Arte e Vida Ambientações Clinicas e Esteticas Da Existencia - Unlocked
Arte e Vida Ambientações Clinicas e Esteticas Da Existencia - Unlocked
Arte e Vida Ambientações Clinicas e Esteticas Da Existencia - Unlocked
FACULDADE DE EDUCAO
Arte e vida
ambientaes clnicas e estticas da existncia
SO PAULO
2012
Arte e vida
ambientaes clnicas e estticas da existncia
rea de concentrao:
Linguagem e Educao
Orientao:
Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto
SO PAULO
2012
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo
156.42
C222a
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
O tema da dor o meu campo de trabalho. Para dar significado e forma frustrao e ao
sofrimento. O que acontece com o meu corpo tem de receber uma forma abstrata formal. Ento,
pode-se dizer que a dor o preo pago pela libertao do formalismo.
[...] Para mim, a escultura o corpo. Meu corpo minha escultura.
Louise Bourgeois
Anish Kapoor
(...) o conceito de escultura pode ser estendido aos materiais invisveis usados por todos:
Formas pensantes como moldamos nossos pensamentos ou Formas falantes como lapidamos
nossos pensamentos em palavras ou Escultura social como moldamos e esculpimos o mundo em
que vivemos...
Joseph Beuys
RESUMO
CANGUU, D. F. Art and life: clinical settings and aesthetics of existence. 213p.
Dissertation. (Masters Degree). Postgraduate program on Education, Line of search
Language and Education, from the School of Education of University of So Paulo
FEUSP. So Paulo, 2012.
ABSTRACT
The writing of this dissertation was based on the privilege of the circumstantial
meeting among distinct theoretical fields in an attempt of articulation of theory and
concepts, in view of the event and the experience. For this purpose, the task kept on the
approach or the fusion between art and life in which the statements of dadaism and
surrealism have made expressive contributions. The clinical experiences, considered
settings, were exposed on narrative form that is the method on which this research was
based. Inspired on authors from psychoanalysis, philosophy, arts, and literature, some of
them have become constant supports for this research Freud, Lacan, Guattari, Foucault,
Benjamin and Lyotard, besides artists and writers. The issues proposed or developed on
this dissertation were problematized from an interdisciplinary perspective that surmises
connections between the clinical environments and an aesthetics of existence.
Keywords: art and psychoanalysis; dadaism and surrealism; clinical settings; insanity and
psychosis; aesthetics of existence.
SUMRIO
21
Difcil estabelecer quando tudo comeou, pois, como assegura Michel Foucault1
(1981/2007), a determinao de uma origem sempre imprecisa e no limite plural; assim,
o que era embrionrio no projeto desta pesquisa pode ser referido a uma regio nomeada
por uma pergunta-constatao: como o declnio do modelo da representao opera nas
questes do corpo, na clnica e nas artes?
O aforismo morte da representao gravita em muitos movimentos das artes
da modernidade e, sobretudo, das contemporneas na medida em que faz com que se
alastre e vigore um tempo de mostrao, em que a representao paulatinamente se v
substituda pela apresentao. No toa, assistimos, na contemporaneidade, a uma
imensa proliferao de trabalhos artsticos que insistem na efemeridade dos atos e dos
gestos, muitas vezes, s possveis de serem apreciados presencialmente no evento e/ou,
posteriormente, por intermdio dos registros e vestgios, quando estes existem. Talvez
seja no teatro, na figura de Artaud, que desejou romper com o conceito imitativo da arte,
que se encontra de forma mais patente o fechamento da representao2, ou melhor, o seu
limite, pois, como comenta Derrida: O teatro da crueldade no uma representao. a
prpria vida no que ela tem de irrepresentvel. A vida origem no representvel da
representao (2011, p. 341). E, nas palavras de Artaud: Disse portanto crueldade
como teria dito vida (apud DERRIDA, 2011, p. 341).
Foucault (1981/2007), em As palavras e as coisas, afirma que a ideia de origem se perdeu de forma
definitiva na modernidade, inscrevendo-se desde Kant, no registro do incognoscvel.
2
A partir do sculo XIX, as coisas e as palavras vo separar-se. O olho ser destinado somente a ver; o
ouvido somente a ouvir. O discurso ter realmente por tarefa dizer o que , mas no ser nada mais o que
ele diz (1881/2007, p.59). Examinando o livro de Cervantes - Dom Quixote -, Foucault afirma que se trata
da primeira das obras modernas em que se verifica que a linguagem rompe o seu velho parentesco com as
coisas, para entrar nessa soberania solitria donde s reaparecer, em seu ser absoluto, tornada literatura;
pois que a a semelhana entra numa idade que , para ela, a da desrazo e da imaginao (p.67). Nesse
sentido, com essas palavras que Foucault fala da morte da representao: Livre da relao, a
representao pode se dar como pura apresentao (1981/2007).
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ziguezagueantes em torno deste tema, j com boa parte do material em mos; e aps
interlocues importantes nas orientaes e na qualificao da pesquisa, alguns critrios
predominaram e precipitaram seu ttulo: Arte e vida: ambientaes clnicas e estticas da
existncia.
Na medida em que a aproximao arte e vida um dos eixos investidos para
engendrar um campo conceitual passvel de articulaes com a experincia, num primeiro
momento do texto, so apresentados seus encadeamentos sucessivos e seus desvios
inevitveis numa estratgia de resistncia para traar um percurso que esteja altura do
inesperado. De algum modo, esta pesquisa, inicialmente, (...) buscava com sofreguido
e aspereza o seu melhor modo de ser, o seu atalho, j que no ousava mais falar em
caminho (LISPECTOR, 1998).
Diante de um conjunto de experincias que serviram de material vivo para este
estudo, o ato de descrev-las tornou-se imperativo o que, associado operao com os
conceitos, viabilizou uma escrita em consonncia com os procedimentos artsticos
23
24
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acalmar os mortos e reunir toda a espcie de aparatos em uma aparncia de presena que
a prpria representao (DE CERTEAU, 2011, p. 51). Na evidncia de que a
representao posta em xeque, este autor fala sobre os funcionamentos possveis da
fico no discurso do historiador. Para ele, a prpria historiografia enquanto disciplina j
, em certa medida, uma mistura de cincia e fico, sendo esta ltima um discurso que
d forma (informe) ao real, sem qualquer pretenso de represent-lo ou ser credenciado
por ele (DE CERTEAU, 2011, p. 48). No tocante travessia das disciplinas, realizada
amide ao longo de seu trabalho, ele chegou a ser criticado, s vezes, por no habitar
inteiramente qualquer um dos papis exigidos por uma suposta identidade profissional.
Para explicar o seu procedimento, tinha o costume de dizer que se limitara a dar um
passo para o lado (GIARD apud DE CERTEAU, 2011, p.9).
Nesse sentido, no o intuito aqui que a narrativa funcione descritivamente,
assentada na realidade. Dada a necessidade de ficcionar a histria - como ressalta
Foucault - ou de fabular a realidade - como habitualmente fazem os escritores, possvel
demarcar que ser nessa tnue linha que a escrita vai se estabelecer para tratar de questes
to extensas, advindas de um trabalho rduo que, muitas vezes, v-se ameaado de
mortificar-se. Isso posto, esta dissertao cometer pequenos abusos ao usar a fico
como uma estratgia para lidar com os fatos e as lacunas intrnsecas aos mesmos, j que,
como disse Freud, em um de seus importantes textos, que a fico cria novas
possibilidades de sensao inquietante, que no se acham na vida (1919/2010d, p.374).
Desse ponto de vista, possvel acentuar que a cincia no est situada em uma
margem e as artes em outra, quer dizer, ao invs de se pensar que elas esto em oposio,
importante pensar que coexistem, muito mais do que se imagina. Talvez esta seja a fora
maior dos trabalhos que assumem que articulaes entre cincia e arte se impem
demasiadamente, acarretando concluses precipitadas s quais restaria apenas aceitar.
Deste modo, necessrio dizer que, nesta dissertao, estas articulaes, apesar de
apresentarem algumas dificuldades, foram muito bem-vindas, sem contudo serem
imediatamente aceitas ou naturalizadas. Este foi o procedimento prioritrio da pesquisa:
pretendeu abrir-se para outras reas do conhecimento por mais que em muitos pontos
houvesse incitaes para que se produzissem fechamentos e concluses. Para evitar estes
encerramentos e manter-se no enfrentamento das questes impulsionadoras surgidas no
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27
Traduo livre de Richter, H. Histria Del dadasmo. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 1973. A
traduo dos trechos seguintes, deste mesmo livro, tambm de nossa responsabilidade.
28
enviesadas por sua condio experimental, seu ineditismo e sua radical singularidade,
cujo trao extraordinrio est na efemeridade do acontecimento, quer se trate da clnica,
das artes, da literatura, da vida...
possvel, ainda, assumir, como ser desenvolvido mais adiante, que no se trata
de um trabalho sobre instituies nem prticas institucionais, nem sobre a clnica
psicanaltica e suas possibilidades de tratamento da psicose, nem da criao na loucura,
nem tampouco sobre as mutaes da arte, embora estes assuntos no tenham sido
negligenciados porque exerceram efetivamente uma funo no engendramento dos
elementos cruciais para pensar que a esttica da existncia no coincidente existncia
de obra.
29
O que irrepresentvel para Freud a pulso de morte, pois a ideia de morte no possui possibilidade de
se inscrever no inconsciente. Segundo Monzani (1989), a pulso de morte seria irrepresentvel por
excelncia sendo ela o mais pulsional da pulso. Para Lacan, o real e o gozo que no se deixam
representar.
30
montagem histrica e singular, bastante plstica: ser possvel verificar que vrios
caminhos podem satisfaz-la (que eles podem se combinar inclusive), que a satisfao de
uma pulso pode ser parcial ou inibida em sua finalidade, alm disso, que o prprio
objeto, elemento atravs do qual uma pulso se satisfaz, extremamente varivel e que
pode se modificar ao longo da vida ertica de acordo com as convenincias da satisfao
(CRUXN, 2004).
A escolha por privilegiar a pulso5 justifica-se no realce a dois aspectos.
Primeiramente, por ocupar na teoria freudiana um lugar fundamental, indispensvel na
leitura dos fenmenos psquicos, pois os demais conceitos da metapsicologia seriam todos
derivaes da pulso enquanto tal (BIRMAN, 2009). E tambm porque uma noo
amplamente utilizada no tratamento da criao artstica quando esta se elabora a partir de
contribuies do campo psicanaltico.
Mas por que este conceito, juntamente com a repetio, o inconsciente e a
transferncia so considerados conceitos fundamentais? No toa, o que pressupe
Lacan em 1964 em seu seminrio XI que leva este ttulo: Os quatro conceitos
fundamentais da psicanlise. Ele sustenta que este quarto conceito, isto , o da pulso,
Paulo Csar de Souza discute amplamente em seu livro As palavras de Freud: o vocabulrio freudiano e
suas verses (2010), alguns termos fundamentais da teoria psicanaltica, ao considerar as tradues e suas
implicaes. Ao expor alguns destes termos, que se ocupar ao longo desse livro, justifica que eles tm em
comum o fato de no serem ponto pacfico, mas pomo de discrdia entre estudiosos e praticantes da
psicanlise, em suas respectivas lnguas, e de serem, na lngua original, termos ambguos ou de grande
riqueza de significados e ressonncias (SOUZA, 2010, p.21). No caso do termo Trieb, ao examinar as
edies (a inglesa e a francesa), ele verifica grande divergncia entre ambas, o que repercute em duas
linhagens tericas um tanto distintas. Segundo o tradutor e autor, a principal crtica verso por instinto
foi encampada pelos tericos franceses, difundindo, principalmente a partir de Lacan, a expresso pulsion,
adotada em outras lnguas neolatinas. Ao propor essa discusso, ele chamar a ateno para ambas,
afirmando que tanto na verso instinto quanto na pulso existem perdas e ganhos. Entretanto, ele faz uma
advertncia ao dizer que no caso desta ltima, as perdas so maiores que os ganhos, e naquele os ganhos
ainda superam as perdas (SOUZA, 2010, p.261). Os argumentos que insistem no instinto decorrem do fato
de atribuir a ele um equivalente mais amplo, vago e rico em associaes e, diferentemente do termo pulso,
que seria mais no rol dos abstratos e pobres em associaes. Nas suas palavras: Tomar um neologismo em
detrimento de um velho conhecido significa menosprezar as relaes associativas. E a psicanlise, como a
lngua, vive de associaes (SOUZA, 2010, 257-258). Mesmo considerando a pertinncia dos argumentos
deste autor, que tem se dedicado a traduzir a obra de Freud diretamente do alemo, privilegiou-se, nessa
dissertao, o termo pulso em detrimento de instinto. Considerando que o vocbulo alemo tem uma
notria polissemia, sendo validado como um conceito freudiano por excelncia, talvez a postura mais
sensata e assertiva fosse desertar as verses e assumir o Trieb, por consider-lo um termo que escapa s
possibilidades de traduo. Tambm aqui h perdas e ganhos ao constatarmos que a traduo de uma lngua
para outra no deve ser tomada como um impossvel. Face ao exposto, a escolha aqui se v sustentada pelo
fato de a pulso ser um termo mais corrente na lngua portuguesa, mas, sobretudo, pela relao tangencial
dessa dissertao com o surrealismo, optou-se por posicionar em favor do neologismo.
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Contudo, o prprio Freud que d pulso esta atribuio, pois, como diz Lacan,
essencial, primeiro, lembrar que Freud mesmo nos diz, no comeo deste artigo, que a
pulso um Grundbegriff, um conceito fundamental (1964/2008b, p. 161). Ao introduzir
a discusso no artigo de 1915, Pulso e os destinos da pulso, diz que nenhuma cincia,
mesmo aquela mais exata, comea com conceitos bem estabelecidos e precisos, julgando
que, de incio e antes de confin-los a definies, necessrio manipul-los com certa
dose de indefinio. E mesmo depois de termos condies de formular os conceitos com
maior exatido, para ele o avano do conhecimento no tolera qualquer rigidez, mesmo
quando se trata de definies (FREUD, 1915/2004).
Nas palavras de Lacan:
isso mesmo que Freud prev. O progresso do conhecimento no suporta nenhuma
Starrheit, nenhuma fascinao das definies. Ele diz em algum lugar alhures que a pulso
faz parte de nossos mitos. Afastarei, de minha parte, esse termo de mito alis, nesse
mesmo texto, no primeiro pargrafo, Freud emprega o termo Konvention, conveno, que
est mais perto do que se trata, e que chamarei com um termo benthamiano que fiz notar
queles que me seguem, uma fico. Termo, diga de passagem, inteiramente prefervel ao
de modelo, de que muito se abusou. Em todo caso, o modelo no jamais um Grundbegriff,
pois, num certo campo, vrios modelos podem funcionar correlativamente. O mesmo no
acontece com o Grundbegriff, com um conceito fundamental, nem com uma fico
fundamental (1964/2008b, p.161).
32
interessam pela psicanlise. O mitolgico, conforme a sua hiptese, talvez se refira quilo
que na teoria psicanaltica aponta para o que a pulso tem de conceito-limite, conceito que
direciona para os limites da prpria teoria e tambm diz respeito ao fato de ser um
conceito fronteirio entre o anmico e o somtico.
Este carter de conceito fronteirio no nos deve conduzir a elucubraes metafsicas a
respeito de uma possvel entidade substancial, intermediria entre o corpo e a alma,
encarregada de fazer a ligao entre ambos. O termo mtico no se refere a uma
substncia que no nem corpo nem alma, mas que se situasse a meio caminho entre os
dois. Freud no est introduzindo aqui uma quarta substncia, alm das trs cartesianas (res
cogitans, re extensa, res infinita), mas, introduzindo um conceito que, embora articule
corpo e alma, no possui como referente uma substncia, seja ela de que natureza for
(GARCIA-ROZA, 1995, p. 66).
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e-vir da pulso Lacan diz que o que fundamental, no nvel de cada pulso, o vaivm
em que ela se estrutura (1964/2008b, p.175), j que no h nenhum objeto passvel de
satisfaz-la.
A pulso apreendendo o seu objeto, apreende de algum modo que no por a que ela se
satisfaz. Pois se se distingue, no comeo da dialtica da pulso, o Not e o Bedrfnis, a
necessidade e a exigncia pulsional justamente porque nenhum objeto de nenhum Not,
necessidade, pode satisfazer a pulso (LACAN, 1964/2008, p.165).
Quando se optou pela edio argentina, as tradues para o portugus dos textos freudianos em espanhol
foram de nossa responsabilidade.
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A tese de Freud sobre a pulso, em suma, diz que o aparato psquico um aparato
de captura do disperso pulsional que, portanto, impe s pulses, destinos. O discurso
freudiano, ao falar deles, foca-os na pulso sexual, por sustentar que ela axial no
aparelho psquico:
Uma investigao sobre os diferentes destinos que as pulses podero ter ao longo de seu
desenvolvimento e de sua vida ter de se limitar s pulses sexuais, pois so estas que
conhecemos melhor. A observao mostra que os destinos de tais pulses podem ser:
A transformao em seu contrrio.
O redirecionamento contra a prpria pessoa.
O recalque.
A sublimao. (FREUD, 1915/2004, p.152).
Garcia-Rosa observa que a palavra, utilizada por Freud, Schicksal possui alguns
significados, isto , destino, aventura, vicissitude. Desse modo, argumenta que a
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E finalmente:
[...] a pulso anarquista precisamente o que leva morte a representao narcsica
primria, o que arruina a fixidez de qualquer relao com um poder mortfero, e destri a
tentao de identidade nica, o que, enfim, possibilita a travessia da experincia-limite
(1993, p. 95).
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37
Dentro deste percurso terico sobre o conceito, cabe sublinhar que a associao da
pulso de morte destruio, a depender de como essa articulao realizada, torna-se
bastante restritivo. Nas consideraes de Vladimir Safatle, Lacan o responsvel pela
reforma do conceito de pulso e para ele toda pulso virtualmente pulso de morte
(LACAN, 1996, p. 848), da o termo aparece no singular. Nas palavras lacanianas:
no nvel da boa e da m vontade, e at mesmo pela preferncia pela m no nvel da
reao teraputica negativa, que Freud, no termo de seu pensamento, reencontra no campo
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No trabalho com campos tericos distintos, esta escrita se agencia com a pretenso
de fugir da tentao da totalidade. Considerando que estes campos no necessitam um do
outro, o que aqui se opera busca descartar qualquer fantasia de unio estvel. Assim, tal
aproximao entre arte, psicanlise e filosofia deve ser tomada para alm de um arranjo
de complementaridade; estes campos fazem vizinhana, entretanto, no algo contnuo e
que ocorre em todas as suas extenses, neste caso; costuma-se dizer: se h fronteira, h
tambm litoral.
Desse modo, a relao entre arte e psicanlise no pode ser tomada como algo
simples e sem entraves. Aspectos do pensamento freudiano foram apropriados por muitos
tericos e crticos na anlise das obras modernas e contemporneas; no entanto Freud,
mesmo reconhecendo os efeitos que a arte exercia sobre ele, ao abordar este assunto
sempre o fazia com muita reserva (LIMA, 2009). Muitos estudiosos concordam sobre a
qualidade literria da sua produo escrita, embora a metapsicologia estivesse voltada
fundamentao da psicanlise como discurso cientfico. Desta forma, Freud cunhou este
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termo para se referir ao discurso psicanaltico na sua especificidade terica. Forjou assim,
um neologismo para fazer meno singularidade conceitual da psicanlise (BIRMAN,
2009, p.26).
Com isso, a tentativa era a de que seu discurso, alm de ser legitimado pela
cincia, fosse uma leitura outra da psicologia, pois, a palavra metapsicologia remete ao
conjunto de procedimentos tericos e metodolgicos que Freud comeara a conceber para
construir a sua leitura do psiquismo (BIRMAN, 2009, p.28). Diante de suas inclinaes
e de seus empreendimentos com a psicanlise, ele mantm-se numa espcie de borda
entre a cincia e as artes sobretudo a prpria arte de escrever.
Sabemos, atravs de sua correspondncia com Fliess, que os conhecimentos filosficos
eram um projeto bastante acalentado pelo jovem Freud, e que sua metapsicologia nasce
justamente como uma posio intermediria entre a filosofia e a medicina, fundando um
novo campo; campo tenso e com uma infinidade de novas questes abertas a partir de sua
prpria fundao. Podemos observar claramente, no decorrer de sua obra, algo assim como
que uma poltica dos conceitos, voltada para o tratamento das questes produzidas no
campo da psicanlise, para a sua delimitao com relao a outros saberes (MOURA, 1995,
p.11).
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possvel afirmar a existncia de uma teoria freudiana da psicose, mas que no se desdobrou em uma
teoria do tratamento da mesma, tal como ocorreu com Lacan, j que embora Freud tome os casos de
psicose como paradigmticos de certos mecanismos do funcionamento psquico, ele no prope uma
teraputica para a psicose, diferente do que faz com a neurose (METZGER, 2008, p.10).
41
com Salvador Dal deu vrios frutos. Ademais, os surrealistas representaram uma
importante influncia em seu itinerrio. neste caldo temperado com muitas referncias
que sustentaram (e porque no, determinaram) a edificao de um campo terico
idiossincrtico que, posteriormente, derivou um sistema de pensamento:
Esse encontro logo o levar a rejeitar o automatismo e a inscrever, no cerne da alma
humana, a plena significao antropolgica da loucura. Terminada no outono de 1932, a
tese sobre a parania era portanto atravessada por um movimento de reapropriao das
posies surrealistas. Ora, Lacan no dizia uma palavra acerca dessa influncia maior.
Omitia cuidadosamente suas fontes nesse domnio, no mencionava nenhum dos grandes
textos surrealistas que o haviam inspirado e guardava silncio sobre os nomes de Dal, de
Breton e de luard. Preocupado com sua carreira, no queria desagradar nem seus mestres
em psiquiatria, que rejeitavam a vanguarda literria, nem os defensores da ortodoxia
freudiana, dos quais ainda era aluno. Clculo errado: os primeiros a prestar-lhe homenagem
sero aqueles cuja importncia encobria, e os primeiros a execr-lo, aqueles a quem queria
agradar (ROUDINESCO, 2008, p. 83).
42
entretanto, as motivaes e os gostos pelo ato de colecionar so, para ambos, distintos.
Como se sabe, Lacan teve sob sua posse, vrios objetos, livros raros e quadros de vrios
pintores. Uma de suas aquisies foi A origem do mundo, leo de Gustave Coubert, de
1866, quadro que causou na poca bastante escndalo, por representar abertamente o sexo
feminino. Isto apenas um pinar de referncias que se encerra por aqui, pois, se a
escolha fosse mape-las com maior preciso e justific-las tomaria um longo tempo,
entretanto, no este o intuito desta dissertao, evidentemente.
Ao gravitar por estes campos por vezes distintos e assumir os riscos das
contradies e ambiguidades em sua produo terica, Lacan ancorava o seu saber no
freudismo e, sobretudo, para alm dele, operando diferentemente de outros seguidores de
Freud. Como observa Roudinesco:
Mas, enquanto Melaine Klein efetuava a sua reelaborao no prprio interior do
pensamento freudiano e com a aparelhagem conceitual forjada por Freud -, Lacan
buscava sempre apoio num saber exterior ao freudismo: psiquiatria, surrealismo e filosofia.
E sabe-se que, sem esse recurso constante a uma exterioridade, ele certamente no poderia
ter lido Freud como o far a partir de 1936 (2008, p. 156).
Primeiro livro por ele publicado, que resultou de sua tese de doutorado em psiquiatria, na qual trabalhou o
caso Aime, o seu nico caso clnico em 50 anos de atividade profissional (SAFATLE, 2007). Marguerite
Pantaine, verdadeiro nome da paciente, fora internada, em 1931, no Hospital de Sainte-Anne, local que
Lacan trabalhava. Sua internao se deu aps esfaquear uma famosa atriz parisiense, por acreditar que a
mesma participava de um compl para assassinar o seu filho. Inspirado em um romance que ela no
conseguira publicar, o nome Aime serviu para dissimular a sua identidade, assim, como outros recursos
utilizados por Lacan e que so amides necessrios construo de um caso clnico. Inicialmente com essa
tese, a sua ambio foi confrontar a tradio francesa e a germnica que compreendiam as afeces mentais
de forma bastante distinta, adotando, na poca uma perspectiva psicognica, isto , uma perspectiva que
insistia na irredutibilidade de um certo quadro de distrbios mentais a toda e qualquer explicao causal de
natureza orgnica ou mesmo funcional (SAFATLE, 2007, p.15). A tese de Lacan teve muitos alcances e foi
um passo importante para o que a psicanlise compreende at hoje por parania, uma das modalidades da
psicose. Roudinesco ressalta que Lacan [...] mostra bem o lugar que ocupa a tese em seu itinerrio: ela
ainda uma obra de psiquiatria, embora j sendo um texto psicanaltico (ROUDINESCO, 2008, p.77).
43
Por outro lado, os textos de Dal que cobrem um perodo de 40 anos foram
reunidos e agrupados, redundando em um livro chamado Sim ou a parania. Estes
trabalhos que abrangiam as artes, a psicanlise, a poltica foram publicados, inicialmente,
na Le Minotaure, no supracitado artigo - Le surrealisme au service de la revolution -,
ou sob a forma de fascculos, conforme consta no prefcio do editor9. Nesta coletnea,
com essas palavras que Dal fala sobre a tese de Lacan:
Ao contrrio das novas intervenes de raciocnio coercitivo de natureza a fazer impor uma
outra interveno da ideia de sistematizao sobre os contedos delirantes, a considerao
do mecanismo paranico como fora e poder ativo na prpria base do fenmeno da
personalidade, e seu carter homogneo, total, repentino das suas caractersticas de
permanncia, de acrscimos, de positividade inerentes ao fato sistemtico apenas
vem confirmar-se, de uma maneira rigorosa, a leitura da admirvel tese de Lacan: Dela
psychose paranoaque dans ss rapports avec la personalit. a ela que devemos a
motivao de conseguirmos, pela primeira vez, uma ideia homognea e total do fenmeno,
fora das misrias mecnicas onde se atola a psiquiatria corrente. O seu autor se levanta
especialmente contra as ideias gerais das teorias constitucionalistas que arrasam o abstrato,
conforme as quais a sistematizao seria elaborada posteriormente por causa do
desenvolvimento de alguns, muito tnues, fatores constitucionais, o que contribui para criar
os equvocos grosseiros da loucura do raciocnio. Esta ltima noo, anulando a essncia
concreta e verdadeiramente fenomenolgica do problema, mais ainda faz ressaltar, pelo seu
estatismo unilateral, toda a ofuscante significao dialtica do processo paranico que no
pode, nessa ocasio, deixar de parecer-nos como eminentemente exemplar. O trabalho de
Lacan d conta, perfeitamente da hiper-acuidade objetiva e comunicvel do fenmeno,
graas ao qual o declnio toma esse carter ambguo e impossvel de ser contradito que o
coloca mesmo nos antpodas da estereotipia do automatismo e do sonho. Longe de
construir um elemento passivo, propcio interpretao e apto a interveno como estes, o
delrio paranico constitui j, por si prprio, uma forma de interpretao. precisamente
esse elemento ativo nascido da presena sistemtica que, alm das consideraes gerais
que precedem, intervm como princpio dessa contradio na qual reside, para mim, o
drama potico do surrealismo. Essa contradio nunca poder encontrar uma melhor
conciliao dialtica que nas ideias novas que surgem a respeito da parania e, conforme as
quais, o delrio surgiria j todo sistematizado (DAL, 1974, p. 31-32).
lvaro Pacheco.
44
possvel dizer que desde muito cedo Lacan interessou-se pelo dadasmo e a sua
ligao com o surrealismo nos d a ver que, posteriormente, ele reconheceu a influncia
surrealista na sua obra. Alguns dizem que Jacques Lacan conheceu Breton antes mesmo
de ler Freud. E, em 1929, escreveu Hiatus irrationalis, poema moda dos surrealistas.
Lacan que, logo em seguida, encontrou-se com aquela que seria a Aime - nome
retirado de um dos romances de sua paciente Marguerite , reconheceu o valor literrio de
seus escritos, como ocorrido com os surrealistas. Jean Allouch faz a seguinte associao
ao afirmar que os temas desse poema [de Lacan], a gua, o fogo, a natureza so a dos
escritos de Marguerite (ALLOUCH, 1997, p.511).
Dois anos antes de Lacan escrever a sua tese, Dal cria a atividade crticoparanoica - batizada por Breton de mtodo. Alis, para sermos mais exatos, neste ano de
1929, ele comeou a dar ateno aos mecanismos internos dos fenmenos paranicos,
encarando a possibilidade de um mtodo experimental baseado no poder imediato das
associaes sistemticas prprias parania; esse mtodo iria tornar-se, em seguida, a
sntese delirante crtica que tem o nome de atividade crtico-paranica (DAL, 1974,
p.18-19). Com estas palavras, Dal a define:
Paranica: delrio da associao interpretativa, comportando uma estrutura sistemtica
Atividade crtico-paranica: mtodo espontneo de conhecimento irracional baseado na
associao crtico interpretativa dos fenmenos delirantes. A presena dos elementos ativos
e sistemticos prprios da parania garantem o carter evolutivo e produtivo prprio
atividade crtico-paranica. A presena desses elementos ativos e sistemticos no
pressupe a idia do pensar dirigido voluntariamente, nem de um compromisso intelectual
qualquer porque, como se sabe, na parania a estrutura ativa e sistemtica consubstancial
ao fenmeno delirante em si todo fenmeno delirante de carter paranico, mesmo
instantneo e repentino, comporta j, no seu todo a estrutura sistemtica e nada faz seno
subjetivar a posteriori pela interveno da crtica. A atividade crtica intervm unicamente
como lquido revelador das imagens, associaes, coerncias e finezas sistemticas, graves
e preexistentes no momento em que se produz a instantaneidade delirante, e que, nesse
momento, nesse grau de realidade tangvel, s a atividade crtico-paranico permite
devolver luz objetiva. A atividade crtico-paranica no mais considera isoladamente os
fenmenos e as imagens surrealistas, mas, pelo contrrio, num conjunto coerente de
relaes sistemticas e significativas. Contra a atitude passiva, desinteressada,
contemplativa e esttica dos fenmenos irracionais, a atitude ativa, sistemtica,
organizadora, cognoscitiva, desses mesmos fenmenos, considerados como fenmenos
associativos, parciais e significativos, no domnio autntico de nossa experincia imediata e
prtica da vida (1974, p.19).
45
Outro fato digno de nota: o contato com o texto de Dal O asno podre - onde o
artista apresentou a teoria que incidir sobre a sua produo pictrica da dcada de 30 foi determinante no incio da elaborao terica de Lacan (RIVERA, 2005).
D para dizer que o mtodo de Dal tambm um acrscimo para a clnica, em
especial, quando se trata da psicose, em outras palavras, a influncia do pintor foi sensvel
na tese de Lacan que buscou estirpar o fosso entre a loucura e a razo. Por outro lado,
Breton tambm procurou transpor, para os procedimentos artsticos, o procedimento
analtico presente na sesso de anlise, demonstrando que os procedimentos de criao
surrealista, a saber: automatismo psquico, escrita automtica, tcnicas como a
frottage e a grattage e, ainda, o mtodo crtico-paranico possuem evidentes
parentescos com a associao livre. Ademais, estes procedimentos plsticos encontram na
psicanlise uma enorme afinidade, justamente porque esta, ao por em realce os atos
falhos, os lapsos de linguagem, os sonhos e o sintoma (a deformao e a repetio)
engendram outra forma de recepcionar a linguagem uma vez que estes fenmenos saem
do absurdo para ganhar a dignidade de ateno e eficcia no acesso aos contedos
psquicos.
Diante de tais informaes, constata-se que essa influncia entre o catalo e o
francs foi mtua e, em alguma medida, simultnea; o poder paranoico para Dal estava
a servio do inconsciente, demonstrando por assim dizer que foi na psicanlise que ele foi
se inspirar e, ainda, como acentua Quinet, a parania de Dal como uma sistematizao
da confuso encontra em Lacan seu equivalente no conceito de conhecimento
paranico (QUINET, 2006, p. 109):
Conhecimento paranico tudo que toma as vestes de conhecimento, parece conhecimento,
mas, por mais estranho que parea, desconhecimento, pois no deixa de ser obtuso, por
ser mera projeo da conscincia. importante fazer a distino, que se pode depreender
em Lacan, entre o que da ordem do conhecimento (que para ele sempre
desconhecimento, pois imaginrio) e o que da ordem do saber (que simblico, isto ,
sempre no-todo, pois o saber contm um furo que impulsiona a elaborao) (QUINET,
2006, p. 110).
46
47
2010, p.155). Esse um trao peculiar da narrativa que Freud procura ressaltar, j que o
elemento inquietante por ele relacionado a uma angstia bastante conhecida:
A experincia psicanaltica nos diz, por outro lado, que o medo de ferir ou perder os olhos
uma terrvel angstia infantil. Muitos adultos a conservam e, mais que qualquer outra leso
fsica, temem a leso ocular. No h o costume de dizer que uma pessoa cuida de algo
como a menina de seus olhos? O estudo do sonho, das fantasias e dos mitos nos ensinou
que o medo em relao aos olhos, o medo de ficar cego, frequentemente um substituto
para o medo da castrao. O ato de cegar a si mesmo, do mtico criminoso dipo, apenas
uma forma atenuada do castigo da castrao, o nico que lhe seria apropriado, conforme a
lei de Talio. Pode-se procurar rejeitar, pensando de maneira racionalista, a derivao do
medo relacionado aos olhos do medo da castrao; acha-se compreensvel que um rgo
precioso como os olhos seja guardado por um medo correspondente enorme, que por trs
do medo da castrao no haja segredo profundo nem significado diverso. Mas assim no
se leva em conta a relao substitutiva entre olho e membro viril, manifestada em sonhos,
fantasias e mitos, e no se pode contrariar a impresso de que um sentimento bastante forte
e obscuro dirige-se precisamente contra a ameaa de perder o membro sexual, e de apenas
esse sentimento confere ressonncia ideia de perda de outros rgos. Qualquer outra
dvida desaparece quando nos inteiramos, nas anlises de pacientes neurticos, dos
detalhes do complexo da castrao, e conhecemos o enorme papel que ele tem em suas
vidas psquicas (FREUD, 1919/2010d, p. 346-347).
48
realiza, por exemplo, seria algo de profundo interesse dito de outro modo, aquilo de que
no h discurso possvel, assimilvel. Ao operar no vazio das certezas, no hiato dos
discursos, a experincia psicanaltica e a experincia esttica tornam-se cmplices, sendo
oportuno reafirmar que, na arte e na psicanlise, h relaes a serem exploradas.
Entretanto e, como de se esperar, com Lacan, o maior terico do descentramento do
sujeito, que este intercmbio ser mais pungente e agudo.
preciso recordar que as noes fundadas e fundamentadas por Lacan procediam
de diversos horizontes do saber e neles se achavam misturadas todas as disciplinas que o
haviam nutrido. Em certa medida, tal caracterstica j informa sobre o seu estilo, apesar
de inicialmente ter-lhe causado problemas diversos, sendo, inclusive, acusado de
obscurantista e barroco, o que lhe exigiu imensas empreitadas em busca do avano de
seus estudos (e reconhecimento) bem como a disseminao de seu ensino. Mesmo quando
constatada a dificuldade de compreend-lo, tambm esta caracterstica lhe proporcionou
destaque. Sem desconsiderar as outras influncias, o surrealismo foi deveras promissor
para o estilo lacaniano. O seu modo de pronunciar e escrever, a sua predileo pelos
neologismos, enfim, a forma de seu ensino e de transmisso da psicanlise se v marcada
por essa vertente. Apesar de ter sido analisado por um div ortodoxo e regulamentador,
como afirma Roudinesco:
[...] Lacan era uma espcie de anti-heri, inapto normalidade, prometido extravagncia e
incapaz de obedecer multido de comportamentos comuns. Donde seu apego excessivo a
um discurso da loucura que era o nico a permitir interrogar a desrazo do mundo (2008,
p.101).
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50
haurem um grande conforto na prpria imaginao, que eles saboreiam o prprio delrio a
ponto de suportarem que ele no tenha validade para os outros. E a verdade que as
alucinaes, as iluses, etc., constituem uma fonte considervel de prazer [...]. As
confidncias dos loucos so algo que eu passaria toda a minha vida a suscitar. Eles so
criaturas de uma honestidade escrupulosa cuja inocncia s se pode comparar minha. Foi
preciso que Colombo embarcasse na companhia de loucos para descobrir a Amrica. E de
ver como essa loucura tomou corpo e tem durado (1924/2001, p. 17-18).
Chaim Samuel Katz, diz que Foucault, em sua Histria da loucura na Idade
Clssica, conclui que a loucura um outro da razo e que a razo no se exclui da
loucura (2001, p. 45). Mas o que isso quer dizer? Para situar o que alguns autores
escrevem ao aludirem a Michel Foucault, julga-se necessrio explicitar, mesmo que
pontualmente, qual o seu posicionamento perante a modernidade.
Atravs da pesquisa arqueolgica que incidiu sobre pensamento do moderno,
situando-o em relao ao clssico, especificamente, na Histria da loucura na Idade
Clssica, Foucault mostra que a medicina desta poca uma medicina classificatria,
uma medicina das espcies patolgicas, destoando, por assim dizer, da medicina moderna.
51
Se na poca clssica, inexistia uma separao entre o fsico e o mental, a maneira como se
relacionava socialmente com o louco no era guiada pelo conhecimento que se tinha da
loucura; na modernidade em contrapartida, isso se d de forma diferente, j que o mdico,
na medida em que cria a categoria de doena mental, detm o poder de diagnostic-la e
trat-la. A psiquiatria, desse modo, uma inveno moderna que se funda na distino
entre o fsico e o mental; o conceito de doena mental sustentado por essa racionalidade
mdica, por conseguinte, vai justificar, deste momento em diante, as prticas asilares e a
existncia dos grandes hospcios, mas agora, sob a alcunha de tratamento.
Roberto Machado, em uma palestra proferida em 1995, denominada Histria da
loucura e crtica da razo, afirma que esse primeiro grande livro de Foucault uma
crtica da razo, uma anlise dos limites da razo, uma anlise das fronteiras que, em
pocas diferentes, a razo estabelece e desloca, excluindo o que ameaa a sua ordem.
Neste caso, o grande enclausuramento da loucura no ficou restrito ao louco, mas queles
que realizavam uma espcie de transgresso. A exemplo disso, tem-se aqueles que
transgrediram os limites da sexualidade, os doentes venreos (que se contaminaram fora
da famlia), as prostitutas, os sodomitas, dentre outros, foram tomados, no sculo XVIII,
como pblicos no to heterogneos assim, j que estiveram elencados como casos de
polcia. Acompanhamos com Foucault e seus comentadores que esse enclausuramento
agrupava tudo aquilo que lhe era estrangeiro, que lhe aparecia como outro, no caso da
loucura, o outro da razo e que, por sua vez, passou a ser classificado como desrazo e
desatino.
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53
como arte da conduta recproca entre o homem e o rapaz na relao de amor (1984/2010, p.
114-115).
Aqui parece que a aproximao arte e vida ganha algum destaque e talvez nem a
ideia de aproximao mostra-se to efetiva, tampouco precisa, j que seria algo da ordem
da justaposio, juno, impregnao ou algo do tipo que se encontra marcado pela
capacidade de imbricao de uma coisa na outra. Para aproximar-se precisa estar
separado, antes de mais nada. Isso talvez impossibilita-nos julgar tais condutas da
antiguidade como estticas uma vez que, dentro do que diagnosticamos como arte hoje
da ordem do incomum, em outras palavras, no h algo comum a todos e regido por uma
regra de conduo em que todos podem/devem participar:
Deve-se entender, com isso, prticas refletidas e voluntrias atravs das quais os homens
no somente se fixam regras de conduta, como tambm procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos
valores estticos e responda a certos critrios de estilo. Essas artes de existncia, essas
tcnicas de si perderam, sem dvida, uma certa parte de sua importncia e de sua
autonomia quando, com o cristianismo, foram integradas no exerccio de um poder pastoral
e, mais tarde, em prticas de tipo educativo, mdico ou psicolgico (FOUCAULT,
1984/2010, p. 17-18).
54
A sua resposta pergunta, porque voc sente e age dessa maneira?, provm da
constatao de que os sistemas que presidem vida na Coria levaram-na inveno de
artefatos e artifcios para verificar a existncia e a pregnncia deles. Ora, os
procedimentos de interrogar e verificar, constitutivos da sua pesquisa como artista, do
coerncia a seus trabalhos, sendo perceptveis em sua potica. Em um trabalho mais
antigo, a artista recolheu e apagou livros de exerccios - espcie de cartilha ou livro
didtico comumente utilizado nas escolas normais que tratam de um material de ensino
bastante padronizado - deixando as marcas que cada aluno utilizava em seu processo de
aprendizado (grifos, palavras destacadas, anotaes na marginlia, etc). O que ela queria
verificar e acentuar eram as marcas do aprender.
Apesar de no se constituir em trabalho autobiogrfico, decorre de suas
experincias. E, nesta mesma entrevista, Sanghee Song fala de suas motivaes,
desencadeadoras de sua pesquisa como artista que resultaram nestes trabalhos.
Estou interessada apenas em mim. O mim aqui se refere a uma mulher, nascida na
classe mdia da Coria do Sul, heterossexual, sem nenhuma deficincia. Em relao a isso,
no se trata de um eu individual. muito claro que o grupo a que perteno um estrato
social distinto. tambm claro que existe uma memria coletiva e um padro de
comportamento a serem compartilhados, bem como uma tica que diz respeito a esse grupo
(apud LAGNADO; PEDROSA, 2006a, p.216).
55
que, ao examinar essa histria geral das tcnicas de si, dedicou-se tambm a
problematizar o comportamento sexual na antiguidade. Nesta investigao, Foucault
recupera a noo de aphrodisia, que na experincia grega, so atos, gestos, condutas, que
proporcionam uma certa forma de prazer e resgata outras duas palavras na lngua clssica
para designar essa forma de relao consigo, essa atitude que necessria moral dos
prazeres: a enkrateia e a sophrosune. Apesar de ambas aparecerem como acepes bem
prximas, ele ressalta que ainda faltaria muito para serem sinnimas e teria sido
Aristleles o primeiro a fazer essa distino. A enkrateia, com o seu oposto akrasia se
situa sobre o eixo da luta, da resistncia e do combate: ela comedimento, tenso,
continncia. A sophrosune, por sua vez, pelo exerccio do domnio e pelo comedimento
na prtica dos prazeres, caracterizada como uma liberdade. Essa espcie de dominao
de si implica para Foucault numa relao agonstica e, no por acaso, a relao com os
desejos e prazeres concebida como uma relao de confronto:
A batalha a ser travada, a vitria a ser conseguida e a derrota que se corre o risco de sofrer
so processos e acontecimentos que ocorrem de si para consigo. Os adversrios que o
indivduo deve combater no esto simplesmente nele ou perto dele. So parte dele mesmo
(1984/2010, p. 84).
Nesta prtica moral dos prazeres, para o pensamento grego, o indivduo deve
instaurar uma relao de si para consigo que do tipo dominao-obedincia,
comando-submisso, domnio-docilidade (e no, como o caso na espiritualidade
crist,
uma
relao
do
tipo
elucidao-renncia,
decifrao-purificao)
56
que -, ela aponta para uma estilizao da atitude e uma esttica da existncia, pois o
uso dos prazeres um exerccio de liberdade que toma a forma no domnio de si e este
domnio se manifesta na maneira como o sujeito se relaciona consigo e com os outros
(1984/2010). A persistncia neste pensamento implica em reconhecer que a esttica e,
neste caso, a esttica da existncia, para este pensador, encontra-se atrelada dimenso
tica.
Este campo investigativo nos d a ver que sobre esse material incidiu a anlise
foucaultiana do homem de desejo e, para tanto, argumenta que o entrecruzamento entre
uma arqueologia das problematizaes e uma genealogia das prticas de si foi necessrio.
Na Histria da sexualidade II: o uso dos prazeres, Foucault assim caracteriza o seu
mtodo investigativo:
A dimenso arqueolgica da anlise permite analisar as prprias formas da
problematizao; a dimenso genealgica, sua formao a partir das prticas sociais e
mdicas, definindo um certo perfil de normalizao; problematizao da vida, da
linguagem e do trabalho em prticas discursivas obedecendo a certas regras epistmicas;
problematizao do crime e do comportamento criminoso a partir de certas prticas
punitivas obedecendo a um modelo disciplinar (1984/2010, p.19).
Da, pode-se dizer que Foucault opera a histria de modo diferente dos
historiadores; alguns atribuem a ele a denominao filsofo-historiador na tentativa de
demarcar de que lugar ele est falando, um lugar que, no mnimo, comporta trnsitos e
contaminaes entre um campo e outro. Para efeito de exemplificao, sobre o seu estilo
de fazer a histria, na Histria da sexualidade I: a vontade de saber, ao listar inmeras
formas em que o sexo era proibido, censurado, reprimido, escondido, Foucault (1988)
salienta que, por isso mesmo, ou melhor, com todas estas prticas de silenciamento, nunca
se falou tanto dele. Desse modo, ele explicita os eventos numa relao paradoxal, que
questiona o modelo de causalidade mais recorrente na produo da histria, e dispe os
elementos de investigao num agenciamento complexo que impede a produo de uma
verso exclusiva dos acontecimentos, no permite a reiterao de uma verdade. Em suma,
o prprio mtodo genealgico se recusa ao estabelecimento de uma origem, ao contrrio
disso, a defesa que se pode comear a histria de vrios pontos diferentes e,
consequentemente, o comeo sempre um comeo e as origens podem ser variadas a
depender de onde se comea.
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60
permanente, que diz respeito ao estatuto da loucura e seus traos diferenciais similares aos
da Psicanlise enquanto teoria sobre a loucura (KATZ, 2001, p. 52).
Estas ideias mostram que, com relao loucura, pode haver alguns pontos de
contato entre esses pensadores, sem, contudo, desconsiderar que h muitas diferenas.
Embora Foucault tenha com a psicanlise, como preferem alguns, uma relao
ambivalente - pois se de um lado, enaltece-a por ter rompido com a polaridade normal e o
patolgico, de outro, atribui a ela uma reconstituio do poder mdico, produtor de
verdade, num espao preparado para que esta produo permanea sempre adequada ao
poder (apud COUTINHO, 2001, p.79). Sobre esta relao com a psicanlise, alguns
autores afirmam que, mesmo quando Foucault no menciona Lacan, em alguns de seus
textos, com ele o dilogo.
E, com efeito, a crtica de Foucault direciona-se ao operar com pequenas verdades
e no verdades que serviriam para toda e qualquer situao, desse modo, universais, o que
engendraria uma anlise totalizadora. J diria um surrealista ao escrever o seu manifesto:
Se num cacho de uvas no h duas iguais, por que tenho eu de descrever uma uva
baseando-me em outra, em todas as outras, ou supor que ela se presta a ser comida? A
mania incurvel em reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificvel, s serve de
entorpecer o crebro (BRETON, 1924/2001, p.22).
Como diz Deleuze, em um livro com alguns ensaios que versam sobre o
pensamento foucaultiano, a obra de Foucault entra na corrente das grandes obras que
alteraram, para ns, o que significa pensar (2005, p. 128). E, a partir da citao de
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Foucault: nunca escrevi seno fices... que aqui se retoma, acrescenta: mas a fico
nunca produziu, tanto, verdade e realidade (DELEUZE, 2005, p. 128).
Desse modo, convm destacar que a psicanlise implica subjetividades, no mais
identificadas com a conscincia e a racionalidade, mas com uma relao com a produo
de verdade dimensionada ordem do sujeito. E neste sentido, a psicanlise no vai
colocar a questo do sujeito da verdade, mas a questo da verdade do sujeito
(GARCIA, 1996). Quando se trata de pesquisa em psicanlise, Freud considerou
imprprias as categorias de racionalidade e objetividade, em funo do mundo simblico
da linguagem a que o homem est imerso. Frente aos impasses na clnica que a
produo do saber se agencia. Diante dessas consideraes, o ato de clinicar coincidente
ao de investigar, justamente porque:
Freud construiu conhecimento a partir dos impasses da clnica, formulando o seu mtodo
como quando chamou os efeitos de amor na relao teraputica de transferncia e
reformulando toda a sua prpria teoria a partir de novos impasses. O mtodo a escuta e
interpretao do sujeito do desejo, em que o saber est no sujeito, um saber que ele no
sabe que tem e que se produz na relao que ser chamada de transferencial. Nessa medida,
o psicanalista escuta o sofrimento e descobre que no deve elimin-lo, mas criar uma nova
posio diante de seu sentido (ROSA, 2004, p.341).
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Cumpre sermos gratos s descobertas de Freud. Baseada nelas delineia-se, enfim, uma
corrente de opinio graas qual o explorador humano poder ir mais longe em suas
investigaes, uma vez que estar autorizado a no levar em conta to-somente as
realidades sumrias. possvel que a imaginao esteja prestes a recobrar seus direitos. Se
as profundezas de nossa mente albergam estranhas foras, capazes de aumentar as foras da
superfcie ou de lutar vitoriosamente contra elas, do maior interesse captur-las: capturlas para em seguida, se for o caso, submet-las ao controle da razo. Os prprios analistas
nisso s tm a ganhar. Mas preciso notar que no h nenhum meio designado a priori para
levar a cabo este empreendimento; que, at segunda ordem, ele pode ser considerado tanto
da alada dos poetas quanto da dos homens; e que seu bom xito no depende dos mtodos
mais ou menos arbitrrios que sero seguidos (BRETON, 1924/2001, p.23-24).
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curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinao: no aquela que
procura assimilar o que convm conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De
que valeria a obstinao do saber se ele assegurasse apenas a aquisio dos conhecimentos
e no, de certa maneira, e tanto quanto possvel, o descaminho daquele que conhece?
Existem momentos na vida onde a questo de saber se se pode pensar diferentemente do
que se v, indispensvel para continuar a olhar ou a refletir. Talvez me digam que esses
jogos consigo mesmo tm que permanecer nos bastidores; e que no mximo eles fazem
parte desses trabalhos de preparao que desaparecem por si ss a partir do momento em
que produzem seus efeitos. Mas o que filosofar hoje em dia quero dizer, a atividade
filosfica seno o trabalho crtico do pensamento sobre o prprio pensamento? Se no
consistir em tentar saber de que maneira e at onde seria possvel pensar diferentemente em
vez de legitimar o que j se sabe? Existe sempre algo de irrisrio no discurso filosfico
quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde est a sua verdade e
de que maneira encontr-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingnua;
mas seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu prprio pensamento, atravs do
exerccio de um saber que lhe estranho. O ensaio que necessrio entender como
experincia modificadora de si no jogo da verdade, e no como apropriao simplificadora
de outrem para fins de comunicao o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for
ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ascese, um exerccio de si sobre o pensamento
(1984/2010, p.15-16).
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II - Arte e vida
A arte no me interessa, apenas os artistas.
Marcel Duchamp
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Quando um verdadeiro artista chega execuo definitiva de sua obra, o modelo lhe ser
mais um embarao do que um auxlio [...]. Estabelece-se assim um duelo entre a vontade
de tudo ver, de nada esquecer, e a faculdade da memria, que adquiriu o hbito de absorver
com vivacidade a cor geral e a silhueta, o arabesco do contorno. Um artista que tem o
sentimento perfeito da forma, mas acostumado a exercitar sobretudo a memria e a
imaginao, encontra-se ento como que assaltado por uma turba de detalhes, todos
reclamando justia com a mesma fria de uma multido vida por igualdade absoluta. Toda
justia acha-se forosamente violada, toda harmonia destruda e sacrificada; muitas
trivialidades assumem importncia, muitos detalhes sem importncia tornam-se
usurpadores. Quanto mais o artista se curva com imparcialidade sobre o detalhe, mais
aumenta a anarquia. Se for mope ou presbita, toda hierarquia e toda subordinao
desaparecem. um acidente que aparece constantemente nas obras de um de nossos
pintores mais em voga, cujos defeitos, alis, so to bem apropriados aos da multido que
contriburam singularmente para sua popularidade (BAUDELAIRE, 1859/1996, p. 32-33).
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Nada dos inspitos rochedos de outrora, onde criaturas monstruosas ameaavam solitrios
viajantes. Quando Andr Breton publica Nadja, 1928, os enigmas humanos j ecoam em
novo endereo h muito tempo. nas cidades que eles repercutem, quase sempre nos
ouvidos de caminhantes entregues aos prprios devaneios ao burburinho da multido. Pelo
menos desde meados do sculo XIX, as modernas capitais europias se converteram em
espao privilegiado das grandes interrogaes metafsicas, acolhendo a inquietude dos
espritos sensveis que no cessam de explorar suas esquinas mais obscuras. Nessa
cartografia, de referncias a um s tempo concretas e imaginrias, a cidade de Paris ocupa
um lugar especial, sobretudo nos escritos literrios que no raro a envolvem numa
misteriosa aura (MORAES, 2007, p.7).
Evidentemente, com suas anlises sobre a vida moderna - deste mundo que se
ergue como mltiplo e extremamente proliferante - Baudelaire chama a ateno para
extrair o eterno do transitrio, e, desse modo, prenunciam-se os movimentos de
vanguarda, o que o eleva condio de precursor da esttica moderna: Em poucas
palavras, para que a Modernidade seja digna de tornar-se Antiguidade, necessrio que
dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere
(1859/1996, p.27).
Jeanne-Marie Gagnebin, em seu texto Baudelaire, Benjamin e o Moderno,
afirma que Walter Benjamin escreveu vrios ensaios sobre Charles Baudelaire. Alguns
destes fariam parte de um projeto mais amplo de uma reconstruo histrico-filosfica do
sculo XIX e outros participariam de uma coletnea sobre o escritor. Ambos os projetos,
infelizmente, ficaram inacabados, como acentua a autora, sendo que alguns destes textos,
que pertenceriam coletnea, foram publicados de maneira independente. Gagnebin
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E ainda:
Contrariamente rememorizao, a perlaborao definir-se-ia como um trabalho sem fim e,
portanto, sem vontade: sem fim, no sentido de no ser guiado pelo conceito de um
objectivo, mas no sem finalidade. (LYOTARD, s/d, p.38-9).
11
Freud inventou este conceito para dar conta de fatos da experincia clnica que mostravam que o
conhecimento do esquecido no apaziguava a angstia. O termo perlaborao reservado ao tipo especfico
de elaborao psquica que ocorre na situao analtica e consiste no trabalho realizado pelo analisado.
Baseada, sobretudo, nas construes freudianas, Laplanche e Pontalis (2000), ao discorrerem sobre o termo
perlaborao, acentuam a dificuldade de traduo da palavra alem Durcharbeitung (ou Durcharbeiten) e a
definio que propem aponta para uma espcie de elaborao interpretativa, justamente por
corresponder ao processo pelo qual a anlise integra uma interpretao e supera as resistncias que ela
suscita. Seria uma espcie de trabalho psquico que permitiria ao sujeito aceitar certos elementos recalcados
e libertar-se da influncia dos mecanismos repetitivos. A perlaborao constante no tratamento, mas atua
mais particularmente em certas fases em que o tratamento parece estagnar e em que persiste uma
resistncia, ainda que interpretada (Laplanche; Pontalis, 2000, p. 339).
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transformar a prpria noo de arte. Com base no texto de Benjamin, Lebrun (1983) nos
conduz a pensar que, neste caso, as palavras se mantiveram, mas, entretanto, no se trata
mais da mesma coisa.
No se pinta para o mercado assim como se pintava para um mecenas. No se concebe o
Centro Beaubourg como se concebia um castelo de recreao do rei. As palavras pintura,
arquitetura, decorao podem permanecer, mas no se trata mais do mesmo tipo de
produo (LEBRUN, 1983, p.23).
Lacan diz algo similar quando afirma que, para avaliar a sublimao, deve-se
considerar que a produo na arte, especialmente das Belas-Artes, historicamente
datada, pois:
No se pinta na poca de Picasso como se pintava na poca de Velzquez, no se escreve
tampouco um romance em 1930 como se escrevia no tempo de Stendhal. Este um
elemento absolutamente essencial que no devemos, por enquanto, conotar no registro do
coletivo ou do individual coloquemo-lo no registro do cultural (1959-1960/2008a, p.132).
Walter Benjamin formula esta transio considerando que no tempo das tcnicas
de reproduo, o que atingido na obra de arte a sua aura (1935-1936/1969, p.19).
Entende-se por aura a nica apario de uma realidade longnqua - por mais prxima que
ela possa estar e mais aquilo que essencialmente longnquo o inaproximvel
(BENJAMIN, 1935-1936/1969, p.22).
Nesse sentido, a noo de aura, tal como afirma Benjamin:
[...] permite resumir essas caractersticas: o que se atrofia na era da reprodutibilidade
tcnica da obra de arte a sua aura. Esse processo sintomtico, e sua significao vai
muito alm da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a tcnica de reproduo
destaca do domnio da tradio o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a
reproduo, substitui a existncia nica da obra por uma existncia serial. E, na medida em
que essa tcnica permite reproduo vir ao encontro do espectador, em todas as situaes,
ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da
tradio, que constitui o reverso da crise atual e a renovao da humanidade (19351936/1994a, p.168-169).
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Em relao obra, ela pode ser, para Duchamp, qualquer coisa, mas numa hora
determinada (apud CAUQUELIN, 2005, p.94). Percebe-se que, neste deslocamento, o
valor desertou o objeto e agora est relacionado ao lugar e ao tempo. O autor desaparece
como artista-pintor, ele apenas aquele que mostra. Basta-lhe apontar, assinalar
(CAUQUELIN, 2005, p.94).
Cabe sublinhar que Duchamp, ao se apropriar dos objetos cotidianos e introduzilos no museu, elimina a fronteira, antes bastante demarcada entre a arte e a no-arte,
assim, a arte, com as atitudes e os gestos duchampianos, tornou-se um exerccio contnuo
de desorientao. Essas ocorrncias encontram-se contextualizadas s observaes de
Benjamin em torno da corroso da aura; quer dizer, a aura declina com a tecnologia e
essas mudanas expandem-se para alm dos limites artsticos e modificam, inclusive, a
relao da massa com a arte.
Ora, diante das artes rigorosamente modernas a fotografia e o cinema h, para
Benjamin, um deslocamento fundamental: a obra deixa de ser um objeto de culto para ser
um objeto mostrvel que entra no circuito da exibio. Nesse cenrio, a pintura no
poderia ser objeto de uma recepo coletiva, como aconteceu com a arquitetura e,
posteriormente, com o cinema (BENJAMIN, 1935-1936/1994). No caso da realizao de
um filme, h um afastamento definitivo da natureza, j que no mais possvel a
imitao, nesse sentido que ele afirma que a cmera opera o real. A partir do confronto
com a pintura, ele escreve:
A pergunta aqui a seguinte: qual a relao entre o cinegrafista e o pintor? A resposta pode
ser facilitada por uma construo auxiliar, baseada na figura do cirurgio. O cirurgio est
no plo oposto ao do mgico12. O comportamento do mgico, que deposita as mos sobre
um doente para cur-lo, distinto do comportamento do cirurgio, que realiza uma
interveno em seu corpo. O mgico preserva a distncia natural entre ele e o paciente, ou
antes, ele a diminui um pouco, graas sua mo estendida, e a aumenta muito, graas a sua
autoridade. O contrrio ocorre com o cirurgio. Ele diminui muito a sua distncia com
relao ao paciente, ao penetrar em seu organismo, e a aumenta pouco, devido cautela
com que sua mo se move entre os rgos. Em suma, diferentemente do mgico (do qual
restam alguns traos no prtico), o cirurgio renuncia, no momento decisivo, a relacionar-se
com o seu paciente de homem a homem e em vez disso intervm nele, pela operao. O
mgico e o cirurgio esto entre si como o pintor e o cinegrafista. O pintor observa em seu
trabalho uma distncia natural entre a realidade dada e ele prprio, ao passo que o
cinegrafista penetra profundamente as vsceras dessa realidade. As imagens que cada um
produz so essencialmente diferentes. A imagem do pintor total, a do operador composta
de inmeros fragmentos, que se recompe segundo novas leis. Assim, a descrio
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76
77
78
13
Nesta verso da bienal ocorrida em 2006; o ttulo Como viver-junto foi pensado com base nos
seminrios de Roland Barthes, realizados no Colge de France, na dcada de 70. Outra presena na
concepo desta bienal foi o artista Hlio Oiticica e seu Programa Ambiental.
79
porque isto estava previsto, entretanto, no momento de sua chegada verificava-se que esta
previso era invivel. Tomados por uma espcie de incapacidade de conduzi-los, mas
convocados a responder quela tarefa institucional, restava aos monitores construir uma
mediao a partir do prprio acontecimento daquela chegada, pautada inicialmente na
experincia impregnada de susto, paralisias e, ao mesmo tempo, curiosidade e desafio. O
prprio encontro j fornecia material para inventar no somente um roteiro mais
adequado, mas um manejo, uma maneira singular de apresentao da mostra. A abertura
para isso que no se sabe e a construo conjunta entre a monitora e os supostos
espectadores so condies para quem se lana neste tipo de trabalho. Tal postura pde
contar com a prpria tendncia das produes artsticas contemporneas que privilegiam
cada vez mais o comportamento de quem participa. Um olhar aguado e ao mesmo tempo
abrangente faz-se necessrio ao monitor, para disponibilizar-se ao risco desta
aproximao, de modo a construir um percurso com aqueles que vm ao encontro desta
experincia.
Durante o percurso com o grupo, um momento relevante desta visita deu-se no
contato com a obra de Alberto Baraya - artista que vive em Bogot e que residiu no Acre
por alguns meses em funo da Bienal que teve como pauta alm da mostra propriamente
dita, um projeto de residncia artstica.
O trabalho de Alberto Baraya para a 27 Bienal de Artes de So Paulo contava
com o projeto de um Herbreo de plantas artificiales, em que o artista recolheu plantas
e flores artificiais que enfeitavam as casas de moradores da Amaznia, dispondo no
museu essa sua coleo, e especificando-a como faz um botnico. Esse procedimento era
reincidente em sua obra, presente em outros momentos de sua produo, mas
especificamente sobre esta experincia, e a respeito do encontro com estas plantas e flores
de plstico, o artista declarou que:
O fato de deparar com elas, acabou sendo uma espcie de confirmao daquilo que eu
denominava as leis da decorao. At mesmo os lugares mais naturais precisam ser
ornamentados, custe o que custar. Assim, a globalizao penetra nos lugares mais remotos
do mundo e evidencia uma ruptura das fronteiras culturais (apud LAGNADO; PEDROSA,
2006a, p.24).
80
atitude, pelo gesto florescido, por exemplo, no contato com os seringueiros e com a
populao daquela regio, quando residiu alguns meses no Brasil - proposio desta
Bienal. Considera-se que a fora do trabalho localiza-se mais na experincia de morar em
outro lugar, de ocup-lo (mesmo que por alguns meses) e de apreender aquele ambiente,
atribuindo, muitas vezes, ao produto final ou quilo que se concretizou como obra, uma
parte desta e, s vezes, para ser visualizada, ela se acentua, como dependente da
experincia quando no uma mera funo de registro. Para o artista-residente, aceitar esta
proposio j um gesto, pois sabemos que a arte do sculo XX tem esta obstinao:
uma grande arte deste sculo parece mobilizada pela inteno de apagar as fronteiras
entre a obra e seus entornos, entre a cena e seu espectador, entre a religio da arte e o
mundo comum (GALARD, 2008, p.16).
E a propsito da palavra gesto, cabe destacar aqui o que nos explicita Jean Galard,
em seu livro A beleza do gesto, cuja defesa que a arte do comportamento, mesmo sendo
a mais rudimentar e desprovida de categorias estilsticas, apresenta-se como a mais
necessria; se se considera que forma de agir, maneira, jeito so algumas de suas
significaes, conforme nos traz o Dicionrio Houaiss de Lngua Portuguesa o autor
chega a qualific-la como a arte ao p da letra e, deste modo, eleva o gesto sua
proposio radical.
Se verdade que toda a reao socialmente modelada, que nossos gestos inclusive os
mais elementares, so educados, a arte que se dedicasse a eles no contradiria o natural,
substituiria uma arte anterior, uma esttica implcita, pouco consciente, que regula o porte e
a atitude, a continncia e as convenincias, que subentende a exigncia da conteno,
quando no do comedimento. Uma arte deliberada, associada s condutas, no teria como
objetivo opor seus eventuais refinamentos aos extravasamentos dos instintos; ela
experimentaria gestos inusitados, que a esttica herdada exclui.
preciso entender aqui o gesto na maior extenso do termo: no s no sentido prprio
(os movimentos do corpo, os usos corporais), mas tambm na acepo figurada.
Permanecer resolutamente exposto a um perigo, enfrentar um adversrio mais forte, lanarse em nome da honra numa aventura sem esperana agir pela beleza do gesto como se
um sistema esttico, de princpios constantemente ativos, mas informulados, nos incitasse a
acreditar que a beleza nunca pode aparecer to bem como nas poses de desafio, nas reaes
suicidas, no brilho e na gratuidade (GALARD, 2008, p.21-22).
81
abordar as pessoas e recolher estas plantas artificiais nas casas e nas ruas. Para efeito
desta pesquisa, vale ressaltar que este delicadssimo trabalho inscreve-se como obra de
arte a partir do que a modernidade constelou no cenrio artstico.
E sob este aspecto, difcil falar do gesto e das poticas da atitude sem aludir ao
corpo. Sem ambicionar que no havia a presena do corpo em outras artes, neste mbito
da arte moderna e suas extenses contemporneas, surgem e ganham relevo os trabalhos
que incidem sobre a descoberta do corpo ou que o tomam como matria como o caso
da body art e das performances derivando, inclusive, numa nova terminologia, qui,
categoria ao designar o corpo como suporte quando reportamos a estes trabalhos. As
produes de artistas contemporneos no comportam mais certas denominaes que se
mostram insuficientes ou imprecisas para situ-las:
No incio dos anos 60 ainda era possvel pensar nas obras de arte como pertencentes a uma
de duas amplas categorias: a pintura e a escultura. As colagens cubistas e outras, a
performance futurista e os eventos dadastas j haviam comeado a desafiar este singelo
duoplio, e a fotografia reivindicava, cada vez mais, seu reconhecimento como expresso
artstica. No entanto, ainda persistia a noo de que a arte compreende essencialmente
aqueles produtos do esforo criativo humano que gostaramos de chamar de pintura e
escultura. Depois de 1960 houve uma decomposio das certezas quanto a este sistema de
classificao. Sem dvida, alguns artistas ainda pintam e outros fazem aquilo a que a
tradio se referiria como escultura, mas estas prticas agora ocorrem num espectro muito
mais amplo de atividades (ARCHER, 2001, p.1).
Isso ocorre com o artista Javacheff Christo - e da sua dupla Jeanne-Claude - que
em decorrncia de suas intervenes em espaos pblicos em que embrulha objetos de
grandes dimenses e encobre grandes extenses (monumentos, ilhas, parques, estradas,
vales etc) conhecido como escultor ambiental. Este procedimento de retirar o objeto
do olhar para chamar a ateno para ele faz saltar aos nossos olhos a tnica de seus
trabalhos; como sua ocorrncia se d em espaos/monumentos pblicos, o tempo e as
negociaes necessrias para conseguirem autorizao, bem como os recursos para sua
realizao fazem parte do resultado final.
Ou Sterlac que cria e une estruturas em seu corpo, perspectivando potencializar a
sua funcionalidade, para tanto, implantou em seu brao uma terceira orelha; a premissa de
que o corpo humano tornou-se obsoleto rege o conjunto de suas intervenes corporais
que acontecem apoiadas, sobretudo, pela medicina e pela tecnologia. Como seus trabalhos
ocorrerem nesta interface, ele comumente reportado como escultor gentico.
82
A body sculture da alem Rebecca Horn parece seguir a mesma linha quando se
trata da procura de uma expresso mais precisa para efeito de nomeao; entretanto, as
diferenas entre estes dois artistas se intensificam na medida em que se observa a
intencionalidade e a prpria forma de apresentao de seus trabalhos radicalmente
diversa; neste ltimo caso, a escultura feita a partir do seu corpo, mas no se funde a
ele. Acoplando-se nele estruturas de materiais diversos o que deseja provocar so
extenses, prolonga-se o corpo, amplia-se e alastra-se o movimento que dele parte. Em
outro momento, estas estruturas abandonam o seu corpo e outro mecanismo implantado
nelas para garantir a movimentao:
As obras feitas por Horn serviram como vesturio em seus primeiros filmes. Normalmente
projetadas para serem usadas, elas exageravam ou atenuavam algum aspecto da anatomia
ou de uma funo do corpo: estendendo a cabea, como em Unicrnio (1970-72), e, em
outras ocasies, prolongando os dedos, cobrindo o corpo com penas ou amarrando
cuidadosamente as pernas e braos de dois protagonistas uns nos outros de modo que o
movimento independente se tornasse impossvel (ARCHER, 2001, p. 103).
nem
aquelas
tcnicas,
nem
aqueles
resultados,
convencionalmente
reconhecidos deste campo que se engenham neste fazer, talvez, trata-se de um modo de
operar, um pensamento presente na escultura que resiste ali.
Joseph Beuys trouxe o conceito de escultura de forma reincidente em seu discurso
e, evidentemente, suas instalaes e aes como comumente denominava suas
performances em sua apresentao final despertavam outras possibilidades, e mesmo
assim, ele eleva a escultura como eixo de suas proposies, efetuando-a de forma radical
em alguns trabalhos:
No a gordura sobre a cadeira que exposta, mas a gordura em todos os seus estados,
considerados em sua evoluo, at chegar ao apodrecimento: a natureza de minhas
esculturas no imutvel e definitiva. Vrias operaes se do na maior parte delas:
reaes qumicas, fermentaes, mudanas de cor, degradao, ressecamento. Tudo est em
estado de mudana (BORER, 2001, p. 26).
83
A partir dos anos 50, Beuys passa a utilizar os materiais pobres: feltro, gordura,
animais mortos, cobre, enxofre, mel, sangue, ossos etc., mesmo constatando que outros
artistas fizeram uso dos materiais considerados indignos da arte (levando-os a criar a Arte
Povera, no final da dcada de 60), alguns deles como o caso do feltro e da gordura
so imediatamente associados a sua potica, ressaltando-se que nunca o artista havia
estimulando tanto a capacidade olfativa nas artes. E mesmo quando se constata
similaridade formal entre a sua obra e a dos artistas minimalistas ao observar como ele
apresenta os objetos e os materiais - acentua-se a afirmao de que a forma como cada
artista se aproxima da vida absolutamente distinta. E isto tambm se aplica s suas
aes e aos eventos.
Em termos mais gerais, a distino entre a arte americana e a alem do perodo tambm
poderia ser demonstrada por uma comparao entre o carter dos Happenings e dos eventos
do Fluxus. Ambos recorriam ao Dad, mas enquanto os Happenings eram extensivos, uma
multiplicidade de coisas, os eventos do Fluxus eram simples e unitrios na concepo.
Alm disso, a antiarte dos artistas do Fluxus, e isto obviamente inclua Beuys, visava
reconectar a arte com a vida num sentido plenamente poltico (ARCHER, 2002, p. 116).
84
intervenes, ainda que no feitas por suas mos e, assim, designado como objeto de
arte: dei o meu corpo a arte o que declara Orlan (JEUDY, 2002, p.118).
Tudo o que Orlan faz para transfigurar o seu corpo em objeto de arte deve frustrar as
significaes cirrgicas e se opor ao funcionalismo biolgico que associa esse gnero de
operao a experincias futuristas. Em semelhantes performances, ela arrisca tornar-se
vtima das tcnicas que utiliza sobre seu prprio corpo. a obstinao de defender a idia
do advento do corpo como objeto de arte que lhe permite contornar e imitar qualquer
significao tecnicista de suas operaes (JEUDY, 2002, p.119).
Face ao exposto, constata-se que, no mbito das artes, esta expresso arte
carnal - s diz respeito a estas intervenes e nem pode ser aplicado a outras da mesma
artista que, apesar de ter sempre o corpo como temtica central de suas obras e mesmo
quando lana mo de outros suportes, seus trabalhos so evidentemente, de natureza
diferente, coexistindo uma relao de extrema coerncia entre eles.
Os trabalhos de Gordon Matta-Clark, por outro lado, estiveram profundamente
ligados questo poltica, mostrando-nos que a arte acontece em um campo expandido.
No incio de dcada de 70, ele e um grupo de artistas, msicos e bailarinos estabeleceramse em um imvel de SoHo em Nova Iorque, remodelando-o e abrindo um restaurante,
Foods, que teve o intuito de funcionar como uma estratgia alternativa para obteno
de fundos destinados a financiar o trabalho de outros artistas. O grupo Anarchitects,
tambm ocorreu em colaborao, por meio de ocupaes dos lugares vazios e
abandonados da cidade. Tal atitude foi radicalizada por Matta-Clark em vrias
intervenes no espao urbano, muitas com cunho performtico; utilizando serras,
marretas e maaricos como instrumentos, recortava pedaos de prdios e casas, deixando
a cavidade como interveno e levando o recorte galeria. Fragmento (1970) foi a sua
primeira interveno e que envolveu um corte total de uma casa de dois andares pela
metade, sendo a mesma levemente inclinada. O conjunto de seus trabalhos tambm
85
implica no exame do que arte, atividade esta necessria produo artstica e relevante
para a arte contempornea.
Tais questes so, em certa medida, atuais e se atualizam conforme as correntes e
as novas formas associadas ao fazer artstico so apresentadas neste cenrio. Uma vez
verificado que as categorias transcendentais presentes nas obras da tradio - nicas,
acabadas, autnticas e absolutas no vigoram mais, nos levando a considerar que a
dissoluo da obra de arte no diz respeito somente questo artstica, formal, mas a
mudanas da civilizao. Com Baudelaire, sabe-se que a beleza moderna, ora existe, ora
no existe mais, contrapondo-se beleza da tradio, algo que sempre se cultiva. Com
efeito, a zona de indeterminao da arte contempornea faz agravar a dificuldade em
qualificar a obra de arte, demonstrando que no mais possvel categorizar estes
trabalhos priori; as categorias vo sendo construdas posteriormente. Cabe sublinhar,
ainda, que o intuito de elencar os trabalhos dos artistas contemporneos (de alguns, pelo
menos) no guiado por uma sede de organizao desse mundo, o que deflagraria a
evidncia de que h um fetiche por categorias. O que interessa marcar, aqui, ao fazer
referncia s obras de arte produzidas na contemporaneidade no so categorias
universais, ao contrrio disso, as categorias, na melhor das hipteses, servem para os
trabalhos de alguns e, na maior parte das vezes, servem somente para aquele artista. Ao
acompanhar estas transformaes no campo das artes, constatamos, ento, um paradoxo:
a corroso da aura no atinge quem produz arte, isto , na contemporaneidade, no h
uma preponderncia da obra de arte, mas h um acento no artista.
neste sentido que se pode referir ao projeto de uma arte desestetizada que
sempre uma arte do corpo e da vida, afinal no seria este o deslocamento propiciado pelo
movimento das vanguardas?
Na esteira desta pergunta, retomemos o que se tentou desenvolver ao longo deste
captulo: se no possvel mais a contemplao, conforme Benjamin, se houve esta
radical mutao na obra de arte, como nos mostrou Lebrun, se a arte pode ser tudo e
qualquer coisa como nos apontou Ronaldo Brito e, em suma, se a experincia
contempornea essa abertura e indeterminao total, ento, afinal o que arte?
Sabe-se muito bem do deslocamento produzido pelo trabalho das vanguardas: desidealizou
a idia de arte e seus objetos. Elaborando-se sobre as teorias, as aes, os resduos e os
fragmentos da arte moderna; atravessando e utilizando suas obras, o trabalho
86
contemporneo, que est em curso pelo menos desde a redistribuio esttica promovida
pela pop art, est reconfigurando a imagem da arte, suas atividades, obras e outras
manifestaes (FAVARETTO, 2004, p.98).
87
88
III Ambientaes
A casa uma mquina para ser habitada.
Le Corbusier
14
A obra Playground duplo (pavilho marquise), 2006, assim descrita: ambiente site specific com 36
colunas de compensado, dimenses variveis.
89
parte dela, neste caso, ela s vale ali, em outro espao, perdese aquela obra ou tem-se
outra indita.
Antes da dcada de 60, o termo instalao se referia apenas montagem da
exposio e, depois disso, passa a ser uma nomeao atribuda a essa operao artstica
em que o espao torna-se constituinte da obra. A ideia no se limitar a ocupar o espao,
mas reconstru-lo criticamente (FREIRE, 1999):
Sua origem, no entanto, remonta aos environments dos dadastas. Mais tarde o
Environmental Art e a Land Art tomariam no apenas o contexto da galeria, mas todo o seu
entorno, a natureza inteira, como objeto de apreciao esttica. [...] Antes do uso geral do
termo Instalao, que se popularizou s nos anos 70, as expresses Ambiente, Environment
e Assemblage nomeavam, mais frequentemente, operaes nas quais os artistas reuniam os
mais diferentes materiais num dado espao (FREIRE, 1999, p.91).
90
A atmosfera destas questes no campo das artes talvez sustente aquilo que, a partir
de situaes clnicas em tangncia com outras reas, aparece nesta pesquisa sob a ideia de
ambiente. A apresentao das narrativas presentes nesta dissertao encontrou sua forma
predominante nesta noo, admitindo-a, no limite, como seu prprio mtodo. O ambiente
tomado aqui para alm de sua acepo vocabular corriqueira de recinto, espao, mbito
em que se vive (HOUAISS, 2009). A dimenso fsica do espao compe a ideia de um
ambiente, mas no o restringe. Aqui, importa que ao ambiente tambm estejam
relacionados a escuta, o campo transferencial, o espao psquico, o corpo, o cotidiano e a
linguagem.
Outras experincias com a noo ambiental que podem compor para o trabalho
desta pesquisa encontram-se no mbito da clnica psicanaltica. A expresso psicanlise
sem div passou a ser comumente referida para situar trabalhos clnicos realizados por
profissionais que tomam a psicanlise como um referencial, levando em considerao a
sua tcnica e a sua tica e que, contudo, ocorrem em situaes no idnticas ao seu
exerccio clssico. No mbito da sade mental, quando atravessado pela psicanlise,
encontramos nos equipamentos destinados ao cuidado de casos graves, que demandam
intensidade, o ultrapassamento das questes relacionadas s circunscries do espao
fsico, em prol da construo de um ambiente clnico que acolha esta necessidade. Esta
possibilidade relaciona-se ao panorama atual da sade mental, em que os servios esto
pensados e planejados em espaos arquitetnicos diferentes do modelo arquitetural do
manicmio. Nesse sentido, interessa pensar que a passagem que revoluciona a noo de
espao de tratamento em sade mental um plano importante daquilo que aqui se
constituiu sob a ideia de ambiente. Esta mudana advm no s da intercesso dos
estudos psicanalticos, mas de uma srie de acontecimentos na histria que se
desdobraram no tensionamento e, por vezes, na desmontagem daquela estruturao
espacial.
O asilo, conforme Foucault em Vigiar e punir, privilegiava o espao fechado,
recortado e protegido de toda e qualquer contaminao do fora, sendo possvel comparlo s prises - instituies completas e austeras (1975/2011, p. 217) - lugares favorveis
ao exerccio disciplinar cuja finalidade era a promoo de corpos de utilidade extrema,
desprovidos de toda e qualquer iniciativa. A disciplina, para Foucault, um dispositivo,
91
15
Segundo Roberto Machado, a formulao da questo do poder ocorreu para dar seguimento pesquisa a
qual Foucault se dedicava sobre a histria da penalidade. Colocou-se ento o problema de uma relao
especfica de poder sobre os indivduos enclausurados que incidia sobre os seus corpos e utilizava uma
tecnologia prpria de controle. E essa tecnologia no era exclusiva da priso, encontrando-se tambm em
outras instituies, como o hospital, o exrcito, a escola, a fbrica, como inclusive indicava o texto mais
expressivo sobre o assunto, o Panopticon, de Jeremy Bentham (1979, p. XVII).
92
novos
dispositivos
institucionais,
que
passaram
ser
chamados
93
94
pelos princpios reformistas, devem ser planejados para acontecer em rede, distribudos
por toda a cidade, seguindo critrios de regionalizao, o que implica, cada vez mais, a
noo de territrio.
Em equipamentos como CAPS, o trabalho acontece a partir da lgica territorial16.
Yasui ao explicar como seria esse trabalho no mbito da sade mental recorre ao gegrafo
brasileiro Milton Santos, que, por sua vez, ao negar a viso tradicional do territrio como
um objeto esttico com suas formaes naturais, apresenta-o, por assim dizer, como um
objeto dinmico, vivo de relaes. Ao expandir o conceito, tece uma crtica viso
descritiva da geografia, propondo uma reviso de seus fundamentos e mtodos, para
detalhar as relaes de reciprocidade entre territrio e sociedade, seu papel essencial
sobre a vida do indivduo e do corpo social. De acordo com o autor, o territrio passa a
englobar as caractersticas fsicas de uma dada rea, e tambm as marcas produzidas pelo
homem, acarretando uma inseparabilidade estrutural, funcional e processual entre a
sociedade e o espao geogrfico (YASUI, 2010).
Nesse sentido, podemos pensar que trabalhar sob a lgica do territrio, no campo
da sade mental, contrape-se radicalmente ao asilamento, em que o hospital encarnava a
nica medida de tratamento e ocupava um lugar central das prticas clnicas sem
nenhuma conexo com o seu entorno. Trata-se, pois, no somente de substituir o
manicmio, mas, sobretudo, de instalar um modo de pensar e fazer a clnica em que os
ambientes dos pacientes e os decorrentes laos sociais que estes fazem com os seus
territrios sejam determinantes na conduo de um projeto teraputico singular, que
ocorra na vida com todas as suas limitaes, precariedades e potencialidades que ela
possa enfrentar.
Pautada por outras premissas que se contrapem radicalmente lgica manicomial
(embora ainda pregnante em muitas instituies), o ambiente institucional tomado como
o lugar de exerccio da clnica ampliada por excelncia, em que as aes e estratgias
psicossociais vo acontecer, dentro e fora do servio de sade mental. Sendo mltiplas e
16
Tal incumbncia est prescrita na lei e os CAPS de todo o territrio nacional so atualmente
regulamentados pela portaria 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 e integram a rede de servios do Sistema
nico de Sade (SUS). Outros servios como as Unidades Bsicas de Sade (UBS) e os Ncleos de Apoio
Sade da Famlia (NASF) foram criados pelo Ministrio da Sade, expandido a rede de atendimento
populao. Nesse sentido, uma das atribuies de um CAPS articular com outros equipamentos atravs do
Apoio Matricial.
95
96
uma parte da sndrome psiquitrica de tal modo que o ambiente no qual o doente colocado
frequentemente altera o estilo da doena [...]. Nesse sentido, um trabalho contnuo deve ser
feito para que o hospital possa ser hospitaleiro podendo acolher o outro de um modo
no traumatizante e estabelecendo com ele relaes de autenticidade (apud SILVA, 2001,
p.102).
Nesta perspectiva, os espaos informais passaram a ser vistos como uma ocasio
privilegiada para a clnica e por isso mesmo trazem grandes possibilidades teraputicas,
no por acaso, ao longo dos anos, passaram a ser contemplados e reconhecidos como
lugares de acontecimentos, de mltiplas transferncias e, portanto, passveis de escuta e
interveno (SOUZA, 2003).
No toa, aquilo que denominamos ambincia na clnica difere do setting
analtico tradicional e encontra nas proposies ambientais da arte uma ressonncia das
mais interessantes, tal como se pode ver nos ambientes a seguir.
Cena 1
97
ainda: quer segurar em suas mos, flores de cemitrios, mas tem medo de ser repreendido
pela polcia ao furt-las de um tmulo qualquer. Com a ajuda de alguns, compra as flores
em uma banca e passeia com elas pelo cemitrio para que se contaminem e se tornem
flores fnebres, enquanto isso, confessa que acredita na imortalidade, que um imortal.
Retorna e deixa as flores secando por entre pginas de um velho e pesado livro, um dos
volumes de uma enciclopdia. Quer prens-las entre vrios vidros ou porta-retratos e
fazer disto a sua escultura, uma escultura gtica.
O diagnstico inicial era que se tratava de algum que no sustentava nenhum
projeto. Algo deveria ser feito, mas no se sabia o qu. O seu percurso foi acompanhado
minuciosamente, garantindo que, aos poucos e sua maneira, viesse a participar de um
ateli, dentro da instituio. Sabia que era autor de muitas ideias e percebeu que precisaria
de certa ajuda para viabiliz-las, ento, aquele que inicialmente no esquentava lugar
passou a ser frequentador assduo.
Cena 2
Nos registros institucionais, uma mulher de um pouco mais de 60 anos, aparecia
descrita assim: paciente grave que, ao longo de 40 anos de doena e, por expanso de
tratamento, no apresentou boa evoluo, tratando-se, portanto, de um caso crnico. No
saa do leito. Alis, saa para hbitos de higiene e, o que pudesse fazer, ali fazia. Os
profissionais atriburam a ela prejuzos no desempenho funcional, embora, na sua
concepo, estava destinada ao rduo trabalho de controlar o mundo da sua prpria
cama. Raramente ia ao equipamento de sade, apenas para as consultas mdicas as quais
fazia questo que fossem espaadas para evitar o seu deslocamento. A partir desse
diagnstico situacional, a indicao de tratamento para esta paciente foi atendimento
individual e domiciliar. Ao conhec-la, fao uma aposta na contramo do que havia sido
prescrito e proponho que venha ao servio ao menos uma vez por semana e que fique o
quanto for possvel: um perodo, uma hora ou cinco minutos. Acreditando que esta
interveno pudesse ser compreendida por ela como um convite e, na tentativa de
implic-la, fui enftica ao solicitar a sua presena. Ela passou a vir, sem retrucar,
surpreendendo muitos, inclusive a mim. No incio, falava sem pausas e todos se
assustavam com o volume de sua voz, o que era evidentemente necessrio, j que
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precisava falar para o universo. Dada a sua condio - refiro-me aqui obesidade
mrbida, decorrente destes vrios anos no leito - tinha dificuldades para fazer qualquer
coisa, mesmo tarefas mais simples, de modo que sentar-se numa cadeira ou poltrona era
algo muito exigente para o seu corpo enorme. No passado, cursou Filosofia e chegou a ser
professora universitria. O seu repertrio era vasto: recitava Fernando Pessoa com o
mesmo apreo que cantava msicas da dupla sertaneja Bruno e Marrone, versava sobre o
suicdio e a teoria de Durkheim, mas tambm se interessava pela histria das santas, em
especial, de Nossa Senhora de Aparecida. Dentre muitas convices, havia uma muito
peculiar que afirmava em quase todos os atendimentos: tive 24 filhos sem nunca ter tido
relao sexual. Em virtude da dificuldade em acompanh-la por sua incontinncia verbal
e no intuito de fazer um recorte dos assuntos que trazia propus (caso me autorizasse)
escrever tudo aquilo que me dizia (caso conseguisse) e, depois (se quisesse), poderia ler.
Por um perodo, foi assim que funcionamos: ela vinha, eu escrevia e depois lia. Alguns
meses depois, passa a vir com culos (no os usava mais h muitos anos), e ocorre uma
sensvel mudana: eu escrevo, ela rasura, rabisca por cima dos meus escritos, corta
palavras ou frases, acrescenta ao texto outras, algumas vezes, toma para si a tarefa de ler
e, durante a sua leitura, pula perodos, emenda palavras, faz aliteraes. O seu ato
interventivo poderia ser lido como uma quebra de enquadre ou uma inadequao; ao
invs disso e - por mais difcil que possa ser o manejo diante desta situao
desconcertante - era visto como satisfatrio na medida em que fez precipitar, diante de
certa letargia, um acontecimento. Alguns dias depois, o seu irmo informa que ela
espontaneamente saiu do quarto e ficou com todos na sala durante uma hora. E no se
tratava de um fato qualquer, fazia 25 anos que isso no ocorria naquela casa.
Cena 3
Dentro da instituio de tratamento, o que mais se escutava sobre ele era que era
muito trabalhoso para equipe porque possua muita dificuldade em seguir os combinados.
Vivia de pequenas vendas: comprava algo por R$ 2,00 pela manh e vendia por R$ 2,50
tarde. Apesar de parecer meio malandro, sempre se dava muito mal neste seu pequeno
negcio, mais perdia dinheiro do que ganhava. Por alguns meses, ficou na porta da
instituio, recusando-se a entrar mesmo quando convidado. No saa dali, ficou vrios
99
dias, talvez meses, na porta, sempre falando ou perguntando algo para os que entravam ou
saam. Certa vez deixa no hall do casaro, onde funciona o servio em que se trata, uma
enorme mala, muito antiga e mal conservada, com um papel escrito e colado nela:
vende-se. A mala fica ali por alguns dias, alguns a mudavam de lugar: ora prximo
lareira, ora da escada ou do banheiro... - ningum se interessava em compr-la, nem
outros usurios nem funcionrios, mas todos paravam para olh-la, sem entender do que
se tratava. Havia muitas dvidas com relao a este rapaz que no tinha nenhum suporte
familiar: havia dvida diagnstica, dvida sobre os manejos, dvida sobre a sua histria...
Tropear neste objeto fora de lugar poderia desencadear condutas: livrar-se daquilo
retirando do espao; perguntar o que aquilo faz ali; indagar sobre o que estamos fazendo
ali.
Cena 4
Numa sala bastante aconchegante, passou a acontecer, sem muito planejar, um
grupo denominado de Biblioteca. Alocada no segundo andar de um casaro - com sto e
poro - essa sala bastante inspiradora, se no passado foi ou no um espao que acolhia
livros e leitores, no se sabe, mas tinha ares de ter sido. Com duas portas grandes - uma
delas dava para uma varanda -, que ficavam abertas para que permitisse a circulao das
pessoas, mas quem ali parava e sentava para a tarefa eram aqueles que tinham, com os
textos, com os livros, com as palavras, com o saber, uma intimidade seno, ao menos,
uma admirao. A ideia inicial desse espao foi precipitada pela atividade de reunir os
diversos livros espalhados pela instituio e organiz-los em duas cristaleiras e
disponibiliz-los juntamente com o mobilirio e a sala, de modo a criar um ambiente para
os que frequentavam a instituio pudessem ter l momentos de leitura, como ocorre
numa biblioteca. Com alguns encontros, criou-se um ritual de se reunir semanalmente,
sempre no mesmo horrio, um pequeno grupo, que passou a selecionar um texto, qualquer
que fosse um conto, uma crnica, uma letra de msica, uma matria jornalstica, um
poema, uma biografia at uma passagem da Bblia. Aqueles que gostavam de ler para
todos, liam e, ao trmino da leitura, abria-se para a discusso a partir do que o texto
provocou em cada um. preciso dizer que, em muitos momentos, discutia-se todo e
qualquer assunto, menos o texto escolhido: religio, mutilao, fsica quntica, filosofia
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Cena 5
Um pequeno grupo saiu at o supermercado mais prximo ao equipamento. A
inteno era comprar alguns ingredientes para fazer um bolo. ramos em torno de 10
pessoas, entre homens e mulheres, coordenadores e participantes do grupo. Todos
envolvidos com a tarefa, logo que chegamos ao Po de Acar uma das participantes para
e diz, num tom, afirmativo: No posso entrar neste lugar! Todos perguntaram,
surpresos: por qu? e ela responde, imediatamente: Porque o Po de Acar lugar de
gente feliz!. Se alguma escuta de acolhimento puder se constituir neste momento, a
simples repetio de um slogan comercial poderia ser tomada como um enunciado
singular, que conta algo no imediatamente discernvel, mas que apela para uma
suspenso. O gesto automtico da incluso, que desencadearia uma srie de insistncias
para convencer a mulher a adentrar o supermercado que no representa perigo algum,
precisa ser interrompido, para dar lugar a outras possveis significaes, que contam dela,
e do mundo em que ela vive, e, eventualmente, no qual todos vivemos.
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A oposio entre psicologia individual e psicologia social ou de grupo, que primeira vista
pode parecer plena de significaes, perde grande parte de sua nitidez quando examinada
mais a fundo. verdade que a psicologia individual relaciona-se com o ser humano
singular e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfao para seus
impulsos pulsionais; contudo, apenas raramente e sob certas condies excepcionais, a
psicologia individual se acha em posio de desprezar a relao dos indivduos com os
outros. Algo mais est invariavelmente envolvido na vida mental do indivduo, como um
modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o comeo, a
psicologia individual, neste sentido ampliado, mas inteiramente legtimo das palavras, , ao
mesmo tempo, tambm psicologia social (1921/2004, p. 91).
105
no trabalho que fazemos, justamente, uma medida que existe entre a ao e o desejo de
cada um.
Neste mesmo trabalho, Oury (2009) nos fala da funo diacrtica como uma
funo essencial do Coletivo. Na medicina, os sintomas diacrticos servem para distinguir
uma doena de outra quando estas possuem uma sintomatologia muito semelhante. Na
gramtica, este termo refere certos signos que permitem marcar a diferena com outro
signo, como por exemplo, nas palavras pais e pas, o acento agudo faz a distino
entre uma e outra e, assim, ele se comporta como um sinal diacrtico. Na instituio, a
diacrtica s pode funcionar se tiver uma funo de deciso, que pode ser traduzida como
uma tentativa de romper com o estabelecido e, seguindo este raciocnio, os
acontecimentos importantes merecem ser ressaltados, mas sem correr o risco de cair
numa espcie de hbito interpretativo que ao invs de provocar uma ruptura pode ser da
ordem da repetio, portanto, do institudo:
A deciso de considerar um acontecimento como no sendo bvio j o exerccio de uma
funo diacrtica que permite destacar esse acontecimento de uma espcie de monotonia
cotidiana. Vemos bem que essa funo de deciso tem algo a ver com uma funo de corte
(OURY, 2009, p.97).
evidente que o CAPS surge de outras influncias, mas interessa aqui priorizar a
psicoterapia institucional na tentativa de identificar determinados conceitos que servem
para pensar que clnica essa, que constela um certo nmero de pessoas, coisas, lugares,
projetos em torno de um paciente que, pela via da transferncia, vai enderear seus
significantes.
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De acordo com as descries de Jean Aym (1994), embora desde a metade dos
anos 40, a corrente da psicoterapia institucional j existisse, foi em 1952, que se
pronunciou pela primeira vez este sintagma por Georges Daumzon, indicando, por assim
dizer, a sua dupla origem: a psicanlise e a psiquiatria pblica. Obviamente no algo
que surge da noite para o dia e, sim, resultado de um processo que se iniciou no encontro
dos herdeiros de Pinel com os de Freud. Em 1925, ano da criao da revista Lvolution
Psychiatrique, deu-se um perodo de muitas reflexes no plano clnico, psicopatolgico e
epistemolgico, contudo, sem incidncias prticas nas estruturas de tratamento. Com o
fim da II guerra mundial, a corrente da psicoterapia institucional encontra condies mais
favorveis e se desenvolve, posteriormente, em complementaridade instalao da
poltica de setor na Frana. E por meio dos embates polticos e no campo psicanaltico
que se desenrola a histria da psicoterapia institucional em que muitos pareciam
concordar sobre a necessidade de transformar o dispositivo de tratamento, rompendo com
a lgica asilar. A psicoterapia institucional , em alguma medida, sem abrir mo de uma
certa conteno, o paradigma de substituio do manicmio na Frana.
Obrigado a sair da Espanha aps a vitria de Franco, Franois Tosquelles17 chega
Frana em 1941, onde fundamentar esta nova prxis, com duas obras debaixo do brao
que lhe serviro como referncia: o livro de Hermann Simon e a tese de Jacques Lacan.
De forma bastante resumida, possvel afirmar que de Lacan ele empresta a compreenso
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Tosquelles considerado o precursor da psicoterapia institucional mesmo antes dela receber esta
denominao e foi em Saint-Alban onde tudo comeou. Ao relatar esta experincia, ele conta que, em um
determinado momento, aquele hospital estava povoado de loucos e estrangeiros, visto que passou a
acolher pessoas que fugiam em massa do campo. Dentre os refugiados que acolheu estavam George
Canguilhem e sua famlia, Bonnaf e sua esposa, Paul luard, dentre outros. Atravs de Bonnaf os artistas
e escritores chegaram a Saint-Alban e isto foi determinante para formular aquela experincia. Nas
passagens de Tosquelles: os artistas de St.-Alban eram tambm surrealistas e foi graas a Bonnaf que esta
inteligncia foi colocada a servio das prticas. [...] Foi ento que um novo captulo comeou, o que
retrata o papel do surrealismo na minha formao intelectual e na vida de St.-Alban, naqueles anos. Porque
eu era catalo e o surrealismo tem seus rumos com Dal e aragoneses com Buuel. Os surrealistas fizeram
da loucura um movimento experimental, produto da sociedade, mostrando as ligaes profundas com o
sexo, as pulses, a libido. Colocaram o freudismo ao alcance da cidade, antes que transformasse numa srie
de truques para se vender um produto. Foram os surrealistas que conduziram experimentos acerca de como
tornar algum insano, muito antes que os analfabetos americanos descobrissem, atravs da seriedade da
psiquiatria, que a famlia se coloca de acordo para tornar um de seus membros louco (TOSQUELLES apud
GALLIO & CONSTANTINO, 1993, p.105). Desde modo, a partir do que Tosquelles relata nesta entrevista,
perceptvel a proximidade e influncias mtuas entre a corrente e o movimento.
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Aps esta incurso pela psicoterapia institucional vemos precipitar uma prtica
certamente difcil, porque ao acolher esta movncia, exige-se um trabalho em vrios
nveis. No prprio conceito de Coletivo h uma aposta que coloca o paciente na posio
de sujeito, pois ele deve ser visto em suas particularidades, sempre conectado sua
histria pessoal. A instituio deve ser construda pelos indivduos que fazem parte dela:
pacientes, familiares, funcionrios e comunidade. Por conseguinte, o termo usurio deve
ser, para Oury (2009), extensivo queles que usam instituio, neste caso o equipamento
de sade mental, no ficando o seu acesso permitido apenas ao paciente, mas tambm a
seus familiares e a seus amigos. Todos devem estar envolvidos e participarem - cada qual
a seu modo e dentro das suas possibilidades - da construo do projeto institucional.
Encarar tal empreitada um exerccio poltico para todos e uma luta necessria contra as
prticas homogeneizadoras, normatizantes que priorizam a hierarquizao e a
burocratizao, to nocivas sade mental.
As contribuies dos autores aqui apresentadas podem ser expandidas a outros
contextos quando se trata do encontro e do lidar com os acasos como o caso da
situao de monitoria explicitada em outro momento deste trabalho em que, para
proporcionar a mediao numa mostra de artes, abdica-se de um roteiro rgido e
previamente definido para lidar com aquilo que se desconhece.
Para instituir a psicoterapia institucional da psicanlise que Oury se serve e o
contato to prximo com a arte tambm proporcionou a ele um pensamento no
encerrado na psiquiatria ou nos procedimentos estanques ao campo da sade e, neste
caso, ao se debruar sobre a clnica no mbito da instituio, constatamos que a
interveno no est dada, ela inventada a partir do que acontece, em geral, a partir de
muitos imprevistos. No toa, com relao ao trabalho clnico com pacientes graves, h
uma proximidade especfica para cada caso e a improvisao como um recurso
permanente na sua prtica:
A improvisao tornou-se, para mim, uma necessidade tica. O que eu digo da ordem do
que eu posso apresentar (darstellen) de um encaminhamento presente: com isso que,
sem ajuda, sem apoio, encostado na parede, ns abordamos o outro, o alheio, na sua misria
existencial (OURY, 2009, p.17).
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mesmice, que esto tomados pela inrcia, funcionam no registro do imaginrio e, por
outro lado, aqueles que so capazes de destacar um acontecimento da rotina institucional
funcionam, por assim dizer, no registro do simblico. Tal impasse nos leva a crer na
importncia do trabalho institucional, que deve ser empreitado cotidianamente.
Desta forma, uma das funes do Coletivo, isto , a funo diacrtica, leva em
conta a subjacncia que no pode ser articulada, nos cuidados teraputicos sem que o
semblante seja destacado. Se no se considerar isto, corre-se o risco de sermos
ultrapassados pelos acontecimentos e pelas empresas tecnocrticas (OURY, 2009).
Oury descreve a caracterstica do ambiente ao se referir ao conceito de semblante, tal como
Lacan o formula. Assim, o coletivo se funda na possibilidade de sustentar o semblante, no
qual se possibilita a ocorrncia do discurso analtico. Sustentar o semblante no uma
tarefa trivial. Pensa-se em certo tom diante do acontecimento, uma disposio interna
diante do inslito, um esforo tenaz em sustentar aquilo que da ordem do no saber
(HERMANN, 2010, p.47-48).
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E mais:
Mesmo numa dimenso normativa, o corpo continua sendo um prottipo do espao. Ou,
como lembra ainda Gisela Pankow: o corpo o modelo estrutural do espao. Na esfera
institucional, uma das tarefas essenciais , portanto, trabalhar em relao ao espao. Mas
no forosamente enquanto arquiteto! (...) Quando se diz o espao, trata-se de uma
topologia particular. Trata-se de tentar desimpedir mas com que trabalho! espaos do
dizer (por oposio ao dito). O espao do dizer o espao que permite que haja
possibilidade do dizer. Pois, nos processos psicticos, o que est alterado, as leses, so
leses da fabricao do dizer. Ou se quisermos leses no registro de lalangue, no
sentido de Lacan. E lalangue o lugar da fbrica do dizer. isto que est em questo. H
dificuldades frequentemente insuperveis para que se possa dizer alguma coisa. Dizer,
isto no quer dizer falar; frequentemente, o dizer est no silncio. No o dito. E, nesse
sentido, para que haja emergncia, uma limitao, uma delimitao necessria. Um
discurso da ordem do dizer o que Lacan chamava de discurso sem palavras. essencial
recuperar o nvel da existncia do psictico, o qual no consegue justamente delimitar-se.
Se no, nos casos mais graves, eles no esto em parte alguma. Para lutar contra a parte
alguma, preciso um espao do dizer, um espao de emergncia. Emergncia do qu? Do
que toma o lugar do objeto a. No se pode falar em transferncia sem falar em objeto a.
Metodologicamente falando, falar da transferncia sem evocar a problemtica do objeto
a, falar de absolutamente nada, a no ser simplesmente de inter-relaes. neste
sentido fabricao do lugar-tenente do objeto a que se pode dizer que se trata tanto da
fabricao do espao quanto da fabricao do corpo (OURY, 2009, p. 115).
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Em sua dissertao Clnica psicanaltica: a debilidade mental em questo, Daniele Rosa Sanches discute
a categoria clnica debilidade mental - do ponto de vista da psicanlise que, por sua vez, difere da
medicina. Sua pesquisa parte das contribuies de Mannoni, cuja premissa a realizao do diagnstico por
meio da escuta clnica. Tal distino ela apresenta assim: na concepo psicanaltica a debilidade mental
no uma patologia da inteligncia, mas sim uma psicopatologia expressa por um sujeito que no se
apropria do que diz nem do que deseja. No campo psicanaltico, a debilidade mental refere-se a um sujeito
completamente submetido demanda do outro (SANCHES, 2008, p.3). Por isso a preferncia pela
categoria debilidade mental em detrimento da deficincia mental (em que a questo fica imediatamente
associada ao dficit e no ao posicionamento do sujeito).
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Acrescenta-se a estas interrogaes o fato de que na maioria das vezes estes exerccios de
poder no esto escancarados, mas esto sob a alcunha de tratamento, da reabilitao e de
tantos outros imperativos da incluso - que so, em sua maioria, advindos de profissionais
bem intencionados desdobram-se em prticas de gerir a vida do outro, efetivando, por
conseguinte, a passividade daqueles que so tratados nos servios de sade de forma a
levar ao p da letra a nomeao paciente. Este gerenciamento, pautado por mltiplas
intervenes teraputicas referenciadas, muitas vezes, em movimentos considerados
revolucionrios e libertrios - implica numa tutela do outro sutil, por isso mesmo
sofisticada - quando os equipamentos administram quase por completo a vida daqueles
que o utilizam.
Estas propostas no so de incio desprezveis, ao contrrio, a maioria delas guarda consigo
pontos de partida revolucionrios, experincias de xito e relevncia para a vida de muitas
pessoas, e uma militncia cuja inteno proclamada est preocupada com a questo de
garantir a todos uma existncia poltica e opor-se aos funcionamentos preponderantes.
Entretanto, na medida em que pretendem responder universalmente a esta questo, inscrita
na esfera do direito, tornam-se autoritrias: operam por ideologias e palavras de ordem;
impem o funcionamento democrtico; endurecem com os desvios como se para garantir a
radicalidade de sua proposio s restasse englobar ou destituir qualquer outra proposio.
Esta relao entre democracia e totalitarismo surpreende em sua aparente contradio, mas
tem sido explorada de modo a verificar sua contigidade (INFORSATO, 2010, p.23-24).
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Neste horizonte, vale retomar o que Guattari props ao pensar a transferncia fora
do campo estrito da experincia analtica, referindo transferncia no mbito do grupo,
melhor dizendo, transferncia institucional. O problema da transferncia... como alguns
sinalizam. Em funo disto, ele prope uma substituio: introduzir no lugar da noo de
transferncia institucional - demasiado ambgua para ele um novo conceito:
transversalidade no grupo (GUATTARI, 2004). Ele argumenta:
Transversalidade em oposio a:
- uma verticalidade que se encontra, por exemplo, nas descries feitas pelo organograma
de uma estrutura piramidal (chefes, subchefes etc.);
- uma horizontalidade como aquela que se pode realizar no ptio do hospital, na ala dos
agitados, ou melhor, a dos cretinos, isto , certo estado de fato em que as coisas e as
pessoas se arranjam como podem situao na qual se encontram (GUATTARI, 2004,
p.110).
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No tocante trajetria profissional, Oury (1991) diz que se trata de levar em conta
o itinerrio de cada um, seus engajamentos pessoais. A competncia, diferente da
performance, est em relao com o que marca a vida de cada um: as preferncias, os
gostos e as paixes. Aqui vale repetir que nesta tese de que os desvios, as linhas de
errncia serviriam para pensar o percurso do paciente, tambm subjaz uma outra: que tais
itinerrios no so em linha reta; e que a formao, ao invs de ser uma forma de ao,
deveria contemplar a deformao.
Ora, nesta toada, o clnico deveria acolher/possibilitar tais desvios, algo da ordem
do clinamen, fazendo uma associao filosofia de Lucrcio e tomando-a como imagem.
Nesta mesma esteira, Eduardo Passos e Regina Benevides formulam a noo de clnica
emprestando-se da noo de clinamen:
O sentido da clnica, para ns, no se reduz a esse movimento do inclinar-se sobre o leito
do doente, como se poderia supor a partir do sentido etimolgico da palavra derivada do
grego klinikos (que concerne ao leito, ao carem no vazio em virtude de seu peso; de
Klne, leito, repouso; klno inclinar, dobrar). Mais do que essa atitude de acolhimento
de quem demanda tratamento, entendemos o ato clnico como a produo de um desvio
(clinamen). (...) Esse conceito da filosofia grega designa o desvio que permite aos tomos,
ao carem no vazio em virtude de seu peso e de sua velocidade, se chocarem, articulando-se
na composio das coisas. (...) na afirmao desse desvio, do clinamen, portanto, que a
clnica se faz (2001, p. 90-91).
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CAPS19 - que est atravessado por estes movimentos, mas no s por eles - uma vez que
se pretendeu aqui acentuar a ambincia institucional como um dispositivo.
19
A construo deste CAPS esteve bastante referenciada a estes princpios em seus primrdios, ainda nos
tempos em que os ideais da reforma psiquitrica se encontravam em efervescncia e em puro exerccio
poltico, entretanto, com o panorama da sade pblica atual, estas balizas se veem ameaadas pela
privatizao. Em meio a uma situao de sucateamento dos recursos na sade pblica, marcada por uma
inoperncia, as Organizaes Sociais entram em cena e passam a gerenciar os estabelecimentos. Muitas
vezes, as prticas de sade correm o risco de ficarem marcadas pela lgica da empresa e, portanto, do
capital. Grosso modo, a consequncia mais imediata desta nova condio da sade mental na cidade de So
Paulo a verticalizao do poder em que a construo coletiva do projeto institucional se v fragilizada e
subordinada gesto centralizada nas mos de alguns; os servidores pblicos vo sendo substitudos
paulatinamente, repercutindo num enfraquecimento da militncia pela sade pblica gerenciada por todos e,
consequentemente, no enfraquecimento do SUS.
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elegia como ponto de partida o projeto de cada participante. Em seu nome Orientao
para projetos artsticos, explicitava-se sua proposta, isto , fornecer orientao e respaldo
queles que se consideravam artistas (mesmo que iniciantes), na conduo de seus
trabalhos. Logo no momento da inscrio, o curso solicitava que o interessado anexasse
seu projeto de pesquisa e/ou trabalho no campo das artes, tornando o prprio ato de
inscrever-se uma autorizao de pertencimento ao universo artstico. Tal iniciativa
destoava da noo convencional de um curso, pelo seu carter no doutrinrio, uma vez
que a vivncia de ateli fazia parte da proposta, mas no exclusivamente, pois o acesso
aos procedimentos artsticos contemporneos no se restringia a procedimentos tcnicos
relacionados exclusivamente ao fazer, mas a um campo mais abrangente que este fazer
estivesse includo. Neste caso, atividades externas ao ateli tangenciavam todo o curso
para proporcionar aos integrantes adentrar os ambientes em que o trabalho com as artes se
perfaz, considerando produes discursivas de artistas de reconhecimento pblico acerca
de seus trabalhos e suas trajetrias, ambientes de ateli individual e coletivo de artistas da
cidade de So Paulo, galerias e acervos dos principais museus, que configuravam o
programa que o curso oferecia. A construo deste trabalho experimental dentro da
Diviso de Educao do museu foi tomado como um exerccio para implementar uma
proposta dissonante dos demais cursos oferecidos, mas que guardasse relao com este
ncleo e por ele fosse respaldado. Esta experincia permite pensar um outro modo de
operar no campo da educao e do trabalho em artes, admitindo as transversalidades que
isso exige na contemporaneidade.
Destes atravessamentos, decorreu uma das visitas feitas no bojo deste curso, que
no aconteceu num espao institucionalizado da arte. No era um centro cultural, nem
museu, nem galeria, muito se assemelhava a um espao de ateli e tambm a um espao
expositivo, no entanto os ultrapassava, difcil definir. Tratava-se de uma casa, alis, de
vrias casas e o seu conjunto dizia respeito a uma nica residncia. No era uma
residncia qualquer, pelo contrrio, tratava-se da moradia do artista Arcangelo Ianelli
(1922-2009) e de sua esposa; as casas, que somavam doze, eram todas vizinhas. Uma vez
adquirida, o proprietrio mantivera em cada uma o seu estilo, a construo original e as
ligaes entre os terrenos que comportavam os imveis foram necessrias para
possibilitar a circulao. Alm da sua prpria residncia, cada casa tinha uma finalidade:
numa delas se concentrou o ateli de pintura onde ficavam dispostas enormes telas, tintas,
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Mais tarde, ainda inspirado por esta experincia desenvolvida junto ao museu, um
espao de ateli, denominado Ateli Aberto, foi instalado no ambiente do Centro de
Ateno Psicossocial Professor Lus da Rocha Cerqueira (CAPS Itapeva), fazendo parte
da grade de atividades desta instituio, cuja caracterstica primordial era a participao
optativa dos usurios. De incio, as coordenadas do Ateli obedeciam criao de um
espao para receber aqueles que tinham interesse por esse tipo de proposta, com o intuito
de ser um ambiente no exclusivo para pacientes, de modo a constituir um grupo
heterogneo, aberto comunidade. A necessidade de interromper os encaminhamentos
genricos, que obrigam alguns usurios a frequentar atividades exclusivamente para
preencher sua grade horria na instituio fez com que a ideia de um espao aberto se
sustentasse, com o risco deste Ateli transitar por configuraes que iriam desde um
espao de quebra do cio at um espao hegemnico que pudesse beneficiar a todos. No
dia-a-dia da experincia, o Ateli passou a se constituir paulatinamente como um lugar de
muitos trnsitos, efetuados a partir das indicaes realizadas pelos prprios funcionrios
do CAPS, com critrios variveis, alguns, inclusive, questionveis. Assim como qualquer
outro procedimento, o Ateli viu-se afetado pela dinmica institucional. Variados tambm
foram os motivos mencionados por cada um que chegava: porque gostava de desenhar,
porque acabava de ingressar na instituio, porque estava em crise, porque estava curioso,
porque queria estar onde os demais estavam, porque algum falou para ele ir e ele por sua
vez nem sabia o que estava fazendo ali, etc. Neste tipo de proposta em que a participao
dos usurios permitida e no obrigatria, a configurao grupal acaba por comportar
demasiada flutuao. A depender do prprio cotidiano institucional, havia dias que a sala
ficava lotada e, outros, que contava com dois ou trs participantes; alm disso, com este
tipo de enquadre, a chegada de um novo integrante, totalmente alheio ao que se passava
ali, estava sempre posta. medida que a proposta foi amadurecendo, aqueles que tinham
uma conexo com este espao se tornaram seus frequentadores assduos.
O Ateli foi instalado de modo ressonante aos princpios norteadores do CAPS e,
ao mesmo tempo, como algo inaugural. Naquele momento, o servio estava marcado por
uma tnica mais convencional no que concerne prtica clnica - o que podia atribuir-se a
uma srie de fatores, dentre eles, as consecutivas mudanas de gesto, com pressupostos
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clnicos muito distintos dos anteriores, sucessivas mudanas no projeto institucional, que
no cabe esmiuar-se aqui. Em favor de experimentos que sassem do foco do discurso
mdico, do recorte pela doena, muito presente naquele momento institucional - tanto por
parte dos usurios e seus familiares, sobretudo pelos profissionais -, impregnado nestes
lugares de tratamento, tornou-se essencial constituir um trabalho tangenciando campos e
habitando fronteiras, de modo a destacar a experimentao e a efetuao de
procedimentos artsticos, sem desconsiderar a sua dimenso clnica.
Como conhecido, no CAPS, h uma sobreposio de papis e funes, os
profissionais de um modo geral esto mergulhados nas solicitaes da clnica que exige
que se possa faz-la de vrios modos. Por exemplo, um mdico pode se ocupar de
consultas mdicas onde acompanhar alguns pacientes e coordenar um grupo de famlia
ou uma oficina de escrita, onde a sua funo ser outra. No caso da experincia de uma
oficina de escrita, viabilizada por meio da parceria de um psiquiatra como um jornalista e
escritor, um jornal foi confeccionado para circular a produo dos que frequentavam
aquele espao e que se desdobrou em um Jornal chamado Tarja Preta, nome sugerido por
um dos pacientes. Nem preciso dizer que ali se instaura um espao para discutir
assuntos diversos relacionados ao dia-a-dia da instituio e outros; a medicao pode ser
um deles, ao serem trabalhados sem ser uma consulta mdica e em um espao mais
coletivo. Por exemplo, ao escolherem fazer uma matria sobre a indstria farmacolgica,
pde surgir ao longo desse debate a percepo, dos participantes da oficina com relao
aos profissionais do CAPS, que os mesmos, ao se depararem com um paciente em crise,
optam primeiramente por medicar. A acolher esta situao, inicialmente delicada, tem-se a
oportunidade de que o assunto possa ser tratado por todos e de outros modos. Alm disso,
podemos pensar que a medicao como primeira resposta crise, em detrimento de outras
formas de abordar o sujeito em um CAPS, pode funcionar como um analisador
institucional. Se tomarmos a psicoterapia institucional francesa como j foi abordada,
acompanharemos como a psicanlise contribui e dialoga com estas perspectivas que
buscam engendrar uma atitude que leve em considerao a existncia de um sujeito o qual
possui um saber sobre si.
No que concerne ao Ateli, vale dizer, entretanto, que esse tipo de proposta
dentro de um CAPS no nova, alis, as oficinas expressivas ou artsticas so
pressupostos de trabalho deste tipo de equipamento desde a sua origem, bem como a
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Em 1946 foi criada a Seo de Artes Plsticas, mais tarde, transformada na Escola
Livre de Artes Plsticas do Juquery, cuja pretenso era oferecer recursos materiais e
tcnicos para os internos do hospital que tinham uma vocao artstica. Posteriormente,
foram convidados, por Osrio Csar, alguns artistas para trabalharem junto aos pacientes.
Neste mesmo ano, no Centro Psiquitrico Pedro II, localizado no Engenho de
Dentro, Rio de Janeiro, a psiquiatra Nise da Silveira, implanta um ateli de pintura para
os internos, sustentando ento a aposta de que l onde eram jogados os rebotalhos da
sociedade utilitarista, havia sujeitos sujeito do inconsciente (QUINET, 2009, p.209).
A jovem psiquiatra ops-se frontalmente aos procedimentos usuais da poca para
conter a loucura: os eletrochoques, os comas insulnicos e as psicocirurgias e, mais tarde,
contra o abuso dos neurolpticos e das internaes sucessivas. Para tanto, teve que se
refugiar no Setor de Teraputica Ocupacional e Reabilitao do hospital e, logo de incio,
j declarava que o seu interesse pelas artes estava atrelado a construir um procedimento
teraputico que destinaria ao tratamento dos esquizofrnicos, como ela prpria os
denominava. Nesse sentido, sua opo foi seguir esse caminho da teraputica
ocupacional, considerado na poca um mtodo subalterno, destinado distrao do louco
ou contribuio para a economia hospitalar (LIMA, 2009).
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este rtulo, reinventando categorias que expressem melhor suas manifestaes, que
muitas vezes no redundam em um objeto - como o caso dos artistas conceituais - na
instituio, por outro lado, h uma fetichizao deste ao associar priori a produo dos
pacientes como obra, que acaba por desconsiderar at mesmo os referenciais do campo
das artes institudas. Com isso, muitas possibilidades ficam inviabilizadas, pois, antes de
qualquer destinao aos trabalhos que venham a ser produzidos, do ponto de vista
esttico-clnico, seria interessante pensar que os desdobramentos e encaminhamentos da
produo podem seguir por caminhos singulares, que no corroborem com os
funcionamentos hegemnicos nas relaes socioeconmicas. A tnica singular do Ateli
agenciava-se com proposies artsticas que propiciavam a seus frequentadores a
construo de uma potica prpria. Desse modo, engenhou-se no Ateli Aberto um espao
mltiplo por excelncia, de modo que o acento estava na instalao de uma atmosfera de
ateli (muito mais do que produzir obras de artes) em um ambiente clnico onde a questo
da aprendizagem por vezes se coloca. Como o compromisso estava pautado em fazer uma
marca do trabalho em artes, do fazer utilizando suportes e materiais os mais variados
possveis, a proximidade de uma jovem artista e arte-educadora junto ao Ateli,
incrementava a sua funo no mbito institucional e na relao com os participantes. O
dilogo com as prticas desenvolvidas pelos ambientes artsticos e programas educativos
e de aes culturais presentes em museus e seus pressupostos enunciou o enquadre e o
desenho dessa proposta, que congregava elementos distintos da clnica e, muitas vezes, a
ela articulados. Isto no significava uma aplicao cega de mtodos de ensinos de arte,
mas supunha um lugar diferente diante de tantas clnicas existentes na instituio; isto ,
psicoterapias, consultas mdicas, visitas domiciliares etc.
Toda a digresso que um espao como o Ateli Aberto podia fazer em relao aos
funcionamentos predominantes, pode entrever-se no percurso de uma das participantes.
Era uma mulher que frequentava o Ateli e deixava todos pasmos com a sua produo,
com um gestual muito rpido e um trao preciso, sem nunca ter se submetido a nenhum
curso, desenhava croquis, muitos. Os seus desenhos, extremamente delicados, a todos
impressionavam; sua temtica eram sempre mulheres, mais precisamente manequins - e o
que variava era sua posio e as vestimentas, sempre muito femininas, por vezes,
sensuais. O conjunto de seus trabalhos se contrapunha radicalmente a sua aparncia: tanto
fazia se fosse inverno ou vero, vinha com muitas roupas pesadas (casacos com capuz,
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assegurar que foi ele quem fez, todavia, o desenho e assinatura tambm se emaranhavam,
demonstrando que no se tratava apenas de uma questo de identificao; essa fuso da
palavra e imagem, dele com sua produo, repetia em seus trabalhos, acentuando esse
modo formal de apresentao de suas criaes.
Curiosamente, a sua chegada ao Ateli decorreu da atitude de alguns pacientes
que, ao reconhecerem o potencial de seu trabalho, fizeram o encaminhamento. Quando
passou a frequentar este espao, cada vez mais, a se interessar por materiais inusitados e a
descobrir outros suportes que no precisavam ser sempre as suas roupas, o que fez com
que buscasse especialmente aqueles materiais que habitualmente no se usa para aquela
finalidade. Quis desenhar com pregos e aqui vale uma ressalva: desenhar com este
material no era friccion-los numa base de madeira, fazendo riscos, traos como
ocorreria com o grafite; a sua inteno era com muitos pregos, de forma e tamanhos
variados, fazer um arranjo que poderia ser apoiado ou fixado em um suporte ou no;
assim, a disposio dos mesmos redundaria em uma forma, um arranjo, um desenho.
Alm de pregos, dizia querer desenhar com fumaa, com feixes de luz, com elsticos,
com sobras de materiais, com os invlucros dos materiais: o plstico que a tela vem
embrulhada, o folheto de informaes sobre o uso da ferramenta, os frascos de cola e
tinta, at as ferramentas (tesoura, estilete, rgua, transferidor, martelo, goivas etc.),
poderiam tornar-se materiais a ser agregados s suas invenes. s vezes dizia querer
desenhar com todos eles juntos e conseguia - mesmo no sendo a sua inteno verdadeiras assemblages. Suas colagens tambm seguiam uma orientao similar, sendo
um suporte bidimensional, desconsiderava o direito e o avesso; ao recortar a imagem,
ambas as faces o interessavam, ento, fazia tores, dobradias, para que um lado e o
outro da figura recortada pudessem participar da colagem, apontando para algo
semelhante Banda de Moebius, em que o dentro vira fora e o fora, dentro. Apesar de
muitas vezes no se importar com o acabamento do trabalho, conseguia, de fato, efeitos
bastante inusitados. E, embora, costumava-se categorizar os seus trabalhos como
desenhos, era no campo tridimensional que ele atuava, porm era a relao com o
desenho que persistia em realar. Nos momentos de conversar sobre a sua produo,
relatava que, quando estava em sua casa, gostava de manusear um nico livro de artes que
tinha tratava-se de desenhos de Leonardo da Vinci - e, de tanto olh-los, percebeu que
este artista criava algo parecido com o que fazia, no por acaso, insiste em dizer parecido,
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Egresso de uma cidade cravada por tradies seculares, Bispo fez uso desta
diversidade ao realizar aquilo que era a sua inteno maior, isto , por meio de bordados,
assemblages e objetos, inventariar o universo. Resignado a uma misso mstica, ao longo
de anos de estadia no manicmio, recusava a nomeao de artista, entretanto, ao olhar do
crtico Frederico Morais, curador e organizador da primeira grande exposio individual
aps a sua morte, intitulada Registros de minha passagem pela terra, Bispo j se inseria
na encorpada genealogia de vanguardas e neovanguardas (HIDALGO, 2011). Certo de
sua relevncia para a arte contempornea e, recorrendo a uma sequncia de analogias,
assim que Frederico Morais fala sobre ele:
Sua obra transita, com absoluta maturidade e competncia, no territrio da arte de
vanguarda, do dada. Comecemos por aproxim-lo de Marcel Duchamp, o artista fundador
de quase tudo o que se faz hoje. Alguns objetos aqui expostos poderiam ser confrontados
sem dificuldade com obras muito conhecidas de Duchamp, tais como Roda de bicicleta
(1913/1964), Porta-garrafas (1914/1964), como aquela capa de plstico das antigas
mquinas de escrever Underwood, que ele chamou de Pliant de Voyage (1966). Suprema
ironia, antes de vir para c, esta capa de plstico preto, na qual fala-se de histrias de
pescadores, cobria a roda da fortuna, ou seja, literalmente Bispo ps arte sobre arte, fez
um ready-made duplo, duas obras de Duchamp em uma. Entre os objetos criados por Bispo,
existem duas sacolas que ele chamou de urnas femininas e que servem para guardar as tiras
contendo os nomes das mulheres. Duchamp tambm mandou costurar duas sacolas de
tecido axadrezado, a que deu o nome de personagem masculino e personagem feminino.
Outro ponto a aproxim-los: o jogo de xadrez21 (apud HIDALGO, 2011).
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Como se sabe, o xadrez foi uma paixo de Marcel Duchamp, atividade que o acompanhou durante toda a
sua vida. Durante a abertura da primeira grande retrospectiva de seus trabalhos, em 1963, no Pasadena Art
Museum (Califrnia), Duchamp aparece jogando xadrez com uma annima nua; ele surge direita,
enquanto a mulher est sentada esquerda, como ocorre com as figuras em Rapaz e rapariga na
primavera (leo sobre tela de 1911); participando desta cena, ao fundo, a obra O Grande vidro (MINK,
2000).
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para mostrar suas pinturas e esculturas, abre a sua residncia. Com relao a este, apreciar
o seu trabalho e seu percurso numa mostra evidentemente interessante, mas no se
compara a adentrar em seu ambiente, ou melhor, em seus ambientes de trabalho,
impregnados de histrias, sendo o prprio artista, o mediador de suas obras. Ao mostrar
uma srie de pinturas feita com tmpera, comenta sobre a poca que, em decorrncia de
uma intoxicao com os solventes - teve que dar um descanso da tinta a leo at se
recuperar e, assim, para no parar de pintar, recorreu tinta em seus primrdios. Com
visitantes em sua maioria desconhecidos, ele engenhava ali, em seu ambiente mais ntimo
e presencialmente, um discurso sobre as motivaes que o fizeram pintor e escultor e,
concomitantemente, tornava acessvel a apreciao do conjunto de seus trabalhos. A
prpria residncia a sua grande obra, sua inveno, seu bem bolado, embora o acento,
durante a visita e em seu discurso, no estivesse nela.
Com o que brevemente se explicitou aqui, no sabemos demarcar onde comea a
vida muito menos onde irrompe a arte, fato este demonstrado ao transitar pelas
instalaes artesanais de Ianelli em sua casa-museu ou percorrer as imagens de Bispo que
recriou um mundo driblando o sistema asilar ou ainda o museu-vivo instalado por Nise
da Silveira.
Por fim, a convivialidade com as artes permite circunscrever o que nestas
narrativas puderam tramar como poticas que comportaram intencionalidades e trabalhos
distintos, com materiais e suporte diversos, mas, em geral, com extrema coerncia entre
eles. Embora no se encontrando restrita necessariamente a trabalhos autobiogrficos,
uma potica dever-se-ia apontar para aqueles que inventaram um universo particular, esse
trao de singularidade que o trao do sujeito, uma escrita prpria, em suma, um estilo.
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Giorgio Agamben lembra que a literatura e o pensamento tambm fazem experimentos, tal
como a cincia. Mas enquanto a cincia visa a provar a verdade ou a falsidade de uma
hiptese, a literatura e o pensamento tm outro objetivo. So experimentos sem verdade.
Eis alguns exemplos. Avicenas prope sua experincia do homem voador e desmembra em
imaginao o corpo de um homem, pedao por pedao, para provar que, mesmo quebrado e
suspenso no ar, ele pode ainda dizer eu sou. Rimbaud diz: Eu sou um outro. Kleist
evoca o corpo perfeito da marionete como paradigma do absoluto. Heidegger substitui ao
eu psicossomtico um ser vazio e inessencial. Segundo Agamben, preciso deixar-se levar
por tais experimentos. Por meio deles, arriscamos menos nossas convices do que nossos
modos de existncia. No domnio de nossa histria subjetiva, tais experimentos equivalem,
lembra Agamben, ao que foi para o primata a liberao das mos na sua postura ereta, ou
para o rptil a transformao dos membros anteriores, que lhe permitiram transformar-se
em pssaros. sempre do corpo que se trata, mesmo e principalmente quando se parte do
corpo de escrita (PELBART, 2004, p. 41).
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1 ATO
O cavalo anda nas pontas dos cascos. Quatro unhas o carregam. Nenhum animal se parece tanto com uma
primeira bailarina, uma estrela do corpo de bal, quanto um puro sangue em perfeito equilbrio, que
a mo de quem o monta parece manter suspenso, e que avana em passos curtos em pleno sol,
Degas pintou-o com um verso; dizia ele: Nervosamente nu em seu vestido de seda em um soneto
muito bem feito no qual divertiu-se e procurou concentrar todos os aspectos e funes do cavalo de
corrida: treinamento, velocidade, apostas e fraudes, beleza, elegncia suprema.
Paul Valry
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O louco, como o avesso dos discursos, nos interroga sobre a forma como nos relacionamos
com os outros. Ele tem uma funo interpretante para ns. Lacan o situa tambm como
mestre e senhor na cidade do discurso, no campo social da plis, na qual fez sua entrada
como cavalo de Tria imagem que nos faz sentir o poder e a ameaa para a Ordem
estabelecida que o louco representa. E ele entra na cidade com a impossibilidade de seu
discurso pulverulento, pulverizante e virulento, desfazendo o estabelecido, o institudo, o
conhecido, as significaes adotadas, as conexes entre significantes e significados, as
articulaes corporais e corporativas (...) (QUINET, 2006, p.52-53).
A mulher que aqui procuro descrever passa horas empenhada em concretizar suas
fantsticas invenes e, por viver uma situao de abandono, compensa a sua solido
contemplando os objetos, seus pertences... que, com seus relatos, se presentificam e
ganham vida.
2 ATO
Julga-se um civilizado pelo modo como se comporta e ele pensa tal como se comporta; mas j quanto
palavra civilizado h confuso; para todo mundo, um civilizado culto um homem informado sobre
sistemas e que pensa em sistemas, em formas, em signo, em representaes.
um monstro no qual se desenvolveu at o absurdo a faculdade que temos de extrair pensamentos de
nossos atos em vez de identificar nossos atos como nossos pensamentos.
Antonin Artaud
A mulher elegante diz que s come comidas sofisticadas, faz meno a sufls e
crepes com a expresso de quem est com gua na boca. Tem a convico de que comidas
brasileiras, tipo arroz com feijo, so comidas de negro e possuem certa toxicidade para
o corpo humano. No faz nenhum esforo para camuflar seus preconceitos. Com
frequncia, dirigia-se ao prdio da FIESP e l acompanhava notcias de jornais sobre
descobertas cientficas, entretanto, para ela, s valia a pena ler o francs Le Monde. A
finitude do homem lhe causava um incmodo avassalador e a vida eterna um projeto
completamente vivel que envolve muita pesquisa, trabalho e recursos. Por isso,
preocupa-se tanto com o desenvolvimento da cincia, em especial com os avanos da
gentica. Deixa-se constantemente ser invadida pelas lembranas do passado, lamenta-se
do seu destino e da morte do seu esposo. Mantm guardadas as cinzas do seu corpo em
seu guarda-roupas, uma forma de t-lo vivo, prximo. Ter sido internada exatamente no
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dia que o homem chegou lua foi para ela um golpe cruel, sentia uma mgoa gigantesca
por no ter acompanhado essa notcia pela T.V.
As suas concluses so sustentadas pela construo delirante que persiste ao
longo dos anos e, sem desconsiderar suas dificuldades e sofrimento, escut-la muitas
vezes mergulhar no universo rico de imagens e poesia passvel de muitas relaes com o
universo literrio.
Inventa um conjunto de mquinas e descreve o seu funcionamento, assim como
Kafka que descreve uma mquina que produz tambm uma metamorfose do corpo, uma
transfigurao (GIL, 1997, p.103). Durante esse processo de execuo descrito por ele, a
pele do condenado gravada, marcada com a frase: honra o teu superior! (KAFKA, s/d,
p. 36). O corpo designado como superfcie de escrita, como superfcie apta para receber
o texto legvel da lei; e, sendo assim, a lei, a escrita e o corpo formam uma trplice aliana
(CLASTRES, 1978, p.124). O aparelho da colnia penal criado por Kafka, que tortura e
executa, exige do condenado ocupar o lugar de submisso.
[...] o condenado parecia de uma sujeio to canina que a impresso que dava era a de que
se poderia deix-lo vaguear livremente pelas encostas sendo preciso apenas que se
assobiasse no comeo da execuo para que ele viesse. (KAFKA, s/d, p. 29).
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explicitao, breve. Certa vez, um artista, professor e pesquisador do campo das artes, na
tentativa de delimitar qual era a sua pesquisa, dizia: interesso-me por tudo aquilo que a
arte despreza, descarta por isso prefiro a pichao ao grafite. Nesta frase j verificamos
uma separao entre arte e no arte, arte instituda e uma outra. Tambm encontramos
outras designaes cujo intuito est em nomear estas produes que, estando fora do
contexto artstico, no so consideradas possuidoras deste reconhecimento no mbito
cultural nem no mercadolgico. Em contrapartida, esta arte que encontramos nos museus,
nas mostras, nas galerias, nos centros culturais, esta arte reconhecida, institucionalizada
parece no necessitar de nenhum adjetivo acessrio para design-la. Os adjetivos arte
tecnolgica, arte minimalista dentre muitos servem para uma especificao, mas todas as
produes que advm desta categoria encontram-se rotuladas como arte e por isso mesmo
detm o valor de obra.
Com Jean Dubuffet, encontramos a terminologia arte bruta, que, vale dizer, no se
trata de uma categoria distintiva cujo intuito seria demarcar, separar o que seria uma arte
patolgica de arte no patolgica, mas, pelo contrrio, ele acredita no ser possvel fazer
esta distino. A arte bruta, neste caso e segundo Dubuffet, trata-se de produes de
todas as espcies [...] que apresentam um carter espontneo e fortemente inventivo, e to
pouco quanto possvel tributria da arte habitual (apud QUINET, 2009, p. 210). Na sua
trajetria no campo das artes, a noo de arte bruta - algo que tanto prezava - decorre da
ruptura com a norma artstica, permitindo que empreendesse trabalhos que traziam esta
militncia e que foram designados por ele de anticulturais e, decerto, almejava situ-los
em outro terreno (PACQUEMENT, 2009). Em 1945, Jean Dubuffet fundou a Companhia
da Arte Bruta cujo intuito era reunir a produo artstica de pacientes internados em
hospitais psiquitricos, presidirios e marginais de toda espcie. A arte bruta, neste caso,
estaria para a arte virgem, como estas produes foram designadas por Mrio Pedrosa
(QUINET, 2009, p. 210). Se por um lado ao criar estas categorias, amplificam a
abrangncia da arte, estendendo a outros grupos, sendo o crivo aquilo que est fora, elas
acabam ganhando existncia, sobretudo, fazendo contraposio a uma arte culta.
Mesmo a mulher elegante no se enquadrando naquilo que se convencionou
chamar de arte instituda, no participando de circuitos desta arte, com suas produes
restritas sade mental em funo de sua trajetria de tratamento e pelo programa
educativo de um museu e a alguns admiradores que conheceu nestes lugares por onde
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O ZERO no vazio. Dirigido por Andrea Menezes Masago e Marcelo Masago. So Paulo: Televiso
Cultura, 2005, DVD (56 min), som, colorido.
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3 ATO
Cada movimento, segundo disse, tinha um centro de gravidade; era suficiente comandar este centro, no
interior da figura; os membros, que no eram mais do que pndulos, acompanhavam por si mesmos
qualquer interveno de maneira mecnica.
Acrescentou que tal movimento era muito simples; que, cada vez, quando o centro de gravidade era
movimentado em uma linha reta, os membros descreviam curvas; e que com freqncia, mesmo
sendo sacudido de maneira puramente acidental, o todo ganhava um tipo de movimento rtmico
semelhante dana.
Heinrich Von Kleist
O que chamava mais ateno era como dispunha seus pertences. Nada tinha seu
lugar funcional, tudo era nmade. Roupas dividiam espao com comidas e pincis
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ressecados porque nunca foram lavados devidamente. Cada cmodo tinha potencial para
ser quarto, sala de estar ou at mesmo um ateli. Enquanto falava, circulava por todos
esses lugares de sua casa como se tivesse esgotando o espao. Mesmo mergulhada nessa
organizao catica, consegue criar condies propcias para a leitura. Conta-nos que
recentemente sentiu uma imensa vontade de reler Memrias de um sargento de milcias e
diante das primeiras pginas j percebeu que a nica coisa que prestava naquele livro era
a capa. Dessa apreciao surgiu mais uma tela pintada e o ressentimento de no
conseguir pintar um retrato de seu av, no conseguia captar sua expresso facial. Em
todo canto de sua casa, h resqucio de criao. Bem ao lado da sua cama, um criadomudo com inmeras velas derretidas e apagadas. E aqueles restos, desprovidos de
qualquer intencionalidade, ela os transforma numa verdadeira escultura de parafina
sustentada pelo mvel de madeira nobre.
4 ATO
Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou no, por que no consegui tornar-me
sequer um inseto. Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem
disso fui digno. Juro-vos, senhores, que uma conscincia muito perspicaz uma doena, uma
doena autntica, completa. Para uso cotidiano, seria mais do que suficiente a conscincia humana
comum, isto , a metade, um quarto a menos da poro que cabe a um homem instrudo do nosso
infeliz sculo dezenove e que tenha, alm disso, a infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais
abstrata e meditativa de todo o globo terrestre.
Fidor Dostoivski
Vive ela farejando a cultura russa. Ao falar da sua origem brota uma narrativa
sempre indita, sua histria se fosse contada mil vezes teria mil desfechos diferentes e a
Rssia sempre estar l, intocvel. Persistiu nesse tema por alguns meses, no curso
Orientao para projetos artsticos do Museu de Arte Contempornea do qual era aluna,
e chegou a fazer uma srie representando personagens russos e seus familiares. O trono
do Ivan, o terrvel recebeu um investimento fora do habitual. Para a pintura do trono,
comprou um spray prateado. Atitude corajosa por parte dela que do momento da compra
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at a pintura ser concluda teve o spray em sua bolsa escondido. Tinha certeza que a
polcia, ao confundi-la com pichadores, iria prend-la.
Frequentemente invadida por sensaes de perseguio, aprendeu a conviver com
elas da melhor forma possvel, foi criando atalhos e interlocutores que permitiram outras
possibilidades que no a institucionalizao da sua loucura. Sua histria se enlaa com a
cultura russa de modo a no saber mais o que so fatos da realidade e ou pertence ao
delrio. O nome prprio russo j no mais suficiente, assim, agrega sua assinatura um
sobrenome da mesma origem.
5 ATO
Esta a questo: a volpia est morrendo. Ningum mais sabe fruir. Alcanamos a intensidade, a
enormidade, a velocidade, as aes indiretas sobre os centros nervosos pelo caminho mais curto.
A arte, e at o amor, devem ceder frente a novas formas de dissipao do tempo livre e da superabundncia
vital; e essas formas sero o que puderem ser...
Paul Valry
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Enquanto pinta, desenha, escreve, reflete sobre suas questes e a falncia do corpo
um tema recorrente em seus trabalhos por isso nunca abandona seu projeto.
As mquinas por ela inventadas podem no ter nenhuma repercusso no campo
cientfico propriamente dito e, talvez, estejam muito longe de serem concretizadas, do
ponto de vista da eficcia, tal como ela deseja, no entanto, elas j adquiriram uma
existncia simblica possvel de serem respaldadas, sustentadas e valorizadas no campo
das artes e da literatura.
Por mais que os fatos, pessoas, objetos e ambientes dos livros no passem, no fundo, de
tinta preta impressa no papel palavras, palavras, palavras... -, aquilo que se guarda deles
comea a fazer parte da vida do leitor, em possibilidades to numerosas quantas so as da
imaginao (SSSEKIND, 2005, p.42).
Numa sociedade cada vez mais voltada para as coisas que so teis, funcionais,
parece ser esse o papel das artes e da literatura: instaurar o universo da fabulao, abrir
espao para a desconfiana da realidade.
Na medida em que se narra, a prpria narrativa se interroga. Esta sua posio de discurso,
e a perspectiva na qual a se enuncia fabula o acontecimento. No h literatura sem
fabulao (Deleuze, 1997, p.13). A estratgia de fabulao reticente no mbito da clnica.
Fabular a clnica implica, na escrita, fabricar experimentos com uma narrao heterclita,
que inveno e ao mesmo tempo aluso de um vivencial desejado e no realizado na
experincia. Supondo uma faculdade especial de alucinao voluntria Bergson (1998,
p.161) nomeou por funo fabuladora aquilo que pode alinhar-se fico e que, entretanto,
no pode circunscrever-se a ser pensado como apenas uma variedade de imaginao. A
fabulao guarda com as sensaes e percepes de memria, entretanto ela funciona como
uma espcie de resistncia dimenso factual (da cincia, sobretudo) que tende a acachapar
toda experincia (INFORSATO, 2010, p. 87).
Decerto a relao entre literatura e loucura tem suas razes para existir. A prpria
impossibilidade de dizermos o que institui e anima a escrita; na insistncia em dar
forma quilo que no se rende forma reside o seu inacabamento e, possivelmente, a
agonstica enfrentada no ato de escrever. Entretanto, se a possibilidade de transgredir a
linguagem existe para ambas literatura e loucura -, faz com que nesta escrita opere o
desvio, aquilo que dispersa e disjunta:
No o Ser, mas o Outro, o Fora, o Neutro. Paixo do fora que atravessa a escrita em Kafka,
bem como a de Blanchot, e que reverbera na obsesso de Foucault com o tema das
fronteiras e limites, da alteridade e da exterioridade, ou em Deleuze-Guatarri, na sua
reinvidicao por uma relao com o fora e toda maquinaria nmade que da deriva
(PELBART, 2005, p.288).
152
acompanhar
desenvolvimento
cientfico-tecnolgico,
algo
que
fazia
cotidianamente, foi validada como tarefa empreendida em sua pesquisa, alm de criar
acessibilidade a percursos/trabalhos de artistas que tangenciavam tais questes.
Em contrapartida, se os encontros e as aproximaes com as artes fazem
precipitar muitas coisas, uma delas certa convico de no abandonar a nossa verdade,
entendida como aquilo que nos atravessa. E aquilo que o atravessa que guia a pesquisa
do artista. Com Leonilson, no por acaso, aprendemos que so tantas as verdades; a
verdade era, para ele, plural, pluralidade esta tida como condio para a sua sinceridade
(LAGNADO, 1998).
6 ATO
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convicta; sem pudores ou receio de ser invasiva, dizia-lhes coisas do tipo: Fique
tranquilo, estou inventando uma mquina e em breve voc poder se beneficiar dela e se
livrar definitivamente destas cadeiras de rodas e andar com as suas prprias pernas.
Por frequentar um ateli, o seu projeto pde se inscrever fora do espao de
tratamento, mas ainda, dentro de outra instituio: o museu. Mais precisamente, se inseriu
em um programa educativo que existe na maior parte dos museus da cidade e que, no
MAC-USP, era denominado de Diviso de Educao e Ao Cultural. Dentro deste
espao e sob a alcunha do curso Orientao para projetos artsticos, foi possvel
agenciar uma equipe de coordenadores e monitores e/ou estagirios, estes ltimos, na sua
maioria ainda alunos advindos de vrios cursos de graduao da universidade. Desse
modo, tornou-se possvel constituir um grupo de trabalho que tinha como marca - alm do
interesse e vontade de trabalhar nestes projetos de interface - a heterogeneidade. Como a
equipe de trabalho, os participantes do ateli tambm tinham esta caracterstica e o
comum que eles traziam eram projetos de suas autorias que demandavam, em certa
medida, orientao artstica.
A diferena de cada projeto que foi orientado naquele espao enunciada de modo
exemplar com estes dois casos. Uma das participantes viera da Alemanha, mas no nos
explicitou os motivos de sua migrao para o Brasil, aqui vivia como professora de
desenho/pintura e de vendas eventuais de trabalhos; o seu projeto se traduz de forma
simplria e sucinta pela pesquisa da cor preta e sua hiptese era que na pintura esta cor
era coadjuvante uma vez que servia apenas para ressaltar as outras cores. Outra
participante era arquiteta e trabalhava nesta profisso havia muitos anos e o seu projeto no
curso era experimentar algo diferente daquilo que no trabalho realizava; seu intuito era
construir objetos e instalaes que desafiassem os princpios da arquitetura, ou seja,
beleza, conforto e funcionalidade.
Pelo fato de o curso a que me refiro engendrar um espao para desenvolvimento
de trabalhos pessoais e, concomitantemente, um espao para discuti-los, numa situao
coletiva que fosse promotora de contaminaes, a orientao, muitas vezes, no ficou
como exclusividade da coordenao. O intuito era que isso se dissolvesse de tal modo que
qualquer um estaria apto a realizar esta tarefa e, assim, muitas perguntas e sugestes
puderam ser lanadas.
154
155
7 ATO
A mais livre, a mais flexvel, a mais voluptuosa das danas possveis apareceu-me numa tela onde se
mostravam grandes Medusas: No eram mulheres e no danavam.
No so mulheres, mas seres de uma substncia incomparvel, translcida e sensvel, carnes de vidro
alucinadamente irritveis, cpulas de seda flutuante, coroas hialinas, longas correias vivas
percorridas por ondas rpidas, franjas e pregas que dobram, desdobram; ao mesmo tempo que se
viram, se deformam, desaparecem, to fluidas quanto o fluido macio que as comprime, esposa,
sustenta por todos os lados, d-lhes lugar a menor inflexo e as substitui em sua forma. L, na
plenitude incompreensvel da gua que no parece opor nenhuma resistncia, essas criaturas
dispem do ideal da mobilidade, l se distendem, l se recolhem sua radiante simetria, no h solo,
no h slidos para essas bailarinas absolutas; no h palcos; mas um meio onde possvel apoiarse por todos os pontos que cedem na direo em que se quiser. No h slidos, tampouco, em seus
corpos de cristal elstico, no h ossos, no h articulaes, ligaes invariveis, segmentos em que
se possam contar...
Paul Valry
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Eis uma delas: uma jovem fora internada revelia pelo pai e pelo irmo, um
pouco mais velho que ela, numa enfermaria psiquitrica em um hospital geral. Ela, muito
enlouquecida no momento da admisso neste equipamento, carregava - diferente da
mulher elegante - o vigor da juventude: muito falante, tinha por volta de 20 anos, a sua
pele muito branca e traos delicadssimos enganava a sua idade, fazendo-nos acreditar
que tinha muito menos; tinha uma expresso bastante angelical, o seu rosto arredondado e
os cabelos longos, ralos e pretos lembravam a Mona Lisa. Dizia-nos, na tentativa de
encontrar alguma explicao - para justificar a atitude de seus familiares diante de seu
comportamento, a qual culminou na internao - que ficou doente dos nervos porque o
seu corao no aguentou a perda da me. Vivia com o pai e o irmo na periferia de So
Paulo e, durante os ltimos anos, passava completamente isolada em seu quarto. Fez de
tudo para o pai instalar uma banheira e uma mquina de lavar roupas dentro do lugar onde
dormia, alegando medidas de higiene. E, ele acedeu mesmo a contragosto e l ela fazia
todas as suas refeies, tomava banho e lavava suas roupas... Saa de casa s em caso de
extrema urgncia; sadas repentinas: escondida de todos, dirigia-se ao supermercado para
comprar formicida. Chegando casa, preparava para si um delicioso e estranho
chocolate temperado com veneno para ratos. Nessa mistura, a sua receita era colocar uma
minscula poro de veneno, quase imperceptvel... No era uma tentativa de suicdio,
longe disso; o seu sofrimento era em demasia, sem sombra de dvida, o que at poderia
justificar tal impulso. O que queria mesmo era se envenenar em doses homeopticas para
garantir que levaria muitos anos para vir a falecer, mas que, contudo, seria antes do pai e
do irmo, que eram mais velhos do que ela, seguindo o seu raciocnio, ambos morreriam
antes. A jovem confeiteira, como a mulher elegante, no suportava a ideia de morte e,
certamente, se interessaria pela Salva vidas infindus infinitus. At o momento que
pudemos acompanh-la, suas arriscadas invenes apontavam mais para uma
desorganizao psquica, sem dvida, merecedora de ateno e que poderia convergir
para outras produes, possivelmente uma construo minuciosa que levaria alguns ou
muitos anos e, portanto, necessitaria mais alguns atos.
157
Em uma situao grupal, um dos participantes no cessa de falar. Com intuito de justificar a sua
incontinncia verbal, diz a todos, em um tom professoral:
Veja bem, so seis os rgos dos sentidos: a viso que nos permite o acesso s imagens... a audio que
faz com que ouvimos a voz das pessoas e todos os outros sons... com o olfato, podemos sentir os
aromas de comidas, cheiros de perfumes, odores ruins tambm..., com o tato, percebemos a pele,
tateamos os contornos das coisas, se so pontudas, arredondadas, macias...; j o paladar o rgo
responsvel pelo gosto, os sabores amargo e doce e, finalmente, aquele que nos permite emitir sons
e palavras: o rgo da fala...
Roland Barthes (2010) escreve nas ltimas linhas de seu livro O prazer do texto,
que se fosse possvel imaginar uma esttica do prazer textual, fatalmente incluir-se-ia nela
a escritura em voz alta. Nessa articulao entre corpo e lngua sucede a exteriorizao
corporal do discurso; o gro da voz, como ele pronuncia, marcado pela repetio, este
misto ertico de timbre e linguagem, cujo objetivo no seria, por assim dizer, a clareza da
mensagem, mas, sobretudo, a arte de conduzir o prprio corpo. Esta escritura vocal, que
no se trata absolutamente da fala, no mais to praticada j que a melodia est morta,
como ele prprio enfatiza e, talvez, hoje seja possvel encontr-la no cinema mais
facilmente:
Basta com efeito que o cinema tome de muito perto o som da fala ( em suma a definio
generalizada do gro da escritura) e faa ouvir na sua materialidade, na sua sensualidade,
a respirao, o embrechamento, a polpa dos lbios, toda a presena do focinho humano
(que a voz, que a escritura sejam frescas, flexveis, lubrificadas, finamente granulosas e
vibrantes como o focinho do animal), para que consiga deportar o significado para muito
longe e jogar, por assim dizer, o corpo annimo do ator em minha orelha: isso granula, isso
acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui (2010, p. 78).
23
Marco Antnio Coutinho Jorge comenta que, ao tomar a tese freudiana do determinismo psquico,
segundo a qual todos os atos, vontades, ditos, etc. dos sujeitos so determinados de modo universal -, Lacan
pondera que, a rigor, a chamada regra de associao livre esteia-se precisamente no fato de que a associao
produzida pelo sujeito em anlise no nada livre, mas ao contrrio, demasiadamente determinada, (por
158
um outro: fale tudo o que se passa pelo seu corpo. Fale do desejo, do possvel, da
loucura, da morte, da infncia, da velhice, da violncia, do amor... Apesar de no ser a
situao analtica o assunto tratado por Barthes, parece que a sua proposio pode ser
vislumbrada nesta situao onde deve perseverar a suspenso dos significados para advir
o sujeito, propsito da escuta se se deseja fazer que prevalea em sua particularidade; nas
suas palavras, o prazer do texto isso: o valor passado ao grau suntuoso do significante
(BARTHES, 2010, p. 77). possvel que a esteja localizada uma tica do analista que se
funda quando o seu inconsciente no abafa nem neutraliza o singular, no silencia o
sujeito, mas o faa falar. Neste aspecto diz-se que a interpretao do analista para Lacan
uma pontuao do discurso do analisando e no um acrscimo de sentido (JORGE, 2007).
Ora, d para dizer que o texto de Barthes alude ao campo da linguagem,
precisamente, quando o seu autor declara eu me interesso pela linguagem porque ela me
fere ou me seduz (2010, p.47). Ao falar da linguagem fora da pele, ele aponta para a
articulao do corpo e da lngua e no do sentido e da linguagem, quer dizer, a sua frase
no , necessariamente, uma figura de linguagem; tambm o que como ocorre em
algumas condies onde a extravagncia dos significantes encontra a sua mxima, como
veremos, na psicose.
Como se sabe, a teoria psicanaltica no cessa a sua anlise sobre este tema,
contudo este no um empreendimento restrito a este campo, uma vez que tem se
elaborado em muitos outros, como o caso da filosofia, da educao, da literatura e das
artes. Nesse sentido, constata-se que a linguagem , para muitos, um interesse comum: o
analista, o educador, o filsofo, o escritor, o artista (ou crtico de arte) ocupam-se dela,
cada qual em seu contexto, em seus ambientes e com suas aparelhagens conceituais.
Contudo, com as contribuies da psicanlise, passou-se a entender a linguagem
como produo; no s conscincia, mas, sobretudo, inconsciente, e isto produz um salto
acompanhado de uma srie de desdobramentos. O descentramento do sujeito, constructo
da psicanlise freudiana e lacaniana, abriu um terreno fecundo, um caminho a perseguir,
mas, com a cautela de no operar um discurso totalizador (ademais, sabemos com o
isso, aqui, nesta dissertao, empregou-se o termo supostamente). Com base nestas constataes, a
categoria freudiana da sobreterminao inconsciente pe em evidncia a primazia do simblico na
constituio do sujeito, da Lacan sustentar que, para Freud, o sintoma estruturado como uma
linguagem (JORGE, 2011).
159
prprio Freud que o inconsciente uma hiptese de trabalho). Vale a pena, ento, insistir
no uso do artigo indefinido um, pois como mostra Fink (1998), ao falar do discurso
lacaniano, a psicanlise no de forma alguma um discurso essencial, sendo apenas um
discurso entre outros.
Todavia, se a linguagem que concede um corpo ao sujeito para a psicanlise, a
linguagem na psicose torna-se um mote, por vezes, uma vertente de pesquisa, dada as
caractersticas prprias deste fenmeno, no por mero acaso, frequentemente, o termo
clnica da psicose utilizado para se fazer uma marca distintiva. Sobre isto, assim que
escreve a psicanalista Colette Soler, ao se referir ao texto lacaniano De uma questo
preliminar a todo tratamento possvel das psicoses:
[...] Lacan inclui a psicose no que chamou de funo da fala e da linguagem. Afirmou que a
relao com o significante, obra da linguagem, o que constitui a unidade da neurose e da
psicose. O que constitui sua unidade e tambm sua diferena. Observo, de passagem, que
essa incluso da psicose no campo dos fatos da linguagem situada por ele como parte do
aspecto do fenmeno, daquilo que aparece, portanto, ao passo que na neurose, ao
contrrio, a estrutura linguageira do sintoma s aparece por meio da decifrao (195556/2007, p.11).
Com efeito, no campo das estruturas clnicas, a linguagem est para todos, mesmo
que ela opere de modos distintos. Clinicamente, esta questo um ponto de partida que
inaugura um posicionamento crucial com relao ao discurso mdico, pois a clnica
psicanaltica no uma clnica descritiva nem fenomenolgica, mas uma clnica
estrutural, na medida em que o diagnstico se estabelece na transferncia
(CALLIGARIS, 1989, p. 9).
Com a descoberta do inconsciente por Freud e, posteriormente, com as
contribuies de Lacan que forja a acepo, o inconsciente estruturado como uma
linguagem, constata-se que o psictico lida com a linguagem de forma bastante
particular e peculiar. Em seu seminrio que trata das psicoses, Lacan diz:
clssico dizer que, na psicose, o inconsciente est superfcie, consciente. Por isso
mesmo no parece que isso tenha grande efeito em ser articulado. Nessa perspectiva,
bastante intrusiva em si mesma, podemos observar de sada que no pura e simplesmente,
como Freud sempre sublinhou, desse trao negativo de ser um Unbewusst, um no
consciente, que o inconsciente guarda a sua eficcia. Traduzindo Freud, dizemos o
inconsciente uma linguagem. Que ela seja articulada nem por isso implica dizer que ela
seja reconhecida. A prova que tudo se passa como se Freud traduzisse uma lngua
estrangeira, e mesmo a reconstitusse recortando-a. O sujeito est simplesmente, no que diz
respeito sua linguagem, na mesma relao que Freud. A se supor que algum possa falar
160
numa lngua que lhe seja totalmente ignorada, diremos que o sujeito psictico ignora a
lngua que fala (1955-1956/ 2008, p.21).
Ao expor esta metfora, Lacan no a reconhece como satisfatria, pois, para ele, a
questo no por que o inconsciente permanece no assumido no sujeito, mas porque ele
aparece no real. A exemplo disso, as alucinaes mas no somente elas - so entendidas,
do ponto de vista da psicanlise, como aquilo que rejeitado pelo sujeito e por isso
apresenta-se para ele como algo que lhe exterior.
Ainda neste seminrio dedicado s psicoses, ocorrido entre 1955 e 1956, a
hiptese lacaniana que previamente a qualquer articulao simblica, haveria uma etapa
em que uma parte da simbolizao no efetivaria na psicose; o que no foi simbolizado
vai se manifestar no real, que, por sua vez, trata-se do registro do irrepresentvel:
No intil lembrar-lhes a esse respeito minha comparao do ano passado entre certos
fenmenos da ordem simblica e o que se passa nas mquinas, no sentido moderno do
termo, essas mquinas que no falam ainda completamente, mas que vo falar de um
minuto para o outro. Elas so alimentadas com pequenas cifras e espera-se que nos dem o
que teramos talvez posto cem mil anos para calcular. Mas no podemos introduzir coisas
no circuito a no ser respeitando o ritmo prprio da mquina seno isso fica abaixo do
limiar, isso no pode entrar nela. Pode-se retomar a imagem. Sucede, entretanto, alm
disso, que tudo o que recusado na ordem simblica, no sentido da Verwerfung, reaparece
no real (LACAN, 1955-1956/ 2008, p.22).
Esse processo de no reconhecimento do que fala pelo sujeito que fala farto de
repercusses. Na loucura, os contedos inconscientes encontram-se mais manifestos, da
a expresso lacaniana que o inconsciente encontra-se a cu aberto na psicose.
bastante comum escutar na clnica com psicticos expresses do tipo: falam em mim,
usam a minha boca para dizer tal coisa, fui impelido a pronunciar tais palavras ou
conduzindo a dizer outras, mesmo no concordando, etc..
Com base na teoria dos discursos de Lacan, costumou-se recorrer expresso
fora-do-discurso, atribuio dada aos psicticos para tentar elucidar o modo como
circulam pelos laos sociais. Ademais, tambm fato que so os mestres da linguagem
como afirma Lacan, o que pode ser traduzido, de forma sumria, como aqueles que esto
de fora, e no fora da linguagem; o psictico est, portanto, fora dos discursos e
mestre deles, justamente porque o seu avesso, pois a sua interferncia se d
desarranjando os costumes e desacomodando os hbitos da ordem social (QUINET,
2006). Cabe acrescentar que, quando Lacan atribui ao louco como o avesso dos discursos,
161
por acreditar que ele nos interroga sobre a forma como nos relacionamos com os outros.
Sobre isso, escreve Quinet:
Como se manifesta no psictico o discurso pulverulento? Fragmentando a linguagem,
despedaando seu corpo (que, no caso do esquizofrnico, no tomado em nenhum
discurso), desobedecendo a partilha dos sexos (tendncia ao transexualismo travessia dos
sexos -, ou empuxo--mulher) por estar para alm da norma flica, presentificando a morte
como recusa do lao. Ele tambm ataca o lao social no s no entrando nele mas
criticando-o, apontando suas impossibilidades e denunciando o semblante social. Ele
aponta igualmente a inconsistncia do Outro: o Outro como garantia da lei e do amor.
Outras armas que ele utiliza para rasgar os semblantes e acabar com o Outro no social so a
ironia, o cinismo e a descrena (2006, p. 53).
162
como a clnica no seu sentido stritu sensu, cujo enquadre o atendimento individual em
que a escuta o procedimento do trabalho que, vale dizer, desde a inveno freudiana,
no caduca.
A construo, pela via da escrita, deste ambiente, foi tomando a forma de
apresentao de caso clnico, necessidade to frequente dos processos de tratamento,
embora esta no tenha sido exatamente a tarefa essencial deste texto. Em outras palavras,
no foi o intuito esmiuar a apresentao do paciente e sua problemtica, a prtica clnica
de quem escuta, a saber, os impasses e os manejos da transferncia nem tampouco o rumo
do tratamento e seus resultados. Cumpre repetir que no foi priorizado este aspecto, o que
no quer dizer que tenha sido menosprezado; d para dizer que est tudo isso a, mas o
acento est em outro lugar, ou seja, este ltimo ambiente, decerto, poderia ser
desenvolvido sob diversos recortes, contudo, priorizou-se o enfoque na questo da
linguagem na psicose, por isso, o subttulo: o ateli de palavras.
Tambm captulos e ambientes precedentes a este, a escrita da experincia na
clnica ocupou uma funo primordial por se tratar de uma tarefa indispensvel
confeco da dissertao. Porm, os exemplos e as situaes no foram tomados como
ilustrao - pelo menos esse no foi o objetivo. Mas, diferente disto, as formulaes
foram decorrentes da construo deste material, de forma que este foi norteando a
pesquisa e determinando o curso da dissertao. Com relao construo do caso, no
apenas nessa ambientao aqui nomeada A situao clnica, mas, h outros em outros,
como possvel observar.
Como ocorreu em todo o percurso da confeco das narrativas presentes nesta
dissertao, foi feita uma aliana entre a clnica e as artes, incluindo a, a literatura. Essa
foi uma posio mencionada desde a introduo, a qual redundou em uma forma de
escrita que traz em seu bojo a dimenso tica. assim que formula Nasio (2001) quando
admite que o caso uma fico, pois ainda que, para a prtica psicanaltica, tenha as suas
funes didtica, metafrica e heurstica24 - trata-se, pois, de um relato de um encontro
clnico que, diga-se de passagem, nunca o reflexo fiel de um fato concreto, mas sua
24
De acordo com a tese de Nasio, o caso clnico pode ter uma funo didtica, como exemplo que
corrobora uma tese, uma funo metafrica, como metfora de um conceito, ou uma funo heurstica,
como uma centelha que est na origem de um novo saber [...] (2001, p. 17).
163
25
Assim, Paulo Csar de Souza, no livro cujo intuito foi preparar terreno para uma nova traduo das obras
de Freud em portugus, que tem sido realizada diretamente do alemo, escreve: Em 1930 sucederam dois
fatos decisivos para a reputao literria de Freud: ele recebeu o prmio Goethe da cidade de Frankfurt e foi
objeto de estudo de um renomado crtico suo, Walter Muschg, num ensaio intitulado, de maneira simples
e pertinente, Freud como escritor (2010, p.23).
164
interface, contudo, esta concepo no nenhuma novidade j que esse aspecto da escrita
da clnica tem sido bastante explorado por vrios pesquisadores. Ademais, a prpria ideia
freudiana de que os poetas e escritores antecedem o trabalho dos psicanalistas
comentada por muitos autores (DE CERTEAU, 2011; DUNKER, 2011; SOUZA, 2010).
Assim, a construo de um caso clnico, como afirma Dunker, deve ser para alm
de um relatrio que explicite um conjunto de procedimentos relacionados ao tratamento,
como acontece com muita frequncia nos registros de pronturios, em geral, bastante
protocolares. Ademais, na situao clnica, o que temos so histrias repletas de lacunas,
mal-entendidos, rupturas, equvocos, etc., o que, porventura, leva suposio que toda
histria dos sujeitos marcada por estes hiatos; a quem escuta, deve-se estar advertido
com relao a isso. O que interessa destacar, mesmo correndo o risco de tornar-se
repetitivo como um estribilho, que, na construo do caso clnico, cabvel a inveno
de quem o escreve, alis, tal aspecto quase uma condio, o que permite considerar a
escrita do caso clnico como um gnero literrio. A partir desse ponto de vista, deveras
necessrio distinguir o paciente do caso, como aponta Dunker, que, ao fazer a analogia ao
romance policial pois, o que se encontra, primeira vista, a impossibilidade do leitor
construir uma histria linear e completa neste tipo de literatura -, escreve:
A rigor, um paciente em anlise, um psicanalisante, no tem nada a ver com um caso
clnico. Ele se torna um caso clnico quando escrito, e como tal desaparecido, rasurado
por esta operao. Em acordo com a ideia de queda presente na etimologia da palavra caso
(Fall) talvez a escrita clnica seja uma forma de nos separarmos da experincia acontecida
na anlise, uma forma de encontrarmos no que nela no encontrou inscrio, tempo e
representao. preciso evitar que um psicanalisante transforme-se em um caso clnico,
identifique-se com esta condio, como parece ter ocorrido com o Homem dos Lobos. Para
isso preciso introduzir o que poderia ter acontecido (a falsa soluo necessria) e tambm
o impossvel de ter acontecido (o real impossvel de representar) como condies para a
construo do caso clnico (2011, p.573).
165
factveis de muitas relaes, a depender do estilo de escrita, constructos tericosconceituais, etc., todavia, para o caso ser considerado clnico, deve se inscrever em um
sistema de transmisso sistema das artes ou literatura, sistema cientfico, mdico ou
jurdico e ainda filosfico (DUNKER, 2011).
De fato a experincia de uma psicanlise envolve uma transmisso cultural que muito se
assemelha a da narrao, em sentido forte do termo, pelos seguintes traos (Benjamin,
1936): transformao criativa entre memria e histria, valorizao do lado pico da
verdade, inerncia a uma tradio oral, recusa da soberania da informao, economia de
explicaes, fala autoral que se elabora em seu prprio processo e apropriao coletiva de
uma experincia. Contudo esta forma de transmisso cultural no deve se confundir com o
romance formado sobre esta mesma experincia. E Freud estava advertido desse problema:
Sei que h ao menos nesta cidade muitos mdicos que (coisa bastante repugnante) vo
querer ler um caso clnico desta ndole como uma novela destinada a sua diverso e no
como uma contribuio a psicopatologia das neuroses (1905d, p.8) (DUNKER, 2011,
p.567).
Este objetivo da transmisso est sempre perpassado aos que se dedicam clnica
e que porventura escrevem seus casos e os expem a um pblico. Se a construo do caso
clnico encontra-se dependente da escrita e este material, para ser lido e discutido,
contm, como j explicitado, alm das construes do paciente, a inveno de quem o
atende, ao expor um caso, seria razovel supor que, em certa medida, da exposio do
clnico que se trata tambm: o que escolher relatar na histria do sujeito, que efeitos
utiliza para velar e garantir o sigilo, os manejos transferenciais realizados, bem como o
seu estilo de conceber e escrever o que faz. Muitos concordam que expor esta experincia
pode trazer a este tipo de pesquisa mais vida e, muitas vezes, so os aspectos inerentes
clnica que nos impem que reformulemos a teoria. sempre uma questo para a clnica a
exposio. Com relao divulgao e a publicao dos casos, este o excerto que Nasio
traz de um dos textos freudianos:
[...] a discrio incompatvel com uma boa exposio da anlise: h que no ter
escrpulos, expor-se, entregar-se como pasto, trair-se, portar-se como um artista que
compra tintas com o dinheiro das despesas de casa e usa os mveis como lenha para
aquecer seu modelo. Sem alguns desses atos criminosos, no se pode realizar nada
corretamente (FREUD apud NASIO, 2001, p. 25-26).
166
encaminhamento feito pelo psiquiatra que o acompanhava h alguns anos, dizendo que a
esquizofrenia no existia e tinha provas que ela realmente uma inveno; ao longo do
tratamento, foi constatando que os enfermeiros o vampirizam e teve que aceitar o
diagnstico a contra gosto e a duras penas para que os psiquiatras e seus assistentes
continuassem com os seus empregos, cargos ou funes.
O trabalho nesse espao se deu ao longo de alguns anos prioritariamente pela
palavra, mas certa vez, quis esboar algo, utilizando materiais plsticos. Desenhou com
tinta, em uma tela, vrios olhos cada um olhando para uma direo diferente e o
conjunto de olhos formava o desenho de um outro olho (grande) sobre o fundo azul. Ao
termin-la, disse uma frase como se arriscasse uma nomeao para o que tinha feito,
qui, um possvel ttulo: Olhos sobre tela ou leos sobre tela. Utilizou a expresso
olhos sobre tela para designar que as imagens de olhos (representadas por meio do
desenho) estavam dispostas sobre uma tela e tambm leos sobre tela referindo-se
tinta a leo que foi aplicada sobre o suporte. A forma como ele apresenta o que executou
similar descrio da tcnica para explicao dos procedimentos utilizados. S poderia
ser este ttulo, na sua opinio, e ainda, olhos e leos, apesar de comportar grafias
diferentes, tm sonoridade similar, o que permite esta associao em seu aspecto literal.
Com relao literalidade d para dizer que a possibilidade de representao
vacila na psicose e as palavras se apresentam. No contexto do atendimento, este rapaz diz
que gostaria de falar sobre gramtica, mais precisamente sobre os pronomes possessivos.
Elege este assunto porque deseja estudar, relembrar aquilo que estudou durante anos na
escola e na faculdade, e por se encontrar afastado destes ambientes, o seu objetivo era
recordar para no esquecer o que aprendeu, acreditava que poderia fazer isso nos
atendimentos, j que discordava do diagnstico e, consequentemente, da necessidade em
seguir qualquer tipo de acompanhamento. Em seguida, parece que suas motivaes quando quis falar sobre gramtica - tambm eram outras, evidenciando-se por assim dizer
a gramtica do inconsciente. As regras gramaticais serviriam para elucidar suas atitudes
no ambiente familiar, explica, ento, que sua me de sua posse, do mesmo modo, a sua
irm o tem como sua propriedade, o que justificaria a sua autoridade sobre a primeira,
pois no a me e, sim, minha me e, por conseguinte, explicaria as represlias que
sofre da irm. Assim, a mesma regra se aplica na relao entre os dois, conforme
explicitada em seu argumento: por ser eu o seu irmo, ela quem escolhe as msicas que
167
devo escutar, os programas de TV que devo assistir, as roupas e acessrios que devo
comprar e usar. Os pronomes possessivos estavam ali para adverti-lo sobre a relao de
posse que ocorria entre os membros familiares - bastante numerosos -, ora justificava a
sua atitude autoritria com a me e ora a autoridade da irm sobre ele. Esta caracterstica,
isto , o modo como lida com as palavras, sempre atravessou a situao clnica,
posteriormente, chegou at a fazer brincadeiras com os seus trocadilhos. Contou que certa
vez um de seus irmos no momento que escrevia um texto, perguntou para ele - a pretexto
de esclarecer como era a grafia de algumas palavras -, se criana tinha acento, ele
respondeu sabiamente: s se for na Academia Brasileira de Letras, e em seguida,
justificou: pois no o que dizem, que as crianas so os verdadeiros professores?.
Tambm na situao clnica era incisivo ao relatar, especialmente nos momentos
de crise, as sensaes corporais sinestsicas intensas de cunho hipocondraco sendo
travar o corpo, doer os dentes e escutar zumbidos, experincias recorrentes
descritas por ele. Estas questes levaram-no a passar por diversos mdicos e especialistas
sem, contudo, encontrar algo em seu corpo que explicasse/justificasse do ponto de vista
fisiolgico tais manifestaes, o que , diga-se de passagem, caracterstico dos quadros
hipocondracos. Alm disso, era frequente a sensao de que colocam movimentos em seu
corpo, palavras que no so suas em sua boca, pensamentos que no so seus em sua
mente, o que o levou a concluir, de forma bastante convicta, que aquilo que no
reconhecia como seu tratava-se de enxertos de memrias. Diz com estas palavras:
tinha frequentemente uma lembrana de quando era criana e saltava os degraus de uma
escadaria, cada salto alcanava uma distncia de 2 metros, hoje, adulto, com pernas
maiores e mais fortes, tentei repetir a experincia e, ao constatar que no conseguia saltar
to distante, acabei descobrindo que aquela lembrana s poderia ser de outra pessoa e
que estava em minha mente por um erro, uma clonagem ou coisas do tipo. Uma vez que
so fatos e acontecimentos que no ocorreram com ele, obviamente, s poderiam ter sido
enxertados como se fossem lembranas suas.
habitual uma frase deste paciente - que se diz sem autonomia nos seus gestos,
movimentos e pensamentos e, na tentativa de explicitar a invaso e a disperso que vive
cotidianamente em seu corpo, fala: no sei se fui completamente digitalizado ou se sou
apenas um crebro mergulhado em um aqurio. De tempos em tempos, os sintomas de
extrema invaso se tornavam to intensos, desencadeando uma crise. Certa vez, numa
168
ocasio em que praticava esporte, ouviu uma voz que lhe disse, com um sotaque caipira:
v tomar banho, porrrrco!. A partir deste episdio, percebeu que transpirava muito mais
do que a maioria das pessoas que conhece e, assim, foi tomado por uma crise de higiene
avassaladora que persistiu por dias a fio. Sem trguas, acreditou que tinha que tomar
uma atitude, assim, inicialmente, comeou a esterilizar tudo o que tinha em casa com
lcool; passava o dia inteiro fazendo isso e, ao terminar, comeava tudo de novo,
obsessivamente, pois tal gesto deveria ser repetido continuamente por acreditar que o
efeito esterilizante havia vencido o seu prazo. Tal sensao, com o passar dos dias, foi
tomando uma proporo cada vez maior, saindo totalmente de seu controle. Um dia era
apenas uma chuva de bactrias visualizava tudo aquilo impossvel se ser visto a olho
nu: os bacilos, os bastonetes e todas as classes possveis -, depois chegou ao ponto de
acreditar que a contaminao por germes atingiu o seu sistema sanguneo e, assim, a sada
que encontrou para interromper este evento foi trocar todo o seu sangue, chegando a fazer
algumas tentativas.
Nos momentos de crise, o sujeito fica exilado de sua subjetividade, no se reconhece
mais como si mesmo, pois no consegue distinguir nem interior nem exterior. A voz que
vem do Outro no faz borda no corpo, no recorta um orifcio, no estabelece uma fronteira
entre o que prprio e o que no ; ela retorna como vinda de fora, como por exemplo uma
alucinao auditiva. Nesses momentos o sujeito pode assimilar o que vem de fora,
subjetivando-o ou no (MASAGO, 2007, p.139).
A crise, entendida aqui como as rupturas de tentativas de lao, neste rapaz era
bastante devastadora. Do ponto de vista da psicanlise, tais experincias devem encontrar
um modo de explicao pelo sujeito em aflio, de modo a transformar tais incmodos,
porventura demasiados invasivos, em um discurso. Neste aspecto, possvel considerar
que, na clnica psicanaltica, h uma aposta: a de escutar o delrio. A subverso freudiana
que a formao delirante uma tentativa de restabelecimento e no enfermidade
propriamente dita, conforme a psicose era interpretada at ento, passando a ser entendida
como uma manifestao do sujeito e no como dficit ou patologia a ser eliminada a
qualquer custo (FREUD, 1911/2010).
Posteriormente com Lacan, possvel apreciar a ideia de que a psicose no um
caos nem desordem e, sim, uma outra, o que ele chama de uma ordem do sujeito:
Sob o pretexto que o sujeito um delirante, no devemos partir da ideia de que o seu
sistema discordante. sem dvida inaplicvel, um dos signos distintivos de um delrio.
No que se comunica no seio da sociedade, ele absurdo, como se diz, e mesmo muito
incmodo. A primeira reao do psiquiatra em presena de um sujeito que lhe comea a lhe
169
contar coisas desse gnero com todas as cores, sentir desagrado. Ouvir um senhor proferir
afirmaes ao mesmo tempo peremptrias e contrrias ao que se est habituado a reter com
a ordem normal de casualidade, isso o incomoda, a sua primeira preocupao no
interrogatrio fazer encaixar as pequenas cavilhas nos buraquinhos, como dizia Pguy nos
seus ltimos escritos, falando da experincia que ele assumia, e dessas pessoas que querem,
no momento em que a grande catstrofe est declarada, que as coisas conservem a mesma
relao que antes. Proceda por partes, senhor, dizem eles ao doente e os captulos j esto
feitos (1955-1956/2008, p. 144).
Lacan, ao abordar a temtica das psicoses tanto no Seminrio III quanto no texto
De uma questo preliminar a todo tratamento possvel das psicoses, seguir os passos
de Freud. Examinando estes textos, constata-se, ento, que caberia favorecer este trabalho
com a palavra, assegurando que o trabalho clnico se constitui de um outro, feito
necessariamente e exclusivamente pelo psictico:
Dizer trabalho da psicose, tal como se diz trabalho da transferncia no caso da neurose,
tambm marcar uma diferena fundamental entre neurose e psicose. Essa diferena
consequncia de uma outra, entre o recalcamento, mecanismo linguageiro que Freud
reconheceu na base do sintoma neurtico, e a foracluso, promovida por Lacan como a
causa significante da psicose. Se o trabalho da transferncia supe a ligao libidinal com
um Outro feito objeto, no trabalho do delrio o prprio sujeito que se encarrega,
solitariamente, no do retorno do recalcado, mas dos retornos no real que o abatem. Se
no existe auto-anlise do neurtico, o delrio, por sua vez, de fato uma auto-elaborao,
da qual se manifesta de maneira evidente o que Lacan chama de eficcia do sujeito
(SOLER, 2007, p.185).
Face ao exposto, a questo trazida por Colette Soler, saber se esse trabalho da
psicose pode inserir-se no discurso analtico e, em caso afirmativo, de que modo (2007,
p.185-186). Sucede que, como gosta de insistir Jean Oury, para os que esto nessa posio
de escutar o sofrimento do psictico, seria mais preciso falar em no impedir ao invs de
facilitar (1991). assim que Lacan se reporta sobre a produo daquele que Freud s
pde conhecer por meio de seus prprios escritos: Quanto a Schreber, deixaram-no falar,
por uma boa razo, que no lhe diziam nada, e ele teve todo o tempo para nos escrever
seu grande livro (1955-1956/2008, p.145).
Encontra-se sustentada nesse posicionamento tcnico e tico a tarefa de secretariar
o delrio, isto , tomar a produo do psictico ao p da letra, alis, esta primeira
atribuio supe a segunda afirmao. Neste sistema de pensamento e proposio de
trabalho clnico inaugurado por Lacan, h uma subverso com relao ao prprio ato de
interpretar, justamente porque a interpretao uma tarefa que cabe mais ao analisante
que ao analista. A despeito da compreenso, assinala Lacan:
170
Lembremos tambm que no texto O sentido dos sintomas, Freud diz que os
sintomas sempre portam um sentido e tm uma conexo com a vida de quem os produz
(1916-17/1996, p.265). Com o discurso freudiano, o sintoma assume decisivamente uma
verso positiva e no mais negativa, como na psiquiatria de ento, de forma a ser uma
maneira do sujeito dizer algo sobre si e sobre o mundo (BIRMAN, 2006, p.13). Sabe-se
que esse dizer no est restrito palavra, mas a diferentes manifestaes. Grosso modo,
tanto em Freud quanto em Lacan, possvel observar que a questo dos sentidos dos
sintomas tem suas particularidades, tambm, a depender da estrutura clnica:
Se, nas neuroses, o sujeito constantemente se interroga a respeito dos sentidos de sua fala,
de seus sonhos, de seus sintomas, sempre guiado pela dvida e pela incerteza, nas psicoses
o que se observa uma suposio de que o sentido nasce junto com tais expresses e tem
existncia independente de sua vontade. O sistema hermtico, a linguagem em si
(FARIA, 2012, p.11).
171
[...] Digamos apenas que, ao reduzi-lo sua vontade, esse tempo consiste em fazer o
paciente esquecer que se trata apenas de palavras, mas isso no justifica que o prprio
analista o esquea (1958/1998, p.592).
172
Quinet (2006), com base neste texto freudiano, a partir da ilustrao de um caso de
sua clnica, afirma que:
Para ele [o analisante] nem as dores nem as palavras esto presas no Simblico, e por isso
que elas se equivalem. Dores e palavras so uma coisa s. Quando ele diz estou
bloqueado trata-se do Real, ele no consegue mais se mexer. No h distino entre
significante e rgo (2006, p. 85).
26
O tradutor chama a nossa ateno ao afirmar que virador de olhos a verso literal de Augenverdreher;
em portugus, seria algo similar a expresso ele virou a cabea dela (apud FREUD, 1915/2010).
173
ao simblico supe mais que uma aprendizagem da lngua; ele supe o efeito de
esvaziamento no real do ser vivo, que produz a promoo de um significante (SOLER,
2007, p. 119).
Vale sublinhar como Lacan fala deste evento:
O que o fenmeno psictico? a emergncia na realidade de uma significao enorme
que no se parece com nada e isso, na medida em que no se pode lig-la a nada, j que
ela jamais entrou no sistema da simbolizao mas que pode em certas condies, ameaar
todo o edifcio (1955-1956/2010, p. 105).
Voltando ao caso, este rapaz que havia deixado de fazer vrias coisas para
preservar os seus rgos e, portanto, diminuiu radicalmente as suas atividades cotidianas,
era afirmativo ao dizer que no lia mais nem assistia TV para no lesar o seu cristalino,
no escutava msicas para preservar o seu aparelho auditivo, dentre outras contenes
corporais cujo objetivo era nico e exclusivamente em prol da preservao de seu corpo
de modo a deix-lo com as suas funes intactas; contudo, tais contenes no eram
exatamente uma escolha, tratava-se de uma imposio, pois se no as fizesse, era convicto
que chegaria cego aos 50 anos: o dito basta ter para perder por ele levado a srio,
consistindo numa espcie de aviso, de ameaa, de destino. Em um perodo de sua vida,
estas medidas de conteno chegaram ao extremo, permanecia recluso no domiclio e l
sem poder fazer quase nada. Mesmo dizendo ter interesses diversos msica, literatura,
lnguas estrangeiras, cinema, esportes, viagens, etc. -, suas atividades se restringiram ao
tratamento; durante muito tempo, deslocava-se apenas para as consultas mdicas. Tais
sensaes corporais alm de comandar completamente os seus fazeres, por vezes,
determinavam a posio de seu corpo, interferindo em seu gestual: veludos nos dentes e
fibras de vidro em seus braos, mos e dedos fazem com que fique com a boca
entreaberta, com os membros superiores distanciados de seu tronco e os dedos das mos
tambm afastados, pois esse contato entre as partes de seu corpo poderia ser altamente
alergnico, doloroso, cortante, pois com fibra de vidro no se brinca; assim, conclui que
alergia corresponde a preconceito.
Os relatos de suas experincias de conteno merecem ser deslizados para outros
lugares, pois talvez haja uma curiosa conexo com a abordagem de Foucault na Histria
da Sexualidade: o uso dos prazereres, a despeito de uma diettica dos aphrodisias que,
por sua vez, determinavam quando era til e quando era nocivo praticar os prazeres,
174
esboando, assim, uma tendncia geral para uma economia restritiva27 (1984/2010), para
tanto, o regime fsico dos prazeres e a economia que ele impe faz parte de toda uma
arte de si (p. 175). Esta entrada sbita pelas condutas moduladas pelo uso dos prazeres
conveniente para a circunstncia desta dissertao que se props pensar as construes de
cada sujeito aqui narrado, relacionando-as ao que Foucault denominou de esttica da
existncia. Portanto, aqui no h uma pretenso de que estas associaes funcionem
orquestrando teorias que desemboquem numa relao total nem numa concluso
universal. No mais, o que a construo deste rapaz - como de outros que protagonizaram
as narrativas -, traz como possibilidade pensar que um acontecimento pode ser visto de
vrios ngulos, favorecendo muitas associaes; estas vises distintas podem ser
justapostas, desde que preserve o seu carter disjuntivo ou disruptivo.
Este rapaz tambm contava - alm das medidas de conteno corporal -, as
estratgias que foi inventando na tentativa de barrar aquilo que o invadia as palavras
ocupavam um lugar essencial. Dizia que quando transitava pelas ruas, especialmente
quando utilizava o metr, escutava msica em o seu walkman, que possibilitava barrar o
som externo, pois as palavras/frases pronunciadas nestes ambientes, como, por exemplo,
Estao Paraso, eram como sentenas. Estas frases o chicoteavam, cada palavra que
chegava at seu corpo pelo seu ouvido tinha o valor de uma chibatada. Assim como as
palavras so chicotes, elas se apresentam, ao invs de persistirem como se fossem;
diferente disso, elas so, uma vez que incidem sobre a sua pele, os seus msculos, a sua
carne.
Seus relatos levam a crer que ele vive em seu corpo esta experincia em diversas
situaes em que as palavras tm este valor real, literal. Ao relatar que determinado
fenmeno lhe ocorrera por ordenao do Sistema, diz que isto era gritante e ao
pronunciar tal descoberta a faz gritando em alto e bom tom: O Sistema existe! A
radiao efeito do Sistema!. A sua recluso tinha claramente um objetivo de
preservao, pois, considerava infindveis as frases dirigidas a ele. Por exemplo, deixou
27
De acordo com Foucault, esta dieta dos prazeres relacionava a alimentao aos exerccios, ao ato sexual,
etc. A necessidade de dar prtica sexual uma ateno vigilante no se baseava no fato de que os atos
sexuais seriam imprprios ou maus para os aphodisias, mas esta vigilncia se pautava na desconfiana que
se manifesta na idia de que muitos rgos, dentre os mais importantes, so afetados pela atividade sexual
e podem sofrer com os seus excessos (1984/2008, p. 150).
175
de assistir TV, pois as propagandas publicitrias faziam piadas com seu nome ou com
parte dele, nesse sentido, usar uma slaba ou um nome de sonoridade similar ao seu j era
suficiente. Os outdoors - numa poca em que era possvel v-los espalhados pela cidade tambm continham frases em resposta ao seu pensamento, certa vez, leu um com a
seguinte expresso: odeio o seu dio!, naquele momento, entendeu que era uma reao
dos outros ao dio que sente de grandes centros empresariais por onde circulam
executivos bem sucedidos. Costumava dizer que estas frases eram respostas que vinham
de todos os lados, at gestos de pessoas, que transitavam pela rua insinuavam algo para
ele. Tambm interrompeu a atividade de trabalho porque tudo o incitava a ser um
homossexual e, como optou por no ser, a restrio destes estmulos tornou-se uma
medida necessria.
Numa poca em que acreditava estar se sentindo melhor, decidiu fazer uma
viagem e, ao adentrar no avio, a primeira coisa que visualizou foi uma frase que dizia:
pense com a sua cabea!. Apesar de saber que se tratava de uma espcie de aviso a
todos passageiros, era tambm uma constatao que assegurava com todas as letras que,
de fato, ele possua dois crebros, sendo um biolgico e outro eletrnico e, desse modo, o
segundo comanda o primeiro. Diz que no por acaso que existe uma msica chamada
Crebro eletrnico e, assim, a letra da msica servia como prova que essa possibilidade
existe e que no se trata de coisas apenas da sua cabea. Entremeados por momentos de
angstia extrema, construir explicaes para o que se passava com ele, tornou-se algo
essencial, produzindo inclusive justificativas para a sua passividade, a sua falta de
atividade, queixas recorrentes de seus familiares aos profissionais que j o atenderam.
Essa suposta passividade explicada por ele com argumentos que apontam para a ciso
imposta pela esquizofrenia: Com dois crebros, duas mentes, fica difcil o corpo saber
qual vai obedecer.
Neste aspecto, a clnica psicanaltica toma o tratamento como efetivao da ordem
da linguagem. Algumas destas constataes acerca da psicose j haviam sido preludiadas
por Freud, como reconhecem vrios autores (GUERRA, 2010; NASIO, 2001; QUINET,
2009; SOLER, 2007) e, neste caso, necessrio identificar essa origem:
Assim, preciso entrar na definio psicanaltica da psicose, que teve incio com Freud. Ela
consiste em considerar a psicose como uma vicissitude do sujeito, na medida em que o
sujeito um efeito de linguagem. Em 1966, em sua apresentao da traduo das memrias
176
do presidente Schreber, o caso comentado por Freud em 1911, Lacan rendeu homenagem a
Freud por ele haver introduzido o sujeito na considerao da loucura, em vez de pensar essa
loucura em termos de dficit e de dissociao das funes. O ponto de partida do assunto
no ensino de Lacan, ou pelo menos, o grande ponto de partida, foi o texto intitulado De
uma questo preliminar a todo tratamento possvel da psicose. Foi nesse texto que ele
construiu sua primeira doutrina da estrutura da psicose. Essa doutrina inscreveu a psicose
em sua tese do inconsciente estruturado como uma linguagem. Ela implicou, cito, que o
estado do sujeito [neurtico ou psictico] depende do que se desenrola no Outro (SOLER,
2007, p.194).
28
Nas palavras de Roudinesco e Plon (1998), trata-se de um termo utilizado por Lacan para designar um
lugar simblico o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, ou, ainda, Deus que determina o
sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em relao com o seu desejo (p.558).
Ainda, segundo estes autores, Lacan forjou esta terminologia especfica (Outro/outro) visando distino
da determinao pelo inconsciente freudiano (Outro), do que do campo da pura dualidade (outro) no
sentido da psicologia (ROUDINESCO; PLON, 1998).
177
178
179
180
181
Nesta situao clnica, foi possvel verificar que novas formulaes e detalhes
vieram a acrescentar e incrementar o delrio deste rapaz, o que sugere que esta
organizao se deu pela construo de uma metfora delirante. Uma vez que a metfora
paterna no se efetuou, o seu advento tem como funo suprir o Nome-do-Pai,
foracludo29 do simblico (QUINET, 2009).
Este movimento psquico reconstruo, criao de um remendo de algo que no
pode ser assumido pelo sujeito, e construo de balizas imaginrias; desse modo, d para
dizer que o real avassalador foi sendo suturado pelo sentido do delrio que, por sua vez,
passou a constelar todos os seus pensamentos, sentimentos e acontecimentos. Este um
dos contextos em que Lacan emprega o termo suplncia; para designar a funo
estabilizante do delrio na psicose, assim, a foracluso do Nome-do-Pai suplementada,
mas no complementada, pelo delrio quando este atinge uma forma especfica
(DUNKER, 2002).
Com relao ao rapaz, estas mudanas no ocorreram da noite para o dia, mas em
etapas graduais, com altos e baixos. No entanto, a denominao Agente Secreto,
embora ainda pertencente ao Sistema e dele dependente, produz uma diferena sutil,
mas que inegavelmente fez toda a diferena: de submisso misso, j que todo agente
tem pelo menos uma. Esta nova nomeao aponta para uma possibilidade e um limite;
embora possuidor de todos os aparatos para ser um agente, faz questo de fazer uma
29
De acordo com Jol Dor, etimologicamente a foracluso um termo sado do corpo da terminologia
jurdica, que significa a abolio simblica de um direito que no foi exercido no prazo prescrito. Portanto,
principalmente essa ideia de uma anulao simblica que Lacan subescreve, ao utilizar o conceito de
foracluso. Trata-se, para ele, de enfatizar a abolio de um significante. Todavia, s na medida em que
essa abolio incide sobre um significante particular o significante Nome-do-Pai que ela pode
especificar a induo dos processos psicticos; ou seja, o significante que convocado a vir substituir o
significante originrio do desejo da me (2011, p. 97).
182
ressalva, ou seja, de que no precisa sequer exercer essa funo, um agente sem agir,
essa a sua lgica! Tal argumento se pauta numa constatao, pois descobriu que o
mundo repleto de mentiras combinadas - de acordo com as suas minuciosas
explicaes, supe-se que elas seriam o equivalente a convenes. Por exemplo, diz que
determinados alimentos possuem um tipo de metal na sua constituio, mas para a
populao leiga isso poderia ser muito assustador; ento os meios pelos quais as
indstrias informam a presena destes elementos atravs dos rtulos que apresentam as
descries sobre o produto - aos provveis consumidores, so simplificados, por vezes,
modificados. Tais mentiras combinadas que no se tratam de mentiras quaisquer, pois
dizem respeito a assuntos relevantes e so compartilhadas por muitos indivduos, seno
por todos de uma determinada cultura; desse modo, para ele, elas possuem uma nica
funo: o controle social.
Ora, impossvel no relacionar estas suas impresses ao falar sobre a grande
mquina que o Sistema, ao panptico, aparelho de controle de grande eficcia
porque mquina que tudo v..., contudo, inverificvel, justamente porque se trata de [...]
uma mquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel perifrico, se totalmente visto,
sem nunca ver; na torre central, v-se tudo, sem nunca ser visto (FOUCAULT,
1975/2011, p.191). Admitida a persecutoriedade no modo como passa a construir o seu
discurso, curiosamente, as suas formulaes sobre o mundo tambm revelam razovel
compatibilidade s sociedades de controle. Se seu delrio de cunho paranico foi
organizador para as sensaes invasivas, como se tambm ele cumprisse discretamente
uma outra funo, ou seja, a de denunciar a existncia do controle que, por vezes,
banalizamos ou desconsideramos e que, contudo, incide sobre todos ns. assim que
Deleuze escreve no Post-scriptum sobre as sociedades de controle30:
fcil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de mquina, no porque as
mquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de
lhes darem nascimento e utiliz-las. As antigas sociedades de soberania manejavam
mquinas simples, alavancas, roldanas relgios; mas as sociedades disciplinares recentes
30
Neste texto, Deleuze formula uma hiptese de que as sociedades de controle esto substituindo as
sociedades disciplinares. Curiosamente esta sua hiptese possui uma ntima relao com a tese
foucaultiana do biopoder e da biopoltica. Em suma, ele evidencia que esta nova disposio social diz
respeito crise generalizada de todos os meios de confinamento em que a setorizao, os hospitais-dias, o
atendimento em domiclio puderam marcar de incio novas liberdades que rivalizam com os mais duros
confinamentos (DELEUZE, 1990, p.1).
183
184
31
Freud em seu texto A significao antittica das palavras primitivas, expe que, em contato com o
trabalho do fillogo Karl Abel, publicado em 1884, possibilitou verificar que o comportamento do trabalho
do sonho idntico a uma particularidade das lnguas mais antigas que conhecemos referindo-se
egpcia. Atualmente na lngua egpcia, esta relquia nica de um mundo primitivo, h um bom nmero de
palavras com duas significaes, uma das quais o oposto exato da outra. Suponhamos, se que se pode
imaginar um exemplo to evidente de absurdo, que em alemo a palavra forte signifique ao mesmo tempo
forte e fraco; que em Berlim o substantivo luz se use para significar ao mesmo tempo luz e
escurido; que um cidado de Munique chame cerveja de cerveja, enquanto outro use a mesma palavra
para falar de gua: nisto que importaria o surpreendente costume usado regularmente pelos antigos
egpcios em sua linguagem (ABEL apud FREUD, 1924/1970, p. 142). Ao constatar que a significao
antittica das palavras so evidenciadas nas razes mais antigas em que, ao mesmo tempo, um vocbulo
designa uma coisa e o seu oposto, Freud retoma a questo formulada por Abel, por que os egpcios
permitiram uma linguagem to contraditria?. A sua hiptese que nossos conceitos devem sua existncia
a comparaes. De vez que o conceito de fora no se podia formar exceto como um contrrio de fraqueza,
a palavra designando forte continha uma lembrana simultnea de fraco, como coisa por meio da qual
ele ganhou existncia. Na realidade, esta palavra no designava nem forte nem fraco, mas a relao e
diferena entre os dois, que criou a ambos igualmente. O homem no foi de fato capaz de adquirir seus
conceitos mais antigos e mais simples a no ser como os contrrios dos contrrios, e s gradativamente
aprendeu a separar os dois lados de uma anttese e a pensar em um deles sem a comparao consciente com
os outros (ABEL apud FREUD, 1924/1970, p.143). Neste mesmo texto, Freud chama a ateno ao afirmar
que: [...] no podemos escapar suspeita de que melhor entenderamos e traduziramos a lngua dos
sonhos se soubssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem (1924/1970, p.146). Mesmo quando
no se trata de uma interpretao dos sonhos, a linguagem deve ser tomada com grande investimento, de
modo que, a escuta na clnica no se furtasse de ser minuciosa, aguda e, em certa medida, refinada.
Podemos tomar a afirmao de Freud em suas conferncias de 1915 - ao falar do trabalho do psicoterapeuta
- de que no depreciaremos o uso das palavras... como algo que ele procurou transmitir em vrios outros
textos de sua obra?
185
seria extensivo a se matar, e tais tentativas param de ser atuadas, cessam. No toa que
diz: no sou mais um suicida, agora, quando penso em morrer, penso em eutansia, tal
mudana sugere que, por ora, tem recusado a incumbncia desta tarefa e, clinicamente,
no se trata de uma mudana qualquer, mas algo a ser bastante considerado.
A questo da literalidade tambm aqui se denota mais uma vez ao falar de uma
msica que muito aprecia por ser difcil de ser cantada. Difcil por dois motivos: para
achar o ritmo e a entonao adequados, permitindo cant-la sem tropear nas palavras e
pelo assunto que ela evoca. So estes os versos que ele enfrenta como um enorme desafio:
Tome, Dr., essa tesoura, e... corte
Minha singularssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu corao, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Tambm nas diatomceas da lagoa
A criptgama cpsula se esbroa
Ao contacto de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma clula cada
Na aberrao de um vulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perptuas grades
Do ltimo verso que eu fizer no mundo!
(Budismo moderno, Augusto dos Anjos/Arnaldo Antunes)
186
alguma eficcia frente ameaa de dilacerao que se apresenta como uma constncia
para ele.
Para efeito de retomada, na psicose no h disjuno entre significante e rgo.
Por utilizar a lngua do rgo (termo freudiano), o significante no se liga ao significado,
a consequncia disso que palavras e coisas se equivalem; da poder dizer que para o
psictico o corpo recortado pelo significante. O que parece ser interessante ressaltar
que na psicose h uma questo relativa dificuldade de um discurso que figurativamente
simbolize as coisas representadas e, assim, as palavras assumem um estatuto real. o que
ressalta Moustapha Safouan:
Para Schreber, os nervos so nervos, os vestbulos do cu so os vestbulos do cu etc.
Quando Freud traduz os pssaros do cu por moas ele o faz a fim de reconstruir o
drama subjetivo de Schreber, mas sem nenhuma pretenso de extrair uma significao que
lhe seria restituvel (1991, p.231).
Sucede que no caso desse jovem houve uma produo incessante; com que incidia
em demasia em seu corpo, ele pde fazer teoria, fazer lngua, fazer texto. Habitualmente
referia-se articulao entre duas lnguas que produz uma terceira, o que o aproxima das
construes de Schreber que tambm no ignorou o uso particular que fez da linguagem
quando considerava suas expresses pertencentes a uma outra lngua, a lngua
fundamental (Grundsprache): um alemo um tanto arcaico, mas ainda vigoroso [...]
(apud LACAN, 1955-1956/1998, p. 544) e que diz respeito ao seu reconhecimento de
uma lngua falada pelo prprio Deus (Schreber, 1903/1995, p.37).
187
Ainda, com relao inveno de uma lngua, acompanhamos com James Joyce
em Finnegans Wake uma reinveno de certas estruturas lingusticas a partir da lngua
materna, o que traz como consequncia a dificuldade e at a impossibilidade de traduzir
sua obra, tal como ocorre com a traduo do texto schreberiano. Haroldo de Campos
tambm comenta algumas invenes lingusticas de Lacan, como o caso, da expresso
alngua:
188
Por outro lado, com Barthes, aprendemos que h uma escrita que acontece com a
repetio, algo da ordem pulsional, que nunca vai ser inscrito no corpo e que por isso
mesmo insiste em repetir. Nas linhas de seus escritos em O prazer do texto, ele insinua a
articulao do corpo e da lngua:
Parece que os eruditos rabes, falando do texto, empregam esta expresso admirvel: o
corpo certo. Que corpo? Temos muitos; o corpo dos anatomistas e dos fisiologistas; aquele
189
que a cincia v ou de que fala: o texto dos gramticos, dos crticos, dos comentadores,
fillogos ( o fenotexto). Mas ns temos tambm um corpo de fruio feito unicamente de
relaes erticas, sem qualquer relao com o primeiro: um outro corte, uma outra
nomeao; do mesmo modo o texto: ele no seno a lista aberta dos jogos de linguagem
(esses fogos vivos, intermitentes, esses traos vagabundos dispostos no texto como
sementes e que substituem vantajosamente para ns as seminas aeternitatis, os zopyra, as
noes comuns, as assunes fundamentais da antiga filosofia). O texto tem uma forma
humana, uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo ertico.
O prazer do texto seria irredutvel a seu funcionamento gramatical (fenotextual), como o
prazer do corpo irredutvel necessidade fisiolgica. O prazer do texto esse momento
em que o meu corpo vai seguir suas prprias idias pois meu corpo no tem as mesmas
idias que eu (2010, p. 23-24).
32
190
O rapaz que se descobriu agente secreto, tambm descobriu a escrita, por outra
via. Ao compor letras de msica ou mesmo quando altera as letras j existentes, fazendo
uma espcie de correo, passa a usufruir desta lngua somente sua. Tambm quando
arriscava tocar suas msicas no violo ou no teclado, dizia fazer previses
meteorolgicas incrveis. Por outro lado, tambm era convicto de que algumas bandas
famosas introduziam o seu nome no meio das letras de suas canes - bastava a palavra
ter uma sonoridade semelhante ao seu nome para que evidenciasse tal fato - ; sentia-se
prestigiado, uma espcie de reconhecimento de seu trabalho pelos artistas. Em uma de
suas canes, o grupo The Beatles faz referncia ao seu nome, designando-o superstar,
elogio que o leva a crer que um lder da comunidade tecnolgica.
Se as escritas de Bispo no foram com lpis e sim com linha e agulha, quer dizer,
se o suporte utilizado por ele no fora papel, mas principalmente pans, provavelmente
tinha uma intencionalidade nas escolhas destes materiais, algo a que no temos acesso.
Entretanto, em contato com o conjunto de suas produes, constatamos que ele fez com
que cada letra bordada ganhasse relevo no tecido, transformasse em matria.
Curiosamente, o seu gesto, aponta, mesmo sem querer, para a etimologia da palavra, j
que como diz Barthes:
Texto quer dizer tecido; mas enquanto at aqui esse tecido foi sempre tomado por um
produto, por um vu todo acabado, por trs do qual se mantm, mais ou menos oculto, o
sentido (a verdade), nos acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz,
se trabalha atravs de um entrelaamento perptuo, perdido neste tecido nesta textura o
sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secrees
construtivas de sua teia. Se gostssemos dos neologismos, poderamos definir a teoria do
texto como uma hifologia (hyphos o tecido e a teia de aranha) (2010, p. 74-75).
191
As virgens vem
Em cardume
A mim33
33
192
superstar, homem de Deus - esto permeadas pela atribuio flica. Para Lacan, na
psicose seria preciso extrair do campo do Outro o gozo excessivo que invade o sujeito e,
nesse sentido, a soluo, enquanto trabalho de estabilizao na psicose, poderia se valer
de diferentes expedientes, isolados ou conjugados, tais como ato, obra, metfora delirante,
identificao, transferncia (GUERRA, 2010, p.67).
Ainda nesta trilha, mesmo no precisando agir, o rapaz tem experimentado,
frequentemente, emitir conselhos aos outros: afinal, aconselhar , pela transmisso da
palavra a um semelhante, um modo de fazer um bem, importante para os heris ou para
os que se dizem religiosos. Lembremos que, como assinalado por Freud, o juizpresidente Schreber fora, nos tempos saudveis, um ctico em coisas de religio (2010,
p. 33), tambm o rapaz declara que, na maior parte de sua vida, foi socialista e ateu,
nunca deu importncia f religiosa. Posteriormente, essa possibilidade de lao social
realizado com a comunidade catlica permite que os seus endereamentos de textos que
prescrevem, como um doutor o doutor-doente-, receitas e passe a ordenar, por sua
vez, fazeres. Apesar de se dizer catlico apostlico romano, na situao clnica,
atravessada pela transferncia que, com estas palavras, aconselha-me:
No fale de Deus s crianas, no antecipe infncia este ser que tudo sabe e
que tudo v.
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194
34
leo, verniz, folha de chumbo, fio de chumbo e p sobre dois painis de vidro montados em molduras de
alumnio, madeira e ao.
35
Raymond Roussel (1877-1933), poeta e ator, um dos precursores do surrealismo.
195
ressoa com o trabalho dos sonhos36 introduzido por Freud, quando refere que o aspecto
pictrico inerente ao sonho esconde a sua verdadeira estruturao de rbus, quer dizer, de
quebra-cabeas feito de figuras, no qual as imagens tm valor de significante (JORGE,
2011).
H muito o que falar deste trabalho de Duchamp, ele repercute em infinitas
relaes, em particular com o campo da psicanlise, cuja aproximao recorrente nas
produes que exploram a grandiloquncia desta composio plstica. com esta
aproximao que o desfecho desta pesquisa vai fazer-se e, nestas ltimas pginas, atar
alguns dos fios diversos e dispersos da escrita.
O extenso ttulo enigmtico que d nome obra A noiva despida pelos seus
celibatrios, mesmo pode simplesmente ser designado como O grande vidro; dizem
que est na fronteira da modernidade que agoniza e o novo que comea e ainda no tem
forma (PAZ, 2008, p.51) Em seu comentrio sobre este ttulo, Octavio Paz escreve que:
Em primeiro lugar mise nu no quer dizer exatamente despida ou desvestida; uma
expresso muito mais energtica do que nosso particpio: posta a nu, ex-posta. Impossvel
no associ-la com um ato pblico ou um rito: o teatro (mise-en-scne), a execuo capital
(mise morte). Usar a palavra solteiro (clibataire) em lugar da que pareceria normal,
noivo ou pretendente, indica uma separao infranquevel entre o feminino e o masculino:
o solteiro no nem sequer pretendente e a noiva no ser nunca desposada. O plural de
solteiro e o possessivo seus acentua a inferioridade dos machos: mais do que a poliandria
fazem pensar em um rebanho. O advrbio mme ainda, tambm, inclusive, at, etc.
sublinha a ao e converte-a em uma verdadeira exposio, no sentido litrgico e tambm
no mundano. No ttulo j esto presentes todos os elementos da obra: o mtico ou religioso,
o popular de barraca ou tenda de feira, o ertico ou pseudotcnico ou irnico (2008, p.3132).
36
A noo trabalho do sonho, introduzida por Freud, refere-se ao trabalho, efetuado no inconsciente, de
transformao do contedo latente em contedo manifesto; cujas leis sintticas foram isoladas por ele no
trabalho de condensao e de deslocamento (Jorge, 2011).
196
37
Como lembram Roudinesco e Plon (1998), alm das fezes e do seio, Lacan introduziu dois novos objetos
pulsionais: a voz e o olhar.
197
a ter uma primazia radical na funo das trocas sexuais. Assim, ele afirma que a pulso
para Lacan , essencialmente escpica, j que caracterstico da pulso insatisfazer-se.
Lacan deu grande nfase a essa indicao freudiana afirmando que na satisfao da pulso
entra em jogo a categoria do impossvel e que precisamente nesse impossvel, o real em
jogo na pulso, que reside sua caracterstica mais primordial (JORGE, 2011, p.55).
198
199
200
o ponto cego da possibilidade de cada uma e de sua excluso mtua (FOUCAULT, 1999, p.
197).
Apesar de, em certos momentos, a dissertao ter uma forte conotao do domnio
das artes, evidenciando narrativas que se estenderam pelas trajetrias de alguns artistas,
por vezes detalhadas, de modo a situ-los no campo das artes da modernidade e
contempornea, este trabalho tambm fala de clnica. Alis, , sobretudo, da clnica que
ele procurou falar. Se Freud, no incio do sculo passado, j chamou a ateno para a
esttica, constatando que no era o foco dos clnicos de sua poca, tambm mostrou
vivamente o seu interesse pelas artes - a arte da tradio e a literatura - que atravessaram
sobremaneira a sua criao terica e cientfica. Alm disso, curiosamente, a escuta, seu
mtodo de trabalho psicanaltico, supe que h, para o clnico, uma dimenso de
apreciao esttica do que dizem aqueles que, naquela situao, so seus pacientes. Seria
um modo de acolh-los em algum momento deste percurso de ser inventado, hora aps
hora, e no ficar pronta a nossa edio convincente (DRUMMOND apud LIMA, 2009,
p. 227).
Espera-se que, ao aproximar-se do fim da escrita desta dissertao, seja alcanvel
a percepo de que a dimenso clnica est espalhada em cada linha deste texto, visto que
a engenhosa forma de viver, daqueles que visitaram suas pginas em cada um dos casos
201
perguntas: o que apresentar e como, o que velar, o que valorizar, como relatar sem
produzir caricaturas, como relacionar as narrativas aos conceitos, dentre outras
indagaes agudas e necessrias.
Para tanto, o resultado do esforo desta pesquisa para que no ocorresse
desmembrada da clnica aponta para alguns efeitos, dos quais se destaca que o trabalho
clnico conduz-se como uma maquinaria. Em um de seus seminrios Lacan refere:
No pensem que eu estou brincando. Quando vocs constroem uma fbrica em algum lugar,
naturalmente recolhem energia, e podem mesmo acumul-la. Pois bem os aparelhos que se
pe em ao para que essas espcies de turbinas funcionem at que se possa meter a energia
em recipientes, tais aparelhos so fabricados com a mesma lgica de que eu estou falando,
ou seja, a funo do significante. Hoje em dia uma mquina no tem nada a ver com uma
ferramenta. No h qualquer genealogia da p turbina. A prova disso que vocs podem
legitimamente chamar de mquina um desenhinho que fizeram neste papel. Com quase
nada suficiente. Basta simplesmente que tenham uma tinta que seja condutora para que
isso seja uma mquina muito eficaz. E por isso no haveria de ser condutora, dado que a
marca j em si mesma, condutora de voluptuosidade? (1992, p.50-51).
202
qualquer encontro. Encontram-se pessoas (e s vezes sem as conhecer nem jamais t-las
visto), mas tambm movimentos, ideias, acontecimentos, entidades (DELEUZE; PARNET,
1998, p. 2).
Enfim, Marcel Duchamp fez texto com o seu vidro A Noiva e os seus
Celibatrios, mesmo - obra considerada inacabada porque em perptuo acabamento tambm fez uma mquina; alis, com esta expresso que ele a define. Se esta
dissertao quis expressar-se aludindo atmosfera dadasta e surrealista que insiste na
arte no apartada da vida, conforme a promessa da introduo, favorvel termin-la,
mesmo que provisoriamente, na companhia deste que elegeu o gesto como o
desencadeador das operaes artsticas, que [...] em vez de pintar corpos radiantes e
perecveis, pintou mquinas opacas e rangentes (PAZ, 2008, p. 46).
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