Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade Federal de Pernambuco que analisa o estilo e a narrativa na obra do diretor Sergio Leone. A tese descreve a evolução do gênero spaghetti western influenciado por Leone e analisa elementos recorrentes em seus filmes como o uso de planos longos, ângulos incomuns e trilha sonora impactante.
Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade Federal de Pernambuco que analisa o estilo e a narrativa na obra do diretor Sergio Leone. A tese descreve a evolução do gênero spaghetti western influenciado por Leone e analisa elementos recorrentes em seus filmes como o uso de planos longos, ângulos incomuns e trilha sonora impactante.
Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade Federal de Pernambuco que analisa o estilo e a narrativa na obra do diretor Sergio Leone. A tese descreve a evolução do gênero spaghetti western influenciado por Leone e analisa elementos recorrentes em seus filmes como o uso de planos longos, ângulos incomuns e trilha sonora impactante.
Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade Federal de Pernambuco que analisa o estilo e a narrativa na obra do diretor Sergio Leone. A tese descreve a evolução do gênero spaghetti western influenciado por Leone e analisa elementos recorrentes em seus filmes como o uso de planos longos, ângulos incomuns e trilha sonora impactante.
Baixe no formato PDF, TXT ou leia online no Scribd
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 332
1
Rodrigo Octvio dAzevedo Carreiro
Era uma vez no spaghetti western: Estilo e narrativa na obra de Sergio Leone
Recife 2011
14
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO
Rodrigo Octvio dAzevedo Carreiro
Era uma Vez no Spaghetti Western: Estilo e Narrativa na Obra de Sergio Leone
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Comunicao pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientao da Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho.
Recife 2011
Catalogao na fonte Bibliotecria Glucia Cndida da Silva, CRB4-1662
C314e Carreiro, Rodrigo Octvio dAzevedo. Era uma Vez no Spaghetti Western: estilo e narrativa na obra de Sergio Leone / Rodrigo Octvio dAzevedo Carreiro. Recife: O autor, 2011. 332 p. : il.
Orientador: Paulo Carneiro da Cunha Filho. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco, CAC. Comunicao, 2011. Inclui bibliografia, anexos e apndices.
1. Comunicao. 2. Cinema - Esttica. 3. Cinema Histria. I. Cunha Filho, Paulo Carneiro da. (Orientador). II. Titulo.
302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2011-22)
Todas essas histrias so sobre o qu? Apenas sobre um punhado de dlares? Ou existe algo mais por trs? Alberto Moravia
Nada existe realmente a que se possa dar o nome Arte. Existem somente artistas. E.H. Gombrich
Para Nina e Helena, que fazem tudo valer a pena.
Agradecimentos
Agradeo aos professores e alunos do PPGCOM-UFPE pelas contribuies oferecidas nas diversas vezes em que apresentei ou discuti, em seminrios, aspectos desta tese. Pelo mesmo motivo, agradeo aos participantes do GT Fotografia, Cinema e Vdeo do encontro de 2010 da Compos 2010, realizado na PUC-RJ. Comentrios, crticas e sugestes, nascidos dentro desses fruns, forneceram sadas para impasses tericos ou metodolgicos que se desenharam ao longo da trajetria. Muito obrigado aos colegas da disciplina Seminrio de Tese, que tiveram a pacincia de ler e comentar dois captulos do original. Agradeo em especial professora Nina Velasco, cuja anlise acurada antecipou muitos dos comentrios da banca de qualificao e apontou para mudanas importantes no relatrio final. Agradeo aos professores e alunos do Bacharelado em Cinema, pela troca de informaes e pelas sugestes de leitura e pelo incentivo. Devo mencionar o apoio pessoal dos professores Angela Prysthon e Felipe Trotta, e no apenas pela crtica construtiva realizada durante a banca de qualificao, mas tambm pelo apoio recebido nos momentos difceis que enfrentei, ao longo do processo de pesquisa e redao. A Celly de Brito Lima, pela ajuda com a ABNT e pela torcida incondicional. A meus pais, Raimundo e Clia, pelo ombro providencial e pelas palavras de incentivo. A Nise, Daniela e Santana, pelo amor, ateno e carinho que sempre dedicaram a Nina e Helena (e tambm a mim, com certeza). s minhas duas filhas, por serem um motivo concreto para que o pai procure sempre ir um pouco mais longe. A Adriana, pelo apoio e pelo exemplo de disciplina e rigor acadmico. Aos amigos que acompanharam o processo: sintam-se abraados, todos. Agradecimentos especiais a Erika Pires Ramos, Osvaldo Neto, Andrea Mello Rego e Roberta Rego, pelas dicas eventuais, pela torcida e pela energia positiva. Obrigado aos leitores do Cine Reprter, muitos dos quais acompanharam o processo de redao da tese (via e-mail, Twitter e Facebook) e escreveram de volta, incentivando, dando dicas ou pedindo para ler a tese depois de defendida. Um obrigado especial ao meu irmo Diego, pela reviso cuidadosa, pelas sugestes e pelas dicas bibliogrficas. Finalmente, obrigado a Paulo Cunha, pela orientao tranqila, pela assistncia precisa e pela ajuda com os textos em francs. E obrigado a todos aqueles que porventura eu tenha esquecido de mencionar aqui.
Lista de figuras
Fig. 1.1-2: Frames de Por um Punhado de Dlares e Por uns Dlares a Mais .................................. 38 Fig. 1.3-8: Frames de Por um Punhado de Dlares ............................................................................. 42 Fig. 1.9-10: Frames de Django ............................................................................................................ 44 Fig. 1.11-12: Frames de Por uns Dlares a Mais e Joe, o Pistoleiro Implacvel ............................... 50 Fig. 1.13-18: Frames de Por uns Dlares a Mais ................................................................................ 52 Fig. 1.19-24: Frames de Django, o Bastardo; A Morte Anda a Cavalo; O Dia da Desforra; Sabata; Tempo de Massacre; Cemitrio sem Cruzes .......................................... 54 Fig. 1.25-30: Frames de Trs Homens em Conflito .............................................................................. 56 Fig. 1.31-32: Frames de Meu dio Ser Sua Herana ........................................................................ 58 Fig. 1.33-38: Frames de Era uma Vez no Oeste ................................................................................... 69 Fig. 1.39-42: Frames de Era uma Vez no Oeste ................................................................................... 60 Fig. 1.43-44: Frames de Sabata e Meu Nome Trinity ........................................................................ 62 Fig. 1.45-48: Frames de Quando Explode a Vingana ........................................................................ 65 Fig. 1.49-52: Frames de Meu Nome Ningum ................................................................................... 66 Fig. 1.53-60: Frames de Era uma Vez na Amrica .............................................................................. 68 Fig. 1.61-66: Fotografia de Nova York nos anos 1930 (1.61) e frames de Era uma Vez na Amrica ...................................................................................................................... 71 Fig. 2.1-12: Frames de Por um Punhado de Dlares ................................................................. 124-125 Fig. 2.13-14: Frames de Por um Punhado de Dlares ....................................................................... 126 Fig. 2.15-26: Frames de Por um Punhado de Dlares ....................................................................... 128 Fig. 2.27-32: Frames de Por um Punhado de Dlares ....................................................................... 131 Fig. 2.33-36: Frames de Por um Punhado de Dlares ....................................................................... 132 Fig. 2.37-42: Frames de Por um Punhado de Dlares ....................................................................... 133 Fig. 2.43-46: Frames de Por uns Dlares a Mais .............................................................................. 135 Fig. 2.47-50: Frames de Por uns Dlares a Mais .............................................................................. 137 Fig. 2.51-54: Frames de Por uns Dlares a Mais .............................................................................. 138 Fig. 2.55-56: Frames de Por uns Dlares a Mais .............................................................................. 139 Fig. 2.57-70: Frames de Por uns Dlares a Mais ....................................................................... 143-144 Fig. 2.71-78: Frames de Por uns Dlares a Mais .............................................................................. 147 Fig. 2.79-80: Frames de Vera Cruz .................................................................................................... 149 Fig. 2.81-84: Frames de Os Brutos Tambm Amam; Paixo dos Fortes; Minha Vontade Lei; O Homem que Matou o Facnora ................................................................... 150 Fig. 2.85-86: Frames de Estigma da Crueldade e Por uns Dlares a Mais ...................................... 151 Fig. 2.87-90: Frames de Trs Homens em Conflito, Por um Punhado de Dlares e Por uns Dlares a Mais ...................................................................................................................... 153 Fig. 2.91-94: Frames de Trs Homens em Conflito ............................................................................ 154 Fig. 2.95-102: Frames de Monsieur Verdoux; Trs Homens em Conflito; O General; O Homem que Luta S; E o Vento Levou ........................................................................ 157 Fig. 2.103-106: Frames de Trs Homens em Conflito ........................................................................ 159 Fig. 2.107-116: Frames de Era uma Vez no Oeste ............................................................................. 161 Fig. 2.117-128: Frames de Era uma Vez no Oeste; Matar ou Morrer; Os Brutos Tambm Amam; O Cavalo de Ferro; Johnny Guitar; O Retorno de Frank James; Rastros de dio ................................................................................................................................. 165- 166 Fig. 2.129-140: Frames de Quando Explode a Vingana ........................................................... 167-168 Fig. 2.141-144: Frames de Meu Nome Ningum; Drages da Violncia; Paixo dos Fortes ............................................................................................................................... 170 Fig. 2.145-146: Frames de Meu Nome Ningum ............................................................................. 171 Fig. 2.147-150: Frames de Meu Nome Ningum ............................................................................. 172 Fig. 2.151-154: Frames de Meu Nome Ningum ............................................................................. 173 Fig. 2.155-174: Frames de Era uma Vez na Amrica ................................................................. 175-176 Fig. 2.165-174: Frames de Era uma Vez na Amrica ................................................................. 178-179
Fig. 3.1-44: Frames de Trs Homens em Conflito ...................................................................... 185-189 Fig. 3.45-46: Frames de Vera Cruz e O Homem que Luta S ............................................................ 194 Fig. 3.47-48: Frame de Trs Homens em Conflito e fotografia de Matthew Brady ........................... 195 Fig. 3.49-52: Frames de Era uma Vez na Amrica ............................................................................ 203 Fig. 3.53-54: Frames de O Encouraado Potemkin e A Paixo de Joana DArc .............................. 205 Fig. 3.55-60: Reprodues de esboos desenhados por Sergei Eisenstein em 1933; frames de Ivan, o Terrvel; Elegia de Osaka; A Regra do Jogo (2) ................................................... 211 Fig. 3.61-68: Frames de No Tempo das Diligncias; Rastros de dios; Cidado Kane (2); Por uns Dlares a Mais; Trs Homens em Conflito; Era uma Vez no Oeste; Trs Homens em Conflito .............................................................................. 213 Fig. 3.69-76: Reproduo da pintura La Classe de Danse (Edgar Degas) e frame de Era uma Vez no Oeste; frame de Por um Punhado de Dlares e reproduo de El Tres de Mayo de 1808 en Madrid (Francisco Goya); reproduo de Las Meninas (Diego Velsquez) e frame de Trs Homens em Conflito; frame de Por uns Dlares a Mais e reproduo de Andromache (Giorgio De Chirico) ....................................................... 216-217 Fig. 3.77-78: Frames de Cu Amarelo e Os Brutos Tambm Amam .................................................. 218 Fig. 3.79-80: Reprodues de desenhos da pelcula do sistema anamrfico Cinemascope e da pelcula do sistema no-anamrfico Techniscope ................................................ 220 Fig. 3.81-90: Frames de Era uma Vez na Amrica ..................................................................... 222-223 Fig. 3.91-92: Frames de Trs Homens em Conflito ............................................................................ 224 Fig. 93-96: Frames de Trs Homens em Conflito ............................................................................... 225 Fig. 3.97-128: Frames de Era uma Vez no Oeste ........................................................................ 227-230 Fig. 3.129-132: Frames de Por uns Dlares a Mais e desenho do figurino de Por uns Dlares a Mais (Carlo Simi) ................................................................................................. 233 Fig. 3.133-136: Frames de Por uns Dlares a Mais .......................................................................... 234 Fig. 137-144: Frames de Trs Homens em Conflito ........................................................................... 236 Fig. 3.145-150: Frames de Trs Homens em Conflito e fotografias de Matthew Brady .................... 237 Fig. 3.151-158: Frames de Trs Homens em Conflito e Era uma Vez no Oeste; desenho de cenrio de Trs Homens em Conflito; fotografia de Matthew Brady .............................. 239 Fig. 3.159-160: Frames de Era uma Vez na Amrica ........................................................................ 240 Fig. 3.161-178: Frames de Trs Homens em Conflito ................................................................ 249-250 Fig. 3.179-182: Frames de Era uma Vez no Oeste ............................................................................. 252 Fig. 183-212: Frames de Era uma Vez no Oeste ......................................................................... 254-256 Fig. 3.213-236: Frames de Por uns Dlares a Mais ................................................................... 263-265 Fig. 3.237-254: Frames de Trs Homens em Conflito ................................................................ 260-270 Fig. 4.1-8: Frames de Assalto 13 DP ............................................................................................. 276 Fig. 4.9-20: Frames de Taxi Driver ............................................................................................. 279-280 Fig. 4.21-30: Frames de Sndrome de Caim ................................................................................ 281-282 Fig. 4.31-46: Frames de O Poderoso Chefo; Touro Indomvel; Sem Destino; Lua de Papel; O Exorcista; Um Dia de Co; Barry Lyndon; Laranja Mecnica; A Fria; Tubaro; O Imprio Contra-Ataca; ET O Extraterrestre ......................................... 283-284 Fig. 4.47-60: Frames de Operao Frana ................................................................................. 288-289 Fig. 4.61-64: Frames de Trs Homens em Conflito e Bastardos Inglrios ........................................ 292 Fig. 4.65-84: Frames de Ces de Aluguel ................................................................................... 293-294 Fig. 4.85-106: Frames de Matrix ................................................................................................ 299-301 Fig. 4.107-114: Frames de Um Plano Simples ................................................................................... 302 Fig. 4.115-120: Frames de Shrek ........................................................................................................ 304 Fig. 4.121-124: Frames de Toy Story 2 e Bolt .................................................................................... 305 Fig. 4.125-140: Frames de Onde os Fracos No Tm Vez; Desejo e Reparao; O Senhor dos Anis; Vcio Frentico; Irreversvel; Um Olhar do Paraso; Fogo Contra Fogo ....................................................................................................................... 306-307 Fig. 4.141-144: Frames de Titanic ..................................................................................................... 309
Resumo
O objetivo desta pesquisa realizar uma anlise estilstica e narrativa minuciosa da obra de Sergio Leone, a fim de desvelar a real contribuio dos filmes dele ao repertrio de esquemas circulantes no cinema contemporneo. Partimos do princpio de que Leone ajudou a desenvolver recursos importantes para o processo de intensificao da potica cinematogrfica clssica, que muitos pesquisadores afirmam ter ocorrido a partir dos anos 1960, tendo feito isso a partir de revises sistemticas dos esquemas dominantes de construo narrativa disponveis na poca. Para alcanar nosso objetivo, tentaremos identificar a recorrncia de padres estilsticos e narrativos nos filmes assinados por Leone, sempre procurando elencar e analisar os contextos scio-culturais, tecnolgicos, econmicos e ideolgicos que o levaram a adotar e desenvolver esses padres, alm de mostrar como cada recurso abriu caminho dentro do repertrio de tcnicas utilizadas por cineastas contemporneos. Tentaremos investigar, ainda, a conexo entre o relativo apagamento dessa contribuio estilstica de Leone ao fato de ele ter trabalhado, durante toda a carreira, com o cinema de gnero, cuja filmografia tem recebido pouca ateno de historiadores do estilo cinematogrfico.
Palavras-chave: Spaghetti western Potica do cinema Histria do Cinema Esttica do Cinema Anlise Flmica.
Abstract The main goal of this thesis is to make a thorough stylistic and narrative analysis of the films directed by Italian filmmaker Sergio Leone, trying to identify his real contribution to the repertory of schemata that circulate in contemporary filmmaking. The starting hypothesis is that Leone helped to develop several techniques that became important to the process of intensification of the classical continuity poetics, which some film researchers affirm that occurred from the 1960s onwards; he has done it through revisions of narrative and stylistics schemata available at the time he was working. To reach our goal, we will research all his films and list every recurrent stylistic and narrative patter, always seeking to explain how social, cultural, technological, economical and ideological contexts helped Leone to choose and develop those patters, not forgetting to show how these techniques became popular in contemporary filmmaking. We will investigate also the connection between this relatively unnoticed stylistic contribution and the association between Leone and popular cinema genres, whose films has received little attention by style film historians.
Keywords: Spaghetti western Film Poetics Film History Film Aesthetics Film Analysis.
1. Estilo e modo de produo ............................................................................................... 31 1.1 Cinecitt: uma histria em ciclos ................................................................................... 31 1.2 Apogeu e queda .............................................................................................................. 48 1.3 O impacto do gnero e do autorismo na fortuna crtica ................................................. 72 1.4 A anlise da fortuna crtica ............................................................................................ 83 1.5 Cineastas, intelectuais e os Cahiers du Cinma ............................................................. 97
2. Prticas narrativas de Sergio Leone .............................................................................. 115 2.1 A narrao na potica do cinema ................................................................................. 115 2.2 Dupla de anti-heris ..................................................................................................... 133 2.3 Heris ou anti-heris? .................................................................................................. 151 2.4 Fim da linha ................................................................................................................. 166
3. Prticas estilsticas de Sergio Leone .............................................................................. 180 3.1 Construindo um repertrio audiovisual ........................................................................ 180 3.2 Composio e enquadramento ..................................................................................... 203 3.3 Cenrios, figurinos e objetos cnicos ........................................................................... 231 3.4 O som: voz, rudos, silncios e msica ........................................................................ 240
4. O legado de Leone ........................................................................................................... 273 4.1 Continuidade intensificada e Gerao New Hollywood .............................................. 273 4.2 Sergio Leone e os filmes contemporneos ................................................................... 290
O episdio narrado a seguir ocorreu em 1966 (FRAYLING, 2000, p. 247-248). Era sexta-feira, 23 de dezembro, data da estria de Trs Homens em Conflito (Il Buono, il Brutto, il Cattivo, Sergio Leone, 1966) em Roma. O diretor Bernardo Bertolucci, ento autor de dois longas-metragens elogiados pela crtica, cumpria um velho hbito cinfilo: assistir aos filmes que mais aguardava na primeira sesso do primeiro dia em cartaz. Bertolucci chegou ao cinema s 15 horas e viu que Sergio Leone, acompanhado do ento crtico (e futuro cineasta) Dario Argento, circulava pela ante-sala. Argento conhecia Bertolucci, e apresentou-o a Leone. Os trs trocaram amabilidades e entraram na sala. Leone e Argento ficaram na cabine, onde o cineasta dava instrues ao projecionista. Bertolucci sentou no meio da platia. No se encontraram na sada. No dia seguinte, vspera de Natal, Bertolucci recebeu um telefonema. Do outro lado da linha, Leone queria saber o que ele havia achado de Trs Homens em Conflito. Uma resposta lacnica e positiva no bastou. Leone estava preocupado com a longa durao do filme. Queria saber por que Bertolucci tinha gostado. A opinio de um colega respeitado pela crtica era importante. Bertolucci achou que no tinha condies de dar uma opinio tcnica e ponderada. A resposta saiu intuitiva, de supeto:
Eu disse que havia gostado da maneira como ele filmava bundas de cavalos. De modo geral, tanto nos faroestes italianos quanto norte-americanos, os cavalos eram filmados de frente ou de perfil. Mas quando voc filma os animais, eu disse, freqentemente os focaliza de costas; um coral de bundas de animais. Bem poucos diretores filmam bundas de cavalos, cuja viso na tela menos romntica e retrica. Um deles John Ford. Outro voc. (BERTOLUCCI apud FRAYLING, 2000, p. 248) 1
1 Traduo nossa. Todas as citaes de textos em lngua estrangeira includas nesta tese foram vertidas pelo autor para o portugus. Quando necessrio, para dirimir alguma possvel distoro na traduo, o texto na lngua original ser acrescentado em nota. .
Do outro lado do telefone, silncio. Bertolucci pensou que havia soado grosseiro. Ento Leone o surpreendeu com uma oferta: escrever o roteiro do seu prximo filme. E comeou a contar algumas idias que andava ruminando sobre mais um western, um longa- metragem que funcionaria como uma homenagem a todos os westerns, uma sntese de momentos icnicos do gnero. Junto com Dario Argento, os dois comearam a trabalhar na semana seguinte. Em dois meses, tinham escrito o primeiro tratamento de Era uma Vez no Oeste (Cera una volta il West, Sergio Leone, 1968). 13
Embora eu nunca tenha prestado ateno em bundas de cavalos muito menos na maneira como Leone as filmava , minha paixo cinfila surgiu por causa do impacto que os spaghetti westerns exerceram em mim durante a adolescncia. O impulso que disparou em mim o interesse em estudar histria e teoria do cinema, e que me levou gradualmente at esta tese, foi concretizado pela mesma razo que levou Bertolucci a perceber que Leone filmava de maneira diferente que a maioria dos diretores de westerns: o estilo. Cabe aqui um breve parntese de foro ntimo. Meu interesse por cinema foi despertado durante os anos 1980, pelos filmes exibidos em um espao semanal dedicado pela TV Record a filmes pertencentes ao ciclo de spaghetti westerns. Esse espao semanal televisivo se chamava Bangue-Bangue Italiana. Todas as quartas-feiras, a partir das 21h, a Record exibia algum das cinco centenas de longas-metragens realizados por produtores independentes atuando em Cinecitt, nos anos 1960 e 1970. Os exemplares desse ciclo de filmes populares eram filmados nos desertos da Espanha, com oramentos baixssimos. Minha famlia demorou alguns anos para comprar um videocassete, de forma que as sesses na TV consistiam da minha dieta cinematogrfica bsica. E aquele dia da semana era especial porque todos se sentavam na sala para acompanhar as aventuras daqueles heris cnicos, mendigos de mira infalvel que circulavam pelas estradas poeirentas do Velho Oeste. Depois de 1997, quando comecei a atuar como crtico de cinema em um jornal do Recife, retornei aos poucos ao spaghetti western. Inicialmente, por mera curiosidade, e munido apenas de um punhado de fragmentos de memrias. Aos poucos, enquanto revia filmes do ciclo, comecei a constatar no sem surpresa que grande parte dos fragmentos guardados na memria pertencia aos filmes de um nico diretor. Esse diretor era Sergio Leone. Essa constatao me deixou intrigado. Foi ela que me levou, indiretamente, at esta pesquisa. A questo que estava no centro de minha curiosidade pode ser resumida na seguinte frase: como possvel que uma criana de 11 anos, sem nenhum conhecimento sobre histria, crtica ou teoria de cinema, havia percebido intuitivamente que um cineasta solucionava seus problemas de representao de maneira mais destacada do que outros, cujos filmes eram semelhantes (mas, obviamente, no iguais)? A resposta nos remete ao episdio das bundas de cavalo. Eu havia percebido que Leone filmava de maneira distinta de outros diretores, mesmo que essa diferena fosse mnima aos olhos de um leigo. Havia uma centelha a esperando para ser transformada numa fogueira. Algo nebuloso que merecia reflexo. Depois de assistir a um quinto de toda a produo de spaghetti westerns (ao todo, 117 ttulos pertencentes ao ciclo foram vistos ou revistos, no decorrer desta pesquisa, entre 2009 e 2010), posso afirmar com segurana que a maior parte dos cerca de 550 spaghetti westerns 14
produzidos entre 1962 e 1978 conta variaes do mesmo enredo, possui personagens parecidos, foi filmada nas mesmas cidades cenogrficas, com os mesmos atores e tcnicos. Dezenas de diretores que trabalhavam no gnero utilizavam os mesmos recursos estilsticos. Quanto mais filmes eu via, mais ficava intrigado: por que razo Leone se destacou, especialmente aos olhos de uma criana que nada sabia sobre os contextos de produo em que ele e os colegas trabalhavam? Historicamente, possvel alegar que Leone foi um pioneiro. A primeira grande pesquisa sobre o spaghetti western (realizada nos anos 1980 por Christopher Frayling) confirma Leone como o primeiro cineasta do ciclo a propor certas revises dos esquemas estilsticos e narrativos disponveis para problemas de representao do western. Consistentemente, ele revisava esquemas dominantes que haviam sido estabelecidos dentro do gnero norte-americano. Algumas dessas solues foram copiadas por outros diretores, dentro e fora do ciclo; elas extrapolaram a obra de Leone e, ainda hoje, podem ser identificadas em filmes contemporneos que nada tm a ver com o gnero western. Tudo isso pode ser comprovado atravs da anlise estilstica rigorosa que esperamos realizar ao longo desta tese; mas esse raciocnio ainda no explica um ponto central da argumentao: por que momentos dos filmes assinados por Leone ficaram retidos, daquela experincia na infncia, enquanto tantos outros momentos similares, oriundos de filmes de outros diretores, se perderam? Uma lio importante deixada por esta questo ilustra uma parte do problema de pesquisa com o qual estamos lidando: aquilo que faz um filme ser diferente, interessante ou original (no necessariamente melhor ou pior, categorias subjetivas que dependem da ressonncia provocada em cada espectador para operar), nem sempre est na histria contada. Pode estar na maneira de cont-la; ou seja, no estilo:
O estilo a textura tangvel do filme, a superfcie perceptual com a qual nos deparamos ao escutar e olhar: a porta de entrada para penetrarmos e nos movermos na trama, no tema, no sentimento e tudo mais que importante para ns. (BORDWELL, 2009, p. 58).
Um filme conta uma histria. Mas uma histria criada com luz, sons, cores e movimento. Muitas vezes, no o que o diretor filmou que faz um filme emocionar as pessoas. a maneira como ele filmou; so os recursos estilsticos e narrativos acionados pelo cineasta para narrar a histria. O conceito de estilo, nos termos definidos por Bordwell 2
2 Uma circunscrio mais precisa do termo estilo ser efetuada no incio do captulo 1. , funciona como ponto de partida desta tese. 15
Ressalte-se: no se pretende defender aqui que Leone foi o melhor diretor de spaghetti westerns. Tal afirmao aciona foras que vo muito alm da anlise estilstica, horizonte terico no qual esta pesquisa pretende se mover. Poderamos desfiar um rosrio de argumentos para explicar a preferncia pela obra de Leone, em termos de gosto e juzo de valor, evocando a subjetividade dos conceitos. Robert Stam questiona: Por que alguns espectadores adoram e outros odeiam os mesmos filmes? (STAM, 2004, p. 267). A teoria do cinema no oferece uma resposta absoluta para essa pergunta. Lidar com aspectos subjetivos como gosto e valor no a proposta principal desta pesquisa. Acreditamos que uma anlise estilstica rigorosa pode esclarecer, com bastante preciso, a amplitude da contribuio exercida por Leone nos processos de reviso e sntese dos esquemas narrativos dominantes do perodo clssico do cinema (1930-1960), levados a cabo por vrios cineastas atuantes nos anos 1960; e achamos, tambm, que essa anlise pode ajudar a formular uma explicao coerente para as questes que levaram a esta pesquisa. A importncia do estilo dentro da obra de Leone inquestionvel. Pea a qualquer pessoa que explique porque gosta ou no dos filmes de Leone e ver que todos citam aspectos estilsticos os close-ups extremos de olhos, a ironia, o tratamento particular do tempo diegtico, etc. antes mesmo de mencionar aspectos do enredo. Em depoimentos a Laurent Tirard, Jean-Pierre Jeunet cita o tratamento ldico (TIRARD, 2006, p. 58) dado por Leone ao estilo como razo primeira para se tornar um cineasta; e Pedro Almodvar usa os close-ups extremos de Leone como exemplo de um recurso completamente falso (TIRARD, 2006, p. 40). Opinies profundamente divergentes sobre um mesmo tpico: o estilo. No entanto, como Bordwell adverte, a estilstica permanece uma disciplina menos importante dentro do campo dos estudos cinematogrficos. Esta afirmao explica, em parte, o fato de Leone ser visto como um diretor mais famoso do que influente. Os filmes dele alcanaram enorme popularidade desde os anos 1960, e essa popularidade foi acompanhada por um processo gradual de revalorizao crtica. Mesmo assim, Leone continua a no ser considerado seriamente como um diretor historicamente importante. Para a maioria das pessoas, inclusive estudiosos e pesquisadores do cinema, ele no est altura de Godard, Bergman, Fellini e Antonioni a gerao de cineastas europeus contempornea dele, consagrada como fundamental para o desenvolvimento da tradio cinematogrfica. Como um todo, o spaghetti western no passa de nota de rodap em livros de Histria do Cinema. Existem muitas razes que contribuem para explicar esse relativo apagamento, e vrias delas sero analisadas ao longo desta tese, mas a principal delas, que antecipamos aqui, est resumida na constatao de Bordwell (2008, p. 58): a maior parte dos historiadores do 16
cinema narra o desenvolvimento da arte cinematogrfica tendo como eixo condutor relaes estabelecidas entre filmes e prticas sociais; entre obras e contextos scio-culturais, polticos e econmicos que marcaram o sculo XX. Nesses relatos, a anlise das prticas estilsticas de diretores tem sido colocada em segundo plano. E como a contribuio de Leone se deu principalmente no terreno da estilstica, ele permanece em segundo plano. Enfatizando como a anlise do estilo tem ocupado maior destaque em disciplinas mais consolidadas, como a Histria da Arte, Bordwell tem sido um dos poucos pesquisadores do cinema a investir nesse caminho. As pesquisas realizadas por ele (sozinho ou em parceria com outros estudiosos, como Kristin Thompson e Janet Steiger) so, junto com as investigaes de Barry Salt (2009), as tentativas mais significativas de estudar o desenvolvimento da arte cinematogrfica atravs da anlise do estilo. O dbito desta tese para com a teoria cognitivista de Bordwell incontornvel; esse dbito pode ser constatado atravs das muitas citaes a livros dele que encontraremos nas prximas sees. A abordagem de Bordwell destaca maneiras como a mente humana percebe as representaes cinematogrficas. Por um momento, ela deixa de lado as conexes entre filmes e prticas sociais para se concentrar no modo como os diretores constroem a narrativa, e como o resultado das escolhas operadas nesse processo de construo percebido pelo espectador; ou seja, a anlise flmica resultante deste mtodo olha mais para dentro do filme do que para fora dele. A abordagem resgata elementos da semiologia do cinema de Christian Metz, disciplina com a qual o cognitivismo compartilha semelhanas. dentro desta moldura terica, situada entre o cognitivismo e a semiologia, que se situa esta tese. No entanto, apesar de predominante, a abordagem cognitivista no foi adotada de forma estanque ao longo deste estudo. O prprio Bordwell no o faz; ele diz preferir uma metodologia transdisciplinar, pois admite que os diversos contextos em que o diretor realiza filmes, e nos quais os espectadores consomem esses mesmos filmes, atravessam obrigatoriamente as decises criativas que constituem o estilo. Assim, para realizar uma anlise estilstica minuciosa, deve-se sempre ter em conta o papel exercido pelos contextos nas escolhas operadas pelo artista, como nos ensina Gombrich:
(...) o que interessa aqui, do ponto de vista do mtodo, que um ato de escolha tem apenas significao sintomtica, e s expressivo de alguma coisa se podemos reconstruir a situao em que se deu a escolha (GOMBRICH, 2007, p. 18).
Gombrich um autor central para Bordwell, cujo trabalho tem consistido, em grande medida, em aplicar arte cinematogrfica o mtodo desenvolvido por Gombrich para estudar 17
as artes pictricas pintura, arquitetura, desenho, etc. Ambos estudam (ou estudaram) a evoluo do estilo. Nossa pesquisa pretende fazer o mesmo, circunscrevendo a prtica da anlise estilstica ao trabalho de um nico artista; por isso, procuramos seguir a mesma trajetria metodolgica. Esta consiste em partir da reconstituio dos contextos histricos, scio-culturais, econmicos, tecnolgicos e polticos dentro dos quais Sergio Leone trabalhava para, num segundo momento, dar conta de uma anlise estilstica mais minuciosa. Ao longo deste percurso, a abordagem utilizada transdisciplinar. Tomamos emprestados conceitos de vrias disciplinas (por exemplo, a narratologia estruturalista de Will Wright, a historiografia influenciada pelos estudos culturais de Christopher Frayling, a sociologia de Edward C. Banfield, a fuso entre semiologia da msica e psicanlise lacaniana de Michel Chion, o estudo dos gneros flmicos de Edward Buscombe, e outros), sempre tendo no horizonte o objetivo de investigar as relaes entre o objeto-filme e os seus contextos de produo, circulao e consumo. Trs conceitos formam o alicerce conceitual em que se fundamenta esta tese. A seo de abertura do primeiro captulo tratar de circunscrev-los com maior preciso, mas iremos adiant-los aqui, propondo conexes entre eles. Um deles, j vimos, o de estilo. A forma como Bordwell definiu esse termo deve a E. H. Gombrich, que providenciou o segundo conceito essencial: o de esquema. Os esquemas so conjuntos de normas de estilo disponveis aos artistas de determinada poca para resolver problemas de representao (GOMBRICH, 2007). Essas tcnicas se firmam aos poucos, no repertrio dos artistas, quando se mostram bem-sucedidas. Elas podem ser replicadas, revisadas, sintetizadas ou rejeitadas pelos artistas. Os esquemas funcionam mais ou menos como sistemas de cdigos (ou seja, regras narrativas e estilsticas) que produzem significados a partir da manipulao de significantes. Esquemas so flexveis o suficiente para que cada artista, dentro dos contextos de produo em que opera, os modifique ou adapte em variados graus de nfase. Demonstrar como Sergio Leone trabalhou com os esquemas disponveis, muitas vezes revisando-os (em alguns casos de modo crtico), um dos objetivos centrais desta tese. Leone pertenceu a uma gerao de diretores europeus apontada por historiadores do cinema como renovadora dos esquemas clssicos da tradio cinematogrfica. Esta gerao deu partida a um processo esttico de intensificao desses esquemas, instituindo o que Bordwell chamou de potica da continuidade intensificada (BORDWELL, 2006, p. 119). Ele defendeu que a potica do cinema est passando, desde os anos 1960, por um processo gradual de intensificao dos recursos estilsticos utilizados para narrar histrias audiovisuais. 18
Bordwell rejeita a idia de que o cinema irreverente e auto-reflexivo, praticado pelos movimentos cinematogrficos que emergiram naquela dcada na Europa (em especial a Nouvelle Vague francesa), propunha uma ruptura com a linguagem cinematogrfica clssica. Ele substitui a idia de ruptura pela de intensificao. No entanto, concorda com o senso comum sobre quem foram os diretores que revisaram, sintetizaram e adaptaram os esquemas que constituam essa potica da intensificao: a gerao anteriormente citada de contemporneos de Leone, incluindo diretores como Bertolucci (o mesmo das bundas de cavalos) e Resnais. So os cineastas que se convencionou chamar de diretores modernistas europeus (AUMONT, 2008; LAURENT; JULIER, 2009; MANEVY, 2006). A teoria de Bordwell abre espao nesse grupo de renovadores para alguns nomes de geraes anteriores, como Orson Welles, Robert Bresson, Akira Kurosawa e Alfred Hitchcock. De modo geral, Bordwell aponta para o mesmo grupo de realizadores consagrados. O ponto de maior originalidade (e tambm de discrdia) de sua teoria mesmo a negao da idia de ruptura, em prol da noo da intensificao. Mas a percepo do fenmeno a mesma nos anos 1960, os cineastas comearam a alterar suas prticas narrativas e estilsticas e seus protagonistas, tambm. Ao rever os westerns de Leone, me parece evidente que h uma conexo entre esses filmes e a potica da continuidade intensificada, notvel especialmente no cinema de gnero contemporneo. Desde meados dos anos 1960, Leone j utilizava certos recursos estilsticos e narrativos em apontavam em direo a essa intensificao, revisando (sem romper com) os esquemas narrativos e estilsticos que compunham a tradio a partir da qual ele trabalhava. Mais: algumas das prticas estilsticas e narrativas que sinalizam essa operao, e que por vezes assinalam tambm uma assinatura autoral, so em alguns casos substancialmente diferentes daquelas adotadas pelos diretores modernistas, muito mais respeitados. Os filmes de Leone apontavam para o mesmo rumo, mas o modo como ele filmava era diferente de Godard, Bergman e companhia. Ele no estava simplesmente replicando os novos recursos de estilo e narrativa introduzidos nos esquemas dominantes da prtica cinematogrfica pelos demais cineastas dos anos 1960. Ele produzia algo particular. Close- ups (sobretudo extremos 3 ) em grande quantidade; realismo 4
3 Como sero mencionados diversas vezes ao longo desta tese, importante ressaltar a diferena entre close-ups e close-ups extremos (em ingls, big close-ups). No primeiro caso, o close-up tradicional mostra o rosto e os ombros do personagem, deixando algum ar sobre sua cabea. No segundo, menos comum, o rosto enquadrado por inteiro, do queixo testa. Planos que cortam a ponta do queixo e o topo da testa, bem como aqueles que focalizam apenas partes do rosto (olhos, boca, nariz), tambm so considerados close-ups extremos. grotesco (combinado com um 19
tom pardico e irreverente) de cenrios e figurinos; perfil amoral e violento do heri individualista; tratamento distendido do tempo flmico dado aos momentos de tenso (sobretudo os duelos); representao grfica da violncia; estrutura narrativa cronologicamente fragmentada, privilegiando momentos de ao fsica; incluso de elementos diegticos nas composies musicais; uso dramtico de rudos e silncios. Essas e outras ferramentas so alguns dos recursos narrativos e estilsticos que marcaram presena nos filmes dele de modo recorrente, buscando a intensificao da experincia flmica. Todas consistem de revises ou snteses estilsticas, que se juntaram ao repertrio de tcnicas introduzidas pelos diretores modernistas europeus, para compor os esquemas que constituem, desde ento, a potica da continuidade intensificada. Vrias das caractersticas elaboradas por Leone podem ser percebidas muitas vezes submetidas a novos processos de atualizao, reviso e adaptao em filmes contemporneos, os quais continuam ainda hoje a exacerbar gradualmente essa noo de intensificao (BORDWELL, 2006, p. 119). O uso de close-ups extremos de rostos, por exemplo, aumentou exponencialmente desde meados dos anos 1960, quando nenhum outro cineasta alm de Leone usava o recurso de maneira to ostensiva e abundante; os heris se tornaram cada vez mais falhos e de moral duvidosa; e assim por diante. A associao entre os filmes de Leone e a potica da continuidade intensificada parece ter sido percebida intuitivamente pelos cinfilos. significativo que o j citado Trs Homens em Conflito ocupe, atualmente, o quarto lugar entre os melhores filmes de todos os tempos, na votao popular dos 17 milhes de internautas cadastrados no Internet Movie Database (IMDb) 5 . Assim como parece significativo que um diretor como Quentin Tarantino, apontado por crticos e estudiosos como um dos principais renovadores do cinema nos anos 1990, escolha o mesmo filme como seu predileto 6 Portanto, nos parece que, operando dentro do mesmo contexto scio-histrico em que os diretores modernistas europeus trabalharam, Sergio Leone ajudou a desenvolver muitos recursos da continuidade intensificada. No entanto, seus filmes nunca mereceram uma anlise .
4 O termo realismo usado nesta tese como sinnimo de verossimilhana, evocando uma forma de representao do Velho Oeste mais prxima da realidade da poca do que os filmes norte-americanos que retrataram o mesmo perodo histrico. 5 O maior banco de dados de cinema da Internet possui 17 milhes de visitantes registrados com direito a voto. Para ser includo na lista dos 250 melhores, destacada na home page, um filme precisa obedecer aos seguintes critrios: (1) ter mais de 45 minutos; (2) receber pelo menos 1.300 votos; e (3) ser uma obra de fico, o que exclui da lista os documentrios. 6 Tarantino votou em Trs Homens em Conflito como melhor filme da histria do cinema na votao promovida pela publicao britnica Sight & Sound, em 2002. A revista inglesa publica listas de melhores filmes, compiladas entre centenas de diretores e crticos de todo o mundo, a cada dez anos, desde 1952. 20
detalhada do ponto de vista estilstico; sua contribuio potica do cinema contemporneo permanece obscura. Mesmo a pesquisa de Bordwell, autor que defende a ampliao das pesquisas do estilo cinematogrfico, reflete esse problema. No livro em que desenvolve o conceito de continuidade intensificada, ele cita Sergio Leone cinco vezes (BORDWELL, 2006). Em trs delas, menciona o uso abundante de close-ups extremos; em duas, faz o mesmo em relao ao uso constante de lentes grande-angulares. No entanto, em nenhum momento ele aponta Leone como um cineasta importante para o desenvolvimento desses dois recursos. Bordwell minimiza o papel que os filmes de Leone parecem ter exercido no processo contnuo de reviso e exacerbao de muitas das caractersticas de narrativa e estilo que integram os esquemas da continuidade intensificada. Mais sintomtico ainda a ausncia de qualquer citao ao trabalho de Leone no livro em que Bordwell (1997) se prope a narrar a histria do estilo no cinema do sculo XX. O outro historiador crucial do estilo cinematogrfico, Barry Salt, cuja pesquisa mapeia as principais tendncias estilsticas e narrativas do cinema desde os irmos Lumire, faz uma nica meno a Leone (SALT, 2009, p. 297), citando-o como um dos poucos diretores a explorar a composio em profundidade de campo nos anos 1960. Alm disso, a tentativa de Bordwell e Thompson (2009) em reconstituir a histria do cinema, relacionando-a no aos grandes fatos histricos do sculo XX, mas aos avanos tecnolgicos e estilsticos, dedica quatro pargrafos ao diretor, mencionando como caractersticas dele os close-ups extremos, o realismo de cenrios e figurinos, e a msica irreverente. O trecho encerrado com uma frase curta, mas importante, que ajuda a expor com clareza o problema a que nos referimos:
Embora Leone tenha trabalhado num gnero popular, sua reinterpretao extravagante e altamente pessoal das convenes desse gnero foi to significativa quanto os esforos dos diretores de cinema de arte que revisaram e desafiaram a tradio neo-realista. (BORDWELL; THOMPSON, 2009, p. 418) 7 A passagem contm um paradoxo revelador. Bordwell e Thompson afirmam que as prticas estilsticas e narrativas de Leone foram to importantes quanto aquelas operadas pelos diretores modernistas europeus. Nesse caso, difcil compreender porque todos eles Godard, Truffaut, Antonioni, Bergman e Fellini, entre outros tm trechos de filmes .
7 Although Leone worked in a popular genre, his florid, highly personal reinterpretation of its conventions proved as significant as the efforts of those art-cinema directors who revised and challenged the Neorealist tradition. A traduo minha; o texto original foi transcrito para minimizar possveis distores do pensamento dos autores, sobretudo com minha nfase interpretativa na palavra embora. 21
analisados em Boxes graficamente destacados, enquanto Leone fica restrito a uma meno circunstancial. De fato, a frase traz duas expresses que ajudam a esclarecer o paradoxo: (1) Leone trabalhou num ciclo de cinema feito para consumo popular, que por sua vez estava includo num gnero flmico tambm de carter popular (a palavra embora explicita o preconceito dos autores); (2) os grandes diretores modernistas merecem mais respeito porque fazem ou faziam cinema de arte. Em sntese, parte de nosso problema de pesquisa est ligada ao relativo apagamento a que os filmes de Leone foram submetidos, tanto na crtica quanto no mbito dos estudos cinematogrficos. Parece-nos claro que Leone efetivamente teve um papel, ao longo dos anos 1960 e 1970, no processo de desenvolvimento e consolidao de alguns dos esquemas que compem a continuidade intensificada. Entretanto, esse papel nunca foi analisado a fundo. Tudo isso nos leva a formular duas questes que pretendemos responder nas prximas pginas: qual foi, afinal, a efetiva contribuio oferecida por Sergio Leone a essa nova potica da intensificao? E por que razes essas contribuio tem sido minimizada pelos estudiosos? O objetivo central desta tese consiste em responder a essas duas perguntas. O percurso que seguiremos ao longo da pesquisa, portanto, contm duas trajetrias sobrepostas. Na primeira, tentaremos circunscrever a contribuio de Leone continuidade intensificada com o mximo possvel de exatido. Na segunda, partiremos da hiptese de que o fato de Leone ter trabalho exclusivamente com o cinema de gnero e, ainda mais significativamente, num ciclo popular e estrangeiro de um gnero visto como intrinsecamente norte-americano, por lidar com um perodo central da formao da identidade cultural dos Estados Unidos est na raiz do apagamento. Tentaremos mostrar que esse processo de desvalorizao teve origem na recepo negativa reservada a Leone pelos crticos dos anos 1960. Naquela poca, os filmes dele (como todas as obras ligadas ao spaghetti western) provocavam uma tendncia ao juzo depreciativo de valor, por emergirem de um sistema de produo que trabalhava com ciclos sucessivos de gneros populares feitos para consumo de massa um consumo no-segmentado, no- especializado. A trajetria da recepo crtica aos filmes de Leone vai demonstrar como a obra dele, inicialmente ignorada ou desprezada antes mesmo de ser vista com ateno, vai ser submetida a um processo gradual de revalorizao, ao longo dos anos 1960 e 1970; mas essa revalorizao passava menos pela anlise estilstica e mais por uma leitura poltico-ideolgica calcada no suposto potencial de resistncia cultural contido nesses filmes. Ou seja, mesmo os crticos que devotaram ateno a Leone no enxergaram suas intenes criativas. 22
Como evoluir em dois trajetos paralelos, a pesquisa percorrer dois movimentos sobrepostos. O primeiro consiste em realizar uma anlise flmica minuciosa da obra de Leone, com a finalidade de identificar com a maior preciso possvel os padres de estilo e narrativa recorrentes nos filmes dele, e tambm avaliando de que forma esses padres estabeleceram revises dos esquemas tradicionais em direo continuidade intensificada. Nesse momento, tentaremos conectar as prticas de Leone a uma rede de influncias, limites e pr-condies que ajudou a moldar esses recursos. O segundo movimento, por sua vez, extrapola os filmes em direo aos contextos em que eles foram produzidos, circulados e consumidos, de forma a mostrar como se deu o processo de apagamento da contribuio potica da continuidade intensificada. Os dois trajetos sero levados a cabo atravs da anlise textual, tanto dos filmes quanto da fortuna crtica de Leone. Para pr em prtica essas trajetrias paralelas, optamos como j foi dito por uma abordagem interdisciplinar. Este procedimento metodolgico ser aplicado, ao longo da tese, ao corpus da pesquisa, que formado por seis filmes dirigidos oficialmente por ele, acrescidos de um stimo ttulo: Meu Nome Ningum (Il Mio Nome Nessuno, Tonino Valerii, 1973). Neste ltimo, Leone est creditado como produtor e argumentista, embora vrios pesquisadores do spaghetti western afirmem que ele dirigiu parcialmente, de forma no-oficial. De todo modo, como Leone esteve ligado concepo criativa do projeto desde o princpio, decidimos inclu-lo no corpus. O filme de estria de Leone, O Colosso de Rhodes (Il Colosso di Rodi, Sergio Leone, 1961), foi excludo do corpus por consistir basicamente de um exerccio de aprendizado formal em que o diretor no teve chance de supervisionar qualquer aspecto criativo da pr- produo (direo de arte, cenrios, figurinos), da produo (fotografia, cores) ou da ps- produo (montagem, sonorizao), limitando-se a colaborar no roteiro e a dirigir os atores nos sets (FRAYLING, 2000, p. 117). A tese est dividida em quatro captulos. O primeiro reconstitui o contexto histrico em que se desenvolveu a carreira de Leone. Para isso, percorremos cronologicamente os filmes que ele dirigiu, analisando em seguida sua fortuna crtica. Mais do que identificar os primeiros padres narrativos e estilsticos recorrentes o que fazemos , nosso objetivo maior nesse captulo apresentar e analisar os contextos scio-culturais em que Leone trabalhou, sobretudo o rgido sistema de produo de Cinecitt, erigido sob a sombra (direta e indireta) do movimento neo-realista italiano. Esses contextos, como veremos, funcionavam tanto como limites quanto como pr-condies que interferiam nas prticas estilsticas de Leone. 23
Na abertura do captulo, procuramos desenvolver quatro eixos conceituais da tese, propondo definies para termos que aparecem repetidamente nas sees seguintes: estilo, esquema, potica do cinema e continuidade intensificada. J no final do captulo, procuramos analisar a polarizao entre o autorismo e os estudos do cinema de gnero, mostrando como esse debate central para a teoria do cinema desenvolvida poca, e determinante para o discurso dos crticos em atividade no momento foi influente na recepo crtica oferecida ao spaghetti western e, em particular, a Leone. Consideramos, ainda, que o conceito de gnero flmico tambm atua como pr-condio das prticas narrativas e estilsticas, interferindo nas decises criativas que constituem o estilo de todos os diretores. importante mencionar, nesse ponto, a importncia, para esta tese, da pesquisa realizada por Christopher Frayling, nos anos 1980. Nossa pesquisa divide com Frayling objetivos em comum e resgata informaes compiladas por ele, ampliando-as consideravelmente e propondo novas leituras para esses dados. H, ainda, uma diferena crucial: ao optar por uma abordagem que mistura pesquisa etnogrfica e estudos culturais, Frayling nunca se debruou sobre os filmes, concentrando-se nos contextos de produo e nos aspectos valorativos do debate acerca do spaghetti western. Essa abordagem continuou a mesma quando ele escreveu a biografia de Leone, em 2000. Por causa disso, Frayling no percebeu, por exemplo, as mudanas sutis e graduais nos padres de recepo que a crtica cinematogrfica reservou para os trabalhos de Leone. Os dois captulos seguintes constituem a etapa mais encorpada da tese: a anlise flmica propriamente dita, em que trechos selecionados de cada filme de Leone sero examinados minuciosamente, como se colocados em um microscpio, para um estudo detalhado da recorrncia dos padres estilsticos e narrativos. Tentamos rastrear as origens de cada recurso, ligando-as a contextos scio-histricos, econmicos, culturais ou tecnolgicos que possam ter levado Leone a adot-los, atravs de um processo de reviso dos esquemas dominantes de construo flmica. No segundo captulo, procuramos enfatizar a anlise dos recursos narrativos; a seo lida, pois, com as duas primeiras vertentes da potica (chamadas de temtica e construo narrativa em larga escala). O terceiro captulo faz o mesmo com a prtica estilstica (terceira vertente da potica). Juntos, esses dois captulos constituem o trecho mais extenso da tese. Por fim, o quarto captulo conclui a pesquisa propondo um salto historiogrfico que concretiza uma srie de anlises de trechos de filmes contemporneos, realizados em diferentes pases e circunstncias de produo, dos anos 1970 at hoje. Nosso objetivo, aqui, 24
traar conexes entre os padres de estilo e narrativa recorrentes na obra de Leone e algumas ferramentas caractersticas da continuidade intensificada. Esta ltima seo tenciona deixar claras as impresses digitais deixadas pela obra de Leone no cinema contemporneo, mostrando como algumas das revises dos esquemas levadas a cabo por ele, nos anos 1960 e 1970, foram reapropriadas, revisadas e sintetizadas por diretores posteriores, entre os quais Brian De Palma, John Carpenter, Quentin Tarantino e os irmos Larry e Andy Wachowski. Conclui-se, assim, que mesmo aps as bundas de cavalos praticamente desaparecerem da paisagem visual do cinema contemporneo, assim como aconteceu como o prprio gnero western, seremos capazes de confirmar a contribuio que ele ofereceu potica da continuidade intensificada. Antes de chegar at l, contudo, tentaremos circunscrever rapidamente quatro conceitos fundamentais que sero utilizados a todo momento, ao longo da tese: potica, estilo, esquema e continuidade intensificada. O sentido original da palavra potica remonta, como se sabe, a Aristteles. Em sua Potica, Aristteles procurou examinar as estruturas dos gneros literrios, com o objetivo de mostrar que eles provocavam emoes diferentes. Ao longo do tempo, a expresso passou a ser aplicada a todas as artes e mdias:
A potica de qualquer mdia artstica estuda o trabalho concluso como resultado de um processo de construo, um processo que inclui um componente artesanal (tais como regras gerais), os princpios mais amplos segundo os quais um trabalho composto, suas funes, efeitos e usos. Qualquer investigao dos princpios fundamentais pelos quais artefatos de qualquer representao miditica so construdos, e os efeitos gerados a partir desses princpios, podem cair dentro do reino da potica. (BORDWELL, 2008, p. 12).
No campo dos estudos narrativos e estilsticos, a potica consiste numa espcie de engenharia reversa. O trabalho de um engenheiro reverso consiste em desconstruir um artefato fsico (televiso, computador, etc.) ou matemtico (um software, por exemplo), para descobrir como ele funciona. Desta forma, o engenheiro reverso capaz de desvendar as estruturas internas que fazem aquele artefato funcionar, e ento copi-las em outros artefatos. Nos estudos cinematogrficos, o pesquisador da potica parte de determinados objetos-filme para, investigando sua estrutura interna, identificar os princpios que governam a construo narrativa, de forma a tornar possvel a aplicao desses princpios a outras obras. David Bordwell (2008, p. 17) prope uma potica do cinema dividida em trs vertentes: a temtica, a construo narrativa em larga escala e a prtica estilstica. As trs se 25
interpenetram em vrios nveis, de modo que difcil estud-las separadamente. Questes temticas interferem no uso de recursos de estilo, que por sua vez influenciam ou so determinados pela construo em larga escala, e assim por diante. A vertente temtica, como o nome indica, destaca elementos narrativos mais imediatos. Temas, relaes causais entre os eventos que compem a trama, perfil psicolgico de personagens, uso de arqutipos, texto e subtexto, dilogos, questes de gnero, raa e classe social caem nesta definio. A construo narrativa em larga escala consiste num campo de transio entre a primeira e a terceira vertentes. Ela lida com a estrutura narrativa geral, responsvel pela progresso do enredo e pela modulao dramtica. Quem pesquisa esta vertente est interessado nas maneiras como as partes de um filme (planos, cenas e seqncias) se relacionam entre si, para constituir um todo compreensvel. A ltima vertente consiste na prtica estilstica. Os pesquisadores dessa vertente lidam com padres visuais e sonoros. Isso inclui um conjunto de ferramentas que incluem composio pictrica, enquadramento, iluminao, cores, cenrios, figurinos, uso de rudos, msica, dilogos, silncios, e muitos outros. O conceito de continuidade intensificada surgiu da constatao de que, a partir dos anos 1960, os diretores de cinema passaram a utilizar um repertrio cada vez mais amplo de recursos narrativos e estilsticos, intensificando a potica do cinema em direo a uma experincia flmica cada vez mais visceral. Bordwell sugere que os recursos de estilo e tticas narrativas introduzidos desde ento no provocaram uma ruptura com os princpios gerais da potica, que ainda continuam valendo:
O que mudou, tanto nos registros mais conservadores quanto nos mais vanguardistas, no foi o sistema estilstico da construo cinematogrfica, mas certas ferramentas funcionando dele. (...) Desde os anos 1960, essas tcnicas foram trazidas para o primeiro plano, de formas inditas. (...) Enquanto se tornavam mais proeminentes, essas tcnicas alteraram a textura de nossa experincia flmica. (BORDWELL, 2006, p. 119).
Para melhor ressaltar sua posio, Bordwell traz tona a noo de continuidade clssica, que resume nos seguintes termos:
O espectador entende como a histria se move adiante no espao e no tempo. Planos que estabelecem e restabelecem o conjunto situam os atores dentro do cenrio. Um eixo de ao (ou linha de 180 graus) governa os movimentos e olhares dos atores, e todos os planos, embora possam variar em ngulo, so registrados apenas de um lado do eixo. Os movimentos dos atores so sincronizados atravs de cortes, e os planos mais prximos so reservados 26
para as reaes faciais e linhas de dilogo significativas. Montagem alternada pode justapor vrios feixes de ao (...). Diretores norte- americanos usaram essa sntese de tcnicas de encenao, filmagem e montagem nos anos que se seguiram a 1917, e suas premissas se tornaram a base de uma linguagem flmica internacional para o cinema de entretenimento, passando a ser codificada em manuais e currculos universitrios nos anos 1950. (BORDWELL, 2006, p. 119-120).
Bordwell assegura que a partir dos anos 1960 a estabilidade desse sistema comeou a ser abalada pela introduo de novas tcnicas estilsticas e narrativas. Para ele, as novas tcnicas no rompiam com as prticas estilsticas e narrativas anteriores, fazendo na verdade uma operao de natureza diferente: De maneira geral, as novas ferramentas (...) no desafiam o sistema; elas o revisam. Longe de rejeitar a continuidade tradicional em nome da fragmentao e da incoerncia, o novo estilo aponta para uma intensificao das tcnicas estabelecidas. A continuidade intensificada a continuidade clssica amplificada, elevada a um nvel mais estridente de nfase. Este o estilo dominante dos filmes norte-americanos contemporneos de grande audincia. (BORDWELL, 2006, p. 120).
Em sua pesquisa, Bordwell mapeou alguns dos recursos narrativos e estilsticos usados pelos cineastas para intensificar a continuidade clssica, dos anos 1960 at hoje. Na temtica, alguns desses recursos seriam: representaes mais realistas do sexo e da violncia; protagonistas mais falhos, humanos, alienados, solitrios, inseguros ou moralmente ambguos; a tendncia ao alusionismo (isto , s citaes a filmes anteriores, s vezes de forma crtica, outras vezes de modo nostlgico e reverente); a caracterizao mais densa de personagens, protagonistas ou no, tornando-os seres mais complexos; e a ateno realista aos detalhes e acuidade histrica (worldmaking). Na construo narrativa em larga escala, algumas caractersticas da continuidade intensificada seriam: a diviso menos clara da narrativa em trs atos; as narrativas em rede (com diversos protagonistas); a fragmentao cronolgica e espacial das tramas; relaes causais menos evidentes e mais ambguas entre eventos que compem a trama; trechos ou at filmes inteiros de narrativa subjetiva (em que a ao dramtica acontece apenas dentro da mente de um personagem, s vezes sem deixar isto claro ao pblico). No que se refere prtica estilstica, a continuidade intensificada seria encontrada em recursos como: a montagem com planos cada vez mais curtos; o uso de lentes de distncias focais diferentes (muitas vezes dentro da mesma cena); a cmera mais prxima dos rostos dos atores, tendendo a enquadrar um de cada vez; os movimentos de cmera incessantes, com uso 27
proeminente de Steadicam 8 Este trecho traz tona a estreita ligao entre a potica da continuidade intensificada e a questo do estilo individual , traveling e gruas; o uso freqente do rack focus (tcnica usada para direcionar a ateno do espectador dentro de composies pictricas com mais de uma camada de ao, focalizando com nitidez apenas uma e depois outras, progressivamente); e, sugerindo um tratamento mais fragmentado do espao e do tempo flmicos, na economia de planos de conjunto. Juntas, essas ferramentas estilsticas teriam os seguintes propsitos:
Alguns cineastas tm procurado refinar a tradio, explorando seus princpios minuciosamente. Esses criadores se perguntam: (...) como posso fazer as conexes causais mais prazerosas, as reviravoltas mais inesperadas, a psicologia dos personagens mais envolvente, a excitao mais intensa, os temas mais firmemente explorados? Como posso exibir meu virtuosismo? Quando os cineastas se revelam bem-sucedidos, revelam o alcance e a flexibilidade das premissas clssicas. (BORDWELL, 2006, p. 51).
9 Normalmente, no o estilo que determina as escolhas narrativas e estilsticas operadas por um cineasta; o contrrio. Este procedimento consiste no que Bordwell denomina de paradigma do problema/soluo (BORDWELL, 2009, p. 320), e que pode ser . Nesse ponto, fundamental demarcar uma diferena entre os conceitos de prtica estilstica e estilo, conforme adotados nesta tese. Enquanto a prtica estilstica consiste no conjunto de ferramentas que constituem a terceira vertente da potica do cinema, o estilo deve ser compreendido como um conjunto de padres recorrentes na obra de determinado diretor, e que podem abarcar todas as vertentes da potica. O estilo consiste na soma de todas as escolhas tcnicas e narrativas que caracterizam a obra de um cineasta. Esta tese trabalha com os filmes de Sergio Leone; aqui, portanto, o termo estilo ser utilizado como sinnimo de assinatura estilstica individual. Essa assinatura est expressa (conscientemente ou no) nas solues encontradas pelo diretor para representar, em imagens e sons, aquilo que est no roteiro. A assinatura estilstica nasce das solues encontradas por cada cineasta para resolver problemas de representao de quaisquer ordens (narrativa, estilstica, logstica, operacional, etc.) com os quais um diretor se depara no dia-a-dia de seu ofcio. Cada cineasta opera suas prprias escolhas. Quando constituem um padro recorrente, estas definem o estilo do diretor.
8 Sistema de pesos e molas acoplado cmera que, afixada no ombro do operador, permite a mobilidade total deste, sem que a imagem resulte tremida ou desfocada. 9 O uso do termo estilo, ao longo desta tese, se aplica sempre ao conjunto de escolhas narrativas e estilsticas utilizado por um diretor para dar significado a uma obra de arte. A nfase recai no carter individual do termo. Quando falamos de estilo, estamos nos referindo s prticas recorrentes de determinado artista, e no ao movimento cinematogrfico com o qual ele identificado. 28
resumido sinteticamente da seguinte maneira: o processo de contar uma histria num meio audiovisual consiste, grosso modo, numa sucesso constante de problemas de representao, que o diretor soluciona fazendo escolhas a partir de um repertrio anteriormente disponvel (e que, em muitos casos, o diretor cria, revisa, sofistica, sintetiza ou reformula). Para cada problema, existe uma srie de solues possveis, entre as quais o artista deve escolher uma (ou mais). O paradigma do problema/soluo consiste na adaptao, para o meio cinematogrfico, do conceito de esquema (GOMBRICH, 2007). Os artistas no criam a partir do nada. Eles trabalham dentro de uma tradio que dispe de todo um repertrio de recursos, ou normas de estilo, que podem copiar, reformular, sintetizar ou rejeitar. O conjunto de recursos que compe esse repertrio constitui os esquemas. Cada artista ajusta os esquemas disponveis a novas possibilidades oferecidas pelos contextos scio-culturais, econmicos, tecnolgicos e ideolgicos em que trabalha. Defrontado com uma soluo disponvel para problema de representao, os diretores tm quatro opes: replicam, revisam, sintetizam ou rejeitam tal soluo. Quando existe pelo menos uma ferramenta disponvel para resolver o problema, e o diretor a utiliza sem modific-la, ele replicou um esquema. Se o diretor modifica uma ferramenta, adaptando-a a novas circunstncias ou usando-a para uma nova finalidade, ele revisou um esquema. O diretor pode utilizar elementos de dois ou mais esquemas, sintetizando-os para propor uma nova soluo esta a sntese. Por fim, h tambm a rejeio, que ocorre quando o cineasta descarta todas as ferramentas disponveis, inventando uma nova soluo, mudando o roteiro para eliminar o problema de representao ou, o que mais freqente, recorrendo a algum esquema alternativo e, nesse caso, muitas vezes revisando solues anteriormente disponveis. Esse o paradigma do problema/soluo. Ele nos ensina que determinada soluo, usada com sucesso para resolver um problema de representao, tende a ser integrada aos esquemas circulantes dentro da atividade cinematogrfica. As tcnicas que tm sucesso da resoluo de problemas se tornam parte integrante de esquemas. Vista dessa perspectiva, a potica da continuidade intensificada consiste de um conjunto de esquemas visuais, sonoros e narrativos que circulam na comunidade cinematogrfica desde a dcada de 1960. Quando um diretor confrontado com problemas de representao idnticos, e soluciona esses problemas recorrendo sempre s mesmas ferramentas, ele cria padres recorrentes. Esses padres determinam o que chamamos de estilo individual:
29
O termo estilo deve ser considerado em sentido amplo, como a arte de contar uma histria em imagens e em sons; compreende a escolha dos atores e dos cenrios, as regulaes tcnicas, a disposio dos pontos de vista e dos pontos de escuta, etc. Tudo importante em matria de estilo: a abertura da objetiva e a cor do papel pintado atrs do ator, a rapidez do traveling e o vaso de flores embaixo, esquerda. (JULLIER; MARIE, 2009, p. 20).
H dois aspectos da passagem para os quais chamamos ateno. O primeiro est na idia (ausente no texto) de que o estilo o resultado autoral de um conjunto de escolhas. No est descartada a contribuio de outros membros da equipe criativa (diretor de fotografia, cengrafo, figurinista, diretor de arte, compositor, desenhista de som, etc.) na deciso por uma ou outra soluo de representao. No entanto, natural que o diretor do filme seja o responsvel, em ltima instncia, pelas escolhas que resultaro na cunhagem do estilo: possvel incluir como parte do estilo de Hitchcock seu pendor pelo suspense no tratamento dos dilogos ou o tema persistente do homem inocente perseguido por algo que no fez. De qualquer forma, caractersticas recorrentes de encenao, filmagem, edio e som sempre sero parte fundamental do estilo de um diretor. (BORDWELL, 1998, p. 4).
O segundo aspecto a referncia de Jullier e Marie s circunstncias histricas particulares, expresso que representa resumidamente a variada gama de limites e pr- condies impostos a qualquer cineasta por aspectos de natureza no estritamente cinematogrfica, mas que remetem aos contextos scio-culturais, tecnolgicos, econmicos, histricos, polticos e ideolgicos nos quais ele opera. importante se deter por um momento neste ponto. Todas as escolhas estilsticas e narrativas, mesmo as mais simples, so atravessadas por fatores no-cinematogrficos. Essas escolhas so e sero feitas sempre, quaisquer que sejam as circunstncias. Elas moldam a assinatura pessoal de um diretor, embora no sejam necessariamente pensadas de modo consciente. O conjunto de elementos que constitui a assinatura autoral de um diretor sempre emerge atravs da maneira como este lida com os esquemas circulantes de sua arte. No entanto, poucas vezes essas escolhas so feitas livremente. Contextos scio- culturais, tecnolgicos, econmicos, polticos e ideolgicos atuam como limites ou pr- condies para que o cineasta as efetue. Portanto, a constituio do estilo pessoal se d dentro de uma rede de contextos que se atravessam e incidem diretamente sobre essas escolhas. Oramento, tecnologia, modas e a censura, por exemplo, so alguns desses contextos, muitas vezes externos ao filme em si. Ainda assim, se a constituio do estilo de um cineasta no pode ser inteiramente explicada pela anlise textual de seus filmes, por outro lado o pesquisador corre o risco de 30
atribuir uma nfase excessiva ao papel dos contextos na definio do estilo. por isso que Bordwell alerta para a necessidade de uma aproximao cuidadosa do objeto: O objetivo do historiador passar dos fatores culturais s caractersticas estilsticas por meio de passos curtos e cuidadosos, no por grandes saltos (BORDWELL, 2009, p. 312). Em outras palavras, o que ele prope que, embora os processos scio-culturais exeram sua cota de influncia, a organizao estilstica que detectamos resultado da seleo que os diretores fizeram entre as alternativas disponveis (BORDWELL, 2009, p. 69). Nesse sentido, ao invs de pensar a cultura como causa ltima do estilo, ele prope que os fatores externos sejam considerados antes como um ponto de partida do processo de criao, uma espcie de tela em branco com limites definidos por esses fatores externos, e sobre a qual o artista opera uma srie de escolhas narrativas e estilsticas para solucionar problemas especficos de representao:
Tais escolhas podem ter sido planejadas antes de filmar, podem ter emergido espontaneamente durante a filmagem ou se imposto na ps-produo. Para fazer uma distino supersimplificada, podem ser escolhas livres, que realizam realmente as intenes do diretor, ou podem ser escolhas foradas, nascidas de limites externos, como tempo, dinheiro ou falta de poder. Dessa maneira, para explicar mudana e continuidade dentro do estilo do filme, temos de examinar as circunstncias que influenciam mais diretamente a execuo do filme o modo de produo, a tecnologia empregada, as tradies e o cotidiano do ofcio favorecido por agentes individuais. Fatores mais distantes, tais como fortes presses culturais ou demandas polticas, podem manifestar-se somente atravs dessas circunstncias prximas, nas atividades dos agentes histricos que criam um filme. O esprito do tempo no liga a cmera. (BORDWELL, 2009, p. 69).
O grifo original, do prprio autor, ajudou a definir o percurso metodolgico que se faz nesta tese: o exame cuidadoso das caractersticas de narrativa e estilo da obra de Leone (atravs da anlise de cenas e seqncias dos filmes) vir acompanhado da necessria anlise dos contextos histricos (tais como os cdigos formais e narrativos do cinema de gnero, os avanos tecnolgicos, o modo de produo do cinema popular italiano, a contracultura, a trajetria do western na cultura miditica, o cinema modernista europeu, etc.). Esses contextos influenciaram decisivamente a maneira como Leone revisou, sintetizou, replicou ou rejeitou recursos de narrativa e estilo que vieram a constituir os esquemas dominantes da potica da continuidade intensificada. Assim, neste primeiro captulo, investigaremos os principais contextos scio-histricos dos quais Sergio Leone emergiu, como diretor.
31
1. Estilo e Modo de Produo
1.2 Cinecitt: uma histria em ciclos
Desde o incio de sua trajetria na indstria cinematogrfica italiana, Sergio Leone trabalhou dentro do sistema de produes populares de Cinecitt. Esse sistema, que se desdobrou em vrios ciclos dedicados a filmes destinados a consumo popular, vinculados a gnero flmicos rgidos, obedecia a um modo de produo que seguia regras econmicas e tecnolgicas bastante estreitas. Qualquer diretor que trabalhasse dentro desse modo de produo precisava estar preparado pra enfrentar severas restries de produo, especialmente dentro dos contextos tecnolgicos e econmicos. Esse sistema se estabeleceu, ento, como uma pr-condio importante para o desenvolvimento de padres estilsticos e narrativos que alterassem ou revisassem os esquemas dominantes dentro da Itlia. O incio do ciclo de spaghetti westerns, do qual Leone se tornaria o principal realizador, pode ser rastreado muitos anos antes de o primeiro faroeste ser realizado na Itlia. A origem est na criao do complexo de estdios Cinecitt, em 1937. Cinecitt nasceu de uma estratgia poltica de Benito Mussolini. Financiando a criao de uma rede de estdios de filmagem, em moldes parecidos com Hollywood, Mussolini tentou usar o cinema como propaganda para perpetuar-se no poder, alm de garantir a criao de uma indstria de entretenimento que pudesse render dividendos econmicos e polticos ao governo fascista. Medindo-se em nmeros, a estratgia deu certo. Em cinco anos, o nmero de filmes produzidos no pas triplicou, chegando a 120 longas-metragens em 1942. Nos trs anos seguintes, por causa da Segunda Guerra Mundial, este nmero foi reduzido dramaticamente, medida que a populao masculina se envolvia diretamente nos combates. Em 1945, quando Mussolini perdeu o poder, a indstria de cinema popular estava reduzida a escombros. Naquele ano, menos de 15% dos longas-metragens exibidos nas salas de projeo italianas tinham sido produzidos no pas (CAMARGO; VELLOZO; PEREIRA, 2007, p. 37). O movimento neo-realista, nascido em 1942, celebrava o renascimento do cinema italiano atravs de uma poltica autoral. Seus diretores realizavam produes de baixo oramento. Filmes como Roma, Cidade Aberta (Roma, Citt Aperta, Roberto Rossellini, 1945) e Ladres de Bicicleta (Ladri di Biciclette, Vittorio De Sica, 1948) contavam histrias de gente comum, trabalhadores tentando sobreviver em meio ao caos das cidades cuja infra- 32
estrutura havia sido destruda no conflito internacional. Os filmes funcionavam como denncia das precrias condies de vida na Itlia do ps-guerra. Nos terrenos narrativos e estilsticos, o cinema neo-realista tanto herdou caractersticas impostas pelo modo de produo de Cinecitt quanto popularizou outras, definidas muitas vezes a partir de princpios estticos e ideolgicos considerados importantes pelos diretores que compunham o movimento. Entre essas tcnicas estavam a economia no uso do close-up de rostos, a recusa a efeitos visuais e de edio (sobreposies, elipses elaboradas, etc.), as filmagens em locaes reais, o uso de atores no-profissionais e as gravaes sem som direto, com as trilhas de udio sendo posteriormente criadas em estdio (FABRIS, 2004, p. 205). O documentrio aparecia como influncia importante, ao lado de certos traos do melodrama hollywoodiano (a msica neo-romntica, por exemplo). Embora o movimento neo-realista tenha exercido profunda influncia no cinema modernista europeu que surgiria nos anos 1960, j havia terminado quando Sergio Leone comeou a trabalhar como diretor, em 1962. E, apesar de os cineastas do movimento se esforarem para captar a realidade de forma fiel (uma esttica diferente dos filmes cheios de artifcios de Leone), o neo-realismo deixou marcas no cinema dele, como o cuidado com os detalhes e o tratamento do som. Nos anos 1950, a concorrncia das produes americanas fazia os produtores de Cinecitt enfrentarem baixas bilheterias. O problema era agravado pelo pequeno incentivo financeiro do governo italiano, ocupado com a reconstruo do pas arrasado. Para conseguirem se auto-sustentar, os produtores independentes que atuavam em Cinecitt (no apenas italianos, mas tambm franceses, alemes e espanhis) bolaram um sistema de produo que privilegiava dois fatores: (1) o aluguel das instalaes de Cinecitt para filmagens de produes estrangeiras; e (2) a produo em larga escala de filmes baratos, de apelo popular, seguindo regras rigidamente codificadas. O primeiro item recebeu a ajuda de uma lei federal, obrigando as grandes companhias estrangeiras a gastar dentro da Itlia parte do dinheiro arrecadado dentro do pas com as produes feitas em Roma (CAMARGO; VELLOZO; PEREIRA, 2007, p. 37). Quanto ao segundo item, os produtores estabeleceram um sistema de produo baseado em ciclos temticos. Filmes vinculados a gneros diversos eram produzidos a baixo custo, em grande nmero, e to logo algum deles se destacasse nas bilheterias, tinha a trama e os recursos estilsticos copiados imediatamente por todos os produtores. Na maioria das vezes, tratava-se simplesmente de investir em variaes do mesmo filme, atravs de uma frmula padronizada, que consistia num esquema rgido de recursos estilsticos e narrativos. 33
Esse sistema de investimento em filmes de gnero era cclico. Cada ciclo durava at que a frmula narrativa comeasse a dar sinais de desgaste (ou seja, as bilheterias desses filmes comeassem a declinar). Quando isso acontecia, os produtores iniciavam uma nova rodada de procura por outro gnero que atendesse s expectativas do pblico. Aos poucos, foi estabelecido um sistema de produo com as seguintes caractersticas: A necessidade de atrair dinheiro de co-produes estrangeiras, se possvel; o papel-chave desempenhado por produtores e audincias espanhis (assim como o trabalho barato de tcnicos espanhis em locaes fora dos estdios); os cronogramas apertados de filmagem e a necessidade constante de dublagem do som (com algumas produes inclusive sendo dubladas simultaneamente em diversas verses estrangeiras); o uso nos crditos de pseudnimos norte-americanos pelos membros do elenco (...); a flexibilidade sobre roteiros reescritos durante as filmagens. (FRAYLING, 1981, p. 70).
Todas essas caractersticas so essenciais para compreender o florescimento e a consolidao do spaghetti western na dcada de 1960. Note-se que vrias prticas estilsticas e narrativas adotados pelos diretores do futuro ciclo foram fruto, em boa medida, das condies de produo oferecidas pelo sistema italiano. Por exemplo, o desenho sonoro dos filmes, com poucos dilogos (sempre dublados na ps-produo), msicas de estrutura pop e uso abundante de sons naturais amplificados. Esse sistema dispensava o aluguel de equipamento de captao de udio em locao, enquanto a menor quantidade de dilogos reduzia o tempo de aluguel de estdios de som. A partir do incio dos anos 1950, a sade financeira do cinema italiano passou a depender do sistema de ciclos de filmes de gnero. Em 1952, mais de 30% dos 130 longas- metragens feitos em Cinecitt pertenciam ao gnero do film fumetto (melodramas romnticos), tendo decado em 1954 e sendo sucedido por um tipo de comdia ligeira de costumes com caractersticas farsescas (FRAYLING, 1981, p. 70). Cada um desses ciclos tinha vida til de aproximadamente cinco anos. O prximo gnero da lista foi o pico estilo sandlia-e-espada. A produo dos pepla (o termo, plural de peplum, designa os saiotes usados pelos atores) est diretamente conectada ao uso da infra-estrutura de Cinecitt por grandes produes norte-americanas, que filmavam l, entre as dcadas de 1950 e 1960, picos cujas tramas se passavam na Roma da Antiguidade. Essas equipes deixavam nos galpes de Cinecitt cenrios e figurinos que eram reaproveitados pelos produtores italianos, como forma de reduzir ainda mais os custos. Foi dentro deste ciclo de cinema popular que Sergio Leone floresceu como cineasta. A onda de picos em Hollywood comeou em 1951, com o xito de Quo Vadis? (Mervyn LeRoy, 1951). Circunstncias tecnolgicas, alis, foram responsveis por 34
impulsionar essa aposta de Hollywood em espetculos extravagantes: com o advento da televiso colorida e a competio pela audincia que esta ensejava, os produtores norte- americanos se viram forados a investir em tecnologias capazes de dotar os filmes de um visual grandioso, que no pudesse ser reproduzido na tela dos aparelhos domsticos de TV. O sucesso de Quo Vadis? incentivou os estdios americanos a apostar no pepla. Para cortar custos, j que essas produes demandavam a construo de grandes cenrios e dezenas de figurinos, mais a contratao de muitos figurantes e tcnicos especializados, os produtores dos EUA alugavam sets em Cinecitt e contratavam mo-de-obra italiana. Na Itlia, tanto a infra-estrutura quanto a mo-de-obra eram mais baratas do que nos Estados Unidos. Dessa forma, em meados da dcada de 1950, Cinecitt recebeu muitas equipes americanas. Foram filmados em Roma grandes picos, como O Manto Sagrado (The Robe, Henry Koster, 1953), Helena de Tria (Helen of Troy, Robert Wise, 1956), Ben-Hur (William Wyler, 1959) e Sodoma e Gomorra (Sodom and Gomorrah, Robert Aldrich, 1962). A j citada legislao que obrigava Hollywood a investir em territrio italiano parte dos lucros da bilheteria desses filmes alimentou o ciclo popular italiano, pois a parcela do resultado financeiro reinvestida em Cinecitt levava os produtores norte-americanos a filmar mais vezes em Roma, ou mesmo a financiar produes menores realizadas por equipes italianas. Alm de ser o ciclo popular imediatamente anterior ao spaghetti western, o peplum tambm o gnero que guarda mais semelhanas de estilo e narrativa com o spaghetti western. Isso aconteceu porque muitos diretores que consolidariam carreiras dirigindo spaghetti westerns comearam a dirigir filmes durante os pepla. o caso de Sergio Corbucci (trs filmes), Domenico Paolella (sete) e Mario Bava (quatro). Tambm foi o caso de Sergio Leone. Ele trabalhava com cinema desde os 16 anos, quando exerceu os postos de figurante e quinto assistente de direo em Ladres de Bicicleta (Ladri di Biciclette, Vittorio De Sica, 1946). Nos 13 anos que se seguiram at Os ltimos Dias de Pompia (Gli Ultimi Giorni di Pompei, Mario Bonnard, 1959), que dirigiu, substituindo o titular adoentado (embora no tivesse recebido os crditos por esse trabalho), Leone executou uma variedade de servios ligados produo cinematogrfica, sobretudo como roteirista, assistente de produo e diretor assistente. Ao todo, nesse perodo, trabalhou em 35 longas-metragens (FRAYLING, 2005, p. 16). Leone teve a chance de fazer assistncia de direo para trs grandes produes: Quo Vadis?, Helena de Tria e Ben-Hur. Nesse ltimo, dirigiu uma equipe de segunda unidade. Na tradio dos grandes mestres do Renascimento, ele aprendeu seu ofcio com artistas mais experientes. Os dois tipos de experincia, com pequenas produes neo-realistas de baixo 35
oramento e grande picos hollywoodianos, eram muito distintas entre si, e deixaram marcas estilsticas no seu futuro trabalho como diretor: Leone dizia que reteve desse longo aprendizado a obsesso com a aparncia documental de um filme neo-realista italiano (detalhe que dava mais credibilidade s histrias), a fascinao com a logstica necessria s grandes seqncias de ao, um repertrio de tcnicas e a determinao de evitar o desperdcio financeiro que via ocorrer nas superprodues hollywoodianas. A eficincia oramentria das produes italianas menores era fortemente admirada por ele. (FRAYLING, 2005, p. 16).
Algumas caractersticas de estilo e narrativa adquiridas nessa fase de aprendizagem derivaram dos limites impostos pelo modo de produo de Cinecitt. O desenho de produo (cenrios e figurinos realistas, a pele queimada de sol dos atores), o tratamento hiper-real do som (poucos dilogos, rudos naturais amplificados) e a representao grfica da violncia esto entre elas. Todas so recursos que revisavam esquemas dominantes e seriam, depois, associados continuidade identificada. Na seqncia da carreira, Leone ainda dirigiria trechos no-creditados de outro longa- metragem, Gastone (Mario Bonnard, 1959), antes de sentar oficialmente na cadeira de diretor para o primeiro trabalho: O Colosso de Rhodes (Il Colosso di Rodi, Sergio Leone, 1961). Um autntico peplum, realizado por obrigao contratual e sem liberdade estilstica. Do ponto de vista do estilo, de fato no se encontra nesse filme as ferramentas que se tornariam recorrentes nos westerns de Leone. O filme se parece com qualquer outro pepla: cores saturadas (seguindo a moda da poca); cenrios limpos, que pareciam ter sido construdos no dia anterior, sem preocupao com acuidade histrica; predominncia de tomadas longas encenadas em longos planos gerais; msica orquestrada. No h um nico close-up extremo o recurso estilstico mais evidente da obra de Leone no filme. O Colosso de Rhodes no foi concebido por Leone, mas sim dirigido por ele, o que algo bem diferente. Na ocasio, o gnero sandlia-e-espada j comeava a curva descendente rumo extino, como todo ciclo popular italiano. Aps um perodo comercialmente vistoso, entre 1958 e 1961, os pepla estavam chegando ao ponto de saturao da audincia. Quando o fracasso de Sodoma e Gomorra (1962) causou a falncia da produtora Titanus, era o prenncio do fim, determinado nos anos seguintes por mais dois fracassos de propores monumentais: Clepatra (Cleopatra, Joseph L. Mankiewicz, 1963) e A Queda do Imprio Romano (The Fall of the Roman Empire, Anthony Mann, 1964), este ltimo tendo decretado a falncia da produtora do empresrio russo Samuel Bronston, radicado em Hollywood. 36
O fim das grandes produes internacionais determinou, tambm, o encerramento do ciclo de pepla, inclusive porque as produes realizadas na Itlia estavam deixando de atrair o pblico aos cinemas. Como os produtores tinham que criar um novo ciclo popular para manter o modo de produo de Cinecitt funcionando, iniciou-se um perodo de experincias, em busca de um filme que fizesse sucesso num nvel capaz de impulsionar os produtores a copi- lo. Este filme foi Por um Punhado de Dlares (Per um Pugno di Dollari, Sergio Leone, 1964). Por que o western? Na mesma poca, nos Estados Unidos, o gnero passava por um fenmeno distinto, mas que acabaria por se mostrar fundamental para o surgimento do ciclo popular italiano: a migrao para as sries de TV. Embora o cinema realizado nos Estados Unidos tivesse sobrevivido j citada ameaa representada pela televiso nos anos 1950, os produtores de Hollywood tiveram que fazer ajustes no modo de produo dos grandes estdios. Um dos nichos de produo que mais sofreram foi justamente o western. Durante os anos de ouro de Hollywood (1930-1950), os grandes estdios tinham suas prprias cadeias de exibio, e costumavam exibir nelas programas duplos, com dois longas- metragens exibidos sucessivamente pelo preo de um. O espectador entrava no cinema, assistia a um filme B (produzido com menos recursos), deixava a sala para um lanche, e voltava para assistir ento atrao principal. Trs fatores contriburam para extinguir esse sistema. O primeiro foi o aumento dos custos de produo aps a guerra, quando um filme passou a custar at cinco vezes mais (MANTOVI, 2003, p. 47). O segundo foi a aprovao de uma lei antitruste pela Suprema Corte, em 1949, numa sentena que obrigou todos os estdios a venderem suas cadeias de exibio. Enfrentando dificuldades financeiras em decorrncia dessa deciso, os estdios extinguiram os filmes B, que migraram para a televiso sob a forma de seriados semanais. A televiso foi o terceiro fator. Parte dos atores que estrelavam os filmes B, como William Boyd e Gene Autry, perderam os empregos no cinema. Ento, fundaram produtoras independentes e passaram a produzir sries de TV, em que os episdios (30 minutos por semana) consistiam de verses mais curtas dos antigos filmes B. Sries como The Gene Autry Show, Range Rider (no Brasil, Tim Relmpago) e as posteriores Rawhide (que revelaria Clint Eastwood) e Gunsmoke logo estavam entre as sries de maior audincia da televiso. O primeiro seriado de western apareceu em 1949. Os nmeros crescentes comprovam o sucesso: no ano seguinte, eram trs series; em 1951, oito. Esse crescimento chegou ao pice em 1959, quando 48 sries semanais de western estavam em exibio nas trs redes de televiso aberta dos Estados Unidos (BUSCOMBE, 1988, p. 428). Em 1970, aps uma dcada 37
em que as estatsticas de produo e consumo de westerns declinaram consistentemente (ver Tabela A dos Anexos), ainda havia onze sries de western em exibio na TV dos EUA. Uma conseqncia inesperada dessas alteraes no sistema de produo, distribuio e exibio de filmes foi o progressivo desinteresse do pblico pelo western na tela grande. Como os faroestes B eram exibidos na televiso, o pblico comeou a deixar de ir ver as produes do gnero na tela grande. Esse desinteresse pode ser comprovado pelas estatsticas de produo do gnero no perodo. Em 1950, 150 filmes do gnero western foram lanados nos Estados Unidos (34% da produo total de Hollywood); em 1958, esse nmero caiu para 54 (22% d a produo dos estdios); em 1963, foram filmados 11 faroestes nos EUA. Apenas 9% de toda a produo de Hollywood consistiam de westerns (BUSCOMBE, 1988, p. 427). No entanto, fora dos Estados Unidos a demanda pelo gnero continuava forte. Um exemplo disto envolveu o filme Sete Homens e um Destino (The Magnificent Seven, John Sturges, 1960), que faturou US$ 3 milhes nas bilheterias americanas, tendo sido considerado fracasso no pas de origem 10
10 Estatstica pesquisada no IMDb (www.imdb.com). . Em vrios pases da Europa, no entanto, foi o maior sucesso de bilheteria de 1961: Para preencher uma lacuna em seus mercados internos, vrios pases europeus decidiram comear a fazer seus prprios westerns (HUGHES, 2004, p. xii). J que os americanos no produziam mais filmes do gnero, os europeus decidiram faz-lo. Havia uma demanda na Europa por esse tipo de filme, e essa demanda tinha que ser preenchida. O raciocnio explica porque os produtores de Cinecitt resolveram apostar no western como um dos gneros com potencial para substituir os mini-picos sandlia-e-espada. Alm disso, eles tinham condies de infra-estrutura bastante favorveis no continente; o bastante para criar uma espcie de linha de montagem cinematogrfica capaz de produzir de dois a trs filmes por semana, nmero considerado ideal para satisfazer o apetite das platias europias por entretenimento cinematogrfico popular. Em 1959, o deserto de Almera, a nordeste de Madri (Espanha), havia servido de cenrio para um western britnico. Para realizar O Xerife do Queixo Quebrado (The Sheriff of Fractured Jaw, Raoul Walsh, 1959), os produtores haviam construdo uma cidade cenogrfica, chamada Hojo de Manzanares (figuras 1.1 e 1.2). O set passou a ser aproveitado com regularidade nos spaghetti westerns. Hojo de Manzanares aparece em todos os filmes de Sergio Leone, sempre com a maquiagem retocada pelo diretor de arte Carlo Simi, tendo sido a principal locao de Por um Punhado de Dlares (1964). 38
Figura 1.1: A cidade cenogrfica de Hojo de Manzanares, construda em 1959 a nordeste de Madri, foi o set principal de Por um Punhado de Dlares.
Figura 1.2: Casebres de estuque branco de Hojo de Manzanares se transformam no vilarejo mexicano de Agua Caliente, em Por uns Dlares a Mais.
Por um Punhado de Dlares no foi o primeiro western italiano. Em 1964, Cinecitt produziu 27 longas-metragens do gnero. Por um Punhado de Dlares foi o 25. Mas o sucesso alcanado pelo filme, superior resposta de pblico de qualquer um dos faroestes anteriores, convenceu os produtores de que o western reunia todas as condies para se tornar o prximo ciclo de cinema popular capaz de sustentar a produo popular de Cinecitt. Dois pesquisadores mapearam o spaghetti western em estatsticas. Thomas Weisser (1992) contabilizou 555 filmes realizados entre 1960 e 1980; Bert Fridlund (2006) contou 546 longas-metragens no mesmo perodo. Fridlund atribui as pequenas diferenas a dois fatores, um subjetivo (a deciso de incluir ou no determinados filmes na lista, como os ttulos espanhis realizados entre 1959 e 1962) e outro objetivo (variaes na metodologia usada para fixar o ano de produo do longa):
As discrepncias entre as listas dependem da incluso de determinados filmes, e em alguns casos de opinies diferentes quanto ao ano da produo. Esta cronologia situa o apogeu do spaghetti western no perodo 1964-1973 (...). Entre 1966 e 1968, o gnero teve uma forte posio comercial, numa poca em que mais de 20% de todos os filmes italianos eram westerns. (FRIDLUND, 2006, p. 7).
Embora divergentes, os nmeros das listas so bem prximos, o que nos permite fixar o nmero de spaghetti westerns produzidos entre 1962 e 1978 em torno de 550. Curiosamente, os nmeros do Governo da Itlia so bem diferentes, somando 418 filmes em 20 anos (ver Tabela B dos Anexos). A divergncia significativa explicvel: a Itlia inclui em sua lista s produes com financiamento majoritrio de empresas do pas. Esse critrio exclui os filmes realizados com recursos oriundos de outros pases. Sob esse critrio, apenas o primeiro western de Sergio Leone seria considerado italiano. O que h de comum em todos esses levantamentos estatsticos e o elemento que os articula com esta tese o papel fundamental exercido pelos filmes de Leone no surgimento, na consolidao e no desenvolvimento do ciclo de spaghetti westerns. O papel dele como 39
criador de uma nova abordagem narrativa e estilstica para o gnero uma reviso crtica dos esquemas dominantes de representao do western que, como veremos, apontava em direo continuidade intensificada o elo que une todas as pesquisas realizadas sobre o fenmeno. Levando isso em considerao, torna-se possvel sintetizar a trajetria histrica da produo de spaghetti westerns em Cinecitt tendo como eixo o trabalho de Leone. Os filmes dirigidos por ele eram pontos de referncia para os trabalhos dos demais diretores, tanto no fator estilo quanto no aspecto narrativo; o uso intenso de close-ups extremos e flashbacks, por exemplo, se tornaram artifcios utilizados por virtualmente todos os cineastas do spaghetti western, graas ao raio de influncia exercida por Leone. O primeiro western de Leone foi viabilizado por trs produtoras uma italiana (Jolly Film), uma espanhola (Ocean Film) e uma alem (Constantin Film) com oramento de US$ 200 mil (HUGHES, 2003, p. 4). O filme foi planejado como produo secundria, filmada em simultneo ao longa-metragem A Pistola No Discute (Le Pistole Non Discutono, Mario Caiano, 1964). As duas produes compartilhavam cenrios e equipes tcnicas, seguindo uma tradio do modo de produo de Cinecitt: uma equipe trabalhando em dois filmes ao mesmo tempo significava dois longas-metragens pelo preo de um. O modo de produo, alis, era muito rgido: Cronogramas de filmagem (...) raramente ultrapassavam cinco ou seis semanas; oramentos quase sempre estavam em patamares inferiores a US$ 200 mil; cidades cenogrficas eram reutilizadas o tempo todo; os diretores s tinham permisso para filmar dois ou trs takes de cada tomada, para economizar pelcula fotogrfica; os efeitos sonoros e dilogos eram ps- sincronizados (mesmo nas verses italianas); havia at mesmo planos gerais que reapareciam em filmes diferentes. (FRAYLING, 1981, p. 68).
Graas s solues narrativas e de estilo propostos ainda durante o perodo de pr- produo, os produtores de Por um Punhado de Dlares consideraram o filme promissor. At ento, os faroestes europeus tentavam replicar os esquemas dominantes usados em Hollywood, enquanto Leone propunha uma releitura crtica do gnero, pontuada por novos recursos estilsticos e pela introduo de caractersticas tpicas da cultura ibrico-mediterrnea (iconografia religiosa, humor grotesco, tratamento visual e sonoro com influncias da pera e do teatro de bonecos da Siclia, etc.) Alex Cox (2009, p. 27) credita o sucesso alcanado a esse processo de reviso dos esquemas do western americano. Cox afirma que, ao invs de se contentar em criar uma variao das histrias contadas por outros diretores do gnero, aplicando as solues 40
rotineiras de estilo para os problemas de representao, Leone tratou o filme como projeto autoral, selecionando escolhas estilsticas incomuns. Para comear, Leone no se contentou em trabalhar com a equipe selecionada por Mario Caiano. Ele escolheu profissionais e lutou para convencer seus produtores a contrat- los tambm para o filme de Caiano. Foi responsvel, por exemplo, pela aquisio do desenhista de produo Carlo Simi, que acumulou direo de arte e figurinos em Por um Punhado de Dlares e A Pistola No Discute (COX, 2009, p. 29). Nesse ponto, Leone propunha uma soluo de estilo diferente para um problema de representao rotineiro: o cenrio, compartilhado por todos os spaghetti westerns. A abordagem de Leone era suja, grotesca. Nada dos cenrios limpos e coloridos que marcavam o visual dos pepla. O set principal utilizado pelas duas produes a cidade cenogrfica de Hojo de Manzanares foi redecorado, para o filme de Leone, como um vilarejo-fantasma decadente e semi-abandonado. Simi elaborou um conceito para o set. Geograficamente, a cidade tem dois crculos concntricos. No mais externo, onde moram os trabalhadores, h prdios baixos feitos de tijolo, barro e estuque caiado de branco. O crculo interno, onde fica a rua principal, tem construes maiores, de madeira. Todos os prdios so velhos e midos. H uma lgica arquitetnica, social e econmica por trs dessa disposio geogrfica. Essa lgica no citada explicitamente no filme, mas pode ser percebida pelos espectadores: os trabalhadores moram em casas mais humildes do que os patres, e a arquitetura distinta de cada bairro da cidade sinalizava claramente a origem da classe social que o habita. No entanto, ambas as reas da cidade parecem semi-abandonadas. uma cidade beira da falncia. Alm do visual realista, incomum para filmes dos anos 1960, a presena desse conceito arquitetnico subliminar denota o uso de um recurso narrativo surgido nos anos 1960, que ganhou fora aps os anos 1980 e se tornou fundamental para a continuidade intensificada. Bordwell (2006, p. 58) chama esse recurso de worldmaking:
Mais e mais filmes tm se esforado para oferecer um cenrio mais rico, complexo e detalhado, onde a ao dramtica pode ser mais bem desenvolvida. Na era dos estdios [1930-1960], desenhistas de cenrios e figurinistas se preocupavam em criar um ambiente razoavelmente crvel, mas no perodo que estamos considerando [ps-anos 1960] esses esforos foram ampliados at um novo patamar. (BORDWELL, 2006, p. 58).
O worldmaking consiste na preocupao de localizar os personagens da trama dentro de um universo multidimensional, repleto de informaes e detalhes, de modo que o 41
espectador pressinta o senso de realidade que dele emana. Essa prtica o trabalho cada vez mais detalhista dos desenhistas de produo, diretores de arte, figurinistas e maquiadores tem o mesmo objetivo de outras ferramentas da continuidade intensificada: oferecer ao espectador uma experincia flmica mais intensa. Bordwell cita, como filme pioneiro desta prtica, 2001 Uma Odissia no Espao (2001 A Casse Odisseu, Stanley Kubrick, 1968). Ele diz que a tendncia se alastrou nos anos 1970 e ganhou flego aps o sucesso de Guerra nas Estrelas Uma Nova Esperana (Star Wars, George Lucas, 1977), cujo enredo multidetalhado inclui dezenas de personagens, planetas, eventos e raas citados pelos protagonistas, deixando antever todo um universo de informaes que permanece numa camada subjacente ao enredo, e que cada f ou espectador pode explorar em sua imaginao. Bordwell no menciona o spaghetti western ou Leone. Outros marcos do worldmaking incluem filmes como O Caador de Andrides (Blade Runner, Ridley Scott, 1982) e Titanic (James Cameron, 1997), ambos realizados aps pesquisas iconogrficas detalhadas; e nas trilogias Matrix (Larry e Andy Wachowski, 1999- 2003) e O Senhor dos Anis (The Lord of the Rings, Peter Jackson, 2001-2003), em que a grande quantidade de coadjuvantes e tramas paralelas foram explorados em narrativas multimdias, inclusive desenhos animados, jogos de videogame e revistas em quadrinhos. O conceito criado por Simi encaixa perfeitamente na noo de worldmaking. Alm disso, a prtica da pesquisa iconogrfica preocupada com a acuidade histrica e com a obsesso por detalhes realistas seria intensificada nos filmes seguintes de Leone. O trabalho da direo de arte inclui uma paleta de cores incomum. Ao invs do colorido saturado, marca registrada dos westerns norte-americanos dos anos 1950, Leone privilegiou tons de terra e cores desbotadas. Marrom, vermelho-escuro, branco encardido e cinza-chumbo predominam tanto nas locaes internas quanto nas externas (figuras 1.3 e 1.4). Saram de cena as pradarias verdes, os riachos de gua lmpida, os paredes de rocha e o barro vermelho/dourado do Monument Valley; entraram os cactos, as escarpas barrentas e o empoeirado deserto do nordeste espanhol (figura 1.5). O cenrio de Por um Punhado de Dlares era a fronteira mexicana, com seu deserto de terra seca, areia e pedras, habitado mais por moscas e coiotes do que por seres humanos. Num ambiente assim, caubis e pistoleiros no podiam circular em roupas novas e coloridas; Simi apostou num figurino envelhecido, com roupas rasgadas, sujas e desbotadas. Os chapus despejam nuvens de poeira no ar quando so sacudidos. Os homens tm queimaduras de sol, vivem suados e com a barba por fazer (figura 1.6). 42
Figura 1.3: Os interiores de Por um Punhado de Dlares consistem de aposentos de madeira velha, muitas vezes com portas tortas, piso solto e janelas quebradas.
Figura 1.4: A paleta de cores dessaturada, na contramo dos filmes de Hollywood, privilegia amarelo, branco e cinza, contribuindo para a verossimilhana do ambiente.
Figura 1.5: Ambiente do deserto espanhol, com escarpas secas, vegetao rasteira e pedras, semelhante ao territrio da fronteira Mxico-EUA.
Figura 1.6: Close-ups extremos funcionam como moldura em composies recessivas; pele queimada contribui para a atmosfera de verossimilhana.
Figura 1.7: A predileo de Leone pelos close-ups extremos de rostos humanos, com o enquadramento cortando a ponta do queixo e o topo da testa.
Figura 1.8: Composio recessiva: figuras colocadas a diferentes distncias da cmera criam linhas diagonais que do perspectiva e profundidade imagem.
Simi viria a ser, junto com o compositor Ennio Morricone, parte fundamental da equipe criativa que acompanhou Leone nos filmes seguintes, ajudando-o a dar forma a suas idias, transformando conceitos em recursos de estilo. Ele fez a direo de arte e os figurinos de todos os longas-metragens subseqentes (exceo feita a Quando Explode a Vingana, cuja direo Leone assumiu com as filmagens em andamento). A fotografia de Massimo Dallamano segue a mesma abordagem realista. As cenas externas, filmadas no deserto, enfatizam o sol inclemente que transforma a vida na regio em um inferno, com os excessos de luz neutralizando os contrastes e contribuindo para dar s cores uma textura quente e gasta. As cenas internas, registradas num museu sobre a vida rural localizado em Madri, demarcam grande distncia em relao aos westerns tradicionais: so escuras, com pouca luz de enchimento, adotando um estilo de iluminao que valoriza os contrastes do tipo chiaroescuro e refora a dramaticidade das cenas (figuras 1.3 e 1.4). Nas composies visuais, Leone demonstrava algumas caractersticas recorrentes de estilo: o gosto por close-ups extremos, com nfase para o rosto humano (figuras 1.6 e 1.7), e 43
o uso freqente de tomadas em grande profundidade de campo que realavam a dramaticidade de composies pictricas recessivas (WLFFLIN, 2000, p. 101) tcnica em que atores e objetos esto espalhados a diferentes distncias da cmera, criando linhas diagonais dispondo uma figura em primeirssimo plano, bem prxima cmera, funcionando como uma moldura. Muitas vezes, essa figura era um rosto focalizado em close-up extremo, o que unia as duas tcnicas prediletas de Leone em uma nica imagem. Esta variao da composio recessiva era uma reviso intensificada do recurso popularizado por Orson Welles em Cidado Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941), que consistia em colocar um elemento em primeiro plano, enquanto a ao principal era encenada ao fundo. Nesse ltimo ponto, importante ressaltar que Leone retomava uma caracterstica estilstica de um esquema de encenao caracterstico do cinema dos anos 1940, mas que havia cado em desuso na dcada seguinte, em Hollywood, devido a questes tcnicas. O uso desses dois enquadramentos, aliada atuao deliberadamente lenta dos atores (reforado por um desenho de som repleto de rudos naturais amplificados), emprestava ao filme uma atmosfera que Leone reconhecia como influncia da cultura italiana, em particular da pera de onde vinha a dramaticidade ostensiva e do teatro de bonecos da Siclia:
Os bonequeiros da Siclia pegam uma fbula e inserem referncias a elementos de cada localidade visitada por eles. (...) exatamente a mesma coisa que eu fao nos meus filmes: colocar a Itlia dentro da paisagem do western. (LEONE, 2005, p. 76).
Um elemento importante para o desenvolvimento das ferramentas estilsticas de Leone deve ser destacado nesta passagem: a infiltrao consciente de elementos da cultura ibrico- mediterrnea nos filmes. Ao reconhecer a influncia da pera e do teatro de bonecos em seu trabalho, Leone admite realizar uma operao consciente de desconstruo e releitura crtica dos esquemas do gnero. Outro recurso de estilo original foi o uso das lentes zoom (ou seja, com distncia focal varivel). Leone foi um dos primeiros diretores europeus a adotar o zoom, que vinha sendo utilizado pela televiso americana desde o comeo dos anos 1950, mas s apareceu no cinema nos filmes de Akira Kurosawa (BORDWELL, 1997, p. 245), no comeo da dcada de 1960, tendo demorado alguns anos para chegar a Hollywood. Leone usava esse recurso de forma relativamente discreta. Outros diretores de spaghetti westerns, intensificando ainda mais as ferramentas de estilo introduzidas por Leone, exacerbaram o uso desse recurso de maneira bastante radical. 44
Figura 1.9: Em Django (1966), o diretor Sergio Corbucci apresenta o personagem principal mostrando-o como um pequeno ponto na paisagem e, com o zoom, ...
Figura 1.10: ... aproxima a imagem at transformar o que era originalmente um plano geral aberto num plano geral fechado, sem mover a cmera e sem cortar.
Em vrios filmes, o cineasta iniciava uma tomada com uma panormica e a encerrava com um plano geral, destacando um elemento da paisagem, ou vice-versa (figuras 1.9 e 1.10). Tudo isso sem a necessidade de cortar. Este recurso estilstico passou a ser extremamente usado nos spaghetti westerns; depois, abriu caminho dentro do cinema narrativo norte- americano da gerao New Hollywood, nos anos 1970. Sam Peckinpah, por exemplo, adotou rapidamente essa tcnica. Contudo, ao contrrio do que ocorreu com a utilizao de close-ups extremos de rostos, o uso extensivo zoom s permaneceria popular at o final da dcada de 1970 (BORDWELL, 1997, p. 246). Outra novidade introduzida pelo western de Leone consistiu no perfil violento, amoral e individualista do heri. O protagonista de Por um Punhado de Dlares, Joe (Clint Eastwood), consiste na adaptao do arqutipo do heri sociedade hedonista e urbanizada dos anos 1960, onde o conceito de moral est em cheque. O perfil consiste em mais uma reviso do esquema narrativo dominante em direo potica da continuidade intensificada. Tanto no western americano quanto nos primeiros longas-metragens do ciclo, em 1964, o protagonista invariavelmente seguia o mesmo cdigo de conduta recusa ao uso da violncia seno em ltimo caso, jamais atirar pelas costas, deixar o rival sacar primeiro, nunca lutar em benefcio prprio, etc. que estava firmemente estabelecido entre as convenes mais caractersticas do gnero desde seu surgimento (GOMES DE MATTOS, 2004, p. 15). Nos trabalhos de Leone, contudo, o heri tem perfil diferente. Ele , na verdade, um anti-heri. Vive margem da sociedade e no tem qualquer interesse em se integrar a ela; est sempre procura de oportunidades para tirar proveito prprio; no hesita em usar a violncia para se impor, mesmo que isso signifique recorrer a truques amorais, como atirar em inimigos desarmados (algo que no acontecia em westerns americanos). Convm registrar que o perfil do heri de Leone essencialmente um personagem repetido em todos os westerns que ele dirigiu, um arqutipo oriundo da tradio italiana da 45
commedia dellarte foi uma reviso intensificada do que Kurosawa havia feito em Yojimbo (Akira Kurosawa, 1961), filme que inspirou o projeto de Leone a tal ponto que Kurosawa o processou por plgio, ganhando a causa e ficando com os direitos do filme na sia, alm de parte dos lucros obtidos no resto do mundo (COX, 2009, p. 45). Mas Leone enumerava outras influncias alm do filme de Kurosawa, que ele viu em Roma no outono de 1963: Homero, Shakespeare, Dashiell Hammett, a Bblia (o personagem de Clint Eastwood seria uma referncia ao Anjo Gabriel, constituindo-se num dos muitos simbolismos religiosos presentes dentro do enredo), e a pea Arlecchino Servitore di Due Padroni, (em portugus, Arlequim Um Servo com Dois Patres), de Carlo Goldoni (1745), autor que no por coincidncia trabalhou dentro da tradio da comedia dellarte. A introduo desse anti-heri era uma inovao criativa. O ciclo popular havia encontrado o elemento central de seu esquema narrativo, replicado por virtualmente todos os diretores: o anti-heri taciturno, errante, sempre pronto a levar vantagem em tudo, que no se apega afetivamente com nada e nem ningum. O perfil deste heri trouxe a reboque outro recurso estilstico da continuidade intensificada: a representao grfica da violncia. Nos filmes de Leone, muitos personagens mesmo o heri so baleados, espancados, socados, torturados, assassinados a sangue frio. E tudo isso mostrado na tela, muitas vezes com a cmera colocada bem prxima da ao. A questo da violncia nos filmes inscritos no gnero western sempre foi de importncia fundamental. Edward Buscombe (1988) afirma que a violncia no tem significado meramente formal, mas representa aquilo que o folclore norte-americano associa experincia da vida na fronteira:
A violncia central para o western (...). Quando nos dito que certo filme um western, esperamos que ele seja visualmente ambientado de forma a inscrev-lo num recorte especfico de espao e tempo; qualquer que seja o enredo, a violncia da natureza e dos homens ter que ser parte essencial da paisagem; e provavelmente seu clmax emocional e moral acontecer durante um ato singular de violncia. (BUSCOMBE, 1988, p. 232).
Em 1964, representar a violncia de maneira realista era literalmente proibido em Hollywood pelo Cdigo Hays 11
11 Documento assinado por todos os grandes estdios de Hollywood, e por eles obedecido, de 1930 a 1968; o Cdigo Hays continha uma srie de restries relacionadas exibio de cenas contendo elementos relacionados a sexo e violncia em filmes (BORDWELL; THOMPSON, 2009, p. 198). . Diretores no podiam mostrar um corpo sendo perfurado por bala, ou sangue jorrando de um ferimento, pois isso faria qualquer filme ser cortado pelos produtores. O sucesso de bilheteria alcanado nos Estados Unidos por Por um Punhado de 46
Dlares a partir de seu lanamento naquele pas, em janeiro de 1967, aliado irreverncia tpica da contracultura da pica, incentivou jovens diretores norte-americanos a seguir o mesmo caminho e desafiar o sistema de autocensura. No ano seguinte, em 1968, o Cdigo Hays foi oficialmente abolido, pois a nova gerao de diretores no o respeitava mais. De modo indireto, podemos dizer que os filmes de Leone contriburam para a queda da autocensura dos estdios dentro de Hollywood. Cenas como o final de Bonnie & Clyde Uma Rajada de Balas (Bonnie & Clyde, Arthur Penn, 1967), com um tiroteio em cmera lenta mostrando os bandidos atingidos por dezenas de tiros de metralhadora; a carnificina do clmax de Meu dio Ser Sua Herana (The Wild Bunch, Sam Peckinpah, 1969), com metralhadoras dizimando todo um exrcito; e o massacre em Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) carregam um dbito em relao ao cinema de Sergio Leone. Os diretores norte-americanos sabiam disso. Sam Peckinpah, o cineasta mais associado representao grfica da violncia nos anos 1960, admitiu publicamente que no teria conseguido filmar da maneira que desejava sem os filmes de Leone (COUSINS, 2004, p. 289). Em parte por causa da natureza sensorial do som (SERGI, 2004), compreendido pela maioria dos espectadores como elemento secundrio do espetculo audiovisual (ningum diz que vai ouvir um filme quando entra numa sala de projeo), os recursos estilsticos introduzidos por Leone em seus filmes, desde Por um Punhado de Dlares, na rea do sound design, tm passado despercebidos. No entanto, algumas das caractersticas mais recorrentes da prtica estilstica de Leone esto nesse campo. Parte dessas inovaes deve-se, na verdade, aos limites impostos pelas condies de produo: os filmes produzidos em Cinecitt, j vimos, no registravam som sincronizado nos sets. Via de regra, as bandas sonoras de todos os spaghetti westerns eram finalizadas com dilogos em italiano, ingls, francs e alemo. Sergio Leone se aproveitou disso, em Por um Punhado de Dlares, para criar um ambiente sonoro que ia alm de representar, do ponto de vista auditivo, as aes fsicas, mas que reforava o cenrio inspito e a atmosfera decadente das imagens. Para conseguir esse efeito, Leone apostou em um desenho de som que articulava sons naturais amplificados (elemento estilstico que trazia em si a noo de intensificao) e longos perodos sem dilogos, com pronunciado uso de silncios. A msica dos filmes de Leone tambm incluiu aspectos originais. Elementos da msica concreta estavam entre os recursos de estilo que inspiraram Ennio Morricone a escrever a msica de Por um Punhado de Dlares. Este conceito musical, criado em 1948 por Pierre Schaeffer, consiste na utilizao de rudos naturais portas abrindo, passos, vento, 47
barulhos de animais, etc. como parte integrante da composio musical. Morricone afirma que j havia utilizado o conceito numa composio criada para um filme norte-americano, mas a msica em questo acabou recusada pelo outro diretor:
A idia era deixar o pblico ouvir, por trs do tema musical, a nostalgia de determinado personagem pela cidade. Escrevi a msica incorporando sons urbanos, como se os sons da cidade pudessem ser ouvidos distncia, na memria do personagem. (...) Leone ouviu minha explicao do conceito, gostou e imediatamente pediu que aplicasse aquilo a um dos meus temas, retirando-lhe os vocais. O resultado o satisfez e ele me disse que deixasse como estava. Virou o tema de abertura. (MORRICONE, 2005, p. 92).
De fato, o tema de abertura pouco tinha em comum com o estilo neo-romntico, inspirado nos compositores europeus do sculo XIX (Franz Schubert, Johann Strauss, Gustav Mahler, etc.), que era adotado por todos os compositores de Hollywood. A lgica de Morricone era de que a msica ouvida num ambiente rude como o Velho Oeste no deveria ser executada por sofisticadas orquestras, mas por instrumentos rsticos e/ou exticos. Leone foi especfico ao instruir o compositor sobre o tipo de msica que desejava: picaresca e ao mesmo tempo dramtica, com sabor cmico mas tambm operstica. Ele queria usar impor um estilo de msica que no se afastasse totalmente no neo-romantismo, mas que incorporasse influncias modernistas e locais. Seguindo esse conceito e inspirado pela musique concrte, Morricone criou um tema principal com uma estrutura de cano pop, intercalando versos e refro; a melodia principal era solada por um assobio, e a harmonia, construda com guitarra eltrica, violes e um coral masculino. A maior ousadia estava na percusso, que incorporava sons naturais retirados da diegese: tiros, chicotadas, galopes de cavalo, sinos. O tema completo, executado durante os crditos de abertura, influenciou praticamente toda a msica composta no ciclo do spaghetti western. Os assobios, a estrutura pop, as guitarras eltricas, os corais masculinos foram copiados pelos demais compositores que trabalhavam para os produtores talo-espanhis. importante ressaltar que Morricone foi o mais prolfico compositor do ciclo, tendo assinado duas dzias de trilhas sonoras para spaghetti westerns 12
12 impossvel saber exatamente quantos filmes do ciclo Morricone musicou, j que ele utilizava diversos pseudnimos (como Dan Savio e Leo Nichols) quando fazia msica para a indstria italiana. O IMDb registra 492 trilhas compostas por Morricone em 40 anos de carreira. . O resto da msica do filme consiste em variaes do tema principal. Um 48
fraseado de cinco notas, tocado por flauta (s vezes acompanhado por piano e bateria), o leitmotiv 13 Em 1964, segundo nmeros do Governo da Itlia (BOLAFFI, 2009), foram produzidos 13 westerns com financiamento majoritrio de empresas do prprio pas. Ou seja, 8,1% de toda a produo cinematogrfica italiana (160 ttulos) consistiam de westerns. No ano seguinte, esse nmero subiu para 34 westerns, ou 18,7% do total. O crescimento deve ser creditado ao sucesso de Por um Punhado de Dlares. que anuncia a presena do heri. Para o duelo final, Leone pediu a Morricone um tema semelhante cano mexicana executada pelos viles antes do confronto decisivo do clssico Onde Comea o Inferno (Rio Bravo, Howard Hawks, 1959): um degello na tradio mexicana, um apelo para que o adversrio se renda antes do ataque final. Esse tipo de melodia tem uma origem histrica real: em 1836, foi executada para solicitar a rendio do inimigo, pelo Exrcito do Mxico, antes da lendria batalha do Forte lamo. Este segundo tema tambm se mostraria influente no tipo de msica que acompanharia a maior parte das produes do ciclo de spaghetti westerns, em que o trompete muitas vezes o instrumento principal uma conveno estilstica totalmente particular deste ciclo, j que a msica usada por Hollywood e mesmo por outros ciclos do cinema popular italiano costumava usar muito pouco esse instrumento. prudente assinalar, ainda, que os arranjos baseados em violes e trompetes eram convenientes, do ponto de vista diegtico. A msica folclrica da fronteira entre Estados Unidos e Mxico emprega com freqncia esses dois instrumentos, de forma seu uso evoca o princpio do realismo, aplicado na direo de arte e nos figurinos, contribuindo para a construo de um universo mais multidimensional e coerente. O sucesso obtido na Itlia foi avassalador. Entre agosto e dezembro, com exibies em s duas cidades (Roma e Florena), Por um Punhado de Dlares j havia se transformado na maior bilheteria de 1964, obtendo um saldo de 430 milhes de liras (COX, 2009, p. 43). Por volta de 1971, o filme havia ultrapassado os trs bilhes de liras em faturamento (HUGHES, 2003, p. 14). O sucesso dava aos produtores de Cinecitt um gnero que funcionava como substituto comercialmente vivel aos pepla, voltando a atrair multides para os cinemas.
1.3 Apogeu e queda
13 Conceito de Richard Wagner, criado no sculo XIX, e que consiste em associar uma melodia caracterstica a um personagem (ou grupo), sentimento ou situao dramtica. 49
Nos anos seguintes, com a boa receptividade do pblico, esse total continuou crescendo. Em 1966, foram feitos 227 longas-metragens na Itlia (dos quais, 22,9% westerns); em 1967 ficaram prontos 238 filmes (27,7% westerns); em 1968 foram 240 longas (29,6% westerns). Aps um hiato em 1969 26 westerns italianos, contra 71 no ano anterior os nmeros voltariam a crescer no perodo 1970-1972, com o percentual de spaghetti westerns atingindo entre 15% e 18% da soma total de produes, cujo total variou entre 220 e 272. A partir de 1973, o ciclo entrou definitivamente em perodo de decadncia, com menos produes a cada ano, at terminar definitivamente em 1978, quando apenas dois westerns foram realizados (BOLAFFI, 2009). No momento de boom do ciclo, um nmero grande de filmes significava uma quantidade igualmente alta de cineastas. Neste ponto, o que houve foi realmente uma migrao em massa dos diretores de um gnero para outro. Todos os cineastas de maior destaque do ciclo de spaghetti westerns Sergio Corbucci, Sergio Sollima, Gianfranco Parolini, Duccio Tessari e Enzo Barboni, alm do prprio Leone haviam feito pepla. Foi nesse contexto histrico que Leone dirigiu seu filme seguinte, gravado durante doze semanas, entre abril e julho de 1965, em Roma (cenas interiores foram registradas nos estdios Cinecitt) e no deserto de Almera. Em Por uns Dlares a Mais (1965), havia uma dupla operao de fragmentao da estrutura narrativa. Em primeiro lugar, o aumento do nmero de protagonistas (agora eram dois anti-heris), com a ao intercalada entre eles atravs do uso extenso da montagem paralela; em segundo, a quebra da continuidade cronolgica atravs de flashbacks. Desta estrutura surgiram trs variaes de enredo usadas nos anos seguintes pela maioria dos diretores de spaghetti westerns: (1) o relacionamento conflituoso, mas cheio de respeito mtuo, entre um mentor experiente e seu discpulo; (2) a trama de vingana, em que o heri ganha uma motivao misteriosa que s ele conhece apresentada platia gradualmente em flashbacks para a obsessiva perseguio ao vilo; (3) um domnio maior da tecnologia por parte do heri, que compartilha com o vilo uma habilidade extraordinria com armas de fogo, mas se destaca pelo maior recurso tecnolgico disponvel. Mesmo indiretamente, Sergio Leone impunha sua marca nos filmes dos demais diretores italianos. Graas ao oramento de US$ 600 mil, o mais generoso de um filme do ciclo at ento, Carlo Simi pde construir, pela primeira vez, uma cidade cenogrfica. Chamado de Mini Hollywood, o set foi baseado em fotografias do sculo XIX da cidade de El Paso, no Texas (EUA) ou seja, worldmaking. Foi erguido em Tabernas, na Espanha, na mesma regio de Almera (figura 1.11), mas tinha um visual diferente de Hojo de 50
Figura 1.11: A cidade de El Paso, onde a maior parte da ao de Por uns Dlares a Mais (1965) se passa, foi o primeiro set construdo para um spaghetti western.
Figura 1.12: Como de praxe, a cidade cenogrfica desenhada por Carlo Simi reapareceria em diversas produes, como Joe, o Pistoleiro Implacvel (1966).
Manzanares. Enquanto esta ltima (reutilizada nas cenas que se passam em Tucumcari, no comeo do filme) era pontuada por prdios decadentes, Mini Hollywood foi planejada para passar a idia de cidade nova e em expanso: arquitetura de madeira de lei, prdios novos de dois e trs andares. Havia interiores decorados. Essa cidade cenogrfica seria reutilizada em outras produes, como Joe, o Pistoleiro Implacvel (Navajo Joe, Sergio Corbucci, 1966, figura 1.12). Os recursos permitiram a Leone chamar Clint Eastwood de volta, usando de novo o poncho, embora o personagem tivesse outro nome. Por questo de direitos autorais, ele era chamado de Monco Leone estava processando a Jolly Film, co-produtora do primeiro filme, por causa das acusaes de plgio de Yojimbo, e a firma queria impedi-lo judicialmente de usar o mesmo personagem, cujos direitos pertenciam empresa. O oramento tambm permitiu a escalao de Lee Van Cleef, veterano cujo rosto aparecera em papis menores de clssicos como Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952) e O Homem que Matou o Facnora (The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford, 1962). Ele interpretava o pistoleiro mais maduro, rival e mentor de Eastwood. Um dos elementos narrativos recorrentes em Leone o clmax que culmina com um duelo encenado como um bal de close-ups extremos, e sublinhado pelos degellos de Morricone aparece no final de Por uns Dlares a Mais. O duelo entre os dois heris e o vilo encenado em uma arena circular de pedras. Uma variao deste set circular seria usada, no ano seguinte, para o clmax de Trs Homens em Conflito. A preferncia por cenrios circulares no passou despercebida a Carlo Simi:
Leone simplesmente pedia: Carlo, faa uma arena circular usando pedras. Deixava claro que era uma exigncia. (...) Fiz psicanlise, e acho que este tpico estava alm de respostas objetivas. Achei melhor nunca perguntar o que este crculo de pedras representava. Deve ter representado algo, pois era um cenrio sempre associado com a morte. (SIMI, 2005, p. 126).
51
Talvez a resposta fosse mais simples. Leone comparava os duelos dos westerns com as touradas espanholas. Seguindo esse raciocnio, possvel associar ao estilo de encenao de Leone aos espetculos espanhis, e em muitos nveis: a dramaticidade exagerada era obtida atravs do tratamento dilatado do tempo; acentuada pela abundncia de close-ups e pela fragmentao do espao flmico; reforada pelos movimentos lentos dos adversrios que se estudam, como a espcie de dana que os toureiros fazem com os touros; e evocada pelo trompete estilo mariachi que toca, invariavelmente, as melodias dos degellos. Na banda sonora, o filme tambm introduziu novos elementos de estilo. Morricone elaborou msicas que criavam jogos intrincados entre sons diegticos e extra-diegticos (como no duelo final, que ser analisado mais adiante). Instrumentos exticos, populares ou incomuns, como celesta, violo flamenco e castanholas, so incorporados aos arranjos. O uso de efeitos sonoros amplificados, associado a longos perodos de silncio, est mais acentuado. Uma das cenas mais famosas encapsula vrios elementos recorrentes de estilo. A cena mostra um duelo protagonizado por El Indio dentro de uma igreja abandonada (figura 1.13), ocupada pela gangue. O vilo veste branco e o outro duelista, homem honesto, est de negro reviso crtica de um cdigo do western. O cenrio decadente reboco descascando, paredes empoeiradas est apinhado de esttuas de santos (figura 1.14), numa insero da simbologia catlica do diretor, enquanto restos de comida e rostos suados (figuras 1.15, 1.16 e 1.18) agregam elementos de ironia e do grotesco. Leone encena o duelo intercalando composies recessivas em profundidade de campo com moldura (figura 1.13, 1.14 e 1.17) e close-ups extremos de rostos (figuras 1.15 e 1.16), enquanto Morricone compe a msica pastiche irnico de uma composio de Bach num rgo de igreja (bem apropriado diegese, portanto), justapondo-a ao som tambm diegtico da msica do relgio de bolso do vilo, que demarca o incio do duelo e executada delicadamente em uma celesta. Por uns Dlares a Mais fez ainda mais sucesso na Itlia do que o antecessor e se tornou o maior sucesso financeiro da histria da indstria italiana, faturando 50% a mais que o recordista anterior, A Doce Vida (La Dolce Vita, Federico Fellini, 1960). Se Por um Punhado de Dlares havia lanado as bases da reviso narrativa e estilstica dos esquemas do western americano, levada a cabo pelos demais diretores do ciclo popular italiano, Por uns Dlares a Mais parecia reafirmar que o caminho era mesmo investir na intensificao dos elementos de estilo e narrativa. Os novos recursos introduzidos por Leone foram copiados por quase todos os diretores de spaghetti westerns. Os filmes da safra 1966-1968 adicionaram a figura de um segundo 52
Figura 1.13: Plano geral tem esttua de um santo (simbologia religiosa) emoldurando um duelo em segundo plano: composio recessiva.
Figura 1.14: Cdigo do western so subvertidos: o vilo usa branco e o heri, preto; cenrio decadente, com paredes sujas; encenao em diagonal e profundidade.
Figura 1.15: Leone justape close-ups extremos de rostos castigados pelo sol aos tradicionais planos gerais (quase sempre composies recessivas com moldura).
Figura 1.16: Morricone intercala a melodia do relgio de bolso do vilo (diegtica) com um pastiche de Bach executado em rgo de igreja (extra-diegtico).
Figura 1.17: Composio recessiva em profundidade de campo, usando o coldre do revlver de um dos duelistas como moldura: imagem recorrente na obra de Leone.
Figura 1.18: Um dos membros da gangue (ladeado por esttua velhas de anjos) cospe tabaco: ironia, grotesco, religio, close-ups extremos e verossimilhana.
heri e a motivao da vingana. Muitas vezes essas duas variaes narrativas vinham juntas. E na maior parte dos filmes a ao dramtica seguida dois personagens de forma intercalada, ferramenta narrativa que evoluiria, a partir dos anos 1970, para as narrativas em rede (com mltiplos protagonistas), uma caracterstica central da continuidade intensificada. A partir do ano seguinte, os estdios norte-americanos comearam a demonstrar interesse em importar os filmes do ciclo. Isso significou uma srie de co-produes internacionais e mais dinheiro nas mos dos produtores de Cinecitt. Mais dinheiro significava mais filmes, e os produtores comearam a oferecer trabalho a um grupo de roteiristas e diretores engajados politicamente, como Franco Solinas, Fernando Morandi e Sergio Sollima. Todos eles tinham ligaes com o Partido Comunista da Itlia. Nessa poca, no havia muitos produtores interessados em bancar filmes polticos ambientados na poca atual, cujo potencial de bilheteria era reduzido. Por isso, esses roteiristas e diretores decidiram aceitar as ofertas para fazer spaghetti westerns, e aproveitar 53
essas oportunidades para injetar subtexto poltico esquerdista nos enredos, quase sempre criticando duramente a poltica intervencionista dos Estados Unidos na Amrica Latina. Convm lembrar que, neste mesmo perodo, os EUA apoiavam uma srie de golpes militares em pases da regio, inclusive Brasil, Chile e Argentina. Os ttulos realizados por esse grupo seguiam basicamente as mesmas revises estilsticas de esquemas do western estabelecidos por Sergio Leone (direo de arte, fotografia, msica, desenho de som, etc.), aproveitando o fato de os enredos dos filmes do ciclo se passarem na regio da fronteira entre Estados Unidos e Mxico para criar uma variante poltica do spaghetti western. Os spaghetti polticos constituem uma vertente secundria da segunda fase do ciclo de cinema popular italiano, fase esta dominada pelos duplos protagonistas e pelas tramas de vingana. O enredo bsico dessa variante do ciclo consistia na injeo de subtexto poltico estrutura narrativa de Por uns Dlares a Mais: a relao de amizade entre dois pistoleiros, sendo um mexicano revolucionrio e um norte-americano individualista e os filmes em geral terminavam com este ltimo ganhando uma conscincia poltica ou sofrendo uma punio simblica por manter-se individualista. Uma Bala para Um General (Quien Sabe?, Damiano Damiani, 1966), Tepepa (Giulio Petroni, 1968) e Os Violentos Vo para o Inferno (Il Mercenario, Sergio Corbucci, 1968) so exemplos. Todos os filmes de maior sucesso do perodo replicaram tticas estilsticas e narrativas dos filmes de Leone, sobretudo os close-ups extremos. Tempo de Massacre (Tempo di Massacro, Lucio Fulci, 1966) e Django, o Bastardo (Django Il Bastardo, Sergio Garrone, 1969, figura 1.19) so histrias de vingana; assim tambm A Morte Anda a Cavalo (Da Uomo a Uomo, Giulio Petroni, 1967, figura 1.20), que adiciona frmula o relacionamento entre o jovem heri e um pistoleiro mais maduro, cuja motivao misteriosa e acaba sendo revelada num flashback; O Dia da Desforra (La Resa dei Conti, Sergio Sollima, 1966, figura 1.21) combina uma dupla de heris amorais com subtexto poltico; Sartana (Gianfranco Parolini, 1968) e Sabata (Gianfranco Parolini, 1968, figura 1.22) apresentam heris que dominam armas tecnologicamente avanadas para atacar os inimigos. Esses dois filmes, cujo diretor deu nfase a uma encenao de estilo mais acrobtico, com saltos de dubls, trocas de socos e menos violncia grfica, dariam partida terceira fase do spaghetti western. No que se refere aos recursos estilsticos, as revises esquemticas de Leone tambm esto presentes. Tempo de Massacre (figura 1.23), A Morte Anda a Cavalo e Django, o Bastardo investem na representao grfica da violncia; O Dia da Desforra apresenta duelos com tratamento dilatado do tempo e abundncia de close-ups extremos; Cemitrio Sem 54
Figura 1.19: Django, O Bastardo recicla, em variao caracterstica da trama-padro do spaghetti western, uma jornada de vingana com toque sobrenatural.
Figura 1.20: A Morte Anda a Cavalo combina duas variaes narrativas: a trama de vingana e a atuao de dois pistoleiros um jovem, outro velho em conjunto.
Figura 1.21: O Dia da Desforra mescla o conceito da dupla de heris de geraes diferentes com o subtexto poltico dos spaghetti westerns ambientados no Mxico.
Figura 1.22: Sabata representa um tipo de heri que domina com perfeio as novas tecnologias, representadas por rifles mais novos e potentes.
Figura 1.23: Tempo de Massacre, de Lucio Fulci, investe na representao grfica da violncia, abusando de close-ups extremos de rostos ensanguentados.
Figura 1.24: Cemitrio Sem Cruzes faz uso de rudos naturais amplificados, alternados com poucos dilogos e longos silncios, maneira do estilo de Sergio Leone.
Cruzes (Une Corde, um Colt, Robert Hossein, 1969, figura 1.24) reduz dilogos, usa rudos naturais amplificados e muitos silncios; Sartana e Sabata abusam do uso do zoom, apontando em uma nova direo, que a encenao mais acrobtica e pardica das seqncias de ao. Este recurso seria exacerbado a ponto de se transformar na principal caracterstica estilstica dos filmes da prxima e ltima fase do ciclo (1970-1978), que a veia cmica pronunciada, numa espcie de hbrido de circo e western. Hughes (2003) e Fridlund (2006) concordam que o perodo entre 1964 a 1968 corresponde ao momento mais frtil do ciclo de produes italianas populares. Nesse Intervalo de quatro anos, os produtores de Cinecitt mantinham em mdia seis longas- metragens sendo filmados simultaneamente. Nenhum dos dois, contudo, atenta para o fato de que esse perodo tambm coincide com a fase mais prolfica de Sergio Leone. No decorrer desses cinco anos, Leone fez quatro longas-metragens mais da metade de todos os filmes 55
que dirigiu. Os dois ltimos vieram a ser os filmes do ciclo mais conhecidos internacionalmente: Trs Homens em Conflito e Era uma Vez no Oeste, ambos 100% financiados por estdios americanos (no primeiro caso, a United Artists; no outro, a Paramount). Depois de filmar este ltimo, Leone decidiu parar com westerns e se dedicar ao projeto de sua vida um filme de gngster, que deveria unir suas memrias de infncia com sua paixo pelo cinema norte-americano clssico. Em Trs Homens em Conflito, Leone deu seqncia ao processo de intensificao das prticas narrativas e estilsticas. A construo narrativa exacerba a estrutura do filme anterior, com trs anti-heris como protagonistas. Num filme americano, os trs seriam viles, j que ganham a vida roubando. Atravs de esquetes que documentam encontros e desencontros entre eles, o trio atravessa o territrio do sudoeste norte-americano, arrasado pela guerra civil (a ao dramtica se passa em 1862), em busca de uma fortuna em ouro roubado, enterrada num cemitrio militar. Na prpria definio do diretor, trata-se de um novo estilo de western, com personagens picarescos inseridos num cenrio pico (LEONE, 2000, p. 236). De fato, a dinmica estabelecida entre os personagens de Clint Eastwood e Eli Wallach o primeiro o tpico heri spaghetti, taciturno e de gestos largos, enquanto o segundo, um homem de nome latino que se move de modo rpido e no pra de falar exerceu influncia na variante cmica do ciclo, que se estabeleceria na dcada de 1970. Trs Homens em Conflito equilibra momentos de tenso, seqncias de violncia grfica que flertam com o melodrama, gags e dilogos de tom humorstico:
O pico cnico e engraado de Leone intercala eventos histricos reais ocorridos entre o fim de 1861 e o comeo de 1862 com as picarescas aventuras do bom Clint Eastwood, do mau Lee Van Cleef e do feio Eli Wallach, cuja performance barulhenta e carnavalesca domina o filme. Os eventos histricos eram deliberadamente distorcidos para evocar as duas guerras mundiais do sculo XX. (FRAYLING, 2005, p. 51).
No terreno da prtica estilstica, Leone expandiu recursos que j apareciam nos filmes anteriores. Ennio Morricone escreveu a msica da seqncia do cemitrio (figura 1.25) antes das filmagens, de modo que Leone pudesse controlar a durao e os movimentos de cmera de cada plano, na filmagem, a partir do som. A composio recessiva de tomadas em profundidade de campo com moldura, freqentemente associada aos close-ups extremos de rostos que so usados como molduras, est cada vez mais abundante; por vezes Leone usa enquadramentos fechados que focalizam apenas os olhos dos atores (figuras 1.26 e 1.27). 56
Figura 1.25: A msica das cenas no cemitrio foi escrita antes das filmagens; na imagem acima, composio recessiva com figuras a diferentes distncias da cmera.
Figura 1.26: Os close-ups extremos caractersticos de Leone esto cada vez mais fechados, freqentemente focalizando apenas os olhos dos personagens.
Figura 1.27: Leone amplifica as composies recessivas com profundidade de campo, justapondo duas aes encenadas a distncias cada vez maiores.
Figura 1.28: A tcnica do trompe loeil cinematogrfico: personagem surpreendido por elemento fora do quadro que deveria estar dentro de seu campo de viso.
Figura 1.29: Cenrios, figurinos (o colete de pele de carneiro de Eastwood) e armas foram objeto de pesquisa iconogrfica, para garantir acuidade histrica.
Figura 1.30: Momentos registrados por Matthew Brady em fotos histricas da guerra civil so recriados por Leone: pastiche e worldmaking ao mesmo tempo.
Neste filme, Leone destaca mais outra ferramenta estilstica, criada a partir da tcnica pictrica do trompe loeil 14 A direo de arte foi precedida de extensa pesquisa iconogrfica, perseguindo a acuidade histrica: armas (revlveres, rifles, canhes) tinham que condizer exatamente com o equipamento produzido no ano em que a trama se passava; figurinos incomuns (capas para proteger os pistoleiros de tempestades de areia, coletes de pele de carneiro) eram historicamente corretos (figura 1.29). Os filmes norte-americanos de at ento inclusive westerns no tinham esse tipo de preocupao com a verossimilhana histrica e com o : os heris freqentemente so surpreendidos (assim como o espectador) pela entrada inesperada em cena de outros personagens que estavam fora do campo visual captado pela cmera um instante antes, mas j deveriam ter sido notadas pelo personagem mostrado naquele momento (figura 1.28).
14 Tcnica artstica, advinda da pintura e da arquitetura, que consiste em criar uma iluso tica conseguida ao forar relaes de perspectiva fala entre objetos, formas ou pessoas; a expresso francesa original, que pode ser traduzida como engana o olho, bastante sugestiva. 57
desenvolvimento coerente e realista do cenrio e dos figurinos, uma ferramenta de estilo que constitui um exemplo claro da prtica do worldmaking. A obsesso com os detalhes, possvel graas ao oramento de US$ 1,3 milhes, incluiu a construo de dois novos sets uma estao ferroviria em La Calahorra, no deserto espanhol, e o cemitrio circular onde ocorre o duelo final, montado num vale ao lado do rio Arlanza, perto de Madri alm da redecorao das duas cidades cenogrficas usadas em Por um Punhado de Dlares e Por uns Dlares a Mais (o vilarejo de Hojo de Manzanares foi semi-destrudo para dar lugar a Peralta, cidade arrasada pela guerra, enquanto o set de Mini Hollywood foi maquiado trs vezes, para dar lugar a Valverde, Santa F e Santa Ana). Leone tambm intensificou o uso de um recurso j presente em Por um Punhado de Dlares, encaixando na narrativa aluses a filmes anteriores (especialmente westerns) e a fotografias histricas registradas pelo fotgrafo Matthew Brady durante a guerra civil norte- americana (figura 1.30). Dessa forma, ele ampliou a tcnica do alusionismo cinematogrfico, muitas vezes chegando ao ponto do pastiche (uma variao mais ostensiva do alusionismo): a narrativa em forma de mosaico que combinava pedaos de outros filmes num nico enredo coerente. O pastiche se tornaria ferramenta tpica da continuidade intensificada. Enquanto Leone conduzia a equipe por um cronograma de doze semanas de filmagens, entre maio e julho de 1966, o estdio United Artists preparava o lanamento dos dois primeiros longas-metragens de Leone nos Estados Unidos. Os filmes chegaram aos cinemas norte-americanos em janeiro de 1967. Foram freqentemente exibidos em par, no circuito de drive-ins. Ambos atingiram bilheterias superiores a US$ 4,5 milhes, consideradas muito boas para produes pequenas, exibidas longe das grandes salas de projeo. O sucesso dos filmes de Leone provocou uma retomada na produo de westerns dentro dos Estados Unidos, permitindo que cineastas como Sam Peckinpah e Don Siegel realizassem novas produes do gnero (FRAYLING, 1981, p. 43). A influncia de Leone foi importante para diretores como Peckinpah. O cinema deste detm um dbito de estilo em relao aos filmes de Leone, em particular no que se refere representao da violncia e ao uso do perfil de heri amoral e violento dentro de narrativas ambientadas em um universo inspito, habitado por sociedades corruptas. Meu dio Ser Sua Herana (1968) um timo exemplo da incorporao de recursos estilsticos de Leone dentro do cinema norte-americano. O violentssimo tiroteio final (figura 1.31) e o heri lder de uma quadrilha de assaltantes (figura 1.32) so recursos estilsticos que reapropriam as revises esquemticas operadas por Leone. 58
Figura 1.31: O tiroteio no clmax de Meu dio Ser Sua Herana (1968), cheio de mortes violentas mostradas em cmera lenta, descende dos filmes de Leone.
Figura 1.32: O heri de Meu dio Ser Sua Herana (1968) um assaltante, aqui enquadrado em close-up evidencia a influncia de Leone no western dos EUA.
O modo realista de representao da violncia passou depois a ser adotado pelos cineastas da gerao New Hollywood 15
15 Termo de Peter Biskind para a gerao de jovens cineastas norte-americanos que emergiram a partir de meados da dcada de 1960, influenciados pela Nouvelle Vague francesa, entre os quais estavam os movie brats Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, George Lucas, Steven Spielberg e William Friedkin. . Martin Scorsese (Taxi Driver, 1976; Touro Indomvel/Raging Bull, 1980), Francis Coppola (O Poderoso Chefo/The Godfather, 1972; Apocalypse Now, 1979), Arthur Penn (Bonnie & Clyde Uma Rajada de Balas) e William Friedkin (O Exorcista/The Exorcist, 1973; Comboio do Medo/Sorcerer, 1978) adotaram esse estilo de representao, determinando uma maneira de filmar a violncia que acabaria sendo instituda dentro dos esquemas dominantes disposio dos diretores contemporneos. Enquanto isso, Leone planejava uma mudana. Ele entregou United Artists um projeto de filme de gngster. Os executivos do estdio no estavam interessados. Queriam mais westerns. Leone recebeu uma proposta da Paramount: dirigiria mais um filme do gnero e, se fosse bem-sucedido, ganharia sinal verde para fazer Era uma Vez na Amrica (Cera uma Volta in America, Sergio Leone, 1984). Com US$ 3 milhes, Leone planejou Era uma Vez no Oeste como um mosaico de citaes a clssicos do western, a comear pelo tema a chegada do progresso, representado pela construo de uma ferrovia transcontinental, abordado em filmes como O Cavalo de Ferro (The Iron Horse, John Ford, 1924) e A Conquista do Oeste (How the West Was Won, John Ford/ Henry Hathaway/George Marshall, 1962). Era, na verdade, uma intensificao do alusionismo praticados nos filmes anteriores, mergulhando fundo no pastiche. Para este filme, Carlo Simi construiu trs cenrios no deserto espanhol: uma estao ferroviria decadente, onde foi filmada a seqncia de abertura (figura 1.33); um chal suo no meio de uma plancie seca (figura 1.34); e uma cidade cenogrfica completa, incluindo outra estao ferroviria, celeiros, galpes e prdios de at trs andares (figura 1.35). Desta vez, com interiores decorados, para que as filmagens acontecessem sempre dentro do set (COX, 2009, p. 197). Uma linha ferroviria de dois quilmetros foi construda, para que o trem 59
Figura 1.33: A estao ferroviria em que ocorre a abertura de Era uma Vez no Oeste foi um dos trs cenrios principais construdos para o filme.
Figura 1.34: Outro cenrio construdo na Espanha foi o enorme chal suo no meio do deserto, erguido por um trabalhador supostamente louco: proto-worldmaking.
Figura 1.35: Uma cidade cenogrfica com interiores decorados foi erguida no deserto espanhol era a primeira vez que isso acontecia num faroeste italiano.
Figura 1.36: A locomotiva de Era uma Vez no Oeste transitou numa linha ferroviria verdadeira, construda no deserto espanhol especificamente para o filme.
Figura 1.37: A cidade cenogrfica erguida na localidade de La Calahorra, na Espanha, foi reutilizada depois por muitos spaghetti westerns, como ...
Figura 1.38: ... O Preo do Poder (1969), de Tonino Valerii, filmado um ano depois, no mesmo local, com os mesmos objetos cnicos deixados por Leone.
uma locomotiva espanhola decorada como um trem americano do sculo XIX pudesse ligar os trs sets (figura 1.36). Cada cenrio obedecia a uma lgica interna no explcita na narrativa. O chal suo expressava a confiana de Brett McBain (Frank Wolff) de que a linha frrea passaria pelas terras dele, transformando-o em milionrio. Isso confirmava a prtica do worldmaking. Os sets construdos em La Calahorra (figura 1.37) foram deixados de p, de modo que outros diretores pudessem reutiliz-los. Isso aconteceu, por exemplo, em O Preo do Poder (Il Prezzo Del Potere, Tonino Valerii, 1969 figura 1.38). Antes de se decidir por filmar na Espanha, Leone visitou o territrio real do oeste americano, procurando locaes para o longa-metragem. Ele acabou desistindo de filmar nos EUA, decepcionado com a urbanizao crescente das plancies outrora desrticas, onde John Ford filmara seus westerns. Essa viagem rendeu apenas uma seqncia: o passeio de carruagem de Claudia Cardinale pelo Monument Valley, cenrio favorito de Ford, que o 60
cineasta de origem irlandesa usou em oito filmes, como Rastros de dio (The Searchers, John Ford, 1958) e No Tempo das Diligncias (Stagecoach, John Ford, 1939). Na trilha sonora, inteiramente composta e gravada antes das filmagens, Morricone atingiu o ponto culminante de suas experincias com o uso de rudos naturais amplificados e silncios, com a cena de abertura a montona espera de trs pistoleiros por um trem que demora a chegar tendo na trilha de udio apenas efeitos sonoros. Intensificando mais uma vez a construo narrativa em larga escala, quatro so os personagens centrais da trama; e quatro so os temas musicais, cada um correspondendo a um personagem e representando sua personalidade atravs de sonoridades caractersticas. Desta vez, Leone e Morricone evitaram o uso de elementos da diegese rudos e efeitos sonoros dentro das composies, buscando uma sonoridade claramente neo-romntica, porque romntica era a atmosfera da histria. O tema do heri Harmonica (Charles Bronson), que pouco fala e vive com uma gaita, executado pelo prprio personagem em alguns momentos e em outros no, num jogo entre msica diegtica e extra-diegtica. A gaita o nico instrumento que executa o tema, simbolizando a solido e a recusa do personagem a viver em sociedade. J o tema do vilo Frank (Henry Fonda), cuja vida est conectada atavicamente com a de Harmonica, uma extenso do outro tema, solado numa guitarra eltrica instrumento mais moderno e mais agressivo, como o personagem. Quase sempre os dois temas so tocados em sucesso, indicando o choque de destinos que o filme realiza no final. Para Cheyenne (Jason Robards), o pcaro da histria, Morricone comps um tema satrico, executado por um banjo sincopado e acompanhado de piano eltrico. Jill McBain (Claudia Cardinale), nica mulher do filme, ganhou um tema romntico executado com orquestra de cordas completa. Havia ainda uma quinta msica para Morton (Gabriele Ferzetti), o empresrio que sonha em ver o oceano, cujo tema para piano cuja execuo lembra vagamente o som de ondas quebrando. Durante as filmagens, Leone executava a msica para os atores. Ele planejava, com o diretor de fotografia Tonino Delli Colli, a durao e a decupagem exatas de cada tomada, para que os movimentos de cmera pudessem ser sincronizados com as evolues musicais. O melhor exemplo desta tcnica est na tomada que mostra a chegada de Jill cidade de Flagstone, em que a grua eleva a cmera para mostrar o panorama (prdios sendo construdos, movimentao de cavalos) no exato momento em que o acompanhamento lrico de piano eltrico e vozes femininas evolui em um crescendo at ganhar corpo e densidade com a adio de uma orquestra de cordas (figuras 1.39, 1.40, 1.41 e 1.42). 61
Figura 1.39: Jill McBain aguarda o marido na estao de trem: composio com moldura (a mulher) e foco profundo (o relgio ao fundo sinaliza o atraso) ...
Figura 1.40: ... acompanhada por uma melodia lrica executada inicialmente com piano eltrico e um coral de vozes femininas, que se ergue num crescendo ...
Figura 1.41: ... em sincronia com o movimento de cmera, erguida por uma grua sobre o prdio da estao para revelar a vida fervilhante da cidade ...
Figura 1.42: ... enquanto a composio musical ganha a adio de uma orquestra de cordas: exemplo do casamento entre sons e imagens na obra de Leone.
Nos Estados Unidos, a receptividade do pblico foi fria. Na Itlia, lanado na vspera de Natal, pouco chamou a ateno do pblico (COX, 2009, p. 205). O filme s fez sucesso real no circuito de salas alternativas, tendo ficado por dois anos consecutivos em cartaz numa sala de Paris. Devido ao fracasso, o projeto do filme de gngster foi cancelado. Leone diria em seguida que no faria mais nenhum western. A partir de 1970, comeava uma nova fase no ciclo de spaghetti westerns. Esse perodo, cujo apogeu vai aproximadamente at 1973, marcado pela introduo de recursos cmicos e acrobticos no esquema dominante do gnero. Na verdade, esse ciclo consiste na produo de comdias pastelo disfaradas de faroestes, num jogo intertextual que inscreve os cdigos do western em narrativas cmicas e circenses. Os marcos iniciais desta fase foram Sartana (1968) e Sabata (1969). Hughes (2003, p. 219) identifica a origem desses filmes em um personagem de Leone: o Coronel Mortimer de Por uns Dlares a Mais. Naquele filme, Mortimer demonstra gosto por armas avanadas possui uma luneta para observar viles de longe, abre um cofre usando cido e anda com um arsenal de rifles desmontveis na bagagem. Sartana (Gianni Garko) seria, ento, uma reviso exacerbada do Coronel Mortimer, inclusive no figurino preto e no uso de um rifle desmontvel. Sabata deixa ainda mais flagrante a inspirao, porque Parolini escalou Lee Van Cleef, interprete de Mortimer, no papel-ttulo. O heri ganhou passado idntico ao do personagem de Leone: ambos so ex- 62
Figura 1.43: Sabata foi um dos primeiros spaghetti westerns a explorar a veia cmico-circense, que trocou a violncia grfica pelas acrobacias dos dubls.
Figura 1.44: A quarta fase faria sucesso de pblico a partir de 1970, quando foi lanado Meu Nome Trinity, com irmos engraados na linha de O Gordo e o Magro.
oficiais do Exrcito Confederado que, derrotados na guerra civil e desiludidos, se transformaram em caadores de recompensa. Em Sabata, Lee Van Cleef repete o figurino negro, fuma o mesmo cachimbo de Mortimer e se mostra expert em rifles desmontveis e pistolas Derringer (mesmas armas utilizadas em Por uns Dlares a Mais). Por outro lado, havia seqncias de ao cada vez mais acrobticas, com dubls dando saltos perigosos (figura 1.43). Existiam elementos nesses filmes que eram diferentes das fases anteriores do spaghetti western:
Gianfranco Parolini revigorou o western com sua viso peculiar do Velho Oeste como Carnaval (...).Os protagonistas de Parolini lembram a trupe de um circo, com acrobatas, mgicos, atiradores de faca, jogadores de pquer de habilidade extraordinria, e palhaos. (HUGHES, 2003, p. 218).
Essa atmosfera picaresca, trao da cultura ibrico-mediterrnea, pode ser vislumbrada nos filmes de Leone, mas neles inscrita de modo mais sutil. A reviso do esquema realizada por Parolini consistia em exacerb-la na direo da comdia. Essa exacerbao tomou forma ainda mais concreta em Meu Nome Trinity (Lo Chiamavano Trinit, Enzo Barboni, 1970), que concentra sua ao dramtica em torno do relacionamento conflituoso entre dois irmos (figura 1.44), Trinity (Mario Girotti) e Bambino (Carlo Pedersoli). Os dois preferiam derrubar inimigos com socos. Saam de cena os duelos com espao flmico fragmentado, close-ups e violncia grfica; entravam as brigas coreografadas como nmeros de circo, filmadas em planos gerais, com direito a tortas na cara. Barboni eliminava do cardpio estilstico a representao grfica da violncia, j que seus filmes visavam um pblico-alvo formado por crianas e adolescentes, e portanto tinham que ter censura livre. Ou seja, esta a outra reviso do esquema dominante, determinada por um limite contextual. Em termos comerciais, a receita deu certo. Meu Nome Trinity faturou quase oito bilhes de liras (COX, 2009, p. 279) e escalou a lista das maiores bilheterias da Itlia at as primeiras posies. A seqncia oficial, Trinity Ainda Meu Nome (Continuavano a Chiamarlo Trinit, Enzo Barboni, 1971), foi ainda melhor e assumiu o posto de filme mais 63
rentvel de todos os tempos na Itlia. Tal sucesso provocou uma onda de westerns estilo pastelo durante os anos finais do ciclo. Embora usassem recursos estilsticos e narrativos oriundos do cinema de Leone, como a direo de arte realista (Trinity vestia roupas rasgadas e surgia em cena sempre coberto de poeira) e as trilhas musicais estruturadas como canes pop, intercalando versos e refres, esses filmes revisavam outros recursos numa direo que desagradava a Leone. Ele fez seu prprio comentrio sobre a onda de faroestes cmicos sob a forma de filme. Meu Nome Ningum (Tonino Valerii, 1973) foi produzido por ele e dirigido por Tonino Valerii. Na prtica, atuando como diretor de segunda unidade, Leone dirigiu quase dois teros das cenas (COX, 2009, p. 300-301), incluindo todas as seqncias registradas no Monument Valley (EUA). Mas, antes de chegar l, Leone j havia dirigido um quinto western. Quando Explode a Vingana (Gi la Testa, Sergio Leone, 1971) foi um projeto concebido e conduzido de maneira tumultuada, bastante semelhante a Meu Nome Ningum. O projeto nasceu para se tornar um comentrio crtico de Leone contra a politizao do spaghetti western, que ele enxergava nos filmes ambientados na Revoluo Mexicana (FRAYLING, 2005, p. 64). Na ocasio, Leone ofereceu a direo a Giancarlo Santi, que no chegou a completar uma semana no cargo. Os dois atores principais, Rod Steiger (que ganhara um Oscar pouco antes) e James Coburn (grande astro de ao da poca), fizeram presso junto ao estdio United Artists para que Leone assumisse a direo, o que acabou efetivamente acontecendo. Em termos de prtica estilstica, Quando Explode a Vingana detm algumas das impresses digitais de Leone, apesar da ausncia de dois parceiros habituais (Simi e Delli Colli). Essa ausncia redundou em diferenas perceptveis: se os figurinos e cenrios seguiam a ambientao grotesca e suja dos filmes de Leone, o cuidado com a acuidade histrica tornou-se bem menos obsessivo, e isso pode ser observado facilmente no roteiro. Por exemplo, a histria ocorre em 1913; o Exrcito Revolucionrio Irlands (IRA), ao qual pertence um dos dois heris, s seria criado seis anos depois, e esta informao era de domnio pblico, mas o erro factual entrou no filme. O uso de close-ups extremos (figura 1.45), a ironia (figura 1.46), os dilogos intercalados por silncios e rudos naturais amplificados, a tcnica do alusionismo (figura 1.47) reaparecem. J a msica de Morricone, composta aps as filmagens, era mais convencional, com apenas um tema principal e orquestrao neo-romntica. A ao dramtica focaliza a amizade entre Juan (Steiger), um bandido mexicano analfabeto, e Sean (Coburn), revolucionrio irlands do IRA, no Mxico para lutar ao lado dos camponeses na Revoluo do pas. A dinmica entre ambos era idntica estabelecida 64
entre Blondie e Tuco em Trs Homens em Conflito; Juan era um tpico pcaro de Leone (como Tuco e Cheyenne), enquanto Sean faz o tipo taciturno, confiante e cnico (figura 1.48). A maior preocupao do diretor era criticar os filmes da segunda fase do spaghetti western. J vimos que quase todas essas obras compartilhavam o mesmo esqueleto narrativo: a relao entre um campons revolucionrio (porm ingnuo) e um gringo individualista. Leone inverteu esses papis, transformando o estrangeiro num revolucionrio. E ele tinha uma viso poltica niilista; achava que o spaghetti western estava sendo explorado politicamente e queria criticar esse procedimento. Assim, concebe uma trama em que o campons se torna heri involuntrio da Revoluo, mas no acredita nela e perde toda a numerosa famlia. Enquanto isso, o idealista irlands se desilude com sua crena poltica e morre. Ambos se envolvem com poltica e, por causa disso, experimentam tragdias. O lanamento foi um fracasso. Nos EUA, o filme apareceu numa verso com 154 minutos, foi retirado de circulao, cortado (perdeu 34 minutos) e recebeu outro ttulo, A Fistful of Dynamite (Por um Punhado de Dinamite, bvia aluso marqueteira aos filmes da trilogia com Clint Eastwood). No adiantou. A bilheteria alcanada l no atingiu as mesmas cifras dos trs primeiros westerns. Parecia que Leone estava perdendo a popularidade. Ao mesmo tempo em que este fazia seu comentrio sobre a politizao do spaghetti western, o ciclo popular descobria a variao cmico-acrobtica das tramas ambientadas no Velho Oeste espanhol. O sucesso desses filmes levou ao j citado Meu Nome Ningum (1973), cujo enredo construdo sobre um tema caracterstico do spaghetti western o relacionamento entre dois pistoleiros, um mais jovem e outro mais velho em que cada personagem personifica uma variante do western. A ao acontece em 1899. De um lado, temos Jack Beauregard (Henry Fonda), pistoleiro de 51 anos, decidido a se aposentar para ir morar na Europa; do outro, um jovem caador de recompensas (Mario Girotti) que idolatra o colega mais velho (figura 1.49), mas no quer v-lo partir de forma melanclica, e o incentiva a enfrentar sozinho o Bando Selvagem (figura 1.50) ttulo do grupo de assaltantes de Meu dio Ser Sua Herana (Sam Peckinpah, 1969), e que alude visualmente aos capangas da vil do filme Drages da Violncia (Forty Guns, Samuel Fuller, 1957), numa dupla referncia construda atravs do alusionismo para garantir a si prprio o status de lenda do oeste. A escalao dos dois atores deixa evidente a inteno de Leone e Valerii. Fonda era, junto com John Wayne, um dos veteranos mais associados aos clssicos filmes de western; j o italiano Girotti era a face mais conhecida da vertente cmico-acrobtica dos spaghetti westerns, graas ao papel de Trinity (cujo figurino esfarrapado repetido). Coloc-los juntos 65
Figura 1.45: Em Quando Explode a Vingana, Leone retoma a tradio estilstica de usar close-ups extremos que muitas vezes focalizam apenas os olhos dos atores.
Figura 1.46: Juan (Rod Steiger) rasga cartaz exatamente altura dos olhos do retrato para observar o banco que ser roubado: uso da ironia como recurso estilstico.
Figura 1.47: Interveno grfica na pelcula sinaliza a idia que o bonacho Juan tem para explodir um banco: influncia de diretores modernistas, como Godard.
Figura 1.48: Dinmica entre o pcaro Juan e o ctico Sean lembra a relao conflituosa entre os anti-heris Tuco e Blondie, de Trs Homens em Conflito.
no mesmo filme era uma jogada de cineastas que desejavam sintetizar os dois arqutipos do western (um norte-americano, outro italiano) em um s produto:
O filme uma tentativa de conciliar pelo menos quatro tipos de westerns o americano clssico, personificado por Henry Fonda; o western americano moderno revisionista, nas vrias referncias a Sam Peckinpah e ao Bando Selvagem; o spaghetti estilo Leone, com as msicas caractersticas de Morricone e os duelos dramticos; e o spaghetti estilo Barboni, com Terence Hill [o pseudnimo ingls de Girotti], feijes fritos e personagens engraadinhos. (COX, 2009, p. 301-302).
Meu Nome Ningum reelabora a tcnica do alusionismo, usada no apenas para combinar aluses a longas-metragens diferentes, mas sobretudo para combinar fases diferentes do western num produto conscientemente elaborado para servir como uma espcie de despedida, um rquiem do gnero, que a essa altura declinava rapidamente tanto na Itlia quanto nos Estados Unidos. Em outras palavras, puro pastiche. Do ponto de vista da prtica estilstica, Meu Nome Ningum parece irregular. H uma srie de diferenas nos recursos estilsticos usados ao longo da trama, para resolver problemas de encenao. Por exemplo, os confrontos entre adversrios so filmados de modo diferente dos duelos tpicos de Leone. Saam de cena os close-ups extremos e as composies em profundidade; entravam solues estilsticas mais convencionais, como encenao horizontal no estilo tableau, com a cmera distante dos atores, e longos planos americanos. Os tiroteios cheios de suspense ainda apareciam (figuras 1.51), mas eram intercalados por cenas pastelo que incluam tortas na cara e anes montados em pernas-de-pau (figura 1.52). 66
Figura 1.49: Jack (Henry Fonda) e Nobody (Mario Girotti): personagem icnico do western norte- americano encontra um pcaro do spaghetti western.
Figura 1.50: O Bando Selvagem 150 assaltantes cavalgam juntos usa a tcnica do pastiche para fazer uma citao dupla a westerns americanos famosos.
Figura 1.51: Duelo dentro de barbearia contm close-ups extremos, silncios prolongados, efeitos sonoros e composio recessiva, recursos tpicos de Leone.
Figura 1.52: Por outro lado, a presena de personagens circenses, a encenao cmica, o humor infantil e outras composies planimtricas vo na contramo estilstica.
Meu Nome Ningum foi bem nas bilheterias italianas, superando o primeiro exemplar da franquia Trinity, mas no alcanou nenhuma repercusso nos Estados Unidos (FRAYLING, 2005, p. 69). Esta averso dos espectadores norte-americanos aos westerns acrobticos, alis, pode ser apontada como um dos fatores decisivos para a decadncia definitiva do spaghetti western, cuja produo praticamente desapareceu aps 1973, tornando- se residual at sumir em definitivo a partir de 1978. Aps Meu Nome Ningum, Leone deixou de lado as produes italianas para se concentrar no sonho de filmar as memrias de infncia filtradas pelos esquemas dos filmes de gngster. Ele levaria mais de dez anos para conseguir financiamento e fazer Era uma Vez na Amrica (1984), produo marcada por brigas de bastidores com os produtores norte- americanos e, conseqentemente, por uma srie de interferncias do estdio em suas prticas narrativas e estilsticas. Essas interferncias ajudaram a fazer o filme fracassar, e praticamente decretaram o final da carreira de Leone. Para muitos crticos, Era uma Vez na America a obra-prima de Sergio Leone. Uma anlise atenta dos recursos estilsticos traz tona padres recorrentes nos westerns, mas usados com menos nfase retrica. Certamente era o mesmo Leone, agora menos irreverente. Em 1984, para solucionar problemas de representao, Leone revisou recursos estilsticos de sua obra anterior, replicou outros tantos e descartou alguns mais. curioso observar, tambm, como a mudana de gnero trouxe menos alteraes diretas no repertrio de prticas narrativas e estilsticas do que se poderia imaginar. 67
Um dos recursos de estilo que Leone manteve foi o hbito da releitura crtica dos cdigos do gnero. Nesse ponto, Leone partiu de um conceito que por si s j era uma subverso ao esquema dominante daquele momento. Aps o sucesso de O Poderoso Chefo (1972), quase todos os filmes de gngsteres feitos nos Estados Unidos lidavam com personagens que pertenciam cpula de organizaes criminosas e/ou mfia de origem italiana. Para Leone isso seria ainda mais natural, pois ele era italiano. Mas ele preferiu descartar essa muleta narrativa e fazer um filme sobre a amizade conflituosa de dois pequenos mafiosos de origem judia, ao longo de cinco dcadas de violncia. O filme foi uma superproduo estrelada pelo astro Robert De Niro. Com um oramento de US$ 30 milhes (ento um dos maiores da histria de Hollywood) e nove meses de filmagens nos EUA e na Itlia (FRAYLING, 2000, p. 453), Leone trabalhou pela primeira vez fora do sistema de produo de Cinecitt. Essa mudana gerou alteraes significativas no uso dos recursos estilsticos e narrativos. As ferramentas mais afetadas estavam ligadas a aspectos visuais composio, enquadramento, luz e cor. Leone foi forado a revisar escolhas reconhecidas como assinaturas autorais, devido a circunstncias tecnolgicas e de produo. A alterao mais radical consistiu no abandono do processo Techniscope para o uso do equipamento padro de Hollywood naquele momento, com cmeras que registravam a imagem no formato 1.85:1 16
16 Esses nmeros consistem na razo entre a largura e a altura da imagem. No formato 2.35:1, para cada metro de imagem vertical correspondem dois metros e 35 centmetros na horizontal, enquanto no segundo caso a proporo de um metro e 85 centmetros para cada metro de altura, resultando numa imagem mais quadrada. . Leone cogitou utilizar pela primeira vez o sistema de lentes anamrficas Panavision, mas descartou-o depois de assistir a Era uma Vez no Oeste no hotel, em Nova York. O filme foi exibido na TV com cortes nas laterais, o que irritou Leone. Ele sabia que seu filme seria mais visto na TV do que nos cinemas, e optou pela imagem mais quadrada; pensou que quando Era uma Vez na America chegasse televiso, a mutilao seria menor (FRAYLING, 2000, p. 450). Essa opo permitia ao diretor de fotografia Tonino Delli Colli trabalhar com lentes esfricas normais, s quais estava mais acostumado. O abandono do sistema Techniscope, associado predominncia de cenas em interiores, tornou mais difcil para Leone compor imagens em profundidade de campo, como fizera tantas vezes em seus filmes. A composio recessiva com moldura ainda era possvel, mas teve que ser revisada. Trs solues alternativas surgiram para resolver o problema: (1) posicionar a figura em primeiro plano mais afastada da cmera (figura 1.53); (2) deslocar a luz-chave (key light), de forma a filmar o primeiro plano em contraluz apenas uma silhueta 68
Figura 1.53: Carros, ternos e chapus eram objetos verdadeiros de 1933, e foram comprados em leiles de objetos antigos, especialmente para o filme.
Figura 1.54: Em close-up extremo, membro da gangue sinaliza que recebeu o pagamento pelo servio realizado: roubo dos diamantes em um banco.
Figura 1.55: A tenso do motorista denuncia a cilada: composio com moldura em que Leone desloca a luz- chave para transformar o primeiro plano numa sombra.
Figura 1.56: Mafioso confere os diamantes, num close- up normal, deixando algum ar abaixo do queixo, enquanto o outro gngster aguarda a confirmao.
Figura 1.57: Membro da gangue inicia a execuo dos bandidos: a arma sai de foco quando se aproxima da cmera, mas o rosto continua focalizado em close-up.
Figura 1.58: Representao grfica da violncia: bandido atingido no olho esquerdo cai morto, enquanto Leone filma o rosto destrudo num close-up extremo.
Figura 1.59: Segundo carro se aproxima e integrantes disparam uma saraivada de tiros de metralhadora uma conveno do gnero gngster contra os inimigos.
Figura 1.60: Tomada em profundidade de campo encerra a cena com um rosto ensanguentado; o carro da gangue que praticou o atentado se afasta ao fundo.
69
e esconder a falta de foco (figura 1.55); (3) focalizar com nitidez apenas o segundo plano, deixando a moldura fora de foco. No entanto, o nmero de close-ups manteve-se proeminente. O recurso estilstico do alusionismo voltou a ser utilizado em profuso. Aluses a clssicos de cada poca em que a ao dramtica se passa, alm de citaes a filmes de gngsteres famosos, pontuam a histria. Esto l referncias diretas a O Garoto (The Kid, Charlie Chaplin, 1921), Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (The Four Horsemen, Rex Ingram, 1921) e The Musketeers of Pig Alley (David W. Griffith, 1912), todos citados por personagens durante os dilogos. H, tambm, momentos alusivos a filmes famosos, como as memrias de infncia do gngster de Anjos de Cara Suja (Angels With Dirty Faces, Michael Curtiz, 1938), o teatro chins de A Dama de Shangai (The Lady From Shangai, Orson Welles, 1948), o mafioso megalomanaco de Fria Sanguinria (White Heat, Raoul Walsh, 1949) e o carro metralhado de Bonnie & Clyde Uma Rajada de Balas (1967, figura 1.59). Leone manteve a representao grfica da violncia, ampliando a exposio na tela dos efeitos devastadores de socos e tiros sobre o corpo humano. Os vrios atentados e assassinatos cometidos pela gangue de mafiosos so mostrados com profuso de close-ups de rostos ensangentados e corpos perfurados por balas. H uma seqncia bastante sangrenta de espancamento e dois longos estupros. Na cena do atentado cometido contra uma gangue rival, podemos analisar como Leone replicou e revisou esses recursos estilsticos distintos. Nela, o grupo de Noodles e Max, os dois protagonistas, entrega diamantes roubados, so pagos, mas assassinam os compradores das jias, ficam com os diamantes e com o dinheiro. O plano de abertura uma composio recessiva menos agressiva do que o normal (para ele), com o elemento em primeiro plano mais distante da cmera do que o normal (figura 1.53). Um dos membros da quadrilha se aproxima e focalizado em close-up. Ele est impecavelmente trajado; os carros so veculos verdadeiros de 1933. O homem recebe o dinheiro (figura 1.54), e o plano seguinte usa composio com moldura em contraluz (figura 1.55). O comprador confere os diamantes (figura 1.56) antes que o mafioso saque o revlver (figura 1.57) e atire em seu olho esquerdo, produzindo um close-up extremo, sangrento, de um rosto destroado (figura 1.58). Nesse momento, o segundo carro se aproxima e fuzila os compradores dos diamantes com tiros de metralhadora (figura 1.59), numa aluso direta ao clmax de Bonnie & Clyde. A cena termina com uma composio recessiva, mostrando um rosto ensangentado em primeiro plano e o carro da gangue se afastando ao fundo (figura 1.60), quase fora de foco a profundidade de campo obtida era menor do que nos westerns. 70
A questo da representao da violncia j no enfrentava obstculos, e por isso foi reproduzida sem alteraes. A autocensura dos estdios no existia mais. Alm disso, a violncia era coerente com os dois personagens centrais, que correspondiam ao perfil do heri violento, amoral e individualista que marcou a obra de Leone. H s uma distino entre eles e os heris dos westerns: Max e Noodles no so desiludidos que vivem no deserto, mas sim parasitas sociais. Eles desprezam a sociedade, mas vivem dentro dela e mantm as aparncias. Quando no convm, as regras sociais so desprezadas, como na cena em que Noodles, depois de uma noite de cortejo a Deborah (Elizabeth McGovern, na verso adulta) que inclui um luxuoso jantar num restaurante fechado para a ocasio, se irrita com a negativa da moa ante seus avanos e a estupra brutalmente no banco de trs do carro. Por outro lado, o senso de amizade entre os membros da gangue extremamente forte. Eles se comportam entre si como uma grande famlia, uns apoiando os outros. Entre as ferramentas revisadas de maneira mais drstica por Leone est a construo em larga escala: o filme consiste num grande vai-e-vem cronolgico, em que um personagem que vive em 1968 (presente) relembra fatos da juventude (1933) e da adolescncia (1923). Alm de intercalar as trs cronologias ao longo da histria, Leone povoou o roteiro com diversos personagens importantes, que multiplicam as linhas narrativas. O filme representa, na obra de Leone, o pice do processo de reviso dos esquemas dominantes, relacionados segunda vertente da potica do cinema, em direo continuidade intensificada. Com o oramento generoso, Leone pde conduzir Carlo Simi e a figurinista Gabriella Pescucci numa escrupulosa pesquisa iconogrfica, reunindo milhares de fotografias de Nova York nas trs pocas em que a histria se passava: fotos de arquivos policiais, fotografias jornalsticas e grandes panoramas fotogrficos da cidade (figura 1.61), reconstitudos em imagens do filme (figura 1.62). Embora algumas cenas tivessem sido registradas em ruas do Brooklyn (figura 1.63), Leone mandou reconstruir um quarteiro do bairro nova-iorquino dentro dos estdios Cinecitt (figura 1.64), com interiores decorados: a prtica do worldmaking atingiu o apogeu no trabalho de Leone. Para os figurinos e objetos cnicos, Leone buscou a acuidade histrica: usou objetos e roupas verdadeiros. Simi e Pescucci visitaram antiqurios, procurando trajes e mveis reais de cada poca em que a histria se passa. Parte desse material foi adquirida em leiles em Nova York, Los Angeles e Londres. Figurinos foram criados a partir da pesquisa iconogrfica de Simi, e outros readaptados de roupas usadas em filmes de Luchino Visconti. A obsesso com os detalhes (figuras 1.65 e 1.66) era o objetivo: 71
Figura 1.61: Panormicas fotogrficas de Nova York nos anos 1930 (como esta), fotos de arquivos policiais e jornalsticos ajudaram na criao de cenrios e ...
Figura 1.62: ... foram reproduzidas nos planos gerais que mostram figuras minsculas de movimentando contra grandes paisagens, recurso tpico de Leone.
Figura 1.63: Algumas tomadas foram registradas em reas do Brooklyn com prdios antigos preservados e a fumaa caracterstica de Nova York saindo dos esgotos.
Figura 1.64: Um quarteiro inteiro do Brooklyn, reconstitudo a partir de pesquisa fotogrfica, foi construdo dentro dos estdios Cinecitt, em Roma.
Figura 1.65: Sobretudos e chapus usados pelos atores foram comprados em antiqurios ou costurados com tecidos e cortes caractersticos dos anos 1930.
Figura 1.66: O cuidado com figurinos e objetos cnicos incluu os culos escuros, mais masculinos e femininos e at mesmos os coquetis de frutas dos anos 1930.
Quando Noodles pede uma xcara de caf, quero ter certeza de que no sirvam numa xcara branca e redonda comum, mas numa xcara hexagonal com pequenos motivos florais, do tipo que era realmente usado nos anos 1930. (LEONE, 2000, p. 432).
Leone entregou ao estdio um filme com 229 minutos. Seguiram-se pr-exibies frustrantes e um corte, exigido pelos executivos, de uma hora e meia do total. Elogiado pela crtica aps exibies no Festival de Cannes, o longa-metragem foi mal nas bilheterias. Desgastado pelas brigas com os executivos, Leone no filmaria mais. Morreria em 1989, aos 60 anos, de ataque cardaco. Quando morreu, despertava sentimentos contraditrios na 72
comunidade cinematogrfica. Seus filmes ainda no haviam sido analisados detidamente, no que se refere s prticas narrativas e estilsticas, embora tivessem se tornado objeto de um processo gradual de revalorizao crtica. Detalharemos esse processo nas sees a seguir.
1.4 O impacto do gnero e do autorismo na fortuna crtica
Em texto sobre Trs Homens em Conflito, publicado em 2002 no jornal Chicago Sun- Times, Roger Ebert revisou as reflexes que havia escrito em janeiro de 1967, no mesmo peridico, sobre o filme de Leone. No novo artigo, Ebert fez um mea culpa pblico por no ter sido capaz de julgar, na poca do lanamento, a suposta qualidade do trabalho de Leone, que s agora, 35 anos depois, era capaz de enxergar. O texto deixa clara a existncia de uma barreira ideolgica que se infiltrava, s vezes sem que houvesse conscincia disso, no discurso dos crticos, sobretudo entre os anos 1960 e 1970. Era uma barreira que isolava os filmes de arte, feitos sem objetivos comerciais imediatos, daqueles categorizados como puro entretenimento, supostamente inferior:
Na estria do filme nos Estados Unidos, no final de 1967, pouco depois de seus antecessores Por um Punhado de Dlares e Por um Punhado de Dlares a Mais, as platias tiveram certeza de que o apreciaram, mas ser que saberiam dizer por qu? (...) Minha reao foi forte, mas eu ainda no completara um ano como crtico de cinema e nem sempre tive a sabedoria de valorizar mais o instinto do que a prudncia. Ao reler minha velha crtica, vejo que a descrio corresponde de um filme quatro estrelas, porm dei- lhe apenas trs, talvez porque se tratasse de um spaghetti western e, assim, no pudesse ser arte. (EBERT, 2006, p. 495).
Ebert no era voz isolada em 1967. Muito pelo contrrio. Ele sintetizava, de forma geral, a argumentao que levou a maior parte dos crticos da poca a ignorar ou minimizar a importncia dos faroestes italianos e da obra de Leone em particular. Em geral, os crticos partiam de pressupostos negativos para avaliar qualquer filme do ciclo. Em primeiro lugar, eram produes feitas para consumo massivo, dentro de um ciclo cujos produtores deixavam claro que o faturamento financeiro era fundamental. Para completar, havia a noo de que um western realizado na Europa era intrinsecamente inferior a qualquer outro feito nos Estados Unidos, por ter sido realizado por algum que no podia compreender o esprito do gnero, j que este lidava com a formao da identidade cultural norte-americana. O texto deixa claro, nas entrelinhas, o jogo de expectativas negativas que existia dentro da crtica em relao ao western europeu. Esperava-se que um exemplar do ciclo italiano fosse qualitativamente sofrvel, e esperava-se tambm que os crticos condenassem 73
instantaneamente esses filmes, inclusive sem dedicar muita ateno neles. O artigo deixa claro como Ebert j percebia, em 1967, que gostava do filme, mas somente o recuo proporcionado pelos anos e com a mudana da opinio geral dos outros crticos sobre o spaghetti western em geral, e o cinema de Leone em particular ele se sentiu seguro para avalizar essa opinio. Esta mudana gradual de opinio exemplifica bem o processo de revalorizao a que a obra de Leone foi submetida desde ento. Os pesquisadores do spaghetti western (FRAYLING, 2000) afirmam que tem havido, a partir dos anos 1970, uma valorao positiva dos filmes do ciclo. Esta mudana fica clara no relato de Alex Cox (2009):
Quando estava tentando levantar dinheiro para Revengers Tragedy (Alex Cox, 2004), muitas vezes ajudava descrever a adaptao da comdia de horror de Thomas Middleton como uma espcie de spaghetti western. Os rostos dos financiadores brilhavam. Mas o que essas palavras spaghetti westerns significam para eles? Clint Eastwood, e uma licena para imprimir dinheiro? O deserto, Europa, os deliciosos anos 1960? Seus anos de adolescncia ou juventude? O que quer que significasse, funcionava. Oh!, o financiador dizia. Voc pode incluir flashbacks, e msica de Morricone!. E a conversa nos escritrios cromados flua, ainda que brevemente. Spaghetti westerns compem um territrio familiar agora. So reconhecidos como algo digno de valor. (COX, 2009, p. 9).
Mudanas na forma como a teoria do cinema tem lidado com o conceito de gnero flmico detm grande importncia nesse processo de revalorizao. Durante muito tempo, at os anos 1970, o gnero foi colocado num plo oposto em relao ao conceito de autoria. Essa oposio foi tratada atravs de diferentes gradaes de nfase, mas sua premissa essencial permaneceu estvel durante dcadas: filmes de gnero constituem uma categoria esttica menos importante, porque detm objetivos comerciais mais imediatos. Este raciocnio comeou, timidamente, a ser relativizado por algumas correntes tericas nos anos 1950. Esse processo de relativizao s ganhou fora realmente ao longo dos anos 1970. Mesmo assim ele ainda permanece, at hoje, s vezes de forma inconsciente, porque o seu duplo a noo de autoria ainda encarada fortemente de acordo com seus preceitos romnticos. De todo modo, o resgate positivo do conceito de gnero tem trazido em seu bojo a tendncia revalorizao do spaghetti western e, em particular, da obra de Leone. possvel citar exemplos institucionais que confirmam essa impresso. Em agosto de 2004, o Museum of the American West, um dos mais importantes espaos de preservao da memria da colonizao do oeste daquele pas, dedicou uma mostra aos filmes de Leone, expondo peas de figurino, cenrio e cartazes das produes dele; um evento desse tipo seria impensvel nos anos 1970, quando crticos e diretores de western nos Estados Unidos consideravam o 74
spaghetti western uma espcie de insulto. Em 2007, a 64 edio do Festival de Veneza (um dos espaos mais tradicionais do cinema de arte) realizou a mostra especial A Histria Secreta do Cinema Italiano: Spaghetti Westerns, em que 32 longas do ciclo, realizados entre 1964 e 1976, foram exibidos em sesses especiais, com curadoria de Quentin Tarantino. Todos os exemplos citados a mudana de opinio de Roger Ebert, as mostras em espaos culturais consagrados, a experincia de Alex Cox refletem uma mudana na trajetria miditica do spaghetti western, ao longo dos ltimos 40 anos. Esta mudana pode ser compreendida como resultado de um complexo processo de integrao entre os conceitos de gnero e autoria um processo, alis, que ainda est longe de refletir harmonia. Antes de prosseguir, importante relativizar esse fenmeno. Como veremos adiante, o novo estatuto de valor atribudo aos filmes do ciclo italiano no surgiu de um exame atento das prticas estilsticas e narrativas dos diretores. Trata-se de um processo de valorao mais scio-cultural do que esttico: o spaghetti western cativou um pblico que o consome como objeto de culto um fenmeno caracterstico da cultura de massa, em que produes se tornam populares em camadas segmentadas de consumidores , mas continua despertando pouco interesse de pesquisadores em estudar suas prticas estilsticas e narrativas. Nas prximas sees, vamos examinar a fortuna crtica de Leone e procurar estabelecer com preciso a mudana gradual do discurso dos crticos sobre a obra dele. Antes, porm, precisamos refletir com mais profundidade sobre a dicotomia Gnero X Autoria. Como as teorias sobre gneros flmicos que emergiram nas ltimas trs dcadas, revalorizando o conceito e propondo uma harmonizao (ainda que relativa) com a idia de autoria, se relacionam com valorao progressiva dos filmes de Leone? Para responder essa pergunta, vamos sintetizar rapidamente as teorias recentes sobre gnero e autoria cinematogrficos, relacionando-as emergncia do autorismo na Europa dos anos 1960 e ao princpio da arte desinteressada de Kant (2002). A noo de gnero precede em muitos sculos a inveno do cinema. O vocbulo vem do latim genus e significa espcie, categoria ou agrupamento (STAM, 2003, p. 27; AUMONT; MARIE, 2001, p. 141). A palavra j era utilizada na filosofia e na biologia, para designar grupos de objetos ou seres com caractersticas em comum, quando comeou a ser empregada na arte e na esttica, a partir do sculo XVII, para categorizar conjuntos de obras que compartilhavam caractersticas de quaisquer ordens (enredo, narrativa, estilo, etc.):
Os gneros tiveram uma existncia forte nas diversas artes desde essa poca, mas sua definio sempre foi relativamente flutuante e varivel. Por um lado, sempre se hesitou entre a definio pelo enredo (natureza morta, 75
paisagem, em pintura; drama, comdia, em teatro), pelo estilo ( o caso dos gneros musicais), pela escritura ( antes o caso dos gneros literrios, que distinguem, por exemplo, o ensaio do romance). (AUMONT; MARIE, 2001, p. 142).
No caso do cinema, Edward Buscombe (2004, p. 303) relata que o conceito foi tomado emprestado da teoria literria e utilizado para facilitar a tarefa de classificar os filmes em categorias, tanto para efeito de produo quanto para consumo. No campo da arte cinematogrfica, a idia do gnero sempre esteve fortemente ligada estrutura econmica e institucional da produo (AUMONT; MARIE, 2001, p. 142). Na teoria do cinema, contudo, o problema da definio do conceito sempre foi complexo:
O que um gnero? Quais filmes devem ser chamados filmes de gnero? Como sabemos a qual gnero eles pertencem? Embora paream fundamentais, essas perguntas quase nunca so feitas muito menos respondidas no campo dos estudos cinematogrficos. Muito confortavelmente assentados no mundo descomplicado dos clssicos de Hollywood, os crticos tm sentido pouca necessidade de refletir abertamente a respeito das assunes que percorrem as entrelinhas de seus trabalhos. (ALTMAN, 2003, p. 27).
Historicamente, uma teoria dos gneros flmicos s comeou a ser objeto de estudo, sobretudo nos Estados Unidos e na Inglaterra, entre o final dos anos 1960 e o comeo da dcada seguinte (NEALE, 2000, p. 8). Por sua vez, crticos que atuavam em peridicos nunca se preocuparam em com os contextos scio-culturais em que usavam o termo. Tudor (1985) afirma que a crtica sempre evitou, deliberadamente, cunhar uma definio clara do termo, para escapar de uma armadilha conceitual que pudesse enfraquecer seus argumentos. Essa armadilha tautolgica deriva de uma constatao: no existe maneira objetiva, muito menos definitiva, de saber quando determinado filme pertence de fato a determinado gnero. Jullier e Marie afirmam que a maneira mais eficiente de um pesquisador usar o conceito simplesmente comparando seu objeto de estudo a um prottipo, um filme do qual todo mundo concorde em dizer que constitui um modelo indiscutvel do gnero e buscar em que medida o filme em questo se parece com ele (JULLIER; MARIE, 2009, p. 65). Ao longo dos anos 1970, o gnero foi tratado como um sistema, que podia ser identificado por suas regras, componentes e funes (por sua estrutura profunda esttica), ou ao contrrio, pelos componentes individuais incorporados espcie (por sua estrutura superficial dinmica (SCHATZ, 1981, p. 18). Aos poucos, a idia do gnero como sistema tornou-se insuficiente. Steve Neale observou que o gnero no exatamente um sistema, mas um conjunto de processos de orientaes, expectativas e convenes que circulam entre a 76
indstria, o texto e o sujeito (NEALE, 1980, p. 19). Essa compreenso do termo implica que gneros no so entidades historicamente estveis. Todo gnero incorpora novos componentes e sofre alteraes com o tempo, em todos os nveis de significao. O gnero muda medida que mudam tambm os trs atores entre os quais circulam os seus processos de significao. Considerando tudo isso, ainda possvel afirmar que filmes de um mesmo gnero so grupos de obras que compartilham certos cdigos e convenes de estilo e narrativa. Edward Buscombe props que o gnero flmico deveria ser concebido como um conjunto de obras constitudas por dois grupos de componentes, que denominou de formas externas e internas (BUSCOMBE, 2004, p. 306). Steve Neale (2000, p. 11) instituiu o termo iconografia para dar conta do conjunto de formas externas. Ele observou que a iconografia que inclui elementos de cenrio, figurino, iluminao, cor e composio pictrica exerce um papel mais imediatamente reconhecvel para a classificao de gneros do que as formas internas, que por sua vez podem ser encontradas nos aspectos narrativos recorrentes (entre os quais esto temas, caracterizao de personagens, eventos da trama, etc.). Traando um paralelo entre potica do cinema e os conceitos de iconografia e forma interna, podemos afirmar que a primeira lida com aspectos relacionados prtica estilstica, enquanto a ltima est relacionada temtica e construo narrativa. A partir desse raciocnio, a aplicao da tese da continuidade intensificada de Bordwell noo de gnero de Buscombe e Neale nos oferecer algumas reflexes teis para compreender a recepo oferecida pela crtica aos filmes de Sergio Leone. Ao trabalhar dentro de um gnero, um cineasta precisa seguir, ao menos parcialmente, um repertrio de convenes que reforce torne, aos olhos da audincia, seu filme integrante do gnero. O diretor de um filme de gnero deve organizar as formas internas e a iconografia, ainda que atravs de diferentes prticas narrativas e estilsticas, para tornar o filme reconhecvel como exemplar do gnero. Nesse sentido, o gnero funciona como um esquema (GOMBRICH, 2007). O modo como cada diretor lida com os problemas de representao especficos do gnero pode determinar sua capacidade criativa. Alguns diretores replicam cdigos; outros revisam, sintetizam, modificam esse repertrio, contribuindo para fazer surgir novos esquemas, em variaes que podem se afastar muito ou pouco do repertrio do gnero. Tudo isso implica que, necessariamente, o gnero exerce o papel simultneo de limite e pr-condio ao uso dos recursos narrativos e estilsticos por parte do diretor. Qualquer escolha que este opere, para resolver problemas de representao, pode ser efetuada dentro de um repertrio recorrente em suas prticas cinematogrficas, mas precisa levar em considerao o gnero de filme que ele est realizando: No se filma uma cena de amor da 77
mesma maneira em uma comdia familiar, em um filme (...) destinado ao circuito de arte, ou em um filme porn (JULLIER; MARIE, 2009, p. 65). No entanto, a harmonia que este conceito de estilo prope entre gnero e autoria nem sempre existiu na teoria do cinema. Ao contrrio. Durante dcadas, os dois conceitos foram tomados como excludentes. Considerava-se que os limites liberdade criativa impostos pelo gnero impediriam um diretor de tornar-se autor. Essa abordagem foi dominante na teoria do cinema at a introduo, a partir dos 1950, do autorismo. O autorismo surgiu dentro de um contexto histrico especfico da produo cinematogrfica francesa. No artigo Uma Certa Tendncia do Cinema Francs 17 Como produto da conjuno entre cinefilia e uma veia romntica do existencialismo, o autorismo deve ser visto em parte como uma resposta a (1) o menosprezo elitista do cinema por intelectuais do campo literrio; (2) o preconceito iconofbico contra o cinema como meio visual; (3) o debate , publicado em 1954, Franois Truffaut (2006) agiu como porta-voz dos Cahiers du Cinma (inclusive Godard, Eric Rohmer, Jacques Rivette e Claude Chabrol) e afirmou que a safra de filmes franceses da dcada de 1950 consistia de filmes sem personalidade, parecidos demais uns com os outros, porque os diretores se limitavam a filmar roteiros sem preocupaes poticas. O texto instava os diretores a tomar as rdeas do processo criativo cinematogrfico. Se essas rdeas permanecessem nas mos dos roteiristas (como acontecia na Frana) ou dos produtores (caso das realizaes norte-americanas), teramos um punhado de filmes previsivelmente bem-adornados e bem falados, seguindo estilisticamente sempre a mesma frmula (STAM, 2003, p. 103); ou seja, filmes que se limitavam a replicar esquemas j estabelecidos. Para resolver o problema, dizia Truffaut, era preciso que o diretor se constitusse como lder da equipe criativa e, dessa forma, assumisse o papel do artista responsvel pelo filme:
A tradio de qualidade, para ele, reduzia o cinema a uma mera traduo de um roteiro preexistente, quando deveria ser visto como uma aventura em aberto no campo da mise-en-scne criativa. (STAM, 2003, p. 103).
Um cinema verdadeiramente criativo tinha que se assemelhar personalidade daquele que o realizasse; isso s poderia ser conseguido atravs do estilo. Por isso, Truffaut e demais crticos dos Cahiers du Cinma contrapunham, ao cinema francs de ndole literria, aquele que consideravam cinema mais vigoroso, cuja produo muitas vezes vinha dos filmes de gnero norte-americanos, feitos por diretores como Nicholas Ray e Alfred Hitchcock:
17 Disponvel em portugus em TRUFFAUT, Franois. O Prazer dos Olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. Pags. 257-276. 78
em torno da cultura de massa que identificava o cinema como um agente de alienao poltica; e (4) o tradicional antiamericanismo da elite literria francesa. Nesse sentido, o autorismo foi um palimpsesto de influncias, combinando noes romnticas de expresso artstica, noes formalistas- modernistas de descontinuidade e fragmentao estilstica e uma atrao proto-ps-moderna pelas artes e gneros mais baixos. O ponto verdadeiramente escandaloso da teoria do autor estava no tanto na glorificao do diretor como equivalente em prestgio ao autor literrio, mas exatamente em quem era depositado esse prestgio. Cineastas como Eisenstein, Renoir e Welles foram sempre considerados autores, porque se sabia que detinham controle artstico sobre suas produes. A novidade da teoria do autor estava em sugerir que tambm cineastas de estdio como Hawks e Minnelli eram autores. (STAM, 2003, p. 106).
importante chamar a ateno, na passagem de Stam, para alguns tpicos significativos. Primeiro, Stam identifica como elemento fundamental do autorismo o combate a preconceitos elitistas relacionados atribuio do estatuto de arte ao cinema. Esse ponto esclarece, em parte, como o autorismo contribuiu (ainda que isso parea paradoxal) com o processo de revalorizao gradual do cinema de gnero. Esse processo acabaria por se confirmar como caracterstica da continuidade intensificada quando, a partir do final dos anos 1960, diretores de prestgio autoral, como Stanley Kubrick, comearam a lanar filmes de gnero (BORDWELL, 2006, p. 52). Em segundo lugar, Stam identifica o lugar contraditrio da noo romntica de autoria dentro da poltica dos autores, j que essa noo aparece combinada com uma atrao paradoxal pelos gneros mais baixos. Essa tentativa se concretiza no recorte escolhido pelos Cahiers du Cinma para caracterizar os diretores autorais. O fato de esse recorte incluir cineastas que trabalhavam no cinema de gnero foi, como aponta Stam, visto como verdadeiramente escandaloso. Convm lembrar que a questo da autoria no cinema sempre suscitou problemas. Foi por esse motivo que, como apontam Aumont e Marie, a noo de autor de filme (...) demorou a aparecer historicamente (2001, p. 26). Afinal, o cinema sempre foi uma atividade coletiva. Identificar elementos autorais dentro de um filme tarefa mais complexa do que fazer o mesmo na pintura ou na literatura. No cinema, em que a criao estritamente individual difcil de ser rastreada, existiria um autor? A prpria idia de autoria coletiva precisa levar em considerao o contexto de produo:
Isso quer dizer que o status do autor no cinema est sempre ameaado pela relao de foras entre o cineasta e as instncias de produo e de difuso (ver o caso dos cortes publicitrios e da colorizao dos filmes na televiso). (AUMONT; MARIE, 2001, p. 26).
79
O grifo meu. A expresso corresponde aos limites e pr-condies da prtica estilstica e narrativa, e que atuam fortemente no paradigma do problema/soluo, interferindo diretamente na formao de uma assinatura pessoal de cada diretor. Desta forma, se olharmos o gnero e seus repertrios mais ou menos rgidos de convenes como um limite das prticas estilsticas e narrativas, entendemos por que os crticos assumem o cinema de gnero como um lugar menos provvel de se encontrar autoria. No entanto, a poltica editorial dos Cahiers du Cinma deixava claro que cineastas- autores podiam operar dentro de gneros flmicos. Truffaut (2006) afirma que todo cineasta merecedor da alcunha de autor era capaz de introduzir elementos de sua personalidade, estilstica e narrativamente reconhecveis, dentro de qualquer filme: O verdadeiro talento sobressair, no importando as circunstncias. (STAM, 2003, p. 104). Para resumir: os padres narrativos e estilsticos recorrentes permitem a um diretor exercer certo grau de autoria, mesmo quando atuando dentro de um gnero. Transformada em teoria aps traduo ao ingls (TUDOR, 1985, p. 128), a poltica dos autores acabou distorcida, nos anos 1960, de forma a reforar a dicotomia excludente entre gnero e autoria. Mas permaneceu a idia de que o estilo as solues estilsticas e narrativas aplicadas por cada diretor para resolver problemas de representao, muitas vezes revisando esquemas dominantes era o elemento que permitia a harmonizao entre os dois conceitos. o reconhecimento gradual desta afirmao, a partir dos anos 1970, que vai impulsionar o processo de revalorizao da obra de Leone. Ademais, as teorias do gnero cinematogrfico esto marcadas, tambm aps os anos 1970, pelo conceito de intertextualidade, cujo princpio fundamental uma espcie de negao a priori da noo de autoria individual (pelo menos no sentido romntico), pois defende que todo e qualquer texto mantm relao com outros textos e, portanto, com um intertexto (STAM, 2003, p. 225). A noo de criao intertextual pressupe a impossibilidade da criao artstica a partir do grau zero e no apenas no cinema, mas em qualquer processo de representao ou narrao. Assim, mesmo sem ter conscincia, qualquer cineasta estaria construindo seus filmes a partir de certos esquemas textos, sistemas, cdigos e processos de significao que j existiam antes dele:
A intertextualidade interessa-se menos pelas essncias e definies taxonmicas que pela interanimao processual entre os textos. (...) A intertextualidade mais ativa, pensando o artista como um agente que dinamicamente orquestra textos e discursos preexistentes. (STAM, 2003, p. 227).
80
A metfora do agente permite aceitar a idia de autoria dentro do gnero. O processo criativo estaria, nesse caso, no na criao de uma narrativa particular por um cineasta, mas sim na combinao de certos processos estilsticos e narrativos em torno de um tema, que s ento ganharia contornos originais:
Em oposio perspectiva da Escola de Frankfurt, do gnero meramente como um sintoma de produo em srie massificada, os tericos comearam a perceber o gnero como a cristalizao de um encontro negociado entre cineastas e audincia, uma forma de conciliao entre a estabilidade de uma indstria e o entusiasmo de uma arte popular. (STAM, 2003, p. 148).
Desta forma, a inscrio de um cineasta no rol dos autores passou a depender, ao longo dos anos 1970, da maneira como este cineasta era capaz de trabalhar temas, cdigos estilsticos e narrativos de maneira mais ou menos original, introduzindo novos elementos dentro do repertrio de convenes daquele gnero especfico, desde que o repertrio de cdigos desse mesmo gnero continuasse funcionando. Na prtica, para se afirmar como autor, um cineasta trabalhando dentro de um gnero devia, sempre que possvel, lidar com os esquemas atravs dos processos de reviso e sntese. Desta maneira, era possvel cunhar assinaturas estilsticas reconhecveis. H um parntese importante aqui. Os processos de significao do cinema, como de resto em todas as artes de massa, necessitam provocar no pblico certas experincias reconhecveis. Ressaltando como o repertrio de gneros, se utilizado de maneira simplista, pode fazer com que o gnero soe como uma ameaa determinista criatividade, Graeme Turner (1997, p. 89) observa que o cinema tem de lidar com o familiar e o convencional mais do que, digamos, a pintura e a poesia:
Nas artes populares, a percepo individual no tem o lugar privilegiado de que desfruta nas formas mais elitistas, como a literatura. Em vez disso, o prazer vem do familiar, do reconhecimento de convenes, da repetio e reafirmao. (TURNER, 1997, p. 89).
Bordwell e Thompson concordam com esse raciocnio, observando que a mera repetio de cdigos de gnero pode ocasionar, aps muitos filmes, um desinteresse por parte do pblico com relao ao gnero. Eles enfatizam que os gneros so construes scio- culturais dinmicas, que mudam com o tempo, e que essas mudanas ocorrem a partir de operaes intertextuais que caracterizam procedimentos autorais: Audincias esperam que o filme de gnero oferea algo familiar, mas tambm demandam novas variaes desse algo. O cineasta pode inventar algo moderada ou radicalmente diferente, mas ter que basear essa mudana 81
na tradio. O jogo interno entre conveno e inovao, familiaridade e novidade, central para o filme de gnero. (BORDWELL; THOMPSON, 2008, p. 321).
Esse raciocnio explicita o dilogo entre gnero e autoria injetado pela noo de intertextualidade, que por sua vez est conectada ao problema do estilo. O paradigma do problema/soluo de Bordwell (2009) favorece essa leitura intertextual da dicotomia Gnero X Autoria. A exigncia que dar a qualquer cineasta o estatuto de autor o equilbrio entre o novo e o familiar. Ou seja, mesmo operando dentro de uma rede de limites e pr-condies, o cineasta ser to mais autor quanto mais conseguir inserir elementos originais na potica do cinema, atravs do estilo:
H (...) inovao e originalidade nos filmes de gnero, e os melhores exemplos podem atingir um equilbrio muito complexo e delicado entre o familiar e o original, a repetio e a inovao, a previsibilidade e a imprevisibilidade. Os produtores de filmes populares sabem que cada filme de gnero tem de apresentar duas coisas aparentemente conflitantes: confirmar as expectativas existentes do gnero e alter-las um pouco. a variao da expectativa, a inovao em como um roteiro familiar representado, que oferece ao pblico o prazer do reconhecimento do familiar, bem como a emoo do novo. (TURNER, 1997, p. 89).
No parece ser coincidncia o fato de que foi justamente a partir dos anos 1970, medida que a teoria do cinema passava a aceitar a possibilidade de autoria dentro do gnero atravs dos conceitos de estilo e intertextualidade, que o cinema de gnero tenha alcanado um patamar de reconhecimento maior e mais efetivo, a ponto de a valorizao do cinema de gnero pelos praticantes da arte cinematogrfica ser nomeada por Bordwell (2006, p. 51) como uma das caractersticas da continuidade intensificada. Tampouco parece coincidncia o fato de que, mais ou menos na mesma poca, os filmes de Leone tenham alcanado certo grau de reconhecimento. de se destacar, entretanto, que esse reconhecimento nunca veio acompanhado do estudo de suas prticas estilsticas e narrativas. Mesmo a pesquisa de Frayling sobre o spaghetti western no princpio dos anos 1980 uma pesquisa pioneira, marco fundamental no processo de revalorizao da obra de Leone deu mais destaque aos contextos scio-culturais de produo e recepo do que s prticas estilsticas e narrativas. H, ainda, um ltimo aspecto que preciso observar, antes de seguir adiante. A obra de Sergio Leone no despertou reaes negativas da crtica apenas por pertencer a gneros cinematogrficos, sobretudo o western. Precisamos lembrar que Leone fazia parte de um ciclo popular, encarado na poca como subproduto desprezvel que visava apenas o lucro. Se os 82
westerns americanos eram colocados numa categoria inferior em relao ao cinema dito de arte, os filmes do ciclo italiano no passavam, para os crticos, de imitaes de segunda categoria dessa categoria j inferior ou seja, eram o subproduto de um subproduto. Essa maneira extremamente negativa de ler o spaghetti western, que pode ser rastreada no discurso da maioria dos crticos dos anos 1960 e 1970, era agravada por dois fatores. Primeiro, o western lidava com a identidade cultural do povo americano; os filmes eram a tentativa mais flagrante de construir uma mitologia prpria para uma nao formada essencialmente por imigrantes, e que se ressentia da falta de uma histria oral. Em segundo lugar, o spaghetti western era mais um dos diversos ciclos de cinema popular italianos, feito para consumo de massa. O interesse explcito dos produtores no faturamento comercial desses filmes investia frontalmente contra o conceito de arte desinteressada, que Kant (2002) cunhou em 1790 e que constitui o alicerce fundamental da noo romntica de autoria, enraizada na cultura ocidental desde ento. Vale a pena relembrar, rapidamente, os fatos histricos. Na Crtica da Faculdade do Juzo, Kant props que as Belas Artes deveriam ser necessariamente desinteressadas, tanto do ponto de vista da produo quando da fruio. Para ser bela, a obra de arte teria que ser realizada com objetivos puramente estticos, e consumida do mesmo modo. A enorme influncia de Kant na filosofia do sculo XIX, e na igualmente influente (no sculo XX) teoria crtica desenvolvida pelos pesquisadores da Escola de Frankfurt (sobretudo em Theodor Adorno), garantiu que essa noo romntica de arte se entranhasse profundamente em toda a cultura ocidental. Em maior ou menor grau, esta noo est implcita em praticamente todos ns, e incide diretamente na forma como moldamos nosso gosto e nosso juzo de valor acerca do consumo esttico. Assim, no difcil compreender os motivos pelos quais os crticos cinematogrficos dos anos 1960 e 1970 desprezaram ou, nos casos mais positivos, minimizaram a importncia do spaghetti western e de Leone. Os filmes dele (e dos demais diretores do ciclo) eram recebidos com reservas mesmo antes de serem vistos, pelo simples fato de que eram realizados dentro de um sistema de produo fortemente interessado no lucro. Pouco importava que o cinema sempre tivesse sido uma atividade to industrial quanto artstica. Os diretores do cinema de arte recebiam mais ateno e respeito porque faziam filmes cuja preocupao com as finanas era menor. Mesmo relativizada, a recepo reservada atualmente pela crtica cultural aos produtos oriundos da cultura de massa ainda segue esse mesmo princpio. A noo de autoria romntica derivada das proposies de Kant sobre a arte desinteressada continua muito influente. 83
1.5 A anlise da fortuna crtica
Primeiro pesquisador a examinar a fortuna crtica de Leone no perodo entre 1964 e 1978, Christopher Frayling afirma que a anlise retrospectiva do discurso contido nos textos mostra claramente a tendncia desvalorizao prvia dos longas-metragens:
Quando os westerns de Leone (...) comearam a ser lanados internacionalmente, foram invariavelmente destroados pelos crticos. O argumento, repetido com montona regularidade, era o seguinte: devido ao fato de os westerns feitos em Cinecitt no possurem razes culturais na histria ou no folclore americano, no passavam de imitaes baratas e oportunistas. (FRAYLING, 1981, p. 121).
Essa tese toma a fortuna crtica de Leone, organizada por Frayling, como ponto de partida, e a amplia em diversas direes. A compilao de Frayling incluiu, principalmente, textos publicados em revistas da Inglaterra. A ela, acrescentamos crticas divulgadas nos Estados Unidos; um ensaio acadmico sobre o spaghetti western; opinies de colegas contemporneos de Leone sobre os filmes dele; e todas as crticas de filmes de Leone publicadas na revista Cahiers du Cinma um total de nove textos entre maio de 1965 e maio de 1972, mais um longo dossi de 16 pginas que incluiu capa, editorial, crtica sobre Era uma Vez na Amrica e entrevista em formato de perguntas e respostas, na edio 359, datada de maio de 1984. A escolha dos Cahiers teve dois critrios como base. Alm de ser a principal publicao de referncia entre cinfilos e crticos de todo o mundo, sobretudo na poca em que Leone atou, a revista estava fora do recorte analisado por Frayling. A anlise dessa fortuna crtica confirma apenas em parte, o relato de Frayling sobre a existncia de preconceito contra Leone. Esse preconceito parece estar efetivamente relacionado militncia de Leone no cinema de gnero e, mais do que isso, vinculao dele ao ciclo popular italiano que era, ento, encarado como mero subproduto, sem valor cultural. O recuo proporcionado pelos anos nos permite enxergar, contudo, um processo gradual de valorao positiva a que Leone foi submetido. Esse processo comeou no final dos anos 1960 e continuou ao longo dos anos 1970. Frayling no foi capaz de identific-lo. Apesar de tudo isso, as concluses a que Frayling chegou nos proporcionam um excelente ponto de partida para a anlise da fortuna crtica de Leone. Ele diz que os crticos construram um repertrio mais ou menos estvel de argumentos, que apareciam, com variados graus de nfase, em praticamente todas as crticas:
84
Os filmes eram gratuitamente violentos, e seus personagens apresentavam uma obsesso recorrente relacionada a dinheiro; as trilhas sonoras soavam em volume excessivo, e as letras eram indecifrveis; os oramentos eram claramente baixos, algo denunciado pelos cenrios franzinos, por variaes no processo de colorao e por imperfeies tcnicas no processamento de imagens pelo sistema Techniscope; as atuaes dos italianos eram toscas e histrinicas, e as dos norte-americanos lacnicas, inexpressivas ou simplesmente inexistentes; em resumo, o pblico era submetido ao mesmo tipo de hiprbole cinematogrfica barata e suja que havia se tornado marca registrada dos mini-picos sandlia-e-espada de Cinecitt. (FRAYLING, 1981, p. 121).
O trecho sintetiza o que os crticos pensavam sobre os filmes de Leone em meados dos anos 1960. Vamos analisar cada argumento, mas de incio significativo notar um paradoxo. Embora o cinema de gnero fosse encarado como menos importante, os crticos emitiam julgamentos de valor sobre os spaghetti westerns baseados no grau de obedincia aos esquemas que constituam o repertrio do gnero em sua vertente americana (supostamente superior). Assim, se os diretores italianos no replicavam os esquemas desenvolvidos nos Estados Unidos, isso tornava esses filmes automaticamente inferiores queles. O raciocnio era claro: cineastas europeus estavam mais interessados no lucro do que na criatividade. Muitos crticos percebiam que Leone propunha uma reviso narrativa e estilstica dos esquemas do western. Mas esse processo de releitura crtica do gnero era desprezado. Dentro da pesquisa de Frayling, um bom exemplo do primeiro argumento, que protestava contra a representao grfica da violncia, aparece numa entrevista realizada pelo roteirista Burt Kennedy com John Ford. Kennedy pediu uma opinio sobre o spaghetti western. Ford disse no ter idia de que westerns eram realizados fora dos Estados Unidos, e devolveu a pergunta: Nenhuma histria, nenhuma cena. S matana 50 ou 60 mortes por filme (KENNEDY apud FRAYLING, 1981, p. 35). A questo da violncia representada de forma grfica reaparece insistentemente nos textos dos anos 1960 e com maior nfase nas crticas publicadas nos Estados Unidos. Algumas delas era muito agressivas. No programa de TV Today Show, exibido rede NBC, Judith Crist fazia resenhas curtas (tambm publicadas no guia semanal da emissora, e reunidas num livro em 1974). Ela foi uma das mais duras crticas de Por um Punhado de Dlares: Essa porcaria de 99 minutos s serve para espectadores com pendor por lixo sangrento (CRIST, 1974, p. 211). A violncia ofendia a moral puritana dos americanos; um filme a que exibisse no podia ser bom. Em tom mais irnico, o influente crtico do New York Times tambm condenou o mesmo recurso:
85
A grande novidade do filme a quantidade abundante de episdios espetacularmente violentos. Sergio Leone (...) o povoou com generosos respingos de sangue, inclusive um homem gordo sendo esmagado por um barril, um peloto inteiro de soldados massacrados, e buracos de bala jorrando sangue. Por fim, o anti-heri espancado at virar uma massa sangrenta sem vida, da qual ele milagrosamente se recupera para matar seus espancadores. (CROWTHER, 1967).
Bosley Crowther foi alm de chamar o protagonista de anti-heri. Ele tambm ironizou o perfil do personagem, reclamando de sua amoralidade:
notvel que o gringo esbelto que cavalga para San Miguel e virtualmente dizima a populao da rea antes de ir embora no , de maneira alguma, devotado justia ou a ajudar os bons contra os maus. Ele um pistoleiro cnico e frio cujo nico interesse reside em se apropriar do que houver por l de valioso. (CROWTHER, 1967).
O perfil do heri, como a violncia representada com realismo grfico, era uma reviso estilstica operada por Leone. Nos dois casos, como j vimos, inclusive, a rejeio de Hollywood tinha tambm um limite cultural imposto aos diretores: o sistema de autocensura, criado para evitar boicotes da parcela mais conservadora da populao americana, representada por organizaes como a Liga Americana da Decncia 18 Esta ltima observao de Kanfer tambm est entre os argumentos elencados por Frayling. A trilha de udio dos filmes de Leone era criticada pelo volume dos efeitos sonoros, pelos silncios e pelos arranjos musicais com guitarra eltrica. De novo, os crticos reclamavam de revises estilsticas que violavam o repertrio de esquemas do gnero. Tanto . Num primeiro momento, essa reviso estilstica foi interpretada como uma violao dos princpios morais que permeavam os westerns americanos. Essa reao negativa aparecia at nos textos que enxergavam algo positivo em Leone, como confirma a resenha que o crtico da Time, Stefan Kanfer, escreveu sobre Trs Homens em Conflito, fazendo uma brincadeira bem-humorada com o ttulo original (The Good, The Bad and the Ugly, ou O Bom, o Mau e o Feio):
Bom o trabalho de cmera de Leone, que combina cor e composio, com ateno afiada para detalhes de forma e textura, mais disponveis nas filmagens em locao do que em estdio. M a palavra para as atuaes inexpressivas e para o vcio de Leone no humor de histrias em quadrinhos. E Feio o insacivel apetite por espancamentos e mutilaes, com close-ups extremos de rostos amassados e grunhidos de morte nos efeitos sonoros. (KANFER, 1968).
18 A National Legion of Decency foi fundada em 1933, por arcebispos da Igreja Catlica, para combater filmes que, na viso da populao conservadora, incentivavam a corrupo moral dos jovens. 86
os rudos amplificados quanto a msica acabariam se tornando elementos da continuidade intensificada. Trevor Blount, na revista Kinema, reclamou:
Uma pea de merchandising como Por um Punhado de Dlares, com matanas rituais, silncios interminveis e msica de fundo estridente, tem se caracterizado mais ou menos como uma pardia. (...) Os filmes de Sergio Leone revelam uma falta de razes que desidrata tudo o que vemos. (BLOUNT apud FRAYLING, 1981, p.122).
Um aspecto muito evocado pelos crticos dizia respeito falta de acuidade histrica da msica dos spaghetti westerns, j que as canes dos pioneiros no sculo XIX pouco ou nada tinham a ver com a msica que se ouvia nesses filmes italianos. Ocorre que no era menos verdade que a representao musical do Velho Oeste verdadeiro, oferecida pelos filmes americanos, tambm nada tinha de realista. Os vaqueiros que viajavam por estados como Texas e California no sculo XIX usavam violino caipira e berimbau de boca. Instrumentos como violo, acordeo, piano e gaita, que protagonizam os arranjos da maioria das canes ouvidas nos westerns norte- americanos, foram instrumentos introduzidos na cultura daquele pas apenas na virada entre os sculos XIX e XX, portanto num perodo posterior quele em que est ambientada a ao dramtica da maior parte dos westerns (BERCHMANS, 2006, p. 75). O argumento relacionado ao reaproveitamento de cidades cenogrficas tambm no faz sentido, j que muitos westerns importantes dos anos 1950 (como os filmes de Budd Boetticher e Anthony Mann) foram feitos em cenrios erguidos dentro nos estdios de Hollywood para produes maiores, e posteriormente reutilizados. Alm disso, o realismo grotesco do desenho de produo no apenas tinha mais a ver com a realidade do Velho Oeste como tambm se tornaria um importante elemento da continuidade intensificada, atravs de prtica do worldmaking, a partir dos anos 1970. Mas, na poca, os crticos entendiam essa prtica estilstica como uma violao dos esquemas do western americano. Escrevendo sobre Por uns Dlares a Mais, David McGillivray expressou essa indignao na revista Films & Filming (1965):
No consigo entender o apelo dessa abordagem ultra-ingnua, com cores ptridas e atores agitados que se contorcem como vermes, fazendo posturas e expresses faciais cuja inteno nem eles mesmos devem compreender. (MCGILLIVRAY apud COX, 2009, p. 70).
Como se v, outro argumento usado pelos crticos estava relacionado s atuaes. No havia meio termo: os atores eram exagerados, como aponta McGillivray, ou inexpressivos, 87
opinio de Kanfer. Ainda que se concorde com certa irregularidade no padro de atuaes, existem vrios fatores que podem explic-la. O modo de produo (que s permitia duas ou trs tomadas de cada cena) um deles. O fato de os atores serem de diferentes nacionalidades e falarem lnguas diferentes nos sets, sendo dublados posteriormente em estdio, as refora. O carter taciturno dos heris de Leone tambm tem uma relao direta com a aparente inexpressividade a caracterizao psicolgica dos personagens como homens frios exigia atuaes assim. E pode-se perfeitamente enxergar a influncia da pera e da commedia dellarte como influncia na caracterizao dos viles. A economia de palavras por parte dos heris de Leone foi discutida entre o diretor e o ator que deu vida a vrios desses heris, Clint Eastwood. O ltimo lembraria depois que o roteiro original de Por um Punhado de Dlares tinha mais dilogos, e que ele prprio sugeriu a Leone reduzir as intervenes verbais do personagem (EASTWOOD, 2008, p. 214). Isso fazia o heri ganhar em mistrio, parecendo mais confiante e perigoso. A caracterizao taciturna foi, assim, repetida e at intensificada nos westerns seguintes de Leone. Outra argumentao dos crticos evocava o ciclo anterior do cinema popular italiano os pepla para explicar como havia nascido a tendncia ostentao de recursos estilsticos. Ocorre que esse modo retrico de filmar era comum tambm entre os diretores modernistas europeus (elogiados pelos mesmos crticos), alm de evocar a potica da continuidade intensificada de Bordwell, exacerbada por Leone e gradualmente adotada por muitos outros cineastas ao redor do planeta. Ironicamente, como podemos ver, boa parte da argumentao construda para desqualificar os filmes de Leone consistia em identificar, de modo apressado, determinados recursos estilsticos e narrativos que divergiam das solues para problemas propostos pelos cineastas americanos, atribuindo valor negativo reviso ou sntese desses recursos, pelo simples fato de que elas se afastavam do repertrio de cdigos do gnero que constituam os esquemas dominantes de representao. Alex Cox (2009), que era adolescente quando os spaghetti westerns comearam a ser lanados na Inglaterra, oferece um testemunho demonstrando que, muitas vezes, os mesmos motivos pelos quais a crtica considerava um filme ruim eram aqueles que faziam o pblico lotar as salas de projeo:
Quando os westerns italianos apareceram pela primeira vez na Inglaterra e nos Estados Unidos, foram imediatamente arrasados; eles eram considerados ral demais, at mesmo para os padres da baixa cultura! Foram acusados de serem misginos e gratuitamente violentos coisas que eles definitivamente eram! (COX, 2009, p. 9). 88
Ele associa a esttica da hiper-violncia dos spaghetti westerns ao ambiente de violncia arbitrria (COX, 2009, p. 10) que a sociedade ocidental experimentava. A segunda metade da dcada de 1960, convm lembrar, foi a poca da poltica intervencionista norte- americana na Amrica Latina e da represso sovitica a levantes na antiga Tchecoslovquia; enquanto isso, a televiso exibia documentrios sem fim sobre as duas guerras mundiais e notcias de ltima hora sobre o Vietn (COX, 2009, p. 10). O universo ultra-violento e amoral dos spaghetti westerns podia ser lido, de certa forma, como um espelho fraturado do ambiente scio-cultural daqueles tempos:
Violncia arbitrria, do tipo que aparecia a qualquer instante do seu lado parecia ser a norma [na sociedade ocidental]. E quando uma srie de filmes que exalava uma atmosfera de violncia arbitrria, incessante, insana, quase juvenil apareceu, todos os jovens fomos fisgados ainda mais considerando que os filmes pareciam irritar o establishment cultural. (COX, 2009, p. 10).
Uma crtica minuciosa que sintetiza toda a argumentao negativa dos crticos pode ser encontrada no longo ensaio de Eduardo Geada dedicado ao spaghetti western (1978). Pelo rigor da anlise acadmica escrita por Geada, que ultrapassa o carter ligeiro dos textos publicados nas revistas especializadas, o relato constitui um dos mais detalhados exemplos do discurso depreciativo elaborado pela crtica em relao ao trabalho de Leone. Por isso, escolhemos este estudo para analisar em profundidade a argumentao que desqualifica as prticas narrativas e estilsticas de Leone. O autor inicia o ensaio decretando que o spaghetti western uma forma menor de cinema, um cinema oposto a qualquer mercadoria formal, um cinema de puro divertimento, mercadoria rentvel por excelncia (GEADA, 1978, p. 21). A definio de cinema popular (assim mesmo, entre aspas), que est no centro da crtica de Geada, particularmente expressiva de suas intenes depreciativas:
O cinema popular de grande consumo , por definio e por exigncias industriais bvias, um cinema de esteretipos, isto , um cinema industrial de prottipos que so todos do mesmo tipo. (...) O que faz o sucesso renovado do spaghetti western, como de qualquer outra variante do cinema dito popular, do melodrama ao filme policial, a repetio sistemtica dos cdigos, a utilizao exaustiva da mesma retrica visual e sonora, da estrutura narrativa instituda. Assim, em cada filme, o espectador sente o prazer de reconhecer as regras do jogo a que se habituou porque foi habituado a gostar. (GEADA, 1978, p. 21).
89
A anlise de Geada usa a dicotomia Gnero X Autoria para proclamar a primeira categoria como inferior. Ora, o faroeste (assim como o thriller, o filme de horror, o melodrama, a comdia, o musical e qualquer outro gnero flmico) s funciona, junto audincia, quando a construo narrativa e estilstica inclui certos elementos pinados de um repertrio de convenes previamente conhecido pelo espectador. J vimos isso: cada um dos gneros tem seu prprio repertrio de cdigos, e nenhum diretor que opera dentro de um gnero pode fugir inteiramente desse repertrio. Muitos desses cdigos so aquilo que Geada denomina, pejorativamente, de esteretipos ou prottipos. Quando se refere a esteretipos, prottipos e tipos, o autor portugus est usando um vocabulrio oriundo da semiologia e referindo-se ao conjunto de cdigos do western. Mas ele usa os trs termos como sinnimos, o que enfraquece sua anlise. Apesar de serem palavras vizinhas (CHATEAU, 2006), elas no devem ser confundidas, sob pena de provocar um desvio considervel nas intenes originais do autor. Para evitar essa confuso, vamos trabalhar com definies especficas: O esteretipo seria um tipo estvel ou fixo; o prottipo seria o primeiro exemplar que estabeleceria uma srie de tipos; e o arqutipo seria o tipo original ou a origem de um tipo (CHATEAU, 2006). O autor nos lembra que essas definies no lhes retiram completamente a ambigidade (CHATEAU, 2006), mas ser Geada as utiliza com o rigor metodolgico necessrio? O termo esteretipo, na Histria da Arte, tem relao com a representao de determinada realidade scio-histrica que, apesar de compreendida como verdadeira, no passa de uma construo histrica sem raiz na realidade concreta (LANGER, 2004). Para a Histria da Arte, esteretipos so representaes que tomamos como verdadeiras, mas que nasceram e se perpetuaram atravs de um circuito scio-histrico de representaes sem relao direta com a realidade histrica. Embora esta noo de esteretipo seja perfeitamente aplicvel ao western (a figura icnica do caubi, vestido com calas jeans apertadas e camisas quadriculadas e coloridas, j representa um desvio considervel da realidade histrica do personagem), no nos parece que seja este o sentido aplicado por Eduardo Geada ao termo. Ele d palavra um uso claramente negativo, que parece apontar para outro conceito: O prottipo de um automvel deve ser reproduzido exatamente a cada nova realizao (CHATEAU, 2006). Um cinema de prottipos, portanto, seria um cinema em que os filmes so todos idnticos, construdos como carros em uma linha de montagem. preciso lembrar que o cinema de gnero trabalha com muitos nveis de esteretipos, e isso no um procedimento intrinsecamente negativo. Buscombe (2004) nos lembra que um 90
diretor que faz filmes de gnero no pode excluir todo o repertrio de cdigos deste gnero. Quem pode imaginar um western cuja ao no se passe no oeste norte-americano? Um western que no tenha caubis, pistoleiros, cavalos e revlveres? Um western que no inclua na narrativa um duelo ou tiroteio, ou pelo menos a expectativa de um episdio violento? Esses so alguns dos cdigos dos esquemas do western. Gneros flmicos, por definio, funcionam a partir desses cdigos. Eles so atalhos usados pelos diretores para contar a histria. Nesse sentido, mesmo se a anlise de Geada estiver correta, sua inteno duvidosa. Afinal de contas, o western clssico que gerou cineastas como John Ford, cuja obra o crtico defende como uma forma de cinema superior tambm foi construdo a partir de cdigos flmicos anteriores ao diretor. Em relao aos filmes de Leone, Geada demonstra ter perfeita conscincia do processo de releitura crtica que Leone levou a cabo. O ltimo no se resumiu a replicar esteretipos. Ele revisou os esquemas circulantes disponveis, muitas vezes atravs de procedimentos narrativos e estilsticos por exemplo, o alusionismo e o pastiche que s vieram se tornar esteretipos depois de Leone. Utilizando nove fotogramas retirados de filmes representativos do gnero (a maioria dirigida por Leone), o portugus enumera nove esteretipos que considera fundamentais para as prticas narrativas e estilsticas dos cineastas do spaghetti western. Ele as analisa detidamente, com o objetivo de realizar uma desconstruo ideolgica do lugar-comum cinematogrfico (GEADA, 1978, p. 22). Vale a pena discutir a interpretao negativa que Geada faz desses procedimentos, alm da associao entre cada ferramenta e a potica da continuidade intensificada. Estes so os cdigos: (1) O heri individualista, acompanhado de um cavalo e uma pistola como extenses do prprio corpo, habita o cenrio clssico do western o deserto , que mostrado em poucas tomadas, e raramente em planos gerais, para evitar que o pblico reconhea no cenrio uma autenticidade duvidosa (GEADA, 1978, p. 22); (2) A insistncia com que os diretores do western europeu incluem cenas que se passam em saloons, abusando de enquadramentos exticos, com uso freqente de cmera subjetiva e com a presena macia de jogadores profissionais nos cenrios; (3) O carinho especial que o heri demonstra para com sua arma, a partir da incluso de seqncias em que este a limpa (o que Geada chama de ritual de adorao), bem como o uso freqente de carabinas em lugar das pistolas; (4) A presena de metralhadoras automticas em vrios filmes, embora essa arma de guerra se tenha popularizado num perodo histrico posterior especificamente durante a 91
Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ao recorte temporal em que a maioria dos westerns italianos se desenrola. Geada v a metralhadora como um instrumento narrativo inserido na diegese sem qualquer razo narrativa ou justificativa histrica, apenas para justificar uma violncia de cunho mais espetacular; (5) A multiplicao das situaes violentas (duelos, emboscadas, lutas, assaltos, etc.) como forma de transformao de uma circunstncia excepcional num momento cotidiano, de forma que a passagem do banal para o excepcional se efetue sem interrogaes (GEADA, 1978, p. 27) por parte do espectador; (6) A alta freqncia das cenas envolvendo lutas corporais, sem o uso de armas, como forma de exaltar a superioridade fsica do heri, que sempre ganha esses embates; (7) A pouca importncia da mulher nos enredos dos filmes, a no ser como ornamento ertico que vem nos lembrar, eventualmente, o desejo e a virilidade do heri (GEADA, 1978, p. 28); (8) O deslocamento do duelo momento culminante que quase sempre finaliza o enredo de um western norte-americano para o incio ou para o meio da ao dramtica, o que implica na reduo de todas as motivaes da luta, sejam elas de carter moral, social ou poltico, a um combate individual (GEADA, 1978, p. 30); (9) Utilizao do cenrio revolucionrio da fronteira mexicana, caracterstico da terceira fase no spaghetti western, com a mera funo de fornecer ao filme um cenrio extico de violncia (GEADA, 1978, p. 31). Esses so os nove argumentos utilizados por Geada para construir sua tese, que consiste no seguinte: os filmes do ciclo de spaghetti western oferecem ao espectador uma experincia esttica inferior sua contraparte norte-americana, porque no tm qualquer tipo de preocupao histrica, utilizam recursos de estilo e narrativa de modo retrico e exagerado, com o intuito de bloquear o senso crtico do espectador e, assim, viabilizar o objetivo primrio de seus diretores e produtores, que o lucro financeiro. Considerando que nossa pesquisa se refere obra de Sergio Leone e no ao ciclo do spaghetti western como um todo , vamos analisar esses argumentos um a um. O primeiro argumento insiste no fato de que o heri do spaghetti western est sempre acompanhado de um cavalo e uma pistola, sendo esta imagem intrinsecamente negativa. Cavalos e pistolas so esteretipos que vulgarizam o gnero. Geada parece esquecer que j era assim no western americano. Cavalos e revlveres esto entre os cdigos inescapveis do western; fazem parte da iconografia caracterstica do gnero, so elementos que inscrevem o filme dentro de sua categoria genrica. Nos filmes de John Ford e Howard Hawks diretores 92
citados por Geada como exemplos superiores do gnero o heri sempre usou o cavalo como meio de transporte e carregou pistolas. O uso desses cdigos no desqualificava as produes americanas; porque haveria de desqualificar o ciclo popular italiano? Geada tambm afirma que os diretores de spaghetti westerns evitavam o uso de planos gerais do deserto para evitar a questo da autenticidade duvidosa da paisagem. Nesse ponto, a anlise dele trs vezes equivocada. Primeiro: Leone e outros diretores italianos mantiveram, sim, um dos motivos visuais mais caractersticos do western, que o uso de tomadas panormicas de cavaleiros inseridos na paisagem do deserto. Em segundo lugar, se Geada est correto ao identificar o uso menos freqente de planos gerais nos filmes de Leone, seu julgamento negativo em relao a este procedimento no parece ter sido assim considerado pelos diretores inclusive norte-americanos que emergiram a partir da dcada de 1970. A tendncia de fragmentar o espao flmico, aproximando a cmera dos rostos dos atores, passou a ser replicada por muitos cineastas na dcada seguinte, inclusive norte-americanos, a ponto de se tornar um recurso associado aos esquemas dominantes da continuidade intensificada. Em terceiro lugar, a questo da autenticidade da paisagem do deserto espanhol (onde a maior parte dos longas-metragens era filmada) facilmente rebatida atravs da anlise da diegese. Embora seja uma diferente do deserto presente em estados como Califrnia, Nevada e Arizona (onde o solo mais arenoso, possui tons avermelhados e osis com vegetao mais exuberante, ao contrrio da Espanha, onde o solo de barro predomina, a vegetao rasteira e pontuada de cactos), a paisagem diegeticamente justificada, j que a ao dramtica mostrada nesses filmes se situa quase sempre na fronteira entre Estados Unidos e Mxico, em estados como o Texas. Nesta regio, a paisagem natural parecida com o deserto espanhol. O segundo argumento de Geada diz respeito macia quantidade de cenas que se passam em saloons, associada s aparies freqentes de jogadores profissionais e ao uso da cmera subjetiva. Geada acerta na descrio, mas oferece uma interpretao discutvel. Ele retm uma conveno de gnero e considera o uso exagerado dessa conveno como procedimento estilstico desprezvel. Nos westerns norte-americanos, como nos lembra Edward Buscombe (2004, p. 307), o saloon tambm um cenrio recorrente; alm disso, quase sempre mostrado como um ambiente hostil ao heri, onde a violncia est prestes a explodir, o que ocorre de fato em filmes como Minha Vontade Lei (Warlock, Edward Dmytryk, 1959), Onde Comea o Inferno (Rio Bravo, Howard Hawks, 1959) e muitos outros. Nesse ltimo vemos, tambm, um exemplo do uso da cmera subjetiva como recurso de estilo que sugere ao espectador a presena de um vilo prestes a atacar. Esta foi uma 93
ferramenta desenvolvida por diretores associados ao film noir, nos anos 1940, e que passou a integrar os esquemas cinematogrficos em geral, extrapolando em muito o western. At hoje, a utilizao de ngulos subjetivos sinaliza ao espectador a presena de algum espreita. A eficincia narrativa da cena em que John Wayne e Dean Martin procuram um pistoleiro dentro de um saloon, em Onde Comea o Inferno, depende fortemente desta funo narrativa da cmera subjetiva. E o filme de Howard Hawks tido pelo prprio Geada como um dos melhores exemplares do western. O que Leone fez foi simplesmente ampliar ou melhor, intensificar o uso do recurso. O terceiro item de Geada diz respeito s armas. Este outro cdigo fundamental do western americano (BUSCOMBE, 2004, p. 307). Toda a ao dramtica de Winchester 73 (Anthony Mann, 1950), para citar apenas um exemplo, gira em torno de um exemplar do a que se refere o ttulo. Buscombe observa que a preocupao do heri com sua arma diegeticamente explicvel, e tem ligao direta com o primeiro argumento de Geada: o heri do western, que convive com a expectativa sempre prxima da violncia, depende do bom funcionamento da arma para permanecer vivo. Nesse ponto, os filmes de Leone nos do a oportunidade de examinar uma reviso estilstica recorrente nele. Esse procedimento consistia em isolar um cdigo especfico do western e explicit-lo atravs de uma retrica inflamada, no limite da ostentao. Os heris de Leone, de fato, se preocupam com suas armas. O Coronel Mortimer de Por uns Dlares a Mais limpa o arsenal de rifles e revlveres desmontveis, que carrega consigo, todas as noites. H duas longas cenas que mostram pistoleiros limpando armas em Trs Homens em Conflito. Ocorre que isso natural dentro do mundo hiper-violento habitado por esses personagens. O terceiro item de Geada se confunde com o quarto, quando ele aponta o uso freqente de carabinas e metralhadoras. Geada percebe uma das caractersticas centrais do spaghetti western, que a crescente mecanizao do heri, o domnio que ele detm sobre a tecnologia caracterstica fundamental para estabelecer sua superioridade frente aos adversrios. Sua leitura, porm, enfatiza o carter moral dessa supremacia tecnolgica: armado com carabinas e metralhadoras, o heri est apto a eliminar o vilo sem ser ameaado por ele, j que possui armas capazes de atingi-lo a uma distncia segura, sem que este tenha chance de revidar. Neste ponto, o crtico portugus questiona indiretamente outra diferena proposta pelo spaghetti western, em relao ao western clssico: a mudana da personalidade do heri. Este j no obedece ao cdigo moral dos westerns de Hollywood, em que o protagonista recusa a violncia, a no ser em ltimo caso. 94
Ocorre que o heri do faroeste italiano, como j vimos, tem de fato um perfil diferente. amoral, violento e individualista; reflete um comportamento scio-cultural cada vez mais comum na sociedade ocidental hedonista dos anos 1960. A mudana no perfil do heri consiste em outra contribuio de Leone continuidade intensificada. Ao retirar os filmes do contexto de produo, Geada deixa de perceber que essa alterao no perfil do heri como sintoma de uma mudana scio-cultural mais ampla:
O anjo vingador no est tentando provar que os viles esto errados, salvar a populao ou resgatar a mocinha. Ele est l tentando obter algum lucro pessoal; como seria de se esperar, ele acaba recebendo sua recompensa, no um beijo ou um aperto de mos, mas uma sacola cheia de dlares ou uma caixa contendo um tesouro. O spaghetti western era a eptome da gerao estilo EU louvando um heri estilo EU. (BETTS, 1992, p. xii).
Em sua crtica, Geada tambm argumenta que a posse de carabinas e metralhadoras d aos cineastas de spaghetti westerns a oportunidade de exibir mais violncia na tela, muitas vezes injustificada. O recuo de trs dcadas nos ajuda a mostrar, de todo modo, que a representao cada vez mais grfica da violncia consiste em parte incontornvel dos esquemas da continuidade intensificada. Esse raciocnio nos leva ao quinto argumento: a multiplicao das situaes de violncia. Geada reconhece nos spaghetti westerns uma recorrncia maior de duelos e tiroteios, que reaparecem na trama a cada intervalo de 10 ou 15 minutos. A comparao entre ttulos italianos com westerns realizados nos EUA at o final da dcada de 1950 mostra que isso fato. Em obras como Os Brutos Tambm Amam (1953) ou O Homem que Matou o Facnora (1962), a violncia esperada durante todo o filme, mas s se manifesta esporadicamente uma ou duas vezes, quase sempre com o objetivo de apresentar ao espectador a habilidade extraordinria do heri com uma arma antes do duelo final. Christopher Frayling afirma que os detratores do spaghetti western citavam essa caracterstica consistentemente quando falavam mal dos filmes de Leone, e tinham at uma explicao scio-histrica para ela:
Os crticos (...) observaram que a experincia de Leone (...) como diretor de segunda unidade acabou levando-o a valorizar as seqncias de ao at um ponto em que o dilogo quase no importava. (FRAYLING, 2005, p. 16).
Como se sabe, diretores de segunda unidade costumam comandar cenas de ao fsica que exigem pouco esforo interpretativo dos atores. Portanto, o argumento tem certa lgica. O treinamento de Leone como diretor assistente pode, de fato, ter exercido o papel de pr- condio da criao dessa caracterstica narrativa dele. 95
Por outro lado, tambm possvel considerar que o procedimento narrativo de inserir seqncias de ao a cada intervalo de 10 ou 15 minutos estava em consonncia com o processo de acelerao do ritmo dos filmes, em curso a partir do incio dos anos 1960 em toda a cinematografia ocidental. A mdia de durao de um plano, nos anos 1960, era de dez segundos (SALT, 2009, p. 280); esse nmero foi consistentemente acelerado ao longo das dcadas seguintes, at chegar a quatro segundos em 2003 (SALT, 2009, p. 378). H filmes, como Cidade das Sombras (Dark City, Alex Proyas, 1998) com mdia abaixo de dois segundos. Esses ltimos so excees. Ademais, esse processo de acelerao no passava apenas pela durao menor dos planos, j que as prprias cenas, como um todo, tambm se tornaram mais curtas e movimentadas, durando em mdia trs minutos cada (BORDWELL, 2006, p. 57). Leone foi um dos diretores que iniciou esse processo de acelerao da narrativa, depois tornado global. Ele estava, ento, revisando a vertente da construo narrativa em larga escala, num processo que foi retomado por muitos outros cineastas posteriores. O stimo argumento a pequena importncia da figura feminina. Geada est correto. Mas essa observao se aplica a todo o western, e no apenas aos filmes italianos:
Dentro dos filmes [de western] foi sempre assim: um pequeno cardpio de esteretipos femininos (me, professora escolar, prostituta, danarina de salo, rancheira, ndia, bandida) que no se equiparava realidade. (...) Numa tentativa de explicar isso, muitos crticos associam esse papel secundrio da mulher no western como uma grande narrativa baseada numa busca masculina por uma identidade nacional e sexual que marginalizou as mulheres. (BUSCOMBE, 1988, p. 240).
O penltimo tpico da argumentao diz respeito ao deslocamento dos duelos, que tradicionalmente ocorriam no final das pelculas, para o incio ou o meio da ao dramtica. Esse procedimento, para Geada, retira da cena de confronto suas motivaes sociais e polticas. Ele deixa de perceber que um duelo no incio do filme, do ponto de vista narrativo, tem uma funo dramtica diferente de um duelo no final: o primeiro funciona como exposio (quem o heri, qual a sua personalidade, etc.), enquanto ltimo tem a funo de resolver o conflito central da ao dramtica. Nesse ponto, importante chamar a ateno para o modo como Geada perde de vista o carter intertextual desta mudana da posio do duelo dentro da ao dramtica. O filme que ele usa como exemplo, Era uma Vez no Oeste, comea com um duelo (cuja funo narrativa apresentar o heri audincia). Mas o mesmo filme termina do modo tradicional, com outro duelo um confronto clssico entre heri e vilo. Ou seja, no se trata do deslocamento de 96
uma cena dentro da estrutura narrativa, mas de um jogo intertextual com outros westerns: uma releitura crtica, uma reviso do esquema (feita nesse caso atravs da chave da ironia e da pardia). Ou seja, uma maneira de revisar um cdigo de gnero e inscrever, atravs desse procedimento, uma marca estilstica pessoal nesse caso, autoral dentro dele. De fato, Geada reclama de todas as alteraes efetuadas nos esquemas narrativos do western clssico. Ele parte do pressuposto segundo o qual um filme seria melhor se seguisse rigidamente os esquemas dominantes do gnero. Essa assero contradiz um dos pressupostos do autorismo, segundo o qual o estilo a maneira de o cineasta inscrever elementos autorais dentro de um filme de gnero. Ento, se usarmos o autorismo como eixo terico para ler criticamente a argumentao de Geada, a maioria dos argumentos elencados para desvalorizar o spaghetti western podem ser invertidos, passando a atribuir ao ciclo valor positivo, j que, ao operar um jogo intertextual com os esquemas narrativos do western, revisando-os (quase sempre em direo continuidade intensificada), Leone e outros diretores italianos estariam inscrevendo marcas autorais dentro do gnero, atravs da releitura crtica. Mas Geada, preocupado em provar que o spaghetti western tem menos valor do que o americano, perde o raciocnio de vista. Por fim, o nono argumento diz respeito ao uso do cenrio histrico da Revoluo Mexicana como cenrio de vrios filmes do ciclo italiano, inclusive Quando Explode a Vingana, de Leone. Novamente, se a descrio de Eduardo Geada corresponde realidade, sua interpretao dela a noo de que a Revoluo Mexicana irrelevante para os enredos dos filmes, fornecendo somente um pano de fundo extico para a ao violenta dos personagens arquetpicos do ciclo nos parece fortemente tendenciosa. J vimos antes que toda uma vertente poltico-ideolgica do ciclo popular italiano nasceu do envolvimento de roteiristas e diretores filiados ao Partido Comunista. Esses cineastas s aceitavam trabalho em Cinecitt porque tinham dificuldade em conseguir financiamento para filmar enredos polticos contemporneos. Dessa forma, ambientar a ao dramtica no cenrio da Revoluo Mexicana era, para roteiristas engajados como Franco Solinas escritor de filmes polticos como A Batalha de Argel (La Battaglia di Algeri, Gillo Pontecorvo, 1966) , muito mais do que fornecer um cenrio extico para um western popular. Esses diretores queriam contrabandear temas polticos para dentro de filmes com grande alcance popular, fazendo um pblico massivo consumir ideologia esquerdista infiltrada no subtexto dos filmes. Ao analisar com profundidade a mitologia do spaghetti western, a maior contribuio de Geada estratgia consciente que ele elabora para excluir o ciclo da historiografia 97
cinematogrfica se d na articulao de trs premissas: falta de contextualizao histrica, representao espetacular da violncia e reproduo em srie de frmulas narrativas. Ele v na espetacularizao da violncia segundo ele, instituda como caracterstica formal (e, portanto, esteretipo), desvinculada de seu contexto histrico e esvaziada de significado um sintoma da falta de razes culturais dos filmes pertencentes ao ciclo italiano:
Desenraizado de qualquer referncia histrica precisa, o spaghetti western viu-se condenado a utilizar apenas a estrutura mitolgica do western clssico e a perpetu-lo pelo nico meio a seu dispor: a retrica. por isso que os personagens do spaghetti western se podem permitir todas as liberdades possveis e imaginrias, circular num tempo e num espao indefinidos, porque eles no so j os legtimos representantes de um nacionalismo descomunal, mas, muito simplesmente, os herdeiros tardios de um paraso cinematogrfico to lucrativo quanto narcisista. (GEADA, 1978, p. 33).
Na verdade, Geada nos est dizendo o seguinte: o que h de realmente ruim no faroeste italiano no est nos filmes em si, mas no fato de seus diretores no representarem de forma legtima o contexto histrico ao qual esto vinculados, constituindo-se apenas em estrangeiros visitando um cenrio que no lhes pertence, por razes basicamente comerciais. E se esses filmes fazem comrcio, no podem ser arte. A noo de arte desinteressada de Kant est fortemente presente aqui. Alm disso, significativo perceber tambm que, se Geada evoca a necessidade de exame do contexto histrico do momento da produo dos filmes como prerrogativa para sua qualidade esttica, ele tambm despreza, convenientemente, a importncia de se levar em conta o contexto de circulao e consumo dessas mesmas obras.
1.6 Cineastas, intelectuais e os Cahiers du Cinma
Alguns cineastas (inclusive americanos) e intelectuais oriundos da literatura tambm escreveram sobre o spaghetti western, oferecendo abordagens diferentes em relao obra de Sergio Leone. Depois de assistir a Por uns Dlares a Mais, o veterano Anthony Mann invocou o argumento da falta de razes culturais para criticar o cinema de Leone. Para Mann, o filme esquecia do verdadeiro esprito do Velho Oeste:
Ns [diretores norte-americanos] contamos histrias de homens simples, no de assassinos profissionais; homens simples, levados violncia pelas circunstncias. Num bom western, os personagens tm uma trajetria com comeo, meio e fim. Eles lutam pela vida no decorrer dessa trajetria. J os personagens de Por uns Dlares a Mais encontram apenas o lado negro da vida ao longo do caminho. Homens maus, grotescos. Meu Deus, e aqueles rostos?! Um ou dois close-ups tudo bem, mas 24?! demais! Os tiroteios a cada cinco minutos revelam o medo do diretor de entediar a 98
platia, porque elas no tm um personagem consistente a seguir. Numa fico, voc no pode incluir mais do que cinco ou seis minutos de suspense, pois o diagrama de emoes deve ser crescente, no essa narrativa que parece o eletrocardiograma de um doente cardaco. (MANN apud WAGSTAFF, 1992, p. 245).
A crtica de Mann talvez seja a mais lcida de todos os improprios dirigidos a Leone no perodo. Ele combina, num trecho relativamente curto, ataques ao tratamento que Leone deu s trs vertentes da potica do cinema. Na temtica, Mann rejeita o perfil individualista e violento dos heris do spaghetti western, criticando a amoralidade da caracterizao psicolgica dos personagens. Na construo narrativa, ele cria a metfora do eletrocardiograma para sugerir que o ritmo acelerado do filme era prejudicial narrativa. E na prtica estilstica, condena o uso abundante dos close-ups extremos. Apesar da crtica lcida, fcil identificar o que incomodava Mann: as ferramentas que ele rejeita consistem em recursos de estilo que revisavam os esquemas dominantes da prtica cinematogrfica. Esses recursos faziam a tcnica chamar a ateno para si, indo na contramo do princpio da invisibilidade do estilo que caracterizava a potica da continuidade clssica, e que era importante para os diretores que emergiram antes dos anos 1950. Esse raciocnio est na base da crtica que Jean-Pierre Melville dedicou aos spaghetti westerns uma das mais contraditrias, alis. Melville construiu carreira transportando para as ruas de metrpoles francesas cdigos de estilo e narrativa de outro gnero americano o filme de gngster, em que heris com chapus e sobretudos circulam entre bares e mulheres suspeitas. Christopher Frayling (2005), inclusive, argumenta que Melville e Leone realizavam a mesma operao de desconstruo crtica do cinema de gnero, ambos revisando os esquemas disponveis at ento:
Era uma Vez no Oeste pode ser interpretado como uma contribuio-chave para um momento emblemtico do cinema europeu do fim dos anos 1960, quando um grupo de crticos convertidos em cineastas criou uma forma de cinema crtico (uma expresso que Leone particularmente desgostava, preferindo cinema cinema) que fazia referncia ao trabalho de diretores de Hollywood sobre os quais eles escreviam com ardor. O que Claude Chabrol representou para Hitchcock, Jean-Pierre Melville para o filme de gngster e Bernardo Bertolucci para o film noir, Leone representou para John Ford [e para o western]. (FRAYLING, 2005, p. 34).
Melville estruturava seus filmes a partir de uma estratgia de releitura crtica das convenes de gnero, uma ttica similar adotada por Leone. Embora bebesse da fonte do film noir e usasse Paris como cenrio para histrias de um gnero estrangeiro, no reconhecia como vlido o mesmo procedimento, realizado por Leone em outro gnero: 99
A coisa mais maluca que os prprios norte-americanos gostam desses faroestes espanhis (sic). Eles preferem Era uma Vez no Oeste aos faroestes autnticos! No momento, estamos passando por um fenmeno maldosamente destrutivo de uma das mais perfeitas formas de cinema. O spaghetti western est matando o faroeste! (MELVILLE apud COX, 2009, p.241).
Melville parecia no perceber que as alteraes na potica do cinema estavam acompanhando mudanas que ocorriam em todo o contexto scio-cultural do ocidente, o que inclua outras artes narrativas. Em artigo de 1972, Simone de Beauvoir usou Trs Homens em Conflito para ilustrar uma diferena que ela via entre o cinema e a literatura dos anos 1960, e que diz respeito mesma mudana de paradigmas scio-culturais:
Alguns filmes de aventura me mantm em suspense alguns westerns, por exemplo, inclusive italianos, como Trs Homens em Conflito. Histrias que normalmente pareceriam caricatas se fossem contadas por escrito conseguem encantar na tela. H um estranho deslocamento (...) entre a evidncia imediata daquilo que vemos e a improbabilidade dos fatos. Se um diretor usa esse deslocamento de forma inteligente, pode produzir os mais deliciosos efeitos. Esta a base do humor do faroeste italiano. Mas s funciona quando feito de forma inteligente. (BEAUVOIR apud FRAYLING, 2005, p. 129).
Ironicamente, ela deixa escapar o preconceito que havia contra o ciclo. A expresso inclusive italianos soa como um pedido de desculpas pelo elogio involuntrio, justapondo a essa idia a noo de que o western americano continuava superior. Outro intelectual a se manifestar sobre Leone foi Alberto Moravia. Em janeiro de 1967, Moravia escreveu um artigo analisando a questo muito presente no discurso dos crticos europeus, como j vimos das razes culturais do spaghetti western. Ele propunha uma explicao cultural para o fenmeno:
No existe Velho Oeste na Itlia, nem caubis, nem bandidos na fronteira; ou melhor, no existe esse tipo de fronteira, nem ndios, e nem pioneiros. O faroeste italiano no nasceu da memria ancestral, mas do instinto nostlgico de cineastas que, quando jovens, estabeleceram uma relao de amor com o western norte-americano. Em outras palavras, o western de Hollywood nasceu de um mito; o italiano teve origem no mito sobre um mito. (MORAVIA apud FRAYLING, 2000, p. 118).
O raciocnio de Moravia compatvel com o do prprio Leone, que dizia amar no o western histrico, mas sua representao cinematogrfica: Para mim era possvel abordar o western com distanciamento, de um ponto de vista europeu, sem deixar de ser um cinfilo amante de westerns (LEONE, 2005, p. 73). Essa postura curiosa diante dos spaghetti westerns est relacionada s crticas que iniciaram a gradual revalorizao dos filmes de Leone. Desde essa poca, porm, o que se 100
enxergava de positivo no estava tanto nos filmes em si, mas no suposto carter de resistncia cultural que o spaghetti western exercia, sem que seus diretores tivessem conscincia disso. No que toca s prticas narrativas e estilsticas, Moravia no estava convencido das qualidades desses filmes, mesmo sem conden-los a priori:
Os personagens principais so delinqentes comuns que estiveram no pano de fundo dos filmes norte-americanos, e que nos italianos invadiram o cenrio para se tornar protagonistas. Esses misantropos, caadores de recompensa e trapaceiros contrastam radicalmente com os grandes cenrios e os tons picos do gnero western. Quando v tudo isso, voc acaba se perguntando: todas essas histrias so sobre o qu? Apenas sobre um punhado de dlares? Ou existe algo mais por trs? (MORAVIA apud FRAYLING, 2000, p. 118).
Um acrscimo ao questionamento de Moravia veio, pouco depois, do outro lado do Atlntico, da caneta de uma crtica cujas opinies costumavam defender o cinema de gnero: Pauline Kael. No artigo Lixo, arte e o cinema, publicado originalmente em fevereiro de 1969, ela decretou: Em sua maioria, os filmes de que gostamos no so obras de arte (KAEL, 2000, p. 131). Kael defendia o direito de o espectador gostar de lixo (ela se referia aos filmes de gnero, filmes que no eram de arte). Nos artigos em que retornou ao tema, Kael evitava falar em cinema de gnero, mas abordava com freqncia a noo de autoria (ela escrevia na fase mais popular do autorismo nos Estados Unidos), indo contra a corrente que encarava os dois conceitos como um sistema de oposies excludente. Abordando a questo do ponto de vista da experincia do espectador, Kael afirmou que a questo da autoria de nada interessava ao pblico. Para ela, de pouco adiantava a inteno do cineasta em criar uma experincia esttica indita (algo que, para os crticos da poca, o credenciava ao status de autor). Afinal de contas, o pblico precisava ter prazer para usufruir de um filme; se o espectador no obtinha prazer, o filme no tinha nenhuma funo.
Talvez o prazer individual mais intenso da ida ao cinema seja esse, no- esttico, de fugir da responsabilidade de ter as respostas exigidas de ns em nossa cultura oficial. E no entanto essa a base melhor e mais comum para desenvolver um senso esttico, porque a responsabilidade de prestar ateno anti-arte, nos deixa ansiosos demais pelo prazer, entediados demais para corresponder. Longe da superviso e da cultura oficial, no escuro do cinema, onde nada nos pedem e nos deixam em paz, a liberao do dever e da obrigao nos permite desenvolver nossas prprias respostas estticas. (...) A irresponsabilidade faz parte do prazer de toda arte; e a parte que as escolas no querem admitir. (...) essa sensao de livrar-nos da responsabilidade que sentimos no cinema que levada ao extremo pela American 101
International Pictures e pelos bangue-bangues italianos de Clint Eastwood; so despidos de valores culturais. (KAEL, 2000, p. 142, grifo nosso).
No coincidncia o fato de os filmes de Leone serem citados por Kael como responsveis por uma experincia esttica prazerosa. A citao tinha o carter provocador tpico dela; os filmes do ciclo italiano ocupavam um lugar baixo na escala valorativa da produo cinematogrfica, sendo constantemente acusados de terem gerados numa linha de montagem, com propsitos exclusivamente comerciais. Mas nota-se, apesar do esforo de Kael, que ela no procura superar realmente a distino entre o filme de gnero e o de arte. A ltima frase (so despidos de valores culturais) reveladora. Kael deixa claro que gosta dos bangue-bangues de Clint Eastwood, mas mesmo assim os coloca num patamar inferior aos filmes srios. E, quando a escritora afirma que o prazer de ir ao cinema no- esttico (apesar de contribuir para desenvolver no espectador uma resposta esttica), ela est de certo modo concordando com a argumentao dos crticos mais elitistas, que procuram colocar num patamar mais alto de valor a experincia esttica de origem puramente intelectual a arte desinteressada de Kant. Embora os artigos de Moravia, Beauvoir e Kael sejam sintomticos de uma mudana gradual no discurso da crtica em relao ao cinema de Sergio Leone, a trajetria dessa mudana pode ser rastreada com preciso quando se analisa a progresso cronolgica dos textos sobre os filmes dele publicados pela revista Cahiers du Cinma, a Bblia dos cinfilos de todo o mundo naquela poca. Entre maio de 1965 e maio de 1972, a revista dedicou nove textos anlise de cinco dos westerns de Leone. O espao editorial cada vez maior oferecido a essas crticas demonstra a ateno crescente dedicada aos filmes. A primeira resenha, publicada no nmero 166, em seguida ao lanamento europeu de Por uns Dlares a Mais, sequer merece ser chamada de crtica, pois consiste de um nico pargrafo que contm a ficha tcnica do filme e uma sentena solitria e desinteressada, que no contm nenhum tipo de anlise estilstica ou narrativa, resumindo-se a decretar que se trata de uma tentativa de repetir o sucesso de Por um Punhado de Dlares (MARDORE, 1965, p. 73). Nas entrelinhas, o texto sugere que os objetivos de Leone eram puramente comerciais. preciso observar, tambm, que o primeiro western dele, feito um ano antes, havia sido ignorado pelos Cahiers. A ausncia diz muito a respeito da importncia que os crticos atribuam ao spaghetti western como um todo e ao trabalho de Leone em particular. O sucesso de Por uns Dlares a Mais levou necessidade de que os Cahiers criticassem o filme. Assim, o nmero 176 (maro de 1966) trouxe outro texto sobre ele. O 102
artigo em si no fala apenas do cinema de Leone; rene quatro longas-metragens italianos e analisa-os, um de cada vez, sob o pretexto de sintetizar a produo recente do pas. Um pargrafo dedicado ao filme de Leone, que o crtico Jacques Bontemps considera menos ruim do que o anterior. Bontemps desvaloriza o trabalho de direo, considerando como defeitos alguns recursos de estilo que, anos depois, podem perfeitamente ser interpretados de forma invertida: Leone no tem critrio nas composies visuais, os atores so histrinicos, a ao fsica ampliada ao mximo e os assassinatos numerosos a signos acabam reduzidos a signos sem qualquer carga afetiva. O decreto final diz que Por uns Dlares a Mais no passa de um buqu de flores artificiais (BONTEMPS, 1966a, p. 12). A crtica curta, mas significativa. O texto sintetiza os mesmos argumentos detalhados anos mais tarde no texto mais minucioso de Eduardo Geada. Bontemps classifica Leone como diretor barroco ( a primeira de trs menes feitas nos Cahiers ao estilo artstico que floresceu no sculo XVII, relacionando-o ao trabalho de Leone), seguindo um clich da poca Georges Sadoul havia escrito pouco antes, em seu Dicionrio de Cineastas, que Leone fazia jus tradio barroca italiana (SADOUL, 1979, p. 184). No texto dos Cahiers, essa classificao aparece associada metfora das flores artificiais, e sugere que no filme h um gosto pelo exagero, um predomnio da forma em relao ao contedo. Contraditoriamente, esse suposto barroquismo assinala o nico aspecto digno do (pouco) interesse que Bontemps encontra no filme:
O excesso a nica possibilidade de um western europeu existir sem ser insuportvel, se fazendo exerccio de estilo barroco e decadente num gnero que s est presente pela ausncia nostalgicamente sentida: o western. (BONTEMPS, 1966a, p. 12).
A observao a respeito da ausncia do gnero alinha-se convico, ecoada por muitos outros crticos (j a vimos antes), de que um western s poderia ser considerado bom se viesse dos Estados Unidos; e, mais do que isso, se respeitasse o repertrio de convenes do gnero, limitando-se replicao dos esquemas dominantes. Para no deixar passar em branco o primeiro western de Leone, o nmero seguinte da revista (n 177, abril de 1966) retornou a Por um Punhado de Dlares, em crtica de um pargrafo, acompanhada de ficha tcnica. O texto do mesmo Jacques Bontemps chama a ateno, sobretudo, por deslocar o diretor do restante do ciclo dos spaghetti westerns, situando-o numa posio destacada dentro do panorama de produo popular na Europa. Em 103
seguida, o crtico recontextualiza o filme negativamente, calcado na idia de uma representao espetacular da violncia:
Claramente superior a todos os demais westerns europeus, o que no significa, de jeito nenhum, que tenha o menor interesse, j que se h algum convencido da pretenso da empreitada o prprio Sergio Leone. Um desencanto total, portanto, e uma violncia exacerbada demais para ser eficaz (BONTEMPS, 1966b, p. 81).
No nmero 184 (novembro de 1965), Patrick Brion retornou a Por uns Dlares a Mais, reafirmando alguns dos argumentos de Bontemps, como a suposta qualidade superior de Leone em relao aos demais cineastas do spaghetti western (sua austeridade o sobressai do resto dos subprodutos do western hispano-italiano). Como de hbito, a representao grfica da violncia incomodava (os assassinatos se sucedem invariavelmente, sem qualquer motivao psicolgica) e era responsvel, na viso de Brion, pela suposta degenerescncia do gnero. Nos dois ltimos textos, importante perceber que os crticos deixam escapar breves elogios; no entanto, ainda mais significativo que, para justificar esse procedimento, ambos procurem destacar Leone do ciclo de spaghetti westerns, que dessa forma continua indigno de merecer a ateno da revista. Ironicamente, nos dois casos, os elogios tm relao direta com o que Brion chama de floreios barrocos 19
19 No original, floritures baroques. , e que podemos associar s preocupaes formais: as composies pictricas, os close-ups extremos, o desenho sonoro e principalmente o carter irnico, presente no alusionismo e que podemos associar influncia das tradies italianas da commedia dellarte. Ou seja, exatamente os mesmos recursos que Jacques Bontemps havia criticado de forma enftica no primeiro texto dedicado pela revista a Leone:
Por outro lado e a eficcia certeira do filme tem a suas razes a violncia exacerbada chega ao limite do suportvel, apesar de alguns floreios barrocos que introduzem o necessrio recuo humorstico. (BRION, 1966, p. 73).
Ainda que a crtica de Patrick Brion esteja longe de ser positiva, possvel notar que o eixo principal do texto est no mesmo fenmeno estilstico notado por Jacques Bontemps a tendncia de Leone reviso intensificada de certos recursos formais, que ambos associam a um suposto exibicionismo barroco. Brion usa o mesmo vocabulrio para se referir a esse fenmeno, mas elabora um pouco mais a gnese de uma idia j presente em Bontemps: a noo de releitura crtica do gnero, de reviso dos esquemas, atravs da releitura de certos elementos de repertrio de cdigos do gnero. 104
Depois de demorar a publicar as crticas dos dois primeiros westerns de Leone, os Cahiers du Cinma foram rpidos em analisar Trs Homens em Conflito. O longa-metragem foi lanado na Frana em 8 de maro de 1968; o texto escrito por Sylvie Pierre apareceu no nmero 200 da revista, no ms seguinte. A rapidez do processo de edio era um sinal claro de que a carreira de Leone agora estava sendo acompanhada com mais ateno pela revista. O texto fez parte da seo Notas Crticas, editada no final da revista, que agrupava fichas tcnicas e comentrios curtos sobre lanamentos recentes. A crtica ocupou dois teros de pgina o maior espao editorial dedicado at ento a um filme de Leone nos Cahiers. uma crtica ambgua, que permite leituras positivas e negativas. Sylvie Pierre observa que Leone levava a cabo, ao contar a odissia dos trs vagabundos por dentro de um territrio em guerra que, ela afirma, no nada alm de um olhar europeu sobre a guerra de trincheiras de 1914, no se pretendendo de jeito nenhum um panfleto anti-militarista atrs de um tesouro enterrado, uma operao apaixonante (PIERRE, 1968, p. 124). Pierre registra procedimentos estilsticos recorrentes dentro do filme, como a tendncia de Leone para os jogos com a entrada e a sada abrupta de personagens dentro do espao flmico (ela se refere muitas vezes ao recurso que denominaremos, mais frente, de trompe loeil cinematogrfico), introduzindo a irrupo abrupta de uma figura dentro de uma paisagem, ou vice-versa. Tambm destaca a verossimilhana dos acessrios utilizados por Leone, evocando o realismo grotesco dos cenrios e figurinos. No entanto, sua observao mais interessante diz respeito ao perfil amoral do trio de protagonistas. Embora num primeiro momento critique Leone por desrespeitar a funo clssica do maniquesmo do western (mais uma vez, o processo de reviso do esquema dominante era compreendido como algo negativo), Pierre aprofunda sua anlise, chegando concluso de que a brincadeira irnica com os rtulos de bom, mau e feio (presentes no ttulo original) consiste no maior charme do filme:
original, aqui, a complexidade da perturbao trazida ao esquema maniquesta do western. De Lee Van Cleef (o bandido violento que mata crianas) a Clint Eastwood (o homem bom de moralidade duvidosa), passando por Eli Wallach (o vagabundo simptico), existe uma degradao no uso desse recurso. Mas a astcia do filme, sua mais bela inteno, consiste em uma operao de dissimetria da ironia aplicada s etiquetas dos personagens. (...) Nem o bom e nem o mau trazem provas de uma maldade absoluta. Um fecha os olhos dos moribundos com gentileza; o outro rouba os relgios deles com cinismo. Finalmente, se o mau o nico eliminado dos trs, no esse fato que evoca a euforia do puro espetculo. preciso que os dois sobreviventes se emancipem da fico westerniana e se tornem dois indivduos quaisquer num tempo de guerra, e que a carga de ouro de que tomam posse os afastem da aventura. (PIERRE, 1968, p. 124). 105
Apesar de o texto de Sylvie Pierre ser o primeiro a analisar mais detidamente recursos de estilo, chama a ateno os comentrios ambguos sobre o processo de reviso dos esquemas do western. Alm disso, em nenhum lugar existe meno ao pertencimento do filme ao ciclo popular italiano, que em 1968 estava, como j vimos, no momento mais numeroso e criativo de sua trajetria. Para elogiar Leone, Pierre precisou destac-lo desse ciclo. Pois exatamente o contrrio desse pressuposto que se pode ler na sexta crtica sobre Leone publicada nos Cahiers du Cinma. A pretexto de comentar Era uma Vez no Oeste, Serge Daney escreveu o texto mais significativo de todos os que se pode ler a respeito de Leone nos Cahiers. A resenha foi publicada no nmero 216 (outubro de 1969), constituindo o primeiro de dois textos que a revista imprimiu sobre o longa-metragem Sylvie Pierre escreveria uma crtica mais longa, dois nmeros depois, que essencialmente reelaborava argumentos parecidos, s que procurando destacar um pouco mais os aspectos de estilo. A crtica de Daney o texto que resolve melhor as ambigidades sentidas nas resenhas da revista. Os crticos estavam sempre prontos a decretar o spaghetti western como intrinsecamente inferior ao western americano, embora s vezes conseguissem enxergar elementos dignos de interesse no trabalho de Leone. A questo que, at o texto de Daney, nenhum crtico havia explicado claramente o que seria esse algo interessante. Daney foi o primeiro a explicit-lo: era o carter de releitura crtica que Leone oferecia ao repertrio do western tradicional, o esforo para elaborar uma variao do esquema tradicional do gnero. S que Daney no comentou esse esforo a partir de uma anlise estilstica. Sua abordagem foi condizente com a fase maosta-esquerdista que os Cahiers viviam na poca. Daney pouco se demorou na discusso sobre o filme em si (marca o apogeu e talvez o colapso do ciclo, afirmou, em uma sentena que se revelaria quase premonitria, pelo menos a respeito de Leone), deixando-o de lado para se concentrar em defender a agenda poltica do spaghetti western, e articulando-a com o processo de releitura crtica do gnero, atravs de uma operao contnua de desconstruo do repertrio de convenes:
Eles [os filmes de Sergio Leone] constituem a primeira tentativa, embora pouco conseqente, de cinema crtico, ou seja, no mais em confronto direto com a realidade (mesmo que s vezes o recurso verdade histrica que Leone conhece bem tenha um valor estratgico), mas com um gnero, uma tradio cinematogrfica, a nica que conheceu uma difuso mundial: o western. No pouca coisa. (DANEY, 1969, p. 64).
O texto de Daney paradigmtico, antecipando o resgate posterior que se faria do cinema de Leone. Sem negar em nenhum instante o carter popular inclusive no modo 106
industrial de produo em srie dos spaghetti westerns, Daney critica os rumos que o western americano havia tomado na dcada de 1950, com uma tendncia supostamente excessiva de psicologizar os personagens (senso crtico, mas no cinema crtico, diz, avanando um argumento que j podia ser encontrado nos escritos de Andr Bazin sobre o western), e avaliza um cinema que lhe parecia crtico do prprio cinema. Para ele, uma potica cinematogrfica que pusesse em cheque o moralismo exacerbado do gnero americano s poderia ser elaborada fora de Hollywood. Em que pese o uso exagerado da terminologia marxista, possvel perceber que o argumento de Daney consiste numa elaborao mais profunda e detalhada das idias lanadas pouco antes por Alberto Moravia o spaghetti western no consiste na elegia de um mito, mas sim na elaborao de um mito acerca de outro mito somada noo de que a revitalizao dos filmes de gnero s podia ser realizada de fora. E por que esse cinema popular crtico haveria de florescer justo na Itlia? Para Daney, a Itlia era o lugar perfeito para o surgimento de um cinema popular crtico, um cinema que encapsulasse um carter de resistncia cultural e ideolgica ao avano cultural dos Estados Unidos. Afinal, o pas europeu era (ainda ) um dos nicos no mundo a ter uma indstria de cinema popular, comparvel aos EUA em nmeros e estatsticas de bilheteria. As origens vis e baixamente comerciais (DANEY, 1969, p. 64) do ciclo italiano so, para ele, o aspecto mais positivo do spaghetti western. A expresso entre aspas talvez seja o trecho mais significativo do texto de Daney. Ela denota claramente a linha de raciocnio que seria seguida por praticamente todos os crticos ao longo do processo de revalorizao da obra de Leone nos anos 1970: a importncia do spaghetti western no estava nos recursos de estilo, nem mesmo na fruio esttica que os filmes proporcionavam. O ciclo popular italiano era importante na medida em que representava uma tentativa crtica de resistncia cultural ao domnio norte-americano, desconstruindo-o de dentro para fora. Ou seja, somente ao conservar o carter de massa, de produto audiovisual oriundo de uma linha de montagem, o gnero italiano poderia realizar com propriedade o seu eufrico trabalho de desconstruo, desmistificando todo um conjunto de convenes estabelecidas pela outra indstria do cinema:
Admitamos que em alguns pases onde o cinema constitui uma indstria robusta, o cinema B delimita uma espcie de lmpen-cinema (cinema do lmpen-proletariado), bom de qualquer modo para fazer a mquina girar, amado de forma esnobe e contraditria (em uma espcie de cinefilia operria) no podendo aspirar qualidade, nem mesmo conscincia clara 107
dos elementos (temas, situaes) que ele ilustra porque esta (a conscincia) reservada aos filmes de qualidade: digamos, mais para [Fred] Zinnemann que para [Alan] Dwan. (DANEY, 1969, p. 64).
Essa passagem refora o argumento central do texto. Centrando a argumentao na primeira vertente da potica do cinema, Daney sugere que o spaghetti western no poderia aspirar qualidade do western americano, por ser uma cpia; ou seja, apesar de valorizar o ciclo, o coloca num patamar inferior ao ocupado por filmes de qualidade. Em outras palavras, os filmes de Leone s so bons na medida em que incitam resistncia cultural; mas, de um ponto de vista estilstico, no tm nada de novo a oferecer. A leitura de Daney parece ser, de fato, a mesma feita por Pauline Kael. No entanto, ele elogia a narrativa do filme por eliminar o moralismo puritano do gnero (isto , valoriza indiretamente o perfil do heri mais amoral). Sua leitura, obviamente, compatvel com a orientao ideolgica de esquerda dos Cahiers daqueles tempos. A revista tinha motivos polticos para reverenciar um cinema popular que propagava ideologias de esquerda, como era o caso do spaghetti western. Mas, uma vez estabelecidos os contextos cultural e poltico em que se localiza a obra de Leone, Daney parte para analisar a utilizao formal do esquema do western. E afirma como caracterstica mais importante deste procedimento o uso do pastiche como uma forma de explicitao da cinefilia, do conhecimento e da paixo por filmes. Este uso do pastiche no se d apenas por uma questo de sensibilidade esttica exagerada (embora esse argumento tambm esteja l), mas tambm por uma estratgia crtica:
[O pastiche] consiste ora em mostrar o que o western clssico ocultava, ora a exagerar o este mostrava. A fora dos filmes de Leone est em extenuar a retrica habitual do western, em fazer do excesso de oferta o equivalente de uma negao. Em relao a isso, seria interessante mostrar como ao western convencional (...) Leone ope uma seqncia ininterrupta de tempos fortes que se anulam reciprocamente: ao mximo de intensidade corresponde um mnimo de sentido. (DANEY, 1969, p. 64).
Esse trecho significativo. Aps identificar a prtica do pastiche e atribuir a ela uma crtica ideologia do gnero, Daney enxerga o alusionismo como sintoma de procedimentos narrativos e estilsticos em direo potica da continuidade intensificada. Ele est falando dos floreios barrocos a que outros crticos se referiram, atribuindo a eles um lado positivo (trazia consigo uma postura crtica) e outro negativo (provocava desequilbrio entre forma e contedo, com nfase no primeiro item). Quando se refere a uma seqncia ininterrupta de tempos fortes, e obviamente sem usar o termo (que s seria criado dcadas depois), Daney 108
est se referindo continuidade intensificada. No final do texto, ele retoma o raciocnio desenvolvido no incio; reconhece que quase no tratou do filme, mas se coloca na contramo da corrente principal de crticos que no enxergavam valor na obra de Leone, observando que sua prtica intensificada em estilo e narrativa nada tinha de gratuita, e que era preciso dedicar mais ateno aos filmes dele (algo que ele prprio, sintomaticamente, no faz):
Interessante notar como, neste cinema, se d a escolha dos meios (chamada de gratuita por toda uma tropa de bem-pensantes), a construo da beleza (dos atores e paisagens), da justeza de tal ou tal estilo de narrao (elipse ou tempos longos). (...) Quanto a Leone, de quem pouco se tratou aqui, igualmente possvel empreender a decifrao de uma obra superabundante, com muitos elementos, em tiques retricos. (DANEY, 1969, p. 64).
A anlise das crticas subseqentes publicadas nos Cahiers sobre filmes de Leone mostra o quanto o texto de Daney foi determinante para o surgimento de um padro um pouco mais favorvel na recepo dos crticos, daquele momento em diante. Esse contexto fica evidente j a partir do destaque editorial dado crtica de Sylvie Pierre sobre o mesmo filme, publicada no nmero 218 (maro de 1970). O texto ocupa trs pginas da revista; pela primeira vez, um longa-metragem de Leone era analisado fora da seo Notas Crticas, que se ocupava exclusivamente de lanamentos. A poltica editorial da publicao j o considerava um diretor digno de receber ateno. Nesse sentido, convm observar que a ampliao do destaque editorial oferecido a Leone ocorreu justamente no momento em que o contexto de produo dos filmes dele mudou, com a associao de Leone aos grandes estdios norte-americanos de maneira mais direta. Sabemos que, embora ainda filmado na Espanha, Era uma Vez no Oeste teve oramento generoso, fugindo drasticamente dos limites e pr-condies impostos pelo modo de produo de Cinecitt. Eis, ento, um paradoxo: elogiado por Daney por exercer um cinema popular de resistncia contracultural, Leone ganhava espao na revista exatamente no momento em que recorria ao dinheiro americano para filmar. Por causa disso, h pesquisadores, como Howard Hughes (2004), que desconsideram Era uma Vez no Oeste como produo pertencente ao ciclo italiano, por desobedecer aos padres de produo reservados aos demais spaghetti westerns. A abordagem de Sylvie Pierre ao filme de Leone bastante distinta do texto escrito por ela dois anos antes, a respeito de Trs Homens em Conflito. A nova crtica no apenas cita diretamente o texto paradigmtico de Daney, mas procura desenvolver e aprofundar aspectos do raciocnio dele. E, para isso, minimiza as observaes a respeito das prticas estilsticas e 109
narrativas de Leone, concentrando-se na agenda poltica supostamente defendida pelo filme (ou, pelo menos, investindo na mesma leitura ideolgica que Daney havia feito dele). Antes de falar qualquer coisa sobre o filme, Pierre realiza uma longa argumentao a respeito das conexes culturais entre o western norte-americano e sua contraparte italiana:
O western no nada alm de um trao da ideologia sobre a histria norte- americana, aquela inventando esta, pelo vis da mitologia, e de uma espcie de justificativa moral. Trata-se de justificar a histria imperial dos Estados Unidos. (PIERRE, 1970, p. 53).
A partir da, colocando-se na contramo de um dos argumentos mais citados pelos detratores do spaghetti western, Sylvie Pierre refuta a acusao de falta de autenticidade histrica dos filmes do ciclo, afirmando que essa acusao no faz nenhum sentido, porque:
(...) no foram importados [dos westerns americanos], evidentemente, nem a ideologia e nem a histria, mas o produto acabado desse conjunto: a retrica. Ou seja, uma rede complexa de personagens, temas, situaes, acessrios, cenrios, roupas, que consiste apenas de variaes combinatrias desses elementos, regidas por um cdigo cuja necessidade permanece ininteligvel. Sem dvida, no possvel fazer esse emprstimo de outra forma que no seja do exterior (...). Leone, e com ele todo o western italiano, tomam emprestado a retrica ao western americano, mas fazem isso ao desenraizar a comodidade de um sistema j completamente constitudo de figuras que, no tendo mais que se justificar em sua relao com o real, podem funcionar livremente, isto , de modo gratuito. O emprstimo no pequeno; ele feito atravs de nada menos do que uma concesso, uma espcie de salto para fora da histria. (PIERRE, 1970, p. 54).
Quando se refere retrica, ela faz questo de definir o conceito: trata-se do conjunto de recursos de estilo que compem os esquemas do western americano. Nesse ponto, Pierre ignora o processo de reviso crtica desses esquemas levado a cabo por Leone, sugerindo que os filmes no passam de variaes combinatrias desses recursos. Depois, num longo trecho que ocupa quase metade da crtica, ela se volta para o filme, observando a preocupao com a acuidade histrica e citando como exemplo a reconstituio minuciosa da cidade, das estaes de trem e do saloons. Ela circunscreve um trao estilstico que se tornaria, frente, recurso importante da potica da continuidade intensificada, e busca uma justificativa de ordem scio-histrica para o estabelecimento desse recurso:
Compreende-se muito claramente porque os westerns mticos de Cecil B. de Mille, Ford ou Mann no tinham que se preocupar em ser documentrios, sendo eles mesmos documentos documentos ideolgicos americanos, imagens de um povo se olhando no espelho. O western de Leone, embora fantasioso, tende paradoxalmente exatido. Porque ele no se inventa de 110
uma cincia difusa; preciso que ele nasa de certo saber, que s ser arqueolgico sendo monumental. (PIERRE, 1970, p. 54).
Ento, Pierre segue o raciocnio, insistindo na importncia da ostentao formal o barroquismo dentro da obra de Leone. Ela sugere que h no filme uma tendncia flagrante ostentao estilstica, sobreposio da forma ao contedo:
A histria, em Leone, apenas um espao totalmente distinto da fico, diante do qual a fico morre e se exibe como um rabo de pavo, cheio de esplendores e vaidades. (...) Era uma Vez no Oeste , antes de tudo, uma obra-prima de retrica. (PIERRE, 1970, p. 54).
Na argumentao, Sylvie Pierre cerca o filme sem mergulhar nele. O cerne da anlise est na leitura ideolgica do trabalho de Leone; uma leitura claramente devedora a Daney. Antes de encerrar o texto, Pierre ainda nota o uso abundante do alusionismo dentro da trama do filme, antecipando em muitos anos a definio que Nol Carroll (1998) faria do conceito uma narrativa em camadas sobrepostas, em que o pblico amplo entende a trama e um grupo menor, formado por cinfilos, recebe piscadelas para um gozo esttico privilegiado:
Tudo permitido, desde que a cada instante o cinema funcione e se veja funcionar. O resultado de um narcisismo cinematogrfico evidente. Um cinema que s remete a ele mesmo e a suas prprias mitologias. (...) O jogo duplo que poderia parecer no incio duvidoso, entre a eficcia e a contemplao, tem de um lado o cinismo do saber fazer e a poltica comercial que assegura o grande pblico; e do outro, o fato de que pisca o olho para os intelectuais, com todas as xtases estticas permitidas. (PIERRE, 1970, p. 55).
A leitura marxista de Pierre a leva a julgar como negativo o recurso estilstico do alusionismo (que at ento, note-se, no havia sido citado por nenhum outro crtico dos Cahiers); no momento em que Leone pisca o olho para os intelectuais, seu cinema perde parte do carter de resistncia que forma, para os redatores dos Cahiers, a pea central de seus filmes. Na concluso do texto, no entanto, Pierre relativiza essa leitura, instituindo uma ambigidade caracterstica dos textos dos Cahiers daquele perodo:
Sobre esse jogo duplo, no podemos insistir demais que ele seja apenas retrico, reinscrevendo o filme na nossa histria a saber, a histria de uma conscincia pequeno-burguesa, infeliz, separada do real, e que se refugia na arte. No totalmente refugiada, no entanto, porque tendo sido denunciado esse refgio na vaidade, Leone no se instala nele. (PIERRE, 1970, p. 55).
111
O prximo filme de Leone, Quando Explode a Vingana, ganhou resenha nos Cahiers no nmero 238 (maio de 1972). Foi um texto curto, retornando ao padro de ficha tcnica e comentrio rpido, dentro da seo Notas Crticas. Mais uma vez citando o texto de 1969 de Daney, Pierre Baudry inicia a crtica colocando uma questo pertinente e importante:
Poderamos at recentemente questionar o lugar dos filmes de Leone no spaghetti western. Parece-me que, longe de ser sua vanguarda, esses filmes tentam mais e mais guardar uma distncia em relao a essa srie. Depois de ter sido um emblema e um modelo para ela (Por um Punhado de Dlares, Por uns Dlares a Mais, etc.), para retomar a idia de Daney (Cahiers n 216), os westerns de Leone so agora crticos, e no somente em relao ao cinema americano, mas tambm em relao ao lmpem-cinema italiano. (BAUDRY, 1972, p. 93).
Embora essa observao nos parea fundamental, Baudry no se alonga nela (talvez por falta de espao). Ele procura justific-la apontando uma alterao que os filmes de Leone realizam na estrutura narrativa do western (seja ele americano ou italiano) um deslocamento operado na segunda vertente da potica do cinema:
Longe de retomar a linearidade dos encadeamentos ficcionais do cinema de aventura e do western clssicos, os filmes de Leone, sobretudo depois de Trs Homens em Conflito, se organiza como uma srie de esquetes, uma sucesso de momentos fortes. (BAUDRY, 1972, p. 94).
A partir da, Baudry envereda por uma leitura psicanaltica do filme, observando que nada chama a mais a ateno do que o desejo dos personagens. Ele destaca a construo narrativa em larga escala, detectando uma suposta alterao na forma como Leone usava flashbacks e sugerindo que esse recurso, desta vez, no seguia uma trilha que ia do abstrato ao concreto (o crtico refere-se, aqui, tradio de fragmentar o flashback e reapresent-lo, aos poucos, em vrios momentos do filme, a cada exibio mostrando um pouco mais da cena completa, de modo que s na ltima exibio conseguimos v-la inteira e atribuir a ela um significado estvel; essa tcnica foi usada em Por uns Dlares a Mais e Era uma Vez no Oeste). Em Quando Explode a Vingana, para Baudry, os flashbacks no explicam nada; pelo contrrio, consistem no mistrio essencial do filme, aquilo que move a trama, transformando-a num permanente jogo de conflitos individuais, com o desejo como chave:
A organizao da diferena dos desejos entre Juan, o campons ingnuo e ladro lascivo, colocando constantemente o sexo em primeiro lugar, e Sean, o anjo da destruio no estabelece relaes de completude, mas sim de oposio. E dessa oposio que surge aquilo que colocado em jogo na revoluo, que dada num sentido ausente. (BAUDRY, 1972, p. 95). 112
Chama a ateno, no texto de Baudry, a mudana da abordagem terica. A orientao marxista ainda est l, mas percebe-se uma nova tendncia leitura psicanaltica, certamente influncia da popularidade de Lacan e Metz na teoria francesa de cinema dos anos 1970. Essa guinada em direo psicanlise torna-se explcita na prxima crtica de um filme de Leone a aparecer nos Cahiers du Cinma: o texto de Michel Chion publicado no nmero 359 (maio de 1984, mesmo ms do lanamento do filme na Frana) sobre Era uma Vez na Amrica. A diferena de abordagens fica mais flagrante devido ao perodo de 12 anos que se passou entre as duas crticas (nesse perodo, Leone no lanou nenhum longa-metragem). O processo de revalorizao positiva dos filmes, contudo, continuou acontecendo. Isto fica evidente quando se observa o destaque editorial dado a Era uma Vez na Amrica. A publicao dedicou capa, editorial, entrevista e crtica ao filme, incluindo ainda um artigo escrito pelo prprio diretor. Tudo isso comps um dossi de 16 pginas. Seriam os ltimos textos publicados sobre Leone enquanto ele ainda vivia. Por ocasio da morte de Leone, em 1989, os Cahiers du Cinma publicaram outro artigo escrito por ele (justamente sobre as filmagens de Era uma Vez na Amrica), no nmero 422. De l at hoje, mais quatro textos apareceram nas pginas da revista, trs deles registrando lanamentos em DVD de filmes de Leone e outro um longo artigo de cinco pginas publicado no nmero 462, em dezembro de 1992 traando conexes entre Era uma Vez no Oeste, a obra dos irmos Joel e Ethan Coen e o ento recm-lanado Os Imperdoveis (The Unforgiven, Clint Eastwood, 1992). Todos esses textos publicados aps a morte de Leone foram elogiosos; nenhum se dedicou a analisar mais detidamente a prtica estilstica dele. Michel Chion inicia a crtica a Era uma Vez na Amrica que estabelece como soberbo, ambicioso, largo, lrico, com um toque indelvel do barato, do miservel, presente mesmo nos filmes mais caros de Leone, como que por solidariedade com seu pas e define o como um filme sobre o cinema pincelando dados biogrficos e lembrando que o pai e a me de Leone trabalhavam na indstria cinematogrfica. Ele acrescenta: No retomaria esses dados de psicanlise rpida se no achasse que eles esclarecem o sujeito de muitos filmes realizados por ele: a busca genealgica de si dentro do universal, do autntico na cpia, e da diferena na repetio (CHION, 1984, p. 11). Essa observao significativa. Chion interpreta a obra de Leone como produto de um esforo (consciente ou no) autoral. interessante, no texto, observar como Chion utiliza seu background como compositor de msica concreta e terico do som no audiovisual para traar, em diversos momentos, paralelos entre o processo (praticado por Leone) de reviso dos esquemas 113
dominantes do gnero flmico e a pera, que segundo Chion se utiliza do mesmo artifcio, aproximando-se nesse sentido do jogo entre o familiar e o original que est no cerne da construo narrativa do cinema de gnero:
[Leone] parte do pressuposto de que todas as histrias j foram contadas, e no se preocupa com isso mais do que um compositor de pera. Os filmes trabalham (...) com o efeito do j-visto, que um efeito tpico da pera. Uma abertura de pera consiste, muitas vezes, em inserir temas que s ganharo sentido na atualizao de certos acontecimentos, que ressoaro como j vividos por terem sido musicalmente antecipados. (CHION, 1984, p. 11).
Chion tambm retoma e atualiza a argumentao lanada no texto de Serge Daney, embora dessa vez sem cit-lo diretamente. Para ele, a idia de um cinema popular de resistncia cultural no mais, na dcada de 1980, suficiente para explicar o sucesso e, mais significativamente, a qualidade dos filmes de Leone. Ento, recorre novamente pera para dar o salto que lhe permite elogiar o filme:
Do ponto de vista do ritmo, da produo e da encenao, os Estados Unidos no podem mais, atualmente, apresentar muitos filmes como esse. No mais suficiente, para Leone, o procedimento de criticar o cinema americano para poder existir como contestao. O cinema americano alimentado por uma espcie de auto-contestao, de uma reciclagem crtica ao infinito de seus modelos. Aqui, a aparncia que faz a diferena. uma questo de forma, estilo e tom operstico. E em matria de pera, Sergio Leone est em casa. (CHION, 1984, p. 11).
Insistindo na leitura psicanaltica, Chion faz referncia construo no-cronolgica do enredo (procedimento importante de reviso estilstica, e caracterstica da continuidade intensificada), observando que esta mais intrincada, sofisticada e complexa do que o jogo com os flashbacks apresentado em qualquer filme anterior de Leone. Desta feita, Chion avalia que essa estrutura no usa os momentos do passado como chave para a resoluo de um trauma obsessivo, mas permanece vazia de significado, sem levar a lugar nenhum ou seja, pura retrica. Implicitamente, a idia do efeito de ostentao, do barroquismo, aparece mais uma vez. Mais importante, para Chion, que Era uma Vez na Amrica no se traduz em bom cinema apenas por causa dessa manipulao dos recursos estilsticos, mas justamente porque essa manipulao, apesar de ostensiva, ainda permite brechas interpretativas que oferecem ao espectador a possibilidade de se infiltrar emocionalmente dentro da trama:
O que apaixona no filme, alm do domnio da tcnica, so as contradies. Entre a reconstituio histrica e o carter mtico da trama, entre a abundncia de detalhes da infncia e o apagamento das figuras paternas, 114
entre o estilo de encenao operstico e a integrao de elementos instveis e imprevisveis como o jogo cronolgico, entre muitos formidveis atores alm do genial De Niro, o grande ponto positivo que o filme permanece aberto, suscetvel ao enriquecimento aditivo. (CHION, 1984, p. 13).
Analisadas em progresso, as nove crticas publicadas pelos Cahiers do Cinma entre 1965 e 1984 funcionam como um microcosmo consistente da trajetria gradual como a crtica lidou com os filmes de Leone. O desprezo com que eram recebidos seus primeiros westerns deu lugar, lenta e gradativamente, a certo respeito crtico. No entanto, esse respeito no foi conquistado pelas prticas estilsticas e narrativas de Leone, mas pelo suposto ato de resistncia cultural a Hollywood que seus filmes representavam. Essa resistncia no partia de uma atitude criativa consciente; no estava inscrita nos filmes (e o fato de o prprio Leone ter dificuldade em reconhec-la comprova isso). Portanto, a contribuio dele ao repertrio da continuidade intensificada, atravs da instituio de processos de reviso dos esquemas dominantes do cinema de gnero, foi sistematicamente minimizada. essa contribuio que tentaremos detalhar, analisando os filmes cuidadosamente, nos dois prximos captulos.
115 2. Prticas narrativas de Sergio Leone 2.1 A narrao na potica do cinema O surgimento de Sergio Leone como diretor aconteceu numa poca em que no apenas o cinema, mas a sociedade ocidental como um todo passava por um perodo turbulento de mudanas. A continuidade intensificada, que comeou a emergir no mesmo instante, deve ser vista como um reflexo, no campo da potica do cinema, dessas alteraes no tecido social. Tendo comeado a dirigir filmes nesse perodo, natural que Leone tenha sido influenciado por ele. Ademais, ao estudar a constituio do estilo individual de um diretor, relegar a segundo plano os contextos scio-culturais e histricos em que ele operou pode se revelar um erro. Se verdade que o zeitgeist no liga a cmera, como disse Bordwell (2009, p. 69), no menos verdade que ele influencia as escolhas feitas por aqueles que a ligam. O processo de seleo de ferramentas estilsticas e narrativas operado pelos diretores atravessado, o tempo todo, por fatores extra-cinematogrficos. De modo geral, historiadores que trabalham tentando reconstituir a influncia dos contextos scio-culturais na atividade artstica se dividem em dois grupos, de posies antagnicas e bem definidas. De um lado, ficam aqueles que propem anular qualquer ligao entre histria da arte e histria da cultura (GINZBURG, 1990, p. 48); do outro, ficam pesquisadores que colocam os contextos acima das causas mais imediatas das escolhas que definem o estilo, correndo assim o risco de hipostasiar concepes abstratas do mundo e da vida (GINZBURG, 1990, p. 48). No defendemos enfaticamente nenhum dos grupos; propomos uma conciliao entre eles. Nos dois prximos captulos, tentaremos isolar e identificar os padres estilsticos e narrativos mais recorrentes dentro da obra de Leone, sempre reconstituindo os contextos nos quais ele efetuou as escolhas que levaram a esses padres. Defendemos que os contextos, sejam causa ou conseqncia das escolhas, so dela indivisveis. Entre as trs vertentes da potica do cinema, a primeira (temtica) rene recursos narrativos mais imediatamente influenciveis por contextos scio-histricos e culturais. Como este captulo d conta da anlise dos filmes de Leone a partir dessa vertente (englobando tambm a segunda, que consiste na construo narrativa em larga escala), partiremos do resgate desses contextos para associ-los, ento, ao aparecimento e posterior desenvolvimento dos padres narrativos recorrentes. 116 Em 1968, depois de assistir a Era uma Vez no Oeste em Paris, Jean Baudrillard decretou Leone como o primeiro cineasta ps-moderno (BAUDRILLARD apud FRAYLING, 2005, p. 17). Isso aconteceu antes de a condio ps-moderna (LYOTARD, 1998) comear a ser debatida em suas relaes com a produo audiovisual da sociedade (HARVEY, 1989; JAMESON, 1991; CONNOR, 1993). Mas o que exatamente Baudrillard tinha visto no filme para fazer tal declarao? Aplicando as caractersticas centrais do ps-modernismo ao cinema, Jullier e Marie (2009, p. 214-215) procuraram sintetizar da seguinte maneira o que chamam de cinema de terceiro grau: produo em massa de filmes nostlgicos; ironia, pardia e autoconscincia sobre a ndole ficcional das narrativas, muitas vezes expressa por uma retrica do exagero; despreocupao com teses ticas ou sociais, substituda pela relativizao das questes morais e pela lgica do espetculo; representaes mais realistas da violncia e do sexo; retorno s regras clssicas quando necessrio e formulao de inovaes formais apenas quando (e se) desejado; uso deliberado e generoso do pastiche (que eles chamam de piscadelas). Em maior ou menor grau, todas essas caractersticas podem ser encontradas nos filmes de Leone. Nesse sentido, o ponto mais importante do uso de todos esses recursos est na aplicao do paradigma do problema/soluo de Bordwell aos spaghetti westerns. Podemos ver como Leone trabalhou dentro de uma tradio, revisando-a e atualizando-a e, mais importante, intensificando-a sem necessariamente desafi-la. Em outras palavras: a apario e o desenvolvimento de caractersticas associadas ao ps-modernismo constituem um processo de reviso de esquemas clssicos dominantes, que se coaduna perfeitamente com a potica da continuidade intensificada. A aceitao dessa lgica nos permite encontrar uma explicao eficiente, por exemplo, para a ironia presente em Leone. A ironia, abundante nos westerns dele, associada por alguns autores (HARVEY, 1989; HUTCHEON, 2000) a uma experincia esttica ps- moderna. Nos filmes de Leone, a ironia aparecia freqentemente associada ao uso do alusionismo (CARROLL, 1998), ou variao mais exagerada deste, o pastiche (DYER, 2007), bem como releitura crtica de convenes do gnero. Chegamos a um ponto crucial. Esse raciocnio torna possvel argumentar que algumas das escolhas estilsticas e narrativas efetuadas por Leone foram efetivamente influenciadas por uma sensibilidade ps-moderna latente na Europa dos anos 1960. Se aceitarmos essa hiptese, poderemos compreender que as caractersticas ps-modernas encontradas em Leone acabaram inscritas nos filmes pelo que Bordwell chama de pr-condies de estilo; foi dessa 117 forma que o contexto scio-cultural influenciou Leone a fazer escolhas estilsticas que revisavam de maneira extravagante os esquemas circulantes do cinema de gnero. Voltemos a Baudrillard. A declarao dele se referia, principalmente, ao uso abundante do alusionismo, ento um recurso usado com discrio pelos cineastas. Baudrillard se refere especialmente ao pastiche: Um tipo de imitao que voc sabe ser uma imitao (DYER, 2007, p. 1). De fato, o gosto pela citao um dos mais proeminentes recursos narrativos de Leone, embora seja importante assinalar que a estratgia de citar obras anteriores, para ele, obedeceu a vrias gradaes de intensidade e inteno (as citaes podiam ser explcitas ou cifradas, reverentes ou irnicas), constituindo exemplos variados da tcnica intertextual que Nol Carroll (1998) chamou de alusionismo. Nesse momento, alm de verificar os diferentes usos que Leone fazia desse recurso narrativo, nos interessa demonstrar de que maneira essa experincia esttica associada condio ps-moderna emergiu deste contexto scio-cultural para tornar-se um trao do estilo individual de Leone. O pastiche no foi um recurso narrativo que Leone escolheu adotar em Era uma Vez no Oeste. A tcnica j vinha sendo cortejada por Leone nos filmes anteriores. Variaes mais brandas de alusionismo podem ser percebidas desde Por um Punhado de Dlares; a tcnica foi continuamente expandida nos filmes seguintes, atingindo o patamar maior de nfase em Era uma Vez no Oeste, cujo enredo consiste numa espcie de antologia de momentos icnicos de faroestes do passado, uma colcha de retalhos que combina, dentro de um enredo coeso, inmeras citaes a obras anteriores. Esses momentos, encaixados na tessitura narrativa e estilstica do filme, consistiam de aluses a cenas, personagens, nomes e lugares retirados de outros filmes. Eles provocavam no espectador uma percepo de reconhecimento de uma prtica imitativa. Embora no fosse a primeira vez que Leone trabalhava com a aluso, em Era uma Vez no Oeste as citaes eram to abundantes e explcitas que traziam a tcnica para primeirssimo plano, o que justificava o comentrio de Baudrillard. No entanto, o uso da aluso na narrativa cinematogrfica no era uma novidade. Como vimos antes, a intertextualidade sob variadas formas, que incluam aluses visuais ou sonoras, citaes sutis ou escancaradas sempre foi elemento importante para a construo narrativa no cinema de gnero (particularmente o western): O gnero particularmente propcio para a citao, para a aluso, e, de modo mais amplo, para todos os efeitos intertextuais. Cenas ou formas prescritas por um gnero (...) so parecidas de um filme a outro e acabam constituindo uma espcie de repertrio que cada novo filme do gnero convoca, mais ou menos conscientemente. (AUMONT; MARIE, 2001, p. 143). 118 Ocorre que, ao inserir citaes em grande nmero, Leone estava investindo na variao retrica do alusionismo, uma prtica intertextual que Nol Carroll (1998) afirma ter se intensificado na virada dos anos 1960 para os 1970 (mesma poca do lanamento de Era uma Vez no Oeste). Carroll relata que a prtica intensificada do alusionismo foi afirmada principalmente por dois movimentos cinematogrficos simultneos: a gerao New Hollywood (EUA) e o Cinema Novo alemo. Ele faz questo de lembrar que as duas ondas cinematogrficas compartilhavam a mesma influncia, que era a Nouvelle Vague: Ao longo dos anos 1960, aspirantes a cineastas americanos e alemes olhavam para Paris em busca de um modelo, assim como faziam os cinfilos e amantes da Stima Arte em geral. Os cineastas aprenderam, ou acharam ter aprendido, o que significava seriedade e ambio acerca de filmes. Eles tambm receberam dicas sobre edio, composio visual e improvisao, como tambm apreenderam a noo de aluso. (CARROLL, 1998, p. 254). J existia alusionismo na Nouvelle Vague, mas a tcnica era praticada de modo mais episdico; as aluses, muitas vezes irreverentes, eram feitas mais a convenes de gnero quanto a filmes especficos. Melville, e em menor escala Godard, ficaram conhecidos por resgatar elementos da iconografia dos filmes de gngsteres. O que os cineastas americanos e alemes fizeram foi aumentar o grau de nfase dessa prtica, muitas vezes citando diretores e filmes especficos, buscando proporcionar uma nova fonte de prazer o reconhecimento de citaes categoria segmentada dos cinfilos. Carroll relaciona diversos tipos de alusionismo, apontando alguns dos principais cineastas a adotar a tcnica: Brian De Palma (um dos mais entusiasmados alusionistas, enchendo filmes com citaes a Hitchcock), Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Rainer Werner Fassbinder (cuja obra continha inmeras aluses aos melodramas de Douglas Sirk). As formas de alusionismo tambm eram mltiplas; os diretores podiam citar atravs de referncias a enredos, temas, composies visuais, esquemas de cores e luz, dilogos. Podiam, inclusive, incluir no enredo personagens comentando ou assistindo esses filmes antigos. Segundo Carroll, a onda do alusionismo era parte de uma estratgia de afirmao de identidade, por parte de uma comunidade transnacional de cinfilos, que crescera ao longo da dcada de 1960. Da, inclusive, a grande quantidade de aluses a filmes metalingsticos, que se referiam ao prprio fazer cinematogrfico, como A Conversao (The Conversation, Francis Ford Coppola, 1974) e Um Tiro na Noite (Blow Out, Brian De Palma, 1981): A incluso precoce de aluses autoconscientes da prtica flmica em filmes de gnero, e seu reconhecimento por cinfilos intrpidos, era a interao simblica da grande ressonncia emocional que havia nos anos 1960 e no 119 princpio dos anos 1970, quando a redescoberta de filmes obscuros estava ligada a um projeto cinfilo utpico que consistia na criao de uma nova cultura globalizada comum, e um processo paralelo de auto-definio e descoberta, a adoo de uma nova sensibilidade, adequada s geraes do ps-guerra. (CARROLL, 1998, p. 263). A esse raciocnio, Bordwell acrescenta que, inseridas dentro da tessitura narrativa ou estilstica, as aluses podiam passar despercebidas para a maior parte da audincia, mas o filme no deixava de ser compreendido por causa disso, ao mesmo tempo em que a narrativa se constitua em dois nveis sobrepostos: Um enredo comum para todo mundo e aluses para os cinfilos (BORDWELL, 2006, p. 8). A fonte do prazer esttico proporcionada pelo alusionismo, portanto, estava no regozijo dos cinfilos que percebiam as citaes, enquanto notavam que a maioria dos espectadores passava ao largo delas. Dessa forma, o cinfilo se reconhecia como integrante de uma categoria especial de consumidores cinematogrficos. Embora Carroll tenha evitado a meno a termos como ps-modernidade, a questo do alusionismo encontrou espao dentro desse debate a partir dos escritos de Fredric Jameson (1991) sobre o pastiche. Jameson retomou o raciocnio de Baudrillard e associou a prtica do pastiche condio ps-moderna no cinema. A contribuio de Jameson foi decisiva. Ele concretizou uma definio estvel de pastiche espcie de pardia branca, em que a dimenso crtica da citao pardica era nula e o decretou como sintoma (mais do que caracterstica) do esgotamento das grandes narrativas, um dos aspectos centrais da condio ps-moderna. Os novos diretores usavam o pastiche, dizia Jameson, porque todas as histrias que havia para contar j haviam sido contadas. Restava aos cineastas combinar elementos de filmes anteriores para criar algo novo. Embora usem molduras tericas e termos diferentes, Carroll e Jameson falam do mesmo fenmeno. Eles concordam em um aspecto essencial: embora o alusionismo j aparecesse pontualmente na narrativa cinematogrfica desde os anos 1920, a cultura da aluso (da qual fazia parte o pastiche) havia comeado efetivamente na virada dos anos 1960 para os anos 1970, tendo sido intensificada aos poucos nas dcadas seguintes. Pois foi exatamente nesse momento que Sergio Leone introduziu sua reviso dos esquemas circulantes do cinema clssico, ajudando a afirmar o pastiche como tcnica narrativa importante entre os diretores dos anos 1960. Operando dentro de uma gerao de cineastas que cultuava o alusionismo, ele foi um dos primeiros a executar a variao mais exagerada da tcnica. Por definio, o pastiche funciona como uma experincia esttica que exige dois elementos sobrepostos: a inteno, por parte do artista, em imitar um trabalho anterior; e o reconhecimento, por parte da platia, nesta inteno do artista (DYER, 2007, p. 2). Dyer 120 examinou westerns de Leone como exemplos paradigmticos de pastiche. Neles, as referncias a clssicos do gnero so encenadas de forma deliberadamente reverente, para serem reconhecidas pelos cinfilos na platia: Embora as referncias explcitas aos westerns tivessem a inteno de expressar uma viso caleidoscpica de todos os faroestes de Hollywood reunidos, e embora essa tcnica assumisse no decorrer do filme atravs de um processo de intertextualidade que hoje chamamos de ps-moderna que os espectadores pudessem reconhecer essas citaes, ao menos de maneira vaga, o ponto central do exerccio era criar a impresso de que a audincia estava assistindo a um filme que j havia visto antes, ao mesmo tempo em que essa impresso vinha acompanhada da certeza de que ningum havia visto a histria ser contada daquele jeito. (FRAYLING, 2005, p. 33). O pastiche largamente utilizado em filmes, videoclipes e na publicidade. Particularmente no caso da animao infantil, isso uma verdade inquestionvel; basta conferir ttulos como Shrek (Andrew Adamson e Vicky Jenson, 2001), que consiste numa extensa combinao de referncias a filmes e contos de fada, consolidando fortemente a narrativa nos dois nveis a que Bordwell se refere (uma comdia irreverente para o pblico infantil, e uma coleo de aluses para adultos cinfilos). No chega a ser surpresa que o pastiche tenha encontrado abrigo dentro de um ciclo subvalorizado do cinema de gnero. Nesse sentido, possvel compreender o pastiche em Leone como um esforo (consciente ou no) no sentido de superar a condio subvalorizada. Demonstrar seu vasto conhecimento cinematogrfico era, para Leone, uma maneira de legitimar-se como artista. Talvez sem ter conscincia disso, ele estava trabalhando com uma narrativa em duas camadas, como diria Bordwell: um western para o pblico em geral e um compndio de citaes que deliciavam crticos e cinfilos. Dyer enfatiza que o pastiche, por ser uma modalidade exagerada de intertextualidade, tornou-se a prtica intertextual mais comum dentro do ps-modernismo no cinema. Citando Jameson, ele associa o pastiche a uma sensibilidade ps-moderna (DYER, 2007, p. 41) e prope uma diferenciao especfica entre pastiche e pardia. O pastiche seria uma pardia sem crtica, e no teria necessariamente humor. Jullier e Marie vo alm na diferenciao: Os pastiches so imitaes que visam prestar homenagem ao estilo da obra- fonte ou se divertir com ela diferentemente das pardias, que a atacam com uma veia satrica. (JULLIER; MARIE, 2009, p. 194). O trecho de Jullier e Marie traz tona, de novo, a questo central da ironia, que permeia toda a obra de Leone, e est no bojo da releitura crtica e irreverente que ele fez do 121 sistema de cdigos do western. Essa releitura irnica do gnero foi efetuada, tambm, atravs de dois outros recursos fundamentais na constituio do estilo de Leone: o perfil cnico do heri (recurso atravs do qual Leone operava a relativizao das questes morais, apontada por Jullier e Marie como caracterstica central do cinema ps-moderno) e a representao mais grfica e realista da violncia. A transformao dos heris em anti-heris caracterstica da continuidade intensificada (BORDWELL, 2006, p. 83). Bordwell observa que essa tendncia foi ampliada ao longo das dcadas de 1960 e 1970, nos filmes americanos. Em Na Mira da Morte (Targets, Peter Bogdanovich, 1968), o protagonista um jovem perturbado que se torna assassino sem motivo plausvel. Os protagonistas de Scorsese so todos anti-heris: um ex-militar paranico em Taxi Driver (1976), um boxeador ciumento em Touro Indomvel (1980), um comediante com delrios de grandeza em O Rei da Comdia (King of Comedy, Martin Scorsese, 1983) todos dados a rompantes de extrema agressividade, que extravasam com atos de violncia encenados de forma bastante realista e grfica. Seria coincidncia que a emergncia desse novo perfil de heri acontecesse justamente durante a dcada de 1960? pouco provvel. A apario do novo heri (ou anti-heri), que expressa de diferentes maneiras sua desiluso social, parece ser uma caracterstica que reflete a nova sensibilidade scio-cultural da Europa e dos EUA. Nesse sentido, seria correto afirmar que a condio ps-moderna exerceu um papel significativo uma pr-condio no desenvolvimento dessa caracterstica narrativa. Para Leone, o heri moralmente ambguo, hedonista e violento que aparece em todos os seus filmes era uma influncia da tradio literria picaresca existente na Itlia, como o caso da commedia dellarte (LEONE, 2005, p. 203). Naturalmente, ele no se dava conta de que a emergncia desse heri mais cnico estava associada, pelo menos parcialmente, emergncia de uma sensibilidade mais competitiva e hedonista que ocorria nos anos 1960. Em sua pesquisa, significativamente, Bordwell no cita Leone como um dos diretores que introduziu esse anti-heri no cinema ocidental. Sem dvida, ele tem razo ao enxergar esse papel em alguns diretores modernistas europeus (sobretudo Godard, Fellini e Antonioni). Mas os personagens amorais, egostas e violentos de Leone ajudaram, sem dvida, a constituir um alicerce narrativo sobre o qual muitos diretores dos anos 1970 trabalharam a caracterizao de seus personagens. Uma maneira adequada de abordar esse ponto atravs da tese de Will Wright (1975), que procedeu anlise narrativa dos principais sucessos de pblico do western, na dcada de 1960, chegando concluso de que, se no western tradicional a sociedade era constituda por 122 uma comunidade de boa ndole, apesar de fraca (um problema que o heri, capaz de unir moralidade s habilidades dos viles, podia resolver), no novo western a sociedade passou a ser vista como fraca, degradada e essencialmente corrupta. Esse problema era insolvel pelo heri. Se a sociedade era corrupta em seu mago, no havia nada que ele pudesse fazer. Nos enredos dos filmes norte-americanos pesquisados por Wright, a gradual descoberta dessa natureza intrinsecamente corrupta da sociedade provocava no heri um sentimento de repulsa e desiluso. Um sentimento de isolamento e amargura, que o impedia de aceitar a integrao a esta sociedade, cujos valores ele no podia e nem desejava compartilhar. Como diz Graeme Turner: A cumplicidade entre o indivduo e a sociedade eliminada, de modo que os heris dos faroestes profissionais [rtulo dado por Wright a esta nova fase do gnero] descobrem que a nica soluo para seu problema uma morte herica e quixotesca em defesa de seus cdigos e reputao pessoal. (TURNER, 1997, p. 95). O corpus da pesquisa de Wright inclui dois filmes de Leone. Wright no percebeu, contudo, que havia uma diferena crucial entre os anti-heris de Leone e os bandidos desiludidos, mas profundamente romnticos, dos westerns americanos dos anos 1960. Essa diferena era de ordem moral. Para os heris americanos, o cdigo de honra uma importante forma interna do gnero continuava a ser inescapvel. Desta forma, quando confrontados com a fraqueza moral da sociedade, os heris dos filmes americanos experimentavam uma desiluso to grande que s podia levar a duas sadas: a morte herica em um ato de auto- imolao como nos casos de Meu dio Ser Sua Herana (1969) e Butch Cassidy & Sundance Kid (Butch Cassidy, George Roy Hill, 1969) ou o isolamento auto-imposto fora da sociedade, caso de Mais Forte que a Vingana (Jeremiah Johnson, Sydney Pollack, 1972). Nos filmes de Leone, contudo, o heri lidava com a corrupo e a degradao social de maneira bem diferente. Ele tambm rejeitava o convvio social, mas no se isolava ou morria; passava a viver uma vida errante, cnica e individualista, onde o que realmente importava era o dinheiro. Para os heris de Leone, se a sociedade tem valores morais inferiores ao heri, este ltimo simplesmente a deixava para trs e seguia em frente, sozinho. Em outras palavras, dane-se a sociedade. A noo de releitura autoral do gnero um processo criativo que inclua a desconstruo sistemtica dos cdigos do gnero e a reconstruo crtica, livre da carga ideolgica que esses cdigos carregavam, ao mesmo tempo incorporando recursos particulares de estilo parece fundamental para demarcar o cinema de Leone como 123 importante no processo de reviso de esquemas narrativos que transcreveram para o meio audiovisual essa sensibilidade ps-moderna. Joe (Clint Eastwood), protagonista de Por um Punhado de Dlares, bem diferente do heri tpico dos westerns norte-americanos. Embora compartilhe com eles a percia no uso de armas de fogo e o distanciamento emocional em relao aos personagens que vivem em comunidade, todo o resto diferente. Ele mais violento, mais irnico, mais solitrio e, sobretudo, mais amoral. A cena de abertura do filme destaca essa diferena. Joe mostrado cavalgando em direo a um vilarejo humilde cuja paisagem prdios baixos e velhos localiza a ao dramtica num territrio inspito. No sabemos quem ele , mas sabemos que diferente do heri americano: a montaria e o figurino demarcam distncia considervel do western tradicional. Joe no cavalga um cavalo branco ou negro, mas uma mula (figuras 2.1 e 2.2) a montaria revisa ironicamente um cdigo do western. A roupa maltrapilha: calas velhas, poncho e chapu sujos, tudo coberto de poeira. Ao parar para beber gua (figura 2.3), Joe presencia uma cena que sinaliza a completa ausncia de autoridade legal na comunidade. Uma criana se esgueira para dentro de uma casa, de onde expulsa a chutes e tiros por dois homens que espancam o pai do garoto, morador do casebre em frente (figuras 2.4, 2.5 e 2.6). Joe observa tudo com expresso impassvel (figura 2.7). Ele percebe que h, na casa invadida pelo menino, uma mulher prisioneira. evidente que ali est sendo cometida uma injustia. Um dos espancadores nota a presena de Joe e se adianta, em atitude hostil (figuras 2.8 e 2.9), mas nenhum dos dois d uma palavra. Joe baixa o rosto e continua a beber gua, indiferente ao que ocorre ali (figura 2.10). Percebendo que ele no representa perigo, o agressor vai embora. A criana e o homem espancado entram em seu casebre e trancam a porta. A mulher, atrs da janela, olha para Joe com expresso reprovadora, mas ele apenas d de ombros (figuras 2.11 e 2.12). No problema dele. Na cena, podem ser encontradas diversas caractersticas recorrentes em Leone, mas a mais ostensiva o perfil do heri. A atitude displicente de Joe demarca uma distncia considervel entre ele e os protagonistas dos westerns americanos, onde a moralidade que se concretizava no cdigo de honra compartilhado por bandidos e heris praticamente exigiria que o heri reagisse quela barbaridade. Se assim o fizesse, o heri estaria chegando a uma comunidade cujos habitantes so essencialmente bons, mas fracos. Graas sua coragem e habilidade, ele seria capaz de eliminar as ameaas. Mas Joe no faz nada disso. Ele no sente a mnima vontade de se integrar sociedade. Alis, o prprio senso de comunidade no existe no filme. Com poucas 124 Figura 2.1: A primeira tomada de Por um Punhado de Dlares enfatiza o terreno seco e sem vida, por onde passa uma montaria sabemos que nela est o heri. Figura 2.2: A cmera se ergue e revela uma silhueta diferente do heri tradicional do western: roupa velha e suja, barba por fazer, ele est montado numa mula. Figura 2.3: A arquitetura das casas no lembra em nada os casares de madeira das cidades do western dos EUA: so casebres de tijolo caiados de branco. Figura 2.4: Dois pistoleiros chutam e atiram contra uma criana: releitura crtica de uma conveno de gnero, j que nos EUA a censura no permitiria essa cena. Figura 2.5: Armados com revlveres, os pistoleiros espancam o pai da criana a pontaps, sem que este, desarmado, tenha chance de reagir. Figura 2.6: A cmera se aproxima para mostrar um pontap na vtima, enquadrado em close-up: exemplo de representao grfica da violncia. Figura 2.7: O heri assiste ao espancamento sem esboar reao: amoral e individualista, o heri diferente do protagonista-padro do western nos EUA. Figura 2.8: No contra-plano, uma composio recessiva tpica de Sergio Leone: uma figura em primeirssimo plano e outra ao fundo, criando perspectiva. Figura 2.9: Percebendo a presena de Joe, um dos pistoleiros se adianta, numa atitude claramente hostil, esperando para ver se ele reagir: close-up extremo. Figura 2.10: Percebendo a reao do antagonista, Joe se apressa a beber gua e sinaliza que no pretende reagir ao espancamento covarde, reforando o perfil amoral. 125 Figura 2.11: Depois do espancamento, a mulher numa janela com grades olha para Joe, com expresso de desaprovao: ele poderia ter ajudado, mas no o fez. Figura 2.12: O anti-heri de Leone devolve o olhar com uma expresso neutra, quase cnica, enfatizando a mensagem: ele no tem nada a ver com aquilo. excees (o dono da taverna, o coveiro, o sacristo da igreja), quem mora na cidade pistoleiro (homens) ou viva (mulheres). H outros aspectos nesta cena que devem ser considerados. H, por exemplo, alusionismo e ironia. Esses elementos ficam evidentes no plano de abertura, que focaliza o cho pedregoso, sem vegetao, esturricado. Ouve-se o galopar de um animal. As patas entram em quadro (figura 2.1); a cmera faz um leve movimento para a direita e segue o cavaleiro, revelando aos poucos o ambiente: o vilarejo mexicano, com casas de estuque e tijolo, sem moradores vista. Uma cidade-fantasma. O enquadramento inicial e o movimento da cmera oferecem uma releitura do western tradicional em vrios nveis. Um deles a composio pictrica. Nos filmes americanos, a tomada de abertura quase sempre era um plano geral aberto que inseria o heri no ambiente. Leone reproduz esse procedimento ao mesmo tempo em que o critica com ironia, atravs do cenrio, do animal e do figurino maltrapilho: estamos num western muito mais grotesco. Outro aspecto importante desta cena a questo da representao da violncia. Leone registra uma ao que dificilmente seria permitida pelo Cdigo Hays. Dois pistoleiros chutam e atiram contra uma criana de cinco anos. Cenas de violncia contra crianas eram proibidas em filmes americanos. Em seguida, os dois pistoleiros espancam o pai dela com chutes e socos. Tudo isso s barbas do heri, que nada faz. Joe continua o seu caminho e entra na cidade, ouvindo o ressoar do sino de uma igreja; o som repetitivo acrescenta s imagens uma atmosfera desoladora. Ele passa por uma forca (figura 2.13). Observa as ruas desertas (figura 2.14) e cruza com a futura vtima do enforcamento (figura 2.15). Os moradores dos casebres olham para fora atravs de brechas de portas ou de janelas entreabertas (figura 2.16). Esto curiosos, mas evitam sair de casa. Tudo isso refora a idia de ausncia de um senso de comunidade. A ausncia desse senso fator importante na construo do perfil do heri de Leone, que tinha conscincia de estar revisando certas convenes do gnero. Ele explicava assim a introduo desse novo heri: 126 Figura 2.13: Joe entra na cidade montado numa mula e passa por uma forca; o badalo longnquo de um sino sublinha o clima lgubre e a atmosfera desoladora. Figura 2.14: A primeira rua: quase ningum fora das casas, sinalizando a completa ausncia do senso de comunidade, to importante no western dos EUA. Figura 2.15: O primeiro cavaleiro a cruzar com Joe passa sem cumpriment-lo; ele tem um cartaz pendurado s costas que o caracteriza como um condenado morte. Figura 2.16: De dentro das casas, os moradores espreitam a passagem do heri pelas portas e janelas: a populao do vilarejo vive intimidada pela violncia. [Antes] Voc no podia mostrar violncia porque o heri tinha que ser uma pessoa otimista, de moral positiva. No podia sequer represent-lo com realismo: os personagens principais tinham que se vestir como modelos de passarela. Eu introduzi um heri que tinha ndole negativa, era sujo, parecia um ser humano normal, e estava totalmente vontade com a violncia que o rodeava. (LEONE, 2000, p. 126). Mais frente, Joe passa por um grupo de pistoleiros que goza dele (no inteligente vagar longe de casa) e, num gesto aberto de hostilidade, atiram em direo s patas da mula que ele monta, da mesma maneira que os dois pistoleiros vistos na cena anterior haviam feito com o menino. Moral da histria: no existe mesmo nenhum tipo de autoridade naquela cidade. Mais uma vez, Joe parece impassvel, e no faz qualquer meno de revidar. Ele segue, entra na nica hospedaria da cidade e se apresenta a Silvanito (Jos Calvo), o dono do lugar, falando pela primeira vez (um seco ol) aos sete minutos e 51 segundos. A essa altura, tanto o ambiente onde transcorre a ao dramtica quanto o heri j esto bem delineados, assim como est demarcada a diferena entre este ltimo e sua contraparte norte-americana. Estamos em um lugar onde as regras habituais de civilizao no existem. As ruas vazias e os comentrios dos personagens confirmam que ali no h nada que lembre uma comunidade. A julgar pelo comportamento do heri, que no demonstra surpresa em encontrar esse cenrio, no se trata de uma exceo; embora tenha testemunhado dois acontecimentos em que a expectativa da violncia explcita, alm de moralmente injusta, Joe no esboou sinal de indignao. Ao contrrio. Aps alguns minutos de conversa com 127 Silvanito, inteirando-se do contexto social daquele lugar (dominado por duas gangues rivais), Joe j elaborou um plano para tirar proveito dele. Ento, ele se dirige manso que Silvanito indicou ser da gangue mais poderosa os Rojos , diz saber que eles esto contratando pistoleiros e pede que o observem. Em seguida, ele se dirige manso no lado oposto da rua, sede do grupo rival e lugar onde se encontra o grupo de pistoleiros que troou dele, minutos antes. De passagem pela hospedaria, Joe fala com o coveiro, que est na porta de entrada, pedindo que ele deixe trs caixes preparados. Hoje, com o perfil do heri apreendido pelas platias, ningum se surpreende com o que vem a seguir. Mas o tiroteio demarca uma srie de desafios ao sistema de cdigos do western, com a introduo de elementos de ironia, de uma encenao que fragmenta o espao flmico de maneira incomum, bem como de uma forma mais grfica de representao da violncia. Todos so recursos que revisam os esquemas estilsticos e narrativos do gnero, e se tornariam depois ferramentas da continuidade intensificada. Joe pra diante dos pistoleiros (figura 2.17) e desafia os quatro em tom debochado. Diz que no ficou chateado com a recepo violenta, mas que sua mula sim. Aps a reao hostil j prevista, ele os enfrenta num duelo clssico, sacando antes e acertando todos os quatro com tiros antes que qualquer um deles consiga revidar. Em seguida, se dirige taverna de Silvanito. Ao passar pelo coveiro, boquiaberto, pede desculpas: Errei a conta. Quatro caixes. Leone encerra o tiroteio, decupado de maneira bem diferente do que seria feito num western norte-americano, com uma piada irnica. A cena escancara o carter individualista de seu heri. Joe no est preocupado em defender os moradores. O plano que ele estabelece consiste em trabalhar alternadamente para as duas quadrilhas, de forma a ganhar dinheiro dos dois lados. O bem estar da comunidade no interessa em absoluto ao anti-heri de Por um Punhado de Dlares; ao se deparar com uma oportunidade de ganhar dinheiro, tudo o que ele deseja embolsar o mximo possvel. Esta cena tambm demarca uma maneira diferente de decupar um tiroteio um conjunto de escolhas estilsticas incomuns nos westerns de at ento. Leone alterna close-ups extremos de rostos (de Joe, dos pistoleiros e de algumas das testemunhas, como o garom e o coveiro, nas figuras 2.20 a 2.23), planos-detalhes (revlveres, mos e dedos, na figura 2.24) e poucos planos gerais e mdios (figuras 2.17 e 2.19), produzindo um efeito de fragmentao do espao e distenso do tempo flmico que se tornariam uma marca registrada. Nos planos gerais, Leone com freqncia registra as cenas utilizando grande profundidade de campo, encenando duas ou mais aes a diferentes distncias da cmera; uma delas sempre muito prxima (a figura aparece numa das bordas da imagem, 128 Figura 2.17: A cena inicia com um plano de conjunto em que dois bandidos emolduram Joe, mais atrs: composio recessiva com o protagonista no centro. Figura 2.18: No contra-plano, trs dos pistoleiros so mostrados em camadas diferentes, numa composio recessiva que enfatiza a profundidade de campo. Figura 2.19: Estabelecidas as relaes espaciais, Leone passa a fragmentar a cena em enquadramentos mais fechados, comeando com um plano mdio de Joe. Figura 2.20: O primeiro close-up extremo evoca uma conveno do western, com o chapu encobrindo os olhos e aumentando a aura de mistrio do heri. Figura 2.21: As testemunhas que assistem ao confronto so mostradas tambm em close-ups, os rostos queimados de sol aumentando a verossimilhana. Figura 2.22: Joe no tira o cigarro da boca nem para falar; o cigarro mastigado entre os dentes virou marca dos personagens que Eastwood fez para Leone. Figura 2.23: A atitude dos pistoleiros muda do deboche para a tenso, expressa pelo silncio; enquadramento combina close-up extremo com composio recessiva. Figura 2.24: A abundncia de close-ups extremos fragmenta o espao flmico e produz um efeito de dilatao do tempo que amplia a tenso. Figura 2.25: O uso da cmera baixa permite que Leone registre no mesmo plano os tiros sendo disparados e os pistoleiros atingidos caindo: desafio aberto censura. Figura 2.26: Composio visual recessiva tpica de Leone: mo em primeirssimo plano, vtimas num segundo plano distante, tudo registrado com nitidez. 129 funcionando como moldura dela) e outra fica distante. So composies recessivas (WLFFLIN, 2000, p. 101) com todas as camadas visuais mantidas em foco ntido. Quase sempre, quando esse recurso usado, as aes vistas em primeiro e segundo plano esto co-relacionadas, uma interferindo na outra. Por exemplo, em primeirssimo plano, entrando em quadro por um dos lados e servindo como uma moldura que dava profundidade ao quadro, fica uma figura (mo, revlver, coldre, nuca), enquanto ao fundo outras figuras reagem ao elemento em primeiro plano (figuras 2.25 e 2.26). Veremos no prximo captulo como influncias pictricas diversas (diretores como Eisenstein, Mizoguchi e Orson Welles, e tambm pintores dos quais Leone gostava) influenciaram esse tipo de composio pictrica. Por fim, a maior de todas as transgresses. Leone filmava no mesmo plano a arma disparando e a vtima atingida desabando (figuras 2.25 e 2.26). Esse procedimento estilstico sofria, em 1964, um limite de censura. Um cineasta americano no podia filmar dessa maneira. O Cdigo Hays proibia esse procedimento. Num tiroteio de filme de Hollywood, a bala saindo do revlver e seu efeito (a vtima sendo atingida) tinham obrigatoriamente que ser mostrados em tomadas diferentes, para que o corte entre os dois planos suavizasse a violncia da situao dramtica. Mas Leone estava livre desse limite, j que trabalhava na Itlia e sem nenhuma obrigao contratual com estdios dos Estados Unidos. Ao insistir em no cortar no momento dos tiros, ele tambm realizava uma representao mais realista da violncia. Foi a partir de cenas como essa que os filmes de Leone passaram a ser acusados, pela crtica da poca, de transformar a violncia em pura retrica, em espetculo sem significado moral. Essa forma grfica de representar a violncia, contudo, recorrente nos demais filmes de Leone, tem relao direta com a relativizao dos limites morais (pr-condio que tambm produziu o perfil ambguo do heri) e mostrou-se muito influente no cinema das prximas dcadas. Nesta cena em particular, Leone adaptou a composio recessiva com moldura e profundidade de campo violao deliberada de uma conveno estilstica do western norte- americano: a tomada que mostra Clint Eastwood atingindo os quatro pistoleiros foi composta com a mo do ator em primeirssimo plano, para que o pblico pudesse ver detalhadamente os quatro disparos do revlver, enquanto os atores que interpretam os viles vo caindo, sucessivamente, em segundo plano, dentro da mesma composio imagtica. No h cortes. Ao filmar as quatro mortes numa nica tomada, Leone conseguia trs objetivos: relia criticamente um cdigo do western, enfatizava a expertise do seu anti-heri, e concebia um plano de composio pictrica inventivo. 130 O novo heri, a ironia e a questo da violncia contriburam para que os filmes de Leone recebessem, na poca, um julgamento negativo de valor. No entanto, com o recuo proporcionado pelo tempo, possvel observar (e a prpria crtica o fez, a partir dos anos 1970) que esses recursos concretizavam a sensibilidade ps-moderna. Outras trs cenas de Por um Punhado de Dlares levaram a crtica a pensar que Leone estava indo longe demais na questo da representao da violncia. A primeira mostra o massacre de uma tropa de soldados mexicanos cometido pelo lder dos Rojos, Ramn (Gian Maria Volont). A segunda uma cena, em que Joe invade um casebre para libertar a mulher prisioneira (Marianne Koch) vista no incio do filme. Ele o faz matando cinco homens, um dos quais baleado queima-roupa enquanto est ferido e desarmado espcie de heresia que violava o cdigo de honra do western norte-americano. A terceira mostra Joe sendo espancado pelos Rojos, numa longa seqncia recheada de close-ups sangrentos. A violncia em si no chegou a ser um problema na primeira cena (figuras 2.29 e 2.31). No se v sangue em nenhuma tomada. Ela mais chocante pela quantidade de mortes e pela gratuidade com que os soldados so dizimados por um s homem, armado com uma metralhadora (figuras 2.27 e 2.28). Volont interpreta a cena com modos sdicos: enquanto maneja a arma, ele gargalha incontrolavelmente, o prazer em matar visvel no seu rosto (figuras 2.30). Depois da matana, a cena acaba com o nico sobrevivente tentando escapar. Ramon o acerta de longe, praticamente sem mirar (figura 2.32). A cena o estabelece como vilo, contrapondo sua habilidade com um rifle do heri com revlveres. Numa leitura apressada, aos olhos de espectadores menos atentos, poderia parecer no haver diferena entre heri e vilo. Afinal, os dois no sentem nenhum pudor em apertar o gatilho para arrecadar dinheiro. Leone soluciona o dilema com esta cena, enfatizando um aspecto psicolgico: Ramon um psicopata. Gosta de matar, sente prazer com isso. Joe no; s mata quando tem algo a ganhar. No chegava a ser uma grande diferena num universo to violento e individualista (para a crtica da poca, um western com heri e vilo to parecidos era um escndalo de amoralidade), mas demarcava uma distncia narrativa importante. Aps essa cena, h um longo interldio que enfatiza a amoralidade de Joe. Ele monta um plano para forar um confronto entre os dois grupos rivais, atraindo ambos para um confronto no cemitrio da cidade. Enquanto as gangues duelam, a cidade fica vazia, de forma que Joe ganha tempo e oportunidade para procurar o esconderijo do ouro roubado pelos Rojos. O heri no est interessado em livrar o vilarejo dos viles, mas simplesmente em pegar o dinheiro para si. Sua motivao individual, completamente fora da lei, e demarca fortemente o no-pertencimento sociedade. 131 Figura 2.27: Leone inicia a cena com um plano de conjunto tradicional, que enfatiza (em primeiro plano) Joe e o amigo espionando o acampamento militar. Figura 2.28: Tomadas subjetivas que mostram a viso do assassino (compostas com moldura e em profundidade de campo) so freqentes na cena. Figura 2.29: Embora no seja possvel ver sangue em uma s tomada, a coreografia de quedas montada pelos dubls italianos refora a idia de violncia excessiva. Figura 2.30: Leone registra em planos mdios a expresso de prazer e gozo de Ramn, que maneja a metralhadora com gosto, fazendo dele um psicopata. Figura 2.31: O massacre cometido por um nico homem pode ser interpretado como uma crtica indireta ao uso da tecnologia nas guerras travadas em solo europeu. Figura 2.32: Ramn encerra o massacre abatendo com um tiro certeiro o nico sobrevivente; o pblico percebe que o vilo tem uma mira to boa quanto o heri. A ausncia do cdigo de honra caracterstico do western explicitada de forma mais ostensiva numa cena mais frente, em que o personagem se compadece da situao difcil da famlia com a qual cruzou na cena de abertura (j analisada). Depois de presenciar outras humilhaes, Joe decide intervir e libertar a famlia. Um heri tradicional de faroeste no precisaria explicar essa interveno, pois ela seria natural e esperada pelo pblico; um homem to individualista quanto Joe, porm, tem que faz-lo e o faz de maneira lacnica, mas reveladora: Conheci uma pessoa como voc, e no havia ningum l para ajudar, diz, na nica frase pronunciada por ele em todo o filme que alude a um episdio (misterioso) do passado. Ser que a desiluso, a solido e a impassividade de Joe advm de um trauma pessoal que ele jamais superou? Propositalmente, Leone no responde a essa questo. Ele no est interessado em psicologizar o personagem. Esta cena tambm exemplifica a construo da narrativa atravs 132 Figura 2.33: Composio recessiva com profundidade de campo: Joe (em primeiro plano) invade o casebre onde pistoleiros (segundo plano) mantm uma mulher refm. Figura 2.34: Enquadrado em plano mdio e sem demonstrar sinais de medo ou nervosismo, Joe abre fogo assim que os cinco pistoleiros ameaam reagir. Figura 2.35: Quatro pistoleiros esto mortos e um, ferido, ainda vive; mesmo com ele desarmado, Joe abre fogo e viola uma conveno do western tradicional. Figura 2.36: Leone inclui um plano prximo do pistoleiro morto, para acentuar ainda mais a operao de reviso de um esquema do gnero que acabou de efetuar. da tcnica do alusionismo; s que aqui, ao invs de aludir a algum western do passado, Leone insere uma das muitas referncias bblicas no filme (a criana se chama Jesus, e o episdio evoca a passagem de Herodes descrita no Novo Testamento), sugerindo uma leitura do personagem de Clint Eastwood como uma espcie de anjo vingador. Ainda no se trata de pastiche, mas o alusionismo evidente. Para conseguir a vingana, Joe precisa usar sua habilidade com as armas. Ele invade o casebre e atira nos pistoleiros (figuras 2.33 e 2.34). Enquanto destri a casa, percebe que um dos cinco ainda se move, mesmo ferido. Joe saca o revlver e atira nele queima-roupa (figuras 2.35 e 2.36). Na poca, essa cena era capaz de causar indignao. Nos filmes americanos, o heri sempre demonstrava respeito para com o rival, e jamais atirava em algum desarmado, muito menos se ele estivesse ferido. O terceiro momento transgressor o espancamento de Joe pelos capangas dos Rojos. A cena dura dois minutos e 39 segundos (159 segundos). o momento mais sangrento de Por um Punhado de Dlares. Leone registra o espancamento nos mnimos detalhes, iniciando com um close-up extremo do rosto ensangentado de Clint Eastwood (figura 2.37). Na banda sonora, a violncia sublinhada e amplificada pela risada manaca que um dos integrantes da gangue jamais interrompe em nenhum momento da agresso, um som que proporciona ainda continuidade temporal s tomadas da agresso (figura 2.38). Eastwood leva chutes, socos, tem a mo queimada e pisoteada (figuras 2.39, 2.40, 2.41 e 2.42). Esta outra subverso de um cdigo do western. Nos filmes norte-americanos, o 133 Figura 2.37: A cena de espancamento de Joe dura 159 segundos e inclui uma srie de close-ups extremos do rosto ferido: representao grfica da violncia. Figura 2.48: Durante o espancamento, um dos integrantes da gangue dos Rojos permanece gargalhando histericamente, enquanto o heri sofre. Figura 2.39: Um dos capangas da gangue atira Joe ladeira abaixo; ao fundo, o som insistente da gargalhada refora o ambiente de intimidao e violncia. Figura 2.40: Numa das pausas do espancamento, o autor das gargalhadas provoca uma queimadura na mo do heri com uma ponta de cigarro aceso ... Figura 2.41: ... e j que o heri no tem mais foras para se levantar, passa a ser agredido com chutes e pontaps pelo restante da gangue, aumentando o sadismo. Figura 2.42: O plano-detalhe que encerra a cena do espancamento mostra um dos pistoleiros quebrando os ossos da mo esquerda de Joe com a bota. heri sempre enfrenta dificuldades para cumprir sua tarefa, mas nunca submetido a tanta violncia. O grau de violncia (acentuada pelo sangue e pelos ngulos de cmera mais prximos) leva a encenao em direo continuidade intensificada. 2.2 Dupla de anti-heris Em seu segundo western, Leone repetiu o perfil do heri e intensificou a construo narrativa em larga escala, criando dois protagonistas que dividem o tempo de tela e bifurcam a trama em duas narrativas paralelas. Os heris de Por uns Dlares a Mais so igualmente solitrios, implacveis e tecnologicamente avanados. A diviso do protagonismo era um passo em direo narrativa em rede, outra caracterstica da continuidade intensificada. A narrativa em rede consiste, para Bordwell (2006, p. 89), em enredos cujo protagonismo dividido entre mais de um personagem. Essa construo narrativa era 134 praticada desde Grande Hotel (Edmund Golding, 1932), s que de forma menos enftica quase sempre era possvel reconhecer um, entre os personagens importantes, que detinha o ponto de vista da histria, de forma que se pressentia nele um protagonista oculto e numa quantidade menor de filmes. Nos anos 1960, a diviso do protagonismo comeava a ser mais explorada, e com graus maiores de nfase. o que acontece em Por uns Dlares a Mais, onde o tempo de tela e o ponto de vista da narrativa so divididos igualmente. Entre os dois heris existe rivalidade, mas tambm respeito. Entretanto, ambos so igualmente individualistas. No esto interessados em valores sociais. Da a profisso que os dois cultivam: caadores de recompensas uma profisso que, a partir deste filme, se tornou uma espcie de clich narrativo onipresente nos enredos dos spaghetti westerns (e tambm de alguns faroestes norte-americanos posteriores). A seqncia de abertura de Por uns Dlares a Mais oferece um exemplo simples, e ao mesmo tempo bastante rico, do perfil do heri de Leone e da vontade do diretor em revisar criticamente os esquemas do western, quase sempre atravs da ironia e do distanciamento crtico. O mais interessante que nenhum dos protagonistas aparece em quadro. A tomada mostra, a grande distncia e de ngulo alto, um cavaleiro cruzando uma plancie deserta (figura 2.43). Esta imagem bate com a tpica cena de abertura dos faroestes tradicionais norte-americanos, que quase sempre comeam com um plano de conjunto mostrando o heri e o ambiente onde a ao dramtica ocorre. No entanto, apenas alguns segundos so necessrios para que seja possvel perceber algo diferente. No filme italiano no h a tradicional msica sinfnica. No lugar da msica, pode-se ouvir, atravs do canal central do sistema sonoro, uma srie de rudos: um assobio, um rifle sendo engatilhado, um cigarro acesso e depois tragado. Esses rudos sinalizam ao espectador que a cmera no representa uma viso objetiva da ao dramtica, mas sim um ngulo subjetivo. O uso de sons fora do quadro indica que compartilhamos o ngulo de viso de algum que pertence diegese, algum cujo olhar o olhar da cmera. Quem seria ele? A continuidade da longa tomada esclarece o mistrio. Ouve- se um tiro de espingarda cujo eco percorre toda a plancie. O cavaleiro que galopa distncia cai do cavalo (figura 2.44). Est morto. Os crditos aparecem, acompanhados da msica de sabor satrico de Morricone, com tiros de espingarda e galopes de cavalo demarcando a percusso e abrindo buracos de bala nos ttulos (figura 2.45), outro elemento de ironia acrescentado por Leone, num jogo inteligente entre a diegese (os tiros) e a extra-diegese (a brincadeira com os grafismos, representados pelos crditos). 135 Figura 2.43: A abertura de Por uns Dlares a Mais parece aludir a uma conveno do western tracional: a tomada de ngulo alto do heri cavalgando no deserto. Figura 2.44: Leone subverte essa conveno atravs dos sons fora do quadro de um pistoleiro armando um rifle; o homem no cavalo abatido com um tiro em seguida. Figura 2.45: Ao introduzir a msica e os crditos, Leone cria um jogo entre o diegtico e o extra-diegtico, fazendo o som dos tiros funcionar como percusso ... Figura 2.46: ... enquanto os crditos so perfurados seguidamente pelas balas; a cena termina com o nome dele prprio sendo abatido pelos disparos do heri. Esse mesmo jogo entre a diegese e a extra-diegese aparece na melodia principal, inicialmente assobiada pelo assassino dentro da diegese, e depois solada (tambm com assobios, numa dupla aluso ao personagem que acabara de matar o cavaleiro e ao filme anterior de Leone, cujo tema central era assobiado) dentro da cano de abertura (ou seja, fora da diegese). O nome de Leone, no final dos crditos, abatido a tiros (figura 2.46). S ento surge o letreiro que esclarece a longa tomada de abertura: Onde a vida no tem valor/A morte, s vezes, tem um preo/ por isso que os caadores de recompensa apareceram. Alm do uso dos sons fora de quadro e da utilizao da ironia na construo narrativa (atravs tanto das imagens quanto do som), importante assinalar a releitura crtica de uma conveno do western, que a inverso da tomada panormica de abertura como momento de apresentao simultnea do heri e do cenrio. Ao evocar a tradio da tomada panormica de ngulo alto um dos planos preferidos de John Ford, repetido em filmes como Rastros de dio (1956) e Legio Invencvel (She Wore a Yellow Ribbon, John Ford, 1949) , Por uns Dlares a Mais incentiva o espectador a pensar que o cavaleiro que ele v distncia seria o protagonista do filme, como ocorre em quase todos os westerns norte-americanos. Em seguida, Leone deliberadamente subverte essa expectativa ao fazer com que o cavaleiro seja atingido por um tiro e morra. Se morre, ele no o heri. E se o heri est sempre presente nessa tomada de abertura, ento ele o homem fora do quadro, o caador de recompensas, como esclarece o letreiro que finaliza a cena. Um homem que se esconde para abater outro, cuja chance de defesa nula, quase como se estivesse numa caada de animais 136 algum cuja moralidade , no mnimo, duvidosa. No importa se a vtima do disparo era um criminoso; importa que ele no teve chance de se defender. O cdigo de honra do western americano mais uma vez deixado de lado. O efeito pretendido confundir o espectador atravs da violao explcita de uma conveno para, a partir da, lev-lo a questionar o uso dos cdigos do gnero no restante da narrativa alcanado atravs de da combinao de encenao simples (um plano-seqncia com a cmera fixa, recurso de estilo comum at os anos 1940 mas em desuso nos anos 1960), sons fora do quadro, msica que incorpora rudos da diegese e intervenes grficas (os crditos perfurados pelos tiros ouvidos na trilha sonora). No custa lembrar que esse procedimento subverter as convenes de gnero deve ser compreendido como uma tentativa consciente de estabelecer e levar a cabo um projeto autoral calcado nas noes de intertextualidade e estilo: ao recorrer ao repertrio de convenes estabelecido e reconhecvel, e ao mesmo tempo question-lo (atravs da ironia e do alusionismo, principalmente), Leone est realizando um jogo interno entre elementos familiares e elementos novos est inscrevendo autoria dentro do gnero. A ironia, outro recurso narrativo importante, fica mais clara na cena seguinte, em que o pistoleiro fora de quadro apresentado. A cena acontece num trem. O plano de abertura mostra uma Bblia (figura 2.47). Sem ter o rosto vista, o homem que est atrs da Bblia pergunta ao bilheteiro do trem, que passa no vago onde ele se encontra, em quanto tempo o veculo passar por Tucumcari. Trs ou quatro minutos, responde o bilheteiro. O rosto do passageiro permanece escondido atrs da Bblia. Ele est vestido de preto, de onde se supe que se trata de um padre ou de um reverendo. Este um cdigo de figurino integrante do repertrio de convenes do gnero western. O passageiro que est sentado no banco vizinho, de frente para ele, puxa conversa (figura 2.48), dizendo que o trem no far parada em Tucumcari. S ento o misterioso personagem abaixa a Bblia, revelando ao mesmo tempo para o espectador e para o passageiro tagarela a expresso carrancuda do ator Lee Van Cleef (figura 2.49). Este trem vai parar em Tucumcari, decreta com firmeza, levantando-se. O reenquadramento operado nesta ltima tomada, que dura apenas dois segundos, um exemplo da forma econmica com que Leone usava os primeirssimos planos para gerar um efeito intertextual que ao mesmo tempo evocava um esquema de gnero e o subvertia. A tomada inicia com um close-up extremo do rosto de Lee Van Cleef, ressaltando a expresso confiante. Ento o ator se levanta e ajusta o casaco preto, deixando entrever um revlver Colt e um cinturo de balas (figura 2.50). 137 Figura 2.47: Vestido de negro e com o rosto escondido atrs de uma Bblia, o Coronel Mortimer introduzido no filme como se fosse um padre ou reverendo. Figura 2.48: O passageira sentado no banco da frente do trem puxa conversa com o padre, informando-o que a trem no vai parar na cidade que o destino dele. Figura 2.49: Close-up extremo do rosto mau-humorado revela (ao passageiro e ao pblico) que no se trata de um padre: reviso crtica do gnero atravs da ironia. Figura 2.50: O ator se ergue e seu gesto, associado ao reenquadramento, deixa o pblico ver um revlver: ele o caador de recompensa ouvido na cena anterior. Neste caso, Leone usa o figurino para confirmar o pertencimento do filme ao gnero, ao mesmo tempo em que o subverte pela ironia: roupas negras sempre foram tradicionalmente reservadas para personagens violentos, nos westerns americanos, mas padres (personagens naturalmente opostos idia da violncia) tambm usam roupas negras. este tipo de jogo intertextual (no caso, com o figurino) que permite a Leone inscrever uma marca autoral na narrativa sem dissoci-la do gnero. A ironia tambm est presente na cena seguinte, cuja funo narrativa parece ser, mais do que confirmar a profisso de caador de recompensas, enriquecer a caracterizao do personagem. Na estao de Tucumcari, Lee Van Cleef se dirige cabine do bilheteiro, onde ao lado est colado um pster oferecendo uma recompensa de US$ 1.000 (figura 2.51) por um assassino. Enquanto o bilheteiro ri de uma piada (figura 2.52), o homem vestido de negro mantm a expresso fechada (figura 2.53); descola cuidadosamente o pster da parede (figura 2.54) e guarda. O bilheteiro pra de sorrir. O personagem de Van Cleef se chama Coronel Mortimer. um ex-oficial do Exrcito Confederado (derrotado na guerra civil) que virou caador de recompensas. As trs cenas analisadas aqui tm o objetivo narrativo principal de estabelecer a personalidade dele, sem qualquer eixo de ligao com a ao dramtica (nesse ponto, a construo narrativa evoca outra caracterstica da continuidade intensificada, em que os eventos que compem a trama 138 Figura 2.51: O cartaz, com prmio oferecido pela captura de um criminoso aumentado pelo prprio, exemplo da ironia com que Leone tratou o western. Figura 2.52: O bilheteiro, sorrindo (e enquadrado num close-up que fragmenta o espao flmico), afirma que ningum tem coragem de enfrentar o assassino. Figura 2.53: A expresso do Coronel Mortimer (tambm enquadrado em close-up), que olha para o bilheteiro sem se perturbar, faz o outro homem parar de sorrir. Figura 2.54: O gesto cuidadoso que ele faz em seguida descolar e guardar o cartaz de recompensa permite antever a personalidade metdica do personagem. possuem ligaes mais frgeis). E esta personalidade se ajusta perfeitamente atitude amoral, individualista e violenta do protagonista de Por um Punhado de Dlares. Mortimer vive e trabalha sozinho. No demonstra nenhuma vontade de integrar-se sociedade da o carter taciturno. Sua rotina consiste em viajar de cidade em cidade, procura de malfeitores a capturar. A postura passa a noo de calma mesmo nas situaes de tenso, o que denota experincia; trata-se de algum que vive essa rotina violenta h muito tempo, e j se acostumou com ela. Para se proteger dos perigos que a rotina lhe impe, Mortimer se mostra paciente e meticuloso com tudo o que diz respeito proteo pessoal as roupas limpas e o zelo que demonstra ao descolar o cartaz da parede e dobr-lo com cuidado, por exemplo, so sinais visuais desse pragmatismo. Essa personalidade pragmtica manifestada de forma mais ostensiva em cenas subseqentes, que enfatizam o domnio tecnolgico do personagem. Ele possui lunetas para observar os inimigos (figura 2.55), e mantm limpo um arsenal de rifles desmontveis (figura 2.56). Quando precisa abrir um cofre, recorre tecnologia usa um cido que corri as trancas internas, abrindo o cofre sem danificar o dinheiro. Esse aspecto do domnio da tecnologia no apenas demarca uma distncia considervel dos heris dos filmes americanos (os quais, em geral, desgostam da necessidade de usar armas de fogo, embora sejam bons no manejo delas), mas tambm explicita a aproximao do heri do spaghetti western ao contexto social dos anos 1960, quando a sociedade estava mais exposta a imagens de violncia por conta da televiso e de outras 139 Figura 2.55: Durante todo o filme, o Coronel Mortimer carrega consigo um arsenal de revlveres e rifles desmontveis, que ele limpa todas as noites. Figura 2.56: Caador de recompensas experiente, ele sabe que quem lida com a morte s fica vivo se for dominar as mais recentes tecnologias da violncia. mdias de massa (era a poca da Guerra Fria, dos confrontos no Leste europeu, dos conflitos blicos na Coria e no Vietn), e cuja urbanizao acelerada no apenas enfatizava a importncia da tecnologia, mas disparava uma onda de hedonismo e competitividade social que isolava cada vez mais os indivduos. Mortimer tambm personifica outro aspecto-chave da obra de Leone, que o dilogo por vezes paradoxal e contraditrio entre passado e futuro, entre tradio e modernidade. Se por um lado o ex-oficial confederado incorpora os traos amorais do novo heri, por outro mantm um p no passado; quando a trama principal revelada, consistindo na perseguio a um assaltante chamado El Indio (Gian Maria Volont), descobrimos aos poucos que ele tem uma motivao pessoal para querer capturar o bandido: vingana. Essa descoberta acontece atravs de flashbacks progressivos, avano em direo fragmentao cronolgica do enredo, caracterstica da continuidade intensificada na construo narrativa em larga escala. Nesse ponto, essencial chamar a ateno para um ponto importante: o cinema modernista europeu dos anos 1960 vivia, de maneira geral, uma tendncia fragmentao da narrativa flmica, tanto do ponto de vista cronolgico quanto do nmero de personagens. O primeiro aspecto era conseguido atravs do uso de flashbacks. David Bordwell rastreia o incio do uso desse recurso duas dcadas antes que Leone comeasse a dirigir: Nos anos 1940, apesar de os manuais de roteiros mandarem escritores evitarem flashbacks, os filmes estavam cheios deles (BORDWELL, 2006, p. 89). A influncia de Cidado Kane (1941), nesse caso, no pode ser desprezada. No entanto, foi nos anos 1960 que essa tendncia passou a ser intensificada. As experincias de Alain Resnais sobretudo nos filmes Hiroshima Mon Amour (Alain Resnais, 1959) e O Ano Passado em Marienbad (L'anne Dernire Marienbad, Alain Resnais, 1961) com a desconstruo da narrativa incentivaram roteiristas e diretores a fragmentar ainda mais o enredo, e de modo mais ousado. Essa fragmentao se dava tanto numa dimenso cronolgica (a narrativa cronologicamente linear dava lugar a filmes recheados de flashbacks, nem sempre motivados por lembranas de personagens ou por alguma exigncia do roteiro) 140 quanto em termos de unidade narrativa, expressa atravs do desenvolvimento de maior nmero de personagens, eventualmente dividindo o protagonismo do filme entre alguns deles. Como j vimos, essa prtica narrativa gerou as chamadas narrativas em rede, que se tornariam mais complexas a partir dos anos 1970. Sergio Leone deu sua contribuio ao processo de fragmentao da narrativa, experimentando suas duas principais variaes. Mas voltemos, por enquanto, questo do perfil do heri. Segundo Will Wright (1975), a temtica da vingana proliferou no western a partir do incio dos anos 1950 e se tornou bastante comum na dcada seguinte, aparecendo em filmes como Winchester 73 (1950), Um Certo Capito Lockhart (The Man From Laramie, Anthony Mann, 1955) e A Face Oculta (One-Eyed Jacks, Marlon Brando, 1960), todos protagonizados por homens torturados por traumas do passado e em busca de vingana. Edward Buscombe detalha esta mudana no perfil do heri da seguinte maneira: No enredo clssico o heri, que est de incio fora da sociedade, forado a entrar nela porque a sociedade desafiada e no consegue se defender sem a ajuda de um homem forte. No enredo de vingana, o heri forado a sair da sociedade para perseguir sua vingana. Os viles continuam a ser anti- sociais, mas representam uma ameaa mais para o heri em si do que para a sociedade como um todo, que agora permanece mais bem estabelecida. Ao perseguir sua vingana, o heri entra em conflito com os valores sociais. (...) O enredo de vingana, portanto, aponta para uma incompatibilidade crescente entre o heri e a sociedade. (BUSCOMBE, 1988, p. 211). A ltima frase deixa evidente a distncia existente entre o heri do western norte- americano e o anti-heri do spaghetti western. O primeiro obrigado a deixar para trs a sociedade, de modo a perseguir a vingana sem sofrer uma condenao de ordem moral; ele est livre para retornar ao convvio social quando conquistar essa vingana, ou se desistir dela. Isso acontece, por exemplo, no ciclo de sete filmes de Budd Boetticher protagonizados por Randolph Scott, como Sete Homens Sem Destino (1956), e na srie de cinco ttulos de Anthony Mann estrelando James Stewart, entre os quais Regio do dio (The Far Country, Anthony Mann, 1954). Neles, a incompatibilidade crescente entre o heri e a sociedade, como aponta Buscombe, apenas temporria. Nada disso ocorre no mundo de Leone, onde o senso de civilizao a sociedade para onde o heri pode voltar aps o acerto de contas com os traumas do passado est ausente. Sem dvida, os heris de Boetticher e Mann influenciaram concretamente o trabalho de Leone; no entanto, trabalhando longe dos limites impostos por Hollywood e influenciado (conscientemente ou no) pela contracultura irreverente da Europa, que funcionava como pr- condio para o desenvolvimento de recursos estilsticos, Leone pde levar essa 141 incompatibilidade entre heri e sociedade a um patamar mais intenso. A dissociao entre heri e sociedade definitiva. No permite um retorno, porque no h para onde retornar. O western americano compartilhava da mesma representao social, em que a sociedade era vista como corrupta e hedonista, minimizando dessa forma os laos sociais e afetivos entre os indivduos. Mas a cultura norte-americana tratava de enfatizar o heri como um guardio nostlgico de uma sociedade antiga, cujos valores morais eram mais puros e positivos. Vendo o mundo se tornar mais cnico, esses homens freqentemente buscavam uma morte honrosa ou passavam a viver isolados. Leone partiu da mesma percepo a urbanizao que isolava os indivduos e props uma leitura diferente, em que o heri observava a corrupo com cinismo, dava as costas para a sociedade e passava a levar uma vida errante e amoral. Para sobreviver num ambiente hostil, ele tinha que se acostumar com a violncia. Tinha que domin-la. Essas caractersticas esto sintetizadas em Mortimer. Seu individualismo taciturno empresta traos do carter estico dos heris de Boetticher, e possvel vislumbrar a influncia dos heris traumatizados do western psicolgico dos anos 1950, mas Leone revisava esse esquema ao misturar essas caractersticas com ironia, senso de humor negro, religiosidade crist um trao da cultura italiana tambm perceptvel na grande quantidade de simbologia religiosa presente nos filmes e uma irreverncia quase juvenil, cuja origem est na contracultura europia da poca. No se pode negar a influncia do zeitgeist na criao do perfil do heri de Leone. A percepo da decadncia da sociedade contribuiu para que ele criasse um heri que captasse essa nova sensibilidade. A atmosfera crtica dos anos 1960, ento, aparece como uma pr- condio importante do desenvolvimento de escolhas narrativas e estilsticas do cinema de Leone. Talvez tenha sido por isso que os filmes de Leone, e os spaghetti westerns em geral, fizeram sucesso de pblico. A audincia estava vendo algo que no era apenas plasticamente bonito, mas que tinha ressonncia na experincia social da vida urbana daquela dcada. Em Por uns Dlares a Mais, Mortimer divide a cena com um segundo heri: Monco (Clint Eastwood). Este ltimo o mesmo personagem que liderava a ao dramtica do filme anterior, apesar do nome diferente. Sergio Leone deixa isto evidente ao repetir o figurino (poncho marrom, chapu e jeans empoeirados) e os maneirismos do personagem (o hbito de andar com pontas de cigarro nos bolsos ou no canto da boca, que acende sempre antes de pronunciar alguma frase irnica; os gestos largos e o andar preguioso, contrastando com a velocidade e a preciso necessrias nos momentos em que a violncia irrompe; o carter taciturno, de poucas palavras; e o humor negro). 142 Para acentuar ainda mais a semelhana, Leone introduz o personagem em uma cena que consiste numa variao do primeiro tiroteio de Por um Punhado de Dlares. O paradigma do problema/soluo de David Bordwell se aplica perfeitamente a este exemplo. A cena constitui um problema de representao de natureza idntica ao outro caso: o personagem se apresenta de forma irnica a um grupo de pistoleiros que no lhe conhece e deixa um carto de visitas ensangentado, baleando quatro deles. A maior diferena para o filme anterior o cenrio. Em Por um Punhado de Dlares, a cena de apresentao do heri acontece na rua; em Por uns Dlares a Mais, ocorre dentro de uma taverna (o cenrio repleto de figurantes sinaliza o oramento mais generoso que Leone teve disposio). Monco chega cidade de White Rocks em meio a uma tempestade; o incio da primeira tomada da cena sincronizado na trilha sonora com o ribombar de um trovo (figura 2.57), num plano de conjunto criado a partir de um movimento de cmera ostensivo, que chama a ateno para si. Esse tipo de plano, alis, aparecera apenas uma vez em Por um Punhado de Dlares (introduzindo a seqncia do duelo entre Joe e Ramon), passou a ser muito utilizado por Leone nos filmes seguintes. Trata-se de um movimento de cmera tornado famoso em E o Vento Levou (Gone With the Wind, Victor Fleming, 1939); uma reminiscncia do perodo clssico do cinema, tendo sido comum nas grandes produes de Hollywood dos anos 1940 e 1950. Esta uma evidncia de que o repertrio de escolhas estilsticas de Leone baseava-se na soluo disponvel mais eficiente (revisada e intensificada, se necessrio), e no exclusivamente no zeitgeist. Ele usava o que tinha mo, independente da origem. Monco est vestido com o poncho do filme anterior. O nome do personagem outro, mas o figurino e os gestos so idnticos. Mesmo ensopado, ele acende o indefectvel cigarro, levantando levemente o chapu de modo que os olhos apaream apenas no final da tomada o mesmo gesto feito segundos antes do primeiro tiroteio de Por um Punhado de Dlares (figura 2.58). Depois, entra no saloon. Ele aborda um freqentador e pergunta por um conhecido ladro. Leone providencia a resposta, antes que o homem responda pergunta, dentro da prpria composio recessiva da tomada: Monco e o interlocutor tm as cabeas nas extremidades do quadro, enquanto a rea central focaliza, em segundo plano ntido, uma mesa com quatro jogadores. Todos usam roupas escuras, menos o que est de costas para a cmera; este veste um colete dourado, e est no centro da imagem (figura 2.59). o bandido, claro. Monco se dirige at a mesa. Sem falar, agarra o baralho e distribui as cartas apenas entre ele e o bandido procurado (figuras 2.60). Os outros sujeitos na mesa se 143 Figura 2.57: Erguida por grua, imagem revela toda a cidade: movimento de cmera ostensivo uma ferramenta de estilo que remonta aos anos 1930. Figura 2.58: Primeira apario de Monco (Clint Eastwood) evoca Joe, de Por um Punhado de Dlares: poncho, cigarro e chapu encobrindo olhos. Figura 2.59: Monco pergunta onde est o criminoso, e a composio recessiva j d a resposta: o homem est centralizado em segundo plano (colete dourado). Figura 2.60: Sem dilogos, o jogo de intimidao praticado por Monco encenado por Leone atravs de planos-detalhes de mos e cartas de baralho ... Figura 2.61: ... alm de uma decupagem que privilegia os close-ups e a troca de olhares; a tcnica fragmenta o espao e provoca a sensao de tempo distendido. Figura 2.62: Em p, filmado em contra-plong, Monco domina a encenao; o bandido, sentado, est subjulgado e filmado em plong (ver figura anterior). Figura 2.63: Quando a pancadaria comea, Leone troca os close-ups e planos-detalhes por planos gerais e mdios, enquanto os atores percorrem todo o bar. Figura 2.64: Durante a luta, Monco atinge o criminoso com um golpe de carat uma citao divertida aos filmes asiticos de artes marciais dos anos 1960. Figura 2.65: No momento em que Monco subjulga o adversrio, a composio enquadra a porta de entrada, do lado direito, provocando a expectativa de que... Figura 2.66: ... algum entre por ali, o que acontece poucos segundos depois trs pistoleiros aparecem para resgatar o homem que Monco dominou. 144 Figura 2.67: O pistoleiro no centro, filmado em extremo close-up, ordena que Monco largue o comparsa; ele tem apenas metade da barba feita, num toque de ironia. Figura 2.68: Encenao do tiroteio similar composio recessiva usada em Por um Punhado de Dlares: tiros e vtimas dentro do mesmo quadro. Figura 2.69: Ainda resta o criminoso que estava no bar desde o incio; embora ele esteja ferido e desarmado, Monco o mata com um tiro a sangue-frio ... Figura 2.70: ... numa tomada em que vtima e agressor esto, de novo, enquadrados no mesmo plano. A cena termina com um plano-detalhe do revlver no coldre. entreolham, sem entender nada. Ouve-se o rudo do bar, que proporciona a sensao de continuidade temporal e sublinha a tenso crescente, num momento de distenso do tempo narrativo caracterstico do trabalho de montagem de Leone, acentuado pelos close-ups dos dois personagens (figura 2.61 e 2.62). Os dois homens trocam socos (figura 2.63). Monco rende um adversrio com um golpe de carat (figura 2.64) no pescoo uma aluso aos filmes de artes marciais orientais que comeavam a chegar aos cinemas europeus nos anos 1960 , e o agarra pela camisa. Ele est enquadrado em close-up, ligeiramente esquerda, de costas para a porta de entrada da taverna, que fica enquadrada do lado direito, equilibrando a composio. O foco ntido tanto no primeiro plano (Monco e o bandido) quanto no segundo (a porta de entrada da taverna, na figura 2.65), criando uma composio recessiva com moldura e profundidade de campo. Esse tipo de encenao, que usa vos de portas e janelas para revelar ou ocultar personagens de acordo com convenincias narrativas um recurso estilstico consagrado desde a poca do cinema mudo. Louis Feuillade, responsvel por muitos seriados de mdia- metragem influentes na dcada de 1910, j utilizava esta ferramenta para deslocar o foco principal da ao dramtica dentro do prprio quadro, guiando o olhar do espectador sem precisar mover a cmera ou cortar (BORDWELL, 2008, p. 91). Leone revisou esse elemento de um esquema clssico de encenao, criando uma variao mais intensa dele. 145 A coreografia precisa. No momento em que o adversrio dominado, a porta est vazia (figura 2.65). Como a composio visual mantm o foco ntido sobre ela, reservando- lhe praticamente toda a metade direita do quadro, isso cria uma expectativa natural no pblico, que instintivamente desloca sua ateno para ela. No instante seguinte, trs pistoleiros entram juntos pela porta e param sob o umbral (figura 2.66). Monco est de costas para a entrada da taverna de frente para o espectador e no registra a apario dos bandidos; o pblico os v antes dele, e isso coloca a audincia na posio de saber mais sobre o enredo do que o personagem, o que instantaneamente cria uma dimenso suplementar de suspense, aumentando ainda mais a tenso. Ao chegar, os pistoleiros nada dizem. Mas, por causa do som das botas no piso de madeira, do ranger da porta e do silncio que toma conta da taverna, Monco percebe a presena. Ele desvia o olhar do rosto do bandido preso pela camisa para e olha para frente, tenso. O lder dos pistoleiros est no meio, um passo frente dos outros; ele tem apenas metade da barba um toque cmico para aliviar a tenso no seu momento mais intenso. O pistoleiro ordena que Monco largue o colega; est enquadrado em close-up extremo (figura 2.67). Leone justape mais trs close-ups iguais ordem do bandido um para cada pistoleiro. Aliada ao silncio, a sucesso de rostos fragmenta o espao flmico e acentua mais a tenso; por um momento, o espectador perde a noo espao-temporal do momento. Monco se move ento, largando o bandido espancado, ao mesmo tempo em que gira e atira trs vezes em dois segundos (figura 2.68). Os pistoleiros no tm tempo para revidar. O momento resgata a composio recessiva da cena do tiroteio de Por um Punhado de Dlares: a mo com o revlver em primeirssimo plano e a ao principal (os pistoleiros atingidos pelos tiros) em segundo plano, tudo fotografado em profundidade de campo. Nos dois filmes, encontramos a mesma escolha estilstica para solucionar um problema de representao idntico. Ademais, atirador e vtimas, de novo, esto dentro do mesmo quadro. A tenso se foi, mas a cena no acabou. O adversrio espancado se arrasta para a direita, tentando escapar. Monco no se d ao trabalho de olhar para ele, e nem mesmo se vira para atirar: dispara na direo do som do arrastar sobre o piso de madeira (figura 2.69). Depois, guarda o revlver no coldre, girando em torno do dedo indicador com velocidade, repetindo o gesto clssico dos heris do western americano (figura 2.70). Essa cena organiza vrios elementos do que podemos afirmar como exemplos diretos da prtica estilstica recorrente em Leone: um conjunto de solues estilsticas e narrativas para problemas de representao que o diretor resgata, revisa e reutiliza, sempre que confrontado com problemas parecidos. O uso abundante de close-ups extremos, a utilizao 146 dos rudos diegticos (os sons do bar, os passos sobre o piso de madeira) para injetar tenso e dar continuidade temporal narrativa, as composies recessivas, a ironia, o alusionismo e a subverso a cdigos do western so padres recorrentes dentro dos filmes dele. Tanto Mortimer quando Monco so profissionais da violncia. Ambos vivem margem da sociedade, transitando de uma cidade para a prxima sem se fixar. Ganham a vida caando bandidos, e seguem trajetrias paralelas; se cruzam na estrada e se reconhecem como iguais, nascendo da respeito mtuo e clima de competitividade, que funcionam como uma espcie de verso irnica uma releitura irreverente do cdigo de honra segundo o qual se comportavam os caubis nos filmes americanos. A primeira vez em que os dois se defrontam, alis, consiste numa cena que confirma a releitura crtica dos esquemas do western americano atravs da ironia e do alusionismo. Trata- se da variao cmica de um duelo, em que os pistoleiros atiram um no outro; no entanto, por causa do respeito mtuo e tambm devido ausncia de uma razo de ordem prtica para que um mate o outro, Mortimer e Monco iniciam uma espcie de jogo cmico. Eles se encaram longamente (figuras 2.71 e 2.72), pisam um no p do outro (figuras 2.73 e 2.74), trocam sopapos (figura 2.75) e finalizam o duelo atirando um no chapu do outro (figura 2.76), de forma a demonstrar simultaneamente a habilidade espetacular com o revlver e o senso de respeito para com o colega. Esta cena foi a primeira a ser concebida por Leone para o filme. Quando contratou Luciano Vincenzoni para escrever o roteiro, Leone descreveu esta cena para estabelecer o tom de ironia que pretendia conseguir. Vincenzoni expressou objeo cena, mas acabou convencido do quanto ela era importante. A argumentao usada para convencer o roteirista deixa claro o quanto Leone estava consciente da operao de releitura crtica do gnero: A inteno era ser irnico, mas eu simplesmente no conseguia imaginar John Wayne chutando a bunda de Henry Fonda, ou algo parecido no me faria rir, e pareceria francamente infantil. Mas Sergio descreveu longamente toda a seqncia, e acabou me convencendo. Ele queria aplicar a lgica de um jogo argumentativo entre crianas a dois personagens que eram puro instinto. Sergio disse achar que o sucesso do western era universal porque o comportamento inflamado e macho do tpico heri do gnero era idntico ao dos adolescentes e jovens dures de qualquer lugar, como o subrbio de Roma, por exemplo... na adolescncia, Sergio tinha convivido com esse tipo de fanfarro juvenil, esses menines arrogantes e fortes que chutam e provocam as crianas mais fracas. O que ele queria fazer era transportar essas memrias de infncia para o western. (VINCENZONI, 2005, p. 171). 147 Figura 2.71: Leone inicia o confronto entre Monco e Mortimer com dois planos quase idnticos: botas de um em primeiro plano, o outro inteiro em segundo plano. Figura 2.72: A simetria entre as duas composies visuais sinaliza que os dois caadores de recompensa se equivalem tanto em fora quanto em inteligncia. Figura 2.73: De frente um para o outro, os pistoleiros comeam a pisar no p um do outro, como dois adolescentes valentes que medem foras. Figura 2.74: Este jogo infanto-juvenil remonta aos confrontos da infncia de Leone um elemento de nostalgia transposto para um cenrio de western. Figura 2.75: Depois de trocarem pises, os dois homens trocam socos; ningum aparece para assistir, confirmando que atos de violncia so comuns ali. Figura 2.76: Monco esvazia o revlver acertando repetidas vezes o chapu de Mortimer, que d o troco em seguida, numa citao explcita a Vera Cruz (1954). Figura 2.77: Os nicos espectadores que assistem ao duelo quase-adolescente so um grupo de crianas; uma comenta sobre as semelhanas com suas brincadeiras. Figura 2.78: Pastiche: crianas escondidas sob o piso de um casa mesmo esconderijo em que um menino v o duelo final de Os Brutos Tambm Amam(1953). Numa nica cena, Leone flertou com trs tpicos que crticos incluem entre as experincias estticas caractersticas da condio ps-moderna: ironia, nostalgia (a incluso de memrias como forma de reviver um passado idealizado) e alusionismo. importante no confundir ironia com humor. O discurso irnico evoca uma dimenso suplementar de entendimento que contradiz ou problematiza o que foi dito; ou seja, a ironia seria uma estranha forma de discurso onde voc diz algo que voc, na verdade, no 148 quer dizer e espera que as pessoas entendam no s o que voc quer dizer de verdade, como tambm sua atitude com relao a isso (HUTCHEON, 2000, p. 16). O conceito de ironia, ento, apreenderia uma atitude poltica, que neste exemplo est expressa na reviso de um cdigo pertencente ao esquema narrativo do western americano: a expectativa da violncia. Quando os dois caadores de recompensa se posicionam um de frente para o outro, esto iniciando um ritual que talvez seja a conveno mais reconhecvel do western: o duelo. Esta conveno fica ainda mais evidente quando se observa os ngulos escolhidos por Leone (figuras 2.71 e 2.72): cmera baixa, emoldurada por botas em primeirssimo plano (composies recessivas), mostrando o rival em segundo plano. Tomadas de composio simetricamente idnticas so usadas como campo e contra- campo, sinalizando a igualdade de foras dos dois protagonistas. No existem um heri e um vilo; so iguais. Esta simetria nas composies visuais outro elemento estilstico recorrente na obra de Leone. O que se segue uma demonstrao gratuita e algo infantil de habilidade com o gatilho, por parte de dois pistoleiros, que termina em chave cmica com os dois dividindo uma garrafa de usque na taverna mais prxima. Alm disso, no parece ser por acaso que os nicos habitantes de El Paso que assistem ao duelo so crianas (figuras 2.77 e 2.78) alis, uma tomada que cita o duelo final de Os Brutos Tambm Amam (Shane, George Stevens, 1953), em que um menino e seu co vem adversrios medindo foras escondidos num vo embaixo de uma casa outra aluso que constitui pastiche. Quando os pistoleiros pisam no p um do outro, uma das crianas se v na cena: como nossos jogos, diz s outras. A ausncia de adultos na rua, olhando os pistoleiros se desafiarem, deve ser compreendida em chave dupla, pois no apenas estabelece o tom infanto-juvenil da cena, mas tambm sinaliza a ausncia de um sentido social de comunidade. Os adultos que moram l esto acostumados a presenciar tiroteios e cenas de violncia, e portanto sequer aparecem nas portas e janelas. Tiroteios j fazem parte da rotina do lugar (assim como acontecia no vilarejo de Por um Punhado de Dlares). Neste exemplo especfico, a ironia est na releitura crtica da forma interna do gnero chamada de expectativa da violncia (BUSCOMBE, 2004, p. 310). J a nostalgia expressa na tenso entre um presente inadequado e um passado distorcido pela memria e pelo desejo, na descrio de Linda Hutcheon (1998) pode ser vista na evocao de elementos da infncia do diretor, e que inclui a participao de crianas como espectadores diegticos do duelo, para a construo da narrativa. Quanto ao alusionismo, a citao a Os Brutos Tambm Amam no a nica que aparece na cena. 149 Figura 2.79: Os dois pistoleiros rivais de Vera Cruz (1954) fazem duelo de tiro mirando em pontas de lanas e tochas que adornam uma manso no Mxico. Figura 2.80: A diferena de idade um veterano e um iniciante entre os mercenrios, bem como sua amoralidade, foram influncias para o filme de Leone. Este momento representa um pastiche de cena de Vera Cruz (1954). Nesse filme, os dois personagens principais, interpretados por Gary Cooper e Burt Lancaster, competem para ver quem tem melhor pontaria (figuras 2.79 e 2.80), disparando tiros em tochas que enfeitam o muro de uma manso. Se substituirmos as tochas pelos chapus, a cena torna-se idntica. O fato de os objetos-alvos dos tiros serem chapus representa, ainda, uma terceira aluso, desta vez a O Pistoleiro (The Stranger Wore a Gun, Andre De Toth, 1953), filme em que o heri atira nos chapus dos membros da quadrilha para afugent-los sem feri-los, ao mesmo tempo em que manda um recado sobre sua habilidade com o gatilho. O confronto entre Mortimer e Monco uma das primeiras vezes em que Leone inclui na trama de um filme seu uma aluso explcita a uma cena de outro filme (ou seja, pastiche). Em Por um Punhado de Dlares j havia alusionismo, mas as citaes eram mais sutis, referindo-se cdigos caractersticos do repertrio do gnero western, sem referenciar momentos especficos de filmes. Frayling enumerou algumas dessas aluses: H inmeras referncias ao Novo Testamento: O Estranho cavalgando sua mula e entrando em San Miguel como Cristo em Jerusalm; sua crucificao num poste de madeira fora da cidade; sua participao na Santa Ceia do cl dos Rojos; sua morte e posterior ressurreio; uma profuso de cruzes, cemitrios e caixes. (...) Havia importantes referncias commedia dellarte e tradio carnavalesca, que podiam ser vistas no refro musical satrico, no heri ardiloso, na nfase detalhada aos atos de comer e beber, na atitude sarcstica em relao morte, no gestual exagerado dos personagens hispnicos. (FRAYLING, 2000, p. 126-127). No primeiro filme, as citaes a westerns anteriores seguiam um padro alusionista mais sutil: a autoconscincia das convenes de gnero e a representao da violncia (sem sangue) em Os Brutos Tambm Amam (1953, figura 2.81); a poeira de Paixo dos Fortes (1946), acrescentando um toque realista a um tiroteio (figura 2.82); a comunidade covarde de Minha Vontade Lei (1959), cujos cidados preferem contratar um pistoleiro do que eleger um xerife, e assistem a um duelo como se estivessem no circo (figura 2.83); a atmosfera 150 Figura 2.81: Representao realista de um tiroteio em Os Brutos Tambm Amam (1953), com a vtima jogada para trs pelo impacto da bala: influncia em Leone. Figura 2.82: Realismo de Paixo dos Fortes (1946) aparece na nuvem de poeira erguida pela passagem de uma carroa, to densa que interrompe um tiroteio. Figura 2.83: A comunidade corrupta, covarde e curiosa de Minha Vontade Lei (1959) exerceu influncia na representao da sociedade fraca dos filmes de Leone. Figura 2.84: Personagens de O Homem Que Matou o Facnora (1962) esto conscientes de que mitologia e realidade coexistem em duas instncias diferentes. pessimista e amargurada de O Homem Que Matou o Facnora (1962), com personagens que esto conscientes de que realidade e mito so instncias diferentes (figura 2.84). Em Por um Punhado de Dlares, Leone usava o material de origem como inspirao para a construo da narrativa. Entre seus objetivos no estava o reconhecimento da citao por parte do pblico; ou seja, se seguirmos a definio de Richard Dyer (2007), ainda no se tratava se pastiche; era uma forma mais discreta de alusionismo. Desde ento, Leone intensificou essa tcnica. Na cena do confronto entre os dois anti-heris de Por uns Dlares a Mais, a referncia se transmuta em citao direta. O pastiche tambm pode ser rastreado em outras cenas. Leone cita vrios filmes, incluindo Estigma da Crueldade (1958), cujo heri passa o filme seguindo assaltantes acusados de matar sua mulher e filho; ele carrega uma foto dos dois num relgio de bolso, que mostra a cada bandido antes de mat-lo (figura 2.85). O personagem, interpretado por Gregory Peck, serviu como modelo para Mortimer, que carrega um relgio de bolso idntico com a foto de sua irm, estuprada por El Indio (figura 2.86). Leone acrescentou ao perfil do heri desenvolvido em Por um Punhado de Dlares e Por uns Dlares a Mais algumas outras caractersticas. Essas caractersticas continuavam 151 Figura 2.85: O personagem de Gregory Peck em Estigma da Crueldade (1958), em busca de vingana, carrega a foto de mulher e filho mortos num relgio de bolso ... Figura 2.86: ... da mesma maneira que o Coronel Mortimer de Por uns Dlares a Mais, em que a imagem da irm num objeto idntico o motiva a obter vingana. avanando na direo da ironia, do grotesco, do carnavalesco todas, no por coincidncia, experincias estticas que contm uma agenda poltica, uma crtica social inerente, expressa atravs de uma forma irreverente e bem-humorada. Como se sabe, os diretores de westerns norte-americanos nunca lidaram bem com o humor. O gnero em todos os seus momentos histricos sempre foi muito sisudo; no universo masculino e misgino dos caubis e pistoleiros no havia espao para piadas. Portanto, a insero de elementos cmicos pode ser vista como outro aspecto da reviso crtica dos esquemas tpicos do gnero levada a cabo por Leone. 2.3 Heris ou anti-heris? Em Trs Homens em Conflito, Leone continuou a intensificar alguns recursos narrativos, enquanto ampliou o quadro em que a ao dramtica se desenrolava. Se o primeiro western se passava num s vilarejo e o segundo visitava meia dzia de cidades na fronteira com o Mxico, o terceiro (na verdade, primeiro a ser 100% financiado com dinheiro americano, e tambm pioneiro a ultrapassar o oramento de US$ 1 milho para uma realizao de todos os ciclos populares italianos) mostra trs personagens cruzando o territrio dos Estados Unidos, de norte a sul, em busca de um tesouro. Leone aumentou de novo o nmero de protagonista, acrescentando um terceiro anti- heri dupla do filme anterior: um ladro (Eli Wallach) veio se juntar aos dois caadores de recompensas (Eastwood e Van Cleef, este ltimo num papel diferente), fragmentando ainda mais a ao dramtica, no que tange construo em larga escala. O ttulo original The Good, The Bad and The Ugly, cuja traduo literal para o portugus seria O Bom, o Mau e o Feio contm, por si s, boa dose de ironia e irreverncia. Esse ttulo passava ao espectador a impresso inicial de que cada um dos trs adjetivos podia ser aplicado, de forma estvel, a um protagonista. A impresso acentuada pela seqncia de abertura, que associa cada ator a um adjetivo, usando grafismos e imagens congeladas (freeze 152 frames) este ltimo, um recurso estilsticos que aludia s experincias com montagem realizadas por Truffaut em Os Incompreendidos (Les 400 Coups, Franois Truffaut, 1959) e Jules e Jim (1962). O pblico tinha sido acostumado, durante dcadas assistindo aos westerns americanos, que heri era heri, e vilo era vilo. Esse cdigo seria subvertido. O terceiro adjetivo o Feio contm vrios nveis de ironia. Tomado literalmente, o termo parece destoar dos outros dois, porque faz referncia a uma caracterstica de outra natureza que no a moral. Por si s, esta interpretao gera um efeito cmico. Mas preciso enfatizar que no ingls a noo de Ugly evoca diretamente a experincia esttica do grotesco. Existe no termo, ento, uma dimenso suplementar de significado que faz referncia expectativa da violncia, tomada de forma crtica e irreverente. A ironia pretendida por Leone vai alm da brincadeira com o ttulo. A estrutura narrativa atribua explicitamente a cada protagonista um adjetivo, em trs cenas de abertura (todas desconectadas da ao dramtica principal), para em seguida dar incio a uma srie de esquetes, envolvendo uma srie de encontros e desencontros violentos entre os trs anti- heris, num processo contnuo de embaralhamento dos papis de heri e vilo. Uma estratgia narrativa que o prprio Leone explica assim: Sempre achei que termos como bom, mau e violento no deviam ser tomados num sentido estanque. Assim, me pareceu interessante desmistificar esses adjetivos num cenrio de western. Um assassino pode muito bem ter virtudes. Pode demonstrar altrusmo, enquanto um homem supostamente bom capaz de matar uma pessoa com total indiferena. Algum que parece inicialmente ser violento pode, se formos capazes de conhec-lo melhor, se mostrar mais nobre do que parece, e at mesmo ser capaz de expressar carinho e ternura em certas situaes. (LEONE, 2005, p. 203). A ltima frase se aplica perfeitamente ao terceiro protagonista o Feio introduzido por Leone estrutura em larga escala, por sua vez bastante semelhante utilizada nos dois westerns anteriores. O perfil desse anti-heri, contudo, um pouco diferente. Tuco no fecha a boca nunca, mente o tempo todo, procura levar vantagem em tudo. Est sempre suado, sujo e maltrapilho. Ao contrrio dos dois caadores de recompensas (frios, profissionais e eficientes), Tuco vive nervoso e agitado. Ele anda com um revlver amarrado num cordo que pendura no pescoo, ao lado de crucifixos e amuletos. E tem um tique nervoso: se benze de um jeito engraado, fazendo o sinal da cruz invertido (figuras 2.87 e 2.88). Christopher Frayling (2005, p. 221) observa, com razo, que Tuco deriva de um arqutipo que pertence tradio da commedia dellarte e da literatura popular dos pases mediterrneos, e no ao western. Ele um pcaro, um vagabundo astucioso, como Sancho 153 Figura 2.87: Figurinos de Tuco sujo, maltrapilho, com a barba por fazer, repleto de correntes e com um crucifixo no peito caracterizam o personagem como um pcaro. Figura 2.88: Sempre que mata um oponente, Tuco se benze vrias vezes, sempre fazendo o sinal da cruz ao contrrio: irreverncia e iconografia religiosa. Figura 2.89: Juan de Dios, o sacristo que toma conta da igreja abandonada de Por um Punhado de Dlares, pioneiro na galeria de pcaros de Sergio Leone ... Figura 2.90: ... assim como o coveiro Piripero, interpretado pelo ator Joseph Eagger, que reaparece num pequeno papel cmico em Por uns Dlares a Mais. Pana em Dom Quixote de La Mancha. Graas a esse personagem, que reapareceria em trabalhos subseqentes (com outros nomes, e interpretados por diferentes atores, mas mantendo sempre a mesma caracterizao), Umberto Eco comparou os filmes de Leone aos romances da Renascena, que resgatariam tradies medievais europias com um senso de nostalgia pag (ECO apud FRAYLING, 2005, p. 221). importante observar que a predileo por personagens com o perfil picaresco podia ser notada, com mais discrio, nos filmes anteriores. Piripero (Joseph Egger), o agente funerrio de Por um Punhado de Dlares (figura 2.89); Juan De Dios (Ralf Baldassarre), responsvel por tocar o sino do vilarejo no mesmo filme (figura 2.90); e o profeta sem nome (o mesmo Egger) que d dicas a Monco numa seqncia quase surrealista em Por uns Dlares a Mais, introduziram essa tradio do folclore italiano no spaghetti western. A diferena que, aqui, Leone traz do cenrio de fundo para o primeiro plano narrativo esse personagem arquetpico que pouco tem a ver com a tradio do western. Tuco trouxe ao primeiro plano narrativo ainda outro elemento da cultura italiana, presente desde Por um Punhado de Dlares (mais uma vez de forma tmida), e que marcaria forte presena nos filmes subseqentes do diretor: o apego que certos personagens demonstram pelo ncleo familiar mais prximo (pai, me, filhos e irmos), cultivado junto a um desapego flagrante pelas regras sociais. Se o apego famlia existe claramente no sistema de cdigos do western norte-americano, o desapego s regras sociais no um padro recorrente no gnero, mas sim na cultura ibrico-mediterrnea. 154 Essa operao de insero de um trao cultural estrangeiro dentro do esquema narrativo do western foi problemtica, especialmente por causa do perfil do heri de Leone. Em termos prticos, conciliar um protagonista to amoral e solitrio com essa cultura de apego famlia no parece ter sido tarefa simples. Mas Leone encontrou na prpria estrutura social italiana uma caracterstica que o ajudou a driblar essa contradio: um trao cultural que o Edward C. Banfield (1958) de familismo amoral. A pesquisa de Banfield procurou identificar, na dcada de 1950, aspectos da cultura da regio ao sul da Itlia que pudessem explicar o relativo atraso econmico em que esta se encontrava em relao ao restante do pas, aps a Segunda Guerra Mundial. O aspecto central da questo, para Banfield, estava relacionado unio de dois pulsos sociais aparentemente incompatveis: um sentimento de forte apego ao ncleo familiar bsico (pais, filhos e irmos) e outro sentimento, igualmente forte, de desapego a qualquer outra forma de organizao social. Essa unio formaria o que o socilogo denominou de familismo amoral: um modelo de comportamento social oriundo da combinao de uma srie de fatores estruturais e culturais, incluindo a religiosidade catlica, a estrutura familiar fragmentada em ncleos menores a cada gerao (desde o sculo XIX) e talvez o fator mais importante a crescente urbanizao das sociedades. Banfield associava essa urbanizao a um sentimento cada vez maior de isolamento. O conjunto de tudo isso assim descrito pelo socilogo: [O familismo amoral ] a inabilidade de determinados cidados agirem de com a inteno de realizar o bem comum ou, mais precisamente, de realizar qualquer objetivo capaz de transcender o interesse material imediato do ncleo familiar mais prximo. (BANFIELD, 1958, p. 9-10). Banfield atribui a origem do familismo amoral a uma conjuno de fatores. O catolicismo presente na Itlia, a organizao da famlia em pequenos ncleos que vo se desprendendo aos poucos da estrutura familiar mais ampla (conseqncia direta da guerra), o culto aos valores familiares dos ibricos, etc. Os comportamentos gerados a partir deste trao cultural estariam resumidos em uma srie de axiomas que Banfield enumera como caractersticas de um familista amoral: profundo desprezo s instituies sociais e comunidade como um todo; individualismo exacerbado; desinteresse em lutar pelo bem comum (a no ser para tirar vantagem prpria para si ou para a famlia); crena de que s funcionrios estatais tm obrigao de defender a coisa pblica; noo forte de que todos os polticos so corruptos e no faro nada alm do estritamente necessrio para se manter nos cargos; idia de que a lei sempre ser desrespeitada se no houver razo para temer uma 155 punio; e, mais importante de tudo, a firme certeza de que todos os indivduos fora de seu ncleo familiar agem exatamente como ele. Isso significa que traos da cultura italiana estavam abrindo caminho nos filmes de Leone; estes seriam uma expresso cultural desses novos contextos scio-histricos do pas, mesclados iconografia e aos esquemas narrativos de um gnero flmico estrangeiro. Nesse sentido, o familismo amoral pode ser considerado como mais uma pr-condio determinante da assinatura narrativa e estilstica de Leone; uma pr-condio expressa dentro da caracterizao de personagens, e portanto dentro da vertente temtica da potica do cinema. Por definio, um familista amoral se comporta seguindo os padres clssicos de certo e errado, mas somente dentro de seu ncleo familiar mais prximo, pois considera que apenas estas pessoas so dignas de confiana dentro de uma sociedade cada vez mais corrupta. Uma vez inserido dentro de crculos sociais mais amplos, que vo alm da famlia, o familista amoral deixa de lado as noes de certo e errado, passando a se comportar da maneira mais conveniente para si e para os parentes mais prximos. Como se pode perceber, este um comportamento ajustado sensibilidade mais individualista e hedonista dos anos 1960. Os primeiros heris de Leone, j vimos, so homens solitrios. Quando no pertencem a nenhum ncleo familiar, essas pessoas se tornam individualistas amorais. o caso de Joe/Monco/Blondie. Esse personagem, portanto, pode ser visto como um amlgama de partes do heri americano (retendo dele o carter solitrio e desprezando a noo de que ele est pronto para defender os valores morais da sociedade, mesmo que esta no lhe admita como integrante) com o comportamento familista amoral da cultura italiana. Na verdade, quando Joe liberta Marisol e sua famlia em Por um Punhado de Dlares, dizendo ter conhecido algum como ela antes, ele est expondo uma motivao oculta: j teve uma famlia me, esposa ou namorada que foi destruda, tendo por isso se tornado uma espcie de espectro vagando pelo deserto; um familista amoral sem uma famlia. Mortimer, de Por uns Dlares a Mais, apresenta a mesma caracterizao. Por trs do caador de recompensas meticuloso e organizado est um ex-militar disposto a vingar a morte de sua irm. Evocando o personagem de Gregory Peck em Estigma da Crueldade, como j apontado anteriormente, Mortimer encontra motivao para seguir em frente olhando repetidamente a fotografia da irm, dentro de um relgio de bolso. Mas o primeiro protagonista de Leone em que a caracterstica do familismo amoral aparece explicitamente Tuco, de Trs Homens em Conflito. O trao cultural fica evidente na seqncia em que este se defronta com o irmo (Luigi Pistilli), o padre Pablo Ramirez, aps anos sem se encontrarem (figuras 2.91 e 2.92). O religioso censura o irmo por viver uma 156 Figura 2.91: Tuco encontra o irmo, padre, num convento; os dois discutem em sala repleta de imagens de santos: iconografia crist abundante no filme. Figura 2.92: O dilogo entre os irmos talvez o nico momento do filme em que Tuco deixa transparecer emoo: caracterstica bsica de um familista amoral. Figura 2.93: Quando Tuco recebe a notcia da morte dos pais, Leone usa um close-up e quebra a alternncia plano-contraplano, filmado em ngulos equivalentes. Figura 2.94: Tuco leva um soco do irmo, mas o perdoa em seguida: na obra de Leone, esta a cena que evoca com mais clareza o conceito de familismo amoral. vida de crimes e por ter passado anos sem procurar os pais. Tuco recebe a notcia de que o pai morreu dias antes e pediu para v-lo. Ele fica desconsolado (figura 2.93). A discusso esquenta e os dois irmos acertam bofetadas um no outro (figura 2.94). A briga s termina quando Tuco afirma que no teve outra escolha para sustentar os pais a no ser virar ladro, pois tinha 10 anos quando Pablo largou a famlia para virar padre. Ele vai embora, enquanto o padre tenta pedir perdo. Este o nico momento do filme em que Tuco demonstra emoo genuna por algum. Para enfatizar essa emoo, Leone sublinha parte do dilogo (mais especificamente a partir do instante em que o padre anuncia a morte do pai) com msica melanclica violo flamenco dedilhado lentamente, de modo dramtico. Alm disso, o cenrio tambm est apinhado de smbolos religiosos esttuas de santos e crucifixos decoram a sala escura onde o dilogo acontece. A razo para que a pontuao narrativa do familismo amoral e a iconografia religiosa apaream juntos parece ser a conscincia, por parte de Leone, de que os dois elementos constituam parte importante de sua contribuio cultural ao western. a idia da releitura crtica que constituiria, tambm, uma operao de inscrio autoral dentro do gnero. Christopher Frayling (1981, p. 60) confirma esse raciocnio quando avalia que os trs personagens da obra de Leone que mais se afastam da caracterizao tradicional dos heris do western so Tuco (Trs Homens em Conflito), Cheyenne (Era uma Vez no Oeste) e Juan (Quando Explode a Vingana). Ele nota que os trs so pcaros e os associa influncia da pera e da commedia dellarte. De fato, podemos acrescentar que os trs incorporam 157 Figura 2.95: Monsieur Verdoux (1947) discute o conceito de moral atravs de um protagonista que cultiva flores e incapaz de matar uma lagarta ... Figura 2.96: ... mas ganha a vida envenenando mulheres ricas e ficando com a fortuna delas, para sustentar uma mulher paraltica e um filho pequeno. Figura 2.97: O prisioneiro confederado amarrado na locomotiva, perto do final de Trs Homens em Conflito, uma referncia a um clssico de Buster Keaton ... Figura 2.98: ... a comdia O General (1926), tambm ambientada na guerra civil norte-americana, e que contm um momento visualmente idntico. Figura 2.99: A carruagem que avana sem controle pelo deserto, com todos os ocupantes mortos, faz referncia a um longa-metragem de Budd Boetticher ... Figura 2.100: ... O Homem que Luta S (1959), em que o heri tambm intercepta uma carruagem-fantasma, acontecimento que modifica o curso do enredo. Figura 2.101: O uso da grua para descortinar um panorama revelador dos horrores da guerra civil norte- americana uma referncia a uma cena clssica de ... Figura 2.102: ... E o Vento Levou (1939), de Victor Fleming, cuja seqncia similar um dos momentos mais citados da Era de Ouro do cinema americano. perfeitamente o princpio do familismo amoral, e dialogam intertextualmente com personagens do western americano atravs da noo de ironia, em que uma dimenso no-dita de significado vem se juntar ao texto dito para critic-lo. 158 Trs Homens em Conflito leva adiante a prtica dos dois tipos de alusionismo. Na dimenso mais discreta, Leone foi buscar inspirao em obras que trabalhavam o mesmo tema (a ambigidade moral) com humor negro, e que tinham a guerra como pano de fundo: Monsieur Verdoux (Charles Chaplin, 1947), sobre um bancrio desempregado que se transforma num assassino para continuar sustentando a famlia (figura 2.95 e 2.96), e o romance Viagem ao Fim da Noite, de Louis Ferdinand Cline, um dos escritores prediletos dos romancistas beatniks, que tanto influenciaram a contracultura dos anos 1960. No nvel do pastiche, Trs Homens em Conflito amplia e diversifica o nmero de citaes, tornando-as mais facilmente reconhecveis aos cinfilos, especialmente aos americanos (convm no esquecer que Leone estava sendo bancado por um estdio de Hollywood e fazia o filme para um pblico-alvo eminentemente estadunidense). Entre as citaes reconhecveis est a cena em que Tuco assiste chegada de um trem com um prisioneiro amarrado frente (figura 2.97), momento que evoca O General (The General, Buster Keaton, 1926, figura 2.98); a apario de uma carruagem cheia de corpos no deserto (figura 2.99), aludindo a O Homem que Luta S (1959, figura 2.100); e o clssico movimento de grua que parte do plano mdio de um personagem para, ao erguer e afastar a cmera ao mesmo tempo, revelar um panorama devastador da guerra civil norte-americana, com cadveres e feridos que se estendem at a linha do horizonte (figura 2.101), numa citao clara a E o Vento Levou (Gone With The Wind, Victor Fleming, 1939, figura 2.102). No filme tambm est uma das seqncias mais violentas da obra de Leone: o espancamento de Tuco num campo de concentrao. Durante quatro minutos e um segundo (241 segundos), um capanga de Angel Eyes bate em Tuco, para tentar extrair dele uma informao. A cena foi inteiramente cortada da verso lanada nos Estados Unidos em 1967. Entre socos (figura 2.103) mostrados em close-up e presenciados por Angel Eyes, Tuco tira um dente da boca, coberta de sangue (figura 2.104). Leone enfatiza a violncia criando uma montagem paralela que alterna o espancamento, ocorrido num barraco, e a execuo de uma melodia lgubre pela orquestra dos prisioneiros, que ensaia do lado de fora do prdio, a poucos metros de distncia (figura 2.105). A cena envolvendo a orquestra faz referncia sutil (ou seja, alusionismo) aos relatos de prisioneiros de campos nazistas da Segunda Guerra Mundial. Na ocasio, era comum que os ensaios com grupos musicais de detentos ocorrem no mesmo instante em que sesses de tortura eram levadas a cabo pelos oficiais da Gestapo. Assim, o som da msica encobria os rudos da violncia produzida pelos soldados. 159 Figura 2.103: No decorrer da cena, Tuco leva socos e chutes at ter o rosto mostrado em close-ups sangrentos e abundantes desfigurado aos poucos. Figura 2.104: Enquanto Tuco apanha, a orquestra de prisioneiros do campo de concentrao recebe a ordem de tocar mais alto, para abafar os gritos do anti-heri. Figura 2.105: Em close-up extremo que dura oito segundos, Tuco arranca um dente da prpria boca aps uma seqncia de socos que o deixam desfigurado. Figura 2.106: O agressor pressiona o nervo da vtima para mant-la acordada durante a tortura, tcnica real usada durante a guerra: preocupao com a acuidade. A obsesso com o realismo da pancadaria (worldmaking) importante para o resultado da cena. Leone pesquisou como ocorriam sesses de tortura na guerra, e teve o auxlio do prprio ator Eli Wallach, que serviu no Exrcito norte-americano como paramdico. Wallach contou que quando uma vtima de tortura desmaiava os agressores a faziam recobrar a conscincia pressionando o nervo supra-orbital, sobre as plpebras. A presso exercida nesse local era suficiente para que um homem inconsciente voltasse a si quase imediatamente. Leone usou a informao e incluiu esse procedimento na montagem final (figura 2.106). Para Era uma Vez no Oeste, Leone mais uma vez adotou a estratgia de intensificar elementos do esquema narrativo usado nos filmes anteriores. Dando seqncia lgica de ampliar o nmero de protagonistas, Leone reaproveitou a dinmica do trio de Trs Homens em Conflito, acrescentando um quarto personagem principal uma mulher, primeiro (e nico) personagem feminino importante de Leone. H ainda um quinto personagem importante, o empresrio Morton (Gabriele Ferzetti), mas este no se caracteriza como protagonista, pois tem consideravelmente menos tempo em cena do que os outros quatro. Jill McBain (Claudia Cardinale) consiste no centro emocional do enredo, que gira em torno de disputas por um pedao de terra no meio de uma regio deserta do oeste, situada sobre uma das poucas reservas de gua subterrnea do territrio. Por causa da presena de gua, logo se descobre que a ferrovia transcontinental que cruza o pas de leste a oeste, e que est sendo construda no exato momento em que a ao dramtica se desenrola, ter que passar pelo tal terreno, o que o valorizar. 160 Ex-prostituta recm-casada com o dono do terreno, Jill herda as terras assim que o sujeito e seus filhos so assassinados, no incio de Era uma Vez no Oeste. Assim, ela se torna alvo da disputa entre Frank (Henry Fonda), o assassino de olhos azuis cujo objetivo tornar- se empresrio, e Harmonica (Charles Bronson), misterioso forasteiro errante e de passado incerto que se pe ao lado da moa por motivos que s so totalmente esclarecidos no final do filme. Leone usa a tcnica dos flashbacks progressivos (mesmo recurso narrativo utilizado em Por uns Dlares a Mais, e que intensifica a fragmentao da construo narrativa em larga escala). A equao se completa com a apario de Cheyenne (Jason Robards), lder de uma gangue de ladres de banco que se envolve no caso por acreditar que Frank teria sido o assassino da famlia de Jill e estaria tentando atribuir a ele a autoria dessas mortes. A dinmica entre os trs personagens masculinos , em essncia, a mesma estabelecida no enredo de Trs Homens em Conflito. Um dos heris, Harmonica, tem a mesma caracterizao do Joe/Monco/Blondie: um homem de passado desconhecido, que no demonstra nenhum interesse de estabelecer laos sociais; de poucas palavras, com gestos lentos e largos; pontaria certeira demonstrada num duelo contra um trio de pistoleiros profissionais, que acontece logo nos 15 minutos iniciais, como j havia ocorrido tanto em Por um Punhado de Dlares quanto em Por uns Dlares a Mais. Um olhar atento nos revela traos do familismo amoral, na forma do passado misterioso que, como havia ocorrido com Mortimer em Por uns Dlares a Mais, revelado atravs dos flashbacks que somente no final expem com clareza a motivao dele: obter vingana contra o homem (Frank) que matou seu irmo. Harmonica , como Joe/Monco/Blondie e tambm como Mortimer, um familista amoral sem famlia. O segundo protagonista, Frank, descende de Angel Eyes (Trs Homens em Conflito). A diferena que neste filme ele caracterizado claramente como um vilo psicopata, ao contrrio do que ocorria no filme anterior, em que Leone propositalmente embaralhava os papis de heri e vilo. A escalao de Henry Fonda representa mais uma tentativa deliberada do diretor no sentido de subverter as expectativas do pblico em relao a convenes do gnero. Afinal de contas, Fonda era, desde a dcada de 1930, um dos mais atores mais associados ao papel do mocinho do western, tendo protagonizado filmes como Conscincias Mortas (The Ox-bow Incident, William Wellman, 1943) e Paixo dos Fortes (1946). No filme, Fonda interpreta um canalha desalmado. A cena de apresentao do personagem demonstra como Leone se deliciava com o jogo intertextual entre o seu personagem e os heris do western americano interpretados pelo ator (ou seja, alusionismo). Nela, Frank lidera pistoleiros na chacina da famlia de Jill. A decupagem esconde 161 Figura 2.107: A mesa exagerada e a arquitetura requintada do chal no meio do deserto sinalizam os sonhos ambiciosos da famlia irlandesa McBain. Figura 2.108: Sons fora do quadro so importantes para Leone: a interrupo sbita do canto dos pssaros alerta Brett McBain para a presena de humanos no bosque. Figura 2.109: Da mata, sem que os agressores se mostrem, vem uma saraivada de tiros que mata o patriarca e dois adolescentes; resta apenas um menino. Figura 2.110: S ento a gangue sai do esconderijo nos arbustos e caminha lentamente at o chal; o contraluz impede que o pblico veja os rostos dos bandidos. Figura 2.111: Aps um corte, o ngulo muda para uma tomada alta dos pistoleiros de costa, avanando na direo da criana indefesa: composio recessiva. Figura 2.112: Num traveling para frente, a cmera gira em torno dos pistoleiros at transformar uma composio recessiva em profundidade de campo ... Figura 2.113: ... num close-up extremo do rosto de Henry Fonda; comentrio irnico sobre Fonda ser, ao lado de John Wayne, o maior mocinho do gnero. Figura 2.114: Tambm focalizado num close-up extremo, o mais jovem dos McBain encara o vilo; a justaposio de close-ups parece congelar o tempo. Figura 2.115: Frank (Fonda) decide no deixar testemunhas do massacre: ergue o revlver, cospe fora um pedao de tabaco e atira na direo da cmera.... Figura 2.116: ... num cross-fade em que a imagem da arma se transforma numa locomotiva indo em direo cmera (e o som do tiro vira o resfolegar do trem). 162 propositalmente o rosto do ator at o momento mais tenso, quando este (at ento visto apenas de costas) prepara-se para matar um garoto de seis anos, para no deixar testemunhas. A cena inicia com a famlia McBain preparando-se para o almoo (figura 2.107). Uma sbita revoada de pssaros, acompanhada da inesperada ausncia dos rudos dos animais do bosque (que at aquele momento podiam ser escutados com clareza), alerta os moradores para a presena de algo ameaador entre os arbustos (figura 2.108). O homem, o adolescente e a menina so mortos a tiros, sem que os agressores se mostrem (figura 2.109). Resta apenas o menino mais novo, que est dentro de casa. um ato de violncia vil, contra crianas e um homem desarmado. Uma violncia desse tipo jamais seria cometida, num western americano, por homens brancos por ndios, sim, como ocorre em Rastros de dio (The Searchers, John Ford, 1956), em cena citada explicitamente aqui atravs de o sbito silenciar dos animais, que tambm denuncia a presena dos agressores no filme americano ou seja, pastiche. H, entretanto, uma diferena crucial, alm da raa dos agressores. Em Rastros de dio, o massacre em si no mostrado (est contido numa elipse). Numa s cena, usando as tcnicas do pastiche e da ironia, Leone subverte duas vezes um esquema do gnero. So cinco os pistoleiros. Vestidos com sobretudos guarda-p, eles saem da mata em seguida. Leone os filma de longe, ligeiramente fora de foco e com contraluz acentuada, de forma que no podemos ver seus rostos (figura 2.110). H um corte, e o contra-plano os mostra de costas (figura 2.111). Eles se aproximam da criana mais nova. A msica lgubre de Ennio Morricone, tocada com uma guitarra eltrica, acentua a dramaticidade. O menino olha para o lder do grupo, que est frente (figura 2.112). Sem cortar, a cmera faz um giro de 180 graus, agora para exibir diretamente o rosto do lder dos pistoleiros, reenquadrado em close-up extremo: Henry Fonda. A decupagem deliberadamente estudada para causar um choque na platia, que sabe da presena de Fonda no filme (o nome aparece nos crditos, durante a cena anterior), mas ainda no tem idia de que papel ele desempenhar nele. Com expresso enfastiada e gestos calculadamente lentos, o bandido cospe um pedao de fumo recurso dramtico exaustivamente explorado por Leone, e hbito comum em heris do western americano, como aquele interpretado pelo prprio Fonda em O Retorno de Frank James (The Return of Frank James, Fritz Lang, 1941) e tambm por John Wayne em Legio Invencvel (1949) e avisa aos comparsas que no devem deixar sobreviventes. O rosto do menino, amedrontado, justaposto ao olhar frio de Henry Fonda (figuras 2.113 e 2.114). O pistoleiro atira na criana a sangue frio. No momento do tiro, h um dissolve e a imagem do 163 cano do revlver, apontando diretamente para o espectador num close-up extremo, se funde com a imagem de uma locomotiva avanando em direo cmera (figuras 2.115 e 2.116). Nesse caso, interessante observar que Leone optou por no utilizar a tradicional representao grfica da violncia, narrando o assassinato em si atravs de uma elipse. Esta a primeira vez, nos quatro westerns de Leone, em que um ato de violncia cometido por um protagonista no exibido explicitamente. A atitude compreensvel, afinal: exibir diretamente o assassinato a sangue frio de uma criana poderia provocar no pblico uma rejeio no a Frank, o personagem, mas a ele prprio, Leone. O terceiro protagonista de Era uma Vez no Oeste, Cheyenne, tem origem na caracterizao de Tuco como um pcaro: um bandido romntico e tagarela. Apesar de roubar e matar gente desarmada, ele fica furioso ao saber que os assassinos da famlia McBain usavam guarda-ps cor de terra, idnticos ao que o bando liderado por ele utiliza (eu jamais atiraria numa criana, diz). Cheyenne se revela um individualista amoral (ou um familista amoral sem famlia); como Harmonica, um solitrio, mas a simpatia instantnea dele por Jill no traz qualquer trao de interesse sexual. Ao contrrio: Cheyenne associa Jill prpria me (a mulher mais fina que j conheci, afirma). A me de Cheyenne no sabia quem tinha sido o pai dele (por uma noite, certamente foi o homem mais feliz do mundo), mas criou o filho com liberdade e sabedoria, pelo menos na opinio dele. Em outras palavras, a importncia da noo de famlia para Cheyenne o torna mais digno de simpatia. Por fim, o quarto protagonista uma mulher. Para construir a caracterizao de Jill, Leone recorre ao alusionismo: a situao vivida pela personagem (mulher pressionada a vender uma propriedade valiosa contra a sua vontade) idntica experimentada pela dona da taverna (Joan Crawford) de Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954). Ao contrrio do que ocorre neste, porm, Jill fraca. No se envolve em confrontos, se v dominada fisicamente por pistoleiros, obrigada a fazer sexo com o personagem de Henry Fonda (um dos muitos estupros encenados ao longo da obra de Leone), e no consegue impedir a venda de sua propriedade (que acaba sendo comprada e devolvida a ela pelo personagem de Charles Bronson; ou seja, ela s consegue alcanar o objetivo com a ajuda de um homem). Embora a prpria intrprete de Jill tenha elogiada a determinao e a firmeza de carter da personagem no se v muitas mulheres com essa personalidade em westerns (CARDINALE, 2005, p. 280) a equipe criativa sabia que lidar com personalidades femininas no era um ponto forte de Leone. O assistente Tonino Valerii avalia que Leone no tinha sutileza para captar a psicologia das mulheres; s sabia apreciar o senso fsico de 164 amizade existente entre homens, da mesma maneira que acontecia com outros diretores de western, como John Ford e Howard Hawks (VALERII apud Frayling, 2005, p. 279). Quanto ao pastiche, basta lembrar do comentrio de Jean Baudrillard. A estrutura narrativa de Era uma Vez no Oeste foi concebida como um mosaico em que uma citao levava prxima, e assim por diante. O objetivo de Leone era realizar uma elegia ao gnero, homenageando-o ao contar a histria dele atravs das citaes, que podiam consistir tanto em releituras crticas e irnicas de determinados cdigos quanto em aluses diretas que respeitavam e homenageavam nostalgicamente esses cdigos. Algumas citaes so bvias, como a cena de abertura, com trs pistoleiros esperando a chegada de um trem numa estao semi-deserta (figura 2.117) a mesma situao dramtica mostrada em segundo plano durante Matar ou Morrer (1952, figura 2.118). Ou a cena em que o menino Timmy McBain se esgueira por entre rvores para caar pssaros (figura 2.119),em tomadas que aludem a uma cena de Os Brutos Tambm Amam (1953), em que outra criana faz os mesmos movimentos para atirar em um cervo (figura 2.120). A chegada da locomotiva, na abertura (figura 2.121), consiste numa citao mltipla. Visualmente, alude a uma tomada famosa de Cavalo de Ferro (1924, figura 2.122), obtida com a cmera colocada num buraco sob os trilhos; tematicamente, a chegada da ferrovia e o conseqente despertar da cobia de pistoleiros simboliza a domesticao da regio selvagem pelo homem branco colonizador. Esse tema foi explorado em muitos westerns, inclusive Os Conquistadores (Western Union, Fritz Lang, 1941) e A Conquista do Oeste (1962). Um longa-metragem citado vrias vezes Johnny Guitar (1954). Alm de o personagem feminino ter sido inspirado na protagonista dele, o personagem Harmonica tambm descendeu do mesmo filme, s que trocando o violo por uma gaita (figuras 2.123 e 2.124). O heri feito por Henry Fonda em O Retorno de Frank James (1941, figura 2.125), que tambm se chamava Frank, retm um hbito de muitos dos personagens de Leone: mascar tabaco (figura 2.126). A cena em que Cheyenne entra num bar e bebe gua, revelando um par de algemas, foi copiada de Os Comancheros (The Comancheros, Michael Curtiz, 1961). Isso tudo sem falar da seqncia em que Jill, viajando de Flagstone (uma combinao mais um pastiche de Flagstaff com Tombstone, duas locaes clssicas do western) para o rancho do marido, atravessa a regio do Monument Valley, onde John Ford filmou oito westerns, consagrando o cenrio como um dos mais caractersticos do gnero (figuras 2.127 e 2.128). Praticamente todas as cenas de Era uma Vez no Oeste comportam uma ou mais citaes explcitas como essas. No que se refere ao pastiche, o longa-metragem representa o ponto mais alto do estilo de Leone. 165 Figura 2.117: A seqncia de abertura de Era uma Vez no Oeste, que flagra a monotonia de trs pistoleiros aguardando a chegada de um trem, citao de ... Figura 2.118: ... Matar ou Morrer (1952), em que trs pistoleiros esperam um comparsa em cenrio parecido, que inclui at uma caixa dgua em segundo plano. Figura 2.119: Em Era uma Vez no Oeste, pouco antes da chegada dos pistoleiros ao rancho da famlia McBain, a cmera segue um menino fingindo caar pssaros ... Figura 2.120: ... em uma citao direta a Os Brutos Tambm Amam (1953), em que uma criana caa um cervo e interrompida pela chegada de um cavaleiro. Figura 2.121: O ngulo baixo de cmera escolhido para filmar o plano que mostra a locomotiva pela primeira vez em Era uma Vez no Oeste, durante os crditos ... Figura 2.122: ... exatamente igual imagem icnica da viagem do trem no clssico do cinema mudo O Cavalo de Ferro (1924), um dos primeiros longas de John Ford. Figura 2.123: A inspirao para o personagem Harmonica (Charles Bronson), o misterioso protagonista de Era uma Vez no Oeste, veio diretamente de ... Figura 2.124: ... Johnny Guitar (1954), em que o personagem-ttulo anda com um violo a tiracolo e sempre anuncia sua presena tocando o instrumento. 166 Figura 2.125: O hbito de mascar tabaco um recurso dramtico muito explorado por Leone o personagem Frank cultiva esse hbito, inspirado por ... Figura 2.126: ... outro personagem com o mesmo nome e interpretado pelo mesmo Henry Fonda, no clssico O Retorno de Frank James (1941), de Fritz Lang. Figura 2.127: Uma das seqncias mais lembradas de Era uma Vez no Oeste faz reverncia aos westerns de John Ford atravs das montanhas de Monument Valley. Figura 2.128: A reserva indgena no Utah (EUA) era o local preferido de John Ford, que fez l oito longa- metragens, inclusive o clssico Rastros de dio (1956). 2.4 Fim da linha O filme seguinte, Quando Explode a Vingana, marca uma ruptura na estratgia de intensificao. Pela primeira vez, Leone tinha um objetivo primrio que no expressava qualquer relao com o enredo do filme em si (como vimos antes, ele queria fazer um comentrio pessoal sobre os spaghetti westerns de cunho poltico-ideolgico). Alm disso, Quando Explode a Vingana foi concebido como um filme que Leone apenas produziria; ele s assumiu a direo com as filmagens em andamento, devido presso dos atores principais. Ainda assim, na qualidade de produtor, Leone participou de todo o processo de desenvolvimento do roteiro, incluindo a caracterizao dos personagens e a estrutura fragmentada da construo narrativa em larga escala (unidade narrativa dividida entre dois protagonistas; quebra da continuidade cronolgica atravs do uso constante de flashbacks progressivos). Dessa superviso surgiu um dos mais explcitos familistas amorais da obra de Leone: o assaltante Juan (Rod Steiger). A prpria figura de Juan suficiente para inscrev-lo na galeria de pcaros de Leone: ps descalos, barrigudo, barba mal aparada, cabelos desgrenhados e grudados no rosto queimado de sol, roupa suja e puda, largas manchas de suor nas axilas, barrigudo, risada manaca. Juan o primeiro protagonista de um filme de Leone que possui famlia: seis filhos (de mes diferentes), irmos e sobrinhos. Juntos, os integrantes do cl abrem o filme assaltando uma carruagem. A encenao e a decupagem enfatizam os elementos picarescos, a 167 Figura 2.129: Jato de urina destri formigueiro: close-up extremo e rima irnica com o final, numa metfora em que as formigas representam os revolucionrios. Figura 2.130: A figura grotesca e bizarra de Juan (Rod Steiger) o inscreve instantaneamente na galeria de pcaros da tradio literria talo-espanhola. Figura 2.131: O condutor da carruagem (primeiro plano) autoriza Juan a subir a bordo (segundo plano): composio recessiva em profundidade de campo. Figura 2.132: A atuao histrinica de Steiger faz par com o figurino cabelos suados, ps descalsos, calas curtas demais para sublinhar o grotesco da figura. Figura 2.133: Os burgueses na carruagem, inclusive um bispo, recepcionam o mexicano com desprezo; a composio recessiva tem outro rosto como moldura. Figura 2.134: Os close-ups extremos dos rostos dos personagens so intercalados com planos-detalhes de bocas com pedaos de comida presos entre os dentes. Figura 2.135: Os burgueses conversam entre si em ingls, distribuindo insultos ao personagem Juan, sem saber que ele entende perfeitamente a lngua. Figura 2.136: A nica mulher na carruagem chupa uma tomate; Leone brinca com o grotesco da situao, criando um inesperado rasgo de sensualidade ... Figura 2.137: ... que ir reverberar dramaticamente mais tarde, quando Juan tentar estuprar a mulher numa arena circular; o estupro encenado como um duelo ... Figura 2.138: ... em que planos gerais e americanos, com a encenao realizada em diagonal, so intercalados a close-ups extremos dos personagens ... 168 Figura 2.139: ... como este plano; a justaposio dos dois tipos de composio fragmenta o espao flmico e produz o efeito de distenso do tempo cinematogrfico. Figura 2.140: A cena encerrada com nfase no grotesco: um plano-detalhe da bunda de Juan, com a expresso horrorizada da mulher ao fundo, esquerda. ironia, o senso de grotesco; so todos elementos caractersticos de um legtimo anti-heri inspirado na tradio literria da commedia dellarte. O filme abre com uma tomada inslita, que mostra um formigueiro sendo destrudo por um jato de urina (figura 2.129) mais tarde, esta cena compor uma rima narrativa metafrica com o bal de violncia da seqncia final, em que uma multido de camponeses indefesos acaba assassinada num tiroteio com militares. O responsvel Juan (figura 2.130). Ele apanha carona numa carruagem (figuras 2.131 e 2.132) que leva um bispo (mais uma vez, a iconografia religiosa usada para adicionar uma camada suplementar de ironia) e meia dzia de burgueses bem vestidos (figura 2.133). O modo como Leone filma os burgueses comendo, enquanto riem de Juan falando em ingls (e pensando que ele no os entende) enfatiza ainda mais o grotesco: profuso de planos-detalhes de bocas mastigando pedaos de comida (figuras 2.134, 2.135 e 2.136), com restos presos nos dentes. Mais frente, camponeses atacam a carruagem, e s ento descobrimos que tudo no passa de uma emboscada tramada pelo prprio Juan, que lidera o assalto. A seqncia termina com uma cena que mostra Juan estuprando uma das mulheres da carruagem mais um estupro para a longa galeria de cenas semelhantes nos filmes de Leone. Leone no filma o estupro em si (que est contido em uma elipse). A abordagem de Juan mulher tem decupagem semelhante a um duelo: sem dilogos, num cenrio circular, em que os dois rivais se movem um ao redor do outro (figuras 2.137 e 2.138), o tempo distendido atravs da fragmentao do espao flmico em close-ups extremos e planos- detalhes, at que o mexicano alcana a mulher e a agarra (figura 2.139). Juan domina a moa e, expresso vitoriosa, encerra a cena com uma frase irnica: Se desmaiar agora, vai perder a melhor parte!. A linha de dilogo coberta por uma imagem que resume perfeitamente o grotesco da situao: um close-up extremo da bunda do ator Rod Steiger (figura 2.140). Alm de Juan, Quando Explode a Vingana tem um segundo protagonista: o irlands Sean (James Coburn), membro do IRA, que se encontra no Mxico para auxiliar os camponeses na rebelio contra o governo nacional (o filme se passa entre os anos de 1910 e 169 1920, durante a Rebelio Mexicana). Embora destoe dos demais heris de Leone, por ter ideologia e motivao polticas, Sean passa por uma jornada no decorrer do filme, tornando-se mais desiludido. Ele faz amizade com Juan e se decepciona com a causa revolucionria (aps descobrir que os lderes camponeses esto mais interessados em enriquecer do que em levar a revoluo ao poder), sacrificando-se no final por ter contribudo para a destruio da famlia do assaltante. Este, por sua vez, v todos os filhos, irmos e sobrinhos serem mortos, tornando-se sem querer um heri dos revolucionrios; um heri que odeia a revoluo. Apesar do credo poltico, um aspecto de Sean reflete o seu individualismo amoral. Atravs de flashbacks inseridos gradualmente com lembranas de Dublin, percebemos que a mudana para o Mxico no ocorreu apenas por razes ideolgicas, mas tambm por um motivo afetivo: a namorada por quem era apaixonado havia sido assassinada, fazendo-o deixar a Irlanda para tentar superar o trauma. Mais um familista amoral sem famlia. Quanto ao uso de mltiplos protagonistas, Leone parecia gostar da idia de ter uma dinmica entre heris com caracterizaes distintas. Isso pode ser conferido em todos os filmes dele, a partir de Por uns Dlares a Mais, e tambm aparece em Meu Nome Ningum, ltima incurso de Leone pelo western. Nesse ltimo caso, importante frisar que o filme no foi dirigido oficialmente por ele. Leone aparece nos crditos como produtor e argumentista. Na prtica, sabe-se que ele trabalhou com o roteirista Ernesto Gastaldi, escolheu parte da equipe criativa (incluindo Ennio Morricone) e dirigiu todas as cenas registradas nos Estados Unidos, em variadas locaes nos estados de New Mexico e na cidade de New Orleans. Essas cenas consistem de aproximadamente dois teros do filme (HUGHES, 2004, p. 246). Nesse longa-metragem, a tcnica do pastiche aparece bastante, a comear pelo prprio ttulo (a frase Meu Nome Ningum foi retirada do dilogo de Ulisses com o Ciclope, na Odissia de Homero). Porm, dessa vez Leone utiliza com mais freqncia o alusionismo mais sutil. Um bom exemplo recai na apario do Bando Selvagem (figura 2.141): embora o nome da quadrilha seja uma aluso ao ttulo original de Meu dio Ser Sua Herana (The Wild Bunch, Sam Peckinpah, 1969), sua representao visual alude a outro longa-metragem, Drages da Violncia (1958, figura 2.142). De qualquer forma, as citaes explcitas continuam aparecendo. o caso da cena de abertura, em que trs pistoleiros armam uma cilada para tentar liquidar Jack Beauregard (Henry Fonda), caubi veterano, quando este decide fazer a barba (figura 2.143); alm de apresentar o tratamento distendido do tempo e o uso de rudos naturais amplificados como forma de realar a tenso do momento, a cena alude a Paixo dos Fortes (1946), onde o mesmo ator havia encenado um momento idntico (figura 2.144). 170 Figura 2.141: Embora o nome do bando de pistoleiros de Meu Nome Ningum(em si, aluso Odissia) seja uma aluso ao longa Meu dio Ser Sua Herana (1969)... Figura 2.142: ... as cenas em que a quadrilha aparece, cavalgando pelo deserto, citam visualmente outro filme: Drages da Violncia (1957), de Samuel Fuller. Figura 2.143: A tensa seqncia que envolve o ato banal de se barbear, em Meu Nome Ningum, aproveita a presena de Henry Fonda para citar outro filme ... Figura 2.144: ... em que o ator norte-americano protagonizou uma cena de violncia durante o mesmo ato: o clssico Paixo dos Fortes (1946), de John Ford. Os dois protagonistas so caracterizados de maneira arquetpica, cada um evocando uma vertente do western. A escalao dos dois atores principais deixa isso explcito. Para representar o veterano Jack Beauregard, Leone trouxe de volta Henry Fonda (figura 2.145). No papel do jovem f que pretende suceder o dolo est Mario Girotti (pseudnimo: Terence Hill), intrprete do personagem Trinity (figura 2.146). Da mesma forma que ocorrera em Era uma Vez no Oeste, a escalao de Fonda faz parte de um jogo intertextual com personagens anteriores interpretados por ele mesmo: homem solitrio, de poucas palavras, que nos filmes americanos era um altrusta. Aqui, ele um solitrio interessado exclusivamente em coletar dinheiro suficiente para comprar uma passagem de navio que lhe permita viajar para a Europa. O mesmo jogo intertextual justifica a escalao de Girotti. Embora todos se refiram ao personagem dele como Nobody (em portugus, Ningum), o que ao mesmo tempo brincadeira irnica (porque o que ele mais deseja ser algum) e pastiche (citao Odissia, de Homero), bvio que se trata do mesmo Trinity dos dois filmes assinados por Enzo Barboni. A caracterizao de Nobody a mesma de Trinity, at mesmo no figurino. Ele tambm errante e solitrio. Nobody um pcaro, um vagabundo que usa de esperteza para se safar de confuses. Veste roupas sujas, preguioso, prefere usar as mos ao revlver (embora seja um s com uma arma nas mos). Nesse ponto, ele se distancia um pouco do heri caracterstico de Leone, 171 Figura 2.145: Henry Fonda interpreta um veterano pistoleiro com planos de aposentadoria, numa referncia direta decadncia do western tradicional ... Figura 2.146: ... enquanto o italiano Mario Girotti, conhecido protagonista da srie Trinity, encarna seu sucessor, um trapalho que prefere socos ao revlver. pois menos violento; de fato, Nobody nunca apresentado como um criminoso, capaz de matar por dinheiro, como os heris anteriores de Leone. Essa caracterstica provoca a substituio dos duelos a bala, em algumas cenas, por trocas de sopapos coreografadas como nmero de circo, como ocorria nos spaghetti westerns que Leone estava criticando. Na prtica estilstica o filme desigual, s vezes reproduzindo e outras vezes se afastando dos recursos recorrentes em Leone (esse fato provavelmente explicado porque, afinal de contas, Tonino Valerii era oficialmente o diretor). As coreografias de tapas e chutes so encenadas e decupadas atravs de tcnicas que preservam o senso de espao e tempo flmicos: as tomadas so mais longas, h menos close-ups e mais planos gerais; e a encenao freqentemente mostra os atores atuando num eixo horizontal em relao cmera, com profundidade de campo menor do que nos westerns anteriores. Este mesmo estilo de encenao pode ser observado nos filmes de Valerii, como O Preo do Poder (Il Prezzo Del Potere, Tonino Valerii, 1969) e Dias de Ira (Il Giorni DellIra, Tonino Valerii, 1967). No que se refere temtica e construo em larga escala, a cena analisada a seguir respeito bem mais os esquemas do gnero do que os demais filmes de Leone. Trata-se de uma briga de bar, momento familiar para qualquer espectador acostumado com westerns; e foi filmada usando-se o estilo clssico de continuidade invisvel, como um diretor veterano de westerns nos Estados Unidos o faria, nos anos 1930-1960: predominncia de planos americanos (figuras 2.147 e 2.149) ou mdios (figuras 2.148 e 2.150) de longa durao. A encenao horizontal resulta em imagens planimtricas, com menos senso de profundidade. Os recursos estilsticos so menos retricos do que os utilizados por Leone para encenar situaes semelhantes em filmes anteriores. Na briga de bar de Por uns Dlares a Mais, que analisamos antes, Leone optou por planos curtos, cortes rpidos, variaes radicais de enquadramento, encenao em diagonal, cmera prxima dos atores, close-ups extremos e composies recessivas com profundidade de campo. Nenhum desses recursos usado aqui. Nesta cena, o diretor varia pouco o enquadramento. A nfase est na velocidade da ao dentro do quadro (tapas em sucesso rapidssima efetuados por Girotti); algumas vezes, 172 Figura 2.147: Para filmar as brigas de Nobody, Tonino Valerii usa um estilo de encenao mais clssico, com maior economia de close-ups e tomadas mais longas. Figura 2.148: Mesmo nas composies recessivas, com personagens dispostos numa linha diagonal, a distncia entre os atores prxima e a profundidade, menor. Figura 2.149: Tomadas que mostram tapas so encenadas com atores dispostos em linha horizontal e figurantes imveis: composio planimtrica. Figura 2.150: A imobilidade dos figurantes importante para que, na edio, a velocidade da tomada possa ser manipulada, acelerando-se em determinados trechos. possvel notar que o efeito decorre da alterao da velocidade de projeo, efeito perceptvel porque os figurantes que assistem cena, em segundo plano, praticamente no se movem (possivelmente orientados pelo diretor), o que causa um efeito de estranhamento geral. Poderamos perguntar: por que encenar duas brigas de bar, em filmes do mesmo gnero, de maneiras to distintas? A resposta mais simples que no foi Leone, mas Valerii, quem dirigiu a cena, escolhendo solues diferentes para os mesmos problemas de representao. Por outro lado, o diretor seja ele quem tenha sido usou uma situao dramtica tpica do western americano para reverter uma expectativa do pblico (uma briga de bar onde revlveres no eram sacados e nem disparados), e subverter um cdigo especfico do western cmico italiano atravs do estilo (filmando uma troca de sopapos de maneira deliberadamente reverente ao western mais antigo). Nesse ponto, cultivando tanto a tradio quanto a modernidade, justapondo ironia e nostalgia em uma nica cena, o cineasta criava um paradoxo tanto temtico quanto pictrico. Com relao disputa entre Nobody e Beauregard, uma leitura possvel para a rivalidade entre os dois pistoleiros de caracterizaes to distintas que o diretor encenava no filme uma espcie de confronto do heri romntico do western americano contra o anti-heri cnico do spaghetti western. Esse confronto no est proposto numa leitura conceitual do filme; acontece de verdade, fica explicitado no duelo que fecha o filme. A cena, que ambientada em New Orleans, mostra os dois protagonistas encenando um duelo clssico: um em cada lado da rua, com uma multido assistindo (figuras 2.151 e 2.152) e um fotgrafo 173 Figura 2.151: O duelo final de Meu Nome Ningum cria um confronto entre os dois heris na rua principal de New Orleans, com uma multido assistindo. Figura 2.152: A decupagem tem pouco de Leone: planos americanos, nenhum close-up extremo e poucas composies recessivas, sem profundidade de campo. Figura 2.153: Um fotgrafo dirige a encenao dos pistoleiros, apontando o lugar exato em que cada um deve ficar para obter o registro do melhor ngulo. Figura 2.154: Depois de encenar a prpria morte, Jack Beauregard vai viver na Europa; o veterano pistoleiro agora usa culos de aro de metal para conseguir ler. registrando tudo (figura 2.153). Esse fotgrafo chega a orientar a posio de cada pistoleiro para conseguir o melhor ngulo do tiro fatal (uma ironia auto-reflexiva, aspecto do processo de intensificao da continuidade clssica visto dos filmes europeus dos anos 1960). Embora a cena termine com Beauregard supostamente morto, na verdade todo o confronto uma armao da dupla. Ambos ficam vivos. Nobody se torna uma celebridade, tendo supostamente eliminado o homem mais rpido no gatilho do mundo. E agora habita um Oeste que nada tem de velho, em que automveis e fotgrafos circulam, trazendo consigo uma modernidade que condena o gnero a um melanclico (e nostlgico) final. Beauregard (figura 2.154), ao mesmo tempo, viaja para a aposentadoria europia, depois de enviar uma carta agradecendo e se despedindo de Nobody. Cada um dos heris recebe, simbolicamente, o destino que Leone imaginava estar reservado para o gnero. Aps este filme, Leone no retornaria mais ao western, tendo se dedicado ao projeto que acalentava desde o comeo da carreira: um pico gngster cujo conceito central era a violncia como motor propulsor da prosperidade dos Estados Unidos. Embora lidasse com um gnero diferente, Leone trouxe consigo todo o repertrio de tcnicas estilsticas e narrativas, a comear pelo perfil dos heris, pelas citaes abundantes e pela representao da violncia. O filme de gngster, que nos anos 1930 tinha sido um dos gneros mais populares dos Estados Unidos, passava por uma onda de revitalizao aps o grande sucesso de O Poderoso Chefo (1972). Francis Ford Coppola, assim com a maior parte dos cineastas da gerao New 174 Hollywood, assimilara alguns recursos estilsticos desenvolvidos pelos diretores europeus dos anos 1960, inclusive Leone. Seus filmes j tinham heris amorais e violncia grfica. Mesmo assim, Leone teve problemas de ordem moral. Ele precisou lutar para convencer executivos que os dois personagens centrais eram viveis para uma audincia americana. O problema estava no perfil violento de ambos. O pico mostrava a ascenso de Noodles (Robert De Niro) e Max (James Woods), de jovens e ambiciosos ladres de padaria no Brooklyn a chefes de um imprio mafioso. Nessa trajetria, os dois agiam sem qualquer limite moral: assassinatos, assaltos, estupros. Ningum sofria qualquer tipo de crise de conscincia por causa disso, e nem mesmo uma punio simblica. Mas o filme foi feito. A cena em que Noodles corteja a atriz Deborah (Elizabeth McGovern) sintetiza algumas dessas caractersticas. Sua anlise permite perceber como Leone ajustou o perfil do anti-heri para um gnero urbano, em que ele obrigado a viver em sociedade. No sculo XX, afinal de contas, a opo de abandonar a sociedade e viver vagando pelo deserto no existia mais. Era preciso seguir regras sociais, mesmo que apenas por aparncia. No filme, Noodles apaixonado por Deborah. Sabendo que a moa gosta de luxo, ele a convida para jantar num restaurante caro. Ao chegarem l, Deborah constata que Noodles arrendou o lugar apenas para o casal (figura 2.155). Os garons recebem-nos na entrada. Durante o jantar, os close-ups de ambos enfatizam a tenso (figuras 2.156 e 2.157). Os dois danam uma valsa (figura 2.158), e saem numa limusine. O sol est para nascer. Noodles a pede em casamento, mas ela recusa (figura 2.159); no tem inteno de abrir mo de sonhos profissionais para ficar com um homem que no lhe permitir trabalhar. Noodles deixa cair a mscara. At ali ele seguiu as convenes sociais, mas, na verdade, ele no d a mnima para elas; est acostumado a ter o que quer, a todo custo, e vai conseguir. O mafioso agarra Deborah, arranca e rasga suas roupas, e a estupra no banco de trs do carro (figuras 2.161, 2.162 e 2.163), numa longa cena pontuada pelos gritos dela. A cena tem dois minutos e onze segundos (131 segundos). Leone a decupa em close-ups extremos e planos-detalhes que enfatizam a humilhao da mulher. A construo sonora da cena a amplificao natural dos gritos de Deborah torna o momento ainda mais monstruoso. Este o perfil dos dois heris (Max ainda pior): assassinos, ladres e estupradores. O longa-metragem narrado do ponto de vista de Noodles que, chegando velhice em 1968, comea a recordar o passado. Toda a atmosfera de nostalgia, incluindo a msica a mais convencional composta por Morricone para Leone, repleta de orquestras de cordas e big bands jazzsticas que evocam a msica verdadeira ouvida nos tempos da juventude do protagonista com citaes a fraseados musicais de trechos de canes conhecidas (ou seja, 175 Figura 2.155: Composio com moldura: para ter duas camadas em foco (o luxo e a reao de Deborah so importantes), Leone filma o casal a certa distncia. Figura 2.156: Close-ups de Robert De Niro enfatizam os olhares fixos e insistentes que dirige mulher, tentando adivinhar se ela pretende ceder s investidas dele. Figura 2.157: Close-ups de Deborah, ao contrrio, mostram a moa desviando constantemente o olhar, o que sinaliza que o resultado da noite no vai ser feliz. Figura 2.158: Orquestra de cordas acompanha a valsa do casal: mveis e figurinos foram pesquisados em antiqurios, para garantir a acuidade histrica. Figura 2.159: Dentro do carro, Deborah explica a Noodles que no pretende se casar com ele, pois deseja se dedicar arte: close-ups extremos de rostos. Figura 2.160: Ela se despede com um beijo na bochecha; os close-ups enfatizam o desconforto da mulher e a irritao mal-disfarada do mafioso, que explode ... Figura 2.161: ... e arranca a roupa de Deborah com agressividade; ela se desespera e comea a gritar por socorro, mas eles esto dentro do carro e no h ajuda. Figura 2.162: Leone encena toda a seqncia do estupro, que tem dois minutos e 11 segundos, pondo a cmera bem prxima do casal e com planos mdios ... 176 Figura 2.163: ... e close-ups que enfatizam o sofrimento da garota e a fria incontrolvel do heri do filme, um assassino e ladro, agora tambm estuprador. Figura 2.164: Com o sol nascendo, Noodles sai do carro e vai embora a p, caminhando contra o cu azul: o plano geral enfatiza a vida solitria que ele levar. pastiche). O tema central, que aparece em diversas verses e arranjos no decorrer do filme, consiste numa adaptao da cano espanhola Amapola, de 1922. A nostalgia consiste em uma insatisfao latente com a cultura do presente, deixando um vazio que preenchemos com a nostalgia por um passado idealizado (HUTCHEON, 1998). Trata-se de outra experincia esttica associada condio ps-moderna. A nostalgia elemento central tambm na estrutura narrativa no-cronolgica, j que a maior parte do enredo consiste nas lembranas entrelaadas de dois perodos distintos do passado (1923 e 1933), a partir da mente de um homem que se encontra mais de trs dcadas depois. Alis, a construo narrativa em larga escala consiste na maior ousadia em Leone em direo intensificao de sua prtica narrativa. As memrias do mafioso so contadas de forma no-cronolgica, com flashbacks fora de ordem, que confundem deliberadamente a realidade com a fantasia, de forma que o espectador nunca tem certeza se est vendo o que ocorreu realmente ou representa uma verso idealizada do passado de Noodles, distorcida pelas prprias memrias do delinqente. Era Uma Vez na Amrica trafega indistintamente entre trs pocas, indo e voltando no tempo. Durante todo o filme, somos levados a pensar que o presente narrativo o ano de 1968; o passado acessado atravs de lembranas induzidas pelo pio o personagem freqentador de bares de pio e que Leone revela, somente na cena final, serem distorcidas em variados graus de realidade. Nesse ponto, Leone utiliza outro recurso narrativo da continuidade intensificada: a subjetividade das tramas, ou de parte delas, que se passariam exclusivamente na mente de um personagem, sem correspondncia direta com a realidade diegtica (BORDWELL, 2006, p. 80). A cena final foi pensada para pr em nova perspectiva toda a trama: aquelas memrias do passado corresponderiam realidade ou no passariam do sonho de pio do mafioso? Leone fez questo de trabalhar nas transies entre as cenas do passado e do presente, de forma a deixar essas transies claras e suaves, sem interromper o fluxo narrativo. Um dos 177 melhores exemplos de passagem do presente para o passado pode ser encontrado na cena em que Noodles adolescente se apaixona por Deborah, ao v-la danando bal enquanto espia por um buraco na parede do banheiro do bar do pai dela. A cena usa a tcnica do pastiche, j que Leone a construiu visualmente como uma homenagem srie de quadros de Edgar Degas sobre bailarinas. Leone era apaixonado pelo pintor e buscou inspirao nele para desenvolver um de seus recursos estilsticos visuais mais recorrentes, que era a composio recessiva com encenao em diagonal. Voltaremos mais detalhadamente a este tpico no captulo a seguir. A cena inicia com o velho Noodles, em 1968, entrando no mesmo banheiro masculino. Ele sobe na privada e retira um pedao de madeira, abrindo um buraco cuja vista d para o depsito do restaurante (figura 2.165). A msica de Ennio Morricone evolui num crescendo; a velocidade do zoom est em sincronia com a aproximao do rosto do personagem parede, que por sua vez est em sincronia com a evoluo da msica. uma sincronia tripla, que culmina com um close-up extremo dos olhos de Noodles, emoldurados pelos limites do buraco na parede (figura 2.166). Ento, a cmera pra e a msica pra. O que ele v? O corte nos mostra um plano geral aberto da adolescente danando bal (figura 2.167). A msica agora outra uma verso arranjada em ritmo de jazz para o tema oriundo de Amapola, com instrumentao consistindo de bateria, guitarra, um solo de clarinete e contrapontos ocasionais de saxofone. Deborah (Jennifer Connelly, na verso jovem) dana ao som de uma vitrola. A msica diegtica. O enquadramento inicial a mostra emoldurada pelas bordas do buraco na parede, expressando subjetivamente que aquele o mesmo ponto de vista imagtico visto por Noodles. Leone ento realiza um lento zoom, at eliminar a moldura por completo e construir um plano geral mais fechado. Os prximos cortes nos do imagens de Deborah danando mais de perto (figura 2.168). De vez em quando, ela desvia o olhar para a cmera, demonstrando saber que est sendo observada por algum e gostando disso (o gesto mnimo, mas ajuda a caracterizao da personagem, pois Deborah optar pela profisso de atriz no futuro). Quando Leone corta de novo para os olhos de Noodles (figura 2.169), percebemos que se trata de um flashback, pois o que vemos no so os olhos de um velho, mas os olhos curiosos de um adolescente. Os enquadramentos da dana visam explicitar o contraste visual entre a figura feminina e graciosa que se move, delicada e suavemente, dentro daquele ambiente grosseiro, masculino, sujo, cheio de poeira e grandes sacos de mantimentos (figuras 2.170, 2.171 e 2.172), at que o irmo dela invade o depsito (figura 2.173) e avisa que o pai requisita a presena da garota no bar. Ela obedece, desligando a vitrola o final abrupto da msica expressa tambm o fim da viso de Noodles , mas encerra sua apresentao com um 178 Figura 2.165: Close-up lateral mostra o velho Noodles olhando por um buraco na parede do banheiro; zoom, personagem e msica se movem em sincronia. Figura 2.166: Close-up extremo dos olhos de Noodles: primeira vez que a assinatura estilstica mais reconhecvel de Leone utilizada no filme. Figura 2.167: Deborah ensaia bal no depsito de alimentos; cena consiste num pastiche de de pinturas de Edgar Degas com bailarinas, que Leone adorava. Figura 2.168: Close-ups enfatizam os olhares de soslaio que Deborah dirige para o buraco na parede, sabendo que est sendo observada e gostando disso. Figura 2.169: No contra-plano, um close-up extremo revela no mais os olhos de um velho, mas os de um adolescente: descobrimos que se trata de um flashback. Figura 2.170: Em seguida, Leone decupa a cena numa srie de planos gerais que enfatiza o contraste entre a delicadeza e a suavidade dos gestos femininos ... Figura 2.171: ... e o grosseiro e sujo ambiente masculino do depsito do bar, cheio de sacos de alimentos; a luz dourada expressa a nostalgia idealizada de Noodles ... Figura 2.172: ... em relao a este momento da infncia, enquanto o plano de Deborah se admirando no espelho revela um trao exibicionista em sua personalidade. 179 Figura 2.173: De repente, um rapaz entra no depsito e avisa que Deborah precisa trabalhar; a composio visual em camadas e a luz evocam estilo de Degas. Figura 2.174: Deborah desliga a vitrola encerrando tambm a msica diegtica e troca de roupa na frente de Noodles, sem tentar disfarar sua nudez. toque final de erotismo: troca de roupa na frente do rapaz (figura 2.174), exibindo-se nua. Como j sabemos, essa ao despretensiosa ter uma conseqncia violenta, anos depois. As duas cenas analisadas tm uma ligao entre si. Ao longo deste captulo, analisamos os recursos recorrentes empregados por Leone para estruturar a temtica e a construo narrativa em larga escala de seus filmes. Confirmamos, atravs de uma anlise flmica detalhada, que os padres narrativos recorrentes na obra dele (pastiche e alusionismo em variados graus de nfase, heris violentos, individualistas e de moral ambgua, representao grfica da violncia, ironia e nostalgia, releitura de gneros rigidamente codificados) sempre buscavam revisar os esquemas narrativos da fase clssica do cinema. Procuramos, tambm, analisar os contextos scio-culturais nos quais esses padres recorrentes surgiram para Leone, instituindo-se como limites ou pr-condies que o influenciaram nesse processo. Vimos, assim, que o trao em comum entre os usos que Leone fazia dos recursos narrativos disponveis era o pendor pela ostentao, o gosto pelo exagero, aquilo que os crticos dos Cahiers du Cinma chamaram de barroquismo. Por sua vez, esse pendor confirma a intensificao de caractersticas narrativas comuns ao repertrio do cinema clssico, em direo potica da continuidade intensificada. No prximo captulo, aplicaremos a mesma metodologia para analisar a prtica estilstica de Leone (ou seja, a terceira vertente da potica do cinema). Pretendemos confirmar at que ponto essa retrica inflamada tambm aparece na maneira como ele solucionava outros problemas de representao com os quais se defrontava. Samos do terreno narrativo para discutir, agora, questo da forma flmica. 180 3. Prticas estilsticas de Sergio Leone 3.1 Construindo um repertrio audiovisual Um ponto de partida promissor para a anlise minuciosa da prtica estilstica de Sergio Leone o estudo detalhado do confronto final entre os trs anti-heris de Trs Homens em Conflito. Essa seqncia particularmente eficiente, para nossos objetivos, porque se trata do momento mais famoso da histria do spaghetti western (HUGHES, 2004, p. 120). Atravs de sua anlise, pretendemos relacionar os padres estilsticos mais reconhecveis de Leone para, a seguir, analis-los um a um, relacionando-os com os contextos e influncias que permitiram ou mesmo determinaram sua utilizao. A seqncia completa pode ser dividida em duas cenas. A primeira consiste no encontro final dos trs personagens, depois de chegarem separadamente ao cemitrio militar onde sabem que est enterrado o tesouro. A segunda aquilo que Sergio Leone chamava de trielo um duelo a trs para decidir quem tomar posse desse tesouro. possvel encontrar na seqncia, tambm, os padres narrativos recorrentes em Leone, os quais j analisamos no captulo anterior. O exame minucioso dessa seqncia nos permitir, inclusive, estabelecer conexes os recursos de ordem narrativa e os demais, de natureza estilstica. A seqncia ambientada num cemitrio militar abandonado. No local est enterrada uma carga de 200 mil dlares em moedas de ouro, escondidas em um dos 10 mil tmulos de soldados mortos durante a guerra civil. Depois de cruzarem todo o territrio norte-americano, de norte a sul, entre encontros e desencontros violentos, os trs anti-heris chegam ao local quase ao mesmo tempo. o clmax do filme. Ao todo, a seqncia tem 149 planos. As duas cenas que a compem tm durao completa de nove minutos e 23 segundos (563 segundos); a durao mdia de um plano tem 3,8 segundos. uma mdia baixa para um filme de 1966, o que caracteriza uma montagem bastante veloz. Naquela dcada, os filmes costumavam ter, em mdia, nove segundos por plano (SALT, 2009, p. 280); mas Leone realizou Trs Homens em Conflito em 1966, quando o processo de acelerao da montagem uma das caractersticas centrais da potica da continuidade intensificada estava em curso. Para comear a anlise, importante lembrar que se trata de um filme de gnero. J vimos como o gnero funciona como uma pr-condio do estilo; portanto, de se esperar que haja algum tipo de confronto fsico. No mnimo, algum tipo de expectativa de que haja 181 um duelo; a expectativa da violncia funciona como um dos mais fortes cdigos do western. Se os trs pistoleiros se encontrassem no cemitrio, desenterrassem o ouro, apertassem as mos e fossem embora, o pblico ficaria frustrado. O motivo dessa frustrao seria a violao deste cdigo to importante. A questo, aqui, no era violar deliberadamente esse cdigo, mas rel-lo criticamente, revisando o esquema dominante de construo narrativa do western. Toda a seqncia estruturada como uma conveno de gnero: um confronto cujo arco dramtico evolui at se transformar em um duelo clssico, s que entre trs pistoleiros ao invs de dois. Os heris se encaram e se estudam longamente, em uma espcie de arena circular feita de pedras no centro do cemitrio. Blondie encerra o duelo com dois tiros certeiros, matando Angel Eyes, enquanto Tuco descobre que seu revlver est descarregado, pois Blondie havia retirado as balas na noite anterior. Nesse ponto reside um aspecto importante da releitura, operada atravs da ironia. Somente ao final da seqncia o espectador descobre, junto com Tuco, que todo o duelo, cuja ao dramtica evolui num tenso movimento de crescendo, construdo atravs de uma combinao cuidadosa de montagem visual, edio de som e msica, foi uma farsa. Blondie sabia desde o incio que Tuco no representava ameaa, de modo que pde concentrar toda a ateno em Angel Eyes, enquanto os outros dois pistoleiros tinham que dividir a ateno alternadamente entre um e outro adversrio. Estando em vantagem diante dos dois, no havia sido dificuldade para Blondie eliminar o adversrio mais perigoso. Na verdade, a seqncia toda constitui uma subverso do cdigo do duelo em trs nveis: (1) h trs adversrios em cena, ao invs de dois; (2) se num western normal o pistoleiro mais rpido ganha, aqui vence o mais astuto, pois ele usa um truque desleal para sair em vantagem; (3) tanto quanto Tuco foi enganado por Blondie, o espectador foi enganado por Leone. Tuco o primeiro a chegar ao cemitrio. A primeira tomada, cujo corte est em sincronia com a ltima nota da melodia que sublinhou a cena anterior, consiste num close-up extremo do rosto do pistoleiro, com expresso exultante (figura 3.1). Ele olha diretamente para a cmera; esta representa o tmulo procurado, aquele onde est escondido o tesouro. H dois aspectos interessantes na escolha do ngulo de cmera para este plano em particular. Em primeiro lugar, o ngulo escolhido, em que a cmera assume o ponto de vista do tmulo onde o tesouro est enterrado. Esse ponto de vista fora o personagem a olhar diretamente para a cmera, um procedimento raro nos esquemas dominantes do cinema clssico, mas bastante comum no modernismo europeu dos anos 1960, cujos cineastas gostavam de lembrar ao espectador que ele est assistindo a um filme, maneira de Bertolt Brecht. 182 Esse recurso estilstico era evitado no cinema de Hollywood porque se temia que ele quebrasse a iluso de imerso na histria proporcionada pela potica da continuidade clssica. A reviso dos esquemas realizada pelos cineastas europeus dos anos 1960, contudo, estava progressivamente reabilitando a ferramenta, que fora usada nas duas primeiras dcadas do cinema mudo por exemplo, no plano final do western O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, Edwin S. Porter, 1903). Os Incompreendidos (1959), A Tortura do Medo (Peeping Tom, Michael Powell, 1960) e As Aventura de Tom Jones (Tom Jones, Tony Richardson, 1963), por exemplo, constituem alguns dos filmes em que esse recurso foi usado. Ento possvel afirmar que, ao inclu-lo no repertrio estilstico utilizado em Trs Homens em Conflito, Sergio Leone estava (conscientemente ou no) se alinhando ao grupo de diretores que iniciaram a potica da continuidade intensificada. O segundo ponto que chama a ateno a abundncia do enquadramento em close-up, sobretudo na variao extrema. Esse tipo de composio, embora comum, muito mais freqente no cinema de Sergio Leone do que no repertrio de qualquer outro cineasta contemporneo dele (COUSINS, 2004, p. 33). Para se ter uma idia, dos 149 planos que constituem a cena, nada menos que 77 deles so close-ups ou seja, 51,67%, mais da metade de todos os planos utilizados na montagem final. A tendncia de Leone para destacar o rosto dos atores, buscando principalmente os olhos, est expressa nesta seqncia de forma evidente. Dos 77 planos que utilizam o close- up, 56 destacam rostos. Mais de um tero de todas as composies pictricas (37,58%) esquadrinham os rostos dos atores. Os enquadramentos variam entre close-ups normais (ombros e rosto, como nas figuras 3.26, 3.27 e 3.28), close-ups extremos (somente o rosto, com as extremidades da cabea e do queixo cortadas, a exemplo das figuras 3.29, 3.30 e 3.31) ou close-ups ainda mais extremos que focalizam apenas os olhos (figuras 3.36, 3.37 e 3.38). Algumas pr-condies scio-culturais (releitura crtica do gnero, inovaes do cinema modernista, concorrncia com a televiso), tecnolgicas (limitaes no uso de lentes anamrficas) e financeiras (o close-up extremo muitas vezes escondia a pobreza do cenrio, porque o rosto do ator preenchia toda a tela) foram determinantes para que Leone operasse essa escolha estilstica, optando pelo uso cada vez mais abundante do close-up. Detalharemos essas origens da ferramenta estilstica adiante. importante estabelecer a conexo entre o uso do close-up e outro recurso de estilo: o tratamento peculiar do tempo flmico, com dilataes e compresses, distenses e aceleraes da narrativa que permitiam ao diretor manipular a percepo da passagem do tempo interno da cena, ao passo em que, na potica da continuidade clssica, os cineastas representavam a 183 passagem do tempo da forma mais natural possvel, sem cortes bruscos que pudessem abalar a sensao de que o tempo transcorria em paralelo vida real (no cinema clssico, saltos cronolgicos ocorrem basicamente nas elipses e transies entre cenas). Essa conexo entre a preferncia por close-ups e o tratamento do tempo diegtico parece ter uma relao direta com a representao mais fragmentada do espao flmico, particularmente nos momentos de drama mais intenso, em que a cmera fica mais prxima dos personagens e a montagem mais veloz. Leone sustentava a representao fragmentada do espao flmico durante o mximo de tempo possvel, para ento justapor aos close-ups e planos-detalhes uma ou outra tomada panormica em que os personagens se tornavam pontinhos minsculos se movendo na tela (figuras 3.15 e 3.16). Essa economia de planos gerais contribui para no deixar to claras as relaes espaciais entre os personagens da cena. A fragmentao do espao flmico fica mais evidente a partir do instante em que a seqncia entra em sua segunda cena, quando os trs personagens passam a se encarar em igualdade de condies, j que at ento as relaes de foras entre eles eram desequilibradas (figura 3.13 em diante). No por acaso, exatamente nesse momento que a msica de Ennio Morricone ouvida pela primeira vez. Mas, por enquanto, retornemos ao incio da cena, quando Tuco chega (figuras 3.1 e 3.2). Ele comea a cavar (figura 3.3), quando a sombra de um homem entra no quadro pelo lado esquerdo (figura 3.4), ao mesmo tempo em que possvel ouvir, na trilha sonora, o fraseado que funciona como leitmotiv e, assim, identifica o dono da sombra antes que possamos ver seu rosto. Blondie. A melodia de cinco notas (L- R-L-R-L), associada ao instrumento que a executa (a flauta doce) o identifica. At ento, Leone decupa a ao recorrendo a ngulos de cmera clssicos: Tuco filmado em plong, do ponto de vista de Blondie, enquanto este enquadrado em contra- plong (figura 3.5). Blondie est no comando. Tuco hesita (figuras 3.6 e 3.7), mas volta a cavar (figura 3.8), aceitando a superioridade momentnea do outro. Nesse momento, Angel Eyes chega. A entrada em cena do personagem de Lee Van Cleef semelhante chegada de Clint Eastwood, e sintetiza outro recurso estilstico importante na obra de Leone: a relao por vezes contraditria entre aquilo que est sendo mostrado no quadro e os elementos que esto fora dele; uma espcie de trompe loeil cinematogrfico (figura 3.9). Os dois personagens focalizados pela cmera s percebem a chegada do terceiro ator quando uma p entra em quadro por baixo do frame. No mundo real, essa apario quase sobrenatural seria literalmente impossvel. Afinal, os dois homens esto num terreno amplo, sem qualquer barreira aos olhos; um lugar silencioso. Seria impossvel 184 que outro ser humano se aproximasse de qualquer lado sem ser ouvido, ainda mais considerando que esses dois homens so pistoleiros profissionais de categoria j comprovada. Nos filmes de Leone, contudo, essa relao do espao em quadro com o espao fora do quadro constantemente fantasiosa; os personagens focalizados pela cmera muitas vezes s enxergam aquilo que est dentro do quadro, numa espcie de adaptao para o cinema da tcnica do trompe loeil. Essa tcnica tambm vale para a apario de Clint Eastwood diante de Eli Wallach, reforada pelo fato de que Tuco sabia, perfeitamente, que o adversrio estava apenas alguns minutos atrs de si e, portanto, chegaria rapidamente at ele. Frayling (2000) explica assim a relao entre o espao do quadro e o que est fora dele, na obra de Leone: De repente, objetos surgem de fora do frame, vindo de trs do campo de viso da cmera. Freqentemente a cmera revela coisas surpreendentes para ns, coisas que os personagens deveriam ter sido capazes de ver antes. Pelas regras clssicas de Hollywood, esse trabalho de cmera inteiramente redundante e sem motivo. (FRAYLING, 2000, p. 230). Uma das caractersticas do cinema clssico a subordinao da forma ao contedo; os cineastas formados at a dcada de 1950 justificavam narrativamente todo tipo de escolha estilstica que operavam. Mas nos filmes europeus dos anos 1960 j no era assim. Nesse sentido, ao inserir na decupagem composies visuais que pareciam gratuitas, apenas por razes estticas (e ainda por cima recorrentes), torna-se bvio que Leone estava, conscientemente ou no, operando uma intensificao na prtica estilstica, ao mesmo tempo em que cunhava uma assinatura pessoal. A entrada em cena de Angel Eyes oferece um exemplo de outro elemento recorrente do estilo pictrico de Leone: a composio recessiva com moldura e profundidade de campo. No plano (figura 3.9), a p est bem prxima cmera e funciona como uma espcie de moldura que tensiona a ao principal mostrada distncia, em segundo plano; as duas camadas da imagem aparecem em foco ntido. Esta a maneira predileta que Leone encontrou para dar profundidade a seus planos gerais, mantendo a tenso da cena como um todo. Alis, muito freqente que a figura em primeirssimo plano seja um close-up extremo, muitas vezes de rostos. Esse tipo de composio repetido em outros cinco planos que integram a cena (figuras 3.12, 3.20, 3.21, 3.22 e 3.32). Mais frente, vamos esclarecer os limites e pr- condies que originaram a adoo dessa ferramenta, bem como sua nfase to pronunciada, na obra de Leone. Ela tambm aponta para uma intensificao na retrica visual dos filmes. No momento em que aparece, Angel Eyes toma de Blondie o comando dramtico das aes. Ele ordena que os dois mercenrios cavem (figuras 3.10). Blondie no obedece, e 185 Figura 3.1: Close-up de Tuco olhando para a cmera (ento um tabu); o corte para este plano sincrnico com o corte da msica (cena anterior) para o silncio. Figura 3.2: Tuco olha para o tmulo onde o tesouro supostamente est enterrado; a banda sonora inclui apenas sons fora de quadro (vento, pssaros e corvo). Figura 3.3: Agora, os sons emitidos por ele (respirao e rudos da escavao) se somam trilha sonora; o pistoleiro mostrado em planos gerais e mdios. Figura 3.4: A sombra de Blondie entra em quadro sem que Tuco o veja se aproximar; sabemos que ele por causa do leitmotiv (a msica tocada com uma flauta). Figura 3.5: Blondie enquadrado em contra-plong (ele comanda a ao); o corvo ave de mau agouro na mitologia grasna mais alto em segundo plano sonoro. Figura 3.6: Tuco filmado em plong (ngulo que representa submisso); ele avalia a possibiliade de atirar em Blondie para ficar com o tesouro s para ele ... Figura 3.7: ... e Leone narra essa hesitao cortando para um plano-detalhe da mo do pistoleiro se aproximando lentamente do revlver no bolso. Figura 3.8: Tuco desiste de reagir e volta a cavar; com o alvio da tenso, a cmera se afasta e passa a filmar os personagens num clssico plano de conjunto. Figura 3.9: Uma p entra em quadro por baixo do frame (trompe loeil), acompanhada pelo leitmotiv musical do trio: antes de v-lo, sabemos que Angel Eyes chegou. Figura 3.10: Blodie se recusa a cavar e diz que se for baleado, o tesouro estar perdido para sempre; o close- up extremo de Angel Eyes indica o alto nvel de tenso. 186 Figura 3.11: Blondie chuta a tampa do caixo e revela um esqueleto l dentro; a localizao do tesouro, que parecia certa, volta a ser um mistrio para os outros. Figura 3.12: Blondie apanha uma pedra no cho, escreve algo embaixo dela e comea a caminhar para o centro do cemitrio; agora, ningum domina ningum. Figura 3.13: Um degello comea a ser executado enquanto Blondie caminha; o violo flamenco faz floreios cuja intensidade cresce no momento em que ... Figura 3.14: ... Blondie deposita a pedra no cho e a cmera faz um zoom in na pedra; a msica se torna mais dramtica e agora inclui um solo de trompete. Figura 3.15: O refro apotetico soa em volume mximo, enquanto os trs se movem lentamente dentro da arena, num plano geral que dura 22 segundos ... Figura 3.16: ... e sucedido por outro plano geral, mais longo (39 segundos) e com a cmera mais distante, que descreve as relaes espaciais entre os pistoleiros. Figura 3.17: Leone corta para um plano mdio e a msica cessa de repente; agora s se ouve o vento soprar, o canto longnquo de pssaros e o corvo. Figura 3.18: Blondie tambm filmado em plano mdio, com a mesma durao da tomada anterior, dedicada a Tuco; a simetria de ngulo e durao dos planos ... Figura 3.19: ... se estende tambm tomada dedicada a Angel Eyes; Leone sinaliza atravs da decupagem a eqidade de foras entre os trs protagonistas. Figura 3.20: O prximo bloco de trs tomadas recorre a uma das composies prediletas de Leone: um elemento em primeirssimo plano (cabea e ombro) ... 187 Figura 3.21: ... e a ao dramtica acontecendo ao fundo (outro pistoleiro); as duas camadas da imagem permanecem focalizadas com nitidez. Figura 3.22: A mesma composio recessiva dedicada aos trs personagens, reforando a isonomia de fora e astcia; todos os sons diegticos so eliminados ... Figura 3.23: ... enquanto o degello de Morricone ressoa ao fundo; a ausncia de planos gerais fragmenta o espao flmico e induz a uma representao indireta ... Figura 3.24: ... do tempo, que parece passar mais lentamente do que o normal; a cmera permanece esttica em todos os planos dessa seqncia, ... Figura 3.25: ... enquanto a durao das tomadas progressivamente encurtada; a montagem ainda simtrica, dedicando o mesmo tempo e os mesmos ... Figura 3.26: ... enquadramentos para todos os protagonistas; a cada mudana de enquadramento, a cmera se aproxima um pouco mais dos rostos. Figura 3.27: Durante os primeiros close-ups, possvel perceber que Blondie permanece calmo, olhando fixamente para a sua direita, para o local onde est ... Figura 3.28: ... Angel Eyes, cuja fisionomia tensa mas firme; os olhos dele danam de um lado para o outro do rosto, denotando indeciso (ausente no adversrio). Figura 3.29: A fisionomia de Blondie parece rgida como uma rocha; ele no traga o cigarro e continua a olhar exclusivamente para a direita, desprezando Tuco. Figura 3.30: Angel Eyes, por sua vez, olha para um lado e para o outro; ele parece mais tenso, enquanto os close- ups extremos duram menos a cada rodada. 188 Figura 3.31: Dos trs pistoleiros, Tuco parece ser o mais agitado; sua musculatura est inteiramente rgida de tenso, e seus olhos no se fixam em nenhum ponto. Figura 3.32: Leone inclui mais uma rodada de planos com composies recessivas (moldura, encenao em diagonal e profundidade de campo); o primeiro plano ... Figura 3.33: ... sempre ocupados pelos revlveres e mos (que se aproximam lentamente das armas) dos heris; a tenso est prestes a chegar ao mximo. Figura 3.34: Leone explora vrias vezes no filme o defeito fsico de Lee Van Cleef, que havia perdido a ponta do dedo mdio da mo direita num acidente. Figura 3.35: A ausncia de sons diegticos deixa o espectador sem pontos de sncrese e contibui para a percepo de que o tempo parece estar congelado. Figura 3.36: Durante a rodada de close-ups extremos dos olhos dos pistoleiros, o nervosismo de Tuco fica mais evidente, assim como a calma de Blondie, ... Figura 3.37: ... cujo olhar fixo parece adivinhar o desfecho da cena; perto do fim, o degello ganha uma percusso militar e a msica se torna ainda mais pica. Figura 3.38: Angel Eyes permanece imvel, mas seus olhos agora j no param de danar entre um lado e o outro do rosto, denotando indeciso e impacincia. Figura 3.39: O movimento da mo de Angel Eyes acontece no exato momento em que a msica pra de tocar; os planos se sucedem em alta velocidade. Figura 3.40: Ouve-se um tiro, e o prximo plano que vemos mostra Blondie com o revlver apontado para Angel Eyes; o silncio acentua a gravidade do momento. 189 Figura 3.41: Aps um rpido plano geral, a cmera se aproxima e mostra Angel Eyes caindo; ele se arrasta, ferido, procurando a arma que lhe escapou das mos. Figura 3.42: Enquanto isso, Tuco saca o revlver e tenta atirar, mas descobre que sua arma no tem munio: Blondie a havia descarregado na noite anterior. Figura 3.43: Angel Eyes consegue pegar o revlver e se vira para Blondie; o close-up acentua rapidamente o nvel de tenso, j que o pistoleiro agora pode revidar. Figura 3.44: Antes que isso acontea, porm, Blondie acerta o segundo tiro; o impacto da bala jogo o corpo sem vida de Angel Ayes diretamente dentro da cova. explica: o tesouro no se encontra ali (figura 3.11). Ele o nico que sabe a cova correta. Ento apanha uma pedra (figuras 3.13 e 3.14) e escreve o nome da cova sob ela. Os trs tero que duelar pela posse da pedra e do tesouro. Toda essa primeira parte abusa de duas outras caractersticas centrais para Leone: o desenho de som que enfatiza rudos naturais amplificados e o desenho de produo sujo e realista. Nos dois casos, possvel perceber claramente a preocupao do diretor com os detalhes, com a criao de uma atmosfera que transmita ao mesmo tempo a verossimilhana do ambiente e da situao dramtica vivida pelos personagens. Ou seja, as duas caractersticas partilham do mesmo princpio: expressividade dramtica sem prescindir da verossimilhana. Efeitos sonoros e dilogos compem o trecho, que transcorre sem msica, com uma breve exceo o fraseado de flauta com cinco notas que serve de leitmotiv para sinalizar a entrada em cena de Blondie, respondido por outra frase, de trs notas, que por sua vez o leitmotiv de Tuco. Ouve-se apenas o vento, o canto de pssaros e a respirao ofegante de Tuco. Ele apanha um pedao de madeira do tmulo vizinho (num rasgo de humor negro caracterstico de Sergio Leone, a p improvisada retirada de cima da cova verdadeira em que o tesouro est enterrado, algo que Tuco s vai descobrir muito depois) e comea a cavar. A partir desse momento, h cinco sons audveis. Dois deles so provenientes de fontes sonoras que esto em quadro (a respirao de Tuco e os rudos produzidos pela escavao). Os outros trs provm de fontes sonoras situadas fora do quadro: o barulho do vento 190 soprando, o canto dos pssaros (sutil, mas intermitente) e o grasnar peridico de um corvo, mais alto e forte que o piar dos outros pssaros. Esses dois grupos de sons tm importncias narrativas diferentes, pois afetam a percepo da cena pelo espectador de maneiras distintas. Os dois sons cuja fonte de origem est visvel so produzidos por Tuco, nico personagem em quadro; eles providenciam pontos de sncrese (CHION, 1994, p. 58) entre a trilha de udio e as imagens (tanto dentro de cada plano quanto na justaposio entre eles). Esses pontos de sncrese asseguram ao espectador que a sincronia entre informaes visuais e auditivas est sendo respeitada. Nesse caso, os sons no contm em si nenhuma informao narrativa relevante. Eles apenas reforam a impresso de realismo para o pblico. Os outros rudos os sons fora de quadro so mais importantes, do ponto de vista expressivo e emocional, apesar de menos percebidos pela audincia. O pblico no v pssaros, corvo ou vento em momento algum da cena; por uma questo fisiolgica de seleo operada pelo aparelho auditivo da espcie humana, relega automaticamente esses rudos a um plano secundrio de percepo sonora. Nesse tipo de situao, os sons fora de quadro atingem o espectador diretamente numa dimenso sensorial, produzindo um efeito uma sensao que no sabemos explicar como ocorreu, porque no identificamos a sua origem, j que no pensamos no que esses sons secundrios fazem conosco. freqente, nos filmes, que o espectador sinta certas sensaes (medo, angstia, isolamento, etc.) sem conseguir explicar concretamente qual a combinao de elementos visuais e/ou sonoros que causou essa sensao. S a anlise cuidadosa, do ponto de vista da percepo, pode revelar como tal efeito foi construdo pelo diretor. Os sons fora do quadro, com bastante freqncia, tm enorme grau de responsabilidade na construo dessas cenas. O piar dos pssaros, o vento e o grasnar do corvo tm a funo de proporcionar ao espectador uma noo tridimensional do espao flmico onde a cena se desenrola. Mas esses trs rudos possuem, tambm, a funo suplementar e primordial de criar uma atmosfera de isolamento, de decrepitude, de morte. Tuco est num cemitrio; o corvo, na mitologia grega, simboliza a m notcia, o azar e a morte. A presena desse pssaro, sinalizada pelo som fora de quadro, expressiva; acentua a tenso do momento, porque o espectador realiza uma conexo de idias sem pensar: a morte est por perto. Algum perigo se aproxima. Antes de prosseguir, preciso chamar a ateno para o uso que Sergio Leone faz do silncio. No aquele silncio que Jean-Claude Carrire (1994) denomina de silncio absoluto, referindo-se ausncia irrestrita de rudos, vozes e msica, um silncio criado 191 artificialmente em estdio, pois no existe na natureza (CARRIRE, 1994, p. 34), mas a um silncio que se coaduna com a definio do termo oferecida por Michel Chion: A impresso de silncio em uma cena de filme no vem simplesmente da ausncia de rudos. Ela s pode ser produzida como resultado de contexto e preparao. O exemplo mais simples consistiria em preceder a cena que contm o silncio de outra cena repleta de barulho. Portanto, o silncio nunca consiste de um vazio neutro. Ele o negativo do som que ouvimos antes; o produto de um contraste. (CHION, 1994, p. 57). O silncio, expresso pela ausncia de msica e dilogos, bem como pela amplificao acentuada (ou seja, hiper-real) de sons naturais produzidos por seres e objetos que esto presentes, outra ferramenta estilstica recorrente em Leone. Esse elemento de estilo surgiu como resultado da conjuno de duas pr-condies: o sistema de produo dos filmes em Cinecitt (quase sempre realizados sem captao de som direto) e a influncia do cinema japons. Voltaremos a este tpico frente. A chegada de Blondie surge em sincronia com o primeiro trecho musical da cena. Nesse ponto, imprescindvel explicar o uso do leitmotiv em Trs Homens em Conflito. A melodia do tema principal consiste numa seqncia de cinco notas (o fraseado emula o grito de um coiote, animal que habita a diegese do filme, o deserto), que corresponde a uma pergunta: L-R-L-R-L. Esse fraseado simples recebe, em seguida, uma resposta em contraponto de outra frase musical, que consiste de mais trs notas (F-SOL-R). A inovao de Ennio Morricone consistiu em utilizar a mesma seqncia de notas como leitmotiv para os trs protagonistas, significando que eles so trs verses da mesma personalidade. O espectador infere qual o leitmotiv de cada um atravs do instrumento utilizado para executar o fraseado musical. Para Blondie (o menos brutal dos trs), a seqncia de notas tocada numa flauta doce; para Angel Eyes (o mais malvado), o instrumento utilizado a ocarina (em uma verso feita de argila, cujo som bastante grave e sombrio, como o prprio personagem); e Tuco (o mais engraado) acompanhado por uma sobreposio de duas vozes masculinas que gritam as cinco notas, com o casamento sugerindo uma textura selvagem, como o grito original do coiote que inspirou a composio. No decorrer do filme, o espectador associa uma sonoridade especfica a cada heri. Ao conceber essa estrutura, Morricone procurava reforar o conceito central, elaborado por Leone, de que os trs protagonistas se equivalem em fora e astcia, tendo moralidades muito parecidas; eles podem ser compreendidos como aspectos diferentes de um mesmo personagem. O compositor tambm respeitava um princpio central nas composies para 192 todos os filmes de Leone: o uso de elementos da diegese no caso, a inspirao do coiote como elementos integrantes da msica: [Esse som] tinha que ser eloqente, para imitar o uivo do coiote e tambm para evocar a selvageria do universo do Velho Oeste (MORRICONE apud FRAYLING, 2000, p. 236). O uso do leitmotiv fica mais complexo quando dois personagens esto contracenando. Nesse caso, Morricone desdobra o fraseado musical em dois momentos distintos, ponto e contraponto, cada fraseado executado pelo instrumento caracterstico de um personagem. H uma pergunta (tocada com o instrumento relacionado ao personagem que comanda a cena emocionalmente) e em seguida a resposta (executada no instrumento associado ao personagem em posio inferior). Este o caso especfico do uso da msica no momento em que Blondie aparece. Assim que a sombra entra em quadro, ouvimos as cinco notas que emulam o grito do coiote, executadas com uma flauta: Blondie. Num jogo bem-humorado e irnico entre a diegese e a extra-diegese, a msica parece alertar Tuco, que ergue a vista para verificar quem se aproxima. Nesse ponto, Leone corta para um contra-plano de Eastwood, enquadrado em plano mdio e contra-plong, enquanto ouvimos a resposta, gritada por um homem. Compreendemos: Tuco est momentaneamente dominado. A iminncia de um ato violento fica evidente; Leone sinaliza isso atravs do desenho de som. O grasnar do corvo, antes ouvido de maneira esparsa, se torna mais insistente. O espao ouvido entre um grasnar e outro diminui sensivelmente. Logo em seguida Angel Eyes chega; sua chegada realada pela introduo de um segundo trecho musical as trs notas do contraponto (F-SOL-R), compondo uma segunda resposta pergunta de Blondie. Embora seja o mesmo fraseado, o instrumento que o executa no a ocarina, caracterstico do personagem de Lee Van Cleef, mas um rgo de igreja. Qual a razo possvel para que, a esta altura do filme, uma conveno musical firmemente estabelecida dentro da narrativa seja desrespeitada? Talvez seja uma tentativa deliberada de confundir o espectador; talvez o novo instrumento seja uma referncia simbologia crist, to presente dentro da obra de Leone como um todo. Seja qual for a razo para a troca de instrumento, o efeito pretendido surpresa alcanado. Por fim, os dilogos dominam auditivamente o trecho da cena a partir da entrada de Angel Eyes. Como em todos os spaghetti westerns, as frases so dubladas. Essa tcnica possibilitava que Leone escolhesse o elenco, especialmente os coadjuvantes, pela aparncia, moda de Eisenstein, sem restries relacionadas nacionalidade e, portanto, lngua nativa de cada ator. Os atores podiam falar em qualquer lngua, e alguns deles preferiam simplesmente contar nmeros, simplesmente construindo frases com o mesmo nmero de 193 slabas do que a linha estabelecida pelo roteiro. Eles sabiam que depois, na ps-produo, outro ator diria aquela frase em estdio. Por tudo isso, a sincronizao das vozes com o movimento labial era pouco meticulosa. Embora os sons vocais fossem emitidos sempre que os atores abriam a boca, os movimentos labiais nem sempre correspondiam aos sons emitidos. De fato, essa caracterstica no era especfica da obra de Leone; a questo da sincronia labial funcionava dessa maneira em todo o cinema italiano, como nota Michel Chion: H vrios nveis de sincronismo [entre som e imagem] e, particularmente no caso da sincronia labial, esses nveis exercem certo papel no estilo do filme. Por exemplo, os franceses esto acostumados a uma sincronizao cuidadosa e fiel, e acham estranha a ps-sincronia nos dilogos dos filmes italianos. O que eles estranham, na verdade, um estilo de sincronizao mais livre, mais solta, freqentemente descompassada em um dcimo de segundo. Esta diferena particularmente notvel no caso da voz. Enquanto uma sincronia muito fiel faz o som da voz corresponder precisamente ao movimento dos lbios, os filmes italianos levam mais em considerao a totalidade da fala e menos o corpo que fala. No geral, a sincronia mais livre provoca um efeito menos naturalista, mais potico. (CHION, 1994, p. 65). Como Chion observa, esse recurso estilstico ia de encontro s preocupaes realistas para as quais Leone dedicava grande esforo. De qualquer modo, era um recurso gerado por uma pr-condio marcante que havia se tornado hbito de todos os cineastas da Itlia. Vale a pena salientar que essa falta de sincronia entre os dilogos e os movimentos labiais dos atores tambm pode explicar, pelo menos parcialmente, o fato de Leone usar o mnimo possvel de dilogos em seus filmes. Esta outra razo que pode ser apontada como pr-condio influente no uso dos efeitos sonoros (e do silncio) para ajudar a contar a histria. Se prosseguirmos com o raciocnio, a criao de pontos de sncrese atravs dos rudos torna-se ainda mais importante. Afinal de contas, os pontos de sncrese mais naturais no cinema esto justamente na sincronia entre as vozes dos atores e os movimentos labiais e os filmes de Leone no podiam usar esse recurso, tendo que sinalizar buscar a percepo da sincronia entre as bandas visual e sonora em outro lugar. Esse lugar, obviamente, estava na mixagem dos efeitos sonoros em volume e intensidade maiores do que o habitual. Mais um aspecto de estilo que pode ser observado na primeira parte da cena o desenho de produo, que inclui cenrio, figurinos e maquiagem. Trs Homens em Conflito marca um ponto alto da obsesso de Leone com a acuidade histrica e a verossimilhana. Em 1964, o conceito da direo de arte de Por um Punhado de Dlares era representar os personagens vivendo num ambiente de natureza hostil. Nas filmagens de Trs Homens em 194 Figura 3.45: Vera Cruz (1954), considerado um dos mais realistas westerns dos anos 1950, usava figurinos de cores saturadas para oferecer visual grandioso. Figura 3.46: Mesmo depois de vrios dias cavalgando sob o sol do deserto, os personagens de O Homem que Luta S (1959) esto sempre limpos e arrumados. Conflito, essa preocupao havia evoludo para a necessidade de parecer o mais historicamente acurado que fosse possvel. Uma das possveis razes para isso era a reao de Leone contra algumas das crticas que seus filmes recebiam, argumentando que ele se preocupava mais com o espetculo do que com a representao fiel da realidade. Leone reagia contra essas crticas apontando para aspectos artificiais da aparncia dos filmes americanos, como o colorido saturado que marcou toda a produo de Hollywood depois da ascenso do Cinemascope, em 1953, com pistoleiros usando camisas amarelas, roxas, azuis ou vermelhas (figuras 3.45 e 3.46): Westerns passaram a ser encenados como jogos infantis, com atores caindo para frente ao invs de serem jogados para trs pelo impacto dos tiros. No se via sangue. Por um Punhado de Dlares quebrou as regras, no que diz respeito representao da violncia, e agregou um realismo que possvel notar nos novos filmes. (LEONE, 2005, p. 82). Assim, desde o primeiro western que fez, Leone instruiu Carlo Simi a pesquisar em livros histricos e preparar uma vasta documentao fotogrfica da poca e do local onde a ao dramtica ocorria. Na cena analisada, essa preocupao fica evidente ao se examinar em detalhes a locao do cemitrio militar (figuras 3.2, 3.3, 3.8, 3.9 e 3.12). Cemitrios eram locaes familiares em westerns. Quando aparecem, em clssicos como Paixo dos Fortes (1946) e Rastros de dio (1958), so sempre mostrados como lugares cobertos com grama, com lpides organizadas, de aparncia buclica. O cemitrio de Trs Homens em Conflito no nada disso. Fica num vale quase sem vegetao, coberto de poeira. composto por 10 mil tmulos, a maioria com lpides improvisadas que consistem de pedaos de madeira com nomes inscritos muitas marcadas com a palavra Unknown, ou Desconhecido , cruzes toscamente construdas com gravetos ou pedaos de pau. Essa representao improvisada de um cemitrio (figura 3.47) pode parecer macabra, mas historicamente correta. Simi desenhou a locao com base em fotografias de Matthew 195 Figura 3.47: Mais de 10 mil lpides improvisadas com pedaos de madeira foram concebidas pelo diretor de arte Carlo Simi e construdas no deserto da Espanha. Figura 3.48: Um cemitrio militar da guerra civil registrado por Matthew Brady em 1862: referncia visual para a locao de Trs Homens em Conflito. Brady (figura 3.48). Tudo isso a preocupao com o realismo, a construo detalhada dos cenrios e objetos cnicos, as pesquisas iconogrficas extensas constituem uma operao de worldmaking; ou seja, era mais uma prtica estilstica que buscava a intensificao. O worldmaking tambm se estende aos figurinos. Tuco usa botas velhas, cala e casaco de veludo marrom (empoeirado), e uma camisa branca encardida (figura 3.3) de suor. Angel Eyes veste cala, colete e chapu pretos (figura 3.19). Num jogo intertextual com os dois primeiros westerns que fez, Leone faz Blondie resgatar, de um soldado moribundo que ele encontra algumas cenas antes, um poncho idntico ao que Joe e Monco usam nos filmes anteriores (essa operao pode ser compreendida como um pastiche dos prprios filmes dele, inclusive). Dessa forma, no clmax de Trs Homens em Conflito, Blondie usa exatamente a mesma roupa que Joe e Monco vestiam nos outros dois filmes (figura 3.5). Todos os trs personagens esto cobertos de poeira, suados, rostos queimados de sol, barba por fazer. O realismo dos figurinos demarca uma diferena crucial, em relao aos filmes americanos. Nesses ltimos, o heri sempre usa camisas roupas limpas, troca de roupa durante a trama (mesmo quando viaja sem bagagem), est barbeado e de banho tomado. O uso da cor em Leone, alis, tambm obedece ao princpio do realismo; num universo de natureza inspita, em que os homens passam vrias horas por dia sob o sol abrasivo, as cores das roupas, das casas, de tudo se desgastam rapidamente: Ns tnhamos um ponto de partida, um princpio esttico: num western, voc no pode usar muitas cores. Escolhamos uma paleta mais sutil preto, marrom, vermelho escuro, branco encardido porque os prdios so feitos de madeira e as cores dos exteriores eram muito gastas. Ambos tnhamos uma queda por tonalidades de areia. (DELLI COLLI, 2000, p. 229). Na primeira cena, ainda falta analisar o casamento meticuloso entre as trilhas de udio e imagens. A quase total ausncia de msica mascara um pouco esse entrelaamento, mas ele 196 se faz presente de forma muito ostensiva na segunda parte, quando comea o trielo propriamente dito, que decidir sobre a posse do tesouro. Emocionalmente, o filme entra num novo estgio, a partir da segunda cena da seqncia. Os trs personagens se colocam em igualdade de condio; o enredo evoluiu at apresentar o cenrio caracterstico de um duelo tpico de western, uma conveno de gnero. A partir da, a cena sofre uma grande mudana de nfase dramtica. Nenhuma palavra ser pronunciada por qualquer um dos personagens at o final, um trecho que tem o total de quatro minutos e 39 segundos (529 segundos) sem dilogos. O desenho de som, os silncios e as falas pontuadas de frases curtas, ironia e aforismos esta ltima, recurso muito usado em filmes contemporneos que adotam a autoconscincia como recurso narrativo, tratando dilogos e narrao em off como slogans publicitrios do lugar msica. Trata-se de um degello que, seguindo a tradio da parceria entre diretor e compositor, estruturado como uma cano pop, com dois versos em crescendo intercalados por um refro solado por um trompete. A melodia executada por esse instrumento nos refres, momentos em que a msica se torna mais intensa; durante os versos que os intercalam, a melodia dedilhada ao violo flamenco, com alteraes na velocidade e na intensidade da execuo (rpida e forte em alguns momentos, lenta e dramtica em outros). Castanholas e uma seo de cordas em segundo plano sonoro (esta ltima proporcionando o elemento de ligao que faz a ponte entre o verso e o refro) completam a harmonia, o ritmo seguindo fielmente a decupagem das imagens delicado para tomadas longas, vibrante quando a justaposio de tomadas se torna mais rpida e os planos, mais curtos. O mais importante, nesse procedimento estilstico, a quebra deliberada de uma conveno caracterstica da potica da continuidade clssica. Nos momentos de tenso dos westerns de Leone (especialmente duelos), muitas vezes a msica mixada em volume mais alto do que efeitos sonoros e vozes, os quais so, s vezes, eliminados por completo da trilha sonora. O procedimento viola o esquema dominante do uso da msica no cinema, desde os tempos dos filmes mudos: a inaudibilidade da msica (GORBMAN, 1988, p. 57). Segundo Claudia Gorbman, a msica cinematogrfica est quase sempre, quando utilizada da maneira clssica, subordinada a imagens e dilogos. At os anos 1960, os diretores usavam composies musicais para cumprir trs funes narrativas principais: pontuar a ao fsica (muitas vezes substituindo os efeitos sonoros), expressar e conduzir as emoes da platia, e dar um senso de continuidade s imagens. A msica estava subordinada no apenas trilha de imagens, mas tambm aos dilogos. Desse modo, o espectador a 197 percebia num registro inconsciente, sem ouvi-la realmente sem prestar ateno nela; essa inconscincia sobre a presena da msica seria elemento fundamental para reforar a ateno dirigida pelo espectador progresso dramtica da narrativa. a mesma lgica da invisibilidade aplicada montagem no cinema clssico: sem cortes bruscos (no caso, sem intervenes sonoras estridentes, que chamassem a ateno para si), a ateno do espectador ficava sempre voltada para a trama. Com isso, havia melhores possibilidades de engaj-lo emocionalmente na histria que estava sendo contada. Nos filmes de Leone, esse uso inaudvel da msica freqentemente recusado. Leone traz a msica para o primeiro plano sonoro, muitas vezes subordinando o ritmo das imagens a ela, ou retirando todos os outros sons (vozes e rudos) da mixagem, fazendo a msica influenciar a leitura que o espectador faz das imagens. Leone realizava isso, essencialmente, atravs de duas tcnicas: (1) a sincronia entre a montagem imagtica e a evoluo meldica da msica de Morricone; e (2) a predominncia da msica sobre todos os demais sons da trilha sonora, em certos momentos. Detalharemos tudo isso mais frente. fundamental observar que esse procedimento no apenas revisava o esquema dominante do uso da msica no cinema, mas tambm estava em consonncia com a auto- reflexividade pretendida pelos diretores modernistas da poca, para quem deixar a tcnica ser percebida pela platia era uma atitude natural. Portanto, esse uso da msica constitui uma opo estilstica que se coaduna perfeitamente com a potica da continuidade intensificada. Alm disso, em certo sentido, a msica usada por Leone para reforar a escolha dos ngulos de cmera e modular dramaticamente a cena. O casamento entre a evoluo da msica e a edio de imagens meticulosamente planejado para interligar cada instncia de aproximao da cmera em relao aos pistoleiros (do plano geral ao mdio, do mdio ao close-up, do close-up normal ao extremo, etc.) com um aumento gradual na intensidade da execuo musical. No exemplo, sempre que Leone muda o enquadramento, aproximando a cmera de cada duelista e compondo planos cada vez mais fechados, a msica cresce em intensidade; enquanto isso, a montagem progressivamente acelerada e a durao dos planos torna-se menor. Tudo isso gera um efeito de ampliao crescente da tenso, acentuada pela fragmentao do espao flmico que os enquadramentos fechados proporcionam. Essa era a verso de Leone para uma ferramenta tpica dos diretores modernistas europeus o uso do falso raccord com inteno de suspense , que a utilizavam para subverter uma conveno da linguagem cinematogrfica e libertar o cinema da linearidade de tempo e espao (BRCH, 1992, p. 36). 198 Bordwell acrescenta uma idia importante para explicar porque, no decorrer dos anos 1960, os diretores comearam a fragmentar cada vez mais o espao flmico. Para ele, os cineastas foram influenciados pela popularizao dos formatos Scope de imagem, pois esses formatos de imagem possuam mais espao lateral, de forma que era possvel mostrar o cenrio mesmo durante um close-up. Para Bordwell, a tela Scope levou os diretores a encarar o quadro no mais como uma janela a ser preenchida com elementos visuais, mas como uma superfcie que podia ser dividida em unidades rtmicas (BORDWELL, 2007, p. 311). O uso recorrente da composio recessiva tpica de Leone seria uma maneira possvel de dividir o quadro Scope em diferentes unidades, da forma descrita por Bordwell. Antes de elaborar um pouco mais a idia, voltemos cena e a analisemos em detalhes. H, nela, uma ironia suplementar: existe lugar mais adequado para um duelo do que um cemitrio? Mais frente, Leone dar cabo dessa ironia com um toque de humor negro, fazendo o corpo sem vida de Angel Eyes escorregar diretamente para dentro de uma cova no momento em que ele atingido, dispensando assim os servios de um coveiro (que, obviamente, no existe, uma vez que o cemitrio est abandonado). Trata-se de uma cena de suspense, no sentido hitchcockiano do termo. O duelo, num western, um momento de suspense. Segundo Hitchcock, a distino entre suspense e terror similar a um ataque areo utilizando bomba voadora ou V2. A primeira faz um barulho de motor de popa, de forma que as pessoas sabem que ela estava a caminho; quando o barulho para, a bomba cai e explode, segundos depois. J a V2 no faz rudo, e explode sem que as pessoas se dem conta disso. No primeiro caso, a sensao experimentada pelas pessoas o suspense; no segundo caso, terror (HITCHCOCK, 1998, p. 146-147). O elemento central do suspense, portanto, a expectativa. Para criar suspense, o cineasta precisa ordenar certos elementos integrantes da narrativa, de forma que o pblico possa antecipar um resultado e saboreie a expectativa, a ansiedade da espera por esse resultado. Quando os pistoleiros se renem, olhando uns para os outros, as mos cada vez mais prximas dos revlveres, sabemos o que vai ocorrer em seguida. Leone dava um tratamento especial ao tempo flmico nesses momentos de suspense. Ele manipulava recursos estilsticos para sustentar essa expectativa pelo maior tempo possvel; da a sensao de tempo congelado, ou distendido, nos momentos de suspense inseridos em seus filmes. o caso do trielo. Vivenciamos a expectativa do tiroteio durante muito mais tempo do que acontecia em outros westerns, quase como se assistssemos cena em cmera lenta um recurso que Leone efetivamente nunca usa. 199 Nesse sentido, a audibilidade da msica em certos trechos do filme sua percepo consciente por parte do espectador era muito importante para libertar os acontecimentos do duelo da linearidade espao-temporal do resto da trama. fragmentao espacial da cena (conseguida atravs dos cortes rpidos e dos planos cada vez mais fechados) correspondia uma eliminao (total ou parcial) dos sons diegticos, com o predomnio da msica, o que acabava por tornar subjetiva a percepo da passagem do tempo. Da vem a sensao de cmera lenta, de tempo dilatado: embora a msica proporcionasse continuidade temporal, a fragmentao do espao e a eliminao dos sons diegticos contribuam para inscrever os duelos de Leone em uma dimenso onde o tempo passava mais devagar. O tratamento que Leone dava ao tempo de seus duelos tem ligao importantssima com a presena da msica. No exemplo, a msica introduzida como acompanhamento da caminhada de Blondie em direo ao centro da arena. Ela comea com uma frase de trompete. Blondie deposita a pedra no cho e a cmera faz um zoom, reenquadrando-a em plano-detalhe (figura 3.14), ao mesmo tempo em que Morricone cria um sbito crescendo, adicionando violinos em unssono e violo dedilhado; o crescendo corresponde com exatido ao zoom. A sincronia entre os movimentos da imagem e a evoluo dramtica da melodia impecvel. No se pode deixar de prestar ateno na msica, mesmo que se tente, inclusive porque todos os sons diegticos so eliminados da trilha sonora. Ele um dos exemplos mais eloqentes da reviso do esquema dominante de uso da msica no cinema levado a cabo por Leone. O que se segue quase um bal. Os trs pistoleiros em crculos, lentamente, um olhando para o outro, entre planos mdios e close-ups de olhares desconfiados. Aps o zoom, Leone justape duas tomadas panormicas (figuras 3.15 e 3.16), com respectivamente 22 e 39 segundos de durao. So planos gerais abertos, em que os personagens se tornam minsculas manchas se movendo na tela. Esses dois planos indicam ao espectador as relaes espaciais entre os pistoleiros. Eles so essenciais para que se entenda o desenrolar da ao, pois da em diante Leone no incluir mais nenhum plano geral, fragmentando sucessivamente o espao flmico e aproximando cada vez mais a cmera dos heris. Durante os dois planos gerais os sons diegticos somem. No h dilogos e nem efeitos sonoros; apenas a msica, que acelera e desacelera, pulsando no mesmo ritmo dos movimentos da cmera, at que cada pistoleiro se coloque numa posio equnime dentro da arena circular. O efeito de percepo obtido pelo conjunto (encenao, montagem visual e msica) de que o tempo passa em cmera lenta. Durante o primeiro plano geral, a msica evolui do verso para o refro, em um crescendo cuja melodia conduzida por uma seo de violinos que evolui at atingir a 200 apoteose durante o refro. a que entra o trompete, executando um solo em tom de lamento; a harmonia sustentada por um coral masculino e violinos. No exato momento em que Leone insere o segundo plano geral, o trompete inicia o solo do refro. A sincronia absoluta. Leone corta para um plano mdio de Tuco (figura 3.17) e, mais uma vez, a justaposio da imagem sincrnica com o movimento da msica, que interrompida no exato instante do corte. Os trs homens esto parados. A cmera se aproxima cada vez mais. A decupagem simtrica, dedicando o mesmo tempo de tela a cada um dos pistoleiros, e mostrando-os sucessivamente com o mesmo enquadramento; essa simetria sinaliza ao espectador a igualdade de condies. Eles so equivalentes em fora e astcia, e esto cientes disso. Leone inicia com planos mdios (figuras 3.17, 3.18 e 3.19); corta para composies recessivas em profundidade (figuras 3.20, 3.21 e 3.22); e da para planos-detalhes (figuras 3.23, 3.24 e 3.25). Vm ento trs close-ups (figuras 3.26, 3.27 e 3.28), depois trs close-ups extremos (figuras 3.29, 3.30 e 3.31); uma composio recessiva com o primeirssimo plano em close- up extremo (figura 3.32); trs planos-detalhes simtricos das mos de cada pistoleiro (figuras 3.33, 3.34 e 3.35); trs planos de close-ups extremos dos olhos (figuras 3.36, 3.37 e 3.38). No incio desse trecho, durante os planos mdios, o silncio enfatiza a gravidade do momento; apenas os pssaros, o vento e os corvos quebram o silncio. Quando a decupagem passa aos planos simtricos de composio recessiva com profundidade, a msica retorna. No o degello ouvido antes, mas uma melodia minimalista, trs notas executadas por uma celesta; trata-se de uma aluso explcita pastiche ao clmax do filme anterior de Leone, Por uns Dlares a Mais, em que o duelo final tambm ocorre numa arena circular de pedras e sublinhado pela melodia tocada por uma celesta. Aos poucos, o dedilhar em estilo flamenco retorna, injetando trechos episdicos do degello anterior em intercalao com a melodia da celesta. Trechos do degello soam mais agressivos, pois surgem inesperadamente, acompanhados de percusso e sinos. Assim que a decupagem chega aos close-ups extremos, Leone abandona a simetria e passa a alternar close- ups de olhos, de rostos e planos-detalhes; ele acelera a montagem, reduzindo cada vez mais a durao dos planos. Nesse exato momento, o verso do degello evolui novamente em direo ao refro apotetico, com o solo de trompete sublinhando uma longa e alucinante seqncia de close-ups extremos de olhos, mos e revlveres, at que a mo de Angel Eyes faz um rpido movimento lateral (figura 3.29) e ouve-se um tiro; a msica pra imediatamente. O plano seguinte mostra Blondie com o revlver na mo (figura 3.40). Ele atirou primeiro. S ento Leone retorna para um rpido plano geral aberto, que focaliza toda a arena circular, para depois aproximar a cmera e mostrar o personagem de Lee Van Cleef caindo 201 (figura 3.41). Tuco tenta disparar, mas no consegue (figura 3.42). Blondie no atira nele. Quando Angel Eyes finalmente encontra a arma, Leone o focaliza num close-up extremo (figura 3.43), criando subitamente um breve instante de suspense antes de Blondie o atingir pela segunda vez; o impacto da bala joga o pistoleiro dentro de uma cova (figura 3.44). A associao das tcnicas utilizadas por Leone, sobretudo no trecho final da cena, provoca uma extraordinria fragmentao do espao flmico; a conseqncia desse tratamento retrico da imagem e do som a distenso do tempo flmico e a intensificao do suspense. Noel Brch (1992) afirma que todos os cineastas modernistas europeus da poca estavam sofisticando a decupagem visual ao construir articulaes espaos-temporais no mais dentro de cada plano, mas sim atravs das relaes entre os planos; no mais atravs da encenao, e sim atravs da montagem imagtica. Resnais, Godard, Rohmer e Antonioni so citados como exemplos de cineastas que desenvolveram esse recurso estilstico em diferentes direes, desenvolvendo um cinema que, ao provocar certa desorientao espao-temporal do espectador, conseqentemente o obrigava a manter distanciamento crtico da obra: A concepo internacional de modernismo cinematogrfico foi largamente difundida a partir do neo-realismo tardio e dos trabalhos do jovem Bergman, atravs dos filmes de Antonioni, Bresson, Fellini e Buuel, at os Jovens Cinemas dos anos 1960, especialmente a Nouvelle Vague. O ideal de objetividade de Bazin e os elogios dos Cahiers sobre a mise-en-scne sbria foram confrontados por um cinema de fragmentao, ambigidade, distanciamento e efeitos estticos flagrantes. (BORDWELL, 1998, p. 87). Essa ltima sentena pode ser aplicada integralmente ao cinema de Leone. Brch (1992), de novo, explica a construo dessas articulaes espaos-temporais mais difusas, propondo que a percepo do espectador no inclui apenas elementos dentro do quadro, pois afetada tambm por tudo o que circunda esse quadro, tanto visual quanto auditivamente (e, no caso de Leone, podemos afirmar que afetada tambm pela msica auto-consciente). Brch afirma que a composio pictrica funciona como elemento central de um cubo perceptivo; a construo do espao e do tempo flmicos s se realiza dentro da mente de cada espectador, depois que este articula aquilo que v no quadro com os elementos que sabe estarem fora do quadro, em todas as seis direes possveis: os quatro limites da tela (as duas laterais, em cima e em baixo), atrs da tela (e dos personagens) e em frente tela (atrs da cmera). E como possvel, para o pblico, ter conhecimento de todo esse espao flmico extra- campo? Atravs da associao mental entre o plano que est sendo visto e o espao flmico completo, que cada espectador reconstitui articulando o plano visto com os demais planos que integram a cena. O som exerce um papel fundamental nesse processo cognitivo, pois na vida 202 real o espectador ouve em 360 graus, tendo dessa forma uma noo mais ou menos precisa daquilo que existe fora de seu campo visual. O ponto central do raciocnio de Brch que os diretores europeus dos anos 1960, ao revisarem dessa forma as tticas de encenao tpicas dos esquemas da continuidade clssica, estavam expandindo as possibilidades criativas da arte cinematogrfica (BRCH, 1992, p. 36). Embora Brch significativamente no mencione Leone, podemos afirmar que a cena do trielo constitui um exemplo da nova forma de articulao espao-tempo a partir da decupagem e da msica. A cena analisada contm amostras de quase todas as caractersticas importantes da prtica estilstica de Leone: tratamento particular do tempo flmico, distendendo-o para modular a tenso; uso abundante de close-ups extremos; composies recessivas com moldura em profundidade de campo; ateno obsessiva aos detalhes e preocupao com a acuidade histrica; msica que mistura elementos satricos e neo-romnticos, incorporando influncias do concretismo modernista; desenho de som hiper-real, com rudos naturais amplificados que constroem uma atmosfera emocional, ao mesmo tempo em que inserem as imagens numa ambiente tridimensional; e cuidado meticuloso com a articulao entre som e imagem. Nos anos 1960, j vimos, algumas dessas caractersticas faziam com que Leone fosse mal visto pela crtica, que insistia em cham-lo de exibicionista. Escrevendo sobre Era uma Vez na Amrica, o crtico Leo Benvenuti cunhou uma palavra para esse procedimento: Leone-ness 20 20 A expresso se refere aos tiques (nesse caso, a conotao negativa evidente) que correspondem aos recursos estilsticos e narrativos mais caractersticos do diretor. (FRAYLING, 2000, p. 463), um termo que poderia ser traduzido como leonice. Benvenuti argumentou que qualquer diretor poderia ter filmado o pico em duas horas e meia, mas no Leone, um cineasta maneirista de tal ordem que precisava reservar meia hora para se exibir estilisticamente, criando leonices. H uma cena de Era uma Vez na Amrica que corresponde ao que Benvenuti chama de leonice. Patsy (Brian Bloom) chega ao apartamento de Peggy (Julie Cohen) com uma bomba de creme. Todos na vizinhana sabem que a garota faz sexo em troca de doces. No momento em que ele chega casa da garota, ela est tomando banho, e isso o obriga a aguardar. Leone constri uma cena de dois minutos e 21 segundos (141 segundos) que consiste em um garoto sentado nos degraus de uma escada, olhando para um doce. No entanto, este um dos momentos mais lembrados do filme. Leone constri suspense atravs da manipulao do tempo flmico. Patsy senta-se na escada e pe o embrulho ao lado (figura 3.49). Ele olha para o embrulho, olha para a porta, desvia o olhar. Olha de 203 Figura 3.49: Patsy senta-se na escada, mas evita olhar para o embrulho; note o corrimo em primeiro plano, fora de foco, usado como moldura na composio. Figura 3.50: O menino cede tentao e abre o pacote com o doce, olhando de lado para verificar se Peggy est perto; ele hesita um instante e fecha o embrulho ... Figura 3.51: ... para em seguida abri-lo novamente; cortejando o suspense, Leone enfatiza o detalhe da cereja vermelha, que simboliza a tentao irresistvel. Figura 3.52: Patsy desiste de esperar Peggy e devora o doce em alguns segundos: exemplo de cena sem relevncia para a narrativa uma leonice. novo. Abre o embrulho, passa o dedo na cobertura do doce (figura 3.50), volta a fechar o pacote. Abre-o novamente (figura 3.51), tira a cereja, a recoloca no bolo. Tudo isso por vrias vezes, at devorar o doce inteiro (figura 3.52). Do ponto de vista puramente cinematogrfico, trata-se de uma cena inteiramente retrica. No tem nenhuma importncia para fazer a ao dramtica avanar. Nela, Leone revisa vrios esquemas caractersticos da continuidade clssica, inclusive utilizando diversos recursos estilsticos que deixam a tcnica ostensivamente visvel. O que Leone estava fazendo em cenas como essas, aqui analisadas, era ajudar a constituir, junto a outros diretores contemporneos, um novo repertrio de tcnicas que revisavam os esquemas disponveis e intensificavam a maneira como um cineasta contava uma histria. Nas sees seguintes, vamos nos deter nesse conjunto de recursos estilsticos, explorando cada um e tentando identificar quais os limites e/ou pr-condies que contriburam para que Leone os adotasse. 3.2 Composio e enquadramento De todos os padres estilsticos recorrentes na obra de Leone, o uso abundante de close-ups sobretudo de close-ups extremos a ferramenta mais associada ao trabalho de 204 Leone. Close-ups extremos de rostos (em que o enquadramento vai do queixo testa do ator) ou apenas de um par de olhos so, at hoje, instantaneamente associados ao trabalho de Leone por cinfilos, pesquisadores e cineastas. Para se ter uma idia, quando Quentin Tarantino dirige uma cena e deseja que o diretor de fotografia filme um close-up extremo, pede da seguinte maneira: Faa um Sergio Leone (FRAYLING, 2000, p. 490). a senha para que o operador de cmera saiba com exatido o tipo de enquadramento desejado. Curiosamente, o close-up era um recurso estilstico evitado pelos cineastas da gerao anterior a Leone. Parafraseando Godard: para Rossellini, De Sica e outros, evitar o close-up era uma questo de moral 21 21 Referncia frase famosa de Godard (todo traveling uma questo de moral), publicada nos Cahiers du Cinma n 97 (julho de 1959). . Eles associavam esse tipo de enquadramento ao melodrama norte-americano; aproximar a cmera do rosto do ator era uma maneira fcil de manipular as emoes do pblico, forando-o a sentir determinado sentimento e praticamente obrigando-o a se identificar com o personagem em questo. Ao mesmo tempo, o close-up isolava o personagem do espao fsico onde a ao dramtica acontecia, violando dessa forma um dos princpios fundamentais do neo-realismo: a integrao dos atores ao cenrio. Mas, ento, qual a origem do uso to abundante do close-up dentro da obra de Leone? Vamos investigar uma srie de razes, mas antes disso importante ressaltar que ele estava consciente sobre o uso particular que dava ao close-up: Nos Estados Unidos, todos fazem um close-up em um personagem quando ele est prestes a dizer algo importante. Eu sempre reagi contra essa prtica. Meus close-ups so sempre a expresso de uma emoo. Sou muito cuidadoso nessa rea, ento me chamam de perfeccionista ou formalista, porque eu prezo por minhas composies visuais. Mas no fao isso para deixar o filme mais bonito. Estou procurando, em primeiro lugar, as emoes mais relevantes. (LEONE, 2000. p. 77). Leone rejeitava o rtulo de formalista. Ele rebatia essa afirmao evocando toda uma linhagem de diretores antes dele que valorizava os close-ups de rostos com funes expressivas. Nesse ponto, Leone tinha razo. Alguns diretores soviticos dos anos 1920, especialmente Sergei Eisenstein (figura 3.53), concebiam o close-up como um estudo pictrico da face humana, extraindo dele no uma informao objetiva, mas um efeito emocional: a essncia est em filmar expressivamente. Devemos (...) usar o limite da forma simples e econmica que expressa o que precisamos (EISENSTEIN, 2002, p. 137). Era uma espcie de antecipao avant la lettre da potica da continuidade intensificada, narrando de forma expressiva e no meramente objetiva. 205 Figura 3.53: Close-up extremo na famosa cena do massacre da escadaria de Odessa, em O Encouraado Potemkin (1925): emoo e estudo da face humana. Figura 3.54: Carl Dreyer usou close-ups extremos para injetar um sentido mstico ao martrio da personagem central de A Paixo de Joana DArc (1928). Diretores europeus em ao nos anos 1920 e 1930, a exemplo de Eisenstein e Carl Dreyer (figura 3.54), lanavam mo desse recurso estilstico com freqncia. No entanto, eles faziam parte de uma minoria. Na Europa, o esquema dominante da poca apontava para o registro visual de cenas em tomadas longas e com cmera distante dos atores. Esses recursos eram ainda mais proeminentes nos pases europeus do que em Hollywood, onde tambm constituam um esquema dominante (SALT, 2009, p. 245). Nos Estados Unidos, os cineastas usavam o close-up com mais economia e cautela, pois receavam que um corte sbito para um pormenor pudesse desagradar a um pblico habituado a ver teatro e estar, assim, sempre mesma distncia da ao (COUSINS, 2004, p. 31). Por isso a potica da continuidade clssica, consolidada nos Estados Unidos a partir de 1917, foi organizada em torno do princpio da suavidade ou mesmo invisibilidade dos cortes. As cenas eram filmadas inicialmente com a cmera afastada da ao; os cortes, efetuados no meio de alguma ao fsica efetuada pelos atores, quando ento os cineastas introduziam planos mais prximos, e vice-versa. Dessa forma, os espectadores no percebiam os cortes, pois se evitava os sobressaltos visuais que desviassem a ateno da histria que estava sendo narrada. O som (msica, rudos e voz) tambm exercia papel importante nesse fluxo contnuo de informaes: suas propriedades fsicas (intensidade, tom e timbre) eram mantidas to estveis quanto possvel, no decorrer de uma mesma cena, para evitar que alteraes acsticas bruscas proporcionassem a eliminao desse princpio da invisibilidade. Constituindo um instrumento de exceo nos esquemas visuais dominantes do cinema clssico, a partir de 1928 o close-up passou a ser utilizado ainda menos, por uma razo tcnica: a instituio do cinema com som sincronizado, fato ocorrido no ano anterior. Pelo menos at 1932 (SALT, 2009, p. 242), decupar qualquer cena em muitos planos multiplicava 206 as dificuldades tcnicas, devido s dificuldades logsticas de captao e edio dos sons diretos. Por isso, a maioria das cenas era filmada em estilo tableau, em composies visuais que focalizavam os atores de corpo inteiro, em planos gerais. Esses planos permitiam, muitas vezes, que cenas inteiras fossem filmadas em uma nica tomada. Somente a partir de meados dos anos 1930 observou-se a tendncia, tanto nos EUA quanto na Europa, de filmar os atores com a cmera cada vez mais prxima, variando os enquadramentos. Alm disso, desde o aparecimento da televiso, nos final dos anos 1940, a utilizao de close-ups vinha aumentando gradativamente, embora com menor intensidade no cinema. Seriados de TV recorriam com freqncia ao close-up dos rostos dos atores para permitir que o pblico acompanhasse a modulao emocional do enredo com mais facilidade verificar o grau de emoo irradiado por um rosto em planos gerais ou mdios, na tela pequena de um aparelho de televiso, era bastante difcil, de forma que os diretores comearam a inserir close-ups de reao dos atores nos momentos mais dramaticamente significativos. Essa tcnica no foi assimilada imediatamente pelos cineastas por duas razes. Primeiro, havia um complicador tecnolgico, pois os formatos anamrficos de imagem introduzidos em 1953, como o Cinemascope, exigiam lentes especiais que deformavam as bordas dos enquadramentos prximos (BORDWELL, 2008, p. 52), dificultando os close-ups normais e inviabilizando os extremos. Alm disso, havia um preconceito dos profissionais do cinema para com a televiso, vista ento como uma ameaa indstria cinematogrfica. No comeo dos anos 1960, quando Sergio Leone comeou a dirigir, os dois problemas estavam desaparecendo aos poucos. O Cinemascope dera lugar ao sistema Panavision, tambm anamrfico, cujas cmeras e lentes permitiam a filmagem de close-ups sem grandes distores (por outro lado, os close-ups extremos ainda eram muito raros, em parte porque no era possvel preencher todo o quadro com um rosto e manter o foco ntido). Tambm a TV deixara de ser uma ameaa ao cinema, passando a influenci-lo. A mudana gradual de decupagem visual ocorrida nos anos 1960 se deu mais ou menos da seguinte maneira: medida que a montagem rpida se desenvolvia nos anos 1960, os diretores quebravam as cenas de conversa em muitos close-ups e, hoje, essas cenas so editadas com planos nicos. Tais planos permitem ao editor variar o ritmo das cenas e selecionar os melhores fragmentos da atuao de cada ator. (BORDWELL, 2008, p. 53). No caso de Leone, os oramentos pequenos e a dificuldade que isso gerava para povoar os cenrios com figurantes incentivaram o uso dos close-ups extremos. Tonino Valerii (2003, p. 299) afirmou que Leone orientava os diretores de fotografia a fechar cada vez mais os enquadramentos em close-up, aproximando cada vez mais a cmera dos atores. Ao invs 207 de enquadr-los a partir dos ombros (close-ups normais), os operadores de cmera eram instrudos a preencher todo o quadro com o rosto, do topo da cabea at a ponta do queixo, para evitar que cenrios vazios, sem figurantes, aparecessem nas laterais do quadro largo. Por causa de tudo isso, historiadores do estilo (BORDWELL, 2008, p. 322; COUSINS, 2004, p. 33; BORDWELL, THOMPSON, 2009, p. 418; SALT, 2009, p. 247) concordam entre si: Leone foi o diretor que mais usou close-ups extremos, especialmente de rostos. Os nmeros mostram que esta observao continua valendo; os filmes feitos por Leone contm maiores ndices de close-ups do que os trabalhos de qualquer outro diretor que trabalhou antes ou depois dele. Para comprovar isso, contamos o nmero de close-ups em trs filmes de Leone (Por um Punhado de Dlares, Trs Homens em Conflito e Era uma Vez na Amrica) e comparamos os dados obtidos com a mdia de usos de close-ups em longas- metragens realizados nos anos de 1959 (SALT, 2009, p. 280) e 1999 (SALT, 2009, p. 369). Para realizar esse levantamento comparativo, procuramos selecionar filmes realizados por Leone sob diferentes modos de produo, e em pocas diferentes da carreira. Por um Punhado de Dlares foi feito sob as normas rgidas de Cinecitt e com oramento de US$ 200 mil; em Trs Homens em Conflito, Leone teve seis vezes mais dinheiro disposio e acesso a novas tecnologias; e Era uma Vez na Amrica, alm de realizado quase duas dcadas depois e se constituir como o ltimo trabalho de Leone, um trabalho de outro gnero, e foi filmado no sistema de produo dominante em Hollywood 22 Apesar dos trs contextos de produo serem bastante diferentes entre si, as estatsticas demonstram que o uso do close-up em Leone variou pouco, ao longo da carreira dele, com uma tendncia ao uso cada vez mais generoso do recurso, especialmente quando associado a reenquadramentos . 23 22 A decupagem rigorosa foi realizada com o auxlio do software Cinemetrics ( . Vejamos: o primeiro western de Leone contm 221 close- ups normais (55 combinados com reenquadramentos) e 217 close-ups extremos (32 com reenquadramentos). O filme tem 857 planos, descontados os crditos iniciais, dos quais 438 (ou seja, 51,10%) so close-ups; o total de close-ups supera a metade do nmero de planos do filme inteiro. Na prtica, um a cada quatro planos do filme consiste de close-ups normais, e um a cada quatro um close-up extremo. Alm disso, um a cada trs planos do filme (260 deles, ou 30,33% do total) contm pelo menos um reenquadramento. www.cinemetrics.lv). As tabelas completas com os nmeros de cada filme esto nos Anexos. 23 Consideramos como reenquadramento tantos os movimentos de cmera (pans, tilts, gruas, etc.) quanto os planos que usam o zoom para aproximar ou distanciar as figuras mostradas na imagem do espectador. 208 Realizado dois anos depois, Trs Homens em Conflito alcana resultados parecidos ligeiramente mais destacados no uso do recurso. Do total de 1.472 planos, 325 so close-ups (84 com reenquadramentos), e outros 551 close-ups extremos (141 com reenquadramentos). Esses nmeros significam que um a cada trs planos do filme (551 planos, ou 37,43%) um close-up extremo; e um a cada cinco (325 planos, ou 22,07%), um close-up normal. O longa- metragem tem, ao todo, 876 planos em close-up. Isto significa que 59,51% do total de planos do filme so composies pictricas em close-up trs em cada cinco planos realizados. A quantidade de planos que contm reenquadramentos ligeiramente maior do que em Por um Punhado de Dlares: 458, ou 31,11% mdia de um a cada trs planos. Era uma Vez na Amrica foi realizado exatas duas dcadas aps o primeiro western de Leone. Teve oramento de US$ 30 milhes de dlares e utilizou um formato de imagem diferente (saa de cena a proporo 2.35:1, substituda pela 1.85:1, mais comum nos Estados Unidos). Mas as alteraes financeiras e tecnolgicas exerceram pouco impacto no uso do recurso estilstico. O total de planos em close-up, soados os normais e extremos, chega a 1.019 dos 1.687 que compem os 22 minutos do filme: 60,40% dos planos so em close-up, um aumento menor que 1% em relao a Trs Homens em Conflito, feito 18 anos antes. Leone usou 444 planos (26,31%) em close-up normal, ou um a cada cinco; e 575 planos em close-up extremo (34,08%), ou um a cada trs. So mdias praticamente iguais s alcanadas no filme de 1966. Quanto ao uso do recurso, a variao mais significativa de Era uma Vez na Amrica para os westerns de Leone a quantidade de reenquadramentos. No longa-metragem de 1984, 675 planos (40, 01% do total, ou dois em cada cinco) contm pelo menos um reenquadramento. Esta taxa indica um aumento de 10% no uso desse recurso, em relao aos filmes italianos de Leone (ver Tabela B dos Apndices). Para efeito de comparao, Barry Salt (2009, p. 281) contou os tipos de planos em uma amostragem de 20 dos 151 longas-metragens produzidos nos Estados Unidos em 1959, e chegou a um percentual de 44,38% de close-ups (dos quais 10,08% so close-ups extremos). Ou seja, um a cada trs planos em filmes da poca so close-ups, ndice semelhante aos longas-metragens de Leone; e um a cada dez planos so close-ups extremos. Dentro dos westerns, esse nmero ainda menor (os cineastas valorizavam os planos gerais, como forma de destacar a iconografia do gnero). O Homem que Luta S (1959), por exemplo, usa 25 close-ups extremos, ou exatos 5% de todos os 500 planos do longa-metragem um a cada 20 planos do filme. Os diretores de westerns da gerao anterior praticamente no usavam close- ups extremos. Em No Tempo das Diligncias (1939), John Ford usou apenas dois planos do 209 tipo (ou 0,30% dos 656 que compem o filme). correto afirmar, pois, que Leone usava de duas a quatro vezes mais close-ups extremos do que os outros diretores de sua poca. A pesquisa de Barry Salt demonstra que o uso dado pelos diretores contemporneos ao close-up significativamente maior, sobretudo da modalidade extrema, mas o uso que Leone fazia do recurso permanece mais eloqente do que a mdia. Em 1999, Salt contabilizou os tipos de planos usados em 671 filmes lanados comercialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, chegando ao ndice de 47,89% de close-ups (dos quais 15,43% da modalidade extrema). Isso nos mostra que um a cada trs planos de um filme atual consiste em close-up normal, e um a cada seis planos se enquadra na definio de close-up extremo. A comparao nos mostra que os filmes de Leone contm pelo menos o dobro de close-ups extremos, e 10% a mais de close-ups normais, do que os longas-metragens realizados em 1999. Outra concluso importante mostra que Leone foi o nico cineasta dos anos 1960 e permanece um dos raros diretores at a atualidade a utilizar mais close-ups extremos do que close-ups normais em seus filmes. A pesquisa de Barry Salt (2009, p. 280-281) demonstra que os diretores dos anos 1960 usavam, em mdia, um close-up extremo para cada quatro close- ups normais. No ano de 1999, essa relao era de trs close-ups normais para cada extremo. Na obra de Leone, ao contrrio, a cada trs close-ups normais, ele usava quatro extremos. O resultado desse estudo estatstico nos mostra que o uso do close-up extremo pode ter sido impulsionado por modas, pelos contextos de produo e pela influncia da televiso, quando Leone comeou a dirigir; mas a consistncia e a ampliao do uso desse recurso, ao longo de duas dcadas, demonstram que a ferramenta se tornou uma opo estilstica consciente. Mais at do que uma soluo para um problema de representao, o close-up extremo se tornou uma assinatura estilstica amplamente reconhecida. O segundo recurso visual mais caracterstico de Leone o uso freqente da composio pictrica em profundidade de campo. Esse tipo de composio institui o que Bordwell (2008, p. 219) chamou de espao recessivo, seguindo o estudo de Heinrich Wlfflin sobre a composio dos artistas barrocos na Europa do sculo XVII: H um momento em que enfraquece a relao entre os planos e passa a ser enfatizada a seqncia em profundidade dos elementos do quadro; nesse momento, o contedo j no pode ser apreendido atravs de camadas estruturadas na superfcie, e a fora motriz passa a residir na articulao dos componentes prximos e afastados. (...) Mesmo nos casos em que esse efeito [a encenao planimtrica] parece inevitvel por exemplo, quando um certo nmero de figuras se alinha ao longo da boca de cena o artista cuida para que essas figuras no se cristalizem numa fileira perfeita, obrigando o observador a fazer incurses constantes [com o olho] at o fundo do quadro. (WLFFLIN, 1996, p. 101). 210 Nas composies recessivas, o artista se esmera em criar linhas diagonais que cortam o quadro do primeiro plano at o fundo. Os artistas podem criar esse efeito atravs de vrios recursos, inclusive as gradaes de luz e cor. Mas a maneira mais simples de institu-lo na imagem sempre foi a disposio das figuras em diferentes planos de profundidade da imagem. No cinema, a composio recessiva obtida quando o diretor posiciona figuras (atores e objetos cnicos) a diferentes distncias da cmera, o que injeta mais perspectiva ao quadro. Movimento, luz e cores contribuem para acentuar o efeito, mas a disposio das figuras a maneira mais eficaz de alcan-lo. Ao longo da histria do cinema, a composio recessiva constituiu uma alternativa de encenao relativamente pouco utilizada pelos diretores. Nos anos 1920 e 1930, a encenao dominante tendia a posicionar os atores numa linha perpendicular cmera, produzindo um achatamento visual que resultava numa imagem planimtrica (WLFFLIN, 2000, p. 102), com quase nenhuma profundidade. Isso era resultado no apenas da influncia do teatro, mas tambm dos equipamentos sobretudo lentes e pelcula ainda incipientes, que no permitiam aos diretores de fotografia obter profundidade de campo muito extensa, de forma que os atores, para ficar em foco, tinham que se posicionar numa faixa estreita do cenrio. Apesar disso, havia excees, incluindo diretores famosos, oriundos de escolas e pases diferentes, que popularizaram a composio recessiva como uma alternativa vivel imagem planimtrica, embora esta tenha permanecido mais popular no cinema clssico. Sergei Eisenstein, Kenji Mizoguchi, Jean Renoir e John Ford esto entre essas excees. Cada um deles revisou e adaptou as composies recessivas de uma maneira particular e ligeiramente diferente dos demais. Todos influenciaram o processo de reviso e adaptao desse recurso que Leone levou a cabo, nos anos 1960. Eisenstein exerceu muita importncia nesse processo devido atuao suplementar como professor e terico do cinema. Ele alertou para as possibilidades da composio recessiva associada profundidade de campo ainda no final dos anos 1920, quando comeou a aplicar encenao cinematogrfica uma coreografia mais elaborada do movimento dos atores dentro do quadro. Essa coreografia obedecia ao mesmo princpio que ele usava em sua teoria da montagem: a organizao dos elementos visuais que compunham o quadro era, em si, um segundo processo de montagem, s que realizada dentro do plano, e no no corte. Atravs da coreografia, dizia Eisenstein (1992, p. 24) o realizador podia guiar o olho do espectador para certas partes da imagem, depois para outras, e assim por diante. Esse processo era to mais eficiente quanto mais utilizasse a profundidade de campo. 211 Figura 3.55: Esboos desenhados em 1933 por Eisenstein para uma cena de Crime e Castigo (nunca filmada): composio recessiva em profundidade. Figura 3.56: O momento culminante seria filmado com cmera fixa, com os atores movendo-se dentro do quadro a diferentes distncias da cmera. Figura 3.57: Eisenstein colocou em prtica a composio recessiva com profundidade de campo em Ivan, o Terrvel; a moldura um rosto em close-up extremo. Figura 3.58: Elegia de Osaka (1936): Mizoguchi preferia tomadas mais longas, em que os personagens em segundo plano se moviam dentro do quadro. Figura 3.59: Composio recessiva em A Regra do Jogo: Renoir colocava figuras em primeiro plano distantes da cmera e criava diagonais com o movimento deles. Figura 3.60: A baixa profundidade de campo s vezes deixava o segundo plano fora de foco; em Renoir, o primeiro plano tambm no to proeminente. Foi refletindo sobre as possibilidades narrativas da composio recessiva que Eisenstein criou o conceito de mise-en-cadre (que poderamos traduzir livremente como encenao dentro do quadro), em 1929. Quatro anos mais tarde, durante aulas na escola de 212 cinema de Moscou, ele props um exerccio a seus alunos, que deixou registrado em desenhos: filmar o momento culminante do romance Crime e Castigo (Dostoievski) um assassinato numa nica tomada com cmera fixa. Os esboos (figuras 3.55 e 3.56) revelam uma variao da composio recessiva muito semelhante quela que seria posta em prtica, trs dcadas depois, por Leone. A cena no chegou a ser filmada, mas anos depois Eisenstein usou em seus filmes as idias sobre a mise-en-cadre (figura 3.57). Na dcada de 1930, Kenji Mizoguchi resgatou a composio recessiva de maneira bastante similar ao uso que Eisenstein fez do recurso. Nos filmes de Mizoguchi, a tcnica de filmar dentro no mesmo quadro duas aes simultneas, uma prxima e outra distante da cmera, aparece vrias vezes (figura 3.58), em coreografias aparentemente mais casuais e em tomadas longas, com muito movimento. Mizoguchi usava a profundidade de campo, mas em seus planos as figuras se moviam constantemente, tanto no primeiro quanto no segundo plano. Na Frana, Jean Renoir usava composies recessivas com tanta freqncia quanto Mizoguchi. Ele tambm era adepto das tomadas longas, e os planos freqentemente reuniam vrios atores conversando e se movimentando a diferentes distncias da cmera. No entanto, Renoir no preferia no colocar seus atores muito prximos cmera. Alm disso, ele s vezes mantinha o segundo plano fora de foco, ou agrupava os atores numa rea mais estreita, de maneira a utilizar a profundidade de campo com intensidade menor (figura 3.59 e 3.60). O uso que Renoir dava composio recessiva tambm era diferente de John Ford. Dos quatro cineastas estudados at aqui, Ford era o que mais valorizava o espao geogrfico em que a ao dramtica acontecia. De modo geral, o primeiro plano em Ford sempre mais distante do que em Eisenstein, Mizoguchi ou Renoir, porque a integrao do homem paisagem funcionava como tema central em seus filmes. A relao dos atores com o espao cnico era to importante ou at mais do que a coreografia das figuras dentro do quadro. Por isso, ao contrrio de Renoir, ele usava todo o potencial da profundidade de campo, de forma que suas composies visuais mantinham toda a rea da imagem em foco (figura 3.61 e 3.62), com a primeira figura em plano mdio ou geral. Ford exerceu influncia na reviso que Orson Welles fez da composio recessiva em profundidade, mas Welles criou uma variao mais exagerada. Ele hiperdramatizou o recurso atravs da combinao de vrias tcnicas: alm da profundidade de campo, usava o contra- plong (a filmagem dos personagens de baixo para cima acentuava a dramaticidade dos rostos, efeito amplificado pelas sombras oriundas da iluminao quase expressionista que utilizava, com pouca luz de enchimento) e colocava um ator em primeiro plano prximo da cmera. Este ltimo, em geral, permanecia parado, enquanto os demais atores iam e viam do 213 Figura 3.61: No Tempo das Diligncias (1939): encenao em diagonal com profundidade de foco, mas sem primeiro plano destacado, para valorizar o espao. Figura 3.62: Em Rastros de dio (1956), Ford distribui os atores dentro do quadro a diferentes distncias da cmera, mas todos esto focalizados com nitidez. Figura 3.63: Cidado Kane (1941): Welles encenava em diagonal, usava primeiros planos agressivos e grande profundidade de foco; o movimento do ator ... Figura 3.64: ... para trs expe o verdadeiro tamanho da janela, criando iluso tpica do trompe loeil, alcanada atravs do jogo com as perspectivas das figuras. Figura 3.65: Por uns Dlares a Mais (1965): diviso do quadro Scope em unidades rtimicas, com close-up extremo e composio recessiva criando trompe loeil. Figura 3.66: Composio idntica apresentada em Trs Homens em Conflito: distncia entre elementos em primeiro e segundo planos podia ser de at 20 metros. Figura 3.67: Figura em primeiro plano formava moldura; elementos em segundo e terceiro plano interagem com ela, obrigando a platia a perscrutar a tela com os olhos. Figura 3.68: Nos interiores, contrastes de luz e cor, alm da disposio das figuras e de aberturas de portas e janelas, auxiliavam na criao de linhas diagonais. 214 primeiro plano ao fundo, de forma que essa movimentao assinalasse a modulao dramtica, com personagens dominando e sendo dominados por outros alternadamente, s vezes dentro da mesma tomada, quase sempre sem cortes (figuras 3.63 e 3.64). A influncia de Welles popularizou essa variao hiperdramatizada de composio recessiva nos filmes dos anos 1940. A tcnica inventada pelo diretor de fotografia Gregg Toland, chamada deep focus (ampla profundidade de campo obtida atravs da combinao de lentes grande-angulares, iluminao mais forte e pelcula mais sensvel luz), popularizada por Cidado Kane (1941), permitia o uso desse recurso em filmes preto-e-branco (a pelcula colorida exigia mais luz, o que diminua automaticamente a profundidade de campo obtida). Nos anos 1950, pela mesma razo tecnolgica que reduziu o uso de close-ups a adoo de processos anamrficos como o Cinemascope , as composies recessivas voltaram a ser pouco utilizadas. Elas se tornaram tecnicamente mais difceis de obter. O prximo cineasta a resgatar a composio recessiva foi justamente Sergio Leone. O uso tpico que Leone dava composio recessiva se aproximava das variaes executadas por Eisenstein, Mizoguchi e Welles. Havia sempre uma figura em primeiro plano emoldurando a ao ao fundo; a profundidade de campo era ampla, com grande distncia entre as duas aes em diagonal, que por sua vez sempre se relacionavam, uma influenciando a outra (figuras 3.65, 3.66, 3.67 e 3.68). Mas havia, tambm, diferenas significativas. Leone tambm tinha predileo clara por planos com cmera fixa, dentro dos quais o movimento dos atores era mnimo. Ele tendia a enquadrar de modo mais esttico; suas composies recessivas consistiam em, muitas vezes, tomadas com cmera fixa, em que os atores tambm se moviam muito pouco. A sensao de movimento era gerada no no interior da composio pictrica, como seus antecessores, mas atravs da justaposio rpida desses planos recessivos com outros planos (ou seja, atravs da montagem e da fragmentao do espao flmico). Na obra de Leone, as composies recessivas quase sempre aparecem numa variao ainda mais agressiva do que a criada por Welles: figuras colocadas a poucos centmetros da cmera, emoldurando uma ao que ocorre em segundo plano, muito distante; profundidade de campo maior do que a utilizada por Ford e Welles a distncia entre o primeiro plano e o fundo, ampliada pelo uso de lentes grande-angulares, era freqentemente de at 20 metros; composies pictricas com pouco ou nenhum movimento (da cmera e dos atores). Usando a tela larga widescreen da forma sugerida por Bordwell (BORDWELL, 2007, p. 311) uma superfcie dividida em unidades rtmicas , Leone freqentemente unia os dois recursos proeminentes (close-ups extremos e composies recessivas) no mesmo quadro. Fazer isso era simples: bastava usar um rosto, mo, p ou objeto (revlver, coldre) como 215 figura em primeirssimo plano; essa figura preenchia 2/3 ou metade da tela. Dessa maneira, a linha diagonal criada dentro do quadro levava o olho do espectador do primeiro quadro para o fundo, ao longe, criando um jogo de tenso que ampliava o suspense alcanado. Mas ser que a influncia de outros cineastas explica o uso freqente dessa variao da composio recessiva por Leone? Provavelmente no. Leone certamente usou Welles, Eisenstein, Ford, Mizoguchi e Renoir como inspirao, mas combinou essa influncia com a paixo por pintores europeus (FRAYLING, 2000, p. 233). Entre esses pintores esto Edgar Degas (1834-1917, figura 3.69), Francisco Goya (1746-1828, figura 3.71), Giorgio De Chirico (1888-1978, figura 3.75) e Diego Velsquez (1599-1660, figura 3.73). A influncia dos pintores pode ser constatada, inclusive, pela relativa ausncia de movimento dentro do quadro; Leone enquadrava como se pintasse uma tela. Os planos que usavam a composio recessiva aparecem, dentro das cenas, com uma solenidade que induz o espectador a admirar o artista que os produziu. Era, talvez intuitivamente, uma tentativa de se impor como autor. De fato, a composio recessiva com profundidade de campo de Leone pode ser compreendida como uma adaptao das tcnicas de Degas e De Chirico para a arte cinematogrfica. Degas criava linhas diagonais nos quadros atravs do posicionamento das figuras a diferentes distncias do pintor; era comum que um modelo ficasse perto dele, numa das bordas do quadro, funcionando como uma espcie de moldura; essa tcnica evidente na srie de quadros de bailarinas que Leone adorava. Alis, Leone dizia que a predileo de Degas por retratar os modelos fazendo aes fsicas convencionais tambm o influenciou na direo dos atores (da o gestual lento que os pistoleiros faziam quando se moviam). De Chirico era citado por Leone por outra razo, sobretudo pelo uso da nitidez agressiva nas composies com linhas diagonais, que incluam aes em primeiro plano e no fundo (ambas muito ntidas), e tambm pela tcnica do trompe loeil, jogando com a perspectiva ao fazer certos elementos do quadro parecerem maiores (ou menores, s vezes os dois ao mesmo tempo) do que deveriam. Goya, por sua vez, criava composies recessivas menos atravs da disposio das figuras, e mais atravs do uso da iluminao chiaroescuro para produzir efeitos de profundidade; sua influncia pode ser mais percebida nas tomadas registradas em interiores, onde Leone no conseguia obter profundidade de campo to agressiva, tendo que usar a luz para criar linhas diagonais. J Velsquez foi influente, sobretudo, na paleta de cores pastis, cujas variaes gradativas constituam outro recurso para criar diagonais. Goya tambm era mencionado por Leone por representar os poderosos de modo satrico, enquanto os humildes eram vistos com mais simpatia. 216 Figuras 3.69 e 3.70: esquerda, La Classe de Danse (18731876), pintura a leo que faz parte da srie mais famosa de Edgar Degas, da qual Leone era admirador confesso: a disposio das bailarinas pelo cenrio cria uma linha de encenao em diagonal, com todas as camadas da imagem vistas com nitidez; a mesma composio pictrica utilizado na cena acima de Era uma Vez no Oeste (1968), com barris e pedaos de madeira inseridos no centro da imagem, para sugerir uma linha em diagonal entre o pistoleiro (primeiro plano) e sua vtima (segundo plano). Figuras 3.71 e 3.72: direita, a pintura a leo El Tres de Mayo de 1808 en Madrid (1814), de Francisco Goya: note como o estilo, a luz e a cor, com reas escuras nas bordas do enquadramento e pontos brancos e amarelos, esquerda do quadro, so reproduzidos em cenas de Leone em interiores, como esta de Por um Punhado de Dlares (1964), acima. Figura 3.73 e 3.74: esquerda, a pintura a leo Las Meninas (1656), de Diego Velsquez, cuja influncia Leone admitia na paleta de cores pastis e na maneira como ele retratava os nobres com stira e os humildes e enfermos com simpatia; na imagem acima, de Trs Homens em Conflito (1966), Leone usa as duas tcnicas, fazendo Lee Van Cleef usar um mendigo sem pernas para obter uma informao (e retratando este ltimo, portanto, com simpatia) e tambm utilizando os sobretons em cinza-chumbo para tornar mais sbrio o azul predominante na cena. 217 Figura 3.75 e 3.76: direita, a pintura a leo Andromache (1916), de Giorgio De Chirico: note como o pintor posiciona uma figura em primeiro plano que parece muito maior do que o castelo visto em segundo plano, embora seja na verdade bem menor (e os dois elementos visuais, apesar de separados por grande distncia, so ambos vistos com nitidez agressiva); acima, composio recessiva que aparece em Por uns Dlares a Mais (1964), com um close-up extremo de rosto funcionando como moldura para a ao principal em segundo plano longnquo; os dois elementos so filmados com nitidez agressiva, e um rosto gigantesco justaposto figura minscula dos homens caminhando, num jogo de perspectiva caracterstico da tcnica pictrica do trompe loeil. O gosto de Leone pela pintura europia era conhecido de seus colaboradores. Ele costumava viajar a Madri para visitar o Museo Del Prado, onde estudou minuciosamente quadros como Las Meninas (1656), de Velsquez. Leone colecionou telas de Giorgio De Chirico. Antes de filmar Trs Homens em Conflito, mostrou pinturas dos quatro artistas ao fotgrafo Tonino Delli Colli, para que ele as usasse como referncias (FRAYLING, 2000, p. 233) nas composies, na iluminao e no uso de tonalidades de terra e areia. Em resumo, Leone combinou influncias do cinema e da pintura para criar uma variao da composio recessiva que se tornaria forte assinatura estilstica. importante observar, por fim, que ele freqentemente criava um dilogo visual entre as duas camadas da imagem, com a figura em primeirssimo plano participando ativamente da ao dramtica, interferindo com os elementos da encenao que estavam posicionados distncia, de modo que o espectador precisasse percorrer toda a imagem com os olhos. A composio recessiva com moldura aparece, ainda que timidamente e sem grande profundidade de campo, em alguns westerns influentes dos anos 1950. William Wellman usou composies recessivas em Cu Amarelo (Yellow Sky, 1948, figura 3.77), e George Stevens fez o mesmo em Os Brutos Tambm Amam (1953, figura 3.78). provvel que esses filmes ambos homenageados com citaes em Era uma Vez no Oeste tenham influenciado Leone, que no entanto no se limitou a replicar esse esquema, revisando-o de maneira evidente. 218 Figura 3.77: Composio com moldura em Cu Amarelo (1948): para evitar problemas com o foco, revlver est em contraluz e segundo plano, bem prximo cmera. Figura 3.78: Revlver serve de moldura em Os Brutos Tambm Amam (1953): o Cinemascope tornou esse tipo de composio tecnicamente dificil de reproduzir. Na poca em que Leone comeou a dirigir, as composies recessivas com profundidade de foco estavam fora de moda. Em Hollywood, os diretores no podiam us-las por causa das limitaes tcnicas impostas pelas lentes anamrficas; na Europa, cineastas como Michelangelo Antonioni, Theo Angelopoulos e Rainer Werner Fassbinder preferiam composies planimtricas, que geravam imagens mais achatadas e sem profundidade (o efeito chapado era, ainda, intensificado pelas lentes teleobjetivas, que comeavam a ser tornar populares no mesmo perodo). Quando o espao recessivo aparecia, os atores estavam quase sempre distantes e/ou de costas para a cmera. Os europeus preferiam esse recurso porque achavam que a profundidade wellesiana hiperdramatiza a ao, aproximando demais o primeiro plano do espectador (BORDWELL, 2008, p. 219), dirigindo o olhar da platia de maneira mais ostensiva. J a imagem planimtrica, com o primeiro plano distante, exercia o efeito contrrio: desdramatizava a ao, dificultando a leitura das expresses faciais dos atores. Para adotar a composio recessiva com profundidade de campo e moldura, Leone precisou resolver impedimentos tcnicos. A maneira mais comum de filmar uma composio recessiva, nos anos 1960, era utilizando lentes de distncia focal longa (teleobjetivas). Mas essas lentes ofereciam pouca profundidade de campo. As teleobjetivas no permitem focalizar com nitidez as figuras em primeiro e segundo plano; elas desfocam uma das duas camadas. No caso das lentes especiais dos formatos Scope, que vinham sendo usadas desde 1953, a profundidade de campo era ainda menor. Tudo isso tornava complicada a tarefa de manter em foco as duas camadas da imagem; se o diretor assim o desejasse, os elementos em primeiro e segundo plano precisavam estar muito prximos um do outro. Para compor uma imagem recessiva com alguma profundidade, os cineastas precisavam ordenar os atores numa 219 rea que ia de trs a oito metros de distncia da cmera (BORDWELL, 2007, p. 313), uma faixa de encenao muito mais estreita do que Leone desejava. Em 1963, surgiu uma soluo tcnica para esse problema. Essa soluo permitia que a cmera ficasse a poucos centmetros de distncia do elemento em primeiro plano, mantendo o foco nele e tambm na ao dramtica mais distante, a at 20 metros de distncia. Essa soluo surgiu em Roma, no laboratrio italiano da Technicolor. Foi l que alguns tcnicos inventaram um sistema que funcionava de modo semelhante ao Cinemascope. O sistema foi chamado de Techniscope (BARBUTO, 2009). Para entender como funcionava o Techniscope, preciso compreender antes o funcionamento do Cinemascope. Esse ltimo foi desenvolvido por causa da necessidade que os grandes estdios sentiram, nos anos 1950, em adotar formato de tela diferente do utilizado pela televiso, vista como uma ameaa sobrevivncia do cinema. At ali, as cmeras registravam as imagens na proporo 1.33:1 (1,33 metro de largura para cada metro de altura). Com o Cinemascope, a proporo passou a ser 2.35:1. Para registrar a imagem mais larga, os tcnicos utilizavam uma soluo matemtica que envolvia o uso, acoplado cmera, de lentes especiais anamrficas. A cmera capta a imagem mais larga, mas esta, ao passar pela lente, esticada duas vezes no sentido vertical (figura 3.79). Desta forma, a imagem impressa no negativo fica distorcida. No momento em que o filme projetado, outra lente anamrfica acoplada ao projetor elimina a distoro, reproduzindo o quadro original (BARBUTO, 2009). A adoo de sistemas Scope por todos os grandes estdios, ao longo dos anos 1950, determinou uma srie de restries tcnicas ao trabalho dos cineastas, todas relacionadas dificuldade de manipulao das lentes anamrficas. Essas lentes eram caras, maiores, pesadas e menos capazes de obter profundidade de campo. Tudo isso imps limites severos aos movimentos de cmeras e s tticas de encenao: Lentes anamrficas tm efetivamente distncias focais maiores do que as no-anamrficas, e portanto oferecem menor profundidade de campo. Para complicar mais, os mais prestigiosos filmes realizados em formato widescreen eram filmados em cores, e as cores exigiam mais luz. (BORDWELL, 1997, p. 237). A adoo do Cinemascope forou os cineastas a adotar a encenao com os atores dispostos num eixo horizontal, como uma corda de roupa estendida (COUSINS, 2004, p. 13). a que entra o Techniscope. A soluo era engenhosa: Enquanto o Cinemascope aumenta a relao entre largura e altura dobrando a primeira, o Techniscope faz o mesmo diminuindo pela metade a segunda (BARBUTO, 2009). Do ponto de vista matemtico no 220 Figura 3.79: Imagem fotografada com lente Cinemascope distorce a imagem esticando-a para cima, voltando ao normal apenas no momento da projeo. Figura 3.80: A imagem gravada na pelcula pelo sistema Techniscope no anamrfica e ocupa a metade do espao na pelcula, mas tem resoluo mais baixa. faz diferena, pois a proporo de imagem obtida exatamente igual, ou seja, 2.35:1 (figura 3.80). Em termos estticos e financeiros, contudo, havia vantagens e desvantagens. O principal problema do Techniscope estava relacionado qualidade da imagem. Como o Techniscope usava uma rea menor do negativo, a imagem precisava passar por uma ampliao maior na projeo; a textura ficava mais granulada e tinha cores desbotadas. Mas o sistema tinha vantagens tambm. Era econmico: o diretor de fotografia s precisava utilizar 50% do negativo em 35 milmetros necessrio para registrar a mesma quantidade de filme em Cinemascope. E havia vantagens estticas: [O Techniscope] usava as lentes comuns, que chamamos de esfricas. Pelo fato de a diagonal do quadro ser menor, havia um aumento da profundidade de campo em relao ao 35 mm e ao Cinemascope. Havia uma boa disponibilidade de lentes zoom (...) [o que no acontecia com as lentes anamrficas, muito mais caras e difceis de encontrar]. Se poderia ter o quadro largo, permitindo o trabalho com a paisagem, liberando a mise-en- scne. E, de quebra, fazia o negativo render o dobro, diminuindo os custos. (BARBUTO, 2009). Na Itlia, os produtores de Cinecitt adotaram o Techniscope como formato padro dos filmes de baixo oramento, pois as vantagens financeiras eram expressivas. Leone, em particular, viu no formato a soluo para o problema das composies recessivas. A desvantagem mencionada textura granulada e cores desbotadas no chegava a ser um empecilho para ele, que apostava de qualquer forma nas cores gastas e na textura suja. De certo modo, o sistema at favorecia a aparncia rstica pretendida. O Techniscope dava aos diretores de fotografia a possibilidade de trabalhar com uma profundidade de campo maior. O formato, portanto, aboliu o limite tecnolgico imposto pelos equipamentos, de forma que Leone encontrou nesse formato as condies ideais para adotar em seus filmes o tipo de composio recessiva radical que desejava. 221 importante observar que outros limites tecnolgicos obrigaram Leone a adaptar o uso desse recurso estilstico para Era uma Vez na Amrica (1984). Feito em Hollywood, este filme no foi registrado em Techniscope, pois a Warner, que bancou os US$ 30 milhes do oramento, no aceitou utilizar o formato desenvolvido na Itlia, por causa da qualidade mais baixa da imagem obtida. Leone e o fotgrafo Tonino Delli Colli chegaram a realizar um teste com o Cinemascope, mas decidiu-se pelo sistema Panavision quando viu Era uma Vez no Oeste no formato Pan & Scan, na TV do hotel onde estava hospedado 24 24 Para encaixar a imagem retangular de um filme Scope na tela mais quadrada de uma televiso, os estdios mutilavam as laterais do enquadramento, reduzindo assim a proporo de 2.35:1 para 1.33:1. Ao todo, 46% da imagem de cada frame so literalmente jogados fora, destruindo completamente a composio original planejada pelo diretor. . Os cortes nas laterais da imagem o irritaram. Isso o levou a optar pelas filmagens na proporo 1.85:1, at hoje a mais popular em Hollywood. Assim, o filme sofreria menos cortes quando exibido na TV. Havia ainda outra vantagem. O sistema escolhido, no-anamrfico, permitia trabalhar com lentes esfricas, com as quais fotgrafo e diretor estavam acostumados. Essa mudana trazia uma desvantagem: a profundidade de campo era menor. Leone teve que se adaptar, revisando o esquema criado nos anos 1960. Para criar composies recessivas em Era uma Vez na Amrica, ele tinha trs opes: (1) usar o elemento em primeiro plano mais afastado da cmera (normalmente a trs metros dela); (2) filmar a moldura em primeiro plano em contraluz, para esconder a falta de foco; (3) descartar a nitidez em uma das duas camadas da imagem, focalizando apenas uma delas e usando, se necessrio, a tcnica do rack focus (atravs da qual ele podia focalizar progressivamente uma rea da imagem e depois a outra). Todas as composies recessivas do filme usam uma dessas trs possibilidades. Duas delas podem ser conferidas na cena que mostra a chegada de Noodles (Robert De Niro) ao bar onde a quadrilha que ele chefia se rene. Max (James Woods), o co-lder, est sentado num trono do sculo XVII. Noodles pede caf e senta num sof comum, junto com outros membros da gangue. Durante 73 segundos, ele mexe a colher na xcara, enquanto os demais integrantes da quadrilha se entreolham nervosamente. Leone inicia a cena com dois planos gerais. Cada um deles compe em profundidade de campo, usando duas tcnicas diferentes. No primeiro plano (figura 3.81), o perfil de Noodles (Robert De Niro) est em primeirssimo plano, mas filmado em contraluz, e isso o transforma numa silhueta negra. No plano seguinte, a moldura fornecida pela mo de Max segurando um charuto (figura 3.82), tambm em primeirssimo plano, mas com a moldura fora de foco; s se pode ver com nitidez os personagens agrupados em segundo plano. 222 Figura 3.81: Composio recessiva com moldura em profundidade de campo: Leone disfara a falta de foco do primeiro plano transformando-o numa silhueta ... Figura 3.82: ... e desfoca a moldura na tomada seguinte; cmeras Panavision reduzem a profundidade de campo, forando o diretor a alterar composies com moldura. Figura 3.83: Irritado, Noodles pede uma xcara de caf, enquanto o resto do bando aguarda, dispostos numa rara composio planimtrica e com pouco volume. Figura 3.84: Leone cria suspense num momento banal, usando o rudo ritmado da colher batendo na xcara, movimento que dura 72 segundos ... Figura 3.85: ... enquanto os demais membros da gangue se entreolham, esperando o momento em que o chefe vai parar de mexer a colher e explodir de irritao. Figura 3.86: Leone fragmenta o espao flmico recorrendo a close-ups dos rostos dos atores, com o som intermitente da colher mantendo a continuidade. Figura 3.87: Um dos membros da gangue aparece segurando uma flauta-de-P, instrumento dominante na trilha sonora, brincando com a msica extra-diegtica. Figura 3.88: A troca de olhares e os enquadramentos em close-ups extremos d a impresso de que a cena ocorre em cmera lenta: distenso do tempo diegtico. 223 Figura 3.89: No final da cena, Noodles finalmente bebe o caf, sem externar a sua irritao, interrompendo o rudo da colher e dissipando a tenso do grupo. Figura 3.90: Leone corta para o rosto de Max, o membro rebelde da gangue; o close-up d mais ar em cima e abaixo do rosto, enfatizando o alvio que ele sente. Mais frente, enquanto Noodles se serve do caf e mexe interminavelmente a colher (figura 3.84), criando tenso, o diretor fragmenta o espao flmico em close-ups dos membros da gangue se entreolhando (figuras 3.85, 3.86, 3.87 e 3.88), finalizando com um close-up do prprio Noodles bebendo o caf (figura 3.89). No plano seguinte, Max relaxa (figura 3.90). Outro aspecto pictrico do estilo de Leone, menos evidente e mais sutil, uso de uma variao da tcnica do trompe loeil. J vimos como esta tcnica abriu caminho na obra de Leone atravs da influncia de Giorgio De Chirico: Quando descrevia sua admirao [pelo trabalho de Giorgio De Chirico], Leone tendia a enfatizar os jogos com a percepo, o uso da iluso e do trompe loeil, as justaposies bizarras, o fato de que as coisas nunca eram o que pareciam ser. (FRAYLING, 2000, p. 231). Vimos, tambm, que ela aparece muitas vezes associada ao uso do close-up extremo dentro da composio recessiva. Para jogar com a percepo do espectador, Leone usava esses dois recursos; ele brincava, ainda, com a relao entre os elementos que apareciam em quadro e outros que estavam fora dele. Esse recurso estilstico pode ser encontrado em todos os filmes, com maior nfase em Trs Homens em Conflito. A caracterstica j pde ser observada duas vezes na cena do cemitrio, quando Blondie e depois Angel Eyes aparecem para Tuco. Ambos esgueiram-se para dentro do quadro sem que sua movimentao chame a ateno dos personagens em quadro, o que seria realisticamente improvvel. Um dos exemplos mais claros da maneira como Leone adaptou mdia cinematogrfica a idia fundamental do trompe loeil (ou seja, criar uma iluso imagtica que engane o olho) est na tomada de abertura de Trs Homens em Conflito. Alis, nesse momento especfico, Leone usa a tcnica no apenas para brincar a percepo do espectador, mas tambm para subverter uma conveno do western (o plano de abertura que mostra o heri cavalgando distncia). 224 Figura 3.91: A tomada de abertura de Trs Homens em Conflito inicia com um plano geral aberto, em que se pode ver o deserto seco com montanhas ao fundo. Figura 3.92: Com cmera fixa e sem cortes, o rosto de um pistoleiro entra em quadro, pelo lado esquerdo, enganando o espectador: trompe loeil no cinema. A tomada inicia com um plano geral que mostra a paisagem do deserto (figura 3.91). O plano geral, associado ao ngulo alto, sugere uma abertura nos moldes de um western norte-americano, mas o que se segue a apario surpreendente do rosto em close-up extremo de um pistoleiro, que entra em quadro pelo lado esquerdo do frame (figura 3.92). Em Trs Homens em Conflito, Leone usa o trompe loeil para pregar peas visuais no espectador e criar efeitos cmicos. Em outra cena, Tuco e Blondie esto numa estrada vazia (figura 3.93); o primeiro tira do bolso um mapa rasgado, e eles o consultam (figura 3.94), enquanto caminham em frente (figura 3.95). Nesse instante, uma tropa de militares os cerca, entrando no quadro pela direita, pela esquerda e pela frente (figura 3.96). Seria literalmente impossvel que os militares conseguissem se aproximar dos dois pistoleiros sem serem vistos ou ouvidos, uma vez que eles so muitos e invadem o quadro tambm pela frente, a mesma direo para onde, apenas um instante antes, Tuco e Blondie estavam olhando (lodo depois, Leone focaliza o espao esquerda de Tuco e Blondie, mostrando o exrcito inteiro ali, algo que deveria ter sido notado pelos dois). O duelo final de Era uma Vez no Oeste traz outros exemplos dessas trs ferramentas estilsticas close-ups extremos, composies recessivas e trompe loeil , e uma anlise mais acurada da cena pode nos ajudar a correlacion-las entre si, e com outras ferramentas de narrao e estilo usadas por Leone, de forma mais abrangente. A cena consiste num duelo entre heri e vilo. Harmonica e Frank se encontram para decidir quem ficar vivo. O segundo desconhece o motivo do dio que o primeiro nutre por ele (assim como o pblico). Leone inclui uma surpresa que subverte a conveno do duelo do western, introduzindo um longo flashback (convm lembrar da fragmentao cronolgica da narrativa como componente importante de intensificao da segunda vertente da potica do cinema) que revela, finalmente, o motivo do desejo de vingana de Harmonica: alguns anos antes, Frank foi responsvel pela morte do irmo mais velho dele. No fim da cena, Harmonica baleia Frank, que morre com a gaita enfiada na boca, na mesma posio em que Harmonica estava ao desmaiar, enquanto via o irmo morrer enforcado pelo vilo, alguns anos antes. 225 Figura 3.93: Blondie e Tuco desmontam dos cavalos para observar o terreno e tentar descobrir em que rea fica o cemitrio militar que esto procurando. Figura 3.94: Os dois consultam o mapa rasgado que Tuco desenhou, enquanto caminham devagar para frente; a cmera se aproxima dos dois pistoleiros. Figura 3.95: Eles continuam caminhando, enquanto conversam sobre o rumo a seguir, olhando para frente e para os lados, sem enxergar absolutamente nada. Figura 3.96: No instante seguinte, uma tropa de soldados cerca os dois, entrando em quadro pelos dois lados e pela frente: trompe loeil cinematogrfico. A durao da cena de oito minutos e 55 segundos (535 segundos). Ela possui 59 planos; a durao mdia de cada tomada de nove segundos mdia quase trs vezes mais longa do que o trielo de Trs Homens em Conflito. A explicao para isso est na introduo de novas tcnicas: nesta cena, a cmera se move mais do que na cena do outro filme (em que a predominncia de tomadas com cmera fixa) e o uso do zoom tambm mais abundante. Esta opo leva o diretor a reenquadrar com freqncia, e isso os cortes constantes. A encenao apresenta semelhanas e diferenas perceptveis com o momento correspondente do filme anterior. Uma das semelhanas est no abundante nmero close-ups de rostos: 38 dos 59 planos em que a cena consiste mostram rostos humanos, ou quase dois teros (64,40%) do total de tomadas (figuras 3.98, 3.104, 3.106, 3.109, 3.110, 3.111, 3.113, 3.114, 3.117, 3.118, 3.119, 3.121, 3.124, 3.125, 3.127 e 3.128). ntida a preferncia de Leone por close-ups extremos que aproximam a cmera cada vez mais dos olhos dos personagens. H dois close-ups extremos que focalizam apenas os olhos (figuras 3.111 e 3.118); o primeiro, que introduz o flashback, tem 22 segundos. Leone usa com mais freqncia as lentes zoom (de distncia focal varivel) e os movimentos de cmera com grua. Em Era uma Vez no Oeste, ele freqentemente transforma um plano geral num close-up (ou vice-versa) sem que haja cortes, muitas vezes recorrendo tcnica do trompe loeil (ou seja, fazendo personagens entrarem em quadro inesperadamente). Isso ocorre no plano de abertura (figuras 3.97 e 3.98), quando vemos Frank (Fonda) caminhando distncia, antes que o rosto de Harmonica entre no quadro pela direita. 226 O efeito de percepo de surpresa. O plano termina numa composio recessiva, com as duas camadas da imagem (o rosto de Harmonica na frente, Frank caminhando atrs) em foco. O contra-plano (figura 3.99) exibe o mesmo enquadramento, s que invertido, agora com Frank em primeiro plano e Harmonica ao longe. A simetria, como havia ocorrido no trielo de Trs Homens em Conflito, sinaliza a equivalncia de foras entre os personagens. Na cena, uma tomada que comea como close-up tambm pode se transformar num plano geral aberto, depois que a cmera se afasta da ao principal e sobe, revelando as relaes espaciais entre os personagens. Essa estratgia de encenao ocorre pelo menos duas vezes: a primeira no comeo da cena, quando Frank e Harmonica se posicionam no quintal da fazendo de Jill (Claudia Cardinale) para iniciar o duelo propriamente dito e vale a pena observar que o cenrio , mais uma vez ecoando os duelos dos westerns anteriores de Leone, uma arena circular delimitada por um muro de pedras. A segunda vez ocorre durante o flashback que revela a motivao de Harmonica, rasgando a cronologia do plano. O plano comea com um close do rosto dele quando jovem (figura 3.114). Quando a cmera se afasta e erguida por uma grua (o mesmo movimento de E o Vento Levou, citado em Trs Homens em Conflito), a imagem se transforma num plano geral aberto, revelando o horror da cena (figura 3.115). O plano anterior, o mais longo da cena 56 segundos , outro exemplo dessa tcnica. Esse plano inicia o flashback: um homem focalizado em plano geral (figura 3.112), se aproximando em direo cmera, at a imagem se transformar em um close-up (figura 3.113). Embora seja uma tomada visualmente simples, tem um significado emocional poderoso; ela enfatiza o instrumento musical como o objeto que liga Harmonica e Frank, simbolizando o desejo de vingana que move o primeiro. O tratamento do tempo flmico sofisticado. Desta vez, Leone substitui a espera dos pistoleiros no duelo pelo flashback. possvel ver o rosto suado da vtima (figura 3.116) vrias vezes; Frank e seus pistoleiros de aluguel so mostrados realizando aes rotineiras, como comer uma ma (figura 3.117), demonstrando que aquele tipo de execuo banal para eles. importante observar que o flashback acontece apenas na cabea de Harmonica, e portanto sua longa durao desorienta o espectador, que privado de acompanhar o que ocorre na diegese durante o perodo que dura o flashback. Nesse ponto, Leone usa a sincronia entre os cortes na imagem e no som para revisar outro esquema do western. Se o ato de interromper o duelo para mostrar um longo flashback j representa em si um desafio s convenes, o modo como a ao retorna diegese demarca um desafio ainda maior. Leone no retorna ao momento de expectativa pelo duelo, em que os 227 Figura 3.97: Leone inicia a cena com um plano geral que focaliza Frank caminhando lentamente para o local do duelo; ele est centralizado e bem distante da cmera. Figura 3.98: Harmonica entra em quadro em sincronia com um violento acorde de guitarra, criando uma composio com moldura e trompe loeil simultneos. Figura 3.99: A mesma composio recessiva com profundidade de campo usada no contra-plano, cuja simetria sinaliza a igualdade de foras entre os duelistas. Figura 3.100: Em sincroniza com outro acorde de guitarra, Leone corta para um novo plano geral; a cmera se afasta para trs e erguida at mostrar ... Figura 3.101: ... um plano geral bem aberto que localiza os dois pistoleiros no cenrio familiar de todos os duelos de westerns de Leone: uma arena circular de pedras. Figura 3.102: Uma vez apresentados o cenrio e a localizao dos personagens, Leone corta para um novo plano geral: simetria numa composio planimtrica. Figura 3.103: Os duelistas estabelecem um lento ritual de preparao; Leone compe em profundidade, com Frank em primeiro plano e Harmonica ao fundo. Figura 3.104: O diretor comea a fragmentar o espao flmico recorrendo aos close-ups, que sinalizam o aumento da tenso emocional entre os pistoleiros. Figura 3.105: Ao primeiro close-up de Frank corresponde um plano geral de Harmonica; o vilo gira ao redor do heri, na arena, avaliando a situao. Figura 3.106: Simetricamente, Leone inverte os enquadramentos: um close-up extremo de Harmonica, cuja face impassvel no revela nenhuma emoo ... 228 Figura 3.107: ... d lugar a um plano subjetivo de Frank, tambm centralizado, tambm imvel: a igualdade de condies absoluta, e o duelo est para comear. Figura 3.108: Num plano geral objetivo, Harmonica se move pela primeira vez, caminhando para frente; a msica pra subitamente, aumentando a tenso. Figura 3.109: O corte do plano geral aberto para um close-up extremo de Frank fragmenta o espao flmico e amplifica ainda mais a tenso: ouve-se s o vento. Figura 3.110: Leone quebra a simetria at ento impecvel com um close-up extremo do rosto de Harmonica, seguido de zoomque procura focalizar ... Figura 3.111: ... apenas os olhos do heri; a tomada completa tem 22 segundos e dispara um flashback que se passa dentro da cabea de Harmonica e comea ... Figura 3.112: ... com uma longa tomada de 56 segundos, mostrando um homem caminhando em cmera lenta, iluminado em contraluz, pelo deserto do oeste dos EUA. Figura 3.113: O plano geral do homem se transforma num close-up, e s ento o conseguimos reconhecer: Frank, mais jovem, e ele tem nas mos uma gaita. Figura 3.114: Ele enfia a gaita fora na boca de um rapaz; a cmera se afasta e sobe, num movimento de grua similar ao visto no incio da cena do duelo ... Figura 3.115: at revelar o cenrio: trs pistoleiros vem o enforcamento de um homem nos ombros de Harmonica, com picos do Monument Valley ao fundo. Figura 3.116: O close-up da vtima, enquadrada em contra-plong, revela a expresso facial de sofrimento: suor e pele queimada de sol so sinais de realismo. 229 Figura 3.117: Leone justape vrios close-ups dos pistoleiros efetuando aes banais, como comer uma ma: a cena do assassinato cruel rotineira para eles. Figura 3.118: .Um close-up extremo focaliza os olhos do jovem Harmonica vertendo uma lgrima; em sincronia, a msica de Morricone evolui em crescendo dramtico. Figura 3.119: Em cmera lenta, Harmonica no suporta o peso do irmo sobre os ombros e desaba com o rosto no cho, desmaiando com a gaita presa entre os dentes. Figura 3.120: O som de um tiro, em sincronia com um corte na imagem, marca o retorno ao presente: composio em moldura mostra que Frank foi baleado. Figura 3.121: O pistoleiro gira para trs, o rosto contorcido num esgar de dor; ouve-se apenas o som do vento (silncio produzido pelo contraste com a msica). Figura 3.122: Leone corta para uma tomada mais distante, para permitir que Harmonica entre em quadro, em segundo plano, caminhando em direo a Frank. Figura 3.123: A prxima tomada volta a usar o contra- plong; a nuca do heri em primeiro plano funciona como moldura para uma composio recessiva. Figura 3.124: O contraplano focaliza um close-up extremo de Harmonica, agora em plong: tendo atingido o vilo, o heri agora domina a cena. Figura 3.125: O close-up extremo de Frank composto em contra-plong; ferido e dominado, ele ainda tem tempo para perguntar ao heri qual o motivo do duelo. Figura 3.126: A cmera se afasta para poder enquadrar a ao fsica dominante: Harmonica repete o gesto de Frank, anos antes, e enfia a gaita na boca dele ... 230 Figura 3.127: ... cujo olhar indica que ele finalmente conseguiu entender quem Harmonica e porque ele o perseguiu obsessivamente durante todo o filme. Figura 3.128: Um close-up extremo do vilo, desabando com a gaita na boca, encerra a cena; o plano cria simetria visual com a tomada do desmaio de Harmonica. pistoleiros se encaram, esperando para ver quem saca primeiro; assim que o jovem Harmonica desaba no cho em cmera lenta, provocando a morte do irmo (figura 3.119), o som de um tiro interrompe brutalmente a msica pica de Ennio Morricone; exatamente ao mesmo tempo, um corte seco nos leva ao presente, e a imagem vista um plano com composio recessiva em profundidade (figura 3.120). Quando o tempo flmico retorna ao presente, o ponto culminante do confronto j aconteceu. Nesse ponto, a cmera deixa de enquadrar os personagens respeitando o eixo horizontal, que representava a eqidade de foras entre os pistoleiros; agora Harmonica est no comando, tendo subjugado Frank. Ele mostrado em contra-plong, enquanto Frank aparece em plong (figuras 3.122, 3.123, 3.124, 3.125, 3.126 e 3.127). Harmonica faz questo de revelar quem ele ; e o faz enfiando a gaita na boca de Frank, que morre (3.128), caindo na terra com a gaita na boca, na mesma posio em que Harmonica havia cado durante o flashback uma simetria tpica de Leone. Outro elemento dos esquemas tradicionais do western que Leone revisa a msica, composta antes das gravaes, de forma que, ao registrar essas cenas, Leone sabia a durao exata de cada plano e o momento de cada movimento de cmera para ajustar as imagens s evolues meldicas. A tcnica de compor antes de gravar imagens reafirma o uso modernista que Leone e Morricone faziam da msica: ela era feita para ser efetivamente apreciada pelo espectador, o que demarca distncia considervel da noo de inaudibilidade da msica, caracterstica do esquema sonoro da potica da continuidade clssica. Isso fica evidente no exemplo da sincronia entre o final da msica (som) e a passagem do flashback para o presente da diegese (imagem), no momento do tiro fatal que matou Frank. Mas h outras passagens da cena em que se percebe o casamento sincronizado entre msica e imagem. A entrada em cena dos dois personagens, por exemplo. A msica que sublinha o duelo inicia no instante exato em que o primeiro plano da cena comea (figura 3.97); trata-se de uma melodia suave, dedilhada ao violo. No momento em que o rosto de Harmonica entra 231 em quadro, agressivamente, ouve-se uma seqncia de trs acordes de guitarra eltrica; a cada acorde corresponde um corte que leva a um novo plano (figuras 3.98, 3.99 e 3.100). Todo o primeiro trecho da composio, com uma seo de cordas executando a melodia e um coral masculino unindo-se guitarra (instrumento associado a Frank) e gaita (Harmonica) para criar a harmonia, evolui num crescendo, enquanto os homens giram ao redor um do outro (figuras 3.103, 3.104, 3.105, 3.106 e 3.107). Quando a composio volta ao arranjo inicial, s com violo, Harmonica anda para frente, interrompendo sincronicamente o reconhecimento do terreno por parte dos adversrios. Os dois param, um de frente para o outro (figura 3.108). A msica tambm pra. Por quase dois minutos, no se ouve nada alm do vento. Leone aumenta o suspense alternando close-ups extremos de um de outro (figuras 3.109 e 3.110), at que a cmera faz um zoom lento e demorado em direo aos olhos de Charles Bronson (figura 3.111). No momento exato do zoom, a melodia principal retorna suavemente, agora executada por uma gaita. A sincronia entre a imagem (o zoom) e o som (a gaita) a senha para o incio do flashback. O equilbrio entre a obedincia e a subverso s convenes do gnero tambm pode ser observado na direo de arte e nos figurinos. O duelo ocorre no quintal de uma casa construda no deserto. A arquitetura catica da casa (com um puxadinho de tijolo ao lado) sinaliza que ela foi construda em etapas, sem planejamento arquitetnico; h pedaos de madeira e pedras depositados pelo quintal. Os homens tm roupas cobertas de poeira e rostos queimados de sol; a paleta de cores velha e desgastada (embora o filme inteiro seja banhado por uma luz dourada que d ao todo um tom fabular). Mais uma vez, worldmaking. 3.3 Cenrios, figurinos e objetos cnicos Leone tinha 16 anos quando fez assistncia de direo em Ladres de Bicicleta (1948). No era exatamente um servio profissional, mas um estgio no-remunerado. Ele era encarregado de lidar com figurantes, servir caf e sanduches. Pode parecer sem importncia, mas essa experincia deixaria um legado ao seu trabalho como diretor. A afirmao pode parecer estranha: o cinema de Leone lidava com a fantasia, e no com a representao fiel do mundo, como queriam os neo-realistas. Mesmo assim, a experincia deixou marcas na prtica estilstica: o cuidado obsessivo com detalhes, tanto na verossimilhana quanto com seu potencial dramtico e narrativo. Leone ilustrava essa influncia contando sobre uma reunio que presenciara entre o diretor Vittorio De Sica e os roteiristas Cesare Zavattini e Sergio Amidei (FRAYLING, 2000, p. 51). 232 O trio debatia uma cena: o protagonista saa de casa segurando um sanduche de mortadela. Zavattini sugeriu que o sanduche estivesse embrulhado numa folha do jornal comunista Unit. Amidei concordou, mas achou que a mensagem seria menos explcita e mais eficiente se o espectador pudesse ler apenas a ltima slaba do logotipo (t). De Sica ento entrou na conversa. Era melhor trocar o sanduche por uma ma: Diante da cmera, o protagonista morderia a ma pela primeira vez e ento comearia a sua jornada para o desastre. Honestamente, eu ouvia a declarao dele quase como se fosse capaz de comer a ma. De Sica conseguia descrever a cena como se estivesse acontecendo diante de nossos olhos. O cinema, para ele, significava ateno total a esses pequenos detalhes. (LEONE, 2000, p. 51). A lio que ele extraiu do episdio foi o cuidado com cada pequeno detalhe. Leone aprendeu que o efeito visual do objeto mostrado na tela era to importante quanto o efeito emocional que provocaria no espectador. A aparncia realista dos westerns de Leone, o cuidado com a verossimilhana, veio da o neo-realismo, portanto, pode ser apontado como pr-condio de um importante recurso estilstico de Leone. O tratamento estilstico que ele deu aparncia de seus filmes era resultado de um olhar treinado dentro do contexto scio-cultural do cinema europeu dos anos 1950 e 1960, interessados em oferecer filmes que fossem uma contrafao das produes excessivamente espetaculares (e por isso mesmo, de aparncia artificial) que tinham origem em Hollywood: Diretores americanos confiam demais em roteiristas e nunca pesquisam o suficiente sobre sua prpria histria. Na verdade, alguns westerns feitos no comeo do sculo eram mais prximos da realidade do que os atuais. Mas depois que Hollywood cresceu e virou uma indstria, os filmes passaram a divergir mais e mais da realidade histrica. A partir de certo ponto, o gnero estava recebendo muita influncia de rodeios e shows de rdio, que pouco tinham a ver com o Velho Oeste de verdade. (LEONE, 2005, p. 81). Para alcanar a verossimilhana desejada, Leone investiu na obsesso com os pequenos detalhes. E, medida que suas produes tinham oramentos maiores, essa preocupao passou a se tornar uma mania perfeccionista. Durante as filmagens de Trs Homens em Conflito, certo dia, Leone procurou o diretor de produo, Fernando Cinquini, e o avisou que havia se esquecido de filmar um plano previsto no cronograma. Era um plano- detalhe da espora da bota de um pistoleiro. Cinquini o tranqilizou. Aquilo podia ser filmado em qualquer outro dia, mais para o final das gravaes. Semanas mais tarde, com as filmagens chegando ao final, Cinquini procurou Leone e sugeriu que ele filmasse o plano da espora. No era possvel, retrucou Leone. Ele precisava recriar o cenrio com 300 figurantes (incluindo uma tropa inteira de atores vestidos de 233 Figura 3.129: Construo baixas, de tijolo e barro, caiadas de branco, sujas e queimadas de sol: moradias dos pees na vila de Por um Punhado de Dlares. Figura 3.130: Se os trabalhadores mexicanos viviam em casas humildes, os habitantes mais ricos moravam no centro, em manses de madeira: worldmaking. Figura 3.131: Rascunho desenhado po Carlo Simi para o figurino do personagem de Clint Eastwood: o poncho era usado como sinal narrativo da ambientao ... Figura 3.132: ... do enredo do filme na fronteira entre Estados Unidos e Mxico; chapu, botas e calas foram comprados pelo prprio ator numa loja dos EUA. militares), rifles, cavalos e uma carruagem. Em segundo plano, Leone queria captar toda a vida da cidade. (FRAYLING, 2000, p. 228). possvel afirmar, de fato, que a influncia neo-realista nesse aspecto no s funcionou como pr-condio para Leone, como tambm gerando mais tarde exemplos de worldmaking. Carlo Simi foi outra influncia no desenvolvimento desse recurso. Ele instituiu, desde Por um Punhado de Dlares, a prtica da pesquisa iconogrfica em livros de fotografia e arquitetura, jornais e bibliotecas. Em Por um Punhado de Dlares, Simi recorreu a livros que documentavam as construes do Velho Oeste real para sugerir as construes baixas, de estuque branco (figura 3.129), e os prdios de madeira do centro da cidade. E tudo tinha que ser velho, com janelas tortas, pintura descascando e portas que rangiam (figura 3.130). No que se refere ao figurino, Simi criou o poncho de Clint Eastwood (figura 3.131 e 3.132), importante para localizar geograficamente o filme na fronteira entre EUA e Mxico, e apostava nessa noo da verossimilhana. Simi sugeriu que o restante das roupas trazidas pelos atores ou alugadas a um fornecedor de figurinos seguisse o mesmo princpio da 234 Figura 3.133: Para a cidade progressista de El Paso, Simi optou por usar arquitetura mais requintada, com prdios de at trs andares e paredes de madeira de lei. Figura 3.134: A cidade cenogrfica de El Paso foi construda em torno de uma construo que imitava um forte espanhol: paredes grossas e grades nas janelas. Figura 3.135: Uma das armas do Coronel Mortimer que existia de verdade no sculo XIX: revlver deesmontvel Buntline Special com tambor de 12 balas. Figura 3.136: Caador de recompensas profissional, o Coronel Mortimer andava com um arsenal de rifles e fazia questo de limp-los todas as noites. arquitetura: Disse que seria uma boa idia sujar os chapus, para que a audincia pudesse sentir a sujeira e o suor daquele ambiente. (SIMI, 2005, p. 124). A abordagem de Leone o cuidado com os detalhes, o senso de acuidade histrica, o estabelecimento de uma histria paralela que no aparecia diretamente no enredo, mas cujos detalhes podiam ser sentidos, numa espcie de proto-worldmaking era semelhante. Um aspecto cultural que precisa ser considerado, no que se refere a esse aspecto da representao do ambiente sujo do Velho Oeste, a emergncia da contracultura. Nos anos 1960, os homens usavam cabelos longos e barba mal feita, uma aparncia que no tinha sido comum nas dcadas anteriores. Mesmo que Leone no tenha sido influenciado por isso, a mera existncia da contracultura permitiu que o pblico mais jovem, mais irreverente, mais acostumado a essa moda aceitasse mais facilmente o visual sujo dos westerns de Leone. A primeira cidade cenogrfica que Leone e Simi construram refora esse cuidado com a acuidade histrica e com a verossimilhana dos detalhes. A cidade, usada em Por uns Dlares a Mais, era El Paso. Simi consultou fotografias da locao real e descobriu que no se parecia em nada com o vilarejo do primeiro filme. El Paso era, na poca, uma cidade economicamente desenvolvida. Assim, ele optou por um estilo de arquitetura diferente, com construes de madeira novas e grandes, de dois ou trs andares (figura 3.133). A idia (fictcia, mas compatvel com a realidade histrica) era que a cidade havia sido erguida ao redor das runas de um antigo forte militar construdo pelos espanhis. Essa fortaleza teria 235 sido reformada para abrigar um banco (figura 3.134), e assim no se assemelhava em nada aparncia que bancos normalmente tinham em westerns americanos: Quisemos nos afastar do banco localizado na rua principal, com uma porta comum e grades nas janelas, e ento eu desenhei uma velha fortaleza espanhola, ainda com partes semi-destrudas. Parecia com uma priso, uma caixa-forte. (SIMI, 2005, P. 125). O arsenal de armas do Coronel Mortimer tambm foi resultado de pesquisas. Leone queria que Mortimer usasse uma arma diferente em cada cena, e todas tinham que ser historicamente acuradas. O revlver tornou-se um Buntline Special de 12 balas e com suporte de ombro (figura 3.135). Mortimer utilizava uma pistola Derringer sob a manga do casaco, e tinha um arsenal de rifles desmontveis (figura 3.136). Todas eram rplicas construdas a partir de livros pesquisados por Simi (HUGHES, 2004, p. 45). Trs Homens em Conflito foi o filme em que Leone e Simi se esmeraram com mais rigor para oferecer ao pblico uma representao historicamente acurada da guerra civil norte- americana. Eles passaram duas semanas pesquisando na Biblioteca do Congresso, em Washington (EUA), fotocopiando livros histricos que documentavam, em fotos, detalhes das armas e roupas usadas na dcada de 1860. A arquitetura, as tticas de batalhas, os campos de concentrao para prisioneiros de guerra, os veculos (locomotivas, carruagens), nada foi improvisado. O worldmaking, ainda discreto nos outros filmes, tinha sido intensificado. O arsenal de rplicas incluiu um revlver Colt Navy e dois rifles (um Henry, com mira telescpica, e outro Sharps) para Clint Eastwood (figura 3.137); um revlver New Model Army Remington para Lee Van Cleef; e uma pistola montada com partes de trs revlveres por Eli Wallach, operao realizada em frente cmera, numa cena do filme: o cano de um Colt, o tambor de uma Smith & Wesson e o punho de um Colt Navy (figura 3.138). Durante as filmagens, Leone pediu emprestado ao Exrcito espanhol uma mirade de armas histricas, incluindo morteiros e canhes da marca Parrott o mesmo tipo de arma que havia sido usado na guerra dos Estados Unidos (HUGHES, 2004, p.110). At mesmo a locomotiva foi adaptada para ficar parecida com os veculos da poca, com laadores de boi na parte da frente (onde s vezes os dois amarravam soldados considerados traidores, como na figura 3.139) e vages especiais para transporte de carga militar. Leone, Simi e Vincenzoni dedicaram ateno especial ao trabalho de Matthew Brady (1822-1896), pioneiro do foto-jornalismo americano. Nos anos da guerra, ele acompanhou de perto vrias batalhas e reuniu mais de seis mil fotografias. Leone teve acesso a esse material e usou-o extensivamente, inclusive para encenar as cenas de batalha de maneira parecida com 236 Figura 3.137: Um dos dois rifles utilizados pelo personagem de Clint Eastwood em Trs Homens em Conflito tinha mira telescpica e era da marca Henry. Figura 3.138: Tuco monta, diante da cmera, um revlver composto de peas oriundas de trs diferentes armas: um Colt, um Smith & Wesson e um Colt Navy. Figura 3.139: Imagens dos crditos de Trs Homens em Conflito mesclavam as cores da pop art de Andy Warhol com poses inspiradas nas fotografias de Matthew Brady. Figura 3.140: O estilo do colorido saturado que aparece nos crditos do filme tambm fazia referncia a experincias de revelao feitas pelo prprio Brady. Figura 3.141: Soldados da Unio se aglomeram em trincheiras escavadas: aluso ao estilo sangrento de combate que marcou a Primeira Guerra Mundial. Figura 3.142: Moradores da cidade de Peralda fogem s pressas da cidade, com bombas explodindo ao fundo: aluses aos bombardeios da Segunda Guerra. Figura 3.143: Prisioneiros marcham para o interior de um campo de prisioneiros: torres de sentinelas que emolduram a imagem sugerem uma priso nazista. Figura 3.144: O ngulo escolhido para encerrar o plano da entrada dos prisioneiros no deixa dvidas sobre a aluso aos portes dos campos de concentrao. os registros de Brady. Os crditos de Trs Homens em Conflito, com stills retirados de cenas do filme e coloridos artificialmente, consistem num pastiche do trabalho de Brady, provavelmente influenciados pela pop art de Andy Warhol (figuras 3.139 e 3.140). Para se certificar que a experincia recente das duas guerras mundiais que haviam devastado a Europa no passasse despercebida, Leone incluiu aluses s batalhas em trincheiras da Primeira Guerra Mundial (figura 3.141), aos bombardeios areos com 237 Figura 3.145: Foto de Matyhews Brady (1863: soldados do exrcito da Unio preparam os canhes para o confronto, pouco antes de uma das batalhas da guerra. Figura 3.146: A encenao da batalha que antecede a exploso da ponte buscou inspirao dos registros fotogrficos feitos por Matthew Brady, embora o fotgrafo no tenha podido (por limitaes tcnicas de equipamento) fotografar as batalhas em si. Figura 3.147: Corpos se estendem em todo o campo de batalha, at o horizonte, momentos aps a batalha de Gettysville (1863): fotografia de Matthew Brady ... Figura 3.148: ... que se tornaria, mais tarde, um dos mais famosos registros da guerra civil feitos pelo fotgrafo; Sergio Leone realizou uma recriao cinematogrfica da fotografia e inseriu a cena depois da exploso da ponte, quando Tuco e Blondie contemplam a devastao deixada pela guerra, com corpos de soldados estendidos pelo campo de batalha. Figura 3.149: Na tentativa de criar uma representao indireta da guerra e suas conseqncias para a sociedade, Leone povoou o filme com atores aleijados. Figura 3.150: Homens sem membros surgem como figurantes, em segundo plano, em diversos momentos da narrativa, para sinalizar a proximidade da violncia. populaes de cidades fugindo s pressas (figura 3.142) e s instalaes dos campos de concentrao nazistas (figuras 3.143 e 3.144). Leone incluiu aluses em homenagem a Brady, inserindo os trs anti-heris dentro de eventos reais ocorridos na guerra e fazendo-os presenciar batalhas que simulavam imagens histricas registradas pelo fotgrafo (figuras 3.145, 3.146, 3.147 e 3.148). Ao mesmo tempo, esse procedimento unia as prticas do alusionismo e do worldmaking. Dcadas depois, filmes como Forrest Gump (Robert Zemeckis, 1994) e JFK (Oliver Stone, 1991) intensificariam essa reviso do esquema, inserindo personagens fictcios em imagens de arquivo reais. A acuidade histrica da guerra no ficou restrita s armas e objetos. Leone se esmerou nas representaes indiretas da guerra, assumindo que a verossimilhana da representao seria percebida pelo espectador, ainda que inconscientemente. Foi por essa razo que o 238 italiano povoou o cenrio com figurantes sem braos ou sem pernas (figuras 3.149 e 3.150), para sugerir visualmente as conseqncias nefastas da guerra. Esse esforo culminou na construo do cemitrio militar. A locao, construda num vale perto de Almera, foi desenhada por Simi com dois propsitos. O primeiro era a acuidade histrica; o set precisava ser idntico a um cemitrio improvisado para enterrar mortos aps grandes batalhas. Simi encontrou a inspirao numa foto de Matthew Brady (1862), que mostrava as lpides improvisadas pedaos de madeira e gravetos cruzados e a grande quantidade de mortos. J vimos como a construo do set copiou o estilo tosco dos tmulos. Alm disso, o cemitrio precisava satisfazer a um desejo de Leone: tinha que ter uma forma circular, contendo no centro uma arena semelhante ao cenrio do clmax de Por uns Dlares a Mais. Simi recorreu lgica (figura 3.151): talvez o cemitrio improvisado tivesse sido erguido em torno de algum cemitrio civil, mais velho e menor. medida que a guerra fizesse mais vtimas, ele seria expandido em crculos concntricos, para fora. Os tmulos mais antigos, perto do centro, teriam lpides de mrmore envelhecido; os mais recentes, nos crculos mais externos, onde estariam enterrados os soldados mortos em conflitos, consistiriam apenas de pedaos improvisados de madeira. Foi seguindo essa lgica que o cenrio foi construdo. Este um bom exemplo de worldmaking: para erguer um cenrio, o diretor de arte criou toda uma histria da locao, que no aparecia no filme, mas podia ser sentida pelo espectador (figura 3.152). Como a acuidade histrica tinha dbito considervel com o trabalho de Matthew Brady, Leone incluiu uma aluso especfica a ele. Numa curta cena que se passa numa estao ferroviria, Brady visto de relance, fotografando um grupo de soldados prestes a embarcar para a batalha (figura 3.153). Os militares fazendo poses parecidas com as que eram vistas nos retratos que o verdadeiro Brady fazia das tropas (figura 3.154). Em Era uma Vez no Oeste, Leone manteve essas preocupaes com acuidade, mas abriu concesses ao realismo porque seu objetivo, dessa vez, no era representar a realidade histrica, mas sim representar a mitologia criada sobre o Velho Oeste. Era uma Vez no Oeste no era uma histria sobre os Estados Unidos do sculo XIX, mas uma histria sobre os filmes que representavam os EUA do sculo XIX. Ainda assim, o trabalho de Carlo Simi pode ser verificado no esmero com que a locomotiva que aparece no filme recriou os verdadeiros trens dos Estados Unidos no sculo XIX (figura 3.155); no chal suo erguido no meio do deserto (figura 3.156) por um trabalhador visionrio que tinha a certeza de enriquecer nos meses seguintes; na estao ferroviria semi-deserta que serve de cenrio para a longa cena de abertura (que tambm tinha 239 Figura 3.151: Rascunho do cemitrio militar (o cenrio da seqncia final de Trs Homens em Conflito) desenhado por Carlo Simi: uma arena circular no centro. Figura 3.152: Sergio Leone contou com 250 soldados do Exrcito da Espanha para, em dois dias, erguer cerca de 10 mil tmulos e lpides improvisadas com pedaos de mrmore e madeira, num vale localizado perto das cidades cenogrficas que ficavam em Almera. Figura 3.153: Como forma de homenagear Matthew Brady e assinalar claramente sua contribuio indireta direo de arte, Leone incluiu uma cena em que o fotgrafo mostrado em ao, retratando um grupo de oficiais prestes a embarcar para a rea do conflito. Figura 3.154: A pose que os atores fazem aluso a alguns dos famosos retratos de militares e figuras pblicas dos EUA que Brady realizava na poca (1862). Figura 3.155: Vago de trem adaptado para um passageiro com dificuldade de locomoo: cenrio mescla luxo e praticidade sem fugir acuidade histrica. Figura 3.156: Suntuosidade do chal suo erguido no meio do deserto simboliza o esprito empreendedor e sonhador do fazendeiro assassinado no incio do filme. Figura 3.157: Construes assimtricas, de madeira velha e torres enferrujadas, sinalizam a construo catica e semi-abandonada da estao ferroviria. Figura 3.158: Idia dos sobretudos guarda-p usados pelos pistoleiros no filme veio de registros fotogrficos da vida no Velho Oeste: a vestimenta era mesmo real. uma histria prvia: teria sido erguida de modo catico, unindo pedaos de madeira de qualquer jeito, como na figura 3.157); e nos sobretudos guarda-p amarelados que os pistoleiros usam (figura 3.158), cuja existncia podia ser confirmada nos livros de fotografias que documentavam a vida no Velho Oeste. 240 Figura 3.159: Inspirao para a encenao do atentado cometido contra a gangue de Noodles veio de fotos tiradas por policiais de Nova York no ano de 1932. Figura 3.160: Fotografia de um mafioso assassinado em Beverly Hills em 1947 serviu de inspirao para a encenao do assassinato de um baro do crime. O ltimo filme de Leone, Era uma Vez na Amrica, deixou de lado o western, mas manteve a tradio de realizao de pesquisas iconogrficas. Junto com Carlo Simi e a figurinista Gabriella Pescucci, Leone colheu material junto a arquivos fotogrficos de jornais norte-americanos. O objetivo era mais ambicioso do que simplesmente providenciar uma reconstituio visual acurada do perodo da Grande Depresso; Leone desejava encenar cada tiroteio ou atentado a partir de imagens de crimes de grande repercusso, registradas por peritos da polcia ou reprteres criminais dos anos 1930. Ele combinava pastiche cpia e combinao de informaes de diferentes fontes e obsesso com acuidade histrica para alcanar o mximo de verossimilhana possvel: Para o massacre cometido pela gangue em Westchester (figura 3.159), ele buscou inspirao numa fotografia noturna de carros de polcia e bombeiros de 1932; para os assassinatos de Salvy e Willie, a foto de um reprter policial de um corpo estendido numa calada com carros estacionados (1933); para o atentado contra Joe (figura 3.160), uma foto do cadver do mafioso Benjamin Bugsy Siegel logo aps ele ser morto por atiradores ligados ao Sindicato dos Motoristas, em Beverly Hills (1947); e para o vidro do carro estilhaado por balas, no mesmo crime, um still de Scarface [Howard Hawks, 1932]. (FRAYLING, 2000, p. 429). 3.4 O som: voz, rudos, silncios e msica Se o neo-realismo funcionou como pr-condio para o desenvolvimento de recursos estilsticos no desenho de produo, tambm o fez no trabalho com o som. Neste ltimo caso, a influncia se deu de forma mais sutil, indireta, atravs de um conjunto de tradies seguido pela indstria cinematogrfica italiana, as quais se impuseram como limites que afetaram muitas escolhas estilsticas de Leone na rea da construo da narratividade atravs do som. A anlise da maneira como Leone trabalhava o som nos permite destacar quatro recursos recorrentes: (1) a msica era feita para ser apreciada pela audincia, prtica que ia de 241 encontro ao princpio da inaudibilidade das composies musicais (GORBMAN, 1988, p. 57); (2) a articulao meticulosa entre as camadas sonora e visual do filme, com sons diegticos ou no sincronizados minuciosamente com os cortes visuais; (3) o desenho de som enfatizando rudos naturais amplificados e silncios, ao mesmo tempo reduzindo o uso de dilogos, criando assim uma categoria de filmes de Michel Chion (2009, p. 121) chamou de lacnicos; (4) a incluso de sons diegticos na harmonia, como tiros, chicotadas e galopes. Os quatro recursos consistem de revises nos esquemas dominantes de construo sonora dos filmes da poca, sobretudo os americanos; posteriormente, a partir dos anos 1970, alguns desses recursos se tornariam populares no cinema de Hollywood. J vimos antes como o uso que Leone dava ao primeiro (a inaudibilidade da msica) alterou significativamente o esquema dominante da composio musical para cinema. A seguir, vamos analisar os outros trs, alm de verificar como os contextos scio-culturais, tecnolgicos e econmicos possibilitaram s quatro ferramentas emergirem dentro da obra em Leone. Em Cinecitt, como j vimos, o modo de produo desprezava a gravao de som direto (FABRIS, 2006, p. 206). O motivo principal para essa prtica era financeiro. Gravadores de som sincronizado com a pelcula custavam caro e eram pesados, exigindo a contratao de equipes de tcnicos cujos salrios inviabilizavam financeiramente a utilizao em locaes externas, caso dos desertos espanhis, onde eram filmados os spaghetti westerns. Alm disso, os diretores vinculados a Cinecitt estavam acostumados a trabalham com a dublagem posterior. Essa prtica era comum na Itlia desde a ascendncia do neo-realismo, na dcada de 1940. Os cineastas neo-realistas, que comearam a filmar quando a Segunda Guerra Mundial se aproximava do fim, no apenas estavam impossibilitados de gravar som direto nas locaes, como vislumbravam uma vantagem esttica nessa limitao: A filmagem de cenas sem gravao [de udio], com sincronizao realizada posteriormente, (...) tornava possvel uma maior liberdade de atuao (FABRIS, 2006, p. 206). Sem ter que se preocupar se o microfone estava captando os dilogos, os diretores ganhavam tempo, filmavam mais rpido e economizavam dinheiro para usar na ps-produo. Quando Leone comeou a dirigir, no incio da dcada de 1960, o gravador Nagra III primeiro equipamento porttil capaz de gravar som direto sincronizado com a pelcula, e que comeara a ser utilizado em 1959 tinha se tornado popular entre os diretores europeus. Com uma exceo: os italianos. Acostumados com o sistema de ps-sincronizao de udio, os cineastas da Itlia continuaram filmando sem som direto. Alm disso, como a maioria das cenas ocorria em locaes externas, a captao dos dilogos ficava financeiramente invivel nas produes dos ciclos populares de Cinecitt. O 242 aluguel dos equipamentos gravadores, mesas de mixagem, monitores de udio era caro. O som direto estava descartado 25 O oramento se constitua ao mesmo tempo como limite e pr-condio da prtica estilstica. E se uma das conseqncias disso foi o aumento do nmero e da durao das cenas de ao, outra foi a necessidade de encontrar uma maneira alternativa de enfatizar a evoluo do enredo, pois no cinema clssico a maior parte da exposio acontece atravs de dilogos, . A experincia como diretor assistente fez Leone se acostumar com isso. Mesmo a partir de Trs Homens em Conflito, quando a melhoria das condies de oramento lhe permitiu comear a trabalhar com som direto, Leone continuou usando a tcnica de reconstituir vozes e rudos na ps-produo. No filme de 1966 ele registrou os dilogos nos sets, mas o objetivo era utilizar esses sons apenas como faixas-guia para auxiliar os dubladores. Por fim, o fato de que havia atores de vrias nacionalidades nos sets, cada um falando uma lngua diferente, inviabilizava definitivamente o uso de som direto. E nem Leone nem os produtores de Cinecitt tencionavam abrir mo desses elencos internacionais, pois ter atores oriundos de vrios pases facilitava a divulgao do filme por toda a Europa. O nico filme em que Leone efetivamente usou o som direto na trilha final de udio foi Era uma Vez na Amrica. Isso aconteceu por insistncia dos dois atores principais, Robert De Niro e James Wood. Eles convenceram Leone que as interpretaes ficariam melhores com a utilizao do som direto. Nesse filme, 65% dos dilogos foram gravados nos sets (FRAYLING, 2000, p. 443). No por acaso, tambm o filme mais convencional de Leone, em termos de experincias narrativas com rudos amplificados e silncios. Durante o ciclo de spaghetti westerns, todos os filmes eram dublados em quatro lnguas diferentes (ingls, italiano, francs e alemo). Esse modo de produo afetou a estrutura narrativa dos spaghetti westerns, e no apenas na textura sonora. Quanto menos dilogos, menos tempo de aluguel de estdios de som era necessrio (ou seja, mais barato ficava o filme). Assim, os roteiros incluam mais cenas de ao fsica (perseguies de cavalo, tiroteios, duelos, brigas, etc.); uma a cada 15 minutos, em mdia, e sem dilogos. Portanto, a contexto de produo gerava uma reviso significativa do esquema dominante de construo narrativa, apontando para a continuidade intensificada. Essa estrutura narrativa seqncias de ao mais numerosas e mais longas, intercaladas por cenas que faziam a ao dramtica avanar se tornaria muito popular no mundo todo, a partir dos anos 1970. 25 Essa situao, aliada aos elencos multinacionais (incluindo atores americanos, italianos, espanhis, alemes e franceses), gerou situaes curiosas nas locaes. Era comum que houvesse, na mesma cena, atores falando em duas ou trs lnguas diferentes. Quando Tuco (Eli Wallach) discute com o padre Ramirez (Luigi Pistilli), em Trs Homens em Conflito, o norte-americano falava em ingls e o colega respondia em italiano. Um no entendia o outro, embora o roteiro determinasse que eles eram irmos. 243 ainda que a platia nem sempre se d conta disso. Michel Chion chama o esquema dominante da construo sonora de verbocntrico, assinalando que esse esquema se consolidou ao final dos anos 1930, em Hollywood, e continua hegemnico (embora a importncia dos efeitos sonoros tenha aumentando desde o surgimento do sistema Dolby, em 1975): O que [o cinema verbocntrico]? Um cinema em que o dilogo o centro invisvel da ateno, porque ocorre simultaneamente a uma ao visual (...) paralela ao dilogo, embora no tenha relao intrnseca com ele, servindo apenas para pontu-lo. (...) Assim, a ao visual d ao dilogo um impulso ou estmulo que faz a cena parecer mais cinematogrfica, nos fazendo esquecer que o dilogo o corao e o motivo de a cena estar ali. (CHION, 2009, p. 73). Chion nos d uma srie de exemplos de aes corriqueiras beber algo, acender um cigarro, comer, dirigir, dar um lao no sapato, jogar sinuca, etc. que nada acrescentam narrativa, a no ser uma dinmica visual que mascara o carter verbocntrico da cena em si: o que est sendo dito pelos personagens, e no o que eles esto fazendo, que faz a ao dramtica avanar. Eles poderiam perfeitamente estar parados, um ao lado do outro, e a trama seria compreendida do mesmo modo; s que as imagens estticas tornariam o filme visualmente desinteressante, o que acabaria por revelar o carter verbocntrico platia. Os filmes de Leone no descartam completamente esse esquema, mas o revisam. A causa maior desse processo est no modo de produo: sem poder gravar som direto, trabalhando com oramentos limitados e atores de vrias nacionalidades, Leone teve que encontrar outra maneira de narrar o avano da trama (ou seja, teve que solucionar o problema de representao revisando a soluo mais comumente disponvel). Tudo isso pode ser comprovado estatisticamente; basta comparar o nmero de frases ditas pelos personagens de um western de Sergio Leone com a quantidade de falas presentes em qualquer western norte-americano da mesma poca. Para fazer isso, selecionamos um corpus aleatrio de 23 westerns realizados entre os anos 1930 e 1960, por diretores renomados (incluindo Ford, Hawks, Mann e Boetticher) e contamos cada linha de dilogos representada pelos atores desses filmes. Fizemos o mesmo procedimento nos sete filmes de Sergio Leone estudados nesta pesquisa (inclusive Era uma Vez na Amrica e Meu Nome Ningum). A justaposio desses resultados mostra que todos os sete filmes de Leone tm menor quantidade de falas do que qualquer outro filme integrante do corpus selecionado (ver Tabela A dos Apndices, que est ordenada do filme mais lacnico ao mais tagarela). Os sete filmes de Leone ocupam os sete primeiros lugares da lista. 244 Para efeito de comparao, Por um Punhado de Dlares possui 687 linhas de dilogo em 99 minutos (menos de sete linhas por minuto). O Homem que Matou o Facnora, feito dois anos antes, contm 1093 frases em 123 minutos, quase nove por minuto taxa idntica a Rastros de dio (1956), do mesmo John Ford. Onde Comea a Inferno (1959) soma 1526 linhas em 141 minutos (onze por minuto), enquanto Rio Vermelho (1948) ainda mais tagarela: 1628 em 133 minutos, mais de doze falas por minuto e taxa idntica a Duelo ao Sol (Duel in the Sun, King Vidor, 1946), o mais verborrgico dos westerns. Embora as condies financeiras fossem mais favorveis a cada filme, Leone no tornou seus filmes mais verbocntricos por causa disso. Ele continuou economizando dilogos. H, em Trs Homens em Conflito, 946 frases em 179 minutos (cinco por minuto), apesar de este filme ser protagonizado por um dos personagens mais tagarelas de Leone, que Tuco. J Era uma Vez no Oeste contm 686 linhas de dilogos em 175 minutos pouco mais de quatro por minuto, ocupando o primeiro lugar de nossa lista de westerns lacnicos. Mesmo quando comparamos os filmes de Leone a diretores norte-americanos de westerns psicolgicos com heris que pouco falam, como Budd Boetticher e Anthony Mann, a discrepncia permanece. Sete Homens Sem Destino (1959) e O Resgate do Bandoleiro (The Tall T, Budd Boetticher, 1957), ambos de Boetticher, apresentam respectivamente 642 e 691 frases em 73 e 78 minutos, taxas que indicam pouco menos de nove frases pronunciadas por personagens a cada minuto. De Mann, Winchester 73 e Um Certo Capito Lockhart (The Man from Laramie, Anthony Mann, 1955) possuem 1103 e 1102 linhas de dilogos em respectivamente 92 e 104 minutos ou seja, quase doze e mais de dez por minuto 26 Antes de seguir em frente, necessrio um ltimo comentrio relacionado ao esquema verbocntrico. Ao contrrio do que Chion parece deixar implcito, esse esquema no foi adotado (e tampouco permanece dominante) por razes de comodidade narrativa ou preguia. Os diretores no impulsionam a trama para frente usando dilogos apenas porque mais fcil, mas tambm por razes relacionadas s prticas cognitivas da espcie. Trata-se de um trao . Baseando-se nessa amostragem, podemos afirmar que Leone foi o mais lacnico de todos os diretores de westerns. E ele levou essa caracterstica consigo quando filmou Era uma Vez na Amrica, sua primeira incurso fora do gnero. O filme completo tem 1359 linhas faladas pelos atores em 229 minutos (menos de seis frases por minuto). 26 A metodologia para realizao dos clculos foi a seguinte: extraiu-se a trilha de dilogos em portugus dos DVDs dos filmes constantes da pesquisa, e contou-se o nmero de linhas, dividindo-se o resultado pela durao em minutos oficial, constante no banco de dados do Internet Movie Database (IMDb). Cada fala considerada consistia de duas linhas de at 40 caracteres cada. 245 antropomrfico: quando nossos ouvidos detectam o timbre da voz humana (que soa sempre dentro de uma faixa de propagao de ondas sonoras que vai de 60 a 1300 Hz), direcionamos naturalmente nossa ateno para esses sons (e desprezamos todos os demais), tentando reconhec-los e interpret-los. Com base nesse princpio, os sound designers costumam mixar, na trilha sonora de qualquer filme, dilogos em volume mais alto do que efeitos sonoros e msica, salvo em momentos de exceo. Se no fosse assim, os espectadores no apenas seriam privados de acompanhar a trama, mas tambm ficariam fisicamente exaustos pelo esforo mental e auditivo de tentar decifrar as palavras por detrs dos outros sons. Mas voltemos a Leone. Quando comeou a dirigir filmes, ele foi confrontado com esse problema de representao. Procurou solucion-lo aplicando aos efeitos sonoros a mesma obsesso pelos detalhes que usava nas reas da direo de arte e do desenho de produo, e que por sua vez era oriunda da experincia neo-realista do princpio da carreira. Leone desenvolveu um recurso estilstico incomum na poca: a construo sonora da narrativa com uso generoso de efeitos sonoros, sobretudo rudos naturais amplificados na mixagem. Esse recurso consistia no uso de sons (quase sempre provenientes da diegese) cujo volume era equalizado em maior intensidade, obtendo um efeito perceptivo que os sound designers chamam de realismo emocional, e que consiste na reproduo, dentro da trilha sonora do filme, de um modo de audio mais aguado do que o normal, em que os pequenos rudos ganham uma dimenso sensorial. Chion usa o termo traduo para nomear o fenmeno: O espectador reconhece os sons como verdadeiros e compatveis, no tanto porque eles reproduzem concretamente aquilo que seria ouvido na mesma situao no mundo real, mas porque eles traduzem, expressam ou transmitem as sensaes no necessariamente auditivas relacionadas situao. (CHION, 2009, p. 488). Esse procedimento no era comum na poca. Como as tecnologias de gravao e projeo eram rudimentares, a maioria dos diretores dedicava pouco tempo para pensar a trilha de udio. Em Hollywood, a banda sonora era preenchida com msica (quase sempre de sabor neo-romntico, inspirada nos compositores europeus do sculo XIX), que intercalava os dilogos e era intensificada, em termos de volume, nos trechos sem a voz humana. De todo modo, rudos e efeitos sonoros usados at ento eram poucos, rudimentares, e serviam mais para criar um senso de ambincia aquilo que Michel Chion (1994, p. 87) chama de vasta extenso sonora e sugerir a tridimensionalidade do espao flmico do que para criar pontos de sincronizao (CHION, 1994, p. 58) entre aquilo que se ouve na banda sonora e as imagens que so vistas simultaneamente na tela. Nesse ponto, Leone seguiu a 246 trilha aberta por pioneiros no uso dos rudos como elementos de construo da narrativa, como Robert Bresson (e seu uso expressivo e emocional de sons fora do quadro) e Jacques Tati (que utilizava efeitos sonoros em volume amplificado para guiar a percepo do espectador dentro do prprio quadro), ambos junto com Jean-Pierre Melville, Stanley Kubrick, Akira Kurosawa e o prprio Leone nomeados por Chion como diretores de filmes integrantes da variao lacnica do esquema dominante de construo sonora. Note-se que, num cinema que propunha a fragmentao cada vez maior do espao flmico, com abundncia de close-ups, os sons auxiliam bastante o espectador na organizao cognitiva do espao flmico fora de quadro. Essa construo tem relao com a maneira como a fisiologia do organismo humano faz nossos crebros processarem o som. Ao contrrio das imagens, que so projetadas numa tela e por isso tm limites (laterais, superior e inferior), os sons so percebidos num raio de 360 graus. Ouvimos sons o tempo inteiro, pois no podemos fechar os ouvidos (como fazemos com os olhos). Por essas caractersticas, o crebro se acostuma a isolar os rudos, processar os mais importantes e descartar os demais. Na hora de dormir, o crebro desliga os sons para que possamos adormecer; acordados, usamos inconscientemente os sons para compreender o que se passa ao nosso redor, inclusive construindo mentalmente as partes desse espao que no conseguimos ver. Na poca de Leone, a figura do sound designer 27 27 A denominao de sound designer para os profissionais que pensam criativamente a trilha sonora apareceu nos crditos de um filme pela primeira vez em 1979, quando Walter Murch recebeu esse crdito pela mixagem de Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (STAM, 2003, p. 237). ainda no existia. Os diretores que experimentavam tcnicas novas nesse campo expandiam as possibilidades em diferentes direes. Leone explorou o uso mais intenso dos rudos como ferramenta narrativa. A ateno, aqui, recai sobre o volume amplificado dos rudos; de novo, a prtica estilstica aponta para a reviso de um esquema dominante em direo continuidade intensificada. Alm disso, esse tipo de mixagem favorecia a moda, comum entre os diretores europeus da poca, de deixar a tcnica ser vista ostensivamente pela platia: um cinema em que a retrica se tornava um fim em si mesma (CHION, 2009, p. 107). Essa tendncia maneirista era evidente em Leone (j vimos que todos os crticos dos Cahiers du Cinma a notaram), e tambm pode ser observada em vrios outros recursos estilsticos, incluindo a msica. De fato, os filmes de Leone instituram uma paisagem sonora repleta de sons diegticos que serviram de assinatura estilstica: o sopro do vento, os tiros que reverberam longamente nos vastas plancies, os rudos produzidos por animais do deserto (coiotes, corvos). Todos so sons que povoam o universo do spaghetti western. 247 Se o uso dos rudos naturais (reconstitudos em estdio e intensificados na mixagem) era a principal tcnica utilizada por Leone para construir a paisagem sonora, ele no destacava todos e nem qualquer rudo, mas ampliava a intensidade de poucos efeitos narrativamente importantes em cada cena (em geral, dois ou trs rudos especficos), s vezes para produzir pontos de sincronismo, outras vezes para guiar a ateno do espectador para determinadas reas da imagem, ou ainda para dar nfase emocional a algum aspecto da narrativa. Essa terceira funo a nfase emocional consistia em um recurso estilstico que estava emergindo naquele momento, no cinema europeu: os rudos passavam a exercer uma funo que era, ento, exclusiva da msica. Este recurso se tornaria ferramenta extensamente explorada no cinema contemporneo, a partir da dcada seguinte, principalmente depois que os filmes passaram a ter as trilhas sonoras finalizadas no sistema Dolby Estreo 28 No entanto, possvel argumentar que Leone tinha outro objetivo ao estruturar assim o som dos pssaros. Para criar ambincia e tridimensionalidade, ele obteria um resultado mais eficiente se procurasse inserir os sons de cada pssaro em diferentes faixas de freqncia sonora. Assim, os espectadores ouviriam uma trilha mais complexa; seus aparelhos auditivos seriam capazes de calcular instintivamente a distncia e a direo de cada animal em relao . Jacques Tati foi um dos grandes pioneiros dessa tcnica, descrita assim por Michel Chion: A impresso geral de fluxo snico contnuo por parte do espectador no resulta de caractersticas de edio e mixagem concebidas separadamente, mas sim da combinao de todos os elementos sonoros. Jacques Tati, por exemplo, usava efeitos sonoros cuidadosamente planejados, gravados separadamente e depois inseridos no continuum da trilha sonora em pontos especficos. Caso ouvidos isoladamente em sucesso, eles resultariam numa trilha sonora fragmentada e cheia de interrupes, se no fosse pelo uso de um background sonoro contnuo que amarrasse todos os demais elementos numa massa sonora nica. (CHION, 1994, p.46). J vimos um exemplo do funcionamento dessa tcnica na seqncia do trielo. Naquela cena, possvel ouvir dois grupos de sons, entre os quais se destaca claramente o grasnar do corvo uma ave de mau agouro acima de todos os outros sons que compem a primeira parte da seqncia. Isso quer dizer que o corvo est mais prximo dos pistoleiros do que os outros pssaros, e por isso que o ouvimos mais claramente. Uma das principais funes da equalizao do volume dos vrios sons de uma cena exatamente essa: estabelecer, de forma sutil, as relaes espaciais entre todos os elementos que constituem o espao flmico da cena. 28 O sistema Dolby Estreo (1975) permitiu que cineastas passassem a finalizar o som dos filmes em at quatro canais. O Dolby Estreo alcanou popularidade a partir de Guerra nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977), tornando-se o sistema de projeo de udio padro em todo o mundo (SERGI, 2004). 248 ao ponto de escuta. Nesse caso, no entanto, seria perdido o efeito emocional obtido com o grasnar do corvo. Se Leone faz o grasnado sobressair acima de uma massa indistinta de cantos de vrios outros pssaros, o faz porque sabe que esse som particular exerce um efeito de percepo no espectador mais importante para a narrativa do que os sons dos demais pssaros. Leone tambm realizou experincias com o uso criativo de sons fora do quadro para impulsionar a narrativa sem a necessidade do uso de dilogos. Um exemplo dessa tcnica pode ser encontrado numa cena de trs minutos e 19 segundos (199 segundos) de Trs Homens em Conflito. A cena consiste de uma montagem intercalada de trs aes distintas: enquanto uma parada militar cruza a cidade, Blondie limpa o revlver num quarto de hotel, e trs bandidos contratados por Tuco se aproximam do quarto para mat-lo. Leone narra as trs aes sem dilogos, usando a montagem paralela e os sons. A cena comea com Blondie limpando seu revlver (figura 3.161). A condio em si adiciona tenso extra cena, pois compreendemos que ele no ter condies de reagir ao ataque que vir. Podemos ouvir os rudos produzidos pela pequena vassoura com que ele tira a poeira da arma (ou seja, os sons so amplificados artificialmente); ao fundo, em segundo plano sonoro, ouve-se os rudos produzidos pela parada militar. Leone corta para o desfile (figura 3.162). O som que estava em segundo plano, na tomada anterior, eleva-se sincronicamente ao primeiro plano. O corte seguinte mostra a terceira ao simultnea: os pistoleiros sobem as escadas para ir at o quarto onde est Blondie (figura 3.163 e 3.164). O som do desfile volta a ficar em segundo plano; esse som tem grande importncia na cena, pois o elemento responsvel por interligar no tempo e no espao as trs aes que esto sendo representadas em paralelo. Mas os sons em primeiro plano agora consistem nas pancadas das botas nos degraus. Leone repete a mesma seqncia de cortes, enfatizando a aproximao dos bandidos (figura 3.165, 3.166, 3.167 e 3.168). importante observar como ele amplia o suspense recorrendo fragmentao do espao flmico atravs dos close-ups extremos: rostos, botas, revlveres, patas de cavalo (no desfile). Os sons produzidos por esses objetos so ouvidos em volume amplificado. O espao flmico extraordinariamente fragmentado, mas o espectador jamais se sente desorientado, por causa da mixagem consistente do som: o barulho do desfile militar d unidade aos close-ups. No exato momento em que o primeiro dos trs bandidos chega porta do quarto, os militares obedecem a uma ordem do comandante e interrompem a marcha por um instante 249 Figura 3.161: O plano inicial da cena mostra Blondie limpando o revlver, o que acentua o suspense: a platia no sabe se ele ter tempo de reagir ao ataque. Figura 3.162: Fora do hotel, um desfile militar produz os sons do ambiente (passos, galopes, carruagens) que providenciar unidade temporal e espacial cena. Figura 3.163: Dentro do hotel, os trs bandidos comeam a subir as escadas para emboscar Blondie: sons de botas aparecem em primeirssimo plano ... Figura 3.164: ... enquanto continuamos a ouvir, em segundo plano, os sons ritmados e contnuos do desfile militar; os bandidos se aproximam cada vez mais ... Figura 3.165: ... enquanto Blondie, sem saber do perigo que corre, continua limpando o tambor do revlver; Leone fragmenta o espao flmico atravs de close-ups. Figura 3.166: A cavalaria agora passa em frente ao hotel, e os rudos produzidos pelos cavalos e pelos soldados ficam mais ntidos: perigo maior para Blondie. Figura 3.167: O bandido pra de caminhar e olha para frente, focalizado em close-up extremo: ele chegou ao destino, fato confirmado pelo plano seguinte, ... Figura 3.168: ... um close-up que focaliza o nmero do quarto onde o espectador sabe que Blondie est hospedado; os rudos da tropa dominam a trilha sonora. Figura 3.169: O desfile pra diante do hotel; o sbito silncio atrapalha os planos dos bandidos, que deixam de contar com a cobertura sonora para atacar. Figura 3.170: Como reao instantnea, os trs pistoleiros deixam de se mover, mas o movimento dos ps faz a espora da bota de um deles tilintar ... 250 Figura 3.171: ... num rudo suave que alerta Blondie; focalizado em close-up extremo, ele ergue os olhos com as sobrancelhas arqueadas, em sinal de alerta. Figura 3.172: O silncio momentneo quase total; s se pode ouvir, ao longe, rudos de exploses causadas pela guerra; os bandidos aguardam para atacar ... Figura 3.173: ... enquanto Blondie acelera o processo de remontar o revlver, num close-up acentuado pelos cliques das peas de metal em volume amplificado. Figura 3.174: Aps uma ordem do comandante, o desfile militar reinicia, criando uma nova sinfonia de rudos e funcionando como deixa para o ataque. Figura 3.175: Em close-up, um dos bandidos aproxima a mo do trinco da porta; um crescendo de violinos acentua a tenso, pois no sabemos se Blondie reagir. Figura 3.176: Os bandidos entram no quarto e so alvejados por trs tiros; Leone filma a tomada em composio recessiva com profundidade de campo. Figura 3.177: Em seguida, num plano mdio, Blondie ergue-se sinal de que agora ele tem o domnio da cena e explica: o tilintar da espora lhe serviu de alerta. Figura 3.178: Em seguida, ele atira a queima-roupa no bandido ferido e desarmado, rompendo o cdigo de honra caracterstico do western norte-americano. (figura 3.169). Os outros bandidos que se aproximam param, mas um deles d um ligeiro passo frente, produzindo um leve tilintar da espora (figura 3.170). Esse pequeno rudo, normalmente imperceptvel, mostrado de forma intensificada, em primeiro plano sonoro, o que assinala sua importncia narrativa para a cena; diegeticamente, ele se torna perfeitamente audvel devido ao contraste com o sbito silncio provocado pela interrupo do desfile militar. A audio deste som resultante de contexto e preparao adequados. 251 O rudo alerta Blondie para a situao e o espectador compreende que ele percebeu porque, assim que o tilintar da espora ouvido, Leone corta para um close-up extremo que o mostra erguendo o olhar, as sobrancelhas arqueadas em sinal de alerta (figura 3.171). Ento os cortes se aceleram. Ouve-se apenas o sopro do vento e, bem ao longe, ocasionais exploses que nos lembram da guerra em andamento. O silncio acentua a gravidade da situao. Os bandidos esperam (figura 3.172). Blondie acelera o processo de remontar as peas do revlver e carreg-lo com balas (figura 3.173). O desfile militar retomado (figura 3.174). Os passos e galopes so ouvidos novamente, interrompendo o silncio. Os bandidos esto prontos para atacar, e se aproximam da porta do quarto (figura 3.175). Nesse ponto, Sergio Leone recorre a uma conveno de filmes de suspense, que ocasiona o que Michel Chion (2009, p. 477) chama de efeito empattico (um efeito criado pela msica que est em harmonia com o clima emocional da cena): inclui um cue musical simples, um crescendo de violinos, para acentuar ainda mais o suspense. Quando a porta do quarto aberta, Leone corta para uma composio recessiva: o revlver de Eastwood em primeirssimo plano, os bandidos espremendo-se na porta ao fundo (figura 3.176). O heri atira trs vezes; sincronicamente, a msica pra (figura 3.167). Blondie atira a queima-roupa (figura 3.168) em um dos bandidos que ficou ferido. No que se refere construo da trilha sonora, importante atentar para o cuidado com que os rudos (as botas, a espora, os sons do desfile, o revlver) foram intensificados e orquestrados de forma a guiar a percepo das imagens por parte do espectador, eliminando assim a necessidade do uso de dilogos explicativos para a apreenso da histria. Embora mantivesse como princpio esttico o uso de sons provenientes da diegese, Leone no hesitava em violar esse princpio, se a maneira mais eficiente de expressar uma idia atravs dos sons o pedisse. H uma cena de Era uma Vez no Oeste em que o diretor utiliza um som externo diegese para expressar a vida interior de um personagem atravs da adio desse rudo extra-diegtico. A cena protagonizada por Morton (Gabriele Ferzetti). O sonho da vida dele finalizar uma ferrovia que corte os Estados Unidos de costa a costa. Perto do final do filme, ele est preso dentro de seu prprio trem de luxo, guardado por pistoleiros. Ele olha para um quadro que mostra as ondas do oceano. Usando o zoom, Leone corta entre o quadro e os olhos dele, marejados de lgrimas (figuras 3.179, 3.180, 3.181 e 3.182). Quando Morton comea a fitar o quadro, todos os sons diegticos desaparecem. Ouvimos apenas o barulho ritmado das ondas do oceano. Este som, claro, no diegtico; a cena acontece no meio do deserto do Arizona. O som das ondas aquilo que Chion denomina 252 Figura 3.179: Deprimido, Morton caminha pelo trem onde prisioneiro; de repente, ele pra de andar e olha para a esquerda, olho fixo num ponto fora do quadro. Figura 3.180: O contra-plano indica que ele observa uma pintura do mar; a banda sonora exclui os sons diegticos e passamos a ouvir apenas o rudo de ondas. Figura 3.181: O close-up extremo que focaliza os olhos de Morton esclarece: o rudo das ondas traduz em sons o desejo/sonho do empresrio, que ver o mar. Figura 3.182: Em seguida, a cmera faz um zoom dentro do quadro, como se as ondas estivessem olhando de volta para o empresrio: ele decide se rebelar. de som interno subjetivo (CHION, 1994, p. 76): um rudo que traduz o sentimento que est se passando no interior do personagem. O som das ondas expressa a intensa emoo experimentada pelo empresrio (uma emoo acentuada pelo uso do zoom e pelos olhos marejados). Somente ele est ouvindo aquele som. Quanto olha para frente, Morton tem outra postura. O som das ondas vai sumindo devagar; a mixagem indica que ele estava perdido em pensamentos, mas retorna agora ao mundo real, e os rudos da diegese o resfolegar do trem, a algazarra dos pistoleiros retornam, criando ambincia e pontos de sincronismo. O ato de olhar para aquele quadro provocou no empresrio uma mudana de atitude. Ele est mais confiante. No que se refere ao desenho de som, o momento mais famoso de Leone a cena de abertura de Era uma Vez no Oeste. So 15 minutos e 39 segundos praticamente sem palavras e sem msica, uma sinfonia de rudos amplificados. A metfora da sinfonia pertinente, uma vez que a idia dos rudos diegticos veio de Ennio Morricone, que chegou a escrever msica para a cena, mas sugeriu que os rudos acentuariam melhor a monotonia dos pistoleiros que aguardam a chegada de um trem na estao de Flagstone. A cena comea dentro da estao. A porta enferrujada abre devagar; passos produzem o rudo ritmado de botas batendo na madeira. Os planos-detalhes iniciais, que no permitem ver o local (figuras 3.183 e 3.184), e os rudos amplificados preparam os sentidos do espectador para descobrir o lugar atravs dos sons. Eles permitem que a platia organize mentalmente o espao flmico, mesmo aquele que est fora do quadro. 253 Existem dois grupos de sons que se pode ouvir ao longo desse trecho inicial: o primeiro formado pelos rudos produzidos pelas pessoas dentro da estao (passos, abrir e fechar de portas, giz raspando o quadro negro); o segundo constitudo por uma mirade de sons que caracterizam o ambiente externo como um espao vasto e vazio: um moinho enferrujado, o vento, galinhas, um cachorro, um canrio, uma goteira, o zumbido de uma mosca e uma coleo de pequenos rudos que, intensificados, contribuem para dotar o espao flmico de uma qualidade aural quase viva. Esse conjunto de sons possui duas funes. A primeira a j citada caracterizao da monotonia. Esta tem uma relao com o recurso estilstico do alusionismo: o esqueleto narrativo da cena uma aluso a Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952), em que a mesma situao dramtica (trs pistoleiros esperam a chegada de um trem) encenada. A segunda funo auxiliar o espectador a explorar o ambiente de forma sensorial, experimentando uma imerso no local. Os sons incluem as brincadeiras de um dos pistoleiros com um canrio numa gaiola (figura 3.187), a risada nervosa do vendedor de bilhetes (figura 3.188), e a fuga barulhenta da ndia que trabalha no local (figura 3.189). Instalados na estao, os pistoleiros procuram atividades para preencher o tempo. Um deles caminha pela plataforma (figuras 3.190 e 3.191) e se posta abaixo da caixa dgua (figura 3.192). Ele est sob uma goteira (figura 3.196); coloca o chapu e acompanha o rudo ritmado da gua, que cria uma espcie de melodia percussiva (figura 3.197). Outro pistoleiro anda at o coche onde os cavalos bebem gua (figura 3.193). Ele brinca com a gua e estalar as juntas dos dedos (figura 3.198), criando uma segunda linha rtmica percussiva. Esses rudos se sucedem mecanicamente, lembrando o tique-taque dos pontos do relgio, o que refora ainda mais a idia de monotonia. O terceiro pistoleiro pe o chapu sobre os olhos, mas no consegue dormir (figura 3.194), pois os rudos o impedem. Primeiro, um telgrafo soa logo ao lado dele, que arranca os fios (figura 3.195). Depois, uma mosca pousa em seu rosto e passeia sobre ele (figura 3.199), enquanto o homem tenta espant-la soprando com a boca. Quando ele finalmente se irrita e resolve a situao, prendendo a mosca com o cano do revlver (figura 3.190), ouve-se o apito de uma locomotiva. O trem est por chegar (figura 3.191). A espera terminou. Durante esse segundo trecho, a edio de som planejada para guiar a percepo do espectador de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, claramente perceptvel a criao de padres rtmicos minimalistas, para exprimir a sensao de monotonia. Cada pistoleiro est s voltas com seu prprio padro rtmico: a goteira, os estalos dos dedos, o zumbido da mosca. 254 Figura 3.183: Aps o rangido que demarcou a abertura da porta da estao ferroviria, vemos apenas um par de botas, que fecham a porta com um movimento. Figura 3.184: Um plano-detalhe destaca a arma e as balas na cintura do homem que acaba de abrir a porta: a informao visual indica que se trata de um pistoleiro. Figura 3.185: Um plano mdio do bilheteiro, intimidado pela sombra do invasor ( esquerda), revela o interior do prdio; o som de outra porta abrindo indica que ... Figura 3.186: ... o pistoleiro no est sozinho; em primeiro plano, um segundo pistoleiro aparece em outra porta; um terceiro invasor aparece em seguida ... Figura 3.187: ... e comea a brincar com o pssaro cujo canto domina a sinfonia de rudos, assustando-o com barulhos produzidos pela boca e fazendo-o se calar. Figura 3.188: O bilheteiro, focalizado em close-up extremo, pede que os homens esperem; ele trancado no banheiro sem que os pistoleiros digam nada. Figura 3.189: Enquanto isso, a ndia que trabalha no lugar foge correndo, os ps levantando poeira e produzindo barulho; possvel ouvir galinhas ali perto. Figura 3.190: Os pistoleiros saem do prdio da estao para a plataforma de madeira velha; o ranger ritmado e montono de um moinho prepara o corte para ... Figura 3.191: ... um plano geral em que o moinho serve como moldura da ao principal o pistoleiro caminhando vista em profundidade de campo. Figura 3.192: O pistoleiro que caminhava posta-se embaixo da caixa dgua, com a ferrovia em segundo plano; o rudo do moinho agora est mais distante ... 255 Figura 3.193: ... mas o ritmo montono dos rangidos agudos proporcionam senso de continuidade cena, cujas tomadas fragmentam todo o espao flmico. Figura 3.194: Outro pistoleiro tenta cochilar, com a caixa dgua e o moinho atrs; o rudo de um telgrafo comea a ser ouvido em primeiro plano sonoro ... Figura 3.195: ... e ento o telgrafo aparece no primeiro plano da imagem, situado logo ao lado do pistoleiro, que demonstra irritao com a interrupo do cochilo. Figura 3.196: Um close-up introduz outro personagem, que comea a ouvir o rudo prximo de uma goteira, certamente caindo da caixa dgua logo acima ... Figura 3.197: ... e ento Leone revela, num plano- detalhe, a origem do rudo, com as gotas dgua se formando lentamente, o que enfatiza a monotonia. Figura 3.198: Sentado junto ao coche dos cavalos, o terceiro pistoleiro brinca com a gua e depois comea a estalar os dedos: uma sinfonia completa de rudos ... Figura 3.199: ... coroada pelo surgimento de uma mosca, que vem perturbar o cochilo do primeiro pistoleiro; ele tenta sopr-la para longe, sem sucesso ... Figura 3.200: ... at que, num movimento brusco e certeiro, prende o animal com o cano do revlver, no momento exato em que ouvimos o apito do trem ... Figura 3.201: ... que aparece ao fundo da tomada seguinte, uma composio recessiva em profundidade de campo, com nuca de pistoleiro em close-up extremo. Figura 3.202: Leone usa os crditos para criar humor sutil: a apario do nome dele na tela interrompe a marcha do trem, que finalmente pra na estao. 256 Figura 3.203: Pistoleiros aguardam na plataforma: dedos batem no coldre, sonorizando uma composio recessiva com moldura e profundidade de campo. Figura 3.204: Com o trem em movimento, os pistoleiros do as costas para ir embora; o toque de uma gaita (msica diegtica) interrompe a trajetria dos trs. Figura 3.205: Leone corta para um close-up extremo, a primeira apario de Harmonica no filme: ele desceu do trem pelo lado oposto, para escapar da emboscada. Figura 3.206: Plano geral enfatiza as relaes espaciais entre pistoleiros e Harmonica: a composio recessiva mostra que o confronto est prestes a comear. Figura 3.207: Composio recessiva em profundidade: depois que Harmonica pra de tocar, a melodia continua (extra-diegtica), solada por um banjo. Figura 3.208: Mesmo com uma mala na mo esquerda, Harmonica consegue alvejar os trs pistoleiros; mas ele cai de costas, criando tenso: ser que morreu? Figura 3.209: Leone amplia suspense saindo do cenrio do tiroteio e inserindo plano-detalhe do moinho, motivo visual e sonoro mais importante de toda a cena. Figura 3.210: Close-up focaliza o rosto de Harmonica e o heri se movimenta: ele ficou ferido, mas no morreu; o moinho imediatamente para de girar, jogando a cena ... Figura 3.211: ... num silncio absoluto, enquanto Harmonica se ergue: a interrupo brusca do som d gravidade ao momento e sugere poder sobrenatural. Figura 3.212: Heri recolhe bagagem e se prepara para ir embora; composio recessiva mostra moinho parado ao fundo, emoldurado por ps e mala do pistoleiro. 257 H um motivo visual e rtmico que afeta todos os personagens: o rangido do moinho abandonado, que aparece em duas tomadas com destaque (figuras 3.191 e 3.209). O moinho funciona como um relgio e simboliza a passagem mecnica do tempo. O rangido sinaliza que a ao acontece em tempo real, j que possvel ouvi-lo durante toda a cena, com uma breve interrupo (o momento em que o pistoleiro arranca os fios do telgrafo, instante em que o filme adota momentaneamente o ponto de escuta do personagem, para provocar no espectador a percepo da tranqilidade que ele sente ao quebrar o aparelho e interromper o rudo). Muitas vezes, o som ouvido pelo espectador durante um plano, quase sempre oriundo de algum objeto, animal ou pessoa fora do quadro, chama a ateno para esse novo elemento ainda no visvel, que s aparecer na imagem um pouco depois de ser ouvido, quase sempre no plano seguinte. Nesse caso, a percepo da imagem por parte da platia dirigida pela organizao (em termos de volume, intensidade e freqncia) dos rudos ouvidos no plano imediatamente anterior. O pblico preparado, no plano anterior, para perscrutar a imagem seguinte e procurar instantaneamente, dentro dela, a fonte da origem daquele novo rudo. Tudo isso importante nos planos gerais e mdios, quando h muitos elementos visuais dentro do quadro, disputando a ateno do espectador. Um bom exemplo est no momento em que os pistoleiros saem para a plataforma da estao (figuras 3.190 a 3.198); h uma seqncia de planos gerais que utilizam esse recurso. Durante o plano que mostra um dos pistoleiros caminhando na plataforma (figura 3.190), a intensidade do som do moinho sobe gradualmente; o plano seguinte mostra o moinho em primeirssimo plano (figura 3.191). frente, h um plano do pistoleiro que cochila (figura 3.194), enquanto ouvimos o som (agora longnquo) do moinho. No meio do plano, o rudo frentico do telgrafo (que no est em quadro) ocupa o primeiro plano sonoro; a tomada seguinte mostra o telgrafo em primeiro plano visual (figura 3.195). Logo em seguida, enquanto o terceiro pistoleiro est parado sob a caixa dgua, o pblico ouve uma goteira fora de quadro (figura 3.196); o plano seguinte localiza a goteira em um ponto exatamente acima da cabea do pistoleiro (figura 3.197). Por fim, o apito da locomotiva ouvido enquanto vemos um close-up extremo de um pistoleiro (figura 3.200), mas o trem s aparece no plano seguinte (figura 3.201). Em todos esses casos, sempre o som oriundo de um elemento fora do quadro que guia a ateno do espectador para determinado ponto ou aspecto da imagem que aparecer no quadro seguinte. O uso de sons fora do quadro , junto anlise da msica, um dos aspectos mais abordados dentro da rea de estudos do som cinematogrfico (CHION, 1994, p. 73). A cuidadosa construo sonora dessa cena reafirma o potencial criativo dos sons fora de quadro. Trata-se da tcnica desenvolvida por Jacques Tati e Robert Bresson efeitos sonoros 258 organizados e inseridos dentro de uma paisagem sonora contnua que d unidade trilha sonora acrescida de um elemento novo: o silncio, nesse caso usado para dar nfase emocional idia de monotonia. Esse senso de monotonia s possvel de conseguir atravs de uma tcnica especificamente criada para expressar o silncio: Outra maneira de expressar o silncio (...) consiste em expor o ouvinte a rudos. Refiro-me a tipos sutis de rudos, como o tique-taque de um relgio, associados normalmente a ambientes tranqilos e silenciosos. Esses elementos normalmente no atraem ateno das pessoas; no seriam sequer audveis se os outros sons (trfico, conversas, local de trabalho) no fossem eliminados. (CHION, 1994, P. 57). esse o caso da cena. Leone gera a percepo de monotonia ao deixar o espectador ouvir rudos que ele normalmente no ouviria: uma mosca, o estalar de dedos, o telgrafo, o moinho, o vento, etc. Momentos de silncio como esse so comuns tambm nas cenas que antecedem duelos e confrontos decisivos, em todos os filmes de Leone. Nesse caso, expressam no a idia de monotonia, mas o modo de percepo aguada de um ser humano que est exposto a um grande perigo. Nesses momentos, somos capazes de ouvir at os menores rudos. A audio, como afirma Chion, um sentido igualmente relacionado ao ouvido e mente. Leone explica assim o uso do silncio em seus filmes: Aos poucos, fui notando que todos os diretores de quem eu gostava eram parecidos em sua obsesso pela velocidade. Eles instruam os atores a acelerar suas falas at o ponto em que voc mal conseguia distinguir as ltimas slabas de uma frase das primeiras slabas da prxima. Nunca havia o menor intervalo para mostrar que talvez a pessoa quisesse pensar antes de responder. Eu no concordava com esse sistema, achava-o muito artificial. O senso de ponderao antes de uma resposta era algo que s conseguia encontrar no cinema japons. Durante muito tempo, quis dar aos meus filmes esse ritmo. (LEONE, 2000, p. 291-292). Analisando-se essa passagem, possvel encontrar duas caractersticas fundamentais para a construo desse recurso estilstico. Em primeiro lugar, ntida a influncia do neo- realismo: a hesitao antes de uma resposta faz parte da realidade fsica e emocional de uma conversa, e a eliminao dessas pausas d aos dilogos da maioria dos filmes de fico um senso de artificialidade. A segunda caracterstica a necessidade de afirmao autoral, realizada atravs da reviso crtica das convenes de gnero (nesse caso, os dilogos em velocidade acelerada, caractersticos dos filmes de Hollywood nas dcadas de 1930 e 1940). Na segunda parte da cena, a tomada que mostra a chegada do trem (figura 3.202) consiste num dos momentos de ironia em que Leone brinca com seu prprio nome: a linha de 259 crdito que nomeia Leone como diretor interrompe a trajetria da locomotiva, como se fosse um freio. Os trs pistoleiros, calculadamente dispersos, aguardam o desembarque de algum. Leone encena essa espera com close-ups e planos-detalhes das mos perto das armas (figuras 3.203), em composies recessivas. O resfolegar do trem proporciona o senso de continuidade temporal (criado pelo moinho antes de o trem chegar); os rudos naturais amplificados (passos, dedos batendo nos coldres) acentuam a tenso e fornecem pontos de sncrese. O apito do trem anuncia a partida; sem que ningum houvesse desembarcado, os pistoleiros do as costas (figura 3.204). Nesse exato momento, ouve-se uma nota musical executada por uma gaita; por um instante, o espectador levado a imaginar que este som especfico extra-diegtico. Ento os personagens param. Eles ouviram a gaita. S ento percebemos que a msica diegtica, executada por um personagem fora do quadro; trata-se de uma brincadeira de Leone com uma conveno musical, produzindo o equivalente sonoro tcnica do trompe loeil (uma tcnica que Michel Chion denomina trompe loreille, ou enganar o ouvido). Esse som traz consigo a tomada seguinte, que mostra Harmonica, o passageiro aguardado (figura 3.205). Ele continua a tocar, enquanto os pistoleiros o encaram (figuras 3.206 e 3.207). Segue um breve dilogo; depois que Harmonica comea a falar, a melodia continua a ser ouvida (em segundo plano sonoro, executada por um banjo em staccato, acompanhado de guizos); ou seja, a msica passou de diegtica a extra-diegtica (nesse caso, obedecendo tradio clssica da inaudibilidade da msica, j que o espectador no se d conta dessa transio). Aps o tiroteio (figura 3.208), o rudo do moinho (figura 3.209) elevado ao primeiro plano sonoro. Harmonica caiu, junto com os trs pistoleiros (figura 3.210). Aps o prximo corte, ele se levanta (figura 3.211). Exatamente ao mesmo tempo em que a platia descobre que Harmonica est vivo, o moinho pra de se mover. O silncio domina a cena (o sopro do vento tambm interrompido, o que justifica diegeticamente a interrupo do rudo do moinho). Harmonica se ergue, com o moinho visvel em segundo plano (figura 3.212). A idia da cena surgiu numa conversa entre Leone e Morricone. O ltimo contou que havia ido a um concerto concretista em Florena, em que o artista havia entrado no palco com uma escada e, diante de uma platia quieta, passara vrios minutos arranhando e batendo nela. Durante a conversa, Morricone comeou a filosofar: qualquer som do cotidiano, retirado de seu contexto e isolado pelo silncio, se torna algo indefinvel e diferente, algo que no faz parte de sua natureza intrnseca (MORRICONE, 2000, p. 283). Essa idia, oriunda da msica concreta, uma de suas marcas mais reconhecveis como compositor: 260 Expandindo os limites daquilo que o pblico e os produtores estavam prontos a aceitar, ele introduziu harmonias corajosas e sonoridades incomuns. Seu maior talento estava na arte de escolher tons agradveis ao ouvido e mixar instrumentos tradicionais a sons inesperados, s vezes originados do folclore italiano, outras vezes escolhidos entre sons produzidos por objetos cotidianos que eram retirados de sua funo primeira, como uma xcara ou uma mquina de escrever. (EHRESMANN, 2009). Morricone tentava introduzir elementos da msica concreta, nos filmes em que trabalhava, desde 1962. Sua primeira experincia consistiu em um arranjo para uma cano folk. Foi a gravao que sedimentou a parceria com Leone. A msica tinha uma letra que falava sobre a saudade de um homem pela cidade de origem. A fim de evocar na msica a nostalgia sugerida pela letra, Morricone havia incorporado sons da vida rural ao arranjo. Tambm havia includo um coro vocal masculino e fraseados de flauta doce, lado a lado com melodias soladas numa guitarra eltrica Fender Stratocaster. A justaposio de flauta e guitarra criava uma tenso extra, j que a primeira um instrumento normalmente usado para sugerir uma presena rural, enquanto a segunda constitui obviamente uma sonoridade urbana. Leone gostou do conceito. O tema de Por um Punhado de Dlares derivou dessa composio, acrescida de chicotadas, badalos de sino, batidas de martelo, tiros e galopes de cavalo, alm da melodia assobiada (ao invs de cantada). Nesse ponto, a influncia da msica concreta, atravs de Morricone, foi determinante para a reviso desse esquema operada por Leone. Alm disso, do ponto de vista do diretor, tambm importante associar a incorporao de sons da diegese dentro da msica influncia indireta do neo-realismo. O que Leone estava buscando era uma msica que tivesse algum tipo de conexo com o verdadeiro Velho Oeste; ou seja, que traduzisse para o reino da msica a verossimilhana das imagens. J vimos: a msica que se ouvia no Velho Oeste, no sculo XIX, era rstica: canes nostlgicas de imigrantes. Eram acompanhadas por violino caipira e berimbau de boca. Rodas de violo e gaita, e bares com pianos, que evocam hoje a imagem que temos daquela poca, consistem de uma conveno criada pelos westerns americanos. Esses instrumentos s se tornariam populares entre o final do sculo XIX e o incio do sculo seguinte. Nosso imaginrio associa o Velho Oeste a esses instrumentos graas ao retrato historicamente incorreto que Hollywood fez da msica popular do perodo (BUSCOMBE, 1988, p. 193-194). O que a parceria propunha era uma sntese: nem msica caipira (rstica demais), nem msica concreta (moderna demais), nem orquestraes neo-romnticas (que suavizavam a brutalidade do ambiente diegtico). Por um lado, Morricone introduziu inovaes, como sons da diegese dentro dos arranjos; e, por outro, manteve elementos da msica cinematogrfica 261 clssica: arranjos que enfatizavam cordas (violino, violoncelo) e madeiras (flauta, obo), e recursos narrativos que propunham alto grau de sincronizao entre as bandas sonora e visual, tais como leitmotivs, ostinati e mickeymousing 29 29 Um leitmotiv consiste num fraseado ou trecho meldico associado a personagem, local ou situao dramtica; um ostinato uma figura rtmica ou meldica repetitiva, usada para dar dinmica a cenas com visual montono; mickeymousing como ficou conhecida em Hollywood a tcnica de sincronizar trechos musicais e movimentos dos personagens (GORBMAN in HILL; CHURCH GIBSON, 1998, p. 45). . No custa lembrar que esses recursos estavam a servio de uma msica feita para ser ouvida no plano consciente pelo espectador. Desde Por um Punhado de Dlares, Morricone partiria sempre dos mesmos elementos para construir a msica dos filmes de Leone: instrumentos exticos, como ocarina e obo (Trs Homens em Conflito), celesta e berimbau de boca (Por uns Dlares a Mais); rudos da diegese usados como elementos rtmicos ou harmnicos; estruturas simples de msica pop (versos e refres); instrumentos populares nos anos 1960 (guitarra, piano eltrico, bateria); e sincronia entre msica e montagem, inclusive com msica composta antes das filmagens. A ltima caracterstica da msica de Morricone para Leone so os degellos antecedendo os duelos. J analisamos a msica de um desses momentos (o trielo de Trs Homens em Conflito). Do ponto de vista da composio musical, entretanto, o mais interessante degello de Morricone est em Por uns Dlares a Mais. A msica ouvida durante o confronto entre o Coronel Mortimer e El Indio, numa arena circular de pedra das quais Leone tanto gostava. Nosso foco de interesse est no jogo entre os sons diegticos e extra-diegticos que constituem a composio musical, chamando a ateno do espectador para a msica e contribuindo, junto com a fragmentao do espao flmico em close-ups extremos e planos-detalhes, para a sensao de que a cena se passa mais lentamente, como se deslocada para outra dimenso espao-temporal, onde o tempo passa mais devagar. A cena comea com uma composio recessiva (figura 3.213). O vilo tem o controle da cena, pois est armado, enquanto a pistola do adversrio est no cho. Na banda sonora, ouve-se apenas o sopro do vento e o tilintar das esporas do vilo. El Indio puxa um relgio de bolso (figura 3.214). um ritual particular que o espectador j conhece: antes de enfrentar um adversrio, ele d corda no relgio e avisa que podem atirar assim que a campainha parar. A melodia da caixa de msica o leitmotiv de El Indio; ns a ouvimos, os pistoleiros tambm. Msica diegtica. uma celesta. Eles se encaram; Mortimer mostrado num close- up (figura 3.215), a msica soando em primeiro plano sonoro. Ento, algo estranho acontece: ao olhar para a fotografia no relgio, El Indio percebe a semelhana fsica da dona do objeto com o coronel. Um zoom focaliza o rosto dele em close-up extremo (figura 3.216). 262 Sincronicamente, ao aumento da nuance dramtica da cena, corresponde uma alterao na execuo da melodia: a celesta diegtica, antes ouvida na textura sintetizada de um relgio mecnico (ou seja, destituda das freqncias mais altas e baixas), ganha o acompanhamento de uma orquestra de cordas, os violinos obviamente extra-diegticos adicionando lirismo msica. De repente, a reverberao que ouvamos junto melodia do relgio (diegeticamente executada num espao aberto) desapareceu. A alterao quase imperceptvel na textura do som sinaliza que, a partir da, a msica est tocando dentro das cabeas dos personagens. A funo da orquestra sublinhar a torrente de sentimentos que invadem os adversrios, agora que ambos reconhecem uma motivao extra, pessoal e emocional. Leone acentua a percepo de reconhecimento, por parte de El Indio, justapondo mais duas composies simtricas recessivas (figuras 3.217 e 3.218), a primeira delas centralizando o relgio de bolso na mo dele. A melodia diegtica do relgio comea a se tornar mais lenta, um sinal de que a corda est acabando (ou seja, o tiroteio est para comear). A orquestra desaparece suavemente, ao mesmo tempo em que o eco agregado celesta retorna. O momento emocional passou; a percepo cognitiva de ambos agora est voltada exclusivamente para o momento do duelo. Tudo isso comunicado ao espectador pelo jogo diegtico envolvendo a msica, as caractersticas fsicas do som e seu casamento com as justaposies de planos e os movimentos de cmera. O enquadramento com moldura que mostra o relgio centralizado, na mo de El Indio, faz uma rima com o plano que introduz o personagem de Clint Eastwood na cena (figura 3.219). Trata-se de uma composio recessiva que investe no trompe loeil. Monco aparece na arena sem que os dois adversrios tenham percebido sua chegada. A chegada de Monco demarca nova alterao na msica. A orquestra retorna para assinalar o final da melodia do relgio com um crescendo de cordas que forma um grande acorde em unssono. A msica reiniciada logo depois num arranjo inteiramente diferente: violo flamenco e castanholas fazem floreios e se mesclam em intervalos regulares celesta do relgio. Dessa maneira, o compositor insere o tema de El Indio dentro de um dos tradicionais degellos to adorados por Sergio Leone. Do ponto de vista da emoo, esse trecho (em que mudam a dinmica e o arranjo da composio) assinala um interldio. El Indio no est mais em vantagem. A presena de Monco garante que isonomia ao duelo entre os dois adversrios. Uma vez que isso est estabelecido, o que Leone enfatiza recorrendo a um plano geral aberto (figura 3.222) que aponta a simetria dos trs personagens dentro da arena circular, bem como a disposio de Monco para no participar do acerto de contas, o duelo est para comear. 263 Figura 3.213: Desarmado, Mortimer aguarda El Indio dentro da arena de pedras de Agua Caliente: composio com moldura em profundidade de campo. Figura 3.214: A banda sonora (vento, tilintar das esporas de El Indio) ganha o acrscimo de msica diegtica: o relgio toca melodia melanclica executada por celesta. Figura 3.215: A celesta sublinha o close-up do Coronel Mortimer, com expresso neutra; optando de novo pela simetria, Leone corta para um close-up de El Indio ... Figura 3.216: ... e a cmera faz um zoom para frente, enquanto o vilo observa a semelhana entra o rosto da mulher no relgio e a figura do Coronel Mortimer, ... Figura 3.217: ... semelhana acentuada pela composio com moldura em profundidade que centraliza o relgio, tornando-o o motivo visual mais fundamental da cena. Figura 3.218: Violinos se juntam celesta, que perde a textura mecnica: agora a msica ecoa na cabea dos personagens ( tanto diegtica quanto extra-diegtica). Figura 3.219: A entrada em cena de Monco ocorre num trompe loeil (ele aparece sem aviso) e evoca visualmente o plano 3.183 (com o relgio centralizado). Figura 3.220: O terceiro personagem se junta ostensivamente a Mortimer, o que Leone sinaliza reunindo os dois num nico plano mdio, deixando ... Figura 3.221: ... El Indio sozinho do outro lado da arena circular; o plano mdio, simtrico, expressa a igualdade de foras, agora que os duelistas tm condies iguais. Figura 3.222: Monco se afasta para observar o duelo, num plano geral bem aberto; a msica se transforma num jogo entre a celesta do relgio (diegtica) ... 264 Figura 3.223: ... e um arranjo com violo flamenco e castanholas (extra-diegtica) em contraponto; ao primeiro plano geral de Mortimer corresponde ... Figura 3.224: ... um plano geral idntico, em contra- plano, de El Indio; a encenao aproxima aos poucos a cmera dos atores, mas sem esquecer a simetria, ... Figura 3.225: ... manifestada tanto nos ngulos idnticos de cmera (caso dos close-ups) quanto na durao igual dos planos dedicados a mostrar cada um dos duelistas. Figura 3.226: Quando os personagens passam a ser filmados em close-ups, a composio ganha um solo de trompete mariachi: o tpico degello de Leone, ... Figura 3.227: s que exibindo em contraponto a melodia diegtica da celesta do relgio, que executada mais devagar medida que a corda vai terminando. Figura 3.228: A velocidade mais lenta de execuo indica que o duelo est mais perto de acontecer, j que os pistoleiros podem atirar assim que a msica parar. Figura 3.229: Entre os close-ups extremos dos dois pistoleiros, Leone insere close-ups de Monco, cigarro na boca, que assiste sentado e impassvel ao duelo. Figura 3.230: Composio recessiva com moldura (Mortimer) em profundidade de campo quebra simetria da montagem, at ento respeitada escrupulosamente. Figura 3.231: A melodia da celestra fica lenta, quase parando; plano-detalhe mostra a mo de El Indio se movimentando nervosamente em direo ao revlver ... Figura 3.232: ... mas o Coronel Mortimer, ficalizado num plano-mdio em contraluz, consegue atirar primeiro: no h mais msica diegtica nem extra-diegtica. 265 Figura 3.233: O impacto da bala joga El Indio para trs; a trilha sonora agora consiste apenas do sopro forte do vento e dos rudos produzidos pelo vilo, que ... Figura 3.234: ... se arrasta no cho da arena, tentando alcanar o revlver, sob os olhares de Monco e Mortimer, este ltimo pronto para atirar novamente. Figura 3.235: No mesmo instante em que consegue empunhar a arma de novo, El Indio inclina a cabea e morre; no necessrio um segundo tiro do adversrio. Figura 3.236: Monco mastiga o cigarro tranqilamente e felicita o vencedor com um toque de humor negro e ironia tpicos de Leone: Bravo!. Fim da cena. Visualmente, Leone encena o duelo recorrendo aos mesmos recursos estilsticos que repetiria mais tarde em Trs Homens em Conflito: planos gerais (figuras 3.223 e 3.224), close-ups (figuras 3.225 e 3.226) e close-ups extremos (figuras 3.227 e 3.228), sempre prezando pela simetria (enquadramentos e durao idnticos para os dois duelistas) e pela aproximao sistemtica da cmera em relao aos atores. No plano sonoro, a melodia evolui num crescendo e culmina com um solo de trompete escudado por coral masculino. Uma composio recessiva (figura 3.230) demarca uma ruptura na simetria visual (pois no vemos o contra-plano) e sinaliza a superioridade emocional de Mortimer. O solo de trompete abruptamente encerrado. Voltam o violo flamenco, as castanholas e a caixa de msica em contraponto (os dois primeiros saem de cena aos poucos). A melodia do relgio torna-se mais lenta (figura 3.231). Quando a msica pra, Mortimer atira primeiro e vence o confronto (figura 3.232, 3.233 e 3.234). No h mais msica; o contraste entre o final do degello e a sbita escassez de sons produz um efeito de silncio. Pode-se ouvir apenas o resfolegar da respirao de El Indio, ferido mortalmente (figura 3.235), enquanto Monco, num toque de ironia e humor negro, mastiga o cigarro: Bravo! (figura 3.236). O sopro constante do vento e os sons produzidos pelos pistoleiros so os nicos efeitos sonoros remanescentes. Ampliadas ainda mais, todas as caractersticas presentes podem ser encontradas na cena da chegada de Tuco ao cemitrio, em Trs Homens em Conflito. Professores dos cursos 266 de Cinema em instituies de ensino norte-americanas, como a University of Southern California, fizeram seus alunos entre os quais George Lucas e John Milius estudarem essa cena detalhadamente, analisando-a plano a plano (FRAYLING, 2005, p. 190). O objetivo era aprender como realizar um casamento sincrnico entre sons e imagens. Foi assim que a continuidade intensificada, nos moldes de Leone, comeou a se popularizar entre os diretores dos anos 1970 (e, atravs desses, entre os cineastas das geraes subseqentes). Chegamos, ento, ao quarto e ltimo recurso recorrente da prtica estilstica de Leone em relao ao som dos filmes. Embora rara, a prtica estilstica de buscar a sincronia entre sons e imagens no era exatamente nova nos anos 1960. Em 1940, Sergei Eisenstein j havia teorizado sobre esse recurso dramtico, que chamou de montagem vertical (EISENSTEIN, 1992, p. 106). Para ele, o cineasta que conseguisse pensar a trilha musical em sincronia com a trilha de imagens seria capaz de unificar dois fluxos de informao em um ritmo nico e indivisvel, que ento seria percebido pelo espectador como um todo mais poderoso: Devemos saber como apreender o movimento de uma determinada pea musical fixando seu caminho (sua linha ou forma) como a base da composio plstica que deve corresponder a msica. (EISENSTEIN, 1992, p. 113). Eisenstein era obcecado por sincronia. Ele achava que todo diretor devia perseguir os mais diversos tipos de sincronia na construo da narrativa (entre msica e cor, entre composio pictrica e encenao, entre som e enquadramento, entre dilogos e msica, etc.). Quem assim o fizesse, estaria montando seu filme de maneira vertical, e no mais apenas horizontal. A montagem vertical dava mais trabalho, mas oferecia uma recompensa queles que a praticassem. Usando o vocabulrio dos msicos, Eisenstein props que as diversas sincronias possveis entre elementos visuais e sonoros dariam ao filme uma harmonia mais rica e complexa (nesse sentido a justaposio de planos, ou montagem horizontal, funcionaria como a melodia). A prtica da montagem vertical elevaria a qualidade artstica do filme. No artigo em que criou o conceito, Eisenstein analisa longamente uma seqncia de seu prprio Alexandre Nevsky (Aleksandr Nevskiy, Sergei Eisenstein, 1938) a batalha sobre o gelo e explica que a msica usada ali foi escrita antes das filmagens por Sergei Prokofiev, compositor com quem trabalhava h vrios anos (no parece ser coincidncia o fato de que a parceria entre ele e Eisenstein fosse longa; para que a teoria funcionasse na prtica, era preciso que um conhecesse bem o outro, como tambm acontecia com Leone e Morricone). Eisenstein planejara a seqncia de modo que cada compasso da msica coincidisse com um corte na imagem, e que cada evoluo meldica ou harmnica da composio contemplasse 267 algum movimento (dos atores ou da cmera): No podemos negar o fato de que a impresso mais surpreendente e imediata ser obtida, claro, a partir de uma coincidncia do movimento da msica com o contorno visual (EISENSTEIN, 1992, p. 115). Antes de Eisenstein, os historiadores do cinema registram apenas uma experincia em que a msica de um longa-metragem havia sido composta antes das filmagens: Ama-me Esta Noite (Love Me Tonight, Rouben Mamoulian, 1932), filme sempre citado por estudiosos do som cinematogrfico, mas cuja preocupao com a sincronia entre imagens e sons no to intensa quanto as proposies de Eisenstein. Esse esquema da relao entre msica e imagens no se tornou dominante, talvez porque a arte cinematogrfica tenha nascido como a arte das imagens em movimento; subordin-la a outra arte (a msica) no parecia (para muitos, continua no parecendo) correto. No possvel saber com certeza se Leone estava ciente da teoria de Eisenstein, mas parece bastante claro que as experincias que ele levou a cabo a partir de Trs Homens em Conflito, junto com Ennio Morricone, concretizam com preciso as idias de Eisenstein. E, de todas as cenas dos filmes de Leone que se valem desse esquema, a chegada de Tuco ao cemitrio que as pem em prtica de maneira mais relevante. O objetivo dramtico da cena nulo. Ela poderia ser descrita em duas linhas e durar poucos segundos, sem prejuzo narrativa. Mas foi mantida na edio final para alcanar um efeito de percepo intensificada junto ao espectador, envolvendo-o emocionalmente na busca pelo tesouro e preparando-o para o duelo final; um momento tpico do cinema modernista dos anos 1960, em que a tcnica se deixa ver. A cena documenta, em, trs minutos e 26 segundos (206 segundos), a frentica corrida de Tuco por entre os tmulos do lugar. Ele tenta encontrar o local exato onde a fortuna de US$ 200 mil est enterrada. A cena composta por 23 planos, cuja durao mdia elevada, para os padres de Leone: 8,9 segundos. Apesar disso, a cena parece transcorrer com muita velocidade. A razo principal disto que Leone imprime a sensao de velocidade no atravs dos cortes rpidos, mas do movimento incessante do personagem que corre sem parar por entre os tmulos , da cmera (que gira em velocidade, s vezes transformando os tmulos em um borro) ou de ambos, ao mesmo tempo. O efeito geral de pura energia. Leone inicia a cena com um trompe loeil. A tomada imediatamente anterior mostrara Tuco mergulhando para frente; o plano seguinte o mostra aterrissando sobre uma lpide (figura 3.237). Seria impossvel que ele, correndo em direo ao cemitrio, no tivesse visto o mar de tmulos que se estende at o horizonte. 268 No exato instante em que Tuco entra no enquadramento e atinge a lpide, o toque solene de um sino inicia a msica. O plano de abertura tem 56 segundos. O pistoleiro contempla o cemitrio (figura 3.238). A cmera recua e sobe ao mesmo tempo, em outro plano de grua que faz aluso a E o Vento Levou (1939). Eufrico, Tuco joga fora o mapa que informava a localizao do cemitrio (figura 3.239) e corre para frente, rumo ao centro (figura 3.240), enquanto a msica evolui. A composio musical no se resume a ficar em segundo plano narrativo, pontuando as aes do personagem; torna-se, ela mesma, a razo de a cena existir. Trata-se de uma msica feita explicitamente para ser ouvida pelo espectador, arrancando a cena da continuidade cronolgica do filme e colocando-a numa dimenso simblica e emocional. Alm disso, a sincronia alcanada entre os cortes, os mais sutis movimentos da cmera e a evoluo de melodia e harmonia minuciosa. A msica inicia com uma seqncia de quatro notas, repetida vrias vezes, executadas num piano; no exato momento em que Tuco se ajoelha e olha para frente, um obo comea a solar uma melodia lrica, enquanto uma seo de cordas entra em seguida para completar a harmonia, em segundo plano sonoro. Quando Tuco joga fora o mapa, emite um breve som de satisfao com a boca (podemos ouvir, ainda, o barulho das folhas de papel amassadas). Em contraponto a este grupo de sons diegticos, Morricone insere um segundo grupo de sons extra-diegticos: um fraseado percussivo seguido de uma nova badalada do sino, mais forte e prolongada. So duas incluses simultneas de elementos diegticos dentro da composio. A caixa, que introduz a percusso, um instrumento militar; o sino expressa o simbolismo religioso. Esses sons nos lembram que Tuco est dentro de um cemitrio militar. Se prestarmos ateno, ainda podemos ouvir o canto de pssaros em segundo plano. A msica faz um novo floreio, enquanto Leone injeta uma dose de ironia e humor negro, fazendo um cachorro entrar em quadro (figura 3.241) mais um trompe loeil. O co foge com um ganido. So os ltimos sons diegticos que ouvimos na prxima seo da cena, porque no instante seguinte o pistoleiro comea a correr por entre os tmulos. No momento exato em que Tuco comea a correr, dois fenmenos sonoros acontecem: primeiro, todos os sons diegticos (que ainda podamos ouvir em segundo plano sonoro) desaparecem; est claro que a cena adota, ento, o ponto de escuta subjetivo de Tuco, cuja ateno voltada para a tarefa de encontrar o tesouro afeta sua percepo, desviando-a inteiramente para esse objetivo, de modo que ele deixa de perceber todos os sons do ambiente. A composio de Morricone, nesse sentido, seria uma representao sonora das emoes que ele sente no decorrer da cena. 269 Figura 3.237: No exato instante em que Tuco atinge a lpide, um sino marca o incio da msica, que segue com um fraseado cclico de quatro notas ao piano ... Figura 3.238: ... e incorpora um obo, solando a pica melodia principal, enquanto uma seo de cordas faz a harmonia, a partir do momento em que ele se ergue. Figura 3.239: Eufrico com a descoberta do cemitrio, Tuco joga fora o mapa; possvel ouvir o canto dos pssaros, mixado em segundo plano da trilha sonora. Figura 3.240: A cmera se ergue e se afasta do personagem: pastiche do famoso movimento de grua de E o Vento Levou (1939), que Leone repete vrias vezes ... Figura 3.241: ... em seus filmes; os ganidos do cachorro negro que entra no quadro por baixo do frame so os ltimos sons diegticos ouvidos nesta parte da cena. Figura 3.242: Quando Tuco comea a correr entre os tmulos, os sons diegticos desaparecem e uma voz de soprano passa a solar a melodia, dando-lhe um ar sacro. Figura 3.243: Quando Tuco atinge o centro do cemitrio uma arena circular de pedras , os violinos passam ao primeiro plano do arranjo, executando a melodia. Figura 3.244: Leone corta para um close-up de Tuco, arfando de cansao e euforia, mas os sons diegticos de sua respirao no so ouvidos pelo espectador. Figura 3.245: Quando Tuco comea a correr em crculos, observando os tmulos mais de perto, um coral masculino introduzido: as vozes dos soldados mortos? Figura 3.246: O mar de lpides que quase no tem fim: um trecho em unssono (violinos, trompete, obo) sublinha o momento mais apotetico da msica. 270 Figura 3.247: Tuco corre lentamente, parecendo indeciso; um interldio musical mantm os violinos em ostinato, enquanto uma guitarra com wah-wah imita ... Figura 3.248: ... o grito do coiote (a gargalhada dos mortos?) e os rudos da diegese os passos no cascalho voltam a serem ouvidos brevemente, por um instante. Figura 3.249: Tuco est cada vez mais frentico; a percusso marcial nos lembra que estamos num cemitrio militar, enquanto os movimentos circulares ... Figura 3.250: ... da cmera e as tomadas do ponto de vista de Tuco transformam as lpides num borro; as tomadas so cada vez mais curtas e movimentadas, ... Figura 3.251: ... conduzindo a msica a um clmax apotetico, com sinos, trompetes, violinos e vozes masculinas atingindo as escalas mais agudas. Figura 3.252: De repente, um plano do cu azul com a cmera fixa interrompe o fluxo alucinante de imagens; o rosto de Tuco passa num borro e ento retorna, em ... Figura 3.253: ... close-up extremo, olhando fixamente para a cmera, com a expresso de xtase: ele finalmente encontrou o tmulo que estava procurando. Figura 3.254: No exato instante em que Leone corta para o close-up do tmulo, a msica termina, com uma interrupo abrupta que traz consigo o silncio. Em segundo lugar, um novo badalo de sino introduz mais um elemento musical: a voz de uma soprano feminina, que acrescenta dramaticidade. S ento, quando a msica evolui num crescendo, Leone comea a cortar (figuras 3.242 e 3.243). A voz passa a fazer a harmonia e abre espao para os violinos da orquestra, que solam esse trecho da composio. Quando Leone corta para um close-up de Tuco (figura 3.244), arfando, no ouvimos os sons da respirao, apenas vemos os movimentos de sua boca. 271 Enquanto Tuco comea a correr em crculos (figura 3.245), Morricone introduz um coral masculino no trecho que liga o corpo da composio ao seu clmax, em que a voz aguda da soprano retorna, dessa vez acompanhada de trompetes e de percusso militar. Esse trecho da msica incorpora diversos elementos que expressam do ponto de vista sonoro a idia do cemitrio militar: as vozes masculinas, a caixa, o trompete, o andamento marcial, o sino. O trecho termina com os vrios instrumentos soando em unssono (violinos, trompete, obo), sublinhando uma longa tomada em plano geral aberto (figura 3.246). O interldio da cano inicia com uma breve seo de violinos em ostinato, acompanhando planos mdios de Tuco correndo. Nesse ponto o pistoleiro parece indeciso; os sons diegticos retornam, sinalizando essa indeciso, e passa a ser possvel ouvir os passos de suas botas resvalando contra o cascalho. Uma guitarra eltrica executa as trs notas (F-SOL- R) que configuram o leitmotiv da resposta ao grito de coiote. Mas Tuco no desistiu. Os violinos evoluem acima da voz da soprano para uma releitura do trecho mais dramtico da composio, enquanto Tuco acelera e deixamos novamente de ouvir os sons diegticos. A cena entra em seu momento mais frentico. Leone mescla tomadas longas (figuras 3.247 e 3.248), que mostram o pistoleiro correndo entre as lpides, e tomadas curtas de cmera subjetiva, que simulam o olhar de Tuco girando entre os tmulos, em movimentos circulares cada vez mais rpidos. A harmonia entrelaa vozes masculinas, trompetes e violinos (que se alternam solando a melodia), enquanto o andamento marcial acentua o aumento gradual da dramaticidade; a evoluo da msica est em sincronia com o processo de acelerao tanto da montagem (planos cada vez mais curtos) quanto dos movimentos de cmera (cada vez mais rpidos), at que tudo o que conseguimos ver so borres (figuras 3.249 e 3.250). Perto do final da cena, a execuo da msica evoluiu at as escalas mais agudas dos instrumentos; uma srie de badalos de sinos se junta massa sonora liderada pelos violinos, com toques de trompete e percusso militar em contraponto. Ento, Leone fora numa interrupo abrupta no ritmo alucinante das imagens, justapondo a uma srie de planos da cmera se movendo furiosamente em crculo (figura 3.251) a um plano fixo do cu azul (figura 3.252); aps dois segundos, o rosto de Tuco entra em quadro, em close-up extremo, olhando diretamente para a cmera (figura 3.253). No mesmo instante a msica pra, e Leone corta para um close-up de um tmulo (figura 3.254). Um silncio sepulcral (sem trocadilhos) sublinha a mensagem: o tesouro. Casamento meticuloso entre som e imagem, orquestrao neo-romntica com instrumentos exticos e rejeio ao princpio da inaudibilidade da msica, elementos sonoros 272 oriundos da diegese. Todos os recursos estilsticos recorrentes na msica dos filmes de Leone esto presentes nesta passagem, bem como vrias das ferramentas de estilo visual, sonoro e narrativo: ironia, alusionismo, perfil do heri, worldmaking, close-ups extremos, composies recessivas com profundidade, trompe loeil, rudos naturais amplificados. A cena funciona como um catlogo das principais ferramentas estilsticas de Leone. Aqui, chegamos ao final de nossa anlise flmica. Tendo demonstrado o padro recorrente de todas as ferramentas de estilo e narrativa, e explicado as diversas influncias que originaram a presena de cada um desses recursos estudados dentro dos filmes de Leone, podemos localizar com mais preciso, agora, o papel exercido por ele na reviso e sntese de diversos elementos dos esquemas constituintes da potica da continuidade clssica, em direo continuidade intensificada. No quarto e ltimo captulo, a seguir, vamos mostrar como alguns desses recursos passaram a integrar o repertrio de tcnicas disposio dos artistas, nas dcadas seguintes, em alguns casos tornando-se elementos proeminentes dos esquemas circulantes da narrativa cinematogrfica. 273 4. O legado de Leone 4.1 Continuidade intensificada e Gerao New Hollywood Aps o final da Segunda Guerra Mundial, a freqncia de espectadores s salas de cinema caiu, todos os anos, por duas dcadas. Por exemplo, 80,5 milhes de espectadores pagaram bilhetes nos Estados Unidos para entrar em cinemas, em 1946; o nmero caiu para 30 milhes em 1960 (GOMES DE MATTOS, 2006, p. 118). Naturalmente, as razes dessa crise podem ser explicadas por uma rede de contextos scio-culturais, histricos, econmicos, tecnolgicos e polticos. Essa rede inclui a concorrncia da televiso e de outras formas de lazer, a quebra do monoplio dos grandes estdios em 1948-49, a ascenso dos adolescentes como categoria importante de consumo na segunda metade dos anos 1950, e outras. O surgimento da potica da continuidade intensificada, nos anos 1960, deve ser compreendido como uma reao a essa crise; se no diretamente, com certeza de forma indireta, j que foi a reduo do nmero de espectadores que levou os grandes estdios de Hollywood a dar oportunidades para uma nova gerao de cineastas a primeira formada em universidades de Cinema que, por sua vez, rapidamente introduziu no repertrio de tcnicas estilsticas e narrativas toda uma srie de recursos que surgia na Europa desde o incio dos anos 1960, e que os cineastas veteranos no haviam assimilado. Inclui-se, entre esses novos recursos, a maior parte das ferramentas de estilo e narrativa recorrentes em Leone. De fato, no preciso ser um historiador para perceber que houve modificaes significativas nas prticas estilsticas e narrativas dos cineastas desde ento. Se um leigo comparar ttulos realizados nos anos 1940-1950 e realizaes posteriores, notar diferenas flagrantes. Assistamos a Sangue de Pantera (Cat People, Jacques Tourneur, 1942) e sua refilmagem A Marca da Pantera (Cat People, Paul Schrader, 1982); ou as duas verses de O Destino Bate Sua Porta (The Postman Always Ring Twice, Tay Garnett, 1946; e Bob Rafelson, 1981). Chegaremos, sem grande esforo, ao mesmo vaticnio de David Bordwell: Os filmes norte-americanos mudaram enormemente. Tornaram-se mais sexies, mais profanos, mais violentos; piadas sobre peidos e kung fu esto por todo lugar. A indstria se transmutou num hipoptamo corporativo, enquanto novas tecnologias transformaram a produo e a exibio. E, para chegar minha preocupao central, ao longo das mesmas dcadas algumas estratgias narrativas de enredo e estilo foram trazidas proeminncia. (BORDWELL, 2006, p. 1). 274 As alteraes sugeridas por Bordwell foram graduais. A potica da continuidade intensificada no consiste de um esquema fechado, mas de um conjunto de esquemas narrativos e estilsticos que, desde ento, foram (e continuam sendo) constantemente revisados. Essas revises tm sido impulsionadas pelos mais variados limites e pr-condies, que vo desde alteraes nos modos de financiamento de filmes (que hoje feito com dinheiro oriundo de investidores de vrios pases, incluindo naes do Oriente Mdio) at as incessantes inovaes nas tecnologias de produo (cmeras digitais de alta definio, gravadores digitais), circulao (filmes distribudos por redes de fibra tica, downloads atravs da Internet) e projeo (sistemas 3D digitais, IMAX, TVs de alta definio, Blu-Ray). Todas essas alteraes continuam a intensificar a continuidade intensificada: Podemos esperar por variaes cada vez mais extravagantes de estilo. Talvez os filmes do sculo XXI sejam os filmes dos anos 1980, s que mais exagerados (BORDWELL, 2006, p. 179). Esse ltimo trecho consiste de uma parfrase de outra frase presente no captulo anterior, quando ele dizia que os filmes dos anos 1980 eram os filmes dos anos 1960 intensificados. Bordwell fundamenta a sua tese de que a potica do cinema contemporneo nasceu nos anos 1960. Nesse sentido, a pesquisa que aqui se conclui funciona como estudo de caso do perodo mais delicado de transio dos esquemas clssicos de construo da narrativa cinematogrfica para os esquemas intensificados, focalizando a obra de um cineasta cuja contribuio para a consolidao dessa nova potica tem sido pouco observada. Neste ltimo captulo, nossa meta principal ser relacionar alguns dos padres recorrentes de estilo e narrativa na obra de Sergio Leone ao repertrio de esquemas da continuidade intensificada, mostrando como os diretores que vieram depois de Leone recuperaram e revisaram suas prticas estilsticas e narrativas. Para alcanar esse objetivo, detalharemos a influncia de Leone nos cineastas que emergiram a partir dos anos 1960, conhecidos como a gerao New Hollywood: os movie brats Francis Ford Coppola, Brian De Palma, George Lucas, Steven Spielberg, Martin Scorsese, John Milius, William Friedkin, Peter Bodganovich, Arthur Penn, Sam Peckinpah e outros. Os filmes desses diretores introduziram no sistema dos grandes estdios dos EUA as ferramentas estilsticas e narrativas que nasceram dos esquemas revisados pelos diretores europeus. Foi atravs deles que a potica da continuidade intensificada tornou-se globalizada. Por isso, importante traar paralelos entre os filmes de Leone e a obra dessa gerao. Tal tarefa pode nos ajudar a compreender com mais preciso a contribuio de Leone ao repertrio estilstico e narrativo do cinema contemporneo, cujos cineastas, por sua vez, tambm tm revisado essas ferramentas, sempre a partir dos limites e pr-condies impostos 275 por fatores como a evoluo tecnolgica, a competio com novas formas de entretenimento (videogames, Internet), os sistemas globalizados de produo cinematogrfica e outros. A emergncia dos movie brats, nos anos 1960, aconteceu de maneira bastante rpida. A transio dos veteranos para os novos diretores foi abrupta, e esse fato est diretamente ligado, como j dissemos, queda da freqncia do pblico aos cinemas. Pressentindo que a platia dos anos 1960 era mais jovem e que os filmes realizados pelos diretores veteranos pareciam no dialogar com esse pblico, os executivos da indstria apressaram a apario de uma nova gerao de cineastas, capaz de falar ao novo pblico com naturalidade. Esses diretores jovens eram admiradores do neo-realismo e da Nouvelle Vague: eles se afastavam do clssico para dialogar com o modernismo europeu (MASCARELLO, 2006, p. 336). Leone pouco citado entre os diretores influentes dos anos 1960, mas seus filmes exerceram forte impacto sobre a gerao New Hollywood. Esse impacto no apenas aparece nos filmes, como veremos logo mais, mas foi reconhecido diretamente por alguns deles. John Milius lembra que a seqncia do cemitrio de Trs Homens em Conflito era analisada plano- a-plano durante aulas de edio, na University of South California, para que os alunos pudessem observar o uso que Leone fazia dos close-ups extremos e a sincronia entre a msica e os cortes (FRAYLING, 2000, p. 398). John Carpenter usou o tema de Harmonica na cerimnia do prprio casamento (FRAYLING, 2005, p. 192). Ele contrataria Morricone para fazer a msica de O Enigma de Outro Mundo (The Thing, John Carpenter, 1982), e incluiria uma das mais famosas linhas de dilogos de Era uma Vez no Oeste (ou seja, pastiche) em Assalto 13 DP (Assault on Precinct 13, John Carpenter, 1976). No caso desse ltimo, Carpenter incorporou vrios recursos da obra de Leone, alguns deles atravs do alusionismo: perfil do heri (o protagonista do filme um assassino que lidera vrios policiais na reao ao cerco de uma delegacia de polcia por uma gangue de rua), representao grfica da violncia, close-ups e composies recessivas. Carpenter explicita a influncia de Leone atravs de dilogos colocados na boca do assassino (quando perguntado o que o levou a matar algum, ele responde que sempre teve algo a ver com a morte, citando uma frase clebre do citado filme de Leone. A cena mais polmica do filme, graas representao da violncia, rene quase todas essas ferramentas: um membro da gangue de rua mata uma garota, em frente a um carrinho de sorvetes, com um tiro no peito. O instante sangrento mostrado explicitamente da a polmica gerada pelo filme, pois mostrar o assassinato de crianas era um tabu havia dcadas no cinema norte-americano. H diversas composies recessivas (figuras 4.2 e 4.3) construdas moda de Leone. Uma delas cria uma moldura (figura 4.5) a partir da nuca de 276 Figura 4.1: Criana se dirige ao caminho de sorvete; composio recessiva dispe figuras (rvore, criana, veculo) a diferentes distncias da cmera. Figura 4.2: Carpenter filma o sorveteiro atendendo criana numa composio recessiva tpica de Leone, s que com o segundo plano ligeiramente fora de foco. Figura 4.3: Um integrante da gangue de rua surge de repente no contra-plano, numa composio simtrica que mantm a cabea do sorveteiro em close-up. Figura 4.4: Carpenter compe a imagem sempre em dois planos de profundidades distintas, com a ao variando entre o primeiro e o segundo planos. Figura 4.5: O terrorista atira no sorveteiro e o observa deitado no cho: composio recessiva com moldura, em que a cabea do agressor est fora de foco. Figura 4.6: Quando a criana aparece de novo na janela oposta do carro, o terrorista (enquadrado em close-up mdio) atira nela sem esboar qualquer reao. Figura 4.7: Segurando sorvete, menina atingida no peito, em close-up mdio: representao grfica da violncia intensificada, pois cometida contra criana. Figura 4.8: Numa composio idntica de abertura da cena, os membros da gangue deixam a cena do crime com dois corpos estendidos no cho. um personagem, da mesma maneira que Leone fazia em seus filmes. Carpenter, contudo, no replica literalmente o recurso, mas o revisa, adaptando-o tecnologia disponvel: filmando 277 com lentes teleobjetivas, que reduzem a profundidade de campo, ele mantm uma das duas camadas da imagem s vezes o primeiro plano, s vezes o segundo fora de foco. George Lucas telefonou a Leone enquanto montava Guerra nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977), pedindo dicas sobre a sincronia entre msica e imagens (FRAYLING, 2005, p. 86). Kubrick admitiu que a representao da ultra-violncia vista em Laranja Mecnica (A Clockwork Orange, Stanley Kubrick, 1971) tinha sido inspirada pelos westerns de Leone (COUSINS, 2004, p. 289). Durante a pr-produo de Barry Lyndon (Stanley Kubrick, 1975), o mesmo Kubrick conversou com Leone, fazendo perguntas sobre as tcnicas que ele usava para trabalhar com msica gravada antes das filmagens, de forma a perseguir a sincronia existente entre os fluxos visual e sonoro (FRAYLING, 2005, p. 82). Scorsese admitiu a influncia de Leone no apenas nele mesmo, mas em vrios dos colegas de gerao: No h dvida de que Era uma Vez no Oeste influenciou bastante a nossa gerao dos anos 1970 Spielberg, Lucas, Milius, John Carpenter mas, falando por mim, a maior influncia est na coreografia dos planos, na sincronia destes com a msica, e no tempo interno de certos momentos, como os cortes que vo e vm entre um rosto e uma mosca, o chapu e a goteira, todas aquelas imagens da abertura de Era uma Vez no Oeste. (...) Estilisticamente, isso encontrou seu caminho em filmes como Touro Indomvel [Raging Bull, 1980], A Cor do Dinheiro [The Color of Money, 1986] e outros. (SCORSESE, 2005, p. 202-203). O exame detalhado de cenas dos filmes de Scorsese nos mostra como Scorsese revisou alguns dos esquemas presentes na obra de Leone. Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) adaptou vrias ferramentas para o submundo da Nova York dos anos 1970. O tiroteio que encerra o filme transpe, de certa maneira, a atmosfera inspita dos westerns de Leone para uma metrpole contempornea. A cena consiste no clmax da histria: o veterano de guerra Travis Bickle (Robert De Niro), com um arsenal de revlveres escondidos sob um casaco, invade o motel onde vive a prostituta-mirim Iris (Jodie Foster). O resgate termina de forma hiper-violenta, com Travis assassinando trs homens e sendo baleado a queima-roupa. Em fruns de discusso, como o existente no Internet Movie Database, espectadores sugeriram que Travis morre no tiroteio, e que o eplogo do filme uma cena em que ele cumprimentado como heri consiste numa fantasia post mortem, caracterizando uma narrativa subjetiva, que Bordwell lista como um dos recursos da continuidade intensificada. Scorsese revisa vrias ferramentas estilsticas e narrativas encontradas em Leone. A cena, que dura quatro minutos e um segundo (241 segundos), contm 55 planos. A aproximao da cmera em relao ao dramtica, fragmentando o espao flmico, perceptvel. Scorsese usa 12 planos gerais (figuras 4.17 e 4.19) e 14 close-ups, sendo nove de 278 rostos e dois de pistolas (figuras 4.9, 4.10, 4.13 e 4.15). Os outros trs so close-ups extremos que focalizam boca, nariz e olhos, em enquadramentos que remetem a Leone (figura 4.20). Ao todo, Scorsese utiliza seis planos com composies recessivas com moldura (figuras 4.11, 4.16, 4.17 e 4.19), construdas moda de Leone: encenao em dois planos distintos, com a figura em primeiro plano servindo de moldura para a ao dramtica ao fundo, filmada em profundidade de campo. Por causa de limitaes tecnolgicas relacionadas ao equipamento e ao tipo de iluminao, Scorsese no alcana a mesma profundidade de campo de Leone, de forma que quase sempre o elemento em primeiro plano est fora de foco ou seja, trata-se de uma reviso da soluo estilstica de Leone, impulsionada por limites tecnolgicos, da mesma forma que havia acontecido com Carpenter em Assalto 13 DP (e aconteceria tambm com o prprio Leone em Era uma Vez na Amrica, como j vimos antes). Do ponto de vista sonoro, os rudos naturais amplificados aparecem em toda a cena, e a tcnica de guiar a ateno do espectador para determinadas reas da imagem atravs dos sons fora do quadro usada em dois momentos, para alertar personagens sobre a chegada de outros personagens. H perodos de silncio, em que se ouve apenas os sons da respirao e dos movimentos de Travis; a msica de Bernard Herrmann introduzida em sincronia com o ltimo plano da cena, no exato instante em que Travis perde a conscincia. O casamento meticuloso entre as bandas sonora e visual tambm evoca a obra de Leone. O realismo ouvido nos rudos tambm aparece na direo de arte e nos cenrios. As paredes esto caindo aos pedaos, os degraus de madeira da escada rangem (figura 4.12) como se fossem desabar a qualquer momento (BISKIND, 2009, p. 313). fundamental observar o perfil do protagonista. Travis Bickle, como os personagens de Clint Eastwood nos westerns de Leone, um anti-heri, um homem perturbado, um pria que vive margem da sociedade, freqentando cinemas pornogrficos e transitando de madrugada pelos subrbios (e odiando cada minuto disso, o que contribui para o clima crescente de parania). Ele taciturno e violento: mata um homem desarmado (o porteiro) com um tiro na cabea, na frente de uma criana de 12 anos. Essa cena no seria permitia antes da queda do Cdigo Hays, 1968. Muito menos a cena teria sido filmada da mesma maneira, em que os tiroteios arrancam dedos de mos (figura 4.9), explodem miolos de um homem contra a parede (figura 4.18), furam buracos de bala que jorram sangue (figuras 4.14) e mostram facas atravessando partes do corpo (figuras 4.16) tudo isso com a cmera bem prxima dos atores. A representao da violncia grfica, e vai um passo alm da verossimilhana obtida nos filmes de Leone, revisando-a e intensificando-a. 279 Figura 4.9: Um tiro do heri num homem desarmado (e mostrado num close-up) explode a mo e os dedos da vtima: representao mais realista da violncia. Figura 4.10: Close-up do rosto irado de Travis, salpicado de sangue: a cena completa contm 14 close-ups, constituindo um quarto de todas as tomadas. Figura 4.11: Travis acerta o cafeto no estmago, o impacto da bala atirando-o para trs: encenao e maquiagem reforam o realismo grfico da violncia. Figura 4.12: Composio em profundidade de campo, com o revlver em primeirssimo plano servindo de moldura: composio pictrica tpica de Sergio Leone. Figura 4.13: Close-up do rosto destaca o sangue no pescoo: enquadramento e representao da violncia so elementos de estilo recorrentes em Leone. Figura 4.14: Cliente da prostituta atingido duas vezes, uma no rosto e uma no peito, os buracos da bala jorrando sangue: violncia cada vez mais grfica. Figura 4.15: Com o pescoo coberto de sangue, Travis se levanta e entra no quarto, sendo focalizado num close- up extremo; ele seguido pelo porteiro, que ... Figura 4.16: tenta revidar, mas tem a mo esquerda atravessada por faca: representao grfica da violncia e composio recessiva com encenao em diagonal. 280 Figura 4.17: Aps dominar o porteiro, Travis se levanta e encosta a arma em seu rosto; composio recessiva em profundidade de campo enquadra Iris ao fundo. Figura 4.18: Travis explode a cabea do porteiro com tiro, espalhando os miolos pela parede: representao grfica da violncia vingou aps o fim do Cdigo Hays. Figura 4.19: Depois do ataque, Travis senta no sof e tenta o suicdio; a chegada da polcia mostrada numa composio recessiva com moldura, a la Leone. Figura 4.20: Scorsese corta para um sangrento close-up extremo ao estilo de Leone: cnico e irnico, Travis finge balear a prpria cabea, com um sorriso nos lbios. Quanto ao alusionismo, Scorsese filma os tiroteios em ngulos que os fazem parecidos com duelos, atravs de composies recessivas (figuras 4.12 e 4.19) com pistolas servindo de moldura, em primeiro plano. O pastiche se fez presente de forma ostensiva: os close-ups do copo de gua com Alka-Seltzer no quarto de Travis um motivo visual importante, embora no aparea na cena analisada foram includos como citao visual a Duas ou Trs Coisas que Eu Sei Sobre Ela (Deux ou Trois Choses que Je Sais D'elle, Jean-Luc Godard, 1963). Brian De Palma, citado por Nol Carroll (1998) como um dos principais cineastas americanos a adotar o alusionismo como ferramenta de estilo, recorreu a recursos comuns em Leone com mais nfase do que Scorsese e Carpenter. A cena que constitui o clmax dramtico de Sndrome de Caim (Raising Cain, Brian De Palma, 1992), por exemplo, foi quase inteiramente filmada atravs de close-ups (figura 4.22), a maioria deles em verso extrema (figuras 4.21, 4.23 e 4.27), e planos-detalhes (figura 4.24). De Palma s insere planos gerais (figuras 4.29 e 4.30) quando a cena j est prxima de terminar, e eles so poucos. Nesta cena especfica, De Palma usou 66 close-ups, dos quais 48 so close-ups extremos que mostram apenas um rosto ou uma mo, numa cena que dura quatro minutos e 32 segundos (272 segundos). A durao mdia de um plano, nesta cena, de apenas 2,3 segundos; e nada menos do que 55,93% das tomadas so close-ups. A tcnica de fragmentar o 281 Figura 4.21: Close-up extremo de um dos personagens inicia a cena do clmax de Sndrome de Caim (1992); no contra-plano, vemos a outra protagonista da cena, ... Figura 4.22: ... uma mulher, enquadrada num close-up normal; um total de 66 close-ups foram includos na edio final, o que representa 55,95% dos planos. Figura 4.23: A criana que est sendo raptada, nos braos do homem, tambm enquadrada em close-up extremo, produzindo fragmentao do espao flmico. Figura 4.24: A me da criana segura uma navalha e ameaa o seqestrador; o objeto tambm enquadrado por De Palma atravs de um close-up extremo. Figura 4.25: De Palma corta para um plano mdio subjetivo, simulando a viso da mulher e permitindo ao espectador inferir as posies dos personagens. Figura 4.26: Quando o seqestrador chama o elevador, a composio recessiva usa uma mo para emoldurar a ao em segundo plano: trompe loeil cinematogrfico. Figura 4.27: Brian De Palma recorre a close-ups ainda mais extremos para sinalizar o aumento da tenso, quando o raptor est prestes a fugir pelo elevador. Figura 4.28: A outra personagem consegue alcan-lo e enfia a navalha no pescoo dele, em mais um close-up, produzindo uma representao realista da violncia. 282 Figura 4.29: Quando o bandido deixa a criana (cuja roupa aluso a Inverno de Sangue em Veneza) cair, De Palma insere um dos primeiros planos gerais d a cena ... Figura 4.30: ... e corta para um novo plano geral, inserindo laranjas como aluso ao filme O Poderoso Chefo (1992), em que a fruta simbolizava a morte. espao flmico para produzir o efeito de tempo dilatado e ampliar o suspense, como j vimos, era uma das ferramentas importantes para criar tenso nos westerns de Leone. Na prtica, essa fragmentao do espao flmico revela uma mudana gradual que caracteriza a potica da continuidade intensificada. Barry Salt (2009, p. 371) afirma que o nmero de close-ups extremos dobrou em quatro dcadas (de 1959 a 1999), tendo se estabilizado depois desse perodo. Em compensao, a quantidade de planos mdios e planos gerais abertos (usados por cineastas de todos os pases) caiu pela metade. Direta ou indiretamente, quando De Palma decupa a cena dessa maneira, est pagando tributo aos filmes de Leone que, como j vimos, usava de trs a quatro vezes mais close-ups extremos, nos anos 1960, do que qualquer outro cineasta. De Palma tambm inclui composies recessivas em profundidade de campo com moldura, muito semelhantes quelas elaboradas por Leone. A mais ostensiva delas mostra uma mo em primeirssimo plano (figura 4.26) enquanto duas testemunhas do crime observam, em segundo plano distante e ntido, a tentativa de seqestro. A tomada evoca o trompe loeil caracterstico de Leone. A representao da violncia grfica, e fica explcita no plano-detalhe de uma navalha sendo enfiada no pescoo de um homem (figura 4.27). Para completar, De Palma introduz aluses a outros filmes: a O Poderoso Chefo (1972), atravs da incluso de laranjas (figuras 4.29 e 4.30) no exato instante em que um dos personagens uma criana cai do parapeito de uma passarela (no filme de Coppola, a presena de laranjas sempre antecede a morte de algum personagem); e a Inverno de Sangue em Veneza (Dont Look Now, Nicolas Roeg, 1973), na figura da menina loira vestida com uma capa de chuva vermelha, cuja imagem o leitmotiv visual do suspense de Nicolas Roeg. Entre as ferramentas de estilo recorrentes em Leone que foram integradas ao repertrio de esquemas dos diretores da gerao New Hollywood, esto: execues sangrentas, close- ups extremos, composies recessivas, uso de rudos naturais amplificados e protagonistas amorais em O Poderoso Chefo (1972, figuras 4.31 e 4.32); close-ups extremos, hiper- 283 Figura 4.31: Coppola recorre composio recessiva tpica de Leone, usando parte do ombro do ator como moldura em primeiro plano, emO Poderoso Chefo. Figura 4.32: A representao grfica da violncia, o uso criativo dos sons fora do quadro e o uso de close-ups de rostos tambm so marcas que remetem a Leone. Figura 4.33: Scorsese fragmentou o espao flmico extraordinariamente atravs do uso de close-ups extremos e planos-detalhes em Touro Indomvel. Figura 4.34: A violncia grfica, a cmera lenta e os rudos naturais amplificados so recursos oriundos de Leone que aparecem nas lutas de Touro Indomvel. Figura 4.35: Heris de Sem Destino so motoqueiros que traficam cocana: protagonistas dos filmes da gerao New Hollywood so amorais e individualistas. Figura 4.36: Vigarista que protagoniza Lua de Papel ensina a filha uma criana de nove anos que fuma a ganhar a vida dando golpes em pessoas ingnuas. Figura 4.37: Close-ups extremos da menina possuda pelo demnio em O Exorcista acentuam a acuidade dos ferimentos produzidos pela maquiagem em Hollywood. Figura 4.38: Unhas pintadas, robe feminino e sobrancelhas feitas: figurinos de Um Dia de Co injetam realismo nos close-ups extremos dos personagens. 284 Figura 4.39: Figurinos dos personagens de Barry Lyndon surgiram a partir de pesquisa iconogrfica detalhada; vestidos e chapus reais do sculo XVIII foram usados. Figura 4.40: Representao realista da violncia e composies recessivas com profundidade de campo podem ser encontradas em Laranja Mecnica. Figura 4.41: Brian de Palma criou diversas composies recessivas com profundidade de campo em A Fria, usando o rosto de algum personagem como moldura ... Figura 4.42: ... assim como utilizou diversos close-ups extremos de olhos e bocas para intensificar a ao dramtica nos momentos de maior tenso. Figura 4.43: Spielberg usou a profundidade de campo para compor tomadas em que os personagens encenavam a ao a distncias diferentes da cmera... Figura 4.44: ... enquanto as lentes grande-angulares possibilitaram o uso de rostos em close-up como molduras, criando o trompe loeil tpico de Leone. Figura 4.45: Composio recessiva com moldura em O Imprio Contra-Ataca: pastiche de antigos westerns e aventuras em seriado produzidas nos anos 1930 e 1940. Figura 4.46: Alm de usar close-ups extremos, Spielberg montou imagens para sincronizar minuciosamente os cortes, na cena das bicicletas voadoras, com a msica. violncia e uso de rudos naturais amplificados em Touro Indomvel (1980, figuras 4.33 e 4.34); protagonistas amorais como a dupla de motoqueiros traficantes de drogas em Sem 285 Destino (Easy Rider, Dennis Hopper, 1969, figura 4.35) e o vigarista que ensina truques sujos prpria filha em Lua de Papel (Paper Moon, Peter Bodganovich, 1973, figura 4.36); close- ups extremos e msica minimalista com influncias do concretismo em O Exorcista (1973, figura 4.37); direo de arte realista e abundncia de single shots, muitas vezes em close-up, em Um Dia de Co (Dog Day Afternoon, Sidney Lumet, 1975, figura 4.38); acuidade histrica em Barry Lyndon (1975, figura 4.39) e novamente a violncia grfica em Laranja Mecnica (1971, figura 4.40); composies recessivas em profundidade de campo com moldura, muitas vezes combinadas com close-ups extremos de olhos, em A Fria (The Fury, Brian De Palma, 1978, figuras 4.41 e 4.42); composies recessivas em profundidade de campo que muitas vezes criavam trompe loeil cinematogrficos, como em Tubaro (Jaws, Steven Spielberg, 1975, figuras 4.42 e 4.43); pastiche que alude a antigos westerns e aventuras infanto-juvenis dos anos 1930 e 1940 na srie Guerra nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977-1980-1983, figura 4.44), cuja msica persegue o mesmo casamento meticuloso entre som e imagens visto em ET O Extraterrestre (ET The Extra-terrestrial, Steven Spielberg, 1982, figura 4.45); Nesse ltimo caso, o diretor alterou a montagem final apenas para sincronizar a modulao do arranjo de John Williams ao fluxo de imagens de toda a seqncia final, que inclui a cena em que o extraterrestre faz as bicicletas voarem 30 30 Esta informao registrada nos extras do DVD do filme, em entrevistas com Spielberg e John Williams. . Por que os diretores dos anos 1970 estavam adotando as tcnicas estilsticas e tticas narrativas que surgiam na Europa, a exemplo dos recursos de Leone? O fenmeno no pode ser relacionado apenas reduo do nmero de espectadores. A influncia desse fenmeno nas novas prticas estilsticas foi indireta (afinal, como Bordwell nos lembra, o esprito do tempo no liga a cmera), na medida em que apressou a emergncia de diretores mais jovens. Um dos contextos scio-culturais que deve ser mencionado como explicao parcial para o desenvolvimento da continuidade intensificada est a influncia crescente da televiso. Nos anos 1960, os filmes at ento vetados pelos grandes estdios para exibio na TV comearam a ser mostrados na tela pequena. Por isso, os chefes de produo de todos os estdios solicitaram aos diretores que revisassem seus procedimentos tcnicos, concebendo os filmes como obras seriam exibidas em telas de diferentes tamanhos. O resultado dessas recomendaes que os diretores passaram a aproximar cada vez mais a cmera da ao dramtica, utilizando mais close-ups, planos mdios e single shots (BORDWELL, 2006, p. 148-149). A televiso explica o aumento de planos prximos, que permitiam a melhor compreenso da ao dramtica por parte dos espectadores. 286 O surgimento de novos equipamentos cmeras e gravadores de som portteis, novas lentes de distncias focais variveis, pelculas mais sensveis luz, mquinas de edio no- lineares, Steadicam gerou revises constantes das prticas estilsticas, desde os anos 1970. O aspecto comum em todas essas revises que, cada vez mais, os diretores jovens procuravam capturar a ateno dos espectadores de maneira mais intensa, de forma a evitar sua disperso. Como se sabe, ver um filme na TV um ato que favorece bem mais a disperso do que fazer o mesmo numa sala de cinema. As inovaes tcnicas na rea do som seguiram esse princpio: fisgar a ateno do espectador com mais nfase. Uma maneira de fazer isso era usar mais os efeitos sonoros amplificados, objetivo facilitado pelo surgimento, em 1975, de um processo eletrnico de reduo do rudo natural que escapava da pelcula por causa do atrito com o projetor eletrnico. O Dolby NR (sigla de noise reduction) logo ganhou um upgrade sob a forma do sistema Dolby Stereo, no qual filmes registrados em pelcula de 35 milmetros podiam ter trilhas sonoras reproduzidas em at quatro canais independentes (SERGI, 2004, p. 27). As possibilidades criativas abertas por essas tecnologias levavam a novas revises dos esquemas de construo narrativa no cinema, sempre em direo potica intensificada. Como os recursos desenvolvidos por Leone apontavam na mesma direo, muitas das suas solues para problemas de representao foram adotadas e, em muitos casos, revisadas ou adaptadas pelos novos cineastas. Nesse ponto, Bordwell chama a ateno para um aspecto que revela a importncia do cinema de gnero para a constituio da potica da continuidade intensificada: dentro da histria do cinema, a origem de novos recursos estilsticos e narrativos muitas vezes pode ser rastreada dentro de filmes de gnero. Isso havia acontecido, por exemplo, no princpio dos anos 1940, quando o uso de iluminao chiaroescuro e de ngulos virtuosos de cmera apareceram antes nos thrillers B, migrando s depois para dramas e produes classe A, que so normalmente filmes mais conservadores, do ponto de vista estilstico. Bordwell cita outros dois motivos para explicar o fenmeno: filmes de gnero visam atingir um pblico geralmente mais jovem (e mais receptivo a inovaes); e seus diretores tm mais liberdade para experimentar, pois trabalham com oramentos menores (BORDWELL, 2006, p. 158). De fato, o cinema de gnero tem sido tratado pelos estdios de Hollywood, durante muitas dcadas, como campo de testes em que os diretores podem se desenvolver, antes de migrarem para produes maiores e mais ambiciosas em termos de pblico. A mesma lgica aplicada ao desenvolvimento de novos recursos estilsticos: eles so postos prova primeiro em filmes menores, normalmente objetos de consumos segmentados, antes de passarem a ser 287 adotados nas maiores produes. Ao lado das pr-condies tecnolgicas (as vantagens do Techniscope em relao aos problemas de foco, por exemplo) e scio-culturais (censura, modo de produo), esse raciocnio ajuda a explicar porque Sergio Leone pde levar suas prticas estilsticas e narrativas a nveis que s depois foram adotados em Hollywood. Nos anos 1970, os grandes estdios tambm passaram a visar um pblico-alvo cada vez mais jovem. Essa percepo levou emergncia do fenmeno do blockbuster, e tambm auxiliou no gradual reconhecimento crtico dos filmes de gnero. Um dos diretores beneficiados por isso foi William Friedkin. Operao Frana (The French Connection, William Friedkin, 1972), um thriller protagonizado por um detetive misgino, ganhou cinco Oscar naquele ano, inclusive o de melhor filme. Foi uma das primeiras vezes na histria da premiao que um filme policial (ou seja, de gnero) abocanhou os principais trofus. Esse filme contm uma famosa cena de perseguio de carro (encerrada, alis, com a execuo de um bandido a queima-roupa e pelas costas, da maneira cruel que os personagens de Clint Eastwood costumavam agir nos westerns de Leone); a cena consiste praticamente em um catlogo de demonstrao de tcnicas da continuidade intensificada. Vrias delas j apareciam no repertrio de Leone e foram submetidas a processos de reviso por Friedkin. A cena tem oito minutos e 38 segundos (538 segundos) e utiliza 152 planos; mdia de 3,5 segundos por plano, que caracteriza montagem veloz, mesmo para a poca. Ela mostra o detetive Popeye Doyle (Gene Hackman) perseguindo, de carro, um trem suspenso que liga os bairros de Coney Island e Manhattan (EUA). Dentro do trem est um assassino (Marcel Bozzuffi). Friedkin alterna trechos que mostram a direo frentica de Doyle com outros que focalizam os esforos do criminoso para despistar o detetive. Em busca de realismo, Friedkin filmou em locao, numa linha de metr cedida pela Prefeitura de Nova York. A direo de arte determinou que figurantes vestissem as prprias roupas, e as ruas foram deixadas como estavam, sem retoques (figuras 4.43, 4.59 e 4.52). No h nenhum plano registrado com cmera fixa, grua ou dolly; todos foram captados com cmera na mo, com constantes reenquadramentos e sacolejos. H na cena 35 close-ups. Isso corresponde a 23,02% das tomadas, ou uma em cada quatro (figuras 4.50, 4.51, 4.54 e 4.55). Existem dois close-ups extremos de olhos, tpicos de Leone (figura 4.57). H 18 composies recessivas, sobretudo tomadas filmadas dentro do carro (a nuca de Hackman serve de moldura para dar profundidade ao movimento em segundo plano, como nas figuras 4.47 e 4.56) e do trem (figuras 4.52 e 4.58), com partes da figura do criminoso funcionando com o mesmo propsito. 288 Figura 4.47: Composio recessiva, com a cmera colocada no banco de trs do carro, mostra o detetive invadindo a contramo para poder seguir o trem ... Figura 4.48: ... onde est o assassino profissional, abordado por um policial que o viu entrar armado no veculo, se encaminha para a cabine do condutor. Figura 4.49: Ele atira no policial, acertando-o na barriga, que jorra sangue: a representao da violncia bastante realista, como nos filmes de Leone. Figura 4.50: A montagem alternada focaliza o rosto de Popeye Doyle por trs do vidro do carro: close-up extremo do rosto para enfatizar a emoo do policial. Figura 4.51: O assassino domina o condutor do trem, enquadrado num close-up extremo; ele obriga o homem a seguir em frente sem parar em nenhuma estao, ... Figura 4.52: ... o que provoca reclamaes dos passageiros, que passam a ser ameaados pelo bandido: composio recessiva com profundidade de campo. Figura 4.53: Dubl atinge um carro que atravessa seu caminho: o veculo era de um morador do bairro que no sabia das filmagens em locao (worldmaking). Figura 4.54: Popeye Doyle grita ao observar uma mulher com um carrinho de beb comeando a atravessar a rua, enquadrado por Friedkin num close-up extremo. 289 Figura 4.55: No contra-plano, a mulher grita de volta, tambm enquadrada num close-up extremo e borrado, o que sugere a velocidade do carro que se aproxima. Figura 4.56: A perseguio continua, com o trfego mais intenso medida em que o trem chega a Manhattan: composio recessiva com o primeiro plano sem foco. Figura 4.57: Com o suor escorrendo no rosto, Popeye Doyle acompanha o trem olhando para cima, num close- up extremo dos olhos, bem ao estilo de Sergio Leone. Figura 4.58: Dentro do trem, o assassino no consegue mais conter os passageiros e atira num bilheteiro: composio recessiva em profundidade de campo. Figura 4.59: Na sada da estao, Popeye confronta o assassino., mais uma vez encenada numa composio recessiva com moldura e profundidade de campo. Figura 4.60: Desarmado (a arma sem balas ficou no trem), o assassino se vira para correr, mas Popeye no hesita e atira nas costas dele: moralidade ambgua. Do ponto de vista narrativo, importante observar que a cena consiste numa aluso explcita a outra perseguio famosa, registrada em Bullitt (Peter Yates, 1968). A insero da cena dentro de Operao Frana foi exigncia do produtor Philip DAntoni, o mesmo de Bullitt; ele insistiu para que Friedkin inclusse no longa-metragem uma perseguio que superasse aquela do filme de trs anos antes (BISKIND, 2009, p. 214). O perfil do heri e a representao da violncia so duas outras caractersticas de Leone que aparecem na cena. Doyle sadomasoquista, bbado e obsessivo-compulsivo. Quando alcana o assassino (figura 4.59), no conversa com ele; apenas lhe aponta o revlver. A encenao recorre a composies recessivas. O criminoso vira as costas e sai 290 andando; ele confia que o detetive no ir atirar pelas costas num homem desarmado. Mas Doyle atira. Mata o homem de costas, queima-roupa (figura 4.60). O realismo seguido na edio de som. Friedkin descarta o uso de msica diegtica. Toda a sonorizao feita a partir do uso de rudos naturais amplificados, como Leone fazia. No entanto, h sempre um rudo bsico, mantido em segundo plano sonoro, que dura toda a cena e d unidade aos planos fechados que fragmentam o espao diegtico. Na cena analisada, esse rudo o barulho do trem, que possui a mesma funo do canto de pssaros na cena do cemitrio de Trs Homens em Conflito, ou do moinho na abertura de Era uma Vez no Oeste. Esse rudo pontuado por outros sons, de durao mais curta, mixados em volume mais alto do que seriam ouvidos normalmente na vida real, e que criam pontos de sncrese, permitindo ao espectador compreender a tenso dos personagens protagonistas: freadas e cantadas de pneus, gritos (de Doyle, de passageiros do trem, de transeuntes, como nas figuras 4.54 e 4.55), toques de buzina, sons metlicos resultantes das batidas de carro em objetos pelo caminho. A massa sonora sugere o movimento frentico dos veculos. Os rudos diegticos so inseridos no conjunto sonoro do mesmo modo que a p (Trs Homens em Conflito), a goteira e a mosca (Era uma Vez no Oeste). 4.2 Sergio Leone e os filmes contemporneos Operao Frana ainda no era o que os historiadores do cinema chamaram depois de blockbuster, mas assinalava caractersticas estilsticas e narrativas que se tornariam marcar registradas desse novo modo de produo que floresceu em Hollywood a partir de 1975 (MASCARELLO, 2006, p. 346). O blockbuster teve origem a partir do sucesso de Tubaro (1975), caracterizando-se pelo investimento macio em marketing, pelo lanamento simultneo no maior nmero possvel de salas, pelo estabelecimento de franquias cinematogrficas, e pelas indstrias paralelas de merchandising: Ao invs das produes tpicas da era dos estdios, os mega-filmes podem alcanar uma sobrevida robusta atravs de lbuns de trilha sonora, exibies em TV a cabo e no videocassete. (BORDWELL, 2006, p. 3). As caractersticas scio-culturais que modificaram os hbitos dos cinfilos se consolidaram de fato na virada entre os anos 1970 e 1980. E a constante evoluo tecnolgica continuou provocando mudanas incessantes nesse panorama. Cinemas drive-in e de bairro deram lugar a cadeias de Multiplex, quase sempre localizados dentro de grandes shopping 291 centers. Formatos mais baratos de vdeo domstico (primeiro o VHS, a partir de 1980; depois o DVD, de 1995 em diante; e atualmente o Blu-Ray) motivaram o aparecimento de uma gerao de cinfilos colecionadores de filmes, agora disponveis para serem vistos e revistos em casa. Hoje, o panorama de produo, circulao e consumo de filmes multifacetado, est em constante evoluo e muda muito rapidamente. As salas de projeo coletiva continuam a existir, mas disputam espao com home theaters capazes de reproduzir longas-metragens com fidelidade de imagem e som similar projeo em pelcula. Esse panorama scio-cultural, que envolve os aparatos de produo, circulao e exibio de filmes, tambm afetou as prticas estilsticas e narrativas dos diretores, motivando sucessivas revises nos esquemas dominantes de construo narrativa. Os recursos desenvolvidos nos anos 1960 esto na base desse processo. Um exame atento de filmes contemporneos confirma que muitas tcnicas criadas ou adaptadas pelos diretores modernistas europeus tm sido revisadas. Os recursos desenvolvidos por Sergio Leone tm um papel importante dentro desse repertrio estilstico. A influncia de Leone no cinema atual pode ser medida com mais preciso quando o colocamos ao lado de Quentin Tarantino, cineasta mais celebrado pela crtica internacional desde a dcada de 1990, desde ento apontado como um dos poucos renovadores estilsticos do cinema contemporneo. Ele sempre deixou clara a admirao pelo trabalho de Leone: Havia um grau de verossimilhana em seus filmes [de Leone] que outros filmes da poca no tinham. Mesmo que ento os filmes dele fossem vistos como surrealistas, tinham uma aparncia realista que no era possvel encontrar em ttulos dos anos 1950 e 1960. (...) Leone e Morricone formaram a melhor parecia diretor-compositor da histria do cinema. No d nem para imaginar os filmes de Leone sem a msica de Morricone. (...) Era uma vez no Oeste foi como uma escola de cinema para mim. Eu o vi na TV quando criana, e foi uma grande experincia porque dava para apreender da experincia um novo estilo de direo. (...) Com Era uma Vez no Oeste, foi como se ele [Leone] dissesse: este aqui o seu faroeste norte-americano, OK? Agora vou subvert-lo. (TARANTINO, 2003). Desde Ces de Aluguel (Reservoir Dogs, Quentin Tarantino, 1992), Tarantino se serviu abundantemente de vrios recursos de estilo caractersticos de Leone: close-ups extremos, representao grfica da violncia, heris amorais e violentos. O alusionismo est no centro nevrlgico do trabalho de Tarantino, assim como foi caracterstica fundamental para Leone; de fato, h muitas citaes a filmes de Leone em obras como Kill Bill (Quentin Tarantino, 2003) em que trechos de msicas de Morricone foram usados e Bastardos Inglrios (Inglourious Basterds, Quentin Tarantino, 2009). 292 Figura 4.61: Cena do filme de Tarantino alude conversa que a campons e o assassino contratado para mat-lo tm mesa, durante Trs Homens em Conflito. Figura 4.62: Os personagens de Leone, enquadrados em close-ups extremos e iluminados em contrastes chiaroscuro, sabem que tudo terminar em violncia ... Figura 4.63: ... assim como os personagens de Tarantino; iluminao deixa apenas mesa e janela iluminadas, com os personagens envoltos em sombras. Figura 4.64: Fazendeiro e oficial de Bastardos Inglrios fumamcachimbos (aluso a Leone) e tm os rostos freqentemente enquadrados em close-ups extremos. Neste ltimo, a comear pela legenda introdutria (Era uma vez numa Frana ocupada pelos nazistas...), toda a cena de abertura consiste numa aluso explcita um pastiche do incio de Trs Homens em Conflito, no qual Angel Eyes visita o homem que foi pago para matar (Antonio Casas) e janta com ele, antes de executar o servio, enquanto os dois trocam longos olhares silenciosos que deixam evidentes o quanto cada um sabe perfeitamente o que acontecer ao final (figuras 4.61 e 4.62). A longa conversa mesa entre o coronel SS Hans Landa (Christoph Waltz) e o agricultor Pierre LaPadite (Denis Menochet) carregada com o mesmo suspense, uma semelhana que Tarantino acentua fazendo os dois personagens fumarem cachimbos com dupla funo narrativa, funcionando em dois nveis simbolizam a personalidade de cada um e evocam o personagem de Lee Van Cleef (uma piscadela bem-humorada reconhecvel pelos fs do filme de Leone) , e tambm usando uma iluminao chiaroescuro semelhante utilizada em Trs Homens em Conflito (figuras 4.63 e 4.64), com predomnio de fontes de iluminao laterais e pouca luz de enchimento. Os filmes de Tarantino consistem numa espcie de catlogo das prticas estilsticas e narrativas do repertrio da continuidade intensificada. O caso especfico da obra dele particularmente significativo para esta tese, porque h uma ligao direta entre ele e Leone. Mas importante assinalar que Tarantino, como muitos diretores contemporneos, no simplesmente replica as solues de Leone para problemas de representao. Ele utiliza os esquemas disponveis e os revisa, adaptando-os a novos contextos, novos limites tecnolgicos e a seus objetivos narrativos. Esse processo contnuo de reviso concretiza, tambm, a idia 293 de que o autorismo pode ser harmnico com o conceito de gnero. Tarantino tem sido descrito por muitos crticos como uma espcie de usina de reciclagem cinematogrfica: Talvez a mais constante crtica ao trabalho de Tarantino seja de que ele se resume a reciclar filmes antigos (o crtico da revista New Yorker, David Denby, se refere a ele como um idiota de cinemateca). Essa crtica confunde reunio criativa de elementos dispersos com reciclagem. Tarantino (...) tem um conhecimento profundo sobre a maneira como os filmes so feitos e como seus diretores atingem certos efeitos. Tem tambm um enciclopdico conhecimento de gneros internacionais, como o wu xia chins, filmes de samurai e mfia japoneses, e filmes de ao e kung fu de Hong Kong. Enquanto seus filmes homenageiam todos esses gneros, sua referncia mais persistente est nos crescendos de violncia incontrolveis do spaghetti western. (STONE, 2009). No coincidncia que o rtulo de ps-moderno seja freqentemente aplicado ao trabalho de Tarantino; tampouco coincidncia que a tcnica do pastiche seja associada aos filmes dele (use-se ou no o termo). Nesse ponto, Tarantino compartilha com Leone o gosto pela citao, pela homenagem ao mesmo tempo nostlgica e irnica, irreverente e subversiva. Alusionismo (ou pastiche), ironia, releitura crtica de gneros, representao grfica da violncia, worldmaking, gosto por close-ups extremos, cronologia no-linear e uso de lentes grande-angulares so algumas das ferramentas estilsticas e narrativas de Leone facilmente reconhecveis no repertrio de Tarantino. Vrios desses elementos esto numa cena clebre de Ces de Aluguel, que causou polmica quando do lanamento do filme. A cena encerra o segundo ato e consiste em um ato de tortura pode ser lida, inclusive, como uma citao tortura de Tuco em Trs Homens em Conflito, cena analisada no segundo captulo. Aps o assalto frustrado a uma joalharia, um dos bandidos deixado no esconderijo do grupo, um galpo abandonado, vigiando um policial capturado na ocasio. H um terceiro personagem em cena: outro assaltante, desmaiado em meio a uma poa de sangue. Mr. Blonde (Michael Madsen) no tem uma razo especfica para torturar o policial, mas decide faz-lo. Dentro da estrutura narrativa, a cena parece no ter importncia, a no ser para revelar detalhes da personalidade psicopata do assaltante. A verdadeira razo narrativa para a existncia da cena s revelada no final, quando descobrimos que seu propsito era revelar o grande mistrio da trama: a identidade do policial infiltrado na quadrilha, Mr. Orange (Tim Roth). essa revelao que impulsiona o filme ao clmax, que consiste num duelo triplo um trielo, nova citao a Trs Homens em Conflito em que todos os participantes so baleados. Mas voltemos cena em questo, que possui onze minutos e 28 segundos (688 segundos) estruturados em 159 tomadas. Cada plano tem durao mdia de 4,3 segundos. 294 Como nos filmes de Leone, os nmeros absolutos podem enganar, pois Tarantino usa tomadas longas e inclui um plano-seqncia, com durao total de 87 segundos, em que Mr. Blonde sai do galpo para buscar um galo de gasolina no carro, localizado na rua em frente, e retorna (figuras 4.75 e 4.76), sendo seguido pela cmera (cujo movimento praticamente no cessa). Tarantino demonstra seu gosto pelos close-ups extremos (figuras 4.69, 4.73 e 4.81) maneira de Sergio Leone, incluindo 18 deles (de um total de 24 close-ups, sendo 23 de rostos vistos nas figuras 4.69, 4.77 e 4.81 e um plano-detalhe de uma navalha, na figura 4.67). Em termos estatsticos, 11,32% dos planos so close-ups extremos, percentual que sobe para 15,09% quando consideramos o total de close-ups. A maior parte dessas tomadas focaliza o policial ferido, especialmente depois que ele tem a orelha direita arrancada a navalhadas por Mr. Blonde (figura 4.77). Duas composies recessivas com moldura e profundidade de campo, filmada com uma lente grande-angular que d imagem uma textura ntida e agressiva, bem semelhante composio tpica de Leone, foram includas (figuras 4.80 e 4.83); e uma terceira, filmada com uma lente teleobjetiva que deixa o primeiro plano da composio desfocado, tambm faz parte da decupagem (figura 4.65). O perfil violento do heri e a representao da violncia so as ferramentas narrativas mais notveis. Apesar de o momento mais violento da sesso de tortura acontecer fora do quadro, Tarantino o enfatiza atravs do desenho de som os gritos do policial evoluem para urros, depois que ele tem a orelha arrancada e atravs da generosa quantidade de sangue que cobre o desmaiado Mr. Orange. Este, apesar de visto apenas parcialmente durante quase toda a cena, desempenha um papel fundamental no fim (figuras 4.79, 4.81 e 4.82). O momento dessa revelao, alis, encenado com o uso de outra tcnica oriunda de Leone: o trompe loeil cinematogrfico. Ao longo de toda a cena, o espectador pouco nota a silhueta de Mr. Orange desmaiado no cho. Quando Mr. Blonde acende o isqueiro para incendiar o policial (figuras 4.78), atingido por uma rajada de balas. S ento Tarantino corta para um plano que mostra Mr. Orange com uma pistola na mo (figuras 4.79 e 4.80). O policial disfarado de assaltante acordou, ouviu parte da conversa e sacou a arma sem que Mr. Blonde percebesse (alis, na cena imediatamente anterior, o prprio Mr. Blonde entra no galpo para encontrar os outros assaltantes sem que nenhum deles o veja, sendo que vrios olhavam diretamente para a porta por onde ele entrou um trompe loeil ainda mais enftico). A diviso do protagonismo entre vrios personagens , como j vimos, uma caracterstica importante para Leone. Em Ces de Aluguel, Tarantino adota o mesmo procedimento: no existe um protagonista quatro dos assaltantes tm mais tempo de tela do que os demais e os relacionamentos desconfiados entre os membros da gangue fazem aluso 295 Figura 4.65: Composio recessiva com moldura registrada com lente teleobjetiva mantm o primeiro plano (o brao) fora de foco: reviso do esquema. Figura 4.66: Mr. Blonde acerta um tapa no rosto do policial, enquadrado num close-up, iniciando a sesso de tortura: pastiche de Trs Homens em Conflito. Figura 4.67: Mr. Blonde tira da bota uma navalha, focalizada em close-up extremo: um sinal de que o grau de violncia visto at este momento vai aumentar. Figura 4.68: O assaltante liga o rdio numa estao de msicas antigas, que toca a cano Stuck in the Middle with You (toque de humor negro), um R&B de 1975. Figura 4.69: Close-up extremo mostra com realismo a perplexidade do policial, que no entende o que est ocorrendo; o bandido anuncia que vai continuar. Figura 4.70: O assaltante, enquadrado em plano americano, dana com a navalha ao redor do policial, aumentando a tenso e a expectativa da violncia. Figura 4.71: Finalmente, numa composio recessiva em que a cmera se aproxima da ao, Mr. Blonde investe contra o policial, levando a navalha at seu .... Figura 4.72: ... rosto, enquanto a cmera desenquadra os personagens e permanece fixa, fitando um vo na parede, enquanto ouvimos gritos cada vez mais altos ... Figura 4.73: ... do policial, at que Mr. Blonde entra no quadro, segurando a orelha do policial: representao grfica da violncia e uso de sons fora do quadro. Figura 4.74: O assaltante conta uma piada ao policial e ele anuncia que vai dar uma sada, mas volta rapidinho; composio recessiva em profundidade de campo. 296 Figura 4.75: Num plano-seqncia de 87 segundos, comum em Hollywood desde os anos 1970, a cmera segue Mr. Blonde at o carro, do lado de fora do ... Figura 4.76: ... galpo, enquanto ele pega um galo de gasolina e volta para dentro do cmodo, ainda danando, enquanto joga lquido inflamvel no policial. Figura 4.77: Este, finalmente sem mordaa (e focalizado num close-up extremo ensangentado), implora para no ser executado, enquanto o assaltante despeja ... Figura 4.78: ... toda a gasolina sobre ele e acende um isqueiro; os pequenos sacolejos da cmera na mo reforam a tenso que permeia a cena, at que ... Figura 4.79: ... Mr. Orange surpreendentemente salva o policial, descarregando o revlver no comparsa: o trompe loeil utilizado para provocar surpresa. Figura 4.80: Cmera faz semicrculo em torno de Mr. Orange; encenao cria linha diagonal (composio recessiva), com Mr. Blonde morto no fundo do quadro. Figura 4.81: Enquanto Mr. Orange revela que tambm policial e trabalhava infiltrado, o agente mostrado num close-up extremo que acentua a violncia. Figura 4.82: Coberto de sangue e focalizado em close-up, Mr. Orange diz que nica chance de sobreviverem se o chefe da gangue surgir; a a polcia invadir o local. Figura 4.83: No final, Tarantino inclui composio recessiva, com close-up extremo funcionando como moldura e profundidade de campo: aluso a Leone. Figura 4.84: A tomada final da cena um plano geral bem aberto, parecido com a tomada de abertura, que integra mais uma vez os personagens ao ambiente. 297 direta a Trs Homens em Conflito: eles mudam de lado constantemente, tecendo uma rede de pequenas traies que se acumula ao longo da trama. Apesar do clima surreal, a prtica do worldmaking e a preocupao com a textura realista das cenas esto presentes. Tarantino se certifica de que seus personagens fumem cigarros da marca fictcia Red Apple (includos em todos os outros filmes dele, o que sugere que todos se passam num mesmo universo paralelo); personagens citados em dilogos aparecem pessoalmente em outros filmes Mr. Blonde, por exemplo, cujo nome real Vic Vega, tem um irmo que surge com destaque em Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994). Tarantino manteve no set de filmagens um paramdico, para garantir que a quantidade de sangue perdida por Mr. Orange fosse compatvel com a de uma pessoa que, sangrando, permanece viva e consciente (figuras 4.82, 4.83 e 4.84). Finalmente, Tarantino faz uso humorstico da msica. No caso especfico, a cano executada na diegese (Mr. Blonde liga um rdio, na figura 4.68, e dana com a navalha, na figura 4.70) Stuck in the Middle with You como o ttulo indica, trata-se de uma brincadeira irnica de humor negro com a situao dramtica do policial. Como se v, a comparao do uso de ferramentas estilsticas e narrativas da continuidade intensificada nos filmes de Leone e em filmes realizados na Hollywood dos anos 1970 confirma que o processo de intensificao das tcnicas para engajar cada vez mais o espectador na trama fez com que os filmes ficassem mais retricos, rpidos, violentos e moralmente ambguos. A comparao de Ces de Aluguel com Operao Frana ou Taxi Driver, por sua vez, deixa evidente que este processo de intensificao no parou. A mesma constatao pode ser feita quando justapomos o filme de estria de Quentin Tarantino com qualquer filme de gnero realizado uma dcada mais tarde. Vejamos o caso de um filme recebido por crticos como renovador de tradies, estabelecendo um paradigma de excelncia de decupagem e estrutura narrativa para filmes de gnero, na virada para o sculo XXI: Matrix (Larry e Andy Wachowski, 1999). Este filme foi lanado sete anos depois de Ces de Aluguel; a relativa proximidade entre os lanamentos nos permite verificar os avanos do processo de intensificao estilstica e narrativa de maneira cuidadosa, sem grandes saltos. A cena escolhida para anlise o confronto entre Neo (Keanu Reeves) e o agente Smith (Hugo Weaving) no metr. uma cena curta: quatro minutos e quatro segundos (244 segundos). A durao menor que a metade da cena de Ces de Aluguel, mas os irmos Wachowski utilizam quase o mesmo nmero de tomadas: 121 planos compem a montagem 298 final. A mdia de 1,9 segundo por plano mais do que o dobro da velocidade de justaposio de planos encontrada em Ces de Aluguel. H cinco composies recessivas maneira de Leone (figuras 4.86 e 4.88) e outros trs planos gerais (figura 4.103). Girando o tempo inteiro em torno dos atores, a cmera cria uma espcie de arena circular virtual, bem na linha dos duelos opersticos de Leone (figuras 4.91 e 4.92), que pareciam touradas Os efeitos sonoros maximizam os rudos diegticos, da mesma forma que Leone fazia. Matrix levou a tcnica do pastiche a um novo patamar; a torrente de aluses a outros filmes, revistas em quadrinhos, iconografia religiosa, teorias filosficas e cultura pop em geral praticamente incessante. O incio do confronto inclui citaes diretas aos westerns de Sergio Leone: composies recessivas com moldura e profundidade de campo (figuras 4.86 e 4.88), enquadrando as mos e a cintura dos atores em primeiro plano e o adversrio ao fundo, de maneira simtrica; close-ups dos rostos tensos (figura 4.91); rudos diegticos amplificados (dedos estalando, o rudo de um jornal levantado pelo vento entre os dois pistoleiros, visto nas figuras 4.86 e 4.88) que pontuam o silncio inicial e acentuam a tenso. A fragmentao do espao flmico, a distenso do tempo, a simetria visual (figuras 4.85 e 4.87, 4.86 e 4.88, 4.89 e 4.90, 4.93 e 4.94), a construo cuidadosa do som em sincronia com a edio de imagens, todas so tcnicas recorrentes no trabalho de Leone e que integram (muitas vezes em variaes mais extravagantes) o cardpio da continuidade intensificada. Quando o duelo comea de verdade, a queda dos adversrios um de frente para o outro (figura 4.92) cria um pastiche do estilo visual dos filmes de John Woo, que sempre incluiu em seus thrillers policiais rodados em Hong Kong caso, por exemplo, de O Matador (The Killer, John Woo, 1989) essa composio visual, como uma assinatura estilstica que os irmos Wachowski homenageiam. Depois que os dois adversrios largam as pistolas e passam a lutar com as mos, os diretores recorrem a tcnicas tpicas da continuidade intensificada: fragmentao do espao flmico (atravs de variaes dramticas do ngulo de cmera, que passam de planos mdios a close-ups extremos com rapidez, como nas figuras 4.102, 4.103, 4.104 e 4.105), cortes no meio do movimento, uso da cmera lenta (figura 4.103). A sensao de velocidade tambm reforada, em grande parte, pelo desenho de som hiper-real: alm de escutar os socos e chutes com reforo nos tons de baixa freqncia (o que lhes d a sensao de potncia ampliada), pode-se ouvir at mesmo o barulho dos deslocamentos do vento provocados pelo movimento rpido dos braos e pernas dos atores, enquanto eles trocam golpes. Ao longo da disputa, os dois personagens fazem pausas e trocam dilogos irnicos; os irmos Wachowski filmam 299 Figura 4.85: O confronto entre Neo e o agente Smith comea com um close-up extremo do primeiro; ele acredita que pode vencer o adversrio ciberntico. Figura 4.86: Irmos Wachowski encenam confronto em composies recessivas com moldura e profundidade de campo: pastiche dos westerns de Sergio Leone. Figura 4.87: A simetria caracterstica dos duelos filmados por Leone tambm repetida aqui; para cada close-up de Neo corresponde um close-up de Smith. Figura 4.88: A simetria se estende composio recessiva; Smith estala dedos e o vento sopra folha de papel: rudos amplificados, como nos filmes de Leone. Figura 4.89: Os adversrios comeam a atirar um no outro quase ao mesmo tempo; ambos correm em direo cmera, em diagonal, para fugir dos tiros. Figura 4.90: Enquanto isso, a simetria visual continua: ao plano geral que mostra Neo correndo, corresponde uma tomada que mostra Smith fazendo o mesmo. Figura 4.91: Um salta em direo ao outro; o efeito especial bullet time congela o tempo e permite que a cmera gire em torno dos adversrios no ar ... Figura 4.92: Neo cai no cho com a pistola encostada no rosto de Smith; ele focalizado num close-up extremo emoldurado pela nuca do adversrio, composio ... Figura 4.93: ... copiada simetricamente na tomada seguinte; os ngulos de cmera e a simetria pistolas- rostos consistem numa aluso aos filmes de John Woo. Figura 4.94: Com as pistolas descarregadas, os dois adversrios largam as armas e decidem duelar usando os corpos; Smith destri uma parede com um murro. 300 Figura 4.95: Com culos quebrados, Smith ameaa Neo; trata-se do primeiro de vrios dilogos que entrecortam a ao fsica, sempre filmados em close-ups extremos. Figura 4.96: A tomada em contra-plano acentua a noo de simetria buscada desde o princpio do duelo: para cada plano de Smith, corresponde um idntico de Neo. Figura 4.97: Nas lutas, os irmos Wachowski usam planos mdios com freqncia, dando inteligibilidade aos movimentos, mas a cmera sempre se move. Figura 4.98: Agora Neo est em posio inferior; pela primeira vez ele cai, sangrando pela boca. O agente Smith espera que ele fuja pelas escadas, mas Neo ... Figura 4.99: ... o surpreende, levantando-se e fazendo um gesto irreverente com a mo, acentuado pelo close- up extremo; o gesto irrita o agente Smith, que ... Figura 4.100: ... parte para o ataque com raiva, a emoo acentuada pela expresso facial do ator, focalizada em close-up extremo pelos Wachowski. Figura 4.101: Socado e chutado com fora pelo agente Smith, Neo voa para trs; o movimento amplo enquadrado como um dos poucos planos gerais da cena. Figura 4.102: Depois que perebe o som fora de quadro do trem (citao a Era uma Vez no Oeste), Smith manobra para atirar Neo na linha frrea e .... Figura 4.103: ... aplica nele uma gravata, imobilizando-o enquanto aguarda a chegada do trem que ir mat-lo; o clmax da cena montado com close-ups extremos ... Figura 4.104: ... dos dois personagens, que ainda dialogam enquanto o trem se aproxima rapidamente; a orquestra de cordas faz um crescendo para sinalizar ... 301 Figura 4.105: ... o perigo que o heri corre, enquanto os irmos Wachowski incluem uma tomada em composio recessiva que centraliza o trem chegando. Figura 4.106: Neo consegue reverter a chave de brao do adversrio e foge do trilho do trem com um salto mortal em direo plataforma, vencendo a luta. esses dilogos pontuais de maneira intensificada, com profuso de close-ups extremos (figuras 4.93, 4.94, 4.101, 4.102, 4.106 e 4.107). O clmax da luta sinalizado pelo som fora de quadro do metr uma citao abertura de Era uma Vez no Oeste. O agente Smith executa um golpe que atira o adversrio diretamente nos trilhos do trem (figuras 4.105). A luta parece terminada; numa composio recessiva, vemos o trem chegando ao longe, com os dois personagens em primeiro plano (figuras 4.108). Mas, numa reverso surpreendente (ou nem to surpreendente assim, j que se trata de uma conveno narrativa existente desde os seriados televisivos dos anos 1930), Neo consegue dar um contragolpe e saltar de volta para a plataforma da estao, no exato momento em que o metr atinge o adversrio (figuras 4.109 e 4.110). Assim, ele vence a luta. Outro diretor contemporneo que recorre a recursos estilsticos e narrativos caractersticos de Leone Sam Raimi. Close-ups extremos, composies recessivas, representao grfica da violncia e uso de rudos amplificados aparecem fortemente nos filmes dele, como Um Plano Simples (A Simple Plan, Sam Raimi, 1998), em que uma cena de confronto entre trs caipiras, vista pela esposa de um deles, encenada atravs de composies recessivas com moldura e profundidade de campo (figuras 4.107 e 4.101) e close-ups extremos (figuras 4.109 e 4.112). Os rudos de rifles sendo engatilhados, em alto volume, acentuam a tenso. A cena culmina com um homem sendo baleado no peito, violncia que Raimi enfatiza inserindo uma tomada em plano mdio que mostra a vtima recebendo o tiro (figura 4.113) e outra, em que o rosto da mulher, visto em close-up, recebe um jato de sangue (figura 4.114); uma citao a Touro Indomvel (1980), de Scorsese. Um dos gneros que mais tem utilizado tcnicas do repertrio da continuidade intensificada a animao infantil. A trama de Shrek (2001), por exemplo, consiste num grande pastiche. O enredo estruturado sobre citaes irreverentes a contos de fada e a filmes infanto-juvenis anteriores, quase sempre encenadas como releituras irnicas que subvertem convenes do gnero (em particular as animaes da Disney). Em outras palavras, a 302 Figura 4.107: Composio recessiva com cabea como moldura; Raimi revisa o recurso de Leone, desfocando o primeiro plano e aproximando a figura ao fundo. Figura 4.108: O terceiro personagem v a cena de longe, mas d um passo frente, enquanto a cmera se aproxima dele atravs de um traveling para frente. Figura 4.109: A tomada seguinte um close-up extremo do atirador, que grita com o personagem fora do foco; os rostos mais prximos da cmera acentuam a tenso. Figura 4.110: No contra-plano, o terceiro personagem tambm ergue a sua arma, focalizado em plano mdio; o enquadramento sugere que ele ainda est indeciso. Figura 4.111: Raimi insere mais uma composio recessiva com moldura; a encenao mantm os trs atores posicionados a diferentes distncias da cmera. Figura 4.112: O terceiro personagem passa a ser focalizado tambm em close-up extremo, acentuando a tenso em mais um grau: ele est perto de atirar. Figura 4.113: Atingido pelo tiro do terceiro personagem, o agressor dispara sem direo, enquanto manchas de sangue explodem contra a parede atrs dele ... Figura 4.114: ... e tambm respingam no rosto da mulher que assiste cena, focalizada em close-up: representao grfica de um ato de violncia. 303 construo narrativa em larga escala de Shrek utiliza a mesma tcnica que Sergio Leone usou em Era uma Vez no Oeste, s que mais exacerbada. A segunda cena, aps a apresentao dos crditos (que nos apresenta aos hbitos mal- educados do protagonista, um heri to anti-social quanto os heris de Leone), estabelece o cenrio com o qual o filme vai lidar: a floresta onde vivem os personagens de contos de fada foi invadida por um vilo que cobra impostos ou expulsa os habitantes do lugar. Narrada do ponto de vista de um burro (figuras 4.116 e 4.117), a cena deixa entrever uma srie de personagens que se pode reconhecer de outros filmes e histrias orais: os sete anes de Branca de Neve (figura 4.115), os trs ursos de Cachinhos Dourados (figura 4.118), Pinquio, Robin Hood, os trs porquinhos (figura 4.119). Para tentar fugir da priso inevitvel, o burro rouba o p mgico da fada Sininho, de Peter Pan, e sai voando (figura 4.120). Vocs podem ter visto um elefante voar, mas aposto que nunca viram um burro voar, ele diz, numa aluso irreverente a uma das canes mais lembradas de Dumbo (Ben Sharpsteen, 1941). As animaes computadorizadas tambm tm sido terreno frtil para a utilizao da tcnica do trompe loeil cinematogrfico. possvel ver dois exemplos nos respectivos prlogos de Toy Story 2 (John Lasseter e Ash Brannon, 1999) e Bolt (Byron Howard e Chris Williams, 2008). Nos dois casos, a encenao rigorosamente a mesma: um personagem, enquadrado de frente para a cmera e olhando para frente, s percebe o elemento surpresa que est diante dos olhos dele depois que a cmera faz um traveling para trs, revelando simultaneamente ao pblico e ao personagem esse novo elemento, que o personagem certamente deveria ter percebido antes, se a representao da cena em si fosse realista. No caso de Toy Story 2, o personagem Buzz Lightyear, um astronauta cuja misso exterminar o bandido intergalctico Zurg (citao ao vilo Darth Vader, de Guerra nas Estrelas). Enquadrado em close-up (figura 4.121), Buzz avisa a outros membros de sua equipe que no h sinal de vida naquele planeta, aparentemente desabitado; ento a cmera faz um traveling para trs e revela dezenas de robs que cercam completamente o heri, at onde a vista alcana (figura 4.122). Seria impossvel ele no ter visto aquele cenrio antes. A encenao em Bolt idntica. O personagem um cachorro que protagoniza uma srie de TV sem saber que est sendo filmado pastiche de O Show de Truman (The Truman Show, Peter Weir, 1998). Ele um filhote venda. Est dentro de uma caixa de vidro, na vitrine da loja de animais (figura 4.123). A cmera faz um traveling para trs e revela, bem na frente dele, uma cenoura de brinquedo; em sincronia com o movimento da cmera, o co franze a sobrancelha e comea a latir para o brinquedo (figura 4.124). Trompe loeil cinematogrfico e pastiche, duas caractersticas recorrentes no repertrio dos filmes de 304 Figura 4.115: Plano geral que inicia a cena de Shrek permite que vejamos os sete anes (de Branca de Neve) acorrentados: aluso irreverente aos contos de fada. Figura 4.116: A cena narrada do ponto de vista de um burro, que segundo a sua dona (interessada em vend-lo ao exrcido do lorde malvado), consegue falar. Figura 4.117: Assustado, o bruxo percebe que junto com os sete anes tambm est presa uma feiticeira: composio recessiva em profundidade de campo. Figura 4.118: A famlia de ursos dque aparece na fbula Cachinhos Dourados surge presa, em mais uma das dezenas de aluses irreverentes a contos de fada. Figura 4.119: Na fila em que o burro aguarda, Gepeto aparece tentando vender Pinquio; Robin Hood e os trs porquinhos podem ser vistos em segundo plano. Figura 4.120: Depois de roubar um pouco do p voador da fada Sininho (Peter Pan), o burro cita Dumbo (1941): Aposto que voc nunca viu um burro voar!. animao contemporneos, integram a continuidade intensificada e j eram utilizados muitos anos antes, nos westerns de Leone. Antes de concluir, importante assinalar que os recursos estilsticos e narrativos da continuidade intensificada so utilizados por cineastas de quaisquer nacionalidades, idades, raas, sexos, sem vinculao a gneros ou movimentos estticos. O que diferencia uns diretores de outros o grau de utilizao dessas ferramentas e o tipo de adaptao ou reviso esquemtica que se faz delas, a partir das caractersticas pessoais e/ou contextuais (ou seja, por causa de limites ou pr-condies) de cada profissional. 305 Figura 4.121: Aps pousar num planeta desconhecido, Buzz fala no intercomunicador e, enfquadrado num close-up, diz que no pode ver nenhum sinal de vida. Figura 4.122: A cmera faz ento um traveling para trs e o mostra rodeado por dezenas de robs hostis: tcnica do trompe loeil cinematogrfico, tpica de Leone. Figura 4.123: Logo depois de acordar, numa caixa de vidros na loja de animais, Bolt se espreguia e olha em volta animadamente, parecendo entediado. Figura 4.124: Aps um traveling para trs, a cmera revela um brinquedo em forma de cenoura; ao mesmo tempo, o co arqueia sobrancelhas e ataca o brinquedo. Ferramentas que compem o repertrio dessa potica podem ser encontradas em praticamente qualquer filme; e vrias dessas ferramentas foram desenvolvidas com a contribuio dos filmes de Leone. Vejamos alguns exemplos: em Onde os Fracos No Tm Vez (No Country For Old Men, Joel e Ethan Coen, 2007), a cena em que o assassino profissional (Javier Bardem) localiza a mala de dinheiro roubada inteiramente construda com o uso de sons naturais amplificados (particularmente os bips de um localizador eletrnico); close-ups e planos detalhes fragmentam o espao fsico (figuras 4.125 e 4.126). A msica neo-romntica com influncias concretistas, incorporando sons da diegese, foi um recurso explorado em Desejo e Reparao (Atonement, Joe Wright, 2007), cujo compositor, Dario Marianelli, incluiu os sons da mquina de escrever usada pela personagem narradora ao longo dos trechos musicais orquestrados (figuras 4.127 e 4.128). Rudos hiper- reais amplificados, profuso de close-ups extremos (a maioria de rostos), composies recessivas e worldmaking (figuras 4.129 e 4.130) foram ferramentas adotadas em O Senhor dos Anis (The Lord of the Rings, Peter Jackson, 2001). A violncia ganha uma representao ultra-realista em Irreversvel (Irreversible, Gaspar No, 2002), em que um homem tem a cabea destroada por golpes de extintor de incndio (figuras 4.131 e 4.132). 306 Figura 4.125: Cena em que o assassino encontra a mala de dinheiro em Onde os Fracos No Tm Vez (2007) usa o silncio e os rudos naturais amplificados do ... Figura 4.126: ... sinalizador que se encontra dentro da mala, mais close-ups extremos, para fazer a trama avanar sem a necessidade de dilogos expositivos. Figura 4.127: O rudo da maquina de escrever, mostrada num close-uo extremo na primeira cena de Desejo e Reparao (2007), usado na composio musical ... Figura 4.128: ... como elemento percussivo: a mescla de msica sinfnica neo-romntica com elementos diegticos herana da parceria Leone-Morricone. Figura 4.129: Close-ups extremos e planos-detalhes, quase sempre acompanhados de rudos amplificados, so recursos abundantes em O Senhor dos Anis ... Figura 4.130: ... cuja pesquisa iconogrfica detalhada criou um passado histrico completo para o territrio ficcional da Terra Mdia: prtica do worldmaking. Figura 4.131: Vcio Frentico (2009), de Werner Herzog, inclui composies recessivas filmadas com lentes grande-angulares, como esta, e tambm tomadas ... Figura 4.132: ... em profundidade de campo em que os personagens em primeiro plano emolduram a ao principal que ocorre em segundo plano, como esta. 307 Figura 4.133: Ultra-violncia do filme franco-argentino Irreversvel (2002) inclui um longo plano-seqncia sem cortes, em que a cabea de um homem esmagada ... Figura 4.134: por sucessivos golpes de um extintor de incndio, mostrados em close-up: representao da violncia atinge nvel maior de intensidade. Figura 4.135: Em Um Olhar do Paraso (2009), Peter Jackson abusa de close-ups extremos dos olhos dos personagens, chegando a incluir diversas tomadas ... Figura 4.136: ... registradas com lentes grande-angulares que mostram unhas, tornando possvel discernir at as linhas das impresses digitais dos dedos. Figura 4.137: Os close-ups extremos de Michael Mann, como em Fogo Contra Fogo (1995), so registrados com lentes teleobjetivas, deixando o fundo desfocado ... Figura 4.138: ... da mesma maneira que o primeiro plano sem foco das composio recessivas com moldura que o diretor norte-americano constri em seus filmes. Composies recessivas com moldura e profundidade de foco so utilizadas tanto com lentes grande-angulares quanto com teleobjetivas (figuras 4.133 e 4.134) em Vcio Frentico (The Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans, Werner Herzog, 2009). Close-ups extremos que focalizam apenas os olhos ou literalmente uma unha de um personagem (figuras 4.135 e 4.136), filmados com lentes grande-angulares, so freqentes em Um Olhar no Paraso (The Lovely Bones, Peter Jackson, 2009). Esses mesmos recursos o close-up extremo e a composio recessiva com moldura so revisados de maneiras diferentes em Fogo Contra Fogo (Heat, Michael Mann, 1995), cujo diretor evita as grande-angulares e usa teleobjetivas, deixando a imagem mais planimtrica (no primeiro caso, figura 4.137) ou desfocando uma das duas camadas da composio recessiva (no segundo caso, figura 4.138). Todos os exemplos exemplificam com propriedade a idia de Gombrich (2007) a respeito dos esquemas circulantes nas artes pictricas: cada diretor se apropria dos esquemas disponveis, sejam eles dominantes ou no, e os revisa, de acordo com os limites e pr- 308 condies dentro das quais trabalha, e levando em considerao suas experincias prvias e seus prprios problemas de representao. Nos exemplos anteriores, Peter Jackson e Michael Mann reelaboram dois recursos abundantes em Leone (o close-up extremo e a composio com moldura) atravs de dois processos distintos de reviso, o primeiro usando lentes grande- angulares e o segundo, teleobjetivas. provvel que a experincia de Mann com a televiso onde ele trabalhou por muitos anos antes de comear a dirigir filmes tenha funcionado como influncia, nesse caso, j que as lentes teleobjetivas so muito mais usadas na TV. Vale observar, ainda, que vrios dos exemplos utilizados neste captulo foram produzidos fora dos grandes estdios de Hollywood. Os diretores citados possuem nacionalidades distintas, trabalharam dentro de sistemas de produo diversos, foram influenciados por limites e pr-condies de naturezas diferentes. O que os une que todos replicaram ou revisaram ferramentas da continuidade intensificada, e esse repertrio de tcnicas j aparecia de forma recorrente na obra de Leone. Naturalmente, nos filmes mais comerciais, possvel identificar esses recursos com mais recorrncia, porque esses filmes demandam maior engajamento emocional do espectador, exigindo assim uma reviso mais intensa dos esquemas. Vejamos uma passagem de Titanic (James Cameron, 1997). A cena consiste de uma transio entre cenas, que nos leva do presente para o passado da trama (ou seja, de 1997 para 1912), atravs das memrias de uma personagem presente na trgica viagem do navio e vale lembrar que os flashbacks so elemento recorrente na obra de Leone. Cameron inicia a transio com um close-up extremo do rosto da passageira do navio (figura 4.139). Num zoom lento para frente, a cmera se aproxima dos olhos da mulher (conveno que leva os espectadores a perceber que, no plano seguinte, estaremos dentro das memrias dela), mas no se detm neles; segue em frente, circulando-a, para focalizar a tela do monitor de TV que se encontra atrs dela, e que mostra uma imagem dos destroos do navio afundado. O close-up se transformou, sem cortes, numa composio recessiva com moldura (figura 4.140). O espectador continua ouvindo a mulher contando sobre o dia do embarque no Titanic (o som do monlogo proporciona a sensao de continuidade), enquanto a cmera gira em torno da imagem da carcaa do navio; esta, atravs de uma sobreposio digital, se funde com uma imagem do mesmo navio, agora funcionando a pleno vapor, em 1912 (figura 4.141). A tomada encerra com um plano geral que focaliza o Titanic em toda sua majestade (figura 4.142). A obsesso de Cameron com a acuidade histrica o levou a reconstruir uma rplica perfeita do navio (utilizando as plantas da embarcao verdadeira). Trata-se do tipo de 309 Figura 4.139: Transio para um flashback recurso estilstico recorrente na obra de Leone inicia com um close-up extremo que busca os olhos da mulher. Figura 4.140: Num traveling para frente, a cmera focaliza o monitor de TV com a imagem do Titanic, emoldurada pela cabea: composio recessiva. Figura 4.141: Enquanto ela recorda o dia da partida do navio, uma sobreposio feita com efeitos especiais transformam os destroos numa rplica ... Figura 4.142: ... e retornam finalmente ao ano de 1912, num plano geral aberto que enfatiza a perfeio da reconstruo da embarcao: worldmaking. pesquisa iconogrfica que Leone levou a cabo em Trs Homens em Conflito e Era uma Vez na Amrica, constituindo a prtica do worldmaking. Exemplos da potica da continuidade intensificada podem ser rastreados em quase todos os filmes contemporneos, com variadas gradaes de nfase. Nesse sentido, no se trata de uma prtica estilstica que se pode adotar ou descartar, mas sim de um repertrio de esquemas que revisaram os princpios gerais das trs vertentes da potica do cinema, sem quebr-los ou abandon-los, mas ajustando-os a novos contextos scio-culturais, tecnolgicos, polticos, ideolgicos e econmicos. E esse conjunto de ferramentas narrativas e estilstica est disponvel a todos os cineastas. Ao longo do ltimo captulo, pudemos traar conexes estilsticas e narrativas entre a obra de Leone e filmes de diretores contemporneos. importante ressaltar que o objetivo desta seo era demonstrar que Leone, efetivamente, desempenhou um papel importante no desenvolvimento de algumas dessas ferramentas, que constituem a continuidade intensificada. No se trata de reivindicar para Leone o papel de principal criador (muito menos de criador solitrio) dessa potica, j que tal figura histrica jamais existiu. 310 Concluso A potica da continuidade intensificada uma criao terica que nasceu do estudo das prticas narrativas e estilsticas de um grupo de diretores que atuaram nos anos 1960. Esses diretores realizaram filmes nos mais diferentes pases, sob condies diversas de produo, e a partir das influncias mais dspares. Esta tese procurou confirmar que Sergio Leone foi um importante cineasta desenvolvedor dessa potica. Essa comprovao foi afirmada atravs de uma anlise estilstica rigorosa dos filmes que ele realizou. No entanto, em parte pelo fato de a estilstica continuar sendo uma disciplina ainda pouco importante nos estudos cinematogrficos, em parte por causa do preconceito (muitas vezes inconsciente) dos crticos para com o cinema oriundo de gneros e ciclos populares, Leone ainda hoje visto mais como diretor famoso do que como cineasta influente. Sua importncia histrica, quando tomada sob o ponto de vista da abordagem estilstica, ainda se faz merecedora de mais ateno do que recebe. Nosso estudo de caso sobre a filmografia de Sergio Leone demonstrou como ocorreram alguns dos processos de reviso dos esquemas circulantes da potica clssica do cinema, levados a cabo a partir dos anos 1960. Assinalam, tambm, que vrias dessas revises tiveram origem e/ou atravessam os filmes dele. Ao longo deste relato, procuramos desvelar a dimenso real da contribuio que Leone ofereceu constituio da continuidade intensificada uma contribuio que vai muito alm da maneira como Leone filmava bundas de cavalos, para retornar anedota proferida por Bernardo Bertolucci. Como j vimos, quando se fala em continuidade intensificada (usando-se ou no o termo criado por Bordwell), lugar-comum citar Godard, Bergman, Truffaut, Fellini, Antonioni, Tarkovski, Resnais e outros diretores modernistas europeus, todos associados a um cinema feito para um consumo segmentado, para o qual muitos estudiosos usam o termo cinema de arte. Todos esses diretores, sem dvida, exerceram papis destacados na constituio da potica da continuidade intensificada. Mas outros cineastas que aturaram na mesma poca e trabalharam com gneros de ndole popular, especialmente aqueles que atuaram dentro de ciclos de produo massiva como o caso de Sergio Leone , continuam a ter seus papis histricos, dentro desse processo, minimizados ou mesmo desprezados. Esse fenmeno ocorre inclusive com aqueles que, como Leone, passaram por algum tipo de revalorizao crtica ao longo de suas carreiras, tornando-se dignos de respeito. Como pudemos ver, esse respeito , de certa forma, apenas relativo. 311 A abordagem estilstica, especialmente quando amparada na anlise flmica ampla e detalhada, pode ajudar a concretizar possibilidades de leitura alternativa da histria do cinema, tendo o desenvolvimento do estilo como eixo principal. Essas possibilidades nos parecem importantes, no apenas porque relativizam a importncia do gosto e do juzo de valor na construo de uma historiografia do audiovisual, mas para que seja possvel compreender melhor como se d o desenvolvimento e a o aprimoramento das solues estilsticas para problemas de representao ou seja, as escolhas operadas pelos diretores, cada um dentro do contexto scio-cultural especfico no qual trabalhou dentro do cinema. No percurso desta tese, vimos como Leone exerceu um papel de liderana estilstica dentro do ciclo popular do spaghetti western, criando, revisando e adaptando solues para problemas de representao que passaram a ser copiadas ou recicladas por toda uma gerao de diretores. Por sua vez, a popularidade dos ttulos vinculados ao ciclo de spaghetti western (no apenas entre os espectadores comuns, mas tambm entre os cineastas das geraes subseqentes) ofereceram uma contribuio destacada ao desenvolvimento e consolidao da potica da continuidade intensificada. Vimos como a obra de Leone foi importante na instituio de um novo perfil de heri, mais cnico e individualista. Observamos como os filmes dele auxiliaram outros diretores dos anos 1960 a romper o tabu da representao da violncia no cinema. Demonstramos como Leone incorporou a seus filmes aspectos da experincia scio-cultural ps-moderna, a exemplo da ironia e da nostalgia. Explicamos como ele refinou a tcnica do pastiche cinematogrfico e como resgatou, revisando-as e ampliando-as, tcnicas oriundas do cinema clssico, como os close-ups extremos e as composies recessivas em profundidade de campo. Vimos como Leone ampliou a importncia do uso de efeitos sonoros e silncios na construo da narrativa, e como incorporou influncias da msica pop e do concretismo s composies predominantemente neo-romnticas que sempre caracterizaram a potica da continuidade clssica. Detalhamos como ele intensificou o cuidado com a verossimilhana e com a acuidade histrica de cenrios, objetos cnicos e figurinos, antecipando a prtica do worldmaking. Por fim, demonstramos como essas ferramentas estilsticas foram resgatadas por cineastas de vrias tendncias, nos anos a seguir, passando ento a constituir novos esquemas circulantes que compem atualmente a potica da continuidade intensificada. De certo modo, Sergio Leone no encapsula a imagem do artista como gnio, no sentido original e romntico do termo (COMPAGNON, 2010). O gnio artstico, para filsofos como Kant, Schopenhauer e Nietzsche, constitui um dom natural. No pode ser aprendido ou ensinado, pois nasce da intuio pura; pode ser, no mximo, refinado atravs das 312 tcnicas de produo, do conhecimento e da cultura (alis, nesse ponto, Nietzsche difere dos outros dois filsofos mencionados, j que considerava a cultura como um aspecto limitador e no amplificador do gnio). No caso de Sergio Leone, quando estudamos com cuidado os limites e pr-condies que circundavam os contextos histrico, scio-cultural, tecnolgico e econmico no qual ele operou, conclumos claramente que nenhuma das marcas estilsticas recorrentes em seus filmes nasceu de uma inovao radical ou de uma reviso estilstica sem lastro histrico discernvel. Leone no rompeu com a tradio audiovisual que o precedeu; ele a reforou e ampliou em diferentes direes. Sua obra confirma a tese de David Bordwell: a continuidade intensificada consiste de um processo contnuo de intensificao da potica do cinema, atravs da reviso constante dos princpios narrativos e estilsticos que governam a construo de sentido das obras audiovisuais. Sergio Leone foi, sim, um renovador de tradies cinematogrficas. Os processos de reviso dos esquemas estilsticos que ele levou a cabo so produto (direto ou indireto) da rede de contextos dentro da qual ele se desenvolveu como cineasta. Essa constatao no diminui sua importncia como artfice um dentre muitos da potica dominante do cinema contemporneo. Para concluir: pode-se perfeitamente no gostar dos filmes de Leone, assim como pode-se simplesmente achar desimportante a maneira como ele filmava bundas de cavalo, mas a anlise estilstica minuciosa da obra dele demanda um reconhecimento crtico que deve ir alm de uma nota de rodap nos livros de histria do cinema. 313 Referncias ALTMAN, Rick. A Semantic/Syntactic Approach to Film Genre. In GRANT, Barry Keith (org.). The Film Genre Reader III. Austin: University of Texas Press, 2003. AUMONT, Jacques. Moderno? Por Que o Cinema se Tornou a Mais Singular das Artes. Campinas: Papirus Editora, 2008. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionrio terico e crtico de cinema. So Paulo: Editora Perspectiva, 2001. BANFIELD, Edward C. The Moral Basis of a Backward Society. Nova York: Free Press, 1958. BARBUTO, Adriano. Western spaghetti e o Techniscope. In RUA [revista eletrnica], So Carlos, jun. 2009. Disponvel em: <http://www.ufscar.br/rua/site/?p=1789>. Acesso em: 2 fev. 2010. BAUDRY, Pierre. Il tait une fois ...la rvolution. In Cahiers du Cinma [revista], Paris, n 238, p. 93- 95, mai. 1972. BERCHMANS, Tony. A Msica do Filme. So Paulo: Escrituras Editora, 2006. BETTS, Tom. Foreword. In WEISSER, Thomas. Spaghetti Westerns: the Good, the Bad and the Violent. Jefferson, N.C.: McFarland, 1992. BISKIND, Peter. Como a Gerao Sexo, Drogas e Rocknroll Salvou Hollywood. Rio de Janeiro: Intrnseca, 2009. BORDWELL, David. Figuras Traadas na Luz. Campinas: Papirus Editora, 2009. __________. On the History of Film Style. London: Harvard University Press, 1997. __________. Poetics of Cinema. New York: Routledge, 2008. __________. The Way Hollywood Tells It: Story and Style in Modern Movies. Los Angeles: University of California Press, 2006. BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film Art: An Introduction. New York: McGraw-Hill, 2008. __________. Film History: An Introduction. New York: McGraw-Hill, 2009. BONTEMPS, Jacques. Per um Pugno di Dollari. In Cahiers du Cinma [revista], Paris, n. 177, p. 81, abr. 1966. __________. Lettre dItalie. In Cahiers du Cinma [revista], Paris, n. 176, p. 11-12, mar. 1966. BRION, Patrick. Per Qualche Dollari in Pi. In Cahiers du Cinma [revista], Paris, n. 184, p. 73, nov. 1966. BRCH, Noel. Prxis do Cinema. So Paulo: Editora Perspectiva, 1992. BUSCOMBE, Edward. The BFI Companion to the Western. London: Da Capo Press, 1988. __________. A Idia de Gnero no Cinema Americano. In RAMOS, Ferno Pessoa (org.). Teoria Contempornea do Cinema Volume II. So Paulo: Editora Senac, 2004. p. 303-318. 314 CAMARGO, Daniel; VELLOZO, Fbio; PEREIRA, Rodrigo. Anthony Steffen: A Saga do Brasileiro que se Tornou Astro do Bangue-Bangue Italiana. So Paulo: Matrix, 2007. CARDINALE, Claudia. Entrevista. In FRAYLING, Christopher. Once Upon a Time in Italy: The Westerns of Sergio Leone. New York: Harry Abrams Inc, 2005. p. 119-122. Entrevista concedida a Christopher Frayling. CARROLL, Nol. Interpreting the Movie Image. London: Cambridge University Press, 1998. CATLOGO Bolaffi do Cinema Italiano. Turin: Bolaffi, 2009. CHATEAU, DOMINIQUE. Strotype, prototype et archtype: propos du Portrait de Gertrud Stein de Picasso. In DARRAS, Bertrand (org.). Images et Smiotique, Smiotique pragmatique et cognitive. Paris: Publications de la Sorbonne, 2003. CHION, Michel. Audiovision. New York: Columbia University Press, 1994. __________. Film, a Sound Art. New York: Columbia University Press, 2009. __________. Il y a un Lieu, l'Amrique. In Cahiers du Cinma [revista], Paris, n. 359, p. 10-13, mai. 1984. COMPAGNON, Antoine. O Demnio da Teoria: Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. CONNOR, Steven. Cultura Ps-Moderna: Introduo s teorias do contemporneo. Rio de Janeiro: Jos Olmpio Editora, 1993. COUSINS, Mark. Biografia do Filme. Lisboa: Pltano Editora, 2004. COX, Alex. 10.000 Ways to Die. London: Kamera Books, 2009. CRIST, Judith. Judith Crists TV Guide for the Movies. New York: Popular Library, 1974. CROWTHER, Bosley. A Fistful of Dollars. In New York Times [jornal], New York, n. 33, 2 fev. 1967. Disponvel em: <http://movies.nytimes.com/movie/review?_r=1&res=9B03E1DD1439E53BBC4A53DFB466838C67 9EDE>. Acesso em: 15 jul. 2010. DANEY, Serge. Once Upon a Time in the West. In Cahiers du Cinma [revista], Paris, n. 216, p. 64, out. 1969. DELLI COLLI, Tonino. Entrevista. In FRAYLING, Christopher. Once Upon a Time in Italy: The Westerns of Sergio Leone. New York: Harry Abrams Inc, 2005. p. 133-138. Entrevista concedida a Christopher Frayling. DYER, Richard. Pastiche. London: Routledge, 2007. EASTWOOD, Clint. Entrevista. In WENNER, Jan S; LEVY, Joe. Rolling Stone As Melhores Entrevistas da Revista Rolling Stone. So Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 213-222. Entrevista concedida a Tim Cahill. EBERT, Roger. Grandes Filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. 315 EHRESMANN, Patrick. Western, Italian Style. In Chimai [revista eletrnica], 2009. Disponvel em: <http://www.chimai.com/resources/specials/ehresmann-western.cfm?scre- en=special&id=3&language=en&page=all&nb_pages=10>. Acesso em: 26 jan. 2010. EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1992. FABRIS, Mariarosa. Neo-realismo Italiano. In MASCARELLO, Fernando (org.). Histria do Cinema Mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006. p. 191-220. FRAYLING, Christopher. Once Upon a Time in Italy: The Westerns of Sergio Leone. New York: Harry Abrams Incorporated, 2005. __________. Something to Do with Death. London: Faber and Faber, 2000. __________. Spaghetti Westerns: Cowboys and Europeans from Karl May to Sergio Leone. London: I.B. Tauris, 1998. FRIDLUND, Bert. Spaghetti Western: A Thematic Analysis. Jefferson: McFarland & Co., 2006. GEADA, Eduardo. Cinema e Transfigurao. Lisboa: Relgio Dgua, 1978. GINSBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e Histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. GOMBRICH, E.H. Arte e Iluso: Um Estudo da Psicologia da Representao Pictrica. So Paulo: Editora Martins Fontes, 2007. GOMES DE MATTOS, A. C. Do Cinetoscpio ao Cinema Digital. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2006. __________. Publique-se a Lenda: A Histria do Western. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004. GORBMAN, Claudia. Film Music. In HILL, John; CHURCH GIBSON, Pamela. The Oxford Guide to Film Studies. London: Oxford University Press, 1998. p. 43-49. __________. Unheard Melodies: Narrative Film Music. London: BFI Publishing, 1988. HARVEY, David. A Condio Ps-moderna. So Paulo: Atlas Editora, 1989. HITCHCOCK, Alfred. O Prazer do Medo. GOTTLIEB, Sidney (org.). Hitchcock por Hitchcock. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1998. p. 144-149. HUGHES, Howard. Once Upon a Time in the Italian West. London: I.B. Tauris, 2004. HUTCHEON, Linda. Irony, Nostalgia, and the Postmodern. In University of Toronto English Library Database [website]. 2006. Disponvel em: <http://www.library.utoronto.ca/utel/criticism/hutchinp.html>. Acesso em: 3 fev. 2010. __________. Teoria e Poltica da Ironia. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000. JAMESON, Fredric. Ps-modernismo, ou a Lgica Cultural do Capitalismo Tardio. So Paulo: Editora tica, 1991. JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as Imagens do Cinema. So Paulo: Editora Senac, 2009. 316 KAEL, Pauline. Criando Kane e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. KANFER, Stefan. Cinema: The Good, The Bad and The Ugly. In Time [revista], vol. 91, n. 6, 9 fev. 1968. Disponvel em: <http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,844425,00.html>. Acesso em: 15 jul. 2010. KANT, Immanuel. Crtica da Faculdade do Juzo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002. LANGER, Johnni. Metodologia para anlise de esteretipos em filmes histricos. In Histria Hoje [revista eletrnica], ANPUH, vol. 5, n. 2, 2004. Disponvel em: <http://www.anpuh.uepg.br/historia-hoje/vol2n5/johnni.htm>. Acesso em: 27 jan. 2010. LEONE, Sergio. Entrevista. In FRAYLING, Christopher. Once Upon a Time in Italy: The Westerns of Sergio Leone. New York: Harry Abrams Inc, 2005. p. 75-90. LYOTARD, Jean-Franois. A Condio Ps-moderna. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1998. MANEVY, Alfredo. Nouvelle Vague. In MASCARELLO, Fernando (org.). Histria do Cinema Mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006. p. 221-252. MANTOVI, Primaggio. 100 Anos de Western. So Paulo: Opera Graphica Editora, 2003. MARDORE, Michel. Films de Demain. In Cahiers du Cinma [revista], Paris, n. 166, p. 121, mai. 1965. METZ, Christian. Linguagem e Cinema. So Paulo: Editora Perspectiva, 1975. MORRICONE, Ennio. Entrevista. In FRAYLING, Christopher. Once Upon a Time in Italy: The Westerns of Sergio Leone. New York: Harry Abrams Inc, 2005. p. 91-100. Entrevista concedida a Christopher Frayling. NEALE, Steve. Genre. London: British Film Institute, 1980. __________. Hollywood and Genre. London: Routledge, 2000. PIERRE, Sylvie. Coups de feu dans la Sierra Leone. In Cahiers du Cinma [revista], Paris, n. 200, p. 124, abr. 1968. __________. Clio Veille. In Cahiers du Cinma [revista], Paris, n. 218, p. 53-55, mar. 1970. PUCCI JR, Renato Luiz. Cinema Ps-moderno. In MASCARELLO, Fernando (org.). Histria do Cinema Mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006. p. 361-378. RIEUPEYROT, Jean Louis. O Western ou o Cinema Americano Por Excelncia. Belo Horizonte: Itatiaia, 1963. SADOUL, Georges. Dicionrio de Cineastas. Lisboa: Livros Horizonte, 1979. SALT, Barry. Film Style & Technology: History and Analysis. London: Stardword, 2009. SCHATZ, Thomas. Hollywood Genres: Formulas, Filmmaking and the Studio System. New York: Random House, 1981. 317 SCORSESE, Martin. Entrevista. In FRAYLING, Christopher. Once Upon a Time in Italy: The Westerns of Sergio Leone. New York: Harry Abrams Inc, 2005. p. 201-207. Entrevista concedida a Christopher Frayling. SERGI, Gianluca. In Defense of Vulgarity. In Scope [revista eletrnica], n. 5, junho de 2006. Disponvel em: <http://www.scope.nottingham.ac.uk/article.php?id=129&issue=5>. Acesso em: 2 fev. 2010. __________. The Dolby Era: Film Sound in Contemporary Hollywood. Manchester: Manchester University Press, 1994. SIMI, Carlo. Entrevista. In FRAYLING, Christopher. Once Upon a Time in Italy: The Westerns of Sergio Leone. New York: Harry Abrams Inc, 2005. p. 123-132. Entrevista concedida a Christopher Frayling. STAM, Robert. Introduo s Teorias do Cinema. Campinas: Papirus Editora, 2003. STONE, Alan. Purely Coincidental. In Boston Review [jornal on-line], 2009. Disponvel em: <http://bostonreview.net/BR34.6/stone.php>. Acesso em: 26 jan. 2010. TARANTINO, Quentin. Sergio Leone: Once Upon A Time Excerpt. In The Quentin Tarantino Archives [website], 2003. Disponvel em: <http://www.tarantino.info/wiki/index.php/Sergio_Leone:_Once_Upon_A_Time_Excerpt>. Acesso em: 2 de fevereiro de 2010. TIRARD, Laurent. Grandes Diretores de Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. TRUFFAUT, Franois. Uma Certa Tendncia do Cinema Francs. In TRUFFAUT, Franois. O Prazer dos Olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005. p. 257-276. TUDOR, Andrew. Teorias do Cinema. So Paulo: Martins Fontes Editora, 1985. TURNER, Graeme. Cinema como Prtica Social. So Paulo: Summus Editora, 1997. VALERII, Tonino. Italy on Widescreen. Cinegrafie [revista], Bolonha, v. 1, n. 16, p. 299, 2003. VINCENZONI, Luciano [entrevista]. In FRAYLING, Christopher. Once Upon a Time in Italy: The Westerns of Leone. New York: Harry Abrams Inc, 2005. P. 139-150. WAGSTAFF, Christopher. A Forkful of Westerns: Industries, Audiences and the Italian Westerns. In DYER, Richard; VINCENDEAU, Ginette. Popular European Cinema. London: Routledge, 1992. p. 245-262. WEIS, Elisabeth. Sync Tanks: The Art and Technique of Postproduction Sound. In Cineaste [revista], Vol. 21, 1995. Disponvel em: <http://filmsound.org/synctanks/>. Acesso em: 2 fev. 2010. WLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da Histria da Arte: O Problema da Evoluo dos Estilos na Arte mais Recente. So Paulo: Martins Fontes, 2000. WRIGHT, Will. Sixguns & Society: A Structural Study of the Western. Berkeley: University of California Press, 1975. 318 Filmografia 2001 Uma Odissia no Espao. Ttulo original: 2001 A Space Odissey. Pas: Estados Unidos. Direo: Stanley Kubrick. Ano de produo: 1968. A Batalha de Argel. Ttulo original: La Battaglia di Algeri. Pas: Itlia. Direo: Gillo Pontecorvo. Ano de produo: 1966 A Conquista do Oeste. Ttulo original: How the West Was Won. Pas: Estados Unidos. Direo: Henry Hathaway/John Ford/George Marshall. Ano de produo: 1962. A Conversao. Ttulo original: The Conversation. Pas: Estados Unidos. Direo: Francis Ford Coppola, 1974. A Cor do Dinheiro. Ttulo original: The Color of Money. Pas: Estados Unidos. Direo: Martin Scorsese. Ano de produo: 1986. A Dama de Shangai. Ttulo original: The Lady From Shangai. Pas: Estados Unidos. Direo: Orson Welles. Ano de produo: 1948. A Doce Vida. Ttulo original: La Dolce Vita. Pas: Itlia. Direo: Federico Fellini. Ano de produo: 1960. A Face Oculta. Ttulo original: One-Eyed Jacks. Pas: Estados Unidos. Direo: Marlon Brando. Ano de produo: 1960. A Fria. Ttulo original: The Fury. Pas: Estados Unidos. Direo: Brian De Palma. Ano de produo: 1978. A General. Ttulo original: The General. Pas: Estados Unidos. Direo: Buster Keaton. Ano de produo: 1926. A Marca da Pantera. Ttulo original: Cat People. Pas: Estados Unidos. Direo: Paul Schrader. Ano de produo: 1982. A Misso. Ttulo original: The Mission. Pas: Estados Unidos. Direo: Roland Joff. Ano de produo: 1986. A Morte Anda a Cavalo. Ttulo original: Da Uomo a Uomo. Pas: Itlia. Direo: Giulio Petroni. Ano de produo: 1967. A Paixo de Joana DArc. Ttulo original: La Passion de Jeanne dArc. Pas: Frana. Direo: Carl Theodor Dreyer. Ano de produo: 1928. A Pistola No Discute. Ttulo original: Le Pistole Non Discutono. Pas: Itlia. Direo: Mario Caiano. Ano de produo: 1964. A Regra do Jogo. Ttulo original: La Rgle du Jou. Pas: Frana. Direo: Jean Renoir. Ano de produo: 1939. A Queda do Imprio Romano. Ttulo original: The Fall of the Roman Empire. Pas: Estados Unidos. Direo: Anthony Mann, 1964. 319 A Tortura do Medo. Ttulo original: Peeping Tom. Pas: Inglaterra. Direo: Michael Powell. Ano de produo: 1960. As Aventuras de Tom Jones. Ttulo original: Tom Jones. Pas: Inglaterra. Direo: Tony Richardson. Ano de produo: 1963. Anjos de Cara Suja. Ttulo original: Angels With Dirty Faces. Pas: Estados Unidos. Direo: Michael Curtiz. Ano de produo: 1938. Alexandre Nevsky. Ttulo original: Aleksandr Nevskiy. Pas: Rssia. Direo: Sergei Eisenstein. Ano de produo: 1938. Ama-me Esta Noite. Ttulo original: Love Me Tonight. Pas: Estados Unidos. Direo: Rouben Mamoulian. Ano de produo: 1932 Apocalypse Now. Ttulo original: Apocalypse Now. Pas: Estados Unidos. Direo: Francis Ford Coppola. Ano de produo: 1979. Assalto 13 DP. Ttulo original: Assault on Precinct 13. Pas: Estados Unidos. Direo: John Carpenter. Ano de produo: 1976. Barry Lyndon. Ttulo original: Barry Lyndon. Pas: Estados Unidos. Direo: Stanley Kubrick. Ano de produo: 1975. Bastardos Inglrios. Ttulo original: Inglourious Basterds. Pas: Estados Unidos. Direo: Quentin Tarantino. Ano de produo: 2009. Ben-Hur. Ttulo original: Ben-Hur. Pas: Estados Unidos. Direo: William Wyler. Ano de produo: 1959. Bolt. Ttulo original: Bolt. Pas: Estados Unidos. Direo: Byron Howard e Chris Williams. Ano de produo: 2008. Bonnie & Clyde Uma Rajada de Balas. Ttulo original: Bonnie & Clyde. Pas: Estados Unidos. Direo: Arthur Penn. Ano de produo: 1967. Bullitt. Ttulo original: Bullitt. Pas: Estados Unidos. Direo: Peter Yates. Ano de produo: 1968. Butch Cassidy & Sundance Kid. Ttulo original: Butch Cassidy. Pas: Estados Unidos. Direo: George Roy Hill. Ano de produo: 1969. Cemitrio sem Cruzes. Ttulo original: Une Corde, um Colt. Pas: Itlia. Direo: Robert Hossein. Ano de produo: 1969. Cidado Kane. Ttulo original: Citizen Kane. Pas: Estados Unidos. Direo: Orson Welles. Ano de produo: 1941. Cidade de Deus. Ttulo original: Cidade de Deus. Pas: Brasil. Direo: Fernando Meirelles e Ktia Lund. Ano de produo: 2002. Cidade das Sombras.Ttulo original: Dark City. Pas: Estados Unidos. Direo: Alex Proyas. Ano de produo: 1998. Clepatra. Ttulo original: Cleopatra. Pas: Estados Unidos. Direo: Joseph L. Mankiewicz. Ano de produo: 1963. 320 Comboio do Medo. Ttulo original: Sorcerer. Pas: Estados Unidos. Direo: William Friedkin. Ano de produo: 1978. Conscincias Mortas. Ttulo original: The Ox-bow Incident. Pas: Estados Unidos. Direo: William Wellman. Ano de produo: 1943. Desejo e Reparao. Ttulo original: Atonement. Ano de produo: Joe Wright. Ano de produo: 2007. Dias de Ira. Ttulo original: I Giorno DellIra. Pas: Itlia. Direo: Tonino Valerii. Ano de produo: 1969. Django, o Bastardo. Ttulo original: Django Il Bastardo. Pas: Itlia. Direo: Sergio Garrone. Ano de produo: 1969. Django. Ttulo original: Django. Pas: Itlia. Direo: Sergio Corbucci. Ano de produo: 1966. Drages da Violncia. Ttulo original: Forty Guns. Pas: Estados Unidos. Direo: Samuel Fuller. Ano de produo: 1957. Duas ou Trs Coisas que Eu Sei Sobre Ela. Ttulo original: Deux ou Trois Choses que Je Sais D'elle. Pas: Frana. Direo: Jean-Luc Godard. Ano de produo: 1963. E o Vento Levou. Ttulo original: Gone With The Wind. Pas: Estados Unidos. Direo: Victor Fleming. Ano de produo: 1939. El Cid. Ttulo original: El Cid. Pas: Estados Unidos. Direo: Anthony Mann. Ano de produo: 1961. Elegia de Osaka. Ttulo original: Naniwa Erej. Pas: Japo. Direo: Kenji Mizoguchi. Ano de produo: 1936. Era uma Vez na Amrica. Ttulo original: Cera uma Volta in America. Pas: Itlia. Direo: Sergio Leone. Ano de produo: 1984. Era uma Vez no Oeste. C'era una volta il West. Pas: Itlia. Direo: Sergio Leone. Ano de produo: 1968. Estigma da Crueldade. Ttulo original: The Bravados. Pas: Estados Unidos. Direo: Henry King. Ano de produo: 1958. ET O Extraterrestre. Ttulo original: ET The Extra-terrestrial. Pas: Estados Unidos. Direo: Steven Spielberg. Ano de produo: 1982. Fogo Contra Fogo. Ttulo original: Heat. Pas: Estados Unidos. Direo: Michael Mann. Ano de produo: 1995. Fria Sanguinria. Ttulo original: White Heat. Pas: Estados Unidos. Direo: Raoul Walsh. Ano de produo: 1949. Gastone. Ttulo original: Gastone. Pas: Itlia. Direo: Mario Bonnard. Ano de produo: 1959. Grande Hotel. Ttulo original: Grande Hotel. Direo: Edmund Golding. Ano de produo: 1932. 321 Guerra nas Estrelas Uma Nova Esperana. Ttulo original: Star Wars: A New Hope. Pas: Estados Unidos. Direo: George Lucas. Ano de produo: 1977. Helena de Tria. Ttulo original: Helen of Troy Pas: Estados Unidos. Direo: Robert Wise. Ano de produo: 1956. Hiroshima Mon Amour. Ttulo original: Hiroshima Mon Amour. Pas: Frana. Direo: Alain Resnais. Ano de produo: 1959. Inverno de Sangue em Veneza. Ttulo original: Dont Look Now. Pas: Inglaterra. Direo: Nicolas Roeg. Ano de produo: 1973. Irreversvel. Ttulo original: Irreversible. Pas: Frana. Direo: Gaspar No. Ano de produo: 2002. Ivan, o Terrvel. Ttulo original: Ivan Groznii. Pas: Rssia. Direo: Sergei Eisenstein. Ano de produo: 1944-1945. Joe, o Pistoleiro Implacvel. Ttulo original: Navajo Joe. Pas: Itlia. Direo: Sergio Corbucci. Ano de produo: 1966. JFK A Pergunta que No Quer Calar. Ttulo original: JFK. Pas: Estados Unidos. Direo: Oliver Stone. Ano de produo: 1991. Johnny Guitar. Ttulo original: Johnny Guitar. Pas: Estados Unidos. Direo: Nicholas Ray. Ano de produo: 1954. Jules e Jim. Ttulo original: Jules et Jim. Pas: Frana. Direo: Franois Truffaut. Ano de produo: 1962. Ladres de Bicicleta. Ttulo original: Ladri di Biciclette. Pas: Itlia. Direo: Vittorio De Sica. Ano de produo: 1946. Laranja Mecnica. Ttulo original: A Clockwork Orange. Pas: Estados Unidos. Direo: Stanley Kubrick. Ano de produo: 1971. Legio Invencvel. Ttulo original: She Wore a Yellow Ribbon. Pas: Estados Unidos. Direo: John Ford. Ano de produo: 1949. Lua de Papel. Ttulo original: Paper Moon. Pas: Estados Unidos. Direo: Peter Bodganovich. Ano de produo: 1973. Mais Forte que a Vingana. Ttulo original: Jeremiah Johnson. Pas: Estados Unidos. Direo: Sydney Pollack. Ano de produo: 1972. Matar ou Morrer. Ttulo original: High Noon. Pas: Estados Unidos. Direo: Fred Zinnemann. Ano de produo: 1952. Matrix. Ttulo original: Matrix. Pas: Estados Unidos. Direo: Larry e Andy Wachowski. Ano de produo: 1999. Meu Nome Ningum. Ttulo original: Il Mio Nome Nessuno. Pas: Itlia. Direo: Tonino Valerii. Ano de produo: 1973. Meu Nome Trinity. Ttulo original: Lo Chiamavano Trinit. Pas: Itlia. Direo: Enzo Barboni. Ano de produo: 1970. 322 Meu dio Ser Sua Herana. Ttulo original: The Wild Bunch. Pas: Estados Unidos. Direo: Sam Peckinpah. Ano de produo: 1969. Minha Vontade Lei. Ttulo original: Warlock. Pas: Estados Unidos. Direo: Edward Dmytryk. Ano de produo: 1959. Monsieur Verdoux. Ttulo original: Monsieur Verdoux Pas: Frana. Direo: Charles Chaplin. Ano de produo: 1947. No Tempo das Diligncias. Ttulo original: Stagecoach. Pas: Estados Unidos. Direo: John Ford. Ano de produo: 1939. O Ano Passado em Marienbad. Ttulo original: L'anne Dernire Marienbad. Pas: Frana. Direo: Alain Resnais. Ano de produo: 1961. O Caador de Andrides. Ttulo original: Blade Runner. Pas: Estados Unidos. Direo: Ridley Scott. Ano de produo: 1982. O Cavalo de Ferro. Ttulo original: The Iron Horse. Pas: Estados Unidos. Direo: John Ford. Ano de produo: 1924. O Colosso de Rhodes. Ttulo original: Il Colosso di Rodi. Pas: Itlia. Direo: Sergio Leone. Ano de produo: 1961. O Destino Bate Sua Porta. Ttulo original: The Postman Always Ring Twice. Pas: Estados Unidos. Direo: Tay Garnett. Ano de produo: 1946. O Destino Bate Sua Porta. Ttulo original: The Postman Always Ring Twice. Pas: Estados Unidos. Direo: Bob Rafelson. Ano de produo: 1981. O Dia da Desforra. Ttulo original: La Resa dei Conti. Pas: Itlia. Direo: Sergio Sollima. Ano de produo: 1966. O Encouraado Potemkin. Ttulo original: Bronenosets Potyomkin. Pas: Rssia. Direo: Sergei Eisenstein. Ano de produo: 1925. O Enigma de Outro Mundo. Ttulo original: The Thing. Pas: Estados Unidos. Direo: John Carpenter. Ano de produo: 1982. O Exorcista. Ttulo original: The Exorcist. Pas: Estados Unidos. Direo: William Friedkin. Ano de produo: 1973. O Garoto. Ttulo original: The Kid. Pas: Estados Unidos. Direo: Charlie Chaplin. Ano de produo: 1921. O Grande Roubo do Trem. Ttulo original: The Great Train Robbery. Pas: Estados Unidos. Direo: Edwin S. Porter. Ano de produo: 1903. O Homem dos Olhos Frios. Ttulo original: The Tin Star. Pas: Estados Unidos. Direo: Anthony Mann. Ano de produo: 1957. O Homem que Luta S. Ttulo original: Ride Lonesome. Pas: Estados Unidos. Direo: Budd Boetticher. Ano de produo: 1959. 323 O Homem que Matou o Facnora. Ttulo original: The Man Who Shot Liberty Valance. Pas: Estados Unidos. Direo: John Ford. Ano de produo: 1962. O Manto Sagrado. Ttulo original: The Robe. Pas: Estados Unidos. Direo: Henry Koster. Ano de produo: 1953. O Poderoso Chefo. Ttulo original: The Godfather. Pas: Estados Unidos. Direo: Francis Ford Coppola. Ano de produo: 1972. O Preo do Poder. Ttulo original: Il Prezzo Del Potere. Pas: Itlia. Direo: Tonino Valerii. Ano de produo: 1969. O Rei da Comdia. Ttulo original: King of Comedy. Pas: Estados Unidos. Direo: Martin Scorsese. Ano de produo: 1983. O Retorno de Frank James. Ttulo original: The Return of Frank James. Pas: Estados Unidos. Direo: Fritz Lang. Ano de produo: 1941. O Senhor dos Anis - A Sociedade do Anel. Ttulo original: The Lord of the Rings The Fellowship of the Ring. Pas: Estados Unidos. Direo: Peter Jackson. Ano de produo: 2001. O Show de Truman. Ttulo original: The Truman Show. Pas: Estados Unidos. Direo: Peter Weir. Ano de produo: 1998. O Tesouro dos Renegados. Ttulo original: Der Schatz im Silbersee. Pas: Alemanha. Direo: Harald Reinle. Ano de produo: 1962. O Xerife do Queixo Quebrado. Ttulo original: The Sheriff of Fractured Jaw. Pas: Inglaterra. Direo: Raoul Walsh. Ano de produo: 1959. Onde Comea o Inferno. Ttulo original: Rio Bravo. Pas: Estados Unidos. Direo: Howard Hawks. Ano de produo: 1959. Onde os Fracos No Tm Vez. Ttulo original: No Country For Old Men. Pas: Estados Unidos. Direo: Joel e Ethan Coen. Ano de produo: 2007. Operao Frana. Ttulo original: The French Connection. Pas: Estados Unidos. Direo: William Friedkin. Ano de produo: 1972. Os Brutos Tambm Amam. Ttulo original: Shane. Pas: Estados Unidos. Direo: George Stevens. Ano de produo: 1953. Os Conquistadores. Ttulo original: Western Union. Pas: Estados Unidos. Direo: Fritz Lang. Ano de produo: 1941. Os Embalos de Sbado Noite. Ttulo original: Saturday Night Fever. Pas: Estados Unidos. Direo: John Badham. Ano de produo: 1977. Os Imperdoveis. Ttulo original: The Unforgiven. Pas: Estados Unidos. Direo: Clint Eastwood. Ano de produo: 1992. Os Incompreendidos. Ttulo original: Les 400 Coups. Pas: Frana. Direo: Franois Truffaut. Ano de produo: 1959. 324 Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Ttulo original: The Four Horsemen. Pas: Estados Unidos. Direo: Rex Ingram. Ano de produo: 1921. Os ltimos Dias de Pompia. Ttulo original: Gli Ultimi Giorni di Pompei. Pas: Itlia. Direo: Mario Bonnard. Ano de produo: 1959. Os Violentos Vo para o Inferno. Ttulo original: Il Mercenario. Pas: Itlia. Direo: Sergio Corbucci. Ano de produo: 1968. Paixo dos Fortes. Ttulo original: My Darling Clementine. Pas: Estados Unidos. Direo: John Ford. Ano de produo: 1946. Por um Punhado de Dlares. Ttulo original: Per um Pugno di Dollari. Pas: Itlia. Direo: Sergio Leone. Ano de produo: 1964. Por uns Dlares a Mais. Ttulo original: Per Qualche Dollaro in Pi. Pas: Itlia. Direo: Sergio Leone. Ano de produo: 1965. Quando Explode a Vingana. Ttulo original: Gi la Testa. Pas: Itlia. Direo: Sergio Leone. Ano de produo: 1971. Quo Vadis?. Ttulo original: Quo Vadis?. Pas: Estados Unidos. Direo: Mervyn LeRoy. Ano de produo: 1951. Rastros de dio. Ttulo original: The Searchers. Pas: Estados Unidos. Direo: John Ford. Ano de produo: 1958. Regio do dio. Ttulo original: The Far Country. Pas: Estados Unidos. Direo: Anthony Mann. Ano de produo: 1954. Revengers Tragedy. Ttulo original: Revengers Tragedy. Pas: Inglaterra. Direo: Alex Cox. Ano de produo: 2004. Roma, Cidade Aberta. Ttulo original: Roma, Citt Aperta. Pas: Itlia. Direo: Roberto Rossellini. Ano de produo: 1945. Sabata. Ttulo original: Sabata. Pas: Itlia. Direo: Gianfranco Parolini. Ano de produo: 1969. Sangue de Pantera. Ttulo original: Cat People. Pas: Estados Unidos. Direo: Jacques Tourneur. Ano de produo: 1942. Sartana. Ttulo original: Sartana. Pas: Itlia. Direo: Gianfranco Parolini. Ano de produo: 1968. Scarface. Ttulo original: Scarface. Pas: Estados Unidos. Direo: Howard Hawks. Ano de produo: 1932. Sem Destino. Ttulo original: Easy Rider. Pas: Estados Unidos. Direo: Dennis Hopper. Ano de produo: 1969. Sete Homens e um Destino. Ttulo original: The Magnificent Seven. Pas: Estados Unidos. Direo: John Sturges. Ano de produo: 1960. Sete Homens Sem Destino. Ttulo original: Seven Men From Now. Pas: Estados Unidos. Direo: Budd Boetticher. Ano de produo: 1956. 325 Shrek. Ttulo original: Shrek. Pas: Estados Unidos. Direo: Andrew Adamson e Vicky Jenson. Ano de produo: 2001. Sndrome de Caim. Ttulo original: Raising Cain. Pas: Estados Unidos. Direo: Brian De Palma. Ano de produo: 1992. Sodoma e Gomorra. Ttulo original: Sodom and Gomorrah. Pas: Estados Unidos. Direo: Robert Aldrich. Ano de produo: 1962. Taxi Driver. Ttulo original: Taxi Driver. . Pas: Estados Unidos. Direo: Martin Scorsese. Ano de produo: 1976. Tempo de Massacre. Ttulo original: Tempo di Massacro. Pas: Itlia. Direo: Lucio Fulci. Ano de produo: 1966. Tepepa. Ttulo original: Tepepa. Pas: Itlia. Direo: Giulio Petroni. Ano de produo: 1968. The Musketeers of Pig Alley. Ttulo original: The Musketeers of Pig Alley. Pas: Estados Unidos. Direo: David W. Griffith. Ano de produo: 1912. Titanic. Ttulo original: Titanic. Pas: Estados Unidos. Direo: James Cameron. Ano de produo: 1997. Touro Indomvel. Ttulo original: Raging Bull. Pas: Estados Unidos. Direo: Martin Scorsese. Ano de produo: 1980. Toy Story 2. Ttulo original: Toy Story 2. Pas: Estados Unidos. Direo: John Lasseter e Ash Brannon. Ano de produo: 1999. Trs Homens em Conflito. Ttulo original: Il Buono, il Brutto, il Cattivo. Pas: Itlia. Direo: Sergio Leone. Ano de produo: 1966. Trinity Ainda Meu Nome. Ttulo original: Continuavano a Chiamarlo Trinit. Pas: Itlia. Direo: Enzo Barboni. Ano de produo: 1971. Tubaro. Ttulo original: Jaws. Pas: Estados Unidos. Direo: Steven Spielberg. Ano de produo: 1975. Um Certo Capito Lockhart. Ttulo original: The Man From Laramie. Pas: Estados Unidos. Direo: Anthony Mann. Ano de produo: 1955. Um Dia de Co. Ttulo original: Dog Day Afternoon. Pas: Estados Unidos. Direo: Sidney Lumet. Ano de produo: 1975. Um Olhar no Paraso. Ttulo original: The Lovely Bones. Pas: Estados Unidos. Direo: Peter Jackson. Ano de produo: 2009. Um Plano Simples. Ttulo original: A Simple Plan. Pas: Estados Unidos. Direo: Sam Raimi. Ano de produo: 1998. Um Tiro na Noite. Ttulo original: Blow Out. Pas: Estados Unidos. Direo: Brian De Palma. Ano de produo: 1981. Uma Bala para Um General. Ttulo original: Quien Sabe?. Pas: Itlia. Direo: Damiano Damiani. Ano de produo: 1966. 326 Vera Cruz. Ttulo original: Vera Cruz. Pas: Estados Unidos. Direo: Robert Aldrich. Ano de produo: 1954. Vcio Frentico. Ttulo original: The Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans. Pas: Estados Unidos. Direo: Werner Herzog. Ano de produo: 2009. Winchester 73. Ttulo original: Winchester 73. Pas: Estados Unidos. Direo: Anthony Mann. Ano de produo: 1950. Wyatt Earp. Ttulo original: Wyatt Earp. Pas: Estados Unidos. Direo: Lawrence Kasdam. Ano de produo: 1994. Yojimbo. Ttulo original: Yojimbo. Pas: Japo. Direo: Akira Kurosawa. Ano de produo: 1961. 327 Anexos Tabela A: Nmeros de produo de spaghetti westerns (1960-1980) Ano Weisser 31 Fridlung 32 Catlogo Bolaffi 33 % do total da produo italiana 34 1960 - 1 2 - (135) 1961 4 1 - - (152) 1962 2 2 - - (160) 1963 14 14 - - (164) 1964 27 35 13 8,1 (160) 1965 42 58 34 18,7 (182) 1966 69 68 52 22,9 (227) 1967 66 70 66 27,7 (238) 1968 83 73 71 29,6 (240) 1969 43 33 26 10,8 (241) 1970 34 42 35 15,9 (220) 1971 54 51 39 18,4 (211) 1972 51 44 42 15,5 (277) 1973 24 20 18 7,7 (234) 1974 19 12 8 3,3 (240) 1975 10 13 5 2,5 (201) 1976 5 3 2 0,85 (234) 1977 4 2 3 2,0 (150) 1978 3 3 2 3,5 (56) 1979 0 1 0 - 1980 1 0 0 - Total 555 546 418 13,00 (3111) Fonte: The Spaghetti Westerns: A Tematic Analysis (FRIDLUND, 2006, p. 8). 31 Dados compilados por Thomas Weisser (1992). 32 Dados compilados por Bert Fridlund (2006). 33 Estatsticas publicadas anualmente pelo Catlogo Bolaffi (dados oficiais do Governo da Itlia). 34 Estatsticas publicadas anualmente pelo Catlogo Bolaffi (dados oficiais do Governo da Itlia). 328 Tabela B: Produo de filmes em geral e westerns em Hollywood (1926-1967) Ano Total de filmes Total de westerns Percentual de westerns 1926 1927 1928 1929 1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 700* 678 641 562 509 501 489 507 480 525 522 538 455 483 477 492 488 397 401 350 378 369 366 356 383 391 324 344 253 254 272 300 241 187 154 131 147 121 141 153 I56 178 199 145 141 92 79 85 108 65 76 145 135 135 122 123 143 130 120 103 95 80 98 95 108 97 130 109 108 92 69 68 83 70 54 39 28 22 15 11 21 22 20 20 28 21 11 16 16 17 22 13 16 28 26 25 27 25 30 27 25 26 24 23 26 26 30 27 34 28 33 27 27 27 31 23 22 21 18 17 10 9 15 14 13 11 * total aproximado Fonte: The BFI Companion to the Western (BUSCOMBE, 1988, p. 427) 329 Apndices Tabela A: Quantidade de linhas de dilogo em filmes de gnero DILOGOS DURAO LINHAS POR MINUTO Era uma Vez no Oeste (1968) 686 linhas 175 minutos 3,92 Quando Explode a Vingana (1971) 728 linhas 157 minutos 4,63 Meu Nome Ningum (1973) 593 linhas 117 minutos 5,06 Trs Homens em Conflito (1966) 943 linhas 179 minutos 5,26 Por uns Dlares a Mais (1965) 719 linhas 132 minutos 5,44 Era uma Vez na Amrica (1984) 1359 linhas 229 minutos 5,93 Por um Punhado de Dlares (1964) 687 linhas 99 minutos 6,93 O Homem do Oeste (1958) 730 linhas 100 minutos 7,30 Vera Cruz (1954) 694 linhas 94 minutos 7,38 Johnny Guitar (1954) 834 linhas 110 minutos 7,58 Matar ou Morrer (1952) 670 linhas 85 minutos 7,88 Legio Invencvel (1949) 838 linhas 103 minutos 8,13 Paixo dos Fortes (1946) 795 linhas 97 minutos 8,19 Os Brutos Tambm Amam (1953) 1011 linhas 118 minutos 8,56 Sete Homens Sem Destino ((1956) 642 linhas 73 minutos 8,79 O Resgate do Bandoleiro (1957) 691 linhas 78 minutos 8,85 O Homem que Matou o Facnora (1962) 1093 linhas 123 minutos 8,88 Rastros de dio (1956) 1116 linhas 119 minutos 9,37 O Homem que Luta S (1959) 689 linhas 73 minutos 9,43 Cu Amarelo (1948) 961 linhas 98 minutos 9,80 No Tempo das Diligncias (1939) 1005 linhas 96 minutos 10,46 O Preo de um Homem (1953) 953 linhas 91 minutos 10,47 Um Certo Capito Lockhart (1955) 1102 linhas 104 minutos 10,59 Onde Comea o Inferno (1959) 1526 linhas 141 minutos 10,82 Drages da Violncia (1957) 917 linhas 79 minutos 11,60 Minha Vontade Lei (1959) 1417 linhas 122 minutos 11,61 Regio do dio (1954) 1128 linhas 97 minutos 11,62 Winchester 73 (1950) 1103 linhas 92 minutos 11,98 Rio Vermelho (1948) 1628 linhas 133 minutos 12,24 Duelo ao Sol (1946) 1793 linhas 144 minutos 12,45 330 Tabela B: Uso de close-ups e movimentos de cmera em filmes de Sergio Leone Por um Punhado de Dlares Trs Homens em Conflito Era uma Vez na Amrica Close-ups sem movimento 166 241 275 Close-ups extremo sem movimento 185 410 347 Outros enquadramentos sem movimento 246 363 390 Close-ups com movimento 55 84 169 Close-ups extremos com movimento 32 141 228 Outros enquadramentos com movimento 173 233 278 Total de planos do filme 857 1.472 1.687 Plano mais longo do filme 86 segundos 87,2 segundos 247,4 segundos Mdia de durao de um plano 6,5 segundos 7,1 segundos 7,9 segundos
As Olimpíadas Entre Mito e Realidade: Um Estudo Etnográfico Do Imaginário Da População Do Rio de Janeiro Sobre o Uso Do Território No Ámbito Dos Jogos Olímpicos de 2016
Hiago Mendes Guimarães - Hermenêutica Filosófica e Retórica - Convergências A Partir Do Conceito de Phronesis em Hans-Georg Gadamer. 1-Editora Fi (2022)