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Cor Púrpura

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RESENHA CRÍTICA: A COR PÚRPURA

A Cor Púrpura, livro de ficção da feminista e ativista pelos direitos civis Alice
Walker, não é apenas um clássico da literatura norte-americana, como também
vencedor do prêmio Pulitzer em 1983. Editado no Brasil pela José Olympio - selo do
Grupo Editorial Record, o livro conta, através de cartas, a jornada de crescimento e
auto-descobrimento de Celie, no inicio do século XX.

“Você tá dizendo que Deus é vaidoso? eu perguntei.

Não, ela falou. Num é vaidoso, só quer repartir uma coisa boa. Eu acho que Deus
deve ficar fora de si se você passa pela cor púrpura num campo qualquer e nem
repara.”

Provavelmente uma das cores mais enigmáticas que possuímos, o púrpura. Para os
católicos, significa penitência. É a cor de nossas veias, acomodando-se por debaixo da
epiderme e acompanhando todo ser humano até sua morte, quando se espalha pelo
corpo e deixa exposto o maior simbolismo presente no roxo: transformação. É o
cobertor que nos é entregue para nossas boas-vindas no eterno embalo da morte, antes
de nos tornarmos o nada que já fomos um dia.

No livro “A Cor Púrpura”, de Alice Walker, ambientado em 1930, somos expostos à


história cruel de Celie. Em uma narrativa epistolar, recebemos relatos completos
sobre sua vida em primeira mão.

A presença das cartas na narrativa proporciona uma intimidade do leitor com Celie,
que registra suas conversas com Deus. Apesar da simplicidade de sua escrita, que é
cheia de erros gráficos e oralidades, ela revela-se uma personagem complexa e
extremamente intensa.

Torturada pelo padrasto, que a abusava sexualmente, isolava do mundo exterior e lhe
fazia passar por diversas gravidezes em que lhe eram retirados os filhos após o
nascimento, Celie aturava esses ataques com a consciência de que estaria poupando a
irmã mais nova, Nettie, de vivê-los.
Esse é apenas um dos exemplos do comportamento empático de Celie ao decorrer do
livro, que demostra um surpreendente altruísmo mesmo com todas as adversidades e o
abandono que sofre. Porém, eventualmente sua vida toma uma drástica reviravolta ao
ser separada da irmã que tanto protegeu e dada em casamento para um fazendeiro da
região. Nettie foge de casa e promete manter contato e escrever, mas as cartas jamais
chegam e Celie é presenteada com mais um abandono para seu currículo.

De início, o nome dos homens do livro não é revelado. Somos limitados a uma
amostra de seus comportamentos mais monstruosos, o que faz com que pareçam
quase inumanos. São uma espécie à parte da humana, todos com requintes de
crueldade e dispostos a destruir uma mulher. O pior: não por querer, a drenagem é
natural e eles se acham merecedores de tudo que tomam. Nomes surgem conforme a
evolução da narrativa, e a presença deles é um baque: desperta a consciência de que
essas pessoas são comuns.

A saída de um inferno para outro não muda as condições de Celie e frustra a


esperança de todos que esperavam que sua situação pudesse melhorar. Os abusos
continuam, com Celie sendo submetida a um trabalho exaustivo que é dado como uma
responsabilidade natural sua. Ela apanha sempre que faz algo indesejado e naturaliza
essas surras, chegando a incorporar esse discurso violento como uma solução para
desobediência de Sofia, a esposa de Harpo, filho do fazendeiro (para nossa satisfação:
ela revida. E com força. Atitude que deixa Celie perplexa, pois resistência jamais
tinha se parecido com uma opção para ela.).

Mesmo com a continuidade de uma vida sofrida, Celie se apega a uma foto de uma
mulher bonita que acha em sua nova casa. A mulher é Shug Avery, a ex-amante de
seu novo marido. Nasce, assim, uma paixão platônica de Celie em relação à Shug. Ela
idealiza a mulher na foto, apesar de sua reputação infame e moralmente questionável.

Ao ouvirmos os devaneios de Celie em relação à Shug, há certa expectativa quando


descobrimos que vão se encontrar pela primeira vez por Shug estar doente e
precisando de amparo. Só que não dá para ler “A Cor Púrpura” sendo muito otimista:
a primeira coisa que Shug diz quando se encontra com Celie é que ela “é feia
mesmo”.

A dicotomia entre Celie e Shug é interessante, somos apresentadas a duas mulheres


que cumprem todos os requisitos da tríade da opressão: ambas são negras, mulheres e
nenhuma das duas são hétero. Mesmo que cumpram com a interseccionalidade de
características que lhes tornam indivíduos extremamente vulneráveis, socialmente
falando, são perfeitos paradoxos uma da outra. Celie é submissa, tímida, “recatada e
do lar”, ao passo que Shug é impositiva, dona de uma língua afiada e opiniões
desprovidas de misericórdia. Ela também possui uma carreira como cantora, é
bastante famosa e uma pessoa que todos sentem vontade de impressionar.
Ainda que Shug tenha sido hostil ao encontrar Celie, a amizade das duas floresce pela
persistência que Celie tem de prover cuidados a ela. É com a presença de Shug que a
sexualidade de Celie floresce, e ela finalmente começa a se descobrir e se
compreender como mulher lésbica. Os diálogos que dividem são sinceros e de
extrema vulnerabilidade, aquecendo o coração de quem acompanha o
desenvolvimento das duas, mas não esperem que elas tenham um relacionamento
estável ou nada do tipo: Shug se mostra um espírito livre e desapegado dos amores
que vive. Não torna o romance menos real, mas faz com que sejamos iludidas por
Shug como Celie também foi.

Porém, nem tudo são flores. Por mais que o relacionamento entre Shug e Celie seja
uma representação de empoderamento, também somos expostos aos sacrifícios e
riscos de se resistir e lutar. Como já mencionado nesse resumo, Sofia, a esposa de
Harpo, é a personagem que Celie imaginou poder corrigir o comportamento com uma
surra. No fim, quem apanhou foi ele. Sofia rejeita toda opressão que tentam impor a
ela, retaliando toda tentativa de agressão que recebe. Essa retaliação é perigosa: para
toda resistência, há um novo ataque a ser feito.

Após reagir com desgosto à opinião (nem um pouco requisitada) de uma branca que
diz que Sofia deveria “trabalhar para ela”, ela recebe uma tentativa de agressão por
parte do marido dessa mulher. Ao revidar, ela é gravemente lesionada e recebe uma
sentença de doze anos na cadeia, independente de sua atitude ter sido de autodefesa
ou não. A humilhação se agrava mais ainda quando, pelos riscos graves que sofria
estando na prisão, Sofia aceita servir a família das pessoas que a agrediram ao invés
da pena encarcerada. Assim, ao lutar com uma opressão diária, ela é relegada a prática
de tempos mais remotos: se encontra em um regime de escravidão que a impede de
ver seus filhos e suga o que resta de sua dignidade.

Somos encarados com uma verdade dolorosa: sempre há como retroceder. Mesmo que
a resistência devesse ser vista como natural do ser humano, ela tem um preço. Um
preço que é delegado não só por um indivíduo, mas compartilhado com um sistema
que é cuidadosamente montado para não permitir deslizes. Talvez o pior seja saber
que a violência tem valores: que certos tipos de violência são mais permissivos do que
outros.

Em determinado momento da história, nos é revelado que o nome do fazendeiro é


Albert e que ele tem escondido as cartas que Nettie enviava para Celie. Descobrimos,
assim, que ela está envolvida com missionários, e a questão racial do livro toma um
rumo mais universalizado. Somos expostos à jornada de Nettie pela África e sua
convivência com uma tribo vítima da exploração e da necropolítica, ou seja, da
permissividade, pelo Estado, de atitudes que exterminam povos “menos valiosos” em
prol do lucro. A visão africana sobre o racismo é uma surpresa agradável que provém
novas dimensões para a questão que estão além da norte-americana e expõe uma dor
que nem sempre é colocada sobre foco.
A descoberta das cartas de Nettie levam Celie a questionar sua fé em Deus pelo tempo
irrecuperável. Por pensar que Nettie estaria morta e não ter certeza de seu bem-estar.
Há um momento de dor muito grande que a leva se questionar o porquê Deus permite
tamanha crueldade. Ela muda completamente como pessoa, abandona Albert e
começa uma vida nova com empreendimentos. Verdades sobre seu passado são
reveladas, e é descoberto que o pai de Celie não era seu pai de verdade, mas seu
padrasto, e que seu pai foi morto por homens brancos por abrir um negócio que estava
prosperando.

É muito doloroso se perguntar se Celie teria levado uma vida tranquila, ou pelo menos
melhor, se não fosse pelo ódio desses homens brancos.

No mais: A Cor Púrpura é um livro sobre reação em cadeia e sobre resiliência. É um


livro simples, porém violento, e com diversas camadas para serem dissecadas. Sua
natureza agridoce arrebata corações com a dureza do ser humano, sobre como atos de
crueldade reverberam durante uma vida toda e são acumulativos: ninguém esquece
uma ferida aberta.

Seria possível manter nossa fé inquebrável diante de tanta catástrofe? Celie me faz
querer acreditar que sim, seja essa fé em Deus, no futuro ou na humanidade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

WALKER, Alice. A Cor Púrpura. 1. ed.

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