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Biehl, A Vida Cotidiana Das Palavras PDF

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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n.

140, outubro 2005


EDITORIAL
A
o batizar a psicanlise de talking cure, Anna O. indicava que a cura de
seus sintomas estava fundada na narrativa que fazia de sua histria. A
partir dessa experincia inaugural, Freud pde decifrar a trama discursiva
que estrutura as diversas formaes do inconsciente. Nossos sintomas, so-
nhos, lapsos, esquecimentos e lembranas carregam consigo uma possibili-
dade narrativa, que pode ser atualizada a partir do trabalho que acontece em
uma anlise.
Como afirma Lacan, em uma psicanlise trata-se mais de re-escrever
a prpria histria do que record-la. O trabalho viabilizado pela transferncia
torna possvel uma nova condio narrativa, a qual permite que um sujeito
possa deslocar o eixo desde o qual conta sua histria e fala de seu destino.
Este nmero do Correio est articulado em torno do eixo temtico da
APPOA neste ano: narrativas em psicanlise. Esta questo foi abordada em
nossa Jornada de Abertura, Inventar-se em anlise, passou pela discusso
do texto Construes em Anlise, no Relendo Freud, e tambm esteve
presente em outras edies do Correio deste ano. O ms de outubro inicia
com a Jornada Clnica da APPOA, que tem como tema Narrativa e destino
na clnica psicanaltica. Os textos que reunimos neste Correio trazem uma
srie de elementos para o debate em torno dessa questo.
A clnica: tema to caro aos psicanalistas. O que se passa ali? Que
experincia impar essa, de uma anlise? Falar, falar, falar, sobretudo, falar.
Mas no uma fala vazia e assptica, dos modelos publicitrios ou cientficos,
como nos lembra Jaime Betts em seu texto. Tampouco uma fala sem histria,
desenraizada. A narrativa em anlise no literria, e certamente no seria um
romance, como indica Lcia Pereira. O romance feito para ser lido s; no h
compartilhamento de uma experincia singular e nica. Isto que se passa em
uma anlise e que implica sempre a transferncia, esse particular endereo
propriedade de uma Narrativa, tal como Benjamin a define.
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EDITORIAL
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NOTCIAS
Do endereo ao destino; no , no entanto, preciso ser psicanalista
para ser tocado por essa intrnseca amarragem. Joo Guilherme Biehl nos
conta com grande sensibilidade a histria de algum que (quase) virou nin-
gum. A possibilidade de uma escuta se d a partir da suposio de que s
h destino, construo de um futuro, onde h sujeito. Sujeito do desejo, bem
entendido, este eterno no realizado. a escuta desse sujeito que carac-
teriza o trabalho do psicanalista, o qual Juliana Castro, em seu texto, com-
para ao trabalho de um tradutor.
Essas proposies de trabalho, avanadas pelos textos que com-
pem a sesso temtica deste Correio, tero, certamente, muitos desdobra-
mentos em nossas Jornadas.
PODE-SE CONTAR ANALITICAMENTE
UMA CURA QUE SE PRODUZIU?
SOBRE A CONFERNCIA DE JEAN JACQUES RASSIAL
No final do ms de agosto, estivemos reunidos, na sede da APPOA,
para ouvir as contribuies de Rassial ao tema que temos nos dedicado
nesse ano de trabalho, especificamente no que diz respeito s possibilida-
des narrativas da clnica.
Partindo da pergunta que coloca como eixo de sua conferncia, sobre
qual possibilidade de se contar uma cura analtica, Rassial nos conduz a
caminhos inesperados, questionando a posio do analista enquanto
racionalidade no relato de um caso clnico. De qu, afinal, poderia se tratar
esse relato no a posteriori de uma anlise? Diria respeito ao sujeito em
anlise, ao analisando, ou a uma certa heurstica do autor do relato, o analis-
ta? Ou ainda, qual subjetividade estaria em jogo?
Segundo Rassial, nos relatos de Freud, aparece mais a lgica freudiana
do que propriamente algo que diga das pessoas que transitaram por seu
div. J no relato de Lacan (refere o caso Aim, em que sua posio a de
psiquiatra), se trataria da presena de sua prpria letra na cura.
Tomando como referncia o texto de Leclaire, Mata-se uma criana,
Rassial avana na proposta de que o relato de um caso possa se escrever, nem
sobre a subjetividade do analista, nem sobre a do analisando, mas a partir de
um testemunho em que a deposio, o de-ser do analista est como condio.
Rassial transita tambm sobre uma certa anlise das razes que
fazem com que a maioria dos relatos de cura sejam to ruins. Nesse
sentido trabalha trs pontos onde o relato poderia fazer obstculo: a trans-
ferncia, a interpretao e o fim de anlise. Desenvolvendo esses pontos,
me pareceu especialmente interessante o que prope como uma posio
possvel na escuta analtica de uma superviso, ou seja, ouvir o caso como
se tratasse de um sonho, o sonho do analista em superviso.
Tecendo relaes entre histria e esquecimento, Rassial afirma que
de uma anlise possvel resgatar muito pouco: algumas palavras, alguma
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NOTCIAS NOTCIAS
lembrana, um estilo... Sendo a escrita de uma cura uma espcie de ensaio,
em que no possvel distinguir o que vem do paciente do que vem do analista.
Enfim, Rassial nos prope inmeras questes muito frteis, nos con-
vidando de forma muito estimulante a seguir trabalhando.
Fernanda Breda
NCLEO DE PSICANLISE DE CRIANAS
Nos dias 27 de agosto e 10 de setembro, estivemos reunidos para o
trabalho do ncleo de psicanlise de crianas. Iniciativa que vem ao encontro
do interesse daqueles que trabalham com esta clnica e constantemente
colocam-se diante de impasses. A possibilidade de compartilhar questes
com colegas produz deslocamentos e aberturas nossa escuta, sendo que
um espao como o do ncleo possibilita rever nossa clnica e nos lana
novos desafios frente s diferentes problematizaes levantadas pelas diver-
sas experincias dos colegas.
Para nos aquecer nesse incio, discutimos, no dia 27, o texto de Sndor
Ferenczi Confuso de lngua entre os adultos e as crianas. um texto
histrico que situa uma srie de pontos cruciais na clnica com crianas,
aponta para a tica da psicanlise e conseqentemente para a delicadeza
das questes transferenciais no trabalho com as crianas, o que inclui seus
pais, a escola, etc. Salienta a importncia do analista admitir que a resistn-
cia ao tratamento sua, dizendo que uma das conseqncias de no admitir
suas limitaes ao escutar, o fracasso da anlise.
No dia 10 de setembro, em funo das discusses que o texto de
Ferenczi suscitou, discutimos dois textos de Patrick De Neuter, que amplia-
ram o debate: Pai Real, incesto e devir sexual da menina do livro O sujeito,
o real do corpo e o casal parental e o texto O Pai Real e a sexualidade do
filho do livro Neurose infantil versus neurose da criana, ambos da coleo
Psicanlise de Crianas da editora galma. Entre outros pontos discutiu-se
o lugar do pai atualmente e a relao Lei/realidade, ou seja, que necessida-
de tem a presena do pai da realidade para a instaurao da Lei? Questo
que nos leva a percorrer outros pontos da teoria psicanaltica. Temos muito
trabalho e um instigante espao de discusso e troca de experincias.
O ncleo de psicanlise de crianas da APPOA se prope como um
espao sistemtico para o desdobramento de interrogaes, a partir do es-
tudo e discusso das especificidades levantadas pelo trabalho psicanaltico
com a infncia. As reunies so abertas e acontecem com freqncia men-
sal, no segundo sbado do ms, das 10:00 s 12:00. O prximo encontro
ser no dia 08 de outubro, quando teremos a presena de Diana e Mrio
Corso, falando sobre seu novo livro: As Fadas no Div, da editora Arte-Med,
com lanamento em 26 de setembro. Os textos encontram-se disposio
na Secretaria da APPOA. At l.
Inajara Erthal Amaral
FEIRA DO LIVRO
A APPOA estar presente na Feira do Livro deste ano, conforme a
seguinte programao:
DIA 2/11 QUARTA-FEIRA
18h30min Lanamento e sesso de autgrfos do livro Masculinida-
de em crise, org. APPOA, com a presena de Alfredo Jerusalinsky, Ana Cos-
ta, Roseli Cabistani e demais autores.
Local: Pavilho de autgrafos
19 horas Mesa-redonda As histrias que nos contam um olhar
psicanaltico.
Participantes: Miriam Chnaiderman (Psicanalista/SP), Maria do Carmo
Campos (Letras/UFGRS), Carmen Backes (Psicanalista/ APPOA).
Coordenao de Robson Pereira (Psicanalista/APPOA)
Local: Santander Cultural
20h30min Lanamento e sesso de autgrafos do livro Narrativas
de Brasil, org. APPOA, com a presena de Miriam Chnaiderman, Maria do
Carmo Campos, Carmen Backes, Robson Pereira e demais autores.
Local: Pavilho de autgrafos
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NOTCIAS NOTCIAS
NOVIDADES DA BIBLIOTECA/OUTUBRO 2005
com satisfao que divulgamos as novidades da biblioteca no Cor-
reio da APPOA. Lembramos que esse mesmo informativo tambm enviado
por e-mail.
Nesse ms, recebemos a doao de livros e, tambm, atravs da
permuta com outras instituies, alguns ttulos de peridicos.
Agradecemos todas as doaes recebidas e lembramos que as doa-
es so sempre bem-vindas e ajudam a atualizar nosso acervo.
Visite a biblioteca, ela se encontra sempre a sua disposio!!
LIVROS:
1. Biehl, Joo. Vita : life in a zone of social abandonment. Berkeley:
University of california press, 2005.
2. Viero, Emlia ; Betts, Jaime ; Fleck, Lenira Balbueno. Sob o vu
transparente: recortes do processo criativo com Claudia Stern. Porto Alegre:
Territrio das Artes, 205.
3. Allouch, Jean. Parania: Marguerite ou A Aime de Lacan. Rio
de Janeiro: Companhia de Freud, 1977.
PERIDICOS:
1. Primeira Impresso. So Leopoldo, RS: Unissinos, n.23, jul./
2005. 114 p. real.
2. Estilos da Clnica. So Paulo: USP, v.10, n.18, jun./2005. 145
p. Dossi: intervenes no escolar.
3. Percurso: revista de psicanlise. So Paulo: Sedes Sapientiae,
v.15, n.34, jun./2005. 169 p.
PSICANLISE E VIDA COTIDIANA
UM SARAU PARA CURIOSOS, XERETAS E DESAVISADOS
Tema: amor.com/sexo.com
Convidados: Nei Lisboa, Giba Assis Brasil, Diana Corso
Mediador: Mario Corso
Data: 07/10 (sexta-feira)
Horrio: 19h.
Local: Sede da APPOA Rua Faria Santos, 258 Petrpolis
Valor: R$ 5,00
Informaes: Secretaria da APPOA F: 33332140
Coordenadores do evento: Eduardo Mendes Ribeiro, Mariane Mendes
Ribeiro, Maria Cristina Poli e Simone Rickes.
SEMINRIO:O DIV E A TELA

Filme: Crepsculo dos Deuses (Sunset Boulevard)


dirigido por Billy Wilder
Data: 19 de outubro, quarta-feira s19h30min
Local: Sede da APPOA
Coord: Enas de Souza e Robson Pereira

O prximo Odiv e a tela traz para a discusso um clssico do


cinema: Crepsculo dos Deuses - uma histria de Hollywood, dirigido por Billy
Wilder e interpretado por William Holden, Gloria Swanson e Erich von Stroheim.
O olhar crtico de um dos maiores mestres do cinema moderno sobre a mqui-
na Hollywood e os efeitos sobre seus artistas, antecipa em vrios anos as
concepes sobre a sociedade do espetculo e a subjetividade atual.
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NOTCIAS
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SEO TEMTICA
NOTAS DE LEI TURA O NARRADOR DE W. BENJ AMIN
POR QUE ISSO INTERESSARIA A UM PSICANALISTA?
Lucia Serrano Pereira

O
narrador consideraes sobre a obra de Nicolai Leskov um texto
de 1936, um dos mais importantes da obra de Walter Benjamin. Se
este tema, o da narrao, sempre retomado ao longo de sua obra
no sem razo. sob o significante da narrativa e da narrao que Benjamin
faz passar as grandes questes de seu tempo. Concentra em si, de maneira
exemplar, os paradoxos de nossa modernidade, aponta Jeanne M.
Gagnebin,(1994).
No mbito da psicanlise, trabalhar o narrador benjaminiano pode
ser uma oportunidade fecunda de pr em questo, no contato com um estilo
e uma elaborao extremamente interessantes, aquilo que no pra de nos
ocupar: o campo do sujeito e o campo do Outro.
Poderamos apontar pelo menos trs grandes vertentes de trabalho
que o texto permite e prope interrogar:
a questo da enunciao desde onde se fala na relao passa-
gem que envolve a modernidade;
de onde esta fala se autoriza discusso do lugar da tradio, da
autoridade, dos lugares transferenciais;
a produo na cultura a arte, o novo, o ato, as inscries dos
produtos culturais e seus lugares (associada ao texto sobre a reprodutibilidade
tcnica da obra de arte, onde trata do declnio da aura dos objetos na
modernidade).
Vamos escolher um caminho pontual, alguns elementos do texto (o
narrador desenvolvido em 19 partes) que possam funcionar talvez como
disparadores, notas de leitura, indicaes.
Mas primeiro, vale a pena situar, Benjamin vai ligar o termo do narrador a
um autor russo do sculo XIX relativamente desconhecido para ns, Nicolai
Leskov.
Eda Tavares informa o novo telefone residencial: (51) 3061-2249 e e-
mail: edatavares@uol.com.br
Carla Cumiotto informa o novo endereo residencial: Rua Richard Holetz,
30 - Bairro Bom Retiro - Blumenau - SC, telefone do consultrio: (47) 3035-
3987, telefone celular: (47) 8822-0997 e e-mail: carlacumiotto@yahoo.com.br
MUDANA DE ENDEREO
CICLO DE DEBATES
MACHADO DE ASSIS NA CULTURA
PSICANLISE & LITERATURA
Dia: 27 de outubro (quinta-feira)
Hora: 20h
Local: Livraria Cultura (Bourbon Shopping Country Av. Tlio de Rose, 80
Loja 302)
Realizao: Associao Psicanaltica de Porto Alegre (APPOA), Livraria
Cultura e Ps-Graduao em Letras da UFRGS
Entrada Franca
A psicanalista Ana Costa e o professor de literatura Flavio Loureiro
Chaves so os palestrantes deste encontro do ciclo de debates Machado de
Assis na Cultura Psicanlise & Literatura. Encerrando o ciclo deste ano,
Ana Costa far suas observaes a partir do romance Esa e Jac. O
professor Flvio Chaves, por sua vez, discorrer sobre tema que ele intitulou:
Machado de Assis: as duas pontas da vida.
O ciclo de debates Machado de Assis na Cultura Psicanlise &
Literatura uma realizao da APPOA, do Ps- Graduao em Letras da
UFRGS e da Livraria Cultura. Oferece aos leitores e especialmente aos aman-
tes da obra de Machado de Assis a oportunidade de participar de debates a
partir da produo do escritor: contos, ensaios, romances e poesia.
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SEO TEMTICA
Leskov o escritor da Rssia antiga, dos contos ligados s narrativas
orais em circulao. Ele viajava pela Rssia reunindo documentos, lendas,
coisas estranhas contadas na linguagem popular.Trabalhava os jogos de pala-
vras que reproduzem os erros de linguagem do povo, o estilo de um humor
extraordinrio, cheio de expresses, trocadilhos, invenes. A crtica contem-
pornea o descobre h pouco tempo, relativamente aos outros escritores rus-
sos de sua poca. Sua narrativa , muitas vezes, irnica, como na novela A
pulga de ao, onde os russos e os ingleses se corroem na rivalidade os
ingleses vendem aos russos uma pulga de ao, tamanho natural, quase imper-
ceptvel. Dando corda na pulguinha, ela dana a quadrilha. Os russos humilha-
dos e ao mesmo tempo maravilhados com o domnio da engenharia dos ingle-
ses (que por sinal cobram uma fortuna no tanto pela pulga, mas pelo estojo
para carreg-la sem perd-la) convocam seus melhores artesos, os ourives de
Tula, que trabalham e reapresentam a pulga modificada: no dana mais. Que
aconteceu? Os artesos inacreditavelmente haviam conseguido colocar uma
ferradura mais do que microscpica em cada patinha da pulga e ainda por
cima a assinatura do artista em cada ferradura. Vitria, sinal da superioridade
total dos ourives russos sobre a tecnologia inglesa (estrangeiro x nacional,
tecnologia x artesanal).
Leskov passa tambm pelo trgico, pelo religioso, pela tenso dra-
mtica s vezes alucinada Lady Macbeth de Mzsensk, Apenas um
retrato de mulher, O anjo lacrado e outras novelas e contos. Segundo Otto
Maria Carpeaux, Leskov um clssico russo da maior importncia, altura
de Tolstoi, Tchecov e Dostoievski.
Benjamin escolhe ento Leskov para nos dizer que o narrador, por
mais familiar que nos seja este nome, est longe de ser inteiramente presen-
te, entre ns, em sua atividade viva (1994, p.197). Assim inicia o texto, e
essa vai ser sua linha de sustentao. A figura do narrador se distancia cada
vez mais nos tempos modernos. A experincia cotidiana permite pensar que
a arte de narrar est em extino, nos faz falta a faculdade de intercambiar
experincia, o que antes parecia assegurado. No texto Experincia e pobre-
za (1933), Benjamin formula uma questo: Qual o valor de todo nosso
patrimnio cultural se a experincia no mais o vincula a ns? O ps-guerra
do incio do sc. XX produzia uma gerao no mais rica em histrias para
contar, mas uma gerao confrontada com o desamparo. Os combatentes
voltavam silenciosos dos campos de batalha, mais pobres em experincia
e narrao (os mesmos que Freud recebe e que possibilitaro as hipteses
sobre o trauma base para seu Alm do princpio do prazer).
A experincia transmitida oralmente a fonte na qual beberam os
narradores. Dois estilos de origem so apontados por Benjamin na proposi-
o de uma linhagem dos narradores: Quem viaja tem muito o que contar.
A narrativa que trazia os lugares distantes na figura do marinheiro; e a narra-
tiva de quem nunca saiu de sua terra mas que participa do elo das geraes,
suas histrias e tradies: o campons. O marinheiro e o campons so
situados como os primeiros mestres da narrativa. A tradio da Idade Mdia,
com o sistema corporativo, participa tambm dessa distribuio nas figuras
dos mestres sedentrios e aprendizes migrantes.
Algo que vale a pena remarcar o fato de que esse saber, essa auto-
ridade que se decanta da experincia do narrador de um lado de geraes
que se perdem de vista na articulao temporal e, de outro, de terras distan-
tes que tambm tm seus limites espacialmente difusos. Ou seja, h um
insondvel em jogo que nos permite pensar nas formas pelas quais o campo
do Outro se apresenta na relao com a narrativa e com o saber. A autorida-
de que o saber comporta nestes contextos tem relao com a Erfahrung, a
experincia que traz em seu radical fahr, travessia, viagem. O saber, que
vinha de longe, portava uma autoridade vlida mesmo que no fosse contro-
lvel pela experincia ( diferena da informao, que aspira a uma verifica-
o imediata). O narrador retira da experincia sua/dos outros o que conta, e
transmite incluindo o narrado na experincia de seus ouvintes. O narrador
marca singularmente a fala, mas a partir de falas que lhe vm de lugares
outros. O ouvinte no est em uma posio qualquer, as passagens das
narrativas so salvas da anlise psicolgica, quanto mais o ouvinte se es-
quece de si mesmo, mais profundamente a transmisso opera. Grande sa-
cada de Benjamin. A narrativa no est interessada em informar, ela mergu-
PEREIRA, L. S. Notas de leitura...
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SEO TEMTICA
lha a coisa na vida do narrador para em seguida retir-la dele. Assim se
imprime na narrativa a marca do narrador, como a mo do oleiro na argila do
vaso (1994, p. 205). O exemplo coincide com aquele que Lacan toma para
falar da relao do simblico e do real a propsito da tica da psicanlise.
O contraponto (ao narrador tradicional) tecido no argumento com
relao ao romancista e sua posio no individualismo, o romance valendo
como paradigma da modernidade. No que o romance fosse novidade en-
quanto gnero, mas nunca na histria havia sido posicionado centralmente,
encontrando com a burguesia ascendente os elementos para seu novo lugar.
A origem do romance o indivduo isolado que no pode mais falar exem-
plarmente sobre suas preocupaes mais importantes, no recebe conse-
lhos nem sabe d-los (1994, p.201).
Um dos momentos mais bonitos do texto: o narrador algum que
sabe dar conselhos. Mas, diz Benjamin, se dar conselhos parece hoje algo
de antiquado, vale lembrar que aconselhar pode ser menos responder a uma
pergunta que fazer uma sugesto sobre a continuao de uma histria.
E aqui encontramos uma diferena na traduo do texto para a edio
brasileira, que merece ser considerada. No portugus, temos: Para obter
essa sugesto, necessrio primeiro narrar a histria (1994, p.200)... No
francs, texto autorizado pelo autor, temos: Pour quon nous le donne, ce
conseil, il faut donc que nous commencions par nous raconter...
Nous raconter, nos contarmos, ponto nodal. Nos contarmos, nos di-
zermos, dizermos do Outro que nos atravessa, ao mesmo tempo o se con-
tar da incluso, lugar desde onde poder se situar.
Seriam necessrias muitas mediaes para pensar as relaes entre
o se contar da narrativa tradicional com a fala na situao da clnica psica-
naltica. No h correspondncia nem equivalncia, a operao difere (isso
sem falar que psicanalista tem verdadeira ojeriza com o que se chama de
conselho). Mas como estamos em notas de leitura, quem sabe podemos
nos permitir algumas associaes. Uma vez que a associao com a tica
j se apresentou, nous raconter termina por evocar o que Lacan aponta quanto
proposio da tica da psicanlise, quando enuncia: sy retrouver dans
linconscient, dans la structure, se achar na estrutura. Se o narrador
benjaminiano dispensaria a psicanlise, como nos diz Maria Rita Kehl por
j compor um elo de transmisso no seu contexto ; por outro lado, nos faz
pensar por onde algo da sustentao de uma prtica como a psicanaltica
renova a possibilidade de estabelecer uma experincia, travessia, trabalho
que supe um certo percorrer, fala e escuta sustentados por uma relao
transferencial, campo do Outro, inconsciente. A experincia e a narrao
declinam. O termo do declnio j vem surrado de tanto uso, mas no
equivalente ao de eliminao. Por quais caminhos se atualizam as condi-
es de um percorrer nos nossos tempos?
Benjamin nostlgico?
Pode ser, mas esse no o forte de seu texto. Complexo, supondo
inmeras interlocues Lukcs e sua Teoria do romance, Montaigne,
Cervantes, Herdoto, situado como o primeiro narrador grego, Kafka,
Dostoievski, Gorki, Paul Valery, e vrios autores de sua tradio mais prxi-
ma, a alem; O narrador trabalha muitos cruzamentos, sem se deixar cair
na tentativa de preencher todas as lacunas, de recobrir todas as arestas.
Benjamin traz em especial os limites, limiares como a relao com a morte,
com a temporalidade, a negatividade, essas zonas cujas passagens, (traba-
lho de sua vida), se articulam em cima do real que interroga a cada vez, e a
cada um na constelao discursiva que o recebe. Se a narrativa se trama
com a literatura, de se levar em conta, como nos diz Mrcio Seligmann-
Silva, que ela sempre marcada pelo real, ou seja, no se trata de trabalho
de ilustrao. Real que por outros caminhos, na prtica analtica, na relao
com esse se achar na fala, nos concerne.
Referncias Bibliogrficas
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. So Paulo: Editora Brasiliense, 1994 (s-
tima ed.) Primeira edio 1985.
BENJAMIN,Walter. crits franais. Paris: ditions Gallimard, 1991.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Histria e narrao em W.Benjamin. Campinas: Edi-
tora Perspectiva, 1994.
PEREIRA, L. S. Notas de leitura...
14 15 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 140, outubro 2005 C. da APPOA, Porto Alegre, n.140, outubro 2005
SEO TEMTICA
BIEHL, J. A vida cotidiana...
A VI DA COTI DI ANA DAS PALAVRAS:
A HISTRIA DE CATARINA
1
J oo Biehl
2

N
o meu pensamento, as pessoas esqueceram de mim. Catarina me
disse isso enquanto pedalava sua bicicleta de exerccios, seguran-
do uma boneca. Essa mulher de trinta e poucos anos tinha um olhar
penetrante e a fala um pouco enrolada. Eu a conheci em maro de 1997 aqui
em Porto Alegre, num asilo chamado Vita. Eu lembro de ter me perguntado:
mas para onde ela pensa que vai? Vita o destino final. Como muitos outros,
Catarina tinha sido deixada l para morrer.
Vita conhecido como um centro de reabilitao de drogados, mas
na verdade um depsito onde famlias e instituies mdicas e do estado
abandonam doentes mentais, deficientes fsicos, pacientes com AIDS e pes-
soas que cometeram pequenos delitos, jovens e velhos, como se j no
fossem mais seres humanos. Sem direitos, a maioria dos mais de 200 paci-
entes da chamada Infirmaria no eram cadastrados formalmente e no re-
cebiam mais do que cuidados alimentares mnimos. Lembro de que de um
homem os voluntrios retiraram as larvas dos olhos com uma mistura de
Pinho Sol e Q-Boa.
Em torno de 50 milhes de brasileiros vivem abaixo da linha da pobre-
za; vinte e cinco milhes so considerados indigentes. primeira vista, Vita
parecia ser um microcosmo dessa misria. Mas no s. Uma parte de seus
residentes vinha de famlias da classe trabalhadora e da classe mdia, eles
mesmos tendo sido operrios sustentando suas prprias famlias. Alguns
haviam vivido em instituies pblicas das quais foram jogados na rua ou
transferidos diretamente para o Vita.
Nesta fala, eu trao os caminhos que Catarina percorreu para chegar
nessa zona de abandono social. Acompanhar o enredo de uma nica vida
nos ajuda a capturar a lgica das infra-estruturas cotidianas que fazem com
que certas vidas ganhem forma e outras sejam impossibilitadas. E tambm
nos ajuda a iluminar este estranho processo subjetivo que faz com que o
abandonado, apesar de tudo, continue antecipando uma outra chance de
vida. Aqui somos confrontados com as realidades que esto entre ou alm
das estruturas formais de governo e medicina que determinam o curso de
vida de um nmero crescente de pobres que no fazem parte de nenhum
mapeamento ou poltica especfica e que lutam para sobreviver em vo.
Suspensa no Vita, Catarina falou de sua runa humana e tambm do seu
desejo de reconstruir a vida:
Eu tenho uma filha, Ana; ela tem oito anos. Meu ex-marido a deu
para o Urbano, o patro dele. Eu estou aqui porque tenho problemas com
minhas pernas. Para poder voltar, eu tenho que passar por um hospital.
muito complicado para mim conseguir lugar num hospital, e se eu conse-
guisse, provavelmente iria piorar. Eu no ia gostar porque j estou acostuma-
da a ficar aqui. Meus irmos e meu cunhado que me trouxeram pra c.
Ademar, Armando eu me exercito que pra poder caminhar de novo. Ago-
ra eu j no posso mais sair daqui. Eu tenho que esperar um tempo. Eu
consultei com um psiquiatra particular, umas vezes. Quando preciso eles
tambm nos do medicao aqui. A gente fica dependente. A gente j nem
pensa mais em voltar para casa. Mas no que a gente no queira. No meu
pensamento, as pessoas esqueceram de mim.
Mais tarde, perguntei aos voluntrios se sabiam algo sobre a Catarina.
Eles no sabiam nada sobre a vida dela fora do Vita, disseram que ela falava
coisas sem sentido, que ela era louca. Sua voz tinha sido anulada pelo
diagnstico psiquitrico. Mas eu tentei pensar nela no como uma doente
mental e sim como uma pessoa abandonada que, contra todos os empeci-
lhos, estava reivindicando sua experincia a seu prprio modo. Ela estava
tentando melhorar sua condio e se virar com as prprias pernas. Catarina
insistia em pensar que o seu problema era fisiolgico e que sua estada no
Vita era o resultado de vrias circunstncias relacionais e institucionais que
ela no podia controlar.
1
Palestra proferida na APPOA em 29 de agosto de 2005.
2
Professor Assistente de Antropologia, Universidade de Princeton (EUA).
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SEO TEMTICA
Para poder ir para casa, vou ter de ir pr um hospital primeiro, racio-
cinou ela. O hospital era o caminho para a casa que j no mais existia. Mas
o acesso a cuidados mdicos adequados era impossvel. Catarina tambm
insinuou que a medicao tinha piorado a condio clnica dela. Esse tipo de
cuidado era tambm tpico do Vita, eles tambm nos do medicao aqui.
Ela estava se referindo a uma farmacologizao da misria humana. Algo fez
com que o seu retorno para casa se tornasse impossvel. Mas o desejo
continuava: No que a gente no queira.
Os movimentos de Catarina e as lembranas dela no contexto desolador
do Vita ficaram no fundo da minha mente. Ela sabia o que a tinha feito ficar
assim mas como verificar os fatos do relato dela? Ademais, o grau de
impreciso ou inabilidade de articulao do seu pensamento no dependia
dela somente ns, os voluntrios e o antroplogo, no tnhamos meios de
entender e avaliar isso. A narrativa e desejos labirnticos dela requeriam for-
mas analticas capazes de abordar a pessoa que, afinal de contas, no
completamente subjugada pela trama das instituies e grupos.
Toda vez que eu voltava para o Vita, mais residentes diziam que que-
riam contar a minha vida. Eu fiquei pasmo com a condensao e semelhan-
a dos relatos. Quase todos mencionavam terem sido banidos da vida em
famlia, falavam do rompimento de relaes bem como da perigosa e agora
quase impossvel volta para casa. Isso no eram narrativas de doenas vi-
sando busca de um significado ltimo do tipo por que isto tinha que acon-
tecer justo comigo, ou por que agora? Tampouco eram registros
esquizofrnicos, que Gilles Deleuze e Felix Guattari entendiam como fazen-
do pardia social nunca fornecendo a mesma explicao de um dia para o
outro.
3
Como pude ouvir e constatar ao longo do tempo, os relatos dos
chamados loucos do Vita no estavam sempre em fluxo. Pelo contrrio,
fiquei impressionado pela constncia, contextualizao e veracidade dos
relatos (como constatei ao seguir passo a passo o de Catarina) apesar de os
voluntrios dizerem que tais relatos no faziam sentido.
Ao invs de entender estes relatos como prova de que os abandona-
dos se retiram do mundo
4
comecei a v-los como restos da verdade
chamemo-los de cdigos de vida atravs dos quais a pessoa abandonada
tenta se agarrar ao real. medida que os ouvia, eu me sentia desafiado a
trat-los como evidncia da realidade da qual os abandonados so expulsos
e quase nunca voltam a povoar. Como estes fragmentos so uma forma de
articulao de uma ex-humanidade vivida, eles tambm funcionam como fon-
te e meio pelo qual eles articulam sua experincia passada e presente. Es-
tes relatos so espaos em que seus destinos so repensados e seus dese-
jos ganham uma nova moldura.
Acompanhei o desenvolvimento do Vita ao longo de anos, e recente-
mente terminei um livro sobre este espao de morte social e seus residentes,
entitulado Vita: Life in a Zone of Social Abandonment (Berkeley: University of
Califrnia Press, 2005). O livro comea com a crnica do dia-a-dia neste Cen-
tro, e explora este espao no como uma exceo, mas como um fato social
total. H mais de 200 instituies como o Vita s em Porto Alegre, a maioria
eufemisticamente chamada de casa geritrica. Estas instituies hospedam
abandonados de todas idades em troca da aposentadoria ou auxlio invalidez;
um razovel nmero destas instituies tambm recebe apoio estadual ou fi-
lantrpico. Zonas de abandono so de fato simbiticas com domiclios e servi-
os pblicos em transio. Elas absorvem indivduos considerados sem valor e
que no tm mais laos familiares ou recursos para o prprio sustento e tornam
sua reabilitao impossvel e sua morte iminente.
No meu trabalho etnogrfico entre pobres em reas urbanas no sul e
no nordeste, eu descobri que mais e mais as famlias so uma espcie de
agente mdico do Estado, uma vez que elas fazem a triagem dos cuidados
e do tratamento; e que a medicao tornou-se um instrumento fundamental
das deliberaes sobre quem vive, quem morre e a que custo? O aumento de
apelos pela descentralizao de servios e a individualizao de tratamen-
tos, como exemplificado pelo movimento da sade mental, coincidem com
3
Gilles Deleuze e Felix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1983, pp. 15.
4
Vide o ensaio de Robert Desjarlais, Struggling Alone: The Possibilities of Experience
Among the Homeless Mentally Ill. American Anthropologist 96(4):886-901.
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os cortes dramticos nos subsdios na infra-estrutura da sade e com a
proliferao de tratamentos farmacuticos. A distribuio gratuita de medi-
camentos (que inclui os psicofrmacos) de fato um componente importan-
te das iniciativas que visam um sistema universal de sade mais econmico
e eficiente.
Ao se engajar com esses novos regimes de sade pblica e ao alocar
seus j esticados e escassos recursos, as famlias aprendem a agir como
proxy-psychiatrists ou psiquiatras de fundo de quintal. As doenas se tor-
nam o ponto focal em que a experimentao e as rupturas nas relaes
domiliciares ntimas acontecem. As famlias podem se livrar de seus mem-
bros indesejados, s vezes sem sano, baseados no fato de que tais indi-
vduos no se submetem aos protocolos de tratamento. Os psicofrmacos
so centrais na histria de como vidas so forjadas dentro deste momento
de transformao scio-econmico e vis--vis ao que est, burocraticamente
e medicinalmente, disponvel populao. Tais possibilidades e a execuo
prtica de certas formas de vida humana acontecem paralelamente s for-
mas de discriminao por gnero, explorao de mercado, e a um Estado
administrado no que podemos chamar de estilo gerencial, que cada vez mais
se distancia das pessoas que governa.
O foco principal do livro est em analisar como esta morte social
experienciada e entendida pelos prprios residentes do centro Vita, em
particular por Catarina. Seu corpo e sua linguagem estavam tomados
pela fora dos processos acima descritos; a sua pessoa sendo desfeita
e refeita e destruda.
Quando eu voltei ao Vita em dezembro de 1999, Catarina ainda estava
l, s que desta vez a encontrei numa cadeira de rodas e escrevendo.
Parecia confusa, falava devagar e com dificuldade. Minhas pernas no aju-
dam mais. Ela disse que estava com reumatismo e que de vez em quando
os voluntrios lhe davam remdios.
O que tu ests escrevendo?
o meu dicionrio, disse ela. Eu escrevo pra no esquecer as
palavras... todas as doenas que tenho agora, e as que tive quando cri-
ana. A letra dela revelava uma alfabetizao precria. As palavras eram
escritas em maisculas e havia poucas frases completas.
Esse foi o primeiro fragmento que li:
Divrcio, dicionrio, disciplina, diagnstico, casamento grtis, casa-
mento pago, operao, realidade, fazer injeo, pegar espasmo, no corpo,
espasmo cerebral.
Por que tu chamas isto de dicionrio?
Porque no requer nada de mim, nada. Se fosse matemtica, eu teria
de encontrar uma soluo, uma resposta. Aqui tudo uma coisa s, do
comeo ao fim... Eu escrevo e leio.
Ela me deixou folhear o dicionrio.
Te ofereo minha vida. No ventre da dor. O sentido presente. Entre
as vrias referncias a consultas, hospitais, e documentos, ela escreveu
sobre a diviso de corpos, e sobre as coisas que esto fora da justia.
Aquele que contradiz condenado. Morto vivo, morto por fora, vivo por
dentro. Havia tambm expresses de saudade: Recuperao de movimen-
tos perdidos. Uma cura que encontra a alma. Com A eu escrevo Amor,
com L eu escrevo Lembrana.
Eu voltei a falar com ela vrias vezes durante aquela visita. Catarina
enveredou por uma srie de lembranas da vida fora do Vita, sempre enrique-
cendo com detalhes o que relatara no nosso primeiro encontro em 1997. O
passado foi ganhando forma medida que elaborava pensamentos sobre
sua origem em uma rea rural e sua migrao ao Vale dos Sinos para traba-
lhar nas fbricas de calados. Ela contou ter tido trs filhos, ter brigado com
seu ex-marido; mencionou nomes de psiquiatras, experincias no Hospital
Esprita e no So Pedro tudo contado em pedacinhos e numa cronologia
de quebrar a cabea. Catarina insistia que havia uma histria e uma lgica
para explicar seu abandono.
Quando meus pensamentos concordavam com os do meu ex-marido
e sua famlia, tudo ficava bem. Mas quando eu discordava, a eu era louca.
Era como se uma parte de mim tivesse de ser esquecida. Minhas pernas
no estavam funcionando bem. Eu no queria tomar os remdios.
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Os mdicos alguma vez te contaram o que tu tinhas?
No, eles no diziam nada... eu sou alrgica a doutores. Eles que-
rem ser sabidos, mas no sabem o que sofrimento. Eles no te tocam ali
onde di.
De acordo com Catarina, a deteriorao fisiolgica e o abandono fo-
ram mediados por uma mudana na forma de pensar e de dar significado
nova economia domstica e do seu tratamento farmacolgico. Subjetividade
tinha se tornado o condutor pelo qual sua excluso tinha sido solidificada.
Aquele apagamento forado de uma parte de mim impossibilitou-a de achar
seu lugar dentro de uma vida familiar mutante.
Por que, perguntei Catarina, familiares deixam as pessoas no Vita?
Eles dizem que melhor nos deixar aqui do que a gente ficar sozinho
em casa, sem fazer nada... que h mais pessoas como a gente aqui... e que
todos ns juntos formamos uma sociedade.... uma sociedade de corpos.
Como ampliar as possibilidades de inteligibilidade social a que Catarina
tinha sido deixada para resolver sozinha? Eu tinha de encontrar uma maneira
de decifrar o real na vida e nas palavras dela e relacionar estas palavras de
volta a pessoas, espaos e eventos especficos dos quais ela fizera parte um
dia uma experincia sobre a qual ela no tinha mais autoridade simblica.
Aceitar as palavras e o texto de Catarina pelo seu valor de face me fez
passar por uma jornada semelhante a de um detetive. Com o consentimento
dela, eu coletei protocolos de hospitais psiquitricos e rgos locais do sis-
tema pblico de sade pelos quais ela passou. Tambm consegui localizar
membros da famlia os irmos, o ex-marido, os cunhados e filhos num
distrito industrial do Vale dos Sinos. Tudo o que ela me contou sobre a
famlia, os caminhos mdicos que a levaram ao Vita fechavam com as infor-
maes que eu encontrei nos arquivos e na pesquisa de campo.
Se eu tivesse me contentado com os relatos da prpria Catarina l no
Vita, todas as tenses e associaes existentes entre a famlia, os mdicos
e as instituies pblicas que deram forma vida dela teriam permanecido
invisveis. O que aconteceu com a Catarina no foi simplesmente ter cado
entre as frestas destes vrios sistemas domiciliares e pblicos. O seu aban-
dono foi dramatizado e executado na justaposio de diversos contextos
sociais. Seguir cada passo do enredo da vida dela ajudou a delinear este
poderoso espao etnogrfico no institucionalizado em que famlias se li-
vram dos membros indesejados. A tessitura desta atividade domstica de
avaliar e decidir quais vidas merecem continuar e quais no, ainda permane-
ce sem grande investigao, no somente no dia-a-dia da vida, como tam-
bm na literatura sobre as transformaes econmicas, estatais e civis em
contextos de desigualdade e democratizao tais como o brasileiro. No que
se segue, gostaria de lhes dar uma idia do que eu descobri neste trabalho
reconstrutivo, particularmente, em relao realidade da doena mental,
re-transcrio farmacutica de laos familiares e subjetividades, e interface
entre meio-ambiente e expresso gentica.
Catarina nasceu em 1966, e cresceu num lugar bem pobre da regio
oeste do Estado. Na quarta srie ela foi tirada da escola. O pai dela abando-
nou a famlia e ela se tornou a dona de casa enquanto os irmos mais novos
iam com a me para a roa. Em meados dos anos oitenta, dois de seus
irmos migraram e encontraram trabalho na indstria caladista. Aos 18
anos Catarina se casou com Nilson Moraes e um ano mais tarde deu luz
ao seu filho Anderson.
Quando o Nilson trouxe a foto dela para ns vermos, Sirlei, a irm de
Nilson, disse: ela era muito bonita. No a pessoa, mas a apario dela foi
o que primeiro lhes veio mente quando eu me apresentei aos cunhados de
Catarina. Sirlei foi inflexvel ao afirmar que a paralisia de hoje no podia ser
detectada no passado: Naquela poca ela era uma pessoa perfeita como
ns. No mais estando naquela imagem da famlia, ela passado. Catarina
agora era associada com um corpo se desmembrando: A me dela tam-
bm perdeu as pernas e as mos.
Os irmos contaram que tambm eles estavam comeando a ter pro-
blemas para caminhar, mas no sabiam o que era essa doena: um mis-
trio. Nas palavras de Armando, Quando ramos crianas, Catarina era
normal. A esposa dele reiterou a aparncia dela: Ela era bem normal. Eu
lembro das fotos de casamento. Eu ficava me perguntando o que ser que
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queria dizer esta gradao de normalidade e o que na vida ou que interesses
determinavam a aplicao deste rtulo a outros membros da famlia.
Em todo caso, negcios obscuros, vrias colheitas ruins e dvidas
para com os comerciantes locais forou o jovem casal a vender as terras que
tinham herdado por terem cuidado da me doente. E em meados dos anos
80, Nilson e Catarina decidiram juntar-se aos irmos nas fbricas de sapato.
O Vale dos Sinos tinha se tornado uma espcie de Eldorado, atraindo muitos
dos que estavam em busca de mobilidade social. As estatsticas mostram
que ao final dos anos oitenta, o Vale tinha um dos ndices mais altos de
renda per capita do Estado, mas tambm que mais de um quarto da cres-
cente populao estava vivendo em favelas. A situao piorou ainda mais
nos anos 90, quando o Vale passou por uma queda econmica e uma aguda
fase de empobrecimento, principalmente pela inabilidade do Pas em articu-
lar uma poltica de exportao mais lucrativa e por causa da competio
com a China no mercado mundial de calados.
Catarina lembra de gostar de trabalhar na fbrica. Eu tinha minha
carteira de trabalho e ganhava meu dinheirinho. O marido encontrou trabalho
como vigia numa Prefeitura. Logo a seguir veio o segundo filho do casal, uma
menina que foi chamada Aline. Catarina tambm tomava conta da me
adoentada, que tinha ido morar com eles. Para complicar as coisas ainda
mais, Catarina comeou a ter dificuldades para caminhar. Eles a despedi-
ram da fbrica, pois comeou a cair l dentro, relatou a cunhada. Justamen-
te quando ela perde seu valor como trabalhadora, ela tambm descobre que
Nilson tinha arranjado outra mulher.
Deprimida, ela, s vezes, saa a perambular pela cidade. E o ma-
rido acionou seus contatos na Prefeitura em que trabalhava para que a
polcia fosse atrs dela: Eles tiveram que algem-la... e na sala de emer-
gncia tiveram que sed-la para se acalmar, ele me contou. Isso acon-
teceu algumas vezes e foi a que Nilson decidiu intern-la em Porto Ale-
gre. No turbulento ano de 1992, a me dela j tinha morrido quando ela
deu a luz a uma criana prematura, uma menina chamada Ana. A maior
parte das internaes tiveram lugar entre 1992 e 1994, quando o casal j
no vivia mais junto. Eles lhe deram o melhor tratamento, disse Nilson.
Mas ela jogava os remdios no vaso e puxava a descarga. Em casa, ela
no continuou o tratamento. Ela no se ajudava. Nilson agora trabalha
numa fbrica de sapatos e tem uma nova famlia. Como os outros, ele
fala abertamente sobre Catarina. Isso coisa do passado, disse ele.
Ela j nem est mais na minha cabea.
Os apontamentos sobre o tratamento mdico e as conversas com a
famlia permitem com que se encontre a voz da paciente, e mais do que isso,
as narrativas das alteraes e das condies de sua suposta intratabilidade.
Nos hospitais de Porto Alegre, o diagnstico dado Catarina variava de
esquizofrenia e psicose ps-parto a psicoses no determinadas e de-
sordens de humor. Ao traar a passagem de Catarina por essas institui-
es, eu a vi no como uma exceo, mas sim como uma entidade padro.
Ou seja, ela era submetida ao tpico e incerto tratamento que pacientes
mentais da classe pobre, trabalhadora, urbana, so submetidos. Tecnologias
mdicas eram cegamente aplicadas e pouco se calibrava o tratamento
condio distinta dela. Como muitos, consideravam-na agressiva e por isso
era sedada exageradamente, para que a instituio pudesse continuar suas
funes sem fornecer os cuidados mais adequados a cada paciente.
A instituio, vtima ela mesma de problemas financeiros e da prolife-
rao de novas classificaes e tratamentos, exercia uma prtica psiquitri-
ca rotineira que no levava em considerao a condio particular e social
dela. Apesar de o seu diagnstico ter sido suavizado ao longo dos anos
(imitando as tendncias psiquitricas mais recentes), ela continuou sendo
muito medicada com anti-psicticos pesados e outros remdios para tratar
dos efeitos colaterais. Em vrias ocasies os enfermeiros relatavam
hipotenso, um claro indicador de supermedicao. Aqui o tratamento co-
mea com uma superdosagem e a diminuda por tentativa e erro. medi-
da que lia os relatrios mdicos, sentia dificuldade em separar sintomas de
uma doena psiquitrica sendo tratada e da medicao que tratava efeitos
colaterais, e ficava estupefato em ver que os mdicos pouco se importavam
em diferenciar essas duas coisas no tratamento da Catarina.
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Afirmar que isso seja fruto de uma m prtica mdica ignorar a
qualidade produtiva de um automatismo e experimentalismo mdico no-
regulamentado: neste contexto, a medicao se encarrega da maior parte
do trabalho, e os efeitos farmacolgicos tornam-se o corpo que supostamen-
te est sendo tratado e, neste processo, ganha forma a molstia que Catarina
chama de reumatismo. Como ela escreveu no dicionrio: Querer meu
corpo como remdio, meu corpo. Enquanto os mdicos continuaram fixa-
dos nas suas supostas alucinaes, a etiologia das suas dificuldades de
movimentos, relatadas pelos enfermeiros, continuavam sendo ignoradas. Os
relatrios mdicos tambm demonstram a dificuldade de contato com o marido
e a famlia, pois deixavam nmeros de telefone e endereos falsos, e que em
vrias ocasies ela foi deixada no hospital aps ter recebido alta.
O dicionrio dela est recheado de referncias s deficincias de
movimento, dor nos braos e pernas, s contraes musculares. s vezes
Catarina relacionava suas molstias e a crescente paralisia a um marcador
biolgico e aludia a um certo tipo sangneo que levava deficincia fsica
ou a um crebro fora do prazo de validade e a um crnio envelhecido que
impedia a melhora. Na maioria das vezes, no entanto, Catarina se referia
sua condio como reumatismo, como eu havia mencionado anteriormen-
te, e falava de suas doenas como sendo man made, ou seja, humanamente
fabricadas. Eu segui o verbete reumatismo no dicionrio dela, prestando
ateno s palavras e expresses circundantes.
As pessoas pensam que tm o direito de meter as mos nos fios e
mexer nos ns. Reumatismo. Eles usam meu nome para o bem e para o
mal. Eles usam meu nome por causa do reumatismo.
O sintoma une os fios da vida. um n malfeito; a matria que torna
possvel o intercmbio social. Ele d ao corpo a sua estatura e torna-se o
conduto da moralidade. a molstia do corpo de Catarina e no o nome dela
que se converte na mercadoria de troca dentro daquele mundo: O que eu fui no
passado no tem importncia. Em outro fragmento ela escreve: Espamos
agudos, espasmos secretos, mulher reumtica, a palavra do reumtico no
tem valor. A Catarina sabe que existe uma racionalidade e uma burocracia ao
redor do gerenciamento do sintoma: Espamos crnicos, reumatismo, tm de
ser carimbados, registrados. Tudo isso acontece em um contexto democrti-
co: voto a voto.
A droga anti-psictica Haldol (Haloperidol) e Neozine (Levomepromazine),
o mais forte sedativo dos dois, tambm aparecem no dicionrio de Catarina:
A dana da cincia. A dor transmite a cincia doente, o estudo doen-
te. Crebro, doena. Buscopan, Haldol, Neozine, Esprito invocado.
As mercadorias da cincia psiquitrica tornaram-se to comuns como
o Buscopan (que pode ser comprado na farmcia sem receita mdica, para
o alvio de clicas estomacais) e tornaram-se parte do dia-a-dia domiciliar.
Como mostra a experincia da Catarina, eles no s agem sobre a doena
como tambm sobre a mente dela. Esses bens farmacuticos que s
vezes funcionam como rituais convertem-se em espritos imaginrios em
vez de verdades materiais, concretas, que supostamente representam: mer-
cadorias, ento, tornam-se sujeitos. H uma cincia de fazer dinheiro na
molstia de Catarina. Como transmissores desta cincia, seus sintomas
so tpicos. Preciso mudar o meu sangue com um elixir. Os remdios da
farmcia custam dinheiro. Viver caro, escreveu ela.
A Catarina te contava o que acontecia no hospital?, perguntei ao ex-
marido.
No, ela no se lembrava.
Para Nilson, Catarina no tinha memria. Pega pela polcia, exami-
nada pelos psiquiatras, e submetida a todo tipo de medicao anti-psictica,
e tendo se tornado o motivo de piada e deboche entre membros da famlia e
da vizinhana, a voz de Catarina acabou saindo da sintonia com a realidade
da famlia dela no havia mais interesse em dar sentido ao que ela dizia.
Eu a questionei sobre as vozes que dizia estar ouvindo: verdade, disse
ela. Eram gritos... eu estava sempre triste... eu pensava que as vozes
vinham do cemitrio, de todos aqueles corpos mortos.
Um enredo complexo se desenrolou. Depois de conversar com todas
as partes, entendi que, dados alguns sinais fsicos, o marido, os irmos e
suas respectivas famlias acreditavam que Catarina se tornaria uma invlida
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como a prpria me. Eles no tinham o menor interesse em participar da-
quele script gentico. O corpo defeituoso de Catarina ento, tornou-se uma
espcie de campo de batalha no qual decises eram tomadas sobre a sua
sanidade e humanidade, a partir do entrelaamento de relaes familiares,
com vizinhos, mdicos e rgos de sade pblica. Despersonalizada e
supermedicada, algo ficou impregnado, quase que preso, na pele de Catarina
os determinantes de vida dos quais ela no mais conseguia se desprender.
J mais perto do desfecho dessa histria, Nilson arrumou uma outra
mulher com a qual teve outro filho, e um juz lhe concedeu a separao legal
de Catarina ela nunca assinou os papis do divrcio. O ex-marido tambm
acabou passando a guarda da filha mais jovem, Ana, ao patro, Seu Urbano,
mas insiste em dizer que foi a Catarina que a passou adiante. O Nilson e
sua me ficaram com os outros dois filhos, que hoje ajudam no oramento
domstico. No auge do desespero da Catarina, o irmo e a cunhada a fize-
ram aceitar um negcio de eles se mudarem para a casa dela e ela ficar no
barraco deles, mais para o interior do bairro. Quanto aos irmos, j que a
Catarina tinha sido passada para Nilson e eles dois jogado fora as terras da
famlia, no se sentiam na obrigao de cuidar dela. Esse o tecido econ-
mico e sexista do seu pensamento moral, que ultrapassava o domnio dos
laos sangneos. Em mais de uma maneira, Catarina estava repetindo o
roteiro da doena da me: em ambos os casos, o desenvolvimento da doen-
a estava entrelaado com a separao conjugal, o abandono das mulheres
com a doena, e alegaes de prejuzo sobre bens materiais.
Para a completa devastao de Catarina, no final de dezembro de
1994, o barraco dela pegou fogo, e ela foi hospitalizada de novo. Desta vez,
um tal de doutor Viola escreveu: Eu sou contra sua admisso. A paciente
requer avaliao neurolgica. Mas segundo os arquivos mdicos, ela foi
internada e tratada com medicamentos anti-psicticos prescritos ao azar.
Quando recebeu alta, foi da casa de um irmo a outro. Em um dado momen-
to eu dormi um ms inteiro, lembra-se Catarina. Apoiados por um psiquia-
tra local, familiares e vizinhos estavam experimentando nela uma gama de
drogas em dosagens variadas. Como disse a me adotiva de sua filha Ana:
O doutor explicou como lidar com ela. Disse para a gente dar uma dose e se
no melhorasse, simplesmente ir dobrando as doses.
As famlias tornam-se psiquiatras caseiros, e os produtos farmacuti-
cos constituem o registro do que a verdade. Assim sendo, segundo as
palavras de Catarina, a gente entra num caminho sem sada. O abandono
de membros improdutivos e inteis da famlia mediado e legitimizado por
psicofrmacos, tanto pelo valor de verdade cientfica que conferem ao que
est acontecendo, como tambm pelas alteraes qumicas que ocasio-
nam. Essas drogas acabam funcionando como tecnologias morais na rea-
lidade fazem com que as perdas de laos sociais sejam irreversveis. Neste
registro de morte social sancionado relacionalmente e burocraticamente, o
humano, o mental e o qumico tornam-se cmplices: seu entrelaamento
expressa um senso comum que autoriza que alguns vivam e outros no.
No fundo, a tica que a famlia implementa ao redor do sofrimento
mental garante a prpria existncia fsica deles, disse-me a diretora do ser-
vio psicosocial pelo qual Catarina tambm passou no Vale dos Sinos.
Catarina tinha se transformado em sucata domstica, que se montava e
desmontava, que ganhava formas novas e se deformava, atravs de interaes
intricadas. Ela era o valor negativo, o componente desnecessrio de uma
cultura urbana pobre de imigrantes. Finalmente, em 1996, depois de ouvir
falar no Vita atravs de um programa de rdio, os irmos a deixaram l.
Como falar no mal que foi feito e no bem que devemos fazer quando nos
deparamos com a enfermidade em condies to precrias? Para o irmo Ar-
mando e outros membros da famlia, essa questo abordada atravs de uma
pergunta retrica para a qual a resposta sempre a mesma: nada. difcil,
fazer o qu? No final, Catarina pensada como se fora um tratamento fracas-
sado que, paradoxalmente, permite a vida, os sentimentos e os valores de
alguns a continuar em um violento campo econmico e social.
Eu no estou aqui dizendo que as desordens mentais so basica-
mente uma construo social, mas sim que elas ganham forma naquele
nexo mais pessoal que liga o sujeito sua biologia e recodificao tcnica
e intersubjetiva do que vem a constituir normalidade no mundo local. nesse
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sentido que os representantes do senso comum e da razo esto imbrica-
dos nas desordens mentais e sua responsabilidade dar conta desta
imbricao no desdobramento das desordens.
Depositada no Vita para morrer, Catarina escreve que o seu desejo
perdera valor de troca humana:
Catarina chora e quer viver. Desejo. Chorado, molhado, rezado. Sen-
timento de lgrimas, medroso, diablico, trado. Desejo no tem valor. Dese-
jo farmacutico. No bom para o circo.
A droga Akineton (biperideno) usada para controlar os efeitos colaterais
dos antipsicticos est presente no novo nome que Catarina se deu no dicion-
rio: CATKINE.
Quatorze anos depois de entrar no enlouquecedor mundo psiquitrico,
Catarina finalmente foi vista pela doena que tinha. Em 2002, eu a ajudei a
acessar o servio gentico do Hospital de Clnicas. Testes moleculares revela-
ram que Catarina sofria da Doena de Machado-Joseph, uma forma de ataxia
espino-cerebelar.
5
Fiquei extremamente feliz em ouvir os geneticistas dizendo
que Catarina tinha conscincia da sua condio, passado e presente, e que
no apresentava nenhuma patologia. Dra. Laura Jardim inflexvel ao afirmar
que no h doena mental, nem psicose, nem demncia conectada essa
desordem gentica. Na doena Machado-Joseph, a inteligncia do indivduo se
mantm clara e cristalina. Obviamente, biopsiquiatras poderiam argumentar
que Catarina pode ter tido dois processos biolgicos concomitantes, mas para
mim a descoberta da Doena de Machado-Joseph ajudou a historicizar como
ou porque a condio dela se desenvolveu da forma acima descrita.
Uma vez diagnosticados, pacientes de Machado-Joseph sobrevivem em
mdia 15 a 20 anos, morrendo, na maioria dos casos, de pneumonia, presos a
cadeiras de rodas ou restritos ao leito. Uma coisa que os cientistas consegui-
ram estabelecer que quanto mais sria a mutao gentica, mais rapidamen-
te a doena comea a aparecer. Em 60% dos casos, a gravidade da mutao
gentica explica a idade de incio da doena. Mas em 40% dos casos, disse
Dra. Jardim, h fatores desconhecidos que tanto postergam ou antecipam o
incio da doena. Entre irmos, continuou ela, a idade em que a doena surge
mais ou menos a mesma. Como ento explicar o fato de que no caso da
Catarina a doena j apareceu ao redor dos 20 anos, enquanto que no caso de
Armando, os primeiros indcios s apareceram perto dos 30 anos?
Os vrios processos relacionais e mdicos em que a biologia de
Catarina estava inserida e atravs dos quais experimentavam com ela apon-
tam para estes 40% ainda no conhecidos, eu arrisquei dizer a Dra. Jardim,
ou seja, a cincia social da mutao gentica. A isso ela respondeu dizen-
do: No pico do sofrimento dela, eles a estavam desmembrando... esta carne
morrendo foi s o que restou.
No seu pensar e escrever, Catarina retrabalha essa literalidade.
Eu no sou uma farmacutica, ela disse certa vez. Eu no sei que
medicao cura uma doena, eu no sei dizer o nome do frmaco, mas o
nome da doena eu sei... Como diz-la?
Silncio.
Ela ento disse: Minha uma doena do tempo.
O que tu queres dizer com isso?
O tempo no tem cura.
A subjetividade da Catarina construda atravs do ato de furungar nos
labirintos da prpria vida. Ao tentar comunicar, recordar e escrever ela preserva
algo nico, sobrevive ao intolervel e no se submete ao impossvel. Num lugar
onde o silncio a norma, Catarina luta para transmitir seu senso do mundo e
de si. No Vita ento para alm do parentesco, do direito de viver e do tabu
contra matar emerge a figura social de Catarina. A sua linguagem, beirando a
poesia, autopsia o que humano hoje e fundamenta uma tica:
A caneta entre os meus dedos trabalho.
Estou condenado a morte.
Eu nunca condenei ningum e tenho o poder.
Este o pecado maior.
Uma sentena sem remdio.
O pecado menor tentar separar o meu corpo do meu esprito.
5
Jardim, LB., M.L. Pereira, I. Silveira, A. Ferro, J. Sequeiros, and R. Giuliani. Machado-
Joseph Disease in South Brazil: Clinical and Molecular Characterizations of Kindreds. Archives
of Neurology (2001) 104:224-231.
BIEHL, J. A vida cotidiana...
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BETTS, J. Narrativa ou...
NARRATIVA OU VERBALI ZAO?
J aime Betts

Q
uer se pretenda agente de cura, de formao ou de sondagem, a psi-
canlise dispe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidncia
desse fato no justifica que se o negligencie. Ora, toda fala pede uma
resposta
1
.
Qual a funo da fala no campo da linguagem? A psicanlise dispe
como meio apenas da fala do sujeito, seja ele paciente, colega ou simples-
mente algum que se pronuncia. Toda fala pede uma resposta... Ora, o qu
pode fazer com que se perca isso de vista? to bvio!
Continuando. No h fala sem resposta, mesmo que depare apenas
com o silncio, desde que ela tenha um ouvinte.Ter um ouvinte: outra
obviedade. Como podemos nos esquecer disso? Uma fala, um ouvinte, uma
resposta. esse o cerne da funo da fala na anlise, diz Lacan. A fala
institui o ouvinte ao enderear-lhe um apelo. O qu pode induzir o analista a
ignorar que isso que se d na funo da fala?
Lacan se explica. H dois apelos de resposta na fala do sujeito: h
um apelo verdade em seu princpio e h um apelo prprio do vazio, na
hincia ambgua de uma seduo tentada sobre o outro, atravs dos meios
em que o sujeito coloca sua complacncia e em que ir engajar o monu-
mento de seu narcisismo
2
.
Eis um ponto fundamental. O apelo contido na fala do sujeito passa
primeiro pela demanda de uma resposta que confirme o monumento vazio (cas-
telo de cartas persistente, diga-se de passagem), erguido em nome do seu
narcisismo. Ou seja, primeiro vem a demanda de confirmao do narcisismo.
S depois, medida que o sujeito se convence de que no tem outro jeito,
pedra por pedra, as certezas vo dando lugar s verdades parciais do sujei-
to. Nesse sentido, Lacan afirma que a arte do analista deve consistir em
suspender as certezas do sujeito, at que se consumam suas ltimas mira-
gens, uma vez que a fala constitui a verdade
3
.
Qual verdade? Ora, a verdade que resulta da castrao. Ou seja, de
que a verdade desejante sempre parcial, de que o monumento flico do
narcisismo falho, de que o desejo causado pelo objeto que falta, e que
ele, o indivduo, no o objeto flico que garantiria a integridade do monu-
mento narcsico da me.
A questo colocada ao analista conseguir distinguir onde no discur-
so do sujeito est o termo significativo do semi-dizer dessa verdade desejante.
Onde est a palavra cheia perdida no meio de tanta fala vazia que demanda
a confirmao narcsica do indivduo como algum digno de ser amado?
A funo da fala vazia na anlise expe no limite a v tentativa do
sujeito de falar de algum que lhe semelhante, mas que nunca se aliar
assuno de seu desejo. Temos aqui um incio de resposta s nossas per-
guntas. Quando a fala tomada somente em sua vertente de fala vazia e
respondida enquanto tal, acaba levando depreciao crescente de que a
fala tem sido objeto na teoria e na tcnica.
Por qu? Por mais que o sujeito demande uma confirmao narcsica,
ele despreza qualquer fala que se comprometa com esse equvoco, em fun-
o de que seu desejo se encontra alienado nesse monumento. O monu-
mento narcsico do qual falamos o ego do sujeito, miragem que toma forma
na fase do espelho em que o sujeito se identifica com a imagem que lhe
antecipa uma unidade que a imaturidade de seu corpo ainda no organizou.
O ego, nesse sentido, frustrao em sua essncia
4
, uma vez que o
ego gira em torno dessa imagem especular que vem do outro. No se trata aqui
de frustrao de um desejo do sujeito, mas de um objeto [o ego] em que seu
LACAN, Jacques. Funo e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanlise (1953). In:
Escritos. Rio de Janeiro: Jorje Zahar Editor 1998, p.248.
No presente artigo, retomaremos vrios pontos desenvolvidos por Lacan neste texto angu-
lar de sua produo, de modo a refletir sobre o tema narrativa e destino na clnica psicana-
ltica.
2
Op. cit., p. 249.
3
Op. cit., p. 253.
4
Op. cit., p. 251.
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desejo est alienado
5
. Por mais que o sujeito possa atingir sua semelhana
ideal, ao conseguir isso, simplesmente confirma o gozo do outro.
a partir dessa inevitvel frustrao que se desencadeia a
agressividade e violncia. Trata-se da agressividade do escravo que respon-
de com um desejo de morte frustrao de seu trabalho de construo
imaginria da imagem de si: todos percebemos de alguma forma que nos
reencontramos assim com a alienao fundamental do ego construdo como
um outro, para um outro e que est predestinada a ser furtada por um
outro
6
.
O desejo, para ser satisfeito no homem, exige ser reconhecido, pelo
acordo da fala ou pela luta de prestgio, no smbolo ou no imaginrio
7
. V-se
que a violncia est intimamente ligada com a tentativa de fazer com que um
ato no real obtenha reconhecimento simblico do outro, superando a aliena-
o imaginria frustrante. Evidentemente o sujeito fracassa nesse caminho.
Encontramos aqui o ponto de articulao com os discursos que orga-
nizam a sociedade contempornea e seus sintomas sociais: a surpreenden-
te facilidade com que se elimina a palavra do sujeito em nossa cultura. Dian-
te desses discursos que atravessam todos, sempre cabe questionar, como
fez Lacan no texto que estamos comentando, se a psicanlise e os psicana-
listas persistiro no desejo de dar lugar mesma.
Segundo Roudinesco, A era da individualidade substituiu a da subje-
tividade: dando a si mesmo a iluso de uma liberdade irrestrita, de uma
independncia sem desejo e de uma historicidade sem histria, o homem de
hoje transformou-se no contrrio de um sujeito
8
.
A autora argumenta que a hegemonia da era do indivduo imps uma
grave derrota ao sujeito, fazendo com que o sofrimento psquico se manifes-
te atualmente sobretudo sob a forma da depresso
9
. A sociedade dos indiv-
duos enterra seus sujeitos. O sujeito do desejo grita como pode atravs de
seus sintomas tentando se fazer ouvir e, com isso, ser reconhecido por uma
palavra que o signifique, inserindo-o numa rede de significantes coletiva. Uma
vez que fracassa, seu sintoma predominante a depresso.
O sujeito derrotado nas duas pontas da lgica significante que o
produz. Em primeiro lugar, a sociedade que produz os indivduos se caracte-
riza justamente pela facilidade com que elimina a palavra, destituindo-a de
qualquer valor nas trocas inter-humanas. Assim, a condio humana se v
privada do seu meio de humanizao: a dignidade tica da palavra. O sujeito
asfixiado num ambiente rarefeito em que os significantes que poderiam
represent-lo para outros significantes so sistematicamente eliminados.
Como conseqncia, na outra ponta, o sujeito se defronta com dificuldades
para encontrar uma escuta que responda com palavras de reconhecimento
que signifiquem seu desejar para o outro. verdade que o indivduo descr
no valor da palavra e tende a procurar solues que o poupem da angstia de
aproximar-se do seu desejar to cuidadosamente excludo do cenrio con-
temporneo.
Na tentativa desesperada de superar o vazio de seu desejo agonizan-
te, o sujeito v-se beira de um vcuo provocado pela excluso dos
significantes do seu desejar que ameaa trag-lo de vez. E ele procura
tamponar a voracidade desse vcuo com toda sorte de objetos oferecidos
pela sociedade do consumo, incluindo-se a a foragem do convite ao consu-
mo de drogas - legais ou ilegais, prescritas ou no - como soluo para o
crescente mal-estar de viver.
No fundamento da derrota do sujeito esto os dois discursos que or-
ganizam a sociedade do consumo
10
, ou a sociedade dos indivduos
11
, ou
ainda a sociedade do espetculo
12
narcsico. So trs formas de caracterizar
o mesmo mal o contemporneo - segundo o discurso desde cuja tica se
opte por enfocar a questo. Os indivduos das sociedades contemporneas
so necessariamente seres frustrados. Poderamos ainda re-nomear a soci-
edade contempornea de sociedade dos egos frustrados.
5
Op. cit., p. 251.
6
Op. cit., p. 251.
7
Op. cit., p. 281.
8
ROUDINESCO, Elisabeth. Por qu a Psicanlise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2000.
p. 14.
9
Op. cit.
10
BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edices 70. 2003.
11
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994.
12
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetculo. Rio de Janeiro: Contraponto. 1997.
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Na sociedade de consumo, os efeitos da mercantilizao dos laos
humanos por efeito do discurso do capitalista se fazem notar pelo fato do
consumo surgir como modo ativo de relao (no s com os objetos, mas
ainda com a coletividade e o mundo), como modo de atividade sistemtica e
de resposta global, que serve de base a todo o nosso sistema cultural. Isso
faz com que o conjunto das relaes sociais do homem j no seja tanto o
lao com seus semelhantes quanto a recepo e a manipulao de bens e
mensagens, afirma Baudrillard
13
. Os indivduos se afirmam segundo seu lu-
gar no espetculo das aparncias, demonstrando sua independncia e auto-
nomia segundo as marcas dos produtos que escolhem consumir!
Atualmente h vrios comerciais de automveis que evidenciam esse
ponto. So direcionados ao pblico consumidor feminino, que hoje quem
decide a maior parte das compras. A mensagem de que para as mulheres
consumidoras independentes, o homem no tem o menor interesse, inclusi-
ve atrapalhando a foto que quer tirar do carro, seu objeto/sonho de consumo.
O que interessa so os objetos; as pessoas, os homens, atrapalham: me-
lhor se ficam de fora da foto.
Por outro lado, est o discurso tecnolgico-cientfico. Cada vez mais,
o discurso da cincia se faz hegemnico, determinando os meios do gozo
com que fazemos sintoma. Aqui o passado obsoleto, a historicidade
sem histria, e a liberdade prometida atravs da eliminao dessa falta
incmoda chamada desejo. Nesse discurso somos cada vez mais cobaias
de nossa prpria inveno, somos transformados em puros objetos, pois a
excluso da palavra do sujeito est no fundamento do mesmo.
O discurso da cincia tem por ideal ser uma linguagem sem fala
14
. Por
que uma linguagem sem fala? Talvez porque a propriedade fundamental da
fala seja o fato de singularizar o lugar de onde se fala. O lugar de enunciao
sempre singular. Ningum fala do mesmo lugar que um outro. Conforme diz
o ditado popular, somente cada um pode dizer onde o sapato aperta. Essa
singularidade do lugar de enunciao considerada um vis para a pretensa
objetividade e universalidade visadas pelo discurso cientfico; logo, deve ser
eliminada.
Retornemos questo de como responder ao apelo contido na fala do
sujeito sem reforar a vertente da fala vazia e frustrante do narcisismo.
No outro extremo da experincia analtica, temos a realizao da fala
plena. Nesta, segundo Lacan, o sujeito mais que simplesmente narra o acon-
tecimento, ele o verbaliza, no sentido de que ele o fez passar para o verbo,
(...) para o epos
15
onde relaciona com o momento presente as origens de sua
pessoa
16
. Portanto, A anlise s pode ter por meta o advento de uma fala
verdadeira e a realizao, pelo sujeito, de sua histria em sua relao com
um futuro
17
.
nos momentos de verbalizao que uma anlise permite uma
reordenao da histria do sujeito, em que a compulso repetio d lugar
rememorao. A narrativa , nesse sentido, resistencial, pois o sujeito vai
muito alm do que o indivduo experimenta subjetivamente: vai exatamente
to longe quanto a verdade que ele pode atingir
18
.
Assim, o efeito de uma fala plena reordenar as contingncias pas-
sadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui
a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes
19
.
Isolado entre aspas no fio da narrativa
20
. do paciente, podemos tes-
temunhar a realizao da fala plena enquanto o nascimento da verdade na
fala e, atravs disso, esbarramos na realidade do que no nem verdadeiro
nem falso
21
.
O fio da narrativa tecido pelo ego, pelo indivduo que se considera
autnomo, senhor das palavras, da verdade o do destino. Entretanto, nos
13
Op. cit., p. 11-15.
14
LACAN, Jacques. O Seminrio, Livro 2. O eu na teoria de Freud e na tcnica da psican-
lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985.
15
Epos: segundo o dicionrio Aurlio, a palavra vem do grego, significando palavra, fala,
cano, causo, promessa, dito, mensagem.
16
Op. cit., p. 256.
17
Op. cit., p. 303.
18
Op. cit., p. 266.
19
Op. cit., p. 257.
20
Op. cit., p. 256.
21
Op. cit., p. 257.
BETTS, J. Narrativa ou...
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momentos de tropeo, dos lapsus, das formaes do inconsciente, que po-
demos reconhecer o autor. Todo ato falho um discurso bem sucedido.
22
O
momento de autoria o da colocao em ato do inconsciente. O sujeito se
faz verbo e, assim, a verdade pode ser resgatada, uma vez que j est escri-
ta em outro lugar, como no corpo, nas lembranas da infncia, na evoluo
semntica, nas tradies, lendas, nos vestgios das distores exigidas na
re-insero do captulo censurado na narrativa. Lacan define aqui o inconsci-
ente como sendo o captulo de minha histria que marcado por um branco
ou ocupado por uma mentira: o captulo censurado
23
.
Ou seja, o que interessa no fio da narrativa do sujeito o momento da
fala onde o desejo se faz verbo, relacionando o momento presente de sua
vida com as suas origens. Dito de outra forma, o que nos interessa na narra-
tiva o momento em que o sujeito se faz verbo. justamente essa assuno
de sua histria pelo sujeito, no que ela constituda pela fala endereada ao
outro, que serve de fundamento ao novo mtodo a que Freud deu o nome de
psicanlise
24
.
Quais so as relaes entre a fala e a escrita na psicanlise? A hist-
ria do sujeito, que se reordena atravs da fala endereada ao interlocutor, na
medida em que haja escuta, se reescreve. possvel rememorar a histria
do sujeito e resgatar sua verdade porque ela est escrita em outro lugar,
como mencionado acima. Mas preciso que seja falada para que o que est
escrito possa se reescrever. A questo nos remete instncia da letra no
inconsciente. A letra tem uma borda simblica e outra real. a realizao
simblica da letra na fala plena o que faz com que a letra faa instncia e se
reescreva no real do corpo. Essa mudana operada pelo discurso do analista
resulta para o sujeito na produo de um novo S1 ou de um S1 em nova
posio, ou seja, em novo lugar de enunciao de seu desejar.
Parafraseando Freud, l onde o narrador ergue o monumento ao
narcisismo, o autor deve advir.
22
Op. cit., p. 269.
23
Op. cit., p. 260.
24
Op. cit., p. 258.
O ANALISTA-TRADUTOR
J uliana de Miranda e Castro
1
P
ropomos uma reflexo sobre a prtica do analista, o seu fazer, en
quanto uma traduo. Como nos diz Freud, trata-se, no trabalho ana
ltico, da traduo do inconsciente: O conhecemos [o inconsciente]
apenas como consciente, depois que sofreu uma transposio ou traduo
ao consciente. (FREUD, 1915, p.161). O analista um tradutor e, como tal,
ele est confrontado com a dimenso do impossvel e da perda, digamos, do
impossvel de tudo traduzir, da correspondncia perfeita, do acesso pura
lngua.
A traduo est na passagem de uma lngua a outra, no ntimo relaci-
onamento entre elas. Benjamin (2001) teoriza sobre a pura lngua, a qual
seria inatingvel pelas lnguas isoladamente. Pensamos esse acesso como
pontual e parcial, na ntima relao entre as lnguas, que a traduo tende a
expressar. Ela no capaz de revelar ou instituir essa relao oculta das
lnguas entre si, mas pode atualiz-la de modo germinal ou intensivo. Isso
porque as lnguas so a priori afins naquilo que querem dizer e no estranhas
umas s outras. Ou seja, trata-se de algo no alcanvel separadamente por
nenhuma delas, mas somente na totalidade de suas intenes reciproca-
mente complementares: na pura lngua. Pois enquanto todos os elementos
isolados as palavras, frases, nexos sintticos das lnguas estrangeiras
se excluem, essas lnguas se complementam em suas intenes mesmas
(BENJAMIN, 2001, p.199). Podemos pensar a pura lngua na dimenso do
intransponvel e do inacessvel.
Assim, o que acompanha o trabalho do tradutor, com o que ele se
confronta em sua tarefa, o tema da integrao das vrias lnguas em uma
nica e verdadeira, na qual as lnguas, completas e reconciliadas, coincidiri-
am entre si. Nessa lngua, se ela existisse posto que no alcanvel, ela
1
Membro do Tempo Freudiano Associao Psicanaltica, Rio de Janeiro, RJ. Doutoranda
em Teoria Psicanaltica, UFRJ.
CASTRO, J. M. O analista-tradutor
38 39 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 140, outubro 2005 C. da APPOA, Porto Alegre, n.140, outubro 2005
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impossvel , frases isoladas jamais se entenderiam e portanto dependeri-
am da traduo. Nessa verdadeira e pura lngua esto guardados sem ten-
so e mesmo silenciosamente os ltimos segredos que o pensamento se
esfora por prosseguir (Ibid. , p.205). essa pura lngua que est intensa-
mente oculta nas tradues.
Nesse ponto, em que encontramos a pura lngua como o que opera
oculto, vamos fazer uma aproximao com a enunciao, que deixa traos
no enunciado. Podemos pensar a enunciao do lado da lngua pura e tam-
bm o sujeito, sujeito da enunciao, como prximo do narrador, nos termos
em que coloca Benjamin. Nesse sentido, vale lembrar Calvino, quando se
refere a Leskov: Como sempre ocorre em Leskov, a voz do narrador que
faz o conto; e este um desses casos em que essa voz consegue alcan-
ar-nos ainda que por meio de uma traduo (CALVINO, 2004, p.333). Ou
seja, a voz do texto a do narrador, do sujeito da enunciao, e esta voz
que se trata de transmitir na traduo. Em sua tarefa, o tradutor se apaga.
Benjamin fala do elemento no-comunicvel como o que resta: Em to-
das as lnguas e em suas construes resta, para alm do elemento comuni-
cvel, um elemento no comunicvel (BENJAMIN, 2001, p.211). O autor afirma
que quanto mais uma obra comunicao, menos a traduo pode se benefi-
ciar dela, at ser inviabilizada pela predominncia total do sentido. E quanto
maior sua potica, mais ela permanece traduzvel, mesmo no contato mais
fugidio com seu sentido. Assim, na traduo, no se trata de comunicao e
sentido mas, voltamos a afirmar, de enunciao. Pensamos que esse ele-
mento no-comunicvel que opera, esse resto que opera oculto.
Lo Bianco (2005), a partir de Freud (1939), traz tona a diferena entre
a tradio herdada prxima da enunciao e a tradio comunicada. Trata-
se, na primeira, de algo transmitido a despeito das transcries. Como o narrador
de Leskov, que aparece apesar das tradues. O herdado, ao contrrio do
comunicado, de difcil apreenso. Pensamos que o no comunicvel, do qual
nos fala Benjamin, marcado pela descontinuidade, pela ruptura, pela lacuna,
ele opera oculto, da ordem do incomunicvel, do enigma, que causa o sujeito.
Essa ruptura o que permite um novo entendimento.
Justamente por no se tratar de comunicao que o texto psicana-
ltico permanece vivo. A cada vez que esses traos so reanimados, so
atualizados, a cada nova tentativa de retom-los, de conquist-los, encontra-
mos a transmisso em operao (LO BIANCO, 2005). Encontramos nesses
traos o enigma herdado. Lo Bianco lembra que Freud d s marcas o valor
de fssil. Vem idia a colocao de Benjamin a respeito de Herdoto: Seu
relato dos mais secos (BENJAMIN, 1996, p.204). por isso que, at hoje,
causa espanto e reflexo. Benjamin marca uma semelhana entre o texto
seco de Herdoto e as sementes de trigo que ficaram fechadas por milhares
de anos nas pirmides e ainda conservam sua fora germinativa. O que
est em jogo na traduo justamente transmitir a fora germinativa do
texto, a enunciao, que est nas lacunas, no enigma. A secura do texto
o que o mantm vivo, o que o impulsiona. ao que o analista-tradutor tem
que estar com os ouvidos bem atentos para ler, na fala do paciente, nas
linhas do texto. Na clnica, o analista no pode se perder na profuso de
sentido da fala do paciente, para poder escutar o texto, enxuto. E se trata,
na traduo, de buscar no apagar ou encobrir essa marca para emudecer o
texto. Pois a secura, o silncio, a lacuna causam, operam. O outro lado
disso seria o que emudece pois esclarece, elucida e comunica e portan-
to no convoca o sujeito a se posicionar.
Benjamin define a tarefa do tradutor como sendo redimir na prpria a
pura lngua, exilada na estrangeira, liberar a lngua do cativeiro da obra por
meio da recriao essa a tarefa do tradutor (Ibid. ). Nessa tarefa, Lages
(2002) nos adverte que o tradutor corre o risco crescente de cair no silncio,
nica forma possvel de manifestao da verdadeira lngua ou lngua da Ver-
dade como meio (Mdium) de uma redeno possvel das inmeras lnguas
individuais e, simultaneamente, sinal da compreenso consumada(LAGES,
2002). O analista, caso se deixe tomar na via da compreenso, silencia, pois
impede a associao livre e o desenrolar da cadeia significante. Lages nos
fala do fulgor ofuscante e silenciador da lngua da Verdade (Ibid. , p.191). A
coincidncia perfeita, a completude da relao entre duas lnguas, o fazer
Um, da ordem do impossvel.
CASTRO, J. M. O analista-tradutor
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Nesse ponto, tendo em vista o que vimos desenvolvendo, poderamos
fazer uma aproximao com a pulso de morte, no intuito de fazer avanar
nossas questes. A lngua pura estaria cerca do domnio, sem tenso e
silencioso, da pulso de morte. Podemos pensar que esse acesso ao im-
possvel de uma lngua verdadeira e pura, levaria ao silncio da pulso de
morte, pois s temos acesso ao fragmento, ao parcial, pagando o preo da
perda, na lngua de sada ou na de chegada.
Podemos ainda articular a criao com a ruptura. Gagnebin comenta
que, desde que h criao, h tambm fratura, desordem, squize (GAGNEBIN,
2004, p.26). A autora fala da produtividade da perda e da morte, seja na
histria ou na linguagem (Ibid. , p.5), o que nos faz pensar na vertente cria-
dora da pulso de morte. Ela fala dos silncios e fraturas eficazes e afirma
que a paragem e o sopro marcados pela cesura que escande o verso ao
interromp-lo (Ibid. , p.102-103). Benjamin traz tona o risco originrio de
toda traduo que o aprisionamento do tradutor no silncio, quando o sen-
tido se precipita, at o risco de se perder em profundidades verbais sem
fundo. Mas h o ponto de parada (BENJAMIN, 2001, p.32.). Propomos uma
oposio entre esse silncio aprisionador de que nos fala Benjamin, e que
aqui trataremos como mutismo, e o silncio da escanso, que faz corte,
parada. esse ponto de parada que entendemos como causa, agente, que
impulsiona o texto na direo de permitir a passagem da enunciao.
Lages fala da traduo como transgressora, instncia de ruptura, ci-
so e desdobramento. Se transgressora e produz ruptura, podemos pen-
sar em sua dimenso de ato. Traduo que portanto produz conseqncias
na lngua em que chega, cortando-a, forando-a em seus limites. Traduo
que pode ter efeito de transmisso. E o que pode vir a fazer transmisso
dar ao texto seu carter de enunciao, que ele seja infectado pelo original e
que o equvoco possa ser audvel, ou seja, manter o sentido sem apagar a
marca da operao potica.
Segundo Benjamin, a traduo encontra-se a meio caminho entre
poesia e doutrina (BENJAMIN, 2001, p.205) e o essencial, como vimos, no
a comunicao, no o enunciado, mas o que est alm, o misterioso, o
potico. A traduo uma forma (Ibid. , p.190-191) e preciso retornar ao
original, pois nele reside a lei dessa forma. O autor traz a metfora dos
cacos de um vaso, que devem seguir-se uns aos outros detalhadamente,
mas sem se igualar, para poderem ser recompostos, como a traduo que
no deve buscar se assemelhar ao sentido do original. Ela deve reconfigurar
amorosamente, em sua prpria lngua, o modo de designar do original. Des-
sa maneira, ambos podem ser reconhecidos como fragmentos de uma ln-
gua maior, como cacos so fragmentos de um vaso (Ibid. ). Assim, a verda-
deira traduo transparente, no encobre o original, no o tira da luz; ela
faz com que a pura lngua, como que fortalecida por seu prprio meio, recaia
ainda mais inteiramente sobre o original (Ibid. , p.209).
Indagamo-nos, ento, sobre a traduo de textos psicanalticos que,
se por um lado trata-se da letra, da sintaxe, da forma, do ritmo, do potico,
por outro, temos a responsabilidade na transmisso dos conceitos no
pura poesia. Ento, qual o limite, para que no escorreguemos para a
ininteligibilidade, nem para a compreenso total? No podemos trabalhar
com uma literalidade com relao sintaxe, pois as palavras carregam
consigo uma tonalidade afetiva (Ibid. , p.207). Jesuno-Ferreto afirma que o
elemento potico necessrio para que haja transmisso. No se esque-
cendo que, em se tratando de textos psicanalticos, est em jogo a trans-
misso de conceitos, a autora questiona-se sobre o que sacrificar do senti-
do, o que guardar da letra, e prope uma traduo nem literria, nem literal,
mas na tradio da letra, no que isto implica de impossvel e de inveno
(JESUNO-FERRETO). O que nos faz pensar que a traduo ultrapassa a
questo da passagem de uma lngua a outra. No se trata apenas de equi-
valncias, de fidelidade, do palavra a palavra, do sentido, mas tambm de
literalidade, de letra e, ao mesmo tempo, de submisso ao significante e a
seus efeitos (Id.). A tarefa do tradutor o obriga a um exerccio de perda e
isso impe a ele constatar que o lugar do impossvel no o mesmo em
lnguas diferentes. Estarmos referidos a esse impossvel afasta-nos de uma
traduo que responderia com a impotncia.
CASTRO, J. M. O analista-tradutor
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 140, outubro 2005
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:
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LO BIANCO, A. C. O que a comparao entre a tradio religiosa e os novos
movimentos religiosos nos ensinam sobre o sujeito hoje? Mimeo, 2005.
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BARTLEBY
Contardo Calligaris

B
artleby, o Escrivo, de Herman Melville (o autor de Moby Dick),
est se tornando um pequeno best-seller. O fato que a editora,
CosacNaify, criou um maravilhoso livro-objeto, que reproduz material-
mente o esprito do prprio Bartleby: fechado e costurado, resistente. Bartleby
um escrivo, aparentemente zeloso, que um belo dia comea a recusar,
com montona e tranqila determinao, as tarefas que lhe so propostas.
Acho melhor no: essa frase tudo o que ele diz. Seu empregador (o
narrador da novela) no consegue acesso algum histria de vida de Bartleby
e s razes pelas quais ele no aceita ordens e servios. Bartleby no vai
embora, no se irrita nem esbraveja, apenas se recusa. Exasperador, no ?
Bartleby j foi explicado de mil maneiras: um Cristo moderno, um proletrio
revoltado, um precursor das personagens das peas de Samuel Beckett.
Como ele no fala nada (segue silencioso, achando melhor no), permito-me
sugerir minhas duas maneiras de ler a novela. 1) No sou um perito em
Melville. Li uma boa biografia (Melville, a Biography, de Laurie Robertson-
Lorent) e sempre leio prefcios e posfcios. Basta-me para saber o que
segue. Melville escreveu uma boa parte de suas fices curtas entre 1853 e
1856. Moby Dick, o romance do qual ele esperava fama e fundos, tinha sido
um fracasso de vendas, em 1851. Em 1849 nascera Malcolm, seu primeiro
filho, que Melville recebeu atormentado pelo medo de no conseguir susten-
tar sua famlia. Malcolm devia ter quatro ou cinco anos quando Melville es-
creveu Bartleby. Ora, no consigo me desgrudar desta idia: o escrivo,
que no sai do escritrio, no quer falar dele mesmo e se recusa a cumprir
tarefas e pedidos, curiosamente parecido com uma criana que resiste
obstinadamente aos pais, no diz nada (porque no pode ou no quer) sobre
as razes de sua oposio e, claro, no tem como sair de casa. Muitos pais
reconhecero, no acho melhor no de Bartleby, o antagonismo surdo de
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CALLIGARIS, C. Bartleby
filhos que, apesar de mil perguntas dos adultos, mantm-se obstinadamente
hostis, silenciosos e enigmticos. Esse negativismo fechado, sem conver-
sa, cresce medida que ele enfurece os adultos. Se no for encontrado um
jeito de trocar palavras e afetos, o prognstico delicado. Malcolm, o primei-
ro filho de Melville, suicidou-se com um tiro na cabea, aos 18 anos. 2)
Psiquiatras, psicanalistas e crticos se debruaram sobre a personalidade
de Bartleby, que j foi diagnosticado como esquizofrnico, anorxico etc.
Mas h um transtorno da personalidade pelo qual a leitura da novela de
Melville vale mais que uma monografia patolgica. O DSM IV - Manual Diag-
nstico e Estatstico de Transtornos Mentais, da American Psychiatric
Association, descreve o transtorno de personalidade agressiva-passiva como
um padro de atitudes negativas e de resistncia passiva diante dos pedidos
de produzir um desempenho adequado. O sujeito se recusa, passivamente,
a cumprir tanto sua rotina social quanto suas tarefas ocupacionais. A
monografia mais recente sobre esse quadro Passive-Aggression: a Guide
for the Therapist, the Patient and the Victim (agresso-passiva: um guia
para o terapeuta, o paciente e a vtima), de Martin Kantor. A personalidade
agressiva-passiva tipicamente masculina. Nas brigas de casais, o homem
agressivo-passivo a parede contra a qual jogam a loua de casa mulheres
enlouquecidas pela fria compostura de seus companheiros. Os psiquiatras
podem discordar quanto s causas do transtorno, que se encontram na vida
pregressa do sujeito, mas todos parecem concordar quanto ao seguinte: o
agressivo-passivo cheio de dio e ressentimento. Talvez ele se limite a
resistir passivamente para no soltar uma agresso que, sem isso, seria
explosiva e mortfera alm da conta. Pois bem, o que me impressiona, ao ler
e reler Bartleby, que essa novela de menos de 40 pginas, em que no
aprendemos nada sobre a vida do escrivo ou sobre seus pensamentos,
muito, mas muito mais rica em sabedoria (inclusive clnica) do que o livro de
Kantor (que, alis, um bom livro). Em outras palavras, o que me impressi-
ona sobretudo o milagre da literatura, sua inexplicvel capacidade de nos
dar acesso experincia humana. Misteriosamente, os silncios de Melville
me aproximam de Bartleby mais que as 232 pginas de Kantor. No fim da
coluna da semana passada, mencionei uma idia segundo a qual a medio-
cridade das elites seria o efeito inevitvel de uma mobilidade social acelera-
da. Nesse caso, as elites econmicas ou polticas se constituiriam sem ter
a chance de crescer culturalmente. Alguns leitores me responderam que
nossas elites j so carregadas de MBAs e coisas que os valham. H um
mal-entendido: a cultura no so as coisas que sabemos, a cultura nossa
capacidade de compreender (no s entender) a estranha diversidade de
nossa espcie. uma coisa que se encontra nas salas de cinema, nos
teatros e ao abrir, sempre que der, as pginas de uma obra de fico. Bartleby,
por exemplo.
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KEHL, M. R. O Pas no div...
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O PAS NO DIV, ENTRE TAPAS E BEIJ OS
1
Maria Rita Kehl
A PAIXO, A RETRICA E O PAINHO QUE O POVO AMA
Temos de distinguir a passionalidade da retrica. Porque, muitas ve-
zes, o que vemos uma retrica de passionalidade para que se consiga a
adeso da platia um recurso melodramtico que produz certo
engajamento do pblico. Essa ressalva importante porque o poltico um
fingidor ele e o poeta sabem fingir a dor que deveras sentem ou no
sentem de jeito nenhum.
Agora, a poltica o campo de disputa pela hegemonia de poder. E
essa disputa no se d sem paixo. Assim, aspectos infantis, narcisistas,
esto em jogo. do humano que essas paixes de glria, essas paixes
pblicas aquelas que dizem respeito disputa do poder, efetivao de
projetos e ideais acabem por se contaminar pelo infantil, pelo egosmo
mais primrio, aquele que diz eu quero para mim, quero ser melhor que todo
mundo, quero que todos gostem de mim. por isso que uma sociedade
democrtica tem de ter mecanismos institucionais e de controle popular que
busquem impedir essa contaminao ou que pelo menos cobam os ex-
cessos. No Brasil, esse personalismo da poltica uma patologia. Tome o
exemplo extremo de Antonio Carlos Magalhes. Ali tem uma mistura entre
relao de poder e afeto. ACM o painho que os eleitores vem como o
protetor que os ama porque ama a Bahia. O Brasil precisa superar esse tipo
de contaminao.
A IMPRENSA, O ESPETCULO E O PALADINO DA JUSTIA
A imprensa considera que o fato vale pela sua verso pblica. Aconte-
ce que a sociedade do espetculo tem uma capacidade tcnica de gerar
efeitos que no tem precedentes na histria da humanidade. Esse aparato
cria fatos consumados com muita rapidez. Mesmo um caluniador sendo
depois processado e condenado, esses fatos j se criaram, com efeitos
avassaladores.
Fiquei impressionada com a servido e a subservincia dos jornalis-
tas que entrevistaram Roberto Jefferson no programa Roda Viva segunda-
feira. Havia ali representantes de todos os rgos de imprensa, o Paulo Markun,
que respeito muito. E ningum lembrou que ele tambm era acusado, que
poderia prestar contas a respeito das acusaes que pesam sobre ele. Nin-
gum o encostou contra a parede e ele jantou todas aquelas pessoas. Que
imprensa ns temos? Pensar que o governo no qual votei me decepciona
hoje em uma srie de aspectos no todos me deixa to desamparada
quanto pensar que, para saber o que est acontecendo, dependo de uma
imprensa na qual confio cada vez menos. No estou dizendo que no se
devia levar em conta as denncias que Jefferson faz. Mas trat-lo como pala-
dino da justia foi absolutamente horroroso.
O FIM DA ESPERANA E UM PRESIDENTE QUE FOI
VENDIDO COMO MARCA DE FANTASIA
Em primeiro lugar, uma ressalva que volta questo da imprensa.
Esse assassinato das esperanas de quem acreditou em um governo petista
est sendo inflado de forma irresponsvel desde o primeiro ms do governo
Lula. Eu me espanto de ver articulistas que nunca defenderam o PT nem a
eleio dele de repente se colocarem como decepcionados. Por qu, se
achavam Lula incapaz e analfabeto?
Outro aspecto sobre o fim da esperana diz respeito s campanhas
eleitorais. Elas tm sido conduzidas com uma nfase to grande nas tcni-
cas publicitrias mais apelativas, espetaculares e infantilizadoras que o elei-
tor j virou pblico-alvo. Indubilavelmente, isso cria muito mais do que espe-
rana cria fantasia, que o fundamento da publicidade. Participo de um
grupo de intelectuais do PT e por isso posso falar com grande senso de
Editamos, aqui, parte da matria feita pelo reprter Fred Melo Paiva, publicada no Jornal O
Estado de So Paulo, 26 de junho de 2005, em que a autora aborda a atual crise poltica.
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lealdade ns sempre criticamos o modo como a campanha do Lula foi
conduzida. ramos contra vend-lo como uma marca de fantasia. No entan-
to, parecia que o jogo era esse e a nica maneira de vencer era essa. Muita
gente votou no Lula como votou antes no Maluf ou no Pitta com uma
expectativa absolutamente fantasiosa. Assim, Lula, PT, Duda Mendona so
co-responsveis por isso. Bolero de Ravel com grvidas descendo uma coli-
na verde (uma das ltimas cenas apresentadas pela campanha de Lula em
2002) um universo de sonho que no tem nada a ver com poltica. Alm de
ser o fim da picada do brega.
Muita coisa interessante nas polticas sociais no divulgada. A grande
decepo, portanto, no com os projetos sociais ou a poltica econmica.
Talvez a grande decepo seja com a face propriamente republicana e polti-
ca desse governo. O presidente Lula e alguns principais representantes do
governo se comportam com a tica da cordialidade, que da pior tradio
poltica brasileira. As relaes pessoais passam frente das relaes
institucionais e da prpria tica. Esto fazendo da poltica um jogo de afetos
e emoes. Quando Lula escolhe Romero Juc para o Ministrio da Previ-
dncia e aparecem denncias, ele diz que no vai julgar algum que no foi
condenado. Est certo. Mas tem tambm obrigao de dizer que, se est
sob suspeita, no pode ser ministro. No pessoal. No questo de ser
amigo ou aliado. Quando Roberto Jefferson foi acusado, ele repetiu que tinha
ali um amigo, amigo at o fim. No disso que deveria se ocupar a poltica.
Me parece que Lula no tem a dimenso de uma tica pblica. Ou a perdeu.
O MENSALO, AS FINALIDADES DO GOVERNO E A DEMOCRACIA
No gostaria de entrar em particulares que desconheo. Mas, em
tese, qualquer poltica em que os fins justificam os meios j estar corrom-
pendo esses fins. O Brasil tem como grave problema a despolitizao gene-
ralizada, agravada por 20 anos de ditadura. Nesse cenrio, claro que no
vale a poltica dos fins que justificam os meios porque um dos fins o
amadurecimento da democracia. Esse governo no foi criado s para cuidar
dos pobres, e espero que o Lula no esteja a apenas como novo pai dos
pobres. Ele teria sido eleito para aperfeioar um caminho democrtico que,
ao meu ver, poderia levar a futuros governos de esquerda para que o povo,
mais consciente, possa votar a seu favor em polticas que no sejam populistas
ou neoliberais.
ROBERTO JEFFERSON E A DIFERENA ENTRE
OPORTUNISMO E RESSENTIMENTO
O ressentimento note a partcula re uma mgoa que no ces-
sa. Ela provoca uma queixa re-sentida, um afeto que se repete e no se
quer esquecer nunca. H interesse em manter essa mgoa ativa. Primeiro
porque o sujeito se lembra de sua mgoa para esquecer que, na origem, ele
pode ter sido cmplice. Ento faz questo de lembrar o que o outro lhe fez
uma recordao que encobre o que ele prprio permitiu que o outro lhe fizes-
se. Em segundo lugar e citando Nietzsche , essa mgoa, a queixa e o
lamento so a prpria vingana do ressentimento. Porque o que ele pretende
produzir culpa e m conscincia no outro Olha que vtima que eu sou,
olha que mal voc me fez, olha como voc ruim e eu sou bom, olha como
pude oferecer a outra face.
Embora o ressentimento seja malvisto, se voc no nome-lo, conse-
gue faz-lo aparecer com um certo brilho tico. Por que o ressentido covar-
de e no luta? Porque ele se v como um puro, como algum que no suja
as mos nas disputas da vida, como algum mais sensvel que, por isso,
no entrou na feia briga da vida. Muito freqentemente, aquele que chama-
mos de ressentido no o ressentido o revoltado, o indignado que nunca
deixa barato. O ressentido voc no percebe, porque ele se apresenta como
melhor do que os outros, o que sofre porque lhe fizeram mal, mas ele um
inocente. Esse seu trunfo.
No caso particular das denncias que surgem contra o governo,
preciso diferenciar ressentimento de oportunismo. Eu no sei se Roberto
Jefferson estava l sofrendo calado as suas mgoas contra o poderoso Jos
Dirceu. Realmente ele tinha l suas broncas e, quando se viu na berlinda,
lanou mo de fofocas que ele sabia que iriam criar uma confuso danada.
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No estou dizendo que no sejam verdadeiras as acusaes que ele fez
mas me parece oportunismo. Pode at sugerir ressentimento quando
teatralizado. Mas no acredito que ele tenha guardado a histria do mensalo
porque fosse um pobre oprimido. Deve ter feito isso pensando em us-la a
seu favor quando chegasse a hora. Vou citar uma frase de Aloizio Mercadante
quando ele se elegeu pela primeira vez e foi conhecer a realidade do Con-
gresso: Aqui o Brasil est representado. Tudo que tem no Brasil est no
Congresso. S no tem o bobo. Ou seja, uma boa amostra do Pas,
excluindo-se os bobos. Nem quando se fala que o outro mulherengo consi-
go acreditar que haja ali ressentimentos. O que est em jogo, me parece,
uma esperteza baixa. Mesmo quando vem o Bolsonaro e grita terrorista,
uma passionalidade calculada. Ele imagina o efeito que aquilo vai ter no
fala do corao, no exprime sua justa indignao.
PEDRO COLLOR, A SECRETRIA KARINA SOMAGGIO
E A EX DE VALDEMAR COSTA NETO
Pedro Collor comeou a jogada. Poderia ter l seus ressentimentos,
mas se arriscou, o que no caracterstico do ressentido. No posso julgar
a secretria ou a ex-mulher porque no as conheo. Mas o lugar histrico da
mulher na sociedade favorece muito o ressentimento.
AS METFORAS DE LULA E O HOMEM CORDIAL
DE SRGIO BUARQUE DE HOLANDA
O terreno do amor muito frtil para o aparecimento do ressentimento
porque mexe com o que temos de mais infantil. As relaes de poder no
Brasil so muito afetivas, como j se disse. Mas nossa sociedade no se
reconhece nunca como ressentida, deixando camuflado esse sentimento. O
resultado disso so efeitos de atraso por isso nos colocamos diante das
autoridades como crianas que ficam esperando ser reconhecidas por um
pai amoroso. o infantil frente a uma figura de poder maior, de quem se
espera reconhecimento e justia, sem que se tenha de tomar nenhuma atitu-
de. Isso nos remete a Srgio Buarque de Holanda, quando analisa o estilo de
cordialidade da poltica brasileira desde os tempos da colonizao. Nele, os
critrios de afeto valem mais do que os critrios da lei aos amigos, tudo;
aos inimigos, Justia. Assim, os valores da vida privada superam e invadem
os domnios da vida pblica. Nesse ponto, no sentido de seu discurso e de
sua imagem, Lula se comporta como o homem cordial. Os seus exemplos
so sempre da vida familiar o pai com os filhos, a criana que tem de
esperar tantos meses para nascer, a rvore que brota do quintal. So exem-
plos da natureza, do afeto, do privado nunca da poltica. Com isso, ele fala
a linguagem que a sociedade brasileira est acostumada a ouvir. Pode at
ter muito sucesso com suas metforas. Mas no politiza a sociedade, ao
contrrio refora a idia de que o lder poltico o pai bondoso que vai
cuidar de ns, que nos ama e por isso devemos am-lo. O plano dos afetos,
no entanto, ambivalente. Para amor virar dio um estalar de dedos, de-
pendendo do nvel de decepo. Alm disso, esse tipo de postura no elege
somente o Lula. Elege, por exemplo, o Garotinho. Alis, se voc no politiza
o debate, se no combate essa cordialidade da poltica brasileira, elege um
Lula para cada dez Garotinhos.
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in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criao da capa: Flvio Wild - Macchina
AGENDA 52
NARRATIVA E EXPERINCIA
N 140 ANO XII OUTUBRO 2005

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