foi eleita para seu comitê central e
para o comitê das mulheres, além de assumir a edição da revista Hataraku Fujin [働く婦人 - “Mulher Trabalhadora”]. Ainda, filiou-se ao Partido
Comunista Japonês. Em 1932, casou com o escritor do movimento
proletário Miyamoto Kenji [宮本顕治] e abriu mão do sobrenome Chūjō
[中条] de seus pais para assumir o sobrenome do esposo. Yuriko foi
encarcerada diversas vezes, o que acarretou graves consequências
para seu estado de saúde. Mesmo com todas as dificuldades que enfrentou, continuou escrevendo até seu falecimento, em 1951.
WAKASUGI TORIKO [若杉鳥子]137
Filha ilegítima de um comerciante abastado, Wakasugi Toriko nasceu em 1892 e foi adotada por uma casa de gueixas. Aos 12 anos, já
137 Esta seção foi elaborada com base em Bowen-Struyk; Field (2016).
sumário
273
participava de grupos literários. Fugiu para Tóquio, aos 16 anos, onde
trabalhou como doméstica, até conseguir uma vaga como jornalista.
Sua primeira obra Retsujitsu [烈日 - “Sol Escaldante”], que aborda a injustiça no ambiente de trabalho, foi publicada na Bungei Sensen,
em 1925. Já Hahaoya [母親 - “Mãe”], publicada em 1931, no periódico Gekkan Hihan [月刊批判 - “Crítica Mensal”], tanto alude à injustiça
social, quando retrata mulheres que, levadas pela consciência dessa
injustiça, se unem para combatê-la. Assim como Miyamoto Yuriko, Wakasugi ajudou a editar a Hataraku Fujin.
MURAYAMA KAZUKO [村山壽子]138
Filha de uma família abastada, Murayama Kazuko teve acesso
à educação de qualidade. A escritora de literatura e músicas infantis
viveu de 1901 a 1946 e começou a publicar no final da década de 1910,
antes de entrar para o movimento proletário.
Suas obras tinham protagonistas não-humanos, geralmente,
animais, vegetais e até objetos domésticos de uso diário. Além disso,
eram permeadas por consciência de classe. A obra Koorogi no Shi [こ
おろぎの死 - “A Morte do Grilo”], publicada em 1929, na Shōnen Senki [少年戦旗 - “Bandeira de Batalha Juvenil”], retrata o sofrimento do
trabalhador, a desigualdade social e a importância dada ao dinheiro e
a bens materiais, mesmo dentro de um hospital de caridade cristão.
Seu esposo Murayama Tomoyoshi [村山知義] era artista gráfico e ilustrava suas obras. Ele viveu de 1901 a 1977 e integrou o
movimento teatral proletário. Tomoyoshi também escreveu dramas e
romances, foi ator, diretor, figurinista, cenógrafo, artista performático,
criador e teórico (BOWEN-STRUYK, 2016).
138 Esta seção foi elaborada com base em Field (2016).
sumário
274
HIRABAYASHI TAIKO [平林たい子]139
Filha de proprietários de terra em decadência, Hirabayashi Taiko passou sua infância e adolescência na classe média. Viveu de
1905 a 1972 e prosseguiu com os estudos, apesar da oposição de
sua mãe, que preferia que ela parasse de estudar para trabalhar.
Em 1922, publicou, na Bunshō Kurabu [文章クラブ - “Clube
de Redação”], sua primeira obra Aru Yo [ある夜 - “Certa Noite”],
que trata da desigualdade social. Na onda de prisões que sucedeu
o terremoto de Kantō, em 1923, ela e seu companheiro foram presos por serem anarquistas. Quando liberados, foram proibidos de
permanecer em Tóquio e viajaram para a Manchúria. Os dois foram
detidos novamente, acusados de atividade subversiva. Dessa vez,
como estava no oitavo mês de gestação, com beribéri e cegueira
noturna, não foi encarcerada, mas enviada para um hospital de caridade cristão, onde sua filha nasceu. No entanto, o bebê morreu de
desnutrição logo após o nascimento. Esse trauma foi retratado na
obra Seryōshitsu ni te [施療室にて - “No Leito Gratuito”], publicada
em 1927, na Bungei Sensen. A narrativa mostra a diferença de tratamento de um hospital de caridade entre os pacientes que podiam
pagar e aqueles que eram atendidos gratuitamente.
Hirabayashi contribuiu em periódicos do movimento proletário,
apesar de se opor à forma como suas organizações eram conduzidas.
Em 1937, foi presa mais uma vez. Sua saúde ficou tão debilitada a
ponto de ela ser liberada, mas não conseguir escrever por cerca de
sete anos. Suas obras buscavam conscientizar as mulheres sobre a
opressão da família e do capital.
139 Esta seção foi elaborada com base em Ondrake (2009).
sumário
275
NAKAMOTO TAKAKO [中本たか子]
As obras de Nakamoto Takako, como Aka [赤 - “Vermelho”],
publicada na Fujin Sakkashū [婦人作家集 - “Coletânea de Mulheres
Escritoras”], em 1929, retratavam a vida das mulheres proletárias.
Nascida em uma família burguesa, a escritora viveu de 1903 a 1991.
Ela teve acesso à educação e tornou-se professora. Em 1927, decidiu
se dedicar à escrita.
No final de 1929, se mudou para Kameido, área industrial de
Tóquio, para ficar mais perto das mulheres trabalhadoras fabris. Lá,
organizou e lecionou em uma escola para mulheres e participou do
Partido Comunista Japonês. Foi presa em 1930, logo após a greve de
uma fábrica, mas foi liberada. Presa novamente no mesmo ano, foi
torturada a ponto de sofrer um aborto, após o qual foi internada numa
instituição psiquiátrica e, por fim, liberada sob fiança. Ela continuou
organizando atividades clandestinamente, pelo que foi detida pela terceira vez e sentenciada a quatro anos de trabalhos forçados.
IMANO KENZŌ [今野賢三]140
Um dos primeiros escritores do movimento que pertencia à
classe proletária, Imano Kenzō viveu de 1893 a 1969 e só estudou
até o Ensino Fundamental I. Ele é autor de Kaji no yoru made [火事の
夜まで - “Até a Noite do Incêndio”], publicada na edição de março de
1922 da revista Tane Maku Hito, que conta a história de um vendedor
de jornais que se casa com uma prostituta.
140 Esta seção foi elaborada com base em Keene (1987).
sumário
276
MAEDAKŌ HIROICHIRŌ [前田河広一郎]141
Depois de passar 13 anos trabalhando nos Estados Unidos
(EUA), onde converteu-se ao socialismo, Maedakō Hiroichirō retornou
ao Japão em 1920, ano de publicação de sua primeira história Santō
Senkyaku [三等船客 - “Passageiros da terceira classe”]. A obra fala
sobre um grupo de japoneses que retorna dos Estados Unidos para o
Japão de navio. O autor não deu nome às personagens, o que marca o
apagamento das individualidades dessas pessoas. A obra ainda conta
com um certo humor, pouco usual na literatura proletária. Há rumores
de que Santō Senkyaku inspirou obras posteriores como Umi ni Ikuru
Hitobito [海に生くる人々 - “As pessoas que vivem no mar”], de Hayama
Yoshiki e kanikōsen, de Kobayashi Takiji. Maedakō viveu de 1888 a
1957 e escrevia regularmente para a Tane Maku Hito.
HAYAMA YOSHIKI [葉山嘉樹]
Embora tenha estudado na Universidade Waseda por um ano,
Hayama Yoshiki era da classe operária. Ele foi marinheiro de navio de
carga, trabalhou em fábrica de cimento e em central de energia hidrelétrica, dentre outros ofícios. As temáticas de suas obras foram baseadas em suas experiências (SORTE JUNIOR, 2021).
Segundo Heather Bowen-Struyk (2016), ele foi um dos membros fundadores do Musan taishū tō [無産大衆党 - “Partido das
Massas Proletárias”]. A pesquisadora ainda aponta que a narrativa
Umi ni Ikuru Hitobito [海に生くる人々 - “As pessoas que vivem no
mar”], de 1926, teve como pano de fundo a experiência do autor em
um navio de transporte de carvão. A obra recebeu boas avaliações
de críticos de variados espectros políticos e estéticos, assim como
Inbaifu [淫売婦 - “A Prostituta”], publicada na Bungei Sensen em
novembro de 1925. Essa última conta a história de um marinheiro
que tem uma epifania sobre consciência de classe.
141 Esta seção foi elaborada com base em Keene (1987).
sumário
277
KUROSHIMA DENJI [黒島伝治]142
Um dos representantes dos trabalhadores rurais do movimento,
Kuroshima Denji viveu de 1898 a 1943. Apesar de ter crescido num
vilarejo rural, por volta dos 20 anos, foi para Tóquio, onde trabalhou na
construção civil, além de outras áreas. Nessa época, seu conterrâneo
Tsuboi Shigeji o convenceu a tentar entrar na Universidade Waseda,
onde este estudava. Kuroshima conseguiu ser admitido na universidade, porque outro rapaz prestou o exame admissional em seu lugar.
Porém, pouco tempo após o início dos estudos superiores, foi convocado para o exército e serviu na Sibéria. Cerca de um ano depois, foi
dispensado por questões de saúde e retornou à sua terra natal. Suas
obras retratam a vida no campo e suas experiências na Sibéria.
TSUBOI SHIGEJI [壺井繁治]143
Tsuboi Shigeji viveu de 1898 a 1975 e foi um poeta que integrou
o movimento proletário. Não concluiu os estudos na Universidade Waseda e casou-se com Iwai Sakae [岩井栄], que assumiu o sobrenome
dele e ficou conhecida como Tsuboi Sakae [壺井栄]. Originária de um
vilarejo próximo ao do esposo, ela escrevia literatura infantil.
TOKUNAGA SUNAO [徳永直]144
Nascido na província de Kumamoto, Tokunaga viveu de 1899
a 1958. Aos 11 anos, antes mesmo de concluir os seis anos de educação compulsória (equiparável ao Ensino Fundamental I), deixou
142 Esta seção foi elaborada com base em Keene (1987).
143 Esta seção foi elaborada com base em Keene (1987).
144 Informações extraídas da página da organização 徳永直の会 [Tokunaga Sunao no Kai], e traduzidas pela autora. Disponível em: http://tokunagasunaonokai.org. Acesso em: 8 ago 2021.
sumário
278
os estudos e tornou-se aprendiz em uma gráfica. Exerceu diversas
funções, tais como tipógrafo e compositor em gráficas, operário de
empresa de cigarros e de companhia de energia elétrica, integrou
movimentos sindicais e participou de greves.
Em 1929, ele publicou Taiyō no nai Machi em série na revista
literária Senki entre os meses de junho a setembro e na edição de novembro. A narrativa teria sido baseada em uma greve, da qual o autor
tomou parte. Essa foi sua principal obra e teve significado especial
para o movimento por ter sido escrita por um trabalhador de fábrica
(KEENE, 1987). No mesmo ano, Tokunaga filiou-se à Nihon puroretaria sakka dōmei [日本プロレタリア作家同盟 - “Aliança dos Escritores
Proletários do Japão”] e entrou para a vida de escritor, deixando os
trabalhos braçais. Além do romance, ele produziu ensaios teórico-críticos. Em dezembro de 1954, participou do congresso da União dos
Escritores Soviéticos, realizado em Moscou (KEENE, 1987).
SATA INEKO [佐多稲子]145
Escritora que viveu de 1904 a 1998, Sata Ineko foi fruto de um
relacionamento entre dois adolescentes que não eram casados. Foi
criada como filha de seus avós. Depois de dois anos, seus pais se
casaram e a registraram como filha adotiva para ela poder frequentar
a escola. Sua mãe faleceu precocemente, quando Ineko tinha apenas
sete anos de idade. Aos 11 anos, quando estava na quinta série, seu
pai a fez deixar os estudos para trabalhar em uma fábrica de doces,
embora ele mesmo não trabalhasse. Além de ter sido operária em fábricas, ela também trabalhou como atendente de livraria e garçonete.
Durante seu primeiro casamento, sofreu violência doméstica. Por conta
disso, tentou suicídio mais de uma vez, até que abandonou o marido.
Teve uma filha desse relacionamento, nascida após a separação.
145 Esta seção foi elaborada com base em Flower (1979).
sumário
279
Enquanto trabalhava em cafeterias, Ineko conheceu diversos
escritores, dentre eles, Kubokawa Tsurujirō [窪川鶴次郎], escritor
do movimento proletário que viria a ser seu segundo esposo. Por
intermédio dele e de Nakano Shigeharu, tornou-se escritora. Mesmo sem terminar o Ensino Fundamental I, ela publicou sua primeira
história Kyarameru Kōjō Kara [キャラメル工場から - “Da Fábrica de
Caramelo”], em 1928, na revista Puroretaria Geijutsu [プロレタリア芸
術 - “Arte Proletária”]. A obra retrata a vida de uma garotinha, durante
um período extremamente opressivo, e evidencia a exploração dos
trabalhadores pelos empregadores e, em menor escala, a exploração
da protagonista pelo seu pai, que a faz interromper os estudos para
trabalhar numa fábrica de doces. Depois disso, passou a escrever
artigos, poemas, romances e contos, também baseados em suas experiências como mulher, trabalhadora, esposa, escritora e militante.
MATSUDA TOKIKO [松田解子]146
Matsuda Tokiko cresceu numa cidade mineradora, razão pela
qual conheceu de perto os perigos das condições de trabalho que
constituem risco à vida. Além disso, vivenciou relações familiares abusivas. Após terminar os estudos regulares, conseguiu fazer um curso
profissionalizante que a possibilitou deixar as minas e ter uma breve
carreira como professora.
Recebeu treinamento como escritora e participou ativamente
da Fujin Sakkashū e dos círculos proletários. Seu foco, tanto na literatura, quanto em seu ativismo, foram os desfavorecidos, em especial,
as mulheres das camadas mais baixas da sociedade. No início da
década de 1930, engajou-se na área de controle reprodutivo e na
organização de uma creche. Mesmo quando os principais órgãos do
movimento foram dissolvidos, ela continuou a escrever ativamente.
146 Esta seção foi elaborada com base em Field (2016).
sumário
280
Sua obra Aru Sensen [ある戦線 - “Certa Frente de Batalha”], publicada na edição especial da Puroretaria Bungaku [プロレタリア文学 “Literatura Proletária’] em abril de 1932, destaca o assédio sexual como
elemento da luta contra a exploração laboral e os riscos das condições
de trabalho impostas à classe proletária.
OPOSIÇÃO AO MOVIMENTO
Segundo Sorte Junior (2021), autores consagrados, como Tanizaki Jun’ichirō [谷崎潤一郎] e Nagai Kafū [永井荷風] criticavam o
movimento literário proletário, defendendo que literatura e política não
deveriam se misturar. Em contrapartida, escritores que versavam sobre
temas desconectados com a realidade social eram, por vezes, acusados de hedonistas (SORTE JUNIOR, 2021). De fato, as obras de
Tanizaki e de Kawabata Yasunari [川端康成], muito mais voltadas para
valores estéticos, parecem fazer parte de uma época totalmente diferente da retratada na literatura proletária, o que mostra a distância entre
as correntes literárias em efervescência no período.
O governo imperial reprimiu severamente o movimento literário
proletário. A intensa perseguição, prisão, tortura e assassinato das
pessoas vinculadas ao movimento dificultou muito a produção e veiculação dos escritos. Além disso, a censura rigorosa impedia a publicação de obras inteiras ou parte delas. Por conta disso, os próprios
autores e editores costumavam se autocensurar, utilizando elipses ou
marcações como X, O, vírgulas ou asteriscos para substituir palavras,
expressões ou passagens potencialmente censuráveis pelo Estado.
Em alguns casos, os leitores acostumados conseguiam entender o
que era omitido, mas dependendo da extensão das omissões, o texto
poderia se tornar opaco até mesmo para os leitores mais familiarizados
(BOWEN-STRUYK; FIELD, 2016).
sumário
281
De acordo com Field, era comum a ameaça “vamos fazer
com você exatamente o que fizemos com Kobayashi Takiji” (FIELD,
2016, p. 104, tradução nossa), após a execução desse escritor. No
ano de seu assassinato, houve um pico de prisões relacionadas
à infração da Lei de Preservação da Ordem Pública. Os prisioneiros eram frequentemente submetidos à tortura policial. Suas penas
poderiam ser abrandadas, caso eles renunciassem a suas convicções, o que ficou conhecido como Tenkō [転向 - “Conversão Ideológica”]. Em junho de 1933, o departamento de justiça imprimiu e
distribuiu entre os prisioneiros políticos a declaração conjunta de
conversão de Sano Manabu [佐野学] e Nabeyama Sadachika [鍋山
貞親], membros do comitê central do Partido Comunista Japonês
que foram indicados para ocupar seus cargos pela Internacional
Comunista em 1927. Os dois tiveram suas penas reduzidas de prisão perpétua para 15 anos de reclusão. Dentro de um mês, 548
prisioneiros anunciaram suas conversões (TSURUMI, 1970).
De acordo com Tsurumi (1970), estima-se que 95% dos cerca
de 500 autores ligados a organizações literárias de esquerda performaram essa conversão, em graus variados. Houve os que apenas
abriram mão de suas atividades políticas até os que passaram a
apoiar publicamente o nacionalismo, o sistema imperial e o militarismo japonês. A coerção estatal conseguiu suprimir os movimentos
dissidentes e o movimento proletário atingiu a inanição com a dissolução da KOPF em 1934.
IMPACTOS NA POSTERIDADE
Em 1945, durante o período de ocupação do Japão pelos Aliados,
com o final da Segunda Guerra Mundial, a Lei de Preservação da Ordem
Pública foi revogada, os prisioneiros políticos foram libertados e o Partido
Comunista Japonês entrou para a legalidade. Logo após o fim da guerra,
sumário
282
Nakano Shigeharu, Miyamoto Yuriko, Tokunaga Sunao, dentre outros, se
uniram para fundar a Shin Nihon Bungakukai [新日本文学会 - “Nova Sociedade Literária Japonesa”] (KEENE, 1978). Para Keene (1987), a importância da literatura de esquerda logo no início do pós-guerra demonstra
quão forte era a convicção desses escritores. Segundo Bowen-Struyk e
Field (2016), principalmente depois de 1952, com o fim da ocupação norte-americana no país, os escritores proletários do pré-guerra organizaram
novas revistas literárias e republicaram trabalhos anteriores.
De acordo com Bowen-Struyk (2009), em 2008, houve uma explosão de vendas da obra kanikōsen, de Kobayashi Takiji, no Japão.
A pesquisadora destaca que o livro, cuja média anual de vendas girava
em torno de 5 mil exemplares, chegou a mais de 500 mil cópias vendidas
em 2008. Esse foi o ano de início da crise financeira mundial, desencadeada pela especulação imobiliária nos Estados Unidos, que gerou uma
grave onda de desemprego em todo o mundo. Ainda segundo Bowen-Struyk (2009), no Japão, as agências de trabalhadores temporários forneciam mão-de-obra para empresas, que mantinham o menor número
possível de funcionários contratados, agravando ainda mais a situação.
Já Norma Field (2009) aponta que kanikōsen postula a possibilidade de transformação social, a partir da resistência conjunta. A trama
mostra trabalhadores de diversas origens, a bordo de um navio, em
condições deploráveis de trabalho, levados a competir por vantagens
irrisórias. Em paralelo, os trabalhadores temporários de 2008 não eram
coesos. A pesquisadora ainda afirma que:
No entanto, Takiji deixa claro, no trabalho, (1) que é um processo lento e difícil para o grupo de trabalhadores separado
hierarquicamente e heterogêneo alcançar a compreensão de
que, somente através da solidariedade, eles têm alguma chance de sobreviver e (2) que o real inimigo não é o inspetor cruel
na frente deles, mas a estrutura comprometida dos banqueiros
em Tóquio, o exército imperial, e o capitalismo global (FIELD,
2009, p. 7, tradução nossa).
sumário
283
Field (2009) também menciona que, em correspondência
com seu editor, quando da publicação da obra Fuzai Jinushi, o autor declarou que seu objetivo não era mostrar aos proletários quão
miseráveis eles eram, porque disso eles já sabiam, mas o porquê
de estarem naquelas condições e que a saída para eles era a luta
através da solidariedade. De acordo com a estudiosa, em 2008,
não havia nenhuma obra literária contemporânea que criasse uma
imagem como essa, tanto no que tange a exploração, quanto a resistência. Para ela, a imagem do “navio-fábrica” fazia mais sentido
do que nunca em meio à grande depressão financeira.
Merece destaque especial o surgimento de uniões pelo Japão,
que prestavam assessoria jurídica e suporte aos trabalhadores dispensados, e a campanha antipobreza realizada conjuntamente por mais de
20 organizações, que estabeleceu, entre 31 de dezembro de 2008 e 5
de janeiro do ano seguinte, uma “vila de ano novo” para trabalhadores
temporários que ficaram sem trabalho e sem teto com o fechamento dos
escritórios para o recesso de final de ano (FIELD, 2009). No âmbito da
campanha, montaram-se tendas no parque Hibiya, em Tóquio, para fornecer alimentação e assessoria jurídica. As pessoas assistidas celebraram o ano novo na companhia de seus pares em plena praça pública.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com este breve panorama, nota-se que a literatura proletária japonesa foi um movimento literário de curta duração, mas nem por isso,
menos relevante. Ao contrário, entre os anos 1921 e 1934, foram produzidos intensamente ensaios, contos, romances, peças dramáticas,
poemas, dentre outras manifestações artísticas, sobre a desigualdade
social e a luta do proletariado japonês por melhores condições de trabalho e de vida, retratadas pelas mãos das escritoras e dos escritores
que tiveram coragem de desafiar o sistema vigente. Essas pessoas
sumário
284
foram censuradas, reprimidas, encarceradas, violentadas e até brutalmente assassinadas pelo governo japonês, mas deixaram seu legado.
Podemos considerar, ainda, que as autoras e os autores do
movimento, bem como suas obras, impactaram a literatura japonesa do pós-guerra, mesmo forçados a hibernar por alguns anos.
Além disso, um desses trabalhos renasceu das cinzas quase oito
décadas após sua publicação, na esteira do debate sobre as relações de trabalho em uma sociedade flagelada por uma intensa crise
econômica de proporções mundiais.
É impressionante que pessoas com pouca escolaridade,
como Sata Ineko e Tokunaga Sunao, tenham produzido e publicado
obras literárias sobre suas experiências de vida. Ao mesmo tempo,
é decepcionante a pouca visibilidade que esses e outros textos
têm nos estudos de literatura japonesa. Presos ao estereótipo
veiculado da cultura japonesa, não tomamos conhecimento desse
outro Japão. Como afirma Jorge Amado no texto em epígrafe, não
conhecemos o Japão inconformista.
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sumário
285
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sumário
287
Capítulo 14
14
Nihonjin, de Oscar Nakasato e Peixes de Aquário,
de Rafaela Tavares Kawasaki: uma leitura da
imigração japonesa e os reflexos da Segunda Guerra
Mundial na comunidade Nipo-brasileira
Lucimara Ota Eshima
Lucimara Ota Eshima
Nihonjin, de Oscar Nakasato
e Peixes de Aquário,
de Rafaela Tavares Kawasaki:
uma leitura da imigração
japonesa e os reflexos
da Segunda Guerra Mundial
na comunidade Nipo-brasileira
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.14
A presença de personagens nipo-brasileiros em nossa literatura
já foi explorada anteriormente pelo escritor Mário de Andrade na obra
Amar - verbo intransitivo (1927), entretanto, somente a partir da década
de 1980, surgiram textos literários tendo como protagonistas imigrantes japoneses e seus descendentes. Primeiramente, nos romances
O jardim japonês (1986) e Flor de vidro (1987), ambos da escritora Ana
Suzuki, e Sonhos Bloqueados (1991), de Laura Honda-Hasegawa.
Nesse panorama, em 2011, Oscar Nakasato - neto de imigrantes japoneses, escritor paranaense, doutor em Literatura Brasileira pela
Universidade Estadual Paulista e professor na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) - vence o Prêmio de Literatura Benvirá,
publicando, assim, o seu primeiro romance - Nihonjin - obra vencedora
do Prêmio Jabuti de romance literário do ano de 2012.
Com seus contos, Nakasato já se havia consagrado vencedor
de outros concursos: com “Olhos de Peri” e “Alô” (1999) conquistou
o Festival Universitário de Literatura - promovido pela Xerox do Brasil
e pela Editora Cone Sul - e com Menino na Árvore (2003), ganhou o
Concurso Literário da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná –
publicando uma coletânea com outros autores. No entanto, conforme
suas palavras, em entrevista concedida à Revista Cândido, o romance Nihonjin (2011) foi fruto de sua curiosidade acerca da história da
imigração japonesa no Brasil e o processo de aculturação dos japoneses e seus descendentes.147
Nihonjin (2011) concentra-se em narrar a história da família Inabata, tendo como protagonista Hideo, que desembarca em Santos
(SP) com sua primeira esposa, Kimie, e um agregado, Jintaro, formando juntos uma “família” – como exigido pelo tratado de imigração
assinado pelos governos do Brasil e do Japão – “o governo brasileiro
exigia pelo menos três enxadas em cada família” (NAKASATO, 2011,
147 Entrevista de Oscar Nakasato à Revista Cândido da Biblioteca Pública do Paraná.
sumário
289
p.33). Desse modo, a narrativa acompanha o cotidiano do nihonjin148
imigrante, que inicia sua trajetória em terras brasileiras como trabalhador nas fazendas de café do interior de São Paulo, a partir da segunda década do século XX, passando pelo momento da Segunda
Guerra Mundial até as décadas finais daquele século com o fenômeno dekassegui149. Sendo assim, também vamos nos inteirando acerca
dos costumes culturais e familiares dos nipo-brasileiros e os dramas
envolvendo Hideo, suas duas esposas, seus filhos e o neto, narrador
do romance, em sua integração na sociedade brasileira.
Semelhantemente a Nakasato, Peixes de aquário (2021) é o primeiro romance da escritora e jornalista araçatubense (SP) Rafaela Tavares Kawasaki e sua segunda obra publicada, visto que, em 2019, ela
havia lançado a coletânea de contos Enterrando gatos pela Editora Patuá. Ainda, enquanto era estudante de jornalismo no Centro Universitário
Toledo (UniToledo), em Araçatuba (SP), foi finalista do Prêmio Santander
Jovem Jornalista, realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 2014.
Em Peixes de Aquário - a narrativa gira em torno do drama
familiar vivenciado pelos Fujikawa, uma família de imigrantes japoneses no Brasil, intercalando dois períodos: a década de 1940 e a de
1990. Desse modo, nos anos de 1940, a história é centralizada nas
personagens Aiko e Kaede, duas irmãs, que, juntamente com seus
outros irmãos e o pai, experimentam a dor pela morte prematura da
mãe, tendo que lidar com o luto, os cuidados com uma irmã recém-nascida, as tarefas de casa e as consequências do conflito bélico
mundial150 para os nipo-brasileiros no Brasil.
Já, em 1993, ocorre o reencontro de Kaede, Aiko e Yukiko, que
desde a perda da mãe haviam começado a se distanciar uma das
outras. Aos poucos, a história da família e de cada integrante vai se
148 Nihonjin: termo em língua japonesa para denominar a pessoa nascida no Japão, ou seja,
o japonês.
149 Dekassegui: termo utilizado para designar o trabalhador migrante e/ou estrangeiro residente no Japão que tem ou não ascendência nipônica.
150 Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
sumário
290
revelando. Vêm à tona questões complexas, como a solidão, o trabalho duro, as obrigações, a infância sem muitas alegrias e carinho, a
repressão no período da guerra, os sentimentos contidos e confusos,
mesclando dor, morte, maternidade, medo, patriotismo e preconceito.
O desenrolar do romance deixa claro como as circunstâncias da vida
contribuíram para que os laços familiares se esfacelassem como os
cadernos de Aiko enfrentando a inundação. Desse modo, como peixes
em um aquário, as irmãs – ilhadas num sobrado – precisam lidar com
os fantasmas do passado e enfrentar a enxurrada de recordações,
pois, no momento presente, não havia como fugir.
Por conseguinte, os dois romances versam a respeito da condição humana, tendo como pano de fundo histórico a imigração japonesa no Brasil, os conflitos familiares, as questões identitárias, a
memória, entre outros temas.
A MITOLOGIA E O ESPÍRITO JAPONÊS
Nos países milenares, como é o caso do Japão e de outros
territórios do Oriente, em que a tradição é mantida mesmo com a passagem do tempo, mitologia e história muitas vezes se confundem.
Por isso, como outros povos, o japonês também possui uma herança
cultural enraizada em sua mitologia e os primeiros registros da Terra
do Sol Nascente – ou poeticamente referenciada como País das Cerejeiras – pertencem a dois livros muito antigos: o Kojiki (Crônica de
Assuntos Antigos), no qual foram reunidas informações no ano de 712
d.C., complementadas em 720 d.C. por outro volume, o Nihon Shoki ou
Nihongi (Crônica do Japão), constituindo-se nas duas principais fontes
da mitologia japonesa, conforme as pesquisas de Claudio Seto (2008).
A partir de seu legado mitológico, o japonês aprendeu a ser
japonês. A maneira como a população japonesa, de um modo geral, autoidentifica-se e tradicionalmente compreende seu passado, de
sumário
291
acordo com a professora Célia Sakurai, traz explicações que divergem
da visão oficial sobre a origem do povo japonês; no entanto, a ruptura
entre mitologia e história é algo recente, visto que até 1960,
as crianças japonesas aprendiam, por gerações e gerações
seguidas, que eram descendentes de Amaterasu, a deusa sol.
Ela, a deusa-mãe, teria dado origem a toda a linhagem do povo
japonês que descende diretamente desse trono divino. A mensagem embutida nessa mitologia é a de que os japoneses são
diferentes de todo o resto do mundo pela sua origem divina e,
mais ainda, que são homogêneos do ponto de vista racial e
cultural. Assim, perante si e diante dos outros, todos os japoneses se percebiam como totalmente diferentes, marcados por
características peculiares (SAKURAI, 2007, p.47).
Essa visão cultural é apresentada em Nihonjin (2011), no período escolar dos filhos de Hideo, quando Haruo e Hitoshi frequentavam
a escola regular, sendo ensinados por uma professora não japonesa
e convivendo com crianças gaijin151. Desse modo, diante da inevitável
situação de integração social, as questões de identidade e alteridade
aparecem. As crianças começam a praticar bullying contra os irmãos
de origem nipônica e a professora, com a intenção de apaziguar a
situação, diz a Haruo que ele é brasileiro, como os outros colegas.
No entanto, Haruo “lembrou que seu pai sempre lhe ensinara que era
nihonjin, que nihonjin era diferente de gaijin, que cada nihonjin era
representante de um povo de tradição milenar” (NAKASATO, 2011,
p.63). Esse legado cultural, baseado na mitologia, é um alicerce que
estrutura a vida familiar, cuja posição de chefia cabe ao pai, o que
reproduz a hierarquia social descendente a partir da figura do Imperador. Essa representatividade que norteia a cultura, o pensamento e a
identidade japonesa apresentada pelo protagonista – Hideo Inabata
– em Nihonjin, reflete aquilo que Ruth Benedict nos ensina: “Qualquer
tentativa de entender os japoneses deverá começar com sua versão
do que significa ‘assumir a posição devida’” (BENEDICT, 1997, p.43),
151 Gaijin: termo em japonês que designa a pessoa não japonesa, isto é, o estrangeiro. Era
usada na colônia nipo-brasileira para indicar a pessoa que não tinha ascendência japonesa.
sumário
292
ou seja, cada integrante do povo japonês possui o seu devido lugar,
que deve ser ocupado conforme sua posição hierárquica, algo que é
aprendido no seio familiar. Desse modo, o nihonjin se identifica com
seu passado – mitológico e histórico –, com sua tradição cultural, que
é repassada, tendo como ícone hierárquico supremo o Imperador,
isto é, ser nihonjin é mais que um adjetivo pátrio referente ao seu
local de nascimento, tem a ver com raízes identitárias que remetem a
uma descendência divina, por isso “a designação japonesa da Casa
Imperial é a de ‘aqueles que habitam acima das nuvens’ (BENEDICT,
1997, p.55). Essa visão de mundo é o que norteia a personagem Hideo Inabata, de Nihonjin (2011), e Kenji Fujikawa, de Peixes de Aquário (2021), assim como é aquilo que desencadeou consequências
para a colônia nipo-brasileira no período da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), de que trataremos mais adiante.
Sendo assim, em Peixes de aquário (2021), apesar da referência à mitologia japonesa ser bastante sutil, também fornece indícios
de que os Fujikawa mantinham crenças nos mitos antigos, quando
ocorre a narração sobre os passeios que as crianças da família faziam
com a amiga Jacinta: “Jacinta, então ensinou a Chiyo que, para alguns
brasileiros, os deuses não eram Amaterasu e Susano, mas podiam ser
muitos e estavam em todos os lugares” (KAWASAKI, 2021, p.40).
Assim, a crença mitológica fortaleceu-se com a criação do
Estado moderno japonês, em que o novo fazer político apoiou-se
nos mitos para consolidar muito mais a figura do Imperador diante
do shogun152. Dito de outro modo, a organização familiar, a educação fundamentada na mitologia e os princípios culturais baseados
na hierarquia e na devoção a esses superiores hierárquicos são a
origem da identidade nipônica que influenciaram situações vividas
durante o período da Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra pelos nipo-brasileiros no Brasil.
152 Shogun: título que nomeia o chefe de Estado militar.
sumário
293
ERA MEIJI E A IMIGRAÇÃO
JAPONESA NO BRASIL
Para compreender a representação literária nos romances
Nihonjin (2011) e Peixes de Aquário (2021) no tocante aos efeitos da
Segunda Guerra Mundial na vida dos imigrantes japoneses e de seus
descendentes em terras brasileiras, a priori, é significativo resgatar os
antecedentes históricos. Posto isto, o século XIX, conforme Carvalho
(2017), foi caracterizado como uma época de redefinição cultural, política, econômica e espiritual associada à modernidade. Diante desse
novo cenário no mundo, a hegemonia europeia perde um pouco de
sua influência e não surgem somente novos limites geoeconômicos
como também outros modos de estruturação sociocultural dirigidos
em muito pelo capitalismo. Neste contexto moderno, um país do extremo Oriente, que permaneceu durante dois séculos e meio fechado
à influência do Ocidente – o Japão – começa a despontar na cena
mundial e de acordo com Carvalho (2017), era um povo que havia
vivido sob um governo militar – shogunato – e agora, com a ascensão
do imperador Meiji Ishin, por parte do governo, tratava-se de uma
busca pelo país ressignificar-se política e economicamente, recebendo, esse momento, a denominação de Restauração Meiji. Por outro
lado, no decorrer desse período, ainda consoante aos estudos de
Carvalho (2017), devido ao projeto de modernização do Japão, que
tinha o objetivo de equiparar o País no sentido administrativo-financeiro às potências ocidentais, tudo o que se relacionasse com o passado feudal, inclusive a classe social dos samurai, não poderia mais
continuar a coexistir no nascimento da moderna nação japonesa.
Consequentemente, houve revoltas internas, êxodo rural para atender
a demanda por mão de obra na indústria, além de outros problemas.
Desse modo,
acompanhando um movimento internacional europeu de correntes emigratórias, o governo Meiji viu nesse empreendimento
sumário
294
uma ‘solução final’ para o problema do superpovoamento (e as
consequências advindas disso, como a pobreza, fome, aumento da violência, etc) e do sempre temor de novas composições
insurrecionalistas (CARVALHO, 2017, p.66),
uma vez que os membros remanescentes da classe samurai,
insatisfeitos com sua nova realidade social, poderiam promover um
levante. Portanto, houve um encorajamento por parte do governo para
que a população japonesa emigrasse. Sendo assim, segundo Sakurai
(2008), em 1895, o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre
Brasil e Japão foi assinado em Paris e
desde 1906, a efetivação da vinda de colonos começava a ser
articulada com a visita ao Brasil de Ryu Mizuno, diretor da Kokoku Shokumin Kaisha (Companhia Imperial de Emigração), a
principal companhia japonesa que administraria a vinda dos imigrantes até 1917 (SAKURAI, 2008, p.18).
Oficialmente, a imigração japonesa no Brasil se iniciou em 1908
com a chegada do navio Kasato Maru ao Porto de Santos (SP), “trazendo aproximadamente 781 pessoas e 165 famílias, constituídas de
acordo com as condições recomendadas pelo governo brasileiro”
(SAKURAI, 2008, p.33), estabelecendo o primeiro período imigratório
(1908-1925) e o segundo, de 1925 a 1941 – ambos pertencentes à fase
anterior à Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Houve uma interrupção durante a Segunda Guerra, com a retomada do fluxo imigratório
no pós-Guerra, de 1952 a 1965, e “em 1993 se encerrou a emigração
oficial, anunciada pela Agência de Co-operação Internacional do Japão – JICA” (NAKASATO, 2009, p.28).
Ainda, conforme Sakurai,
os líderes Meiji habilmente mesclaram passado e futuro na estratégia de construção da modernidade japonesa. Em torno
da concepção do Império do Grande Japão, sedimentaram-se
ideologicamente os interesses da nação em formação em conformidade com os do Estado (SAKURAI, 2007, p.146).
sumário
295
Desse modo, os idealizadores do conceito de desenvolvimento
Meiji obstinaram em enfatizar
a originalidade dos japoneses como produto de seus homens,
capazes de construir a sua própria história sem interferências
externas e, por conseguinte, ter uma unidade. A idéia da existência de uma identidade nacional entre os japoneses recebeu
vários reforços, como a demonstração de homogeneidade lingüística, da existência de um passado comum, a condição do
Japão como país insular e o isolamento que vivera no decorrer dos séculos. Os japoneses eram únicos, diferenciados de
todos os demais povos, sendo esse um motivo para se ter
orgulho (SAKURAI, 2007, p.146).
Em outras palavras, a origem genealógica do povo japonês baseada na mitologia a que anteriormente mencionamos é resgatada e
de acordo com Sakurai,
a xenofobia japonesa se acentuou com a propaganda da idéia
da nação japonesa como uma única e grande família, que
abrange todo o território e se distingue das outras por sua ligação com a linhagem imperial e, consequentemente, com Amaterasu, a deusa sol (SAKURAI, 2007, p.146).
Assim, segundo Benedict, “o Imperador era inviolável e a sua
pessoa era sagrada” (BENEDICT, 1997, p.55), e portanto, a sua vontade era seguida como uma ordem – sem discussão, recusa ou hesitação – por cada súdito, que, agindo desse modo, confirmaria ser um
patriota. Tal convicção se revela na personalidade de Hideo Inabata
no seguinte trecho:
[...] Kimurasan, mas ter uma ideia tão negativa a respeito de
nossa ida ao Brasil é falta de patriotismo, é um desrespeito ao
imperador. Ele quer que emigremos, que fiquemos um tempo
em terra estrangeira , mas que voltemos depois, com bastante
dinheiro, e ajudemos no desenvolvimento do país. Será a nossa
contribuição (NAKASATO, 2011, p.14).
sumário
296
Como se pode constatar, a exemplo da personagem Hideo,
muitos japoneses imigraram para o Brasil com a intenção de retornar
ao Japão, vendo, inclusive, essa empreitada como um ato cívico, isto
é, o cumprimento de uma determinação do Imperador, retratando o
ufanismo nipônico na época. No entanto, quando os imigrantes aportaram em terras brasileiras, depararam-se com muitas dificuldades,
desde as barreiras linguísticas e de adaptação alimentar até doenças, como as que conduziram Kimie, de Nihonjin (2011), e Kazumi,
de Peixes de Aquário (2021), à morte. Entretanto, mesmo em face da
desilusão com a impossibilidade de enriquecimento e rápido retorno
ao Japão como pretendiam os primeiros imigrantes, esses não esmoreceram quanto à confiança depositada em seu governo, como é
possível verificar nas palavras de Hideo Inabata:
Ojiichan disse que os anos em que trabalhou na Fazenda
Ouro Verde lhe ensinaram o que precisava saber sobre a cultura do café, [...]. Entretanto, os mesmos anos também lhe
indicaram que fora iludido sobre a possibilidade de se ganhar
bastante dinheiro na lavoura cafeeira. Sentia-se desamparado e, como um menino, desejava o colo da mãe. Jamais cogitou culpar o imperador, que sempre incentivava as viagens
dos japoneses para além-mar. Ele não poderia imaginar que
o preço do café cairia tanto e que a ganância dos fazendeiros
fosse tamanha. Sim, as fazendas de café enriqueciam, mas
somente os proprietários. No acerto de contas após cada
ano agrícola, o seu lucro ia para os bolsos do patrão, pagar
as dívidas do armazém, e então a revolta lhe punha palavras
na boca. Falava alto em língua japonesa, pois só em japonês
conseguia esbravejar. Falava que o roubavam e não tinha a
quem reclamar (NAKASATO, 2011, p.46-47).
É também possível perceber, no trecho acima transcrito, o
sentimento de impotência e a sensação de injustiça e desamparo
vividos pela personagem Hideo, revelando a insatisfação e a desconfiança dos imigrantes para com a vida no Brasil, o que se intensificará com as medidas tomadas durante a Era Vargas. Outrossim,
à época, na própria comunidade nipo-brasileira, começam a surgir
alguns compatriotas japoneses supondo que o discurso daqueles
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297
que haviam incentivado a emigração do Japão para o Brasil possivelmente mascararia outros interesses, como nos é apresentado
pela personagem Satosan, de Nihonjin (2011):
[...] fizera amizade com uns gaijins da cidade, gente esclarecida, que lia muitos livros e jornais, diferentes dos ignorantes
que viviam no campo, e que esses gaijins lhe tinham dito que o
imperador do Japão enganara os agricultores pobres e os desempregados da cidade, dizendo que deveriam emigrar porque
poderiam ganhar dinheiro rapidamente no Brasil. Mas que, na
verdade, era um projeto para expulsar a população pobre, que
havia muitos excedentes no país (NAKASATO, 2011, p.72).
Ainda, o referido trecho do romance pode ser colocado como
um retrato ficcional daquilo que o historiador Rogério Dezem coloca:
Nota-se o conflito de interesses e objetivos entre companhias
de imigração japonesa (lucro), governo brasileiro (olhar racista e interesse em substitutos “temporários” para os europeus),
governo japonês (positivação da imagem do Japão no exterior
e fixação dos emigrados), cafeicultores (mão de obra barata) e
imigrantes japoneses (trabalho “fácil e lucrativo” e retorno rápido) (DEZEM, s.d., p.5).
Assim sendo, o cenário dos dramas vivenciados no período da
Segunda Guerra pelos japoneses e seus descendentes começa a ser
desencadeado. A partir das incertezas compartilhadas pelos imigrantes, muitos teriam de se resignar com a ideia de que provavelmente
não conseguiriam voltar ao Japão, como o trecho de Nihonjin (2011)
a seguir exemplifica:
Alguns amigos, que antes eram agressivos com a terra brasileira e com o sol inclemente, pois a agressividade, no início, era o
que traduzia a dor e a decepção, já tinham se conformado em
permanecer no Brasil e deixavam de negar o solo estrangeiro
(NAKASATO, 2011, p.55).
À vista das dificuldades em regressar ao Japão, restava aos
imigrantes tornarem-se colonos de fato, ou seja, não mais como trabalhadores temporários – forasteiros – em terras estranhas, mas, sim,
adaptando-se ao novo lar.
sumário
298
A ERA VARGAS E O PERÍODO
DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
PARA OS NIPO-BRASILEIROS
De acordo com Sakurai (2007), a comunidade nipo-brasileira, na
década de 1930, atraia a atenção do governo do Brasil pelas colônias estarem sendo muito bem administradas pelos colonos, fato que fez com
que alguns políticos brasileiros alertassem as autoridades para a perigosa presença desses imigrantes no país. Ainda, segundo a antropóloga,
havia uma inquietação quanto ao imperialismo japonês na Ásia, fazendo
com que a elite política brasileira de ideologia eugenista temesse
a rede criada pelo governo japonês no Brasil, com o estabelecimento de instituições de apoio, educação e saúde [...]
Diante disso, e movida por preconceitos vários, a Constituição brasileira de 1934 restringiu a entrada livre de japoneses
(SAKURAI, 2007, p.252).
Além disso, conforme Carvalho (2017), fosse pelo fato que
fosse alegado – receio de possíveis levantes militares no seio das
colônias, justificado pelo espírito imperialista nipônico ou por motivações de outra ordem –, a base do Estado Novo foi marcada por uma
intensa questão de cunho étnico e cultural com vistas ao processo de
formação do “tipo ideal do brasileiro”. Assim, Carvalho complementa,
citando Fábio Koifman:
No período da implantação do Estado Novo, em 1937, seja
por questões internas ou externas, o assunto passou a ganhar
uma dimensão maior. O governo ocupou-se especialmente da
matéria e agilidade na tomada de decisões – decorrente do
regime centralizado e ditatorial no qual a vontade do presidente não recebia qualquer tipo de contestação – promoveu
profundas modificações na vida dos estrangeiros que já viviam
no Brasil e nas possibilidades dos que pretenderam imigrar
para o país. O Estado Novo tratou de intervir impositivamente,
buscando fazer as suas próprias propostas de inserção nacional de estrangeiros conforme seus projetos nacionalistas, que
sumário
299
incluíam uma política imigratória claramente seletiva e restricionista (KOIFMAN, 2011, apud CARVALHO, 2017, p.287)
Logo, as medidas drásticas praticadas pelo governo getulista,
por meio de decretos-lei no período do Estado Novo – apoiadas num
discurso que afirmava uma preocupação em garantir a integridade
étnica, social, econômica e moral da nação, além de possibilitar a
integração dos estrangeiros e dos seus descendentes brasileiros na
vida nacional, restringiu as atividades dos japoneses, afetando o ensino da língua e a publicação de materiais, como jornais, em idioma
japonês. Isso se intensificou com a declaração de guerra ao Japão
em 1942, quando alguns direitos de japoneses e de seus descendentes que viviam no Brasil foram cerceados, resultando em “prisões,
necessidade de salvo-condutos para se locomover, proibição do uso
da língua japonesa, mas não houve nenhuma medida drástica que
envolvesse toda a coletividade” (SAKURAI, 2007, p.253).
Tais medidas restritivas junto aos imigrantes dos três países do
Eixo (Itália - Alemanha - Japão), sobretudo para os japoneses, desencadearam consequências traumáticas vivenciadas pela comunidade
nipo-brasileira, tais como: desinformação, desconfiança, preconceitos, violência e mortes.
No texto de Nihonjin (2011), há uma passagem datada da década de 1930 que retrata uma situação de xenofobia vivida por Hideo na
loja que sua família mantinha no bairro da Liberdade, em São Paulo.
O homem, um tipo que caminhava com passos pedantes, alto
e magro, trajando roupas elegantes, entrou silenciosamente
como se fosse um cliente qualquer, mas logo disse nos gestos
e no olhar que não estava lá para comprar nada. Observou tudo
com desdém, pegou algumas peças para devolvê-las quase
imediatamente à prateleira, como se tivesse receio de ser contaminado por elas. Deteve-se com um leque na mão, abriu-o e
fixou os olhos propositadamente confusos em algumas inscrições. Depois disse em voz baixa, mas audível o suficiente para
que todos os que estavam próximos pudessem escutar:
sumário
300
– Deveriam proibir esses rabiscos, não estamos no Japão.
[...]
– Eu estava dizendo que o governo deveria proibir esses rabiscos.
– Senhor, não são rabiscos, são uma obra de arte, são palavras
escritas em língua japonesa.
– O senhor fala de um modo engraçado, eu não entendo muito
bem, deveria aprender a falar melhor em português já que mora
aqui. (NAKASATO, 2011, p.84-85)
Como já mencionado em nosso estudo, a principal intenção
dos japoneses que imigraram para o Brasil era regressar ao seu país
de origem. Entretanto, mesmo em face da constatação dessa impossibilidade, em virtude de suas próprias questões étnico-culturais,
os nihonjin mantinham-se, muitas vezes, avessos à assimilação da
língua e cultura brasileiras. Havia, desse modo, uma insegurança entre as pessoas que pertenciam à colônia nipônica e os de fora dela.
Para os japoneses era imprescindível ensinar a língua japonesa a
seus filhos, além de criá-los como autênticos súditos do Imperador,
uma vez que mesmo distantes do Japão, ainda se sentiam japoneses. Portanto, sob esse ponto de vista, era-lhes natural voltar-se para
seu sistema de vida, que, por outro lado, despertava a preocupação
e as suspeitas por parte do governo brasileiro, já que “a coisa que
mais chamava a atenção das autoridades brasileiras eram as aulas
de educação moral e cívica idênticas às ensinadas aos jovens no Japão, com ênfase no nacionalismo e no militarismo” (SAKURAI, 2007,
p.252). Essas características somadas à atmosfera de apreensão
diante do expansionismo nipônico no continente asiático fazia com
que as pessoas racistas ou preconceituosas manifestassem tais sentimentos, como a personagem José de Oliveira, em Nihonjin:
Chamava-se José de Oliveira [...] dizia a quem quisesse ouvir
que os amarelos, como os negros, eram um estorvo, e lembrando a campanha do deputado Fidélis Reis, que já em 1923 apresentara ao Congresso Nacional proposta para reduzir a entrada
de japoneses no Brasil, [...]
[...] E ainda elogiava Antônio Xavier de Oliveira, que defendia a melhoria da raça brasileira, e Miguel de Oliveira Couto,
sumário
301
Oliveira como ele, dois médicos, que se preocupavam com o
excessivo número de japoneses no país e falavam da ambição
expansionista do Japão.
– Eles querem dominar o mundo, o governo deveria expulsá-los – dizia José de Oliveira. – Já invadiram a Manchúria,
não demorará muito para mandarem suas tropas ao Brasil
(NAKASATO, 2011, p.86-87)
A situação se agravou quando o Brasil anunciou sua entrada na
Segunda Guerra Mundial, reforçando as medidas contra os alemães,
italianos e japoneses residentes no Brasil, conforme o “documento
emitido pelo Major do Exército brasileiro, Olinto de França de Almeida
e Sá, à época superintendente da segurança política e social, em 29
de janeiro de 1938” (CARVALHO, 2017, p.304). O conteúdo do referido
documento está presente no romance de Nakasato:
Em face da ruptura das relações diplomáticas do Brasil com
a Alemanha, Itália e Japão, faço público que ficam os súditos
destes últimos países residentes neste Estado, proibidos:
a) da disseminação de quaisquer escritos nos idiomas de suas
respectivas nações; b) de cantarem ou tocarem hinos das potências referidas; c) dar saudações peculiares a estas potências; d) do uso de idioma das mesmas potências em concentrações de lugares públicos; e) de exibir em algum lugar acessível
ou exposto ao público retrato de membros do governo daquelas
potências; f) de viajarem de uma para outra localidade sem salvo conduto fornecido por essa superintendência; g) de se reunirem, ainda que em casas particulares, a título de comemoração
de caráter privado; h) de discutirem ou trocarem ideias, em lugar
público sobre a situação internacional; i) de usarem armas mesmo que hajam anteriormente obtido o alvará competente, bem
como negociarem com armas, munições ou materiais explosivos ou que possam ser utilizados na fabricação de explosivos;
j) de mudarem de residência sem comunicação prévia a esta
superintendência; k) de se utilizarem de aviões que lhe pertençam; l) de viajarem por via área sem licença especial concedida
por esta superintendência.
sumário
302
Os salvos condutos serão fornecidos todos os dias úteis, das
9 às 11 horas – das 14 às 18 horas - das 21 às 23 horas. Aos
domingos das 14 às 17 horas. (NAKASATO, 2011, p.88-89)
Em Peixes de Aquário (2021), a família Fujikawa também acompanha os acontecimentos do período de guerra e tenta se prevenir de
represálias e apreensões, escondendo tudo que pudesse ser interpretado como desobediência às leis brasileiras.
– Levaram tudo das famílias e ainda prenderam gente no xadrez. O decreto é pra confiscar bens para compensar os prejuízos da guerra. É preciso tomar providências antes de acontecer o pior conosco.
Kenji então entendeu, e sentia a raiva endurecer os músculos
faciais. Eram de apreensões que eles falavam, do rumor que de
que a polícia batia nas casas de japoneses em busca de armas
clandestinas, rádios, livros japoneses e documentos comprometedores. Às vezes apreenderam posses valiosas, diziam por
aí. Antes, o pai reclamava do congelamento de bens para indenizar o país pela guerra, agora isso. [...]
Mamãe e tio Mitsuo regiam o andar de Kenji e de Kaede para
que buscassem tudo aquilo que parecesse vindo do Japão, político ou caro e merecesse ficar a salvo.
[...] A mãe enumerava outros objetos que deveriam procurar.
A fotografia do avô com roupa militar, o troféu de Kenji no concurso de oratória, o buda, livros, cartas, o retrato do imperador
pendurado na parede, louças, caixas e cumbucas laqueadas,
uns poucos enfeites guardados dos tempos em Kanagawa. Ela
pediu ainda que pegassem uma lata enferrujada na qual guardava parte das economias. Seria uma garantia enterrar, caso
quisessem confiscar (KAWASAKI, 2021, p.30-31)
Em face dessa conjuntura político-social, o descontentamento era
comum, uma vez que os japoneses se sentiam muito mais prejudicados,
[...] o governo perseguia mais os japoneses que os italianos e
alemães porque eram diferentes, não se confundiam com os outros em meio à multidão. Não poder ter em casa livros escritos em
língua japonesa, que disparate! Que livros, afinal, deveria ter um
japonês em seu armário? Não poder falar em japonês, ora essa!
sumário
303
[...]
Essa história de nacionalismo era só um modo de Getúlio Vargas fazer figura diante do povo. O presidente queria que nihonjin
virasse gaijin, queria o impossível, queria obrigar os japoneses
a traírem a sua pátria. Mas quanto mais o governo pressionava,
mais nihonjin se sentia nihonjin (NAKASATO, 2011, p.90).
Em consequência, os integrantes da comunidade nipo-brasileira, como a personagem Hideo, sentiam que se não continuassem a
conservar e perpetuar sua cultura, estariam traindo seu país de origem.
Dessa forma, escolas improvisadas de língua japonesa eram mantidas
na clandestinidade como uma forma de resistência, a fim de manter os
laços linguísticos com o Japão:
Há mais pessoas que eu esperava na escola clandestina. Fica
num quartinho nos fundos da pensão dos Higuchi. Os filhos
dos Horie e o menino dos Tanaka, estão todos lá. Podemos
conversar em nihongo à vontade. É verdade que, no começo
de toda noite, falamos em voz baixa. Há o medo de nos descobrirem, como se a polícia pudesse ver além das paredes
(KAWASAKI, 2021, p.92)
Similarmente, em Nihonjin (2011) também há a referência a uma
dessas escolas, onde Hideo Inabata buscava manter intacto o espírito
japonês em seus jovens pupilos.
Era isso que ensinava naquela noite aos vinte e poucos alunos
amontoados num velho galpão de madeira. Meninos e meninas
reunidos ao redor de mesas improvisadas com tábuas e cavaletes, sentados em longos bancos, com cadernos repletos de
hiraganas, katakanas e ideogramas. Hideo propusera-se a ser
professor voluntário porque aquelas crianças, impedidas pelo
governo de ir ao nihongakko, não poderiam crescer como se
fossem gaijins (NAKASATO, 2011, p.96).
Há ainda a narração de situações de preconceito vivenciadas
pelas crianças da família Fujikawa, tais como, “estávamos juntas,
Kaede, Chiyo e eu. Agora somos o inimigo. Nos chamaram assim.
O inimigo” (KAWASAKI, 2021, p.93) e também “eles eram quase meninos, pouco mais novos que Kenji. Tinham raiva estampada nas bocas
sumário
304
e sobrancelhas. Eles nos xingavam sem pudor. Gritavam ‘morte aos
quinta-coluna’ e ‘japonês calabrês, o Diabo que te fez’ (ibidem, p.94).
Diante dessa circunstância, surge a Shindo Renmei153, que se
valendo do contexto de desconfiança mútua entre nihonjin e gaijin,
além da dificuldade de acesso à informação por parte dos japoneses
no Brasil – principalmente a respeito da Segunda Guerra Mundial e
seus desdobramentos –, e se apoiando no espírito nacionalista e beligerante nipônico, incentivou seus membros a praticarem atos criminosos, como intimidação, uso de violência, divulgação de notícias falsas
e assassinatos dentro da comunidade nipo-brasileira.
Essa página sombria da história da imigração japonesa no Brasil
também faz parte da narrativa de Nihonjin (2011), uma vez que Hideo
Inabata chegou a participar de reuniões promovidas pela associação
fundada em 1945 com o nome Kodosha – antes de se tornar Shindo
Renmei –, tendo, posteriormente, o filho Haruo assassinado por membros dessa organização. Isso sucedeu porque o rapaz era esclarecido,
tinha consciência da verdade sobre a derrota do Japão na guerra e não
escondia isso de ninguém.
Já, em Peixes de Aquário (2021), Kenji Fujikawa é quem se influencia com as histórias inventadas sobre o uso de seda para os paraquedas dos soldados inimigos:
Kenji leu em panfletos trazidos pelo senhor Taguchi e jurava
que eles não mentiam. A seda era vendida para o inimigo. Nas
fábricas, virava paraquedas, com os quais podiam invadir até
o Japão. A menta também tinha um destino parecido, transformada em bombas para os ianques. Japonês que fosse patriota não fazia dinheiro nem com um nem com outro. Kenji
lembrava bem das frases do panfleto. Havia decorado para
copiá-las em outros papéis que distribuía entre as árvores e
153 Shindo Renmei (“Liga do Caminho dos súditos”) foi uma organização de caráter ultranacionalista que incitou seus membros a praticarem atos criminosos, como intimidar e
assassinar japoneses e seus descendentes que difundiam na comunidade nipo-brasileira
a verdade sobre a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e o fato do imperador
não ser um deus e sim, um ser humano como todos os outros.
sumário
305
casas da colônia. Também as tinha repetido para o pai, mas
as palavras de certo encontraram uma muralha de indiferença
ou foram relegadas ao esquecimento. O intestino de Kenji dá
um nó. Aquilo é traição! (KAWASAKI, 2021, p.140)
A Shindo Renmei, responsável por disseminar histórias falsas e
inflamar o nacionalismo patriótico dos japoneses – que somente confiavam em seus compatriotas – convenceu tais pessoas a praticarem
atos violentos contra outros japoneses. Assim, aqueles que tentavam
revelar a verdade para seus pares eram chamados de traidores, a
exemplo da personagem Haruo Inabata, que escrevendo e publicando
um artigo sobre a derrota do Japão na guerra, foi sentenciado à morte
pelos kachigumi154 da Shindo Renmei. Ou, então, “quando o senhor
Horie conta que ouviu clandestinamente o imperador falar ao rádio que
era humano [...]. Disse que não era divino. Não era descendente da
deusa Amaterasu”. E, por causa das distorções e falsas notícias, muitos japoneses e seus descendentes reagiram contrariados, afirmando,
naquele momento, que “é mentira! É o que os gaijin estão falando.
Os gaijin mentem para enfraquecer a colônia. Horie não é mais um patriota”. E, assim, “a confeitaria do senhor Horie amanhece com kanjis
na vidraçaria: ‘Traidor da pátria’” (KAWASAKI, 2021, p.216).
Há, ainda, em Peixes de Aquário (2021), o episódio no qual a
família Tanaka teve sua criação de bichos da seda incendiada – uma
alusão ao que aconteceu à época com membros da comunidade nipo-brasileira que viviam da produção da seda e que tinham seus criadouros atacados por fanáticos que acreditavam que a seda beneficiava os
oponentes do Japão durante o conflito mundial.
Embora os dois romances analisados neste trabalho pertençam
ao universo da literatura, ambos transitam entre a ficção e a história,
construindo narrativas que ilustram e complementam a trajetória dos
imigrantes japoneses no Brasil.
154 Kachigumi: membros da Shindo Renmei que se nomeiam “vitoristas”, acreditavam que
o Japão havia vencido a Segunda Guerra Mundial e planejavam os assassinatos dos
makegumi (derrotistas), ou seja, os esclarecidos que divulgavam a verdade sobre a
derrota japonesa na guerra.
sumário
306
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Japão – país do extremo Oriente – insulado em seu território,
por séculos, povoou o imaginário ocidental com gueixas e samurais,
contrastando a delicadeza artística com uma disposição belicosa,
devotada às suas crenças e tradições. Em virtude dessa imagem, os
trabalhadores japoneses que vieram ao Brasil no início do século XX
chegaram aqui envoltos em uma aura de mistério. Eram vistos como
um povo disciplinado, trabalhador e resiliente, porém muito fechado
em seu próprio grupo étnico, o que criou uma visão política e social
de apreensão. Por um lado, devido a pensamentos preconcebidos em
torno da eugenia, e por outro, em função do racismo, do preconceito,
do medo e da desinformação que atingiram a todos existiram consequências bastante violentas no pós-Guerra.
Sendo assim, para compreender melhor a história da imigração japonesa no Brasil e, em particular, as consequências da Segunda
Guerra Mundial na vida dos japoneses e seus descendentes vivendo
naquele período em terras brasileiras, analisar as narrativas históricas
e literárias é um processo bastante importante.
A análise das experiências das personagens nos textos do
nosso corpus demonstra que essas vivências ficcionais se assemelham aos relatos históricos, apresentando situações que fizeram
parte do cotidiano dos imigrantes japoneses. Em relação a isso, as
personagens de Nihonjin (2011) e Peixes de Aquário (2021) revelam
não somente os acontecimentos, mas também compartilham os sentimentos e pensamentos que transformaram suas vidas, deixando
traumas e perdas irreparáveis.
Além disso, é por meio da literatura que, muitas vezes, temas
sensíveis, como o preconceito étnico-cultural e as feridas deixadas pela
Segunda Guerra Mundial, podem ser discutidas, mostrando o quanto o
sumário
307
acesso à informação, à verdade e à educação são fundamentais para
que a violência não seja um recurso ou uma escolha.
Ainda, as narrativas mostram que a identidade étnico-cultural
necessita tanto de um tempo para ser construída e/ou assimilada
quanto transformada. Portanto, assim como o japonês aprendeu a ser
japonês, o nipo-brasileiro também está nesse processo desde que os
primeiros imigrantes chegaram ao Brasil.
Em suma, as obras literárias envolvidas neste estudo permitem
notar que a imigração japonesa no Brasil foi atravessada por interesses variados – econômicos, políticos, sociais – mas também evidenciam que o principal objetivo do imigrante japonês era vir ao Brasil
para trabalhar, juntar recursos financeiros suficientes para retornar ao
seu país, a fim de lá viver, contribuindo com o progresso do Japão.
Por isso, a obstinação em manter a cultura japonesa no seio familiar,
sobretudo a língua japonesa.
REFERÊNCIAS
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 1997.
CARVALHO, D. O martírio no sol poente: das agruras (e)(i)migratórias à
formação de milícias ultranacionalistas no contexto do pós-guerra no
Brasil - o caso Shindo Renmei (1868 - 1956). 2017. 577p. Tese (Doutorado
em História) - Faculdade de História - Universidade Federal de Goiás,
Goiânia, 2017. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/
tede/7221. Acesso em: 06 de jun. 2022
DEZEM, R. Um exemplo singular de política imigratória: subsídios para
compreender o processo de formação dos núcleos pioneiros de colonização
japonesa no estado de São Paulo (1910-1930). Sem data. Arquivo Público
do Estado e Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.
researchgate.net/publication/273300301_Transitos_afirmacoes_e_negacoes_
sobre_a_identidade_japonesa_no_Brasil/link/55f14c7d08ae0af8ee1d558a/
download. Acessado em 27 de dez. 2022
sumário
308
Entrevista com Oscar Nakasato. CÂNDIDO ONLINE, Sem data. Disponível
em: htps://www.bpp.pr.gov.br/Noticia/Candido-leia-entrevista-com-o-escritorOscar-Nakasato. Acessado em: 04/04/2022
KAWASAKI, R. Peixes de aquário. Bragança Paulista: Urutau, 2021.
NAKASATO, O. Imagens da integração e da dualidade: personagens nipobrasileiros na ficção. 2002. 114p. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade
Estadual Paulista, Assis, São Paulo, 2002. São Paulo: Blucher, 2009.
NAKASATO, O. Nihonjin. São Paulo: Benvirá, 2011.
SAKURAI, C. Os japoneses. São Paulo: Contexto, 2007.
SAKURAI, C. Resistência & integração: 100 anos de imigração japonesa
no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2008.
SETO, C. Mitologia japonesa. Vol. 1, Coleção Mestre do Conhecimento,
Edição Comemorativa dos 100 anos de Imigração Japonesa no Brasil.
Curitiba: Planeta Zen, 2008.
sumário
309
Capítulo 15
15
A Terra que meus Olhos Rasgou Ficou: as mulheres
nipônicas e nipo-brasileiras de Nihonjin
Nathaly Iara Justino do Nascimento
Nathaly Iara Justino do Nascimento
A Terra que meus
Olhos Rasgou Ficou:
as mulheres nipônicas
e nipo-brasileiras de Nihonjin
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.97129.15
Do mais inanimado sono partiram, da cidade de Kobe, 781
japoneses rumo à lavoura de café paulista. Os cinquenta dias de mar
aberto e acordos econômicos trouxeram estes “novos outros” para
um mundo desconhecido que exigia, em contrapartida, sucessivas
rupturas e adaptações.
Tais rastros do processo de imigração nipônica são ostensivos e podem ser recordados mediante três divisões históricas determinantes: o antes, o durante e o pós Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Dito isso, Oscar Fussato Nakasato, em seu livro intitulado Nihonjin (2011), reconduz as memórias da família Inabata nos
âmbitos espacial e temporal, facultando, assim, a elucidação do contexto histórico e das trilhas que guiaram à criação das identidades
femininas, tema do texto aqui apresentado.
Dessarte, consideradas figuras secundárias às vidas dos maridos, a presença das mulheres japonesas e nipo-brasileiras na literatura desvelam traços verossímeis. Ora, de modo semelhante a outras
esferas sociais, elas estão incorporadas a um sistema que as subjuga
e as faz moeda de troca entre os homens –– partindo das mãos dos
pais para as dos esposos. Análogo a uma troca de presentes, esse
ato, segundo a antropóloga Gayle Rubin, pode ser apontado como um
recurso para o comércio social, em uma via de mão dupla. Ainda, de
acordo com a autora, o casamento –– “o mais fundamental modo de
trocar presentes, no qual as mulheres são os mais preciosos dentre
eles.” (RUBIN, 1993, p. 9) –– é que o aproxima a concepção de laços
e a união entre grupos desiguais. Portanto, o feminino sujeita-se a um
mecanismo de barganha, circunstância que torna o homem encarregado por estabelecer as relações sociais (RUBIN, 1993); citando:
No Japão, é precisamente na família que são aprendidas e meticulosamente observadas as regras de respeito. Enquanto a
mãe ainda leva o bebê preso às costas, empurra-lhe a cabeça
para baixo com a mão em suas primeiras lições consistem na
observância de um procedimento respeitoso com relação ao pai
ou ao irmão mais velho. A esposa inclinase diante do marido; a
sumário
311
criança, diante do pai; os irmãos mais jovens, diante dos mais
velhos e a irmã, diante de todos os irmãos, qualquer que seja
sua idade. Não se trata de um gesto vazio. Aquele que se inclina
reconhece o direito do outro de interferir em assuntos sobre os
quais ele próprio preferiria decidir e o que recebe a saudação
assume, por seu turno, certas responsabilidades relativas à sua
posição. A hierarquia baseada no sexo, geração e primogenitura constitui parte da vida familiar (BENEDICT, 1972, p. 48).
Isto posto, por vezes reclusa na ambivalência de “mulher como
pessoa e como esposa” (HEINICH, 1998, p. 121), abandona seus títulos, particularidades e desejos, “existindo apenas pelo lugar que lhe
está atribuído numa configuração que a precede e que lhe sobreviverá — aquela, temporal, de uma genealogia, e aquela, espacial, de
uma casa” (HEINICH, 1998, p. 121). Ademais, é de incumbência dela
a preservação da família e de seu lugar no mundo155, visto que, “está
na mulher a responsabilidade de, acima de qualquer eventualidade,
dar continuidade à família e garantir a perpetuação das próximas gerações” (BEAUVOIR, 2009, p. 489)156.
Consequentemente, tal imperativo a respeito dos afazeres da
casa, família e cuidado com os filhos refletem, muitas vezes, a formação e educação das mulheres japonesas. No Japão, no século XX, de
acordo com as pesquisas sobre maternidade, infância e reforma social,
de Kathleen Uno (1999), um ensino direcionado para a vivência familiar
era imprescindível na continuidade das pilastras hierárquicas, sustentáculos do Estado japonês. Assim desponta o ryōsai kenbo, melhor
dizendo, o ideal de feminilidade que reivindicava das mulheres uma
condição de “boa esposa, mãe sábia”, repousando nelas a obrigação
de administrar seus lares (oportunizando, aos maridos, o trabalho fora
de casa) e de zelar pelos descendentes, a fim de valer com a consolidação da nação. Das mães trabalhadoras (classe baixa) esperava-se
155 HONDAHASEGAWA, Laura. Sonhos bloqueados. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1991.
156 Embora Heinich e Beauvoir estejam, nestas citações, pensando sobre a sociedade ocidental, as afirmações são, igualmente, válidas para entender o papel da mulher na comunidade nipônica que se desenvolveu no Brasil.
sumário
312
uma educação na qual os indivíduos leais se dirigissem para o serviço
industrial, enquanto das mães de classe média a criação dos próximos
líderes. Dessa maneira, firmou-se o compromisso das mulheres em talhar o futuro da pátria (UNO, 1999), o que era desempenhado por elas
quando assumiam suas posições de esposas e educadoras.
À luz destas constatações, é fácil notar como a mulher nipônica,
no seio familiar, via de regra, acatou o que foi dito, estabelecido e sentenciado como certo pelos homens existentes em suas vidas –– embora o
contato com outra cultura, descoberta em solo brasileiro, tenha operado
com grande influência na maneira com que as personagens multiterritoriais157 passaram a questionar e, até mesmo, desafiar tais condutas.
KIMIE
“Sei pouco de Kimie” (NAKASATO, 2011, p. 9), é essa a frase
que dá início ao livro e esculpe o título do primeiro capítulo. Mediante
a imaginação de Noboru (neto e, idem, o narrador), as recordações de
Hideo (avô) e suas envelhecidas fotografias, o leitor esbarra na mulher
que partiu de Kobe, em um navio, tendo como destino às propriedades
cafeeiras paulistas. Desse modo, a personagem inaugura a trajetória
da família de nihonjin158 no Brasil — apesar da primeira esposa do avô
não querer dizer adeus ao Japão, pois, temia o desconhecido e não
apreciava mudanças — afinal, Hideo decidiu, então, ela foi.
Calada. Assim eu a imaginei: ao lado de Hideo, o marido, sempre calada, cabisbaixa, encaramujada. Os cabelos estavam
presos, mas malarrumados, com fios desalinhados. Usava um
157 “A existência do que estamos denominando multiterritorialidade, pelo menos no sentido
de experimentar vários territórios ao mesmo tempo e de, a partir daí, formular uma
territorialização efetivamente múltipla, não é exatamente uma novidade, pelo simples
fato de que, se o processo de territorialização parte do nível individual ou de pequenos
grupos, toda relação social implica uma interação territorial, um entrecruzamento de diferentes territórios. Em certo sentido, teríamos vivido sempre uma “multiterritorialidade”.
(HAESBAERT, 2005, p. 6783).
158 Traduz “japonês” (para os nascidos no Japão) ou “povo japonês”, na fonética moderna.
sumário
313
quimono pobre, de tecido claro com bolinhas rosadas, que ia
até os tornozelos. Nos pés, meias brancas e chinelos com base
de palha e tiras de pano. Parecia, então, menor do que realmente era. Quase inexistente (NAKASATO, 2011, p. 11).
O retrato de Kimie dialoga com o estereótipo da mulher nipônica manifesto no imaginário poente. Ela é apresentada como uma
esposa cândida, a espera da neve no cafezal brasileiro; vivendo secundariamente na história do marido, sua aparência ganha relevância
quando o narrador faz de estopim a descrição de sua fotografia159:
Baixinha, magrinha, encolhida ao lado de ojiichan, pronta para o
trabalho, metida num vestido claro, abotoado até o pescoço, de
mangas longas fechadas no punho, e numa calça amarrotada.
Na cabeça e no pescoço, lenços para se proteger do sol. Seus
olhos assustados não fixavam a câmera, embora olhasse para
a frente (NAKASATO, 2011, p. 10).
Como uma representação fronteiriça à ideia-comum de delicadeza160, a personagem, quase nada adaptada às terras ocidentais, carregava em seu pequenino corpo, em sua pele escondida da luz solar e
em seu olhar assustado, um perfil antagônico àquele necessário para o
trabalho no roçado. Por não se adequar a lida com as enxadas, estava
sempre cansada e adoecia com facilidade.
Indo além das particularidades físicas da protagonista, é oportuno atentar, igualmente, para o liame social entre ela e seus colegas
de viagem. Tendo em vista que seu desejo era permanecer no Japão,
a vinda desta mulher ao Brasil aconteceu, tão somente, em razão da
hierarquia familiar na qual as ambições masculinas se sobrepõem às
da mulher, sendo ela irmã, esposa ou filha;
Qualquer que seja a idade, a posição de cada um na hierarquia depende do fato de ser homem ou mulher. A mulher japonesa caminha atrás do marido e tem uma posição inferior.
Até mesmo as mulheres que em certas ocasiões, ao usarem
159 “A imagem queima: ela se inflama e, por sua vez, nos consome” (DIDI-HUBERMAN, 2018,
p. 25), assim como a fotografia de Kimie fez com Noboru.
160 Semelhante à tela Japonesa (1924), de Anita Malfatti.
sumário
314
roupas ocidentais, caminham ao seu lado e precedem-no ao
passar por uma porta, voltam para a retaguarda, uma vez envergado o quimono (BENEDICT, 1972, p. 51).
Nas terras brasileiras, o governo determinava ao menos três
pessoas em cada uma das moradas, e, somente deste modo, estariam aptos ao trabalho. Logo, também por decisão de Hideo, o casal
realizou a viagem acompanhado de Jintaro –– este que compartilhava
com eles a humilde casa na fazenda. Embora suas frágeis mãos mal
pudessem acompanhar o trabalho no cafezal, a rotina exaustiva da
nihonjin ainda incluía o gerenciamento da casa e os cuidados com os
homens que com ela moravam. Este era seu ofício enquanto mulher e
seu on161 com Hideo que, ocasionalmente, se prolongava para Jintaro.
Dessa forma, sua posição era inferior à do marido, que, frequentemente, doava mais horas ao boteco e ao álcool, desejoso em esquecer
sua insatisfação originada pelas circunstâncias precárias encontradas
neste lugar outro162, do que à esposa e à sua casa. À medida que os
primeiros capítulos são narrados, o relacionamento de Kimie e Hideo se
desvela malsucedido, fato que gera a aproximação da personagem com
o amigo da família, Jintaro. Porém, mesmo ele sendo mais sentimental,
o flerte entre eles reforça, idem, o direito masculino sobre o corpo feminino. A anuência do ato sexual é um bocado tácita, e, ainda que naquele
instante ela tenha deixado de lado o ser esposa para ser mulher, ao se
entregar a Jintaro, uma vez mais ela cede à exaustão de ser imigrante.
Em sua partida, a pequena e amável mulher viu a neve, o último
resquício do Japão em sua vida. Ela foi a gênese inscrita no passado
de ojiichan163, afinal, “a partir dela surgiram os demais” (NAKASATO,
161 Corresponde ao sentimento de dívida (moral ou social) com alguém que, em geral, é hierarquicamente superior. O on joga luz no respeito desmedido com que o “devedor” trata
os pais, podendo ser estendido, idem, se for o caso, para o marido, amigos, chefe etc.
162 Desterritorializado, o imigrante, pouco a pouco, atribui ao seu “território simbólico”, em
virtude da diáspora, uma maior carga simbólica (HAUESBAERT, 2005, p. 6789). Logo,
sem a possibilidade de regresso, o furusato (isto é, o sentimento de pertencimento ao
lugar em que se nasce e/ou também aonde se vai, em pensamento, quando triste ou feliz)
de Hideo vai deixando de existir.
163 Quer dizer “avô”.
sumário
315
2011, p. 39). Kimie simbolizou a pureza e as dificuldades de ajuste de
incontáveis japoneses que viram a esperança se dissolver no ar — “a
morte chegou lentamente. Há quanto tempo morria? Tranquila, congelada pela neve, congelada pelo sol” (NAKASATO, 2011, p. 43).
TOMIE
Dentre os familiares, a esposa de Hanashiro, filho mais velho
de Hideo, é a personagem mais proeminente. Todavia, sua presença baseia-se em uma perspectiva negativa do narrador; o sobrinho
parece não gostar da tia e, sendo assim, a retrata de acordo com
tal sentimento. A primeira menção a Tomie no romance, no título do
capítulo dois, é: “em uma conversa na sala da casa do tio Hanashiro, regada a café aguado da tia Tomie, ojiichan disse que naquela
época já não tinha certeza de que retornaria ao Japão” (NAKASATO,
2011, p. 45). A especificidade sobre o café parece irrelevante, quase
não chamando atenção ao lado da fala do avô. Contudo, perante as
demais caracterizações da personagem, há nela a imagem de uma
mulher inoportuna, desagradável e, até mesmo, amargurada.
A figura de Tomie ostenta um desconforto motivado pela comparação, inevitável, com Kimichan, pois, na contramão da ideia de mulher
sensata, calma, silenciosa, que a primeira personagem instaurou, ela
não hesita em falar, mesmo que seus pensamentos sejam impopulares
e, às vezes, agressivos. No entanto, ser subversiva não tira dela as
responsabilidades tradicionais, tendo ainda que zelar pela família do
esposo. Quiçá, seu jeito exagerado não seja, de fato, desagradável,
somente contrarie o esperado de uma esposa nihonjin — seguindo o
provérbio: otoko wa soto, onna wa uchi164 (UNO, 1999, p. 5).
164 “O lugar do homem é fora [de casa], o lugar da mulher é dentro” (tradução livre).
sumário
316
SENHORA INABATA
A mãe de Hideo, apesar de distante e não nomeada, determina os passos que o nihonjin trilha na narrativa. Ela foi uma de suas
justificativas para a saída do Japão “daria à mãe, que já sofrera tanta
penúria, um pouco de conforto. Falar da mãe embargou-lhe a voz, calou-se por um instante, mas logo se animou novamente” (NAKASATO,
2011, p. 15), e, também, seu laço com o passado, com a esperança
de um retorno para casa.
O falecimento da matriarca deixou sequelas profundas na vida
do filho, notificado através de uma carta; de início, Hideo, não chorou a
perda da Senhora Inabata, posto que “era um homem duro, como era
duro o seu pai, como eram duros os homens na terra dos samurais”
(NAKASATO, 2011, p. 56), mas, dias após, ele sofreu a dor e o luto,
com a enxada em mãos. Naquela terra estrangeira, desempenhando
um trabalho cansativo e mal pago, o personagem resignou-se: o porvir
estaria circunscrito nos sulcos do solo paulista.
A partir deste acontecimento os nihonjin compreendem que estão cada vez mais longe de um regresso ao lar. Não seria possível embarcar rumo ao Japão, pois, Hideo havia deixado de cumprir com suas
atribuições de gimu165; as lembranças da mãe tornaram-se cotidianas
e não tinha outro jeito de ser, afinal, em Hideo habitava o on de filho:
Um filho que nutre profundo afeto por sua mãe pode dizer que
não esquece o on que dela recebeu, significando que tem por ela
a devoção sincera [...]. O termo, contudo, refere-se especificamente não a este amor, e sim a tudo o que a mãe fez por ele quando bebê, os seus sacrifícios quando foi um menino, tudo o que
ela fez para promover os seus interesses quando homem, tudo o
que ele lhe deve pelo simples fato de que ela existe. Implica numa
retribuição sobre tal débito, significando, portanto, amor. Mas o
sentido primordial é de débito, ao passo que [...] o amor é dado
livremente, sem obrigação (BENEDICT, 1972, p. 89, grifo meu).
165 Entendido como dever para o cumprimento de uma tarefa ou serviço.
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317
SHIZUE
Shizue, “uma moça bonita, de rosto com as maçãs cheias, de
olhos brilhantes, como se vissem sempre uma novidade, muito diferente dos olhos de Kimie, que viam o dia como se vissem a noite, que
estavam sempre perdidos em alguma imagem do passado” (NAKASATO, 2011, p. 49), era a única descendente dos Mikimura — vizinhos
de Hideo, que compartilhavam com ele o ofurô, nos dias gelados — e
a escolhida para se casar com o recém viúvo, que já estava constrangido por conviver com a família sem um vínculo pessoal. Destarte,
mediante um compromisso acertado entre Hideo Inabata e Toshio
Mikimura, no qual o primeiro teria maior prestígio na comunidade, e,
o segundo, ampliaria sua mão de obra, a moça torna-se a segunda
esposa de Hideo, posto que, “não são apenas os indivíduos que se
casam, mas as casas que se aliam, patrimônios que se completam,
nomes que se associam” (HEINICH, 1998, p. 63).
A dessemelhança entre Kimie e Shizue é notável; a segunda
esposa dispõe de muito mais força física e resistência na lavoura do
que a primeira. Kimie foi o elo com o Japão, a mulher que desejava
o retorno, o frio, a neve; Shizue era o vigor necessário para a vida no
Brasil. Todavia, elas se assemelhavam quando faziam dos planos do
marido seus próprios quereres:
Ao se casar, a mulher, além do nome do marido, recebe, idem,
o seu trabalho, os seus sonhos e objetivos, e assim é seu dever
se adaptar a eles de modo a mantê-los acima dos seus próprios anseios, tendo em vista seu anexo ao universo do esposo
(BEAUVOIR, 2009, p. 464).
Com a ajuda de Hideo, os Mikimura arrendaram um sítio pequeno e neste local o casal deu origem à família Inabata. Ao todo,
tiveram seis descendentes: Hanashiro, Hitoshi, Haruo, Sumie, Hiroshi
e Emi, e, desde então, acrescentou-se às responsabilidades de esposa, as de mãe. Shizue era afetuosa, observava de pertinho cada
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318
passo das crianças, atentando para a alimentação, ensino e bem-estar. Tal qual o marido, dava importância na manutenção das tradições
japonesas, e, sendo assim, educava-os conforme a hierarquia familiar, principalmente às meninas.
A alegria de Shizue era sua família. Quem sabe seja por isso
que, depois de enterrar Haruo e ter de lidar com a fuga de Sumie, a
personagem vai desaparecendo da narrativa. Devagar, como Kimie,
ela faz morada nas memórias longínquas de Hideo e do neto narrador.
SUMIE
A filha mais velha dos Inabata detinha uma posição próxima a
da mãe, Shizue. Por isso, era esperado que ela tivesse saberes culinários, tomasse conta dos irmãos, da casa e que se casasse com um
homem bondoso, honrando, assim, sua família.
[...] propõem-lhe virtudes femininas, ensinam-lhe a cuidar da
casa ao mesmo tempo que da toalete, da arte de seduzir, do pudor; vestem-na com roupas incômodas e preciosas das quais
precisa cuidar, penteiam-na de maneira complicada, impõem-lhe regras de comportamento: – endireite o corpo, não ande
como uma pata (BEAUVOIR, 2009, p. 320).
Consequentemente, a história apresentada pelo narrador se
baseia em uma parte específica da vida de Sumie, a ocasião em que
ela se permitiu ir atrás do seu desejo de mulher, renunciando aos seus
papéis sociais de mãe e filha. Em resumo: a moça avistou Fernando
em um dia sonolento, na época em que trabalhava na loja de utensílios
do pai. Já nas primeiras visitas do rapaz ao estabelecimento algo despertou: “Sumie, que não era quieta, pelo menos como ojiichan acreditava que ela deveria ser, escutava tudo calada, com paciência, não a
de balconista, mas a de mulher” (NAKASATO, 2011, p. 102). Como o
sentimento era recíproco, em pouco tempo eles se tornaram um casal.
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Ao longo de quatro meses, os jovens mantiveram o namoro
escondido. Sumie, sabia que o pai conservador jamais aprovaria o
relacionamento com um gaijin166; “era uma vergonha para a família,
que se fosse sua filha não permitiria, que se houvesse teimosia a
expulsaria de casa, e, então, seria como se ela tivesse morrido”
(NAKASATO, 2011, p. 106). À vista disso, a menina decide ir embora
de casa para experienciar o amor.
Porém, Sumie, refletindo a respeito do seu on, seu débito de
filha e irmã, abandona a ideia de fuga. Após desabafar com a matriarca, ela aceita que pode ser feliz mesmo em um casamento que não
seja, necessariamente, por amor – a alegria está, também, em se ter
um bom companheiro, trabalhador e que conservasse junto a ela as
tradições japonesas. Assim, a descendente mais velha mantém-se
filha e irmã. Pouco tempo depois, ela se torna esposa de Ossamu, o
homem que o pai tem predileção. Dá à luz aos seus filhos (entre eles,
o narrador) e dedica-se a fruir de seu novo papel, o de mãe. Todavia,
sabia que ser feliz não era um estado eterno.
À luz de Shizue e Sumie, a narrativa expõe um debate inevitável:
a maternidade. Shizue atribui seu contentamento à família que formou
com Hideo, presumindo que este seja o caminho a ser trilhado pela filha. Contudo, observa-se, em tal caso, a ideia de ser mãe acorrentada
ao ser mulher, o que, embora dê certo para a genitora, não é o componente principal da história de Sumie. Então, certa noite, apaixonada
e junto de Fernando, seguindo o caminho desejado outrora, ela foge.
Ao deixar para trás Ossamu, o “homem que dia após dia fazia o que se
esperava dele” (NAKASATO, 2011, p. 121), Sumie, rejeita sua posição
de mãe, de irmã e, em especial, a de filha e esposa.
A essa vida doméstica de mãe, inteiramente fechada sobre a
casa familiar, mas aberta aos olhares no seu interior, opõe-se
a vida secreta da mulher à procura de si mesma, que não se
satisfaz com uma existência reduzida à maternidade. Esta vida
166 Significa “estrangeiro”. Era o termo usado pelos imigrantes japoneses e seus descendentes para se referirem àqueles que eram de outras etnias.
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secreta escapa ao marido, que nem sequer a imagina – tal
como não reconhece à sua mulher uma identidade pessoal
(HEINICH, 1998, p. 127).
Logo, ao transgredir os costumes hierárquicos e conservadores
que a envolviam, em busca de sua identidade, a personagem deixa de
ser uma Inabata, posto que, sua decisão partiu a mais firme das três
pilastras nipônicas: a família. As cicatrizes dessa renúncia conduzem
o olhar de Noboru, e, por conseguinte, o do leitor, ante as decisões da
mãe. Desempenhando um papel fundamental na maior parte dos relatos, é ele quem une, recompõe e, ocasionalmente, recria as lembranças para transmutá-las em narrativa. O doído ressentimento do narrador-personagem prejudica a descoberta dos motivos que a fizeram ir
e, desse modo, há embaraços na compreensão dos fatos. No entanto,
os dados apresentados são suficientes para evidenciar a potência de
sua ida e, ainda mais, de sua volta.
Há, dessa maneira, um contraponto: Kimichan, a primeira mulher do romance, nihonjin, trazida ao Brasil a contragosto para acompanhar o marido, aceitando, sem reclamações, o trabalho árduo na
lavoura e em casa, morrendo a espera da vida; terminando em Sumie,
a mulher nipo-brasileira, destemida, que foi atrás do que considerava felicidade, rompendo com normas, valores, costumes, e, por isso,
morreu e renasceu no seio da família. Enfim, um ciclo que evidencia o
processo de ajuste, intercâmbio cultural e rupturas importantes para
as mulheres nipo-brasileiras.
EMI
Emi, a mais nova, reconhecia com clareza sua posição de filha e
irmã no seio da família. Habituada a exercer determinada rotina, muitas
vezes, tinha a cabeça nas nuvens, e, expondo os seus pensamentos,
acabava, eventualmente, não desempenhando o papel esperado —
ao contrário de Haruo.
sumário
321
Desde cedo, foi educada a honrar os costumes japoneses, mantidos por seus pais, prostrando-se à mesa somente após os homens
estarem satisfeitos, além de resignar-se diante do que fosse proferido
por seu pai, irmãos ou futuro esposo. Porém, em determinado momento do livro, Tomie revela que após anos sem contato com os familiares,
Emi ressurge a fim de haver seu espólio, originado na venda e partilha
do comércio da família, no bairro da Liberdade.
Conforme dispõe Rubin (1993), em determinados grupos sociais,
as mulheres são utilizadas no intercâmbio entre homens, dentro de um
modelo no qual é possível deduzir que a figura feminina é reduzida ao
contexto de moeda de troca, não detentora da mesma condição jurídica
frente aos familiares do sexo masculino. Ademais, é evidenciado pela
autora que, de acordo com Engels “os homens adquiriam riqueza em
forma de rebanhos e, querendo passar esta riqueza aos seus próprios filhos, subverteram o direito materno em favor de uma herança patrilinear”
(RUBIN, 1993, p. 27). Isto posto, neste sistema de transferência de bens,
tanto os materiais quanto os imateriais — nome, títulos e posses da família — são, invariavelmente, repassados aos homens, de modo que o
acesso à herança às mulheres derivaria sempre de seus maridos e pais.
A repartição da herança exercida pelos Inabata, bem como por
outras tantas famílias, segue tal modelo, priorizando o homem na condução do nome e do patrimônio herdados. Em virtude disso, a revolta de Emi, contrariando a organização hierárquica de distribuição de
bens, preestabelecida por Hideo e, inclusive, pelos demais homens
chefes de família, é fortemente criticada.
SATOKO
Dentre as mulheres nihonjin retratadas na obra, Satoko é a com
maior liberdade no casamento, fazendo recomendações, expondo
seus receios, angústias, e, até mesmo posicionando-se em desacordo
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322
com outros homens quando preciso. Ela ampara seu esposo, Haruo,
nas decisões que, embora habitualmente seguras, se opõem à vontade do pai e, também, à do Imperador.
O comportamento da personagem, sobretudo em sua liberdade
para dialogar com o marido, evidencia o afastamento que Shizue e
Kimie têm dos problemas de seus cônjuges. Sua iniciativa e envolvimento em temas políticos ultrapassam os limites estabelecidos na
história da família, os quais, até então, excluía as mulheres de questões
intelectualizadas, restando a elas tomar conta dos assuntos da casa e
dos filhos. O entendimento de Satoko sobre as motivações do companheiro abre espaço para que eles debatam planos e hipóteses acerca
do responsável pelos ataques perpetrados contra Haruo.
À vista disso, as conversas entre eles exemplificam o movimento
de ruptura com a tradição – quando Satoko, extrapolando sua posição
hierárquica de mulher e nora, em concordância com Haruo, declara
que não ficaria espantada se fosse o pai do esposo o autor da temerosa pichação no muro de sua casa. A postura íntima do casal revela
que, à medida em que passassem mais tempo no Brasil, a família de
nihonjin estaria disposta a mudanças e cisões com a cultura japonesa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do livro, as personagens femininas viabilizam, em suas
vontades e decisões, acontecimentos que incorporam movimentos contínuos de rupturas e permanências. Melhor dizendo, seja nos papéis sociais concernentes às mulheres ou à ascendência nipônica, o romance
está repleto de momentos que confluem e se distanciam da tradição.
Dessa maneira, as circunstâncias em que as personagens femininas salvaguardam as tradições, possuem, em comum, questões
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323
referentes à família. A pilastra, discutida por Nakasato, em seus textos
acerca dos personagens nipônicos na literatura (NAKASATO, 2008),
emana maior influência sobre as mulheres — tanto nos casamentos
arranjados quanto na criação dos filhos, as decisões tomadas por elas
inclinam-se a anuir com que “as exigências familiares precedam as
individuais” (BENEDICT, 1972, p. 52).
Kimie, a origem das mulheres do livro, ainda que tenha desembarcado no Brasil a contragosto, atendia às expectativas do lar,
exercendo suas responsabilidades domésticas e matrimoniais, ao
mesmo tempo em que ouvia, em silêncio, as ofensas do marido referentes a sua fraca performance no campo. Paralelamente, outra filha
transeunte das mãos do pai para as do esposo, mediante um arranjo
feito entre os homens, é Shizue, que, cumprindo com o esperado,
mantém, idem, respeito à autoridade de Hideo, diferenciando-se de
Kimichan, apenas, pelo período de convivência com o marido e a
gestação dos filhos. A semelhança dos comportamentos ante ao
nihonjin se dava, em grande parte, por uma tradição que cultivavam:
Os japoneses não aprendem em seus lares a dar valor à autoridade arbitrária, como também não é cultivado o hábito de
submeter-se facilmente a ela. A submissão à vontade da família
efetua-se em nome de um valor supremo para o qual todos se
voltam, conquanto opressivas suas exigências. Ela se processa
em nome da lealdade geral (BENEDICT, 1972, p. 53).
A obediência à família recai, igualmente, em Sumie, a mais velha
das filhas dos Inabata que, abandonando sua primeira tentativa de fuga,
reflete sobre a gravidade de suas escolhas. Prezando, então, pelo seu
on, reputação da família e necessidades dos pais/irmãos, resigna-se,
durante um bom tempo, a ser uma mãe sábia e boa esposa. Simultaneamente, Tomie, hospedando os sogros já idosos, embora incomodada com a presença deles em sua casa, não questiona a tradição ou a
condição de primogenitura que seu marido, Hanashiro, impõe. Assim,
cumpre com seu giri167 de nora, cuidando de Hideo e Shizue.
167 Significa o senso de dever, relacionado a uma obrigação social.
sumário
324
Tendo isso em vista, as personagens femininas de Nihonjin
(2011) são fronteiriças, suas relações com as tradições nipônicas, longe do solo natal, caminham entre as margens do que são capazes de
conservar, ou não, de suas origens. Neste espaço cinzento, a descontinuação de costumes traz em si uma mescla de permanências, uma
vez que os arquétipos de maternidade transcendem a relação entre
culturas e enraízam-se nos afazeres comumente ligados às funções do
gênero feminino, tanto no Brasil quanto no Japão.
A relação extraconjugal de Kimie, por exemplo, sinaliza o movimento de abandono de certas tradições e manutenção de outras. Do
encontro proibido com o amigo da família, depreende-se o rompimento com as normas do casamento, que, no imaginário social, envolve
lealdade e respeito, ligados, principalmente, à mulher. Por outro lado,
exausta, a imigrante lhe entrega seu corpo, episódio que reforça a posição hierárquica inferior da personagem que sacrifica seus desejos
para satisfazer os de Jintaro.
Ademais, Satoko, na ocasião em que a personagem suspeita
que Hideo fosse o responsável pelas ameaças que Haruo recebia, ao
gritar e não ser honesta com o sogro, deixa de lado o respeito, sua obrigação enquanto mulher, nora e membro da família. Portanto, ela rompe
duplamente com as condições hierárquicas, seja de gênero, seja de
geração. Nesta lógica, é oportuno jogar luz sobre o descontentamento
de Emi, ao se dar conta que, por requerer sua parte da herança, direito
inerente à filha mais nova, os familiares a criticavam, afinal, esta seria
mais uma das prerrogativas masculinas.
Por último, Sumie, ao afastar-se da família, causa o rompimento
de maior significância na obra de Nakasato (2011). Ao partir com Fernando, ainda que imperasse na personagem a vontade de prosseguir com
as tradições, aos olhos dos familiares e conhecidos, ela havia rejeitado
sua posição social enquanto mãe, filha, irmã e, em especial, nihonjin.
Ao fim, ela representa uma tentativa infrutífera de mudar sua condição,
de explorar sua identidade, mesmo em uma sociedade parental:
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325
[...] a mudança de estado — de [menina] virgem para mulher
casada, de filha do seu pai para mulher do seu marido — não
se opera apenas por uma simples transferência da lei do pai
para a lei do marido: necessita também de todo um trabalho psíquico para que a jovem mulher se consiga adaptar a um outro
lugar que é, homologicamente, o lugar de outra — esse lugar de
primeira que ocupava, na configuração familiar original, a sua
própria mãe (HEINICH, 1998, p. 232).
A família que Sumie construiu junto de Ossamu exigia que ela
assumisse o papel de sua mãe, zelando pela alimentação, saúde e
educação dos filhos. No entanto, aquele não era seu lugar. Durante
todo o tempo de sua fuga, ela aparentava ter abdicado de ser mãe,
ou, ao menos, da responsabilidade instintiva que é imposta à mulher-mãe. Neste pressuposto, a finalidade da mulher não é tornar-se mãe,
pois, não se “nasce mãe” e os instintos maternos (trivialmente, assim,
nomeados) não são reais; o que há, de fato, é a construção da ideia e
da experiência da maternidade — o que parece acontecer com a personagem. Logo, seu retorno, aclara que ela, simplesmente, não havia
conseguido se adaptar ao papel herdado e, por isso, Sumie não seria
capaz de ser uma boa mãe nihonjin, posto que, já não praticava os
costumes e as tradições, fosse como filha ou mulher.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Trad. Helano Ribeiro.
Curitiba: Medusa, 2018.
HAESBAERT, Rogério. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Anais do X
Encontro de Geógrafos da América Latina. São Paulo, 2005, pp. 6774-6792.
HEINICH, Nathalie. Estados da mulher: a identidade feminina na ficção
ocidental. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
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326
HISTÓRIA da Imigração: 110 anos da imigração japonesa no Brasil.
Embaixada do Japão no Brasil, 2018. Disponível em: https://www.br.embjapan.go.jp/110anos/index.html. Acessado em: 20 dez. 2022.
NAKASATO, Oscar Fussato. Família, educação e trabalho: reflexos do tripé
nipo-brasileiro na literatura. In: Congresso Internacional Abralic, 2008, São
Paulo. Anais Eletrônicos. São Paulo: Abralic, 2008.
NAKASATO, Oscar Fussato. Nihonjin. São Paulo: Benvirá, 2011.
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres. Recife: Edição S.O.S Corpo, 1993.
UNO, Kathleen S. Passages to Modernity: motherhood, childhood, and
social reform in Early Twentieth Century Japan. Honolulo: University of
Hawai’i Press, 1999.
sumário
327
Sobre os organizadores
Monica Setuyo Okamoto
Professora Associada do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas, da
Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Pós-Doutoranda do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRS). Autora de A influência francesa no discurso brasileiro sobre o Japão.
Produtora da websérie NipoBrasileiros e do curta de animação Sakaki. Membro
do grupo de pesquisa TRANSFOPRESS (Imprensa Estrangeira no Brasil) e
Landscape of Injustice, Universidade de Victoria, Canadá.
E-mail: setuyo2@gmail.com
José Carvalho Vanzelli
Professor Substituto do curso de Letras (área de Japonês) da Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Letras pela Universidade de
São Paulo (USP). Pós-doutorado em Estudos Literários pela UFPR. Autor do
livro Portugal e o Oriente: Antero de Quental – Camilo Castelo Branco – Eça de
Queirós – Pinheiro Chagas (2021).
E-mail: vanzelli.jose@gmail.com / jose.vanzelli@ufpr.br
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328
Sobre os autores e autoras
Alexandre Nakahara
Mestre e doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Sua dissertação
de mestrado financiada pela CAPES teve como tema a representação de imigrantes brasileiros em filmes japoneses. Além de pesquisador, é realizador e
montador audiovisual, tendo trabalhado em diversos curtas-metragens e séries exibidos no Brasil e no exterior.
E-mail: alexnakahara@gmail.com
Eduardo Okamoto
Ator, mestre e doutor em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (IA/UNICAMP). Docente do curso de graduação em Artes Cênicas e do
Programa de Pós-graduação em Artes da Cena.
E-mail: okamoto@eduardookamoto.com
Felipe Pinto Mendes
Mestrando em Letras (Língua, Literatura e Cultura Japonesa) pela Universidade
de São Paulo (USP). Integrante do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA, Unifesp).
E-mail: felipepintomendes@gmail.com
Giorgia Vittori Vargas de Barros Pires
Graduada em Língua e Literatura Japonesa pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR) Bacharel em Letras-Japonês pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR).
E-mail: gi.vittori.pires@gmail.com
Hadiji Yukari Nagao
Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e
Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Dança
pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP) e Lic. em Ed. Física pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Técnico em Dança/Bailarina Profissional pelo
Centro Estadual de Educação Profissional de Dança Teatro Guaíra.
E-mail: hadiji89@hotmail.com
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329
Hugo Katsuo Othuki Okabayashi
Bacharel em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense e
mestrando pelo PPGCine-UFF. Desde a graduação, debruça-se sobre pesquisas em torno das representações amarelas no audiovisual.
E-mail: hugokatsuo@id.uff.br
Kelly Yshida
Bacharel e licenciada (2012) em História pela Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC). Possui mestrado (2015) e doutorado (2020) em História
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na linha de pesquisa “Sociedade, Política e Cultura no Mundo Contemporâneo”. É membro do Núcleo
de Estudos História, Literatura e Sociedade (NEHLIS-UFSC).
E-mail: kellyshida@gmail.com
Larissa Schmitz Nunes
Bacharel em Letras-Japonês pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e
pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania
Global pela Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Trabalha como assistente de pesquisa em projetos das universidades de Victoria, no Canadá, e Emory, nos Estados Unidos.
E-mail: larissa.schmitz@hotmail.com
Lívia Rodrigues Macedo
Graduada em Letras-Japonês na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Pesquisa literatura japonesa traduzida no Brasil. Seu projeto de mestrado envolve a tradução de literatura proletária japonesa para o português brasileiro.
E-mail: livia.macedo.3108@gmail.com
Luana Martina Magalhães Ueno
Mestra em História Social pela Universidade Estadual de Londrina (2021) e
graduada em História pela mesma universidade (2019). Atualmente é graduanda em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Participa do Laboratório de Pesquisa sobre Culturas Orientais (LAPECO/UEL)
e do Laboratório de Estudos Históricos do Contemporâneo (LABEHCON/UEL).
E-mail: 8.luana@gmail.com
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Lucimara Ota Eshima
Graduada em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com especialização em Leitura de Múltiplas Linguagens da Comunicação e da Arte pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Atualmente, no mestrado,
realiza pesquisa em ficção histórica.
E-mail: lucimara.eshima@hotmail.com
Marcia Hitomi Namekata
Professora doutora na área de Japonês (Literatura e Cultura Japonesa) no
Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (DELEM) da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
E-mail: marcianamekata@gmail.com
Michiko Okano
Professora associada de graduação e pós-graduação de História da Arte da
Ásia no Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do GEAA. Professora colaboradora no Programa
de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade
de São Paulo (USP).
E-mail: michikokano@uol.com.br
Nathaly Iara Justino do Nascimento
Mestranda em Letras (Estudos Literários), na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduada em Letras pela Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Atualmente, dedica seus estudos a
questões referentes à memória e ao esquecimento na Literatura Portuguesa.
E-mail: justinonathaly@gmail.com
Rafael Mariano Garcia
Ator, mestre e doutorando em Artes da Cena pelo Programa de Pós-graduação
em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).
E-mail: rafael@rafael-garcia.art
Robson Hideki Mori
Mestre no programa de Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador as-
sumário
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sociado do Centro de Estudos Asiáticos da Universidade Federal Fluminense
(CEA-UFF). Atualmente pesquisa imigração japonesa.
E-mail: robson.mori@gmail.com
Victoria Toscani Burigo Fernandes
Graduanda do curso de Letras-Japonês da Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Participou de intercâmbio de estudos na Universidade de Tenri, em
Nara, no Japão. Tem pesquisas voltadas para Literatura e Cultura japonesa,
especialmente da Era Heian, tendo participado do XII Congresso Internacional
de Estudos Japoneses no Brasil com um projeto da área.
E-mail: vic.toscani@hotmail.com
Willians Marco de Castilho Junior
Bacharel em Letras-Japonês pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e
mestre em Letras pelo programa de Língua, Literatura e Cultura Japonesa, da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade
de São Paulo (USP). Atualmente, é bolsista de pesquisa do governo japonês
(MEXT), na Universidade de Tóquio.
E-mail: willians.marco13@hotmail.com
sumário
332
Índice remissivo
A
antropologia literária 246
aristocrata japonês 192, 193
arquitetura japonesa clássica 54
Arte 8, 9, 12, 13, 17, 18, 19, 22, 23,
24, 26, 34, 36, 40, 46, 48, 56, 67, 68,
118, 120, 142, 156, 163, 280, 329, 331
artista brasileiro 20
ascendência japonesa 12, 20, 91, 292
ascensão social 94, 222, 227
atividades clandestinamente 276
autoridade masculina 222, 230
C
caridade cristão 274, 275
casamentos mistos 91, 235
cenário artístico 50, 59, 65, 155, 158
cenário artístico paulista 50
colônia japonesa 27, 38, 45, 224,
225, 333
comunicação universal 258
condições sócio-históricas 243
consagração internacional 58
construção identitária 65
contexto brasileiro 18, 52, 57, 98, 99
contexto tropical 65
correntes imigratórias japonesas 224
crenças xintoístas 54
crime ambiental 24
crises econômicas 214
Cultura 12, 52, 58, 67, 68, 88, 99, 100,
132, 134, 164, 181, 198, 267, 289,
329, 330, 331, 332
cultura brasileira 33, 50, 51, 73, 79,
97, 228
sumário
cultura clássica 244
cultura envolvidas 64
cultura híbrida 51
cultura japonesa 27, 28, 50, 51, 54, 55,
83, 94, 116, 117, 125, 140, 146, 229,
238, 262, 285, 308, 323, 326
cultura marginal 24, 34
cultura trabalhista 209
D
desigualdade social 274, 275, 284
deslocamento semântico 55
dialogismo cultural 65
Diálogos Interculturais 8, 48
diplomata japonês 190
E
educação geral 248
educacional nacionalista japonês 228
elementos estrangeiros 53
emigração 187, 188, 227, 295, 298
empregado doméstico 203
escrita científica 13
estéticas japonesas 54
F
famílias patrilineares 223, 230
filosofia aristocrática 246
G
gênero artístico 65
gêneros literários 242
governo japonês 187, 189, 204, 205,
206, 208, 209, 210, 211, 212, 213,
214, 264, 266, 285, 298, 299, 332
333
H
História 12, 14, 67, 68, 99, 127, 142,
143, 181, 182, 238, 240, 260, 271,
308, 330, 331
I
imigração japonesa 10, 13, 14, 20, 27,
44, 56, 67, 71, 81, 83, 88, 89, 91, 92,
99, 121, 122, 125, 167, 184, 189, 196,
198, 222, 224, 225, 240, 288, 289,
291, 295, 298, 305, 307, 308, 309,
327, 332
imigrantes japoneses 13, 25, 28, 35,
36, 50, 51, 71, 80, 83, 84, 89, 90, 94,
95, 96, 122, 123, 127, 189, 191, 196,
222, 228, 233, 238, 262, 289, 290,
294, 298, 306, 307, 320
indivíduo ocidental 54
J
japoneses imigrantes 66
L
liberdade econômica 190
linguagem verbal 54
literatura 9, 12, 13, 14, 102, 103, 118,
146, 149, 151, 152, 224, 225, 226,
237, 238, 239, 242, 243, 245, 246,
247, 249, 252, 253, 256, 262, 263,
265, 268, 269, 270, 274, 277, 278,
280, 281, 283, 284, 285, 286, 289,
306, 307, 311, 324, 327, 330
literatura japonesa 12, 14, 262, 269,
285, 330
literatura proletária japonesa 263, 268,
269, 270, 284, 330
M
manifestações orientais 242
medidas antidemocráticas 264
sumário
Migração Ilegal 203
migração irregular 203, 204
migração regular 203
mitologia japonesa 28, 291, 293
momento histórico 79, 246
momentos econômicos 213
movimentos sociais 273
mulheres nipônicas 11, 310
N
narrativa feminina 224
nipo-brasileiras 11, 14, 96, 133, 223,
226, 228, 237, 310, 311, 321
Nipo-brasileiros 12
nível internacional 245
normatizações 237
O
origem nipônica 57, 292
P
países asiáticos 201
papéis sociais 227, 228, 229, 230,
231, 232, 233, 234, 237, 319, 323
poesia verbal 64
povo japonês 25, 51, 123, 292, 293,
296, 313
práticas culturais 222, 228, 230, 231,
232, 233, 234, 235, 237, 334
práticas culturais japonesas 228, 232,
233, 234, 235, 237, 334
práticas japonesas 230
primeiro japonês 191, 198
problema socioeconômico 248
processo acadêmico 245
Proletária Japonesa 10, 14, 261, 267
propriedade psicológica 251
R
raízes japonesas 20
334
realidade social 281, 295
relatos históricos 243, 307
religião politeísta japonesa 250
residentes japoneses 30
S
símbolos comunicativos 242, 259
sistema capitalista 263
sistema cooperativo 230
sistema filosófico confucionista 223
sistema nacionalista japonês 231, 232
sistema previdenciário 200
situações espirituosas 243
sociedade japonesa 103, 108, 200,
209, 211, 223, 263
subjetividade individual 237
sucesso econômico 125, 234
sumário
T
terras brasileiras 64, 94, 122, 130, 132,
184, 191, 262, 290, 294, 297, 307, 315
trabalhadores estrangeiros 200, 203,
209, 211, 212
Trabalhador Migrante 10, 199
trabalho japonês 210
tradicionalmente japonesa 20
transcriado 64
transcultural 57, 64
U
universo cultural 12
V
vandalismo 18, 24
vivência internacional 24
335