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O Soar Dos Tambores Japoneses Uma Etnografia Sobre Arte Tradicao e Etnicidade

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CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

RAISSA ROMANO CUNHA

O SOAR DOS TAMBORES JAPONESES: UMA


ETNOGRAFIA SOBRE ARTE, TRADIÇÃO E ETNICIDADE

Londrina
2017
RAISSA ROMANO CUNHA

O SOAR DOS TAMBORES JAPONESES: UMA


ETNOGRAFIA SOBRE ARTE, TRADIÇÃO E ETNICIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao curso de Bacharelado em
Ciência Sociais da Universidade Estadual
de Londrina para obtenção do título de
Bacharel em Ciências Sociais.
Orientadora: Prof. Dra. Carla Delgado de
Souza.

Londrina
2017
Raissa Romano Cunha

O SOAR DOS TAMBORES JAPONESES: UMA ETNOGRAFIA SOBRE ARTE,


TRADIÇÃO E ETNICIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao curso de Bacharelado em
Ciência Sociais da Universidade Estadual
de Londrina para obtenção do título de
Bacharel em Ciências Sociais.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dra. Carla Delgado de Souza


Universidade Estadual de Londrina
Orientadora

Prof. Dr. Celso Vianna Bezerra Menezes


Universidade Estadual de Londrina

Prof. Dr. Flávio Braune Wiik


Universidade Estadual de Londrina

Londrina–PR, 17, de Agosto de 2017


À minha família, em especial,
minha avó Maria Margarida.
AGRADECIMENTOS

Ao longo da trajetória acadêmica minha vida se cruzou com muitas outras,


e dessa troca de simbólica antropofagia, meu ser foi constantemente se
re(construindo). Sou grata, antes de tudo, pela possibilidade de ter experienciado
o que a UEL me proporcionou. Agradeço meus pais, Jailton da Silva Cunha e
Rosina Romano Cunha, por todo apoio e estrutura necessária para a realização
da minha graduação. Agradeço a minha madrinha, Rosangela dos Santos
Romano, por ser um exemplo intelectual a quem pude me espelhar durante toda
a vida. Agradeço a minha família, de modo geral, por todo o amor e cuidados.
Esse trabalho de conclusão de curso não teria se consumado sem minha
orientadora, Carla Delgado de Souza, a quem estou vinculada desde o meu
primeiro ano. Além das preciosas orientações e críticas construtivas, a relação foi
pautada em confiança e amizade, por isso, concluo a graduação com saudades
antecipadas e profundamente grata. Agradeço à banca examinadora, Celso
Menezes e Flávio Wiik, que foram convidados devido a importância que tiveram
durante a minha formação. Agradeço a família que construí em Londrina, amigos
que estiveram comigo durante toda a trajetória e a Fernanda Verruck de Moraes,
por todo o amor.

Por fim, agradeço ao grupo Ishindaiko, que me acolheu, permitindo que


minha presença estrangeira penetrasse o espaço familiar que permeia
seus treinos e convivência. Arigato gozaimashita!
Quando a hesitação do desconhecido
alcançou a minha boca e eu pressenti a
inanição que mora no fundo de todo zelo,
tive de abandonar um velho quarto sem
janelas e despedir-me de todo um
repertório de personas e de mascadas:
trêmulo, consenti que a potência da arte
perfurasse o meu umbigo e, repleto de um
pressentimento, disse sim à nova província
insegura.

Juliano Garcia Pessanha


CUNHA, Raissa Romano. O soar dos tambores japoneses: uma etnografia
sobre arte, tradição e etnicidade. Trabalho de Conclusão de Curso para o
Bacharelado em Ciências Sociais. Centro de Letras e Ciências Humanas –
Universidade Estadual de Londrina, 2017.

RESUMO

O grupo de taiko (tambores japoneses), Ishindaiko, formado em 2003 na cidade de


Londrina – PR, é considerado, devido aos títulos acumulados, um dos melhores
grupos de taiko do país. O presente trabalho de conclusão de curso consiste em
uma etnografia que parte do microcosmo do grupo étnico-percussivo Ishindaiko para
pensar questões abrangentes da literatura antropológica. A pesquisa se
desenvolveu com base em dois anos de trabalho de campo em conjunto com o
grupo envolvendo entrevistas, acompanhamentos de treinos, viagens e eventos. A
partir do campo, busquei referências bibliográficas para dialogar com os temas que
estavam latentes ao observar o Ishindaiko, sendo eles: arte, tradição e etnicidade.
Dividido em três capítulos, o trabalho busca desenvolver cada um dos temas
mencionados a cima. Em um primeiro momento, a ênfase recai sobre a história e o
mito do taiko, discutindo o papel da tradição na prática a partir de Eric Hobsbawm e
Bender Shawn. O segundo capítulo mergulha no universo do grupo Ishindaiko para
pensar as relações que estabelecem através do kumi-daiko (taiko moderno) e a
performance em si. Nesse momento, busco observar como tal manifestação cultural
tradicional, que vem sendo construídas pelos jovens nikkeis, é parte de um
movimento de “reencantação do mundo” através do enaltecimento do “saber dos
interstícios”, com a ênfase na ação comunitária, utilizando dos conceitos
apresentados por Michel Maffesoli em “O tempo das tribos”. Além desse aspecto, a
sacralização do cotidiano através da prática do taiko, construindo ritos e tradições
particulares, configura o outro eixo do capítulo. Por fim, no terceiro capítulo, foco na
questão da etnicidade, em diálogo com a produção que vem sendo construída a
respeito do taiko no Brasil, Estados Unidos e Canadá, e do livro “Grupos étnicos e
suas fronteiras” de Fredrik Barth.

Palavras-chave: taiko; etnicidade; tradição; ritual; grupo étnico-percussivo.


CUNHA, Raissa Romano. The sound of japanese drumming: a etnography
about art, tradition and ethnicity. Monograph for the Bachelor Degree in Social
Sciences. Center of Letters and Human Sciences – Londrina State University, 2017.

ABSTRACT

The taiko (japanese drums) group, Ishindaiko, born in 2003 in the city of Londrina –
PR, is considered, due to its achievements, one of the best brazilian taiko groups.
The following paper work is an etnography which approaches the microcosmos of
the ethnic-percussive group Ishindaiko to analyse it through the antropologic
literature. The research is based on two years of fieldwork, including interviews,
accompaniment of trainings, trips and events. Some antropologic themes were
elected to guide the study of Ishindaiko: art, tradition and ethnicity. Organized in
three chapters, the work aims to develop each one of the themes mentioned above.
At first, the focus is on the history and myth of taiko, considering the role of tradition
on kumi-daiko (modern taiko), based on Eric Hobsbawm and Bender Shawn. The
second chapter explores the Ishindaiko’s universe to understand the relationships
established through taiko and the performance itself. At this point, the goal is to
observe how the cultural tradition, which has been built by the young nikkeis, takes
part on a movement of “reenchantment of the world” through the exaltation of
“interstice knowledge”, with emphasis on communitary action, using the concepts
provided by Michel Maffesoli on “The tribes time”. Besides that, the sacralization of
life caused by the practice of taiko, that creates particulars rites and traditions,
consists on the other focus of the chapter. At last, in the third chapter, the discution
lies on the concept of ethnicity, by relating it to the scientific production on taiko that
has been made in Brazil, United States and Canada, and to the book “Ethnics
groups and Boundaries” by Fredrik Barth.

Key words: taiko; ethnicity; tradition; ritual; ethnic-percussive group.


SUMÁRIO

RESUMO

ABSTRACT

INTRODUÇÃO – O NERVOSISMO DE SER VÍRUS...................................11

Capítulo 1 – MITO E HISTÓRIA DO TAIKO NO BRASIL.......................... 17

1.1 O kumi daiko ou taiko moderno e sua expansão ao Ocidente.............. 21


1.2 – A imigração japonesa e o taiko no Brasil............................................23

Capítulo 2 – TORNAR-SE ISHINDAIKO: PERCEPTOS E AFETOS..........35

2.1 A iniciação..............................................................................................36

2.2 Os tambores de uma só alma................................................................ 38

2.3 A vitalidade dos corpos exauridos.......................................................... 53

2.4 O intercâmbio entre tambores londrinenses...........................................58


2.5 Hierarquia e a organização..................................................................... 61

Capítulo 3 – ENTRE LUGARES: BRASIL E JAPÃO NA MÚSICA DOS


TAMBORES................................................................................................. 73

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 94

REFERÊNCIAS............................................................................................ 96

ANEXO: Caderno de referências etnomusicológicas................................... 98


Introdução
O nervosismo de ser-vírus

Este trabalho de conclusão de curso é uma etnografia sobre o taiko, que em


japonês quer dizer “tambores". O campo foi realizado junto ao grupo Ishindaiko, da
cidade de Londrina - Paraná, no decorrer de dois anos. Nesse período pude
vivenciar o processo característico do trabalho antropológico de adentrar em um
universo distinto do habitual, que me permitiu, entre outras coisas, compreender
novas formas de experenciar a relação com os tambores. Parto da perspectiva de
Edward Bruner (1986) para pensar a etnografia enquanto uma narrativa, uma forma
especifica de discurso, que envolve um processo dialético de contar a
história da experiencia vivenciada em campo. Nessa introdução, apresento como se
deu o contato com o Ishindaiko e o trajeto metodológico desenvolvido para a
realização desse trabalho.
Aquilo que como estrangeira senti não há descrição densa que consiga
expressar. O Ishindaiko não se constitui apenas um grupo de taiko. Em sua
dinâmica interna e discursos apresentam-se como um único corpo se
movimentando, apesar das particularidades individuais. A sensação de ser um
estranho em um ambiente que possui seu ritmo, onde cada pessoa envolvida
compreende seu lugar, me amedrontou no princípio do contato. Ishindaiko é
"formado pelos ideogramas I – um, SHIN – coração, e DAIKO – taiko, que significa
“tambores de uma só alma”, um único coração pulsando nesse corpo social, e
minha presença chega como um vírus em seu cotidiano: um corpo estranho. Apesar
de ter sido muito bem recebida por todos, sem “glóbulos protetores” tentando me
destruir, o processo de integração não se dá em alguns meses, uma vez por
semana. O mínimo de conforto na presença dos meus nativos só foi conquistado de
fato após mais de um ano e meio de contato.
A decisão de estudar o Ishindaiko surgiu após uma proposta disciplinar no
segundo ano do curso, promovida pelo professor Flavio Wiik, que nos convidava a
estranhar o familiar e nos familiarizar com o estranho, seguindo a máxima da
antropologia. Os textos oriundos dessa experiência deveriam possuir
um caráter etnográfico, e o contato com o "outro" deveria ter liberdade total para
aparecer através dos jovens olhos dos pesquisadores que emergiam no campo, em

11
muitos casos, pela primeira vez. Uma colega de turma, Natália Akiko Nasu, decidiu
como objeto de análise o grupo percussivo Maracatu Semente de Angola, que faço
parte há mais de 3 anos. A Natália, por sua vez, é integrante do Ishindaiko desde
2010, grupo que conheci após assistir um show no Marista em 2013 a seu convite.
Diante disso surgiu a possibilidade de experimentar um "intercâmbio" entre os
tambores londrinenses, onde cada uma iria mergulhar no grupo percussivo da outra
e escrever um ensaio etnográfico a respeito da vivência. Enquanto o Semente de
Angola promove ensaios e oficinas abertas a todos, e buscam integrar novos
membros a todo instante ao coletivo, o Ishindaiko é um grupo predominantemente
fechado, sendo que, a entrada no grupo demanda uma seleção
especifica. Natália Nasu se aproximou do coletivo sem apresentar-se enquanto
pesquisadora foi aceita como nova integrante após a presença ativa nas terças e
sábados. No meu caso, precisei apresentar brevemente a proposta do trabalho ao
líder do Ishindaiko na época, Gabriel Hideki, através da Natália Akiko. Em um
segundo momento, após a aceitação online, apresentei oralmente aos tocadores a
proposta da disciplina e em que consistia minha presença ali.
Desde o princípio o fato de ser percussionista foi fundamental para a
produção do trabalho. A todo instante, inevitavelmente, tecia comparações mentais
com a organização dos dois grupos, os instrumentos, a forma de tocar os tambores,
entre outras questões. A figura da percussionista os nativos só vieram a conhecer
depois de 6 meses de campo, quando levei os instrumentos do maracatu e
apresentei para eles os toques. A complexidade era o elemento que mais agradava,
sendo que a "viração"1 e os toques no atabaque encantaram mais do que o "melê"2,
que possui uma marcação simples. Nesse dia também entreguei para eles o ensaio
que havia escrito para a disciplina. Percebo ter sido um divisor de águas em relação
ao momento anterior, pois, a partir daquele instante eles também tinham me
escutado, diferente da postura em campo durante os meses anteriores onde eu
apenas ouvia e realizava perguntas. Minha presença ganhava forma, cor, som.
A sensação de que havia muito mais o que aprender a respeito do taiko e
do Ishindaiko, somado a abertura que já havia no campo, me impulsionaram a dar
continuidade nos estudos com o grupo após a disciplina.

1
Vide caderno de referências etnomusicológicas nº XI.
2
Vide caderno de referências etnomusicológicas nº X.
12
A abertura que encontrei, posterior a viagem em conjunto para o campeonato
atrelado a apresentação musical/entrega do ensaio ao grupo, me remeteu ao artigo
Ser-afetado da antropóloga Jeanne Favret-Saada (2005). A autora pensa uma
dimensão do trabalho de campo conceituada enquanto afetos. Para ela, ser-afetado
é se permitir experienciar nos moldes dos nativos e perceber que não possui o
controle sobre o rumo da pesquisa, ao menos em um primeiro momento. É
arriscado. Creio que posso falar de afetos por ter tido momentos específicos em que
pude me sentir parte do universo Ishindaiko: as concentrações, orações, nos
resquícios de rituais, ao ser apresentada como parte do grupo em
eventos, e principalmente, quando foi anunciado o nome do campeão brasileiro de
2015 de taiko: Ishindaiko. A leitura do texto da Favret-Saada, que passou um ano
inteiro em campo sem conseguir coletar informações, foi condizente com a
sensação que senti no começo do trabalho, quando frequentava os treinos e me
sentia uma completa estranha. Somente depois que me viram enquanto
percussionista (assim como os nativos de Saada que se abriam após
diagnosticarem que ela foi vítima de feitiçaria) vislumbrei um campo com maior
abertura a construção de relações mais próximas.
O caminho metodológico traçado por esse trabalho é caracterizado por um
movimento em espiral, variando entre o contato direto com os nativos no campo e o
afastamento para análise do material e busca de referências bibliográficas.
A carência de produção acadêmica brasileira a respeito do taiko dificultou minhas
pesquisas, principalmente na parte histórica, que me levou a recorrer a fontes da
antropologia que na maioria dos casos, estavam distantes do taiko e da cultura
japonesa de modo geral, apesar de dialogar com o que encontrava
em minha pesquisa empírica. Utilizei no campo abordagens variadas, desde
participar dos treinos até mesmo entrevistas com gravador, caderno, ou
completamente informais. As conversas off-record foram as maiores fontes de
informações, pois muitos ficavam constrangidos de serem entrevistados e falar a
respeito do grupo ou do taiko.
No primeiro dia que levei o gravador com intenção de entrevistar não consegui
ninguém, primeiro pelo fato de que todos estavam ocupados e realizando tarefas, e
segundo porque a timidez era um fator presente tanto nos nativos quanto em mim.
O fundador do grupo ao final perguntou se eu tinha conseguido entrevistar como
13
gostaria, e eu disse que não; "Tem que ser cara de pau" ele me recomendou, e
chamou o líder atual para me dar as informações que eu desejava. Comecei a
conversar com o Erick informalmente, como de costume, e tirar as dúvidas e
questionar a respeito de vários aspectos do Ishindaiko. Obtive as respostas que
desejava, mas com o gravador desligado. Quando terminamos a conversa disse
inconformada: “Não acredito que essas coisas só acontecem com o gravador
desligado!”, no que ele retrucou: “Se tivesse com ele ligado eu não teria falado
assim”. A dificuldade de realizar entrevistas gravadas também estava associada
à hierarquia do grupo e sua organização interna, pois, quando me dirigia a alguém
que não ocupava uma posição “alta”, era constantemente orientada a conversar
com as lideranças.
Outro elemento que foi introduzido no campo foi a câmera fotográfica. Ao
contrário do caderno, que despertava incômodos e interesses no sentido de tentar
desvendar “o que ela está pensando/escrevendo?”, a câmera criou maior conforto.
Acostumados a ser fotografados em eventos, a câmera não apresentava nenhuma
ameaça, apesar de estar capturando momentos mais íntimos e na maioria das
vezes, fora da performance em si. A proposta de utilizar esse instrumento se baseia
na ideia de que as fotografias consigam, juntamente com o texto, convidar o leitor a
adentrar no universo do Ishindaiko através do meu olhar.
Apesar de desejar me aproximar do trabalho de Jean Rouch ao introduzir
a câmera, na proposta de penetrar no imaginário do que o próprio nativo diz sobre
si, observo como prática minha produção dialoga com o proposto
por Mead e Bateson, em Balinese Character (1942), ao direcionar o olhar para a
produção de imagens que demonstram os comportamentos e relações sociais que
os integrantes estabelecem entre si. Observo essa influência nas fotografias que
produzi, pois, meu olhar esteve constantemente voltado para as interações entre os
familiares e os jovens, seus corpos, seus jeitos. Porém, diferentemente desses
autores, não creio na objetividade do registro etnográfico, e novamente me
aproximando do Rouch, realço o fato de que são imagens construídas de uma
perspectiva especifica: minha relação com os membros do Ishindaiko.
Esse é um fator interessante de se observar, pois as fotografias possuem
um ar de “espionagem”: as pessoas não sabiam estar sendo capturadas naqueles
momentos. Muitas estão permeadas de verdadeira perseguição de instantes. É um
14
olhar que busca invadir intimidades, sem ser percebida, mas que em muitos casos,
foi pega, e a troca de olhar foi também alvo de captura. Estar com a câmera,
espionando seu cotidiano, o objeto intermediando meu olhar, criou uma atmosfera
de ainda mais abertura e curiosidade. As fotografias passaram por alguns filtros, no
sentido de que, um grande número delas foi colocada à disposição do grupo e
algumas, poucas, foram selecionadas para compor a narrativa etnográfica desse
trabalho. Essas imagens vão recortar o texto, apresentando aos leitores aspectos
que permitem adentrar no Ishindaiko através de outros sentidos.
A trajetória para a realização desse trabalho pode ser caracterizada através
de três momentos distintos de atuação. A primeira consistiu em uma imersão
continua, onde acompanhava semanalmente os treinos, apresentações e até
mesmo viagens junto com o grupo. Esse primeiro momento me causou a sensação
de estrangeira enquanto pesquisadora. Nessa condição, sentia que flutuava em seu
cotidiano sem um espaço bem definido para atuar, com pouca utilidade aparente e
ainda por cima, precisava conviver com o exotismo tanto deles em relação a mim,
quanto de minha parte em relação a eles. Desenvolvi meu trabalho em campo
seguindo algumas recomendações do Roberto Cardoso de Oliveira (1998) em seu
texto “O trabalho antropológico: olhar, ouvir, escrever”. Acredito que a bagagem
teórica e os constrangimentos do convívio me conduziram a uma postura de
ouvinte, de olhos atentos, com falas apenas quando me dirigiam a palavra. O
momento de escrever sobre o vivenciado me causou estranhamento, pois era
convidada a descrever e analisar questões que ainda estavam pouco claras para
mim.
Entretanto, esse primeiro contato me possibilitou analisar o grupo de forma
geral e descompromissada, recolhendo percepções para futuras problemáticas.
Após esse convívio intenso, onde retornei ao grupo meus primeiros escritos,
estabelecemos uma outra dinâmica de aproximação. Eles passaram a me
considerar alguém de confiança, gostaram do que escrevi a respeito deles,
criando uma proximidade que me permitia mobilidade nas incursões do campo, sem
tanta "burocracia" para convivência. Apesar da abertura, o segundo momento foi
marcado por um distanciamento para que pudesse analisar com maior clareza os
dados que havia recolhido e aprofundar a pesquisa da bibliografia. A terceira etapa

15
do trabalho entrelaçou as duas anteriores, pois consistiu na leitura de bibliografias e
ao mesmo tempo incursões no campo, espaçadas, quando sentia necessidade.
Esse trabalho de conclusão de curso apresenta o grupo Ishindaiko enquanto
um microcosmo que me permitiu pensar questões mais
abrangentes como tradição, performance e etnicidade, sendo dividido em três
capítulos que costuram o material recolhido no campo com o conteúdo teórico. A
perspectiva adotada é da narrativa etnográfica enquanto uma invenção. Roy Wagner (2010)
amplia esse conceito, pensando a invenção enquanto cultura, e atribuindo, tanto aos
nativos quanto ao antropólogo, o poder criativo no processo de
interpretação dos pensamentos e ações humanas. A medida que o universo do
grupo Ishindaiko ganhou contornos e significados durante a minha experiencia em
campo, esse trabalho emerge enquanto a comunicação desses significados. Foi
através das relações estabelecidas com os nativos que pude criar as associações
que permitiram a invenção dessa etnografia.

16
Capítulo 1
Mito e história do taiko no Brasil

Este trabalho de conclusão de curso é uma etnografia sobre o taiko, que em


japonês quer dizer “tambores”. No Japão, os tambores são tocados, desde os anos
1970 (pelo menos), com uma aura mais artística, mas é possível encontrar registros
históricos e narrativas míticas que atestam a existência dos tambores há mais de
dois mil anos. As origens das práticas associadas aos instrumentos percussivos
tradicionais do Japão, assim como o desenvolvimento das configurações dos
próprios instrumentos por meio da história ainda são incertos, um trabalho ao qual a
musicologia histórica deve se ater. Entretanto, é possível dizer, com um tanto de
generalismo, que as práticas sonoras dos tambores podem ser associadas, ao
menos em termos míticos, ao próprio surgimento da civilização japonesa. A
ancestralidade do taiko fascina e alimenta o imaginário daqueles que o praticam e
apreciam. Indícios materiais da presença do taiko são encontrados em estátuas de
barro haniwa3, do período Kofun4, que remontam ao século VI. Nessas estátuas, ao
menos duas figuras carregam cada qual um tambor apoiado ao redor do pescoço e
em sua mão direita há uma espécie de baqueta. Na tradição oral, há relatos de que
no Japão antigo as demarcações de terras eram feitas a partir do alcance do som
do maior tambor.

3
É denominado haniwa esculturas feitas de barro, tanto figurativas quanto não figurativas, que eram
utilizadas para fins rituais, sobretudo mortuários, durante o período Kofun, no Japão antigo.
Geralmente essas peças eram confeccionadas de acordo com uma técnica específica, chamada
wazumi (a qual parte de cilindros de argila, enrolados em muitas camadas, que eram depois
esculpidos). Os objetos haniwa eram enterrados com os mortos e, em alguns casos, também
queimados ritualmente na parte frontal dos kofuns.
4
O período Kofun é o período histórico mais antigo de que se tem notícia no Japão. Acredita-se que
a datação diz respeito aos anos 250 a 538 d.C, segundo registros arqueológicos. Aliás, o período
possui esse nome justamente devido a achados arqueológicos de túmulos existentes nesse período,
nos quais as pessoas de status social mais elevado eram enterradas e que foram denominados de
kofuns. Eram construções feitas de pedra e possuíam tamanhos diferentes: desde apenas alguns
metros até 400m de comprimento. Encontrava-se, frequentemente, figuras de barro haniwa dentro
desses grandes túmulos, que existiram, segundo datação arqueológica até 700 d.C. O maior kofun
que se tem notícia é o túmulo do imperador Nintoku, localizado em Sakai, Osaka. Ele foi construído
em meados do século V d.C e possui 305m de largura e 486m de comprimento, tendo a forma de
uma fechadura.
17
Enquanto para algumas pessoas, as estátuas de barro haniwa representando
homens tocadores de tambor justificam o argumento de que haveria tambores no
Japão desde antes do contato intenso dos japoneses com as culturas chinesa,
coreana e indiana (devido à vários movimentos migratórios advindos do continente
para o arquipélago entre o século V e VII d.C), é fato que juntamente com a ida de
populações indianas, coreanas e chinesas, em sua grande maioria adeptas do
budismo de tradição mahyana (“o grande veículo)5, vários elementos culturais, como
práticas musicais e novos instrumentos, chegaram ao Japão, lá misturando-se com
outras práticas e tradições religiosas já previamente existentes, como o xintoísmo6.
Todas essas questões nos colocam a impossibilidade de precisar a origem do
taiko, sendo mais interessante trilhar outro caminho, que aceita o diálogo cultural e
histórico como componente construidor não apenas da etnicidade e da história
japonesa, mas também de elementos de sua cultura, como o taiko. Além disso, este

5
De acordo com Gaarder, Hellern & Notaker (2005) há duas tradições budistas, que foram
constituídas após cerca de um século do falecimento de Sidarta Gautama, o buda histórico. São elas:
Theravada e Mahyana. Ambas surgiram na Índia, tal qual o budismo. O budismo Theravada é
também definido como “a escola dos antigos” e prega o caminho da auto-redenção, isto é, o caminho
individual, via o respeito dos mandamentos budistas e da prática da meditação rumo à salvação. Por
outro lado, o budismo Mahyana, chamado de grande veículo, acredita que o caminho da salvação
deve ser coletivo, de forma que mesmo alcançando a iluminação, o ser humano (que pode tanto ser
um monge, como um leigo) deve negar-se a tornar um buda e entrar no nirvana - constituindo-se
como uma existência iluminada que fica a espera dos demais seres vivos - até que todos alcancem a
iluminação e possam adentrar, juntos, o Nirvana. O budismo Mahyana é mais difundido do que o
Theravada e assimila elementos de outras religiosidades com mais facilidade. Na China
desenvolveu-se o zen budismo (que tem como foco as práticas meditativas), chegando ao Japão por
meio dos movimentos migratórios de chineses ao arquipélago, entre os séculos VI e VII d.C. Tido
como um laboratório religioso, o budismo japonês dialoga abertamente com outras práticas
religiosas, como o taoísmo e o xintoísmo. No Japão, por exemplo, o budismo incorporou o culto aos
kami, elemento central do xintoísmo.
6
Prática religiosa existente desde o período Kofun, muitas vezes associada como “autenticamente
japonesa”. Tem no culto aos kami – conjunto de forças vitais, elementos da natureza, espíritos e
divindades – seu elemento central. Durante muito tempo não se constituiu como uma religião
institucionalizada, sendo que seus primeiros textos sacros datam de 712 d.C: kojiki (“anais das
coisas antigas”), 720 d.C: Nihon shoki (ou Nihongi, que quer dizer “crônicas do Japão”) e 807 d.C:
kogo-shui (uma compilação das tradições do clã dos Imbe, responsável por diversas práticas rituais
características do xintoísmo). De acordo com a cosmologia xintoísta, há três mundos distintos: 1- a
“alta planície celeste”, que é a morada dos kami do céu, que visitam a Terra para trazer paz, ordem e
felicidade; 2- o “país do meio da planície dos canaviais”, ou plano terrestre, onde habitam os homens
e 3 – a morada dos mortos, que pode se dar no “país de Yomi” (lugar subterrâneo, moradia dos
mortos não purificados, onde também habitam espíritos malignos, capazes de influenciar
negativamente o homem) ou no “país do meio”, também chamado de “país dos mortos”, constituindo-
se em uma terra de delícias, pois lá vivem os espíritos purificados dos antepassados, que também
visitam o plano terrestre com a finalidade de trazer felicidade e proteção aos parentes vivos. Há
vários santuários xintoístas no Japão.

18
trabalho não tem como intuito estabelecer origens dos instrumentos característicos
do taiko moderno. Por esse motivo, entende-se que apesar de geralmente a origem
do taiko ser atribuída a um passado imemorável, temos a consciência de que os
usos dos tambores no Japão antigo guardam uma considerável distância quando
colocados em comparação com a prática do taiko desenvolvida nos dias atuais e
que é efetivamente o objeto de nossa análise. Logo, admitimos como prerrogativa
que os tambores japoneses, independente da sua gênese, foram usados em
diversos aspectos da vida ao longo dos anos, desde rituais religiosos, festivais,
cerimônias, até guerras até adquirirem o formato, tanto instrumental, quanto musical
e performático existente nos dias atuais.
Em inúmeros rituais religiosos os tambores, de modo geral, possuem um
papel fundamental de intermediários entre o mundo da matéria e o mundo espiritual,
sendo capazes de construir uma ponte entre esses universos e até mesmo conduzir
a outros estados de consciência. Em "Os tambores dos mortos e os tambores dos
vivos" Marcio Goldman (2003) apresenta uma experiência do seu trabalho de campo
em que escuta os tambores dos mortos durante um ritual funerário do candomblé,
em Ilhéus na Bahia, sendo esse um exemplo clássico da relação dos instrumentos
de percussão com o "outro lado" da vida, e a possibilidade de transitar entre os
mundos possíveis. A ponte entre o mundo material e espiritual não está, nesse
caso, apenas nos tambores tocados pelos vivos, mas também na resposta dos
atabaques oriunda do mundo dos mortos.
O toque do tambor carrega para variadas religiões a potência de atuar como
um instrumento de comunicação com o sagrado. Os tambores japoneses, assim
como os africanos, estiveram presentes nos rituais religiosos com o papel de
construir essa conexão entre mundos, sendo que a extensão dessa relação é
profunda e de dificultosa demarcação, tendo em vista as origens incertas e por ser,
em ambos os casos, práticas musicais fundadas na tradição oral. Apesar disso a
relação íntima com o budismo está posta até os dias atuais através do
compartilhamento de valores filosóficos. É colocado pela filosofia zen budista
japonesa presente no taiko o fato de que os instrumentos devem ser tocados pelo
não-eu (sem a presença do ego) e os grupos de taiko devem ser pensados
enquanto locais de exaltação da coletividade e diluição do ego individual.

19
Um exemplo da estreita relação dos tambores japoneses com o budismo
pode ser percebido até mesmo na literatura atual, como no livro “Linguagem da
existência” (2006) do sacerdote budista Osho. O livro mistura ensinamentos
budistas e momentos que indica ser apropriada a prática meditativa. A indicação de
que a meditação deve ser iniciada é anunciada por um símbolo, que significa
graficamente o soar de um tambor. Além da sua relação com o sagrado e presença
nas mais variadas cerimonias religiosas japonesas, o taiko também está presente
tradicionalmente nos festivais, oferecendo ritmos para as danças performadas em
grupo, e nas artes marciais, sendo utilizado para marcar a movimentação dos
lutadores. No passado, o taiko era utilizado nas guerras, para dar ritmo as marchas,
incentivar os soldados nas batalhas e intimidar os inimigos.
Claude Lévi-Strauss (2012) chama a atenção em como no próprio mito de
surgimento do taiko estão presentes três kamis bastante importantes da cosmologia
xintoísta e que foram incorporados pelo zen budismo, sendo eles: Amaterasu
(deusa do sol)7, Susanoo (deus da tempestade e dos mares) e Ame no Uzume
(deusa antiga da alegria e do amanhecer)8. No mito, Susanno em um momento de
tormenta lança o mar sobre a terra, irritado. Amaterasu se entristeceu com a atitude
do irmão e resolveu se trancar em uma caverna, bloqueando-a com uma grande
pedra. O temor por uma terra sem sol se abateu sobre todos, afinal, acabaria com
toda a manifestação de vida sem a sua presença. Diante disso, os outros kamis

7
Vale a pena ressaltar que no xintoísmo o kami mais eminente é a deusa sol, de nome Amaterasu
Oo-mikami, também considerada uma antepassada da família real japonesa. O seu santuário
principal é o Grande Santuário de Ise, um dos maiores e mais importantes do país.
8
Em seu livro “A outra face da lua: escritos sobre o Japão”, Lévi-Strauss faz uma análise rápida, a
partir dos escritos xintoístas das três divindades presentes no mito de origem do taiko, comparando-
as a outras figuras míticas presentes no antigo Egito. Nessa parte do livro, não à toa intitulada “a
dança impudica de Ame no Uzume”, Lévi-Strauss afirma que nas duas narrativas míticas o deus
ofendido é o sol, sendo que a solução dos entraves surge apenas com o riso. Nas palavras do autor
(2012, p. 87/88): “O romance [egípcio] começa quando os deuses, reunidos num tribunal, não
conseguem arbitrar entre os dois pretendentes à sucessão do grande deus Osíris: Horus, jovem filho
de Osíris, ardentemente apoiado por sua mãe Ísis; e Seth, tio materno de Horus. Pre-Harakhti, o
deus sol, que preside o tribunal pende para Seth contra a opinião geral. Assim, atrai sobre si uma
observação desagradável por parte de Baba, o deus Macaco. Ofendido, Pre-Harakhti se retira para
seu pavilhão, onde passa o dia todo deitado de costas e com o coração triste. Depois de um longo
momento chega sua filha Hathor. Ela levanta o vestido, desvela seu sexo. Diante dessa visão, o
grande deus ri, se levanta e volta para tomar assento no tribunal. A semelhança com os relatos
japoneses é impressionante, não só porque nos dois casos a divindade ofendida é o sol como
também em razão da função decisiva atribuída ao riso (que seja o da própria divindade, o da
dançarina ou o dos espectadores)”.
20
tentaram tirar Amaterasu de dentro da caverna através da força, ameaçando,
implorando, e de nada adiantaram as suas investidas.
A deusa Ame no Uzume, disse aos demais que conseguiria retirar Amaterasu
da caverna. Os deuses não acreditaram em sua capacidade, principalmente por
conta da sua idade avançada e aparente fragilidade. E então, Ame no Uzume subiu
em cima de um barril de saquê esvaziado e tocou ritmos percussivos, sensuais, tão
fortes e emocionantes que fizeram todos os outros deuses dançar e cantar juntos,
unidos, afetados pelas batidas. O som foi tão forte que levou Amaterasu para fora
da caverna, curiosa, a fim de descobrir o que estava acontecendo. Quando viu
todos dançando e cantando tão alegremente, resolveu voltar, iluminando o mundo
novamente. Nesse mito, entre muitos outros pontos, podemos observar o poder
reservado ao som dos tambores, sua ligação com o sagrado e a capacidade de
produzir a união entre aqueles que se permitem envolver em seu ritmo.

1.1 – O kumi daiko ou taiko moderno e sua expansão ao Ocidente

O nome taiko significa "tambores japoneses" e é usado para designar os


instrumentos de percussão do Japão; entretanto, fora do país o termo está
associado a um estilo percussivo específico, o kumi-daiko, conhecido como o taiko
moderno. O kumi-daiko surgiu no Japão após a Segunda Guerra Mundial,
introduzindo inovações na maneira de performar e na inclusão das mulheres na
prática (o que era até então expressamente proibido). A principal característica está
no fato de o taiko moderno ser performado por vários tocadores, podendo haver
algumas poucas músicas para tambor solo. Os grupos responsáveis pela criação do
kumi-daiko foram o Osuwa Daiko9 e o Oedo Sukeroku10, entretanto, a popularização

9
Grupo formado em 1951 e atuante até o presente, fundamentou-se, em grande parte, na figura de
seu líder e fundador Daihachi Oguchi, pelo menos até 2008, quando ele faleceu atropelado. Oguchi
teve um passado como musicista de jazz antes de criar seu grupo e assim atribuir uma nova feição
ao toque de tambores japoneses. Este grupo foi um dos primeiros a usar tambores japoneses
tradicionais de diversos tamanhos e sonoridades conjuntamente. O grupo também tem grande
importância por suas atividades didáticas, com o intuito de difundir o kumi daiko, inclusive fora do
Japão. Segundo a matéria de jornal “Master japanese drummer Oguchi dies”, publicada pelo USA
today em 26/06/2008, Oguchi ajudou a criar grupos de taiko moderno em vários lugares do mundo,
tendo atuado especialmente no Japão, Estados Unidos, Europa e Brasil. Nos Estados Unidos foi um
dos responsáveis pela criação do San Francisco Taiko Dojo, que atuou em trilhas sonoras para
filmes hollywoodianos.
21
da música dos tambores japoneses, principalmente no Ocidente, se deu através do
grupo Kodo11, oriundo da ilha de Sato.
Os tocadores do Kodo possuem uma vida comunitária na ilha, que envolve
plantar e colher os alimentos que consomem, treinamento físico e espiritual, e a
prática do taiko é entrelaçada aos valores comunitários e sagrados. Literalmente, a
tradução do nome do grupo remete a uma arte milenar japonesa, que segundo
Nakagawa (2008), é a arte do incenso. Sinestésica por definição, a arte do incenso
pode ser entendida como uma via, uma vez que lhe é conferida uma aura religiosa
ou espiritual. Nas palavras do autor:

Essa arte e praticada sob a forma de uma cerimônia tal como a


cerimônia do chá (sado) ou arranjo floral (kado). A arte do incenso
busca não só a perfeição artística, mas também uma certa
espiritualidade quase religiosa, designada pelo termo “via”; fala-se
assim da via do incenso, assim como, ao se falar na via do chá, na
via das flores etc., a via designa o caminho que nos deve levar ao
estado absoluto de vigília (...) Cada arte é portanto uma combinação
de diferentes práticas artísticas, poesia, canto, incenso... essas
diferentes práticas são sistemas organizados em si, que só
conseguem expressar-se completamente em parceria com outra
prática artística. Como acabo de mostrar, nem na música, nem na
arte do incenso, um elemento que faça parte do conjunto nunca se
julga senhor absoluto dos outros. Todos coexistem pacificamente e
cada um quer colaborar com o outro, a fim de contribuir para a
manutenção e o enriquecimento do conjunto (NAKAGAWA, 2008, p.
109/110).

A partir da década de 1970 o kumi-daiko "invadiu" o Ocidente, criando grupos


de taiko na América do Norte e do Sul. Fizeram parte dessa invasão inúmeras
turnês dos grupos de taiko moderno aqui já citados: Osuwa Daiko, Oedo Sukeroku e
10
Criado em Tokyo em 1959, é considerado um dos primeiros grupos profissionais de taiko moderno
e teve grande influência no contexto estadunidense. O grupo era exclusivamente masculino e era
composto por seis percussionistas, muitos dos quais formaram seus próprios grupos posteriormente.
O líder dá nome ao grupo, que entrou, inclusive em brigas judiciais sobre usos indevidos de técnicas
instrumentais e composições por outros grupos de taiko moderno, especialmente aqueles
constituídos na América do Norte. Um dos tocadores do grupo foi um dos fundadores do San
Francisco Taiko Dojo, já citado na nota acima.
11
Constituiu-se com esse nome em 1981, mesmo ano em que tocou pela primeira vez com a
orquestra Filarmônica de Berlim, a partir de uma dissidência do grupo Ondekoza, formado ainda nos
anos 1960 (SHAWN, 2012). É considerado o grupo mais reconhecido de taiko moderno, dentro e fora
do Japão, o que acabou lhe conferindo o título de “embaixador do taiko”. Sua reputação reside, em
grande parte, em suas técnicas de treino e de vida, que são únicas. Os instrumentistas moram na
ilha de Saito, onde devem correr longas distâncias, pelo menos, duas vezes por dia. A disciplina dos
treinos e a vida comunitária também são aspectos considerados importantes na consagração do
grupo.
22
Kodo; embora seja possível afirmar que o grupo Kodo se constituiu em um modelo
paradigmático do kumi-daiko, por trabalhar melhor questões concernentes à uma
ideia de etnicidade nipônica e de uma musicalidade tradicional do que os demais
grupos, que estavam atrelados demais ao jazz e à outras musicalidades não
orientais não conseguiram.
Em seu texto sobre o Kodo, Bender Shawn afirma que esses grupos surgiram
no período posterior à segunda guerra mundial, com o nome kumi-daiko, que
significa grupo de percussão taiko, que reúnem tambores de vários tamanhos e
formatos, assemelhando-se à orquestras de percussão:

However, the relatively large size of these drums and their strategic
placement on stage encourages much more vigorous use of the body
in performance than orchestral drumming would. In creating stage
performances that explore both the musicality of taiko drum and the
muscularity of taiko drummers, postwar taiko ensembles broke with
centuries of Japanese custom whereby these drums were relegated
to primarily supporting roles in religious rituals and festival
performances. At the same time, these groups resist easy
classification as musical alone, since the intricately choreographed
movement of performers on stage, typically associated with dance, is
a distinctive feature of the new genre (SHAWN, 2012, p. 02).

Segundo Bender Shawn, era possível encontrar uma dúzia de kumi-daikos


até os anos 1970, mas esse número expandiu exponencialmente até o fim do
milênio, chegando a centenas de grupos atuantes apenas no Japão. No primeiro
decênio dos anos 2000, já era possível encontrar 800 grupos de taiko moderno
associados à Nipon Taiko Foundation, a maior organização de taiko existente no
país. Nas palavras de Shawn: “taiko drumming has arguably become Japan’s most
globally sucessful performing art” (SHAWN, 2012, p. 03/04)

1.2 – A imigração japonesa e o taiko no Brasil


A imigração japonesa para o Brasil teve início em 1908, data que marca a
chegada do primeiro navio a um porto brasileiro. Dentre o período de 1908 e 1973,
vieram 310 navios, contabilizando o total de 250 mil imigrantes japoneses, que
deixaram o Japão com o intuito de prosperar economicamente no Brasil. Após mais
de 100 anos da chegada dos primeiros imigrantes, as memórias das raízes orientais
se mantém viva e intimamente ligada às tradições do país de origem. Essa

23
memória, longe de ser um dado íntimo e individual, encontra-se em um terreno
fronteiriço de disputas e esquecimentos. Pensando a memória enquanto um dado
social, podemos compreender que o seu tecer envolve a produção de identidades e
a construção de narrativas, além de transformações constantes através do jogo com
o esquecimento.
É nos desdobramentos dessa imigração que se repousa a base de muitas
das questões levantadas no estudo, e é fundamental que conste ao menos uma
introdução no cenário mais amplo desse quadro para discutir a história do taiko no
país. De certa forma, pensar a presença do taiko no Brasil nos leva a olhar a relação
dos imigrantes japoneses com o país que os acolheu e as transformações que
marcaram essa relação durante os anos; porém, essa discussão será melhor
desenvolvida no terceiro capítulo desse trabalho. Nesse momento reservo um
espaço para apresentar uma breve história do taiko no Brasil e refletir acerca da
memória nesse processo, considerando o quanto ela está atada as práticas
fundadas na tradição oral e como, diferente da lembrança (que possui um caráter
individual), ela possui um papel essencial de perpetuação de valores coletivos.
A intenção de conseguir apresentar minimamente a história do taiko no Brasil
encontra algumas barreiras de imprecisão, pois não há fontes acadêmicas que
tenham coletados dados suficientes sobre essa trajetória. Apesar disso, de acordo
com as informações obtidas com os membros mais antigos do Ishindaiko que tive
acesso e através de pesquisas na internet nos mais variados sites de interessados
nessa prática, é possível conceber dois momentos distintos da presença do taiko no
Brasil: o antes e depois da vinda de Yukuhisa Oda, conhecido como Oda-sensei.
Ao que tudo indica, antes da vinda do Oda, a prática do taiko era feita em pequena
escala, restrita à eventos tradicionais promovidos pela comunidade de imigrantes
japoneses, como por exemplo o Bon Odori12 sendo associado a perpetuação dessa
“memória” que os imigrantes traziam em suas almas e corpos, em um culto aos
seus antepassados.

Esse primeiro momento do taiko no Brasil, onde as fontes são escassas e


escorregadias, me leva a pensar na relação da memória com o esquecimento.
Funes, personagem do conto de Luís Borges (1979) “Funes, O memorioso”, vem

12
Festival tradicional japonês realizado anualmente durante o verão do Japão, sendo marcado por
músicas tradicionais alegres. Evento que possui o intuito de saudar os antepassados.
24
nos lembrar de que o esquecer é essencial para significar nossa existência. Se tudo
lembrar, como o personagem, nada será de fato significativo de ser recordado,
reforçado, revivido. Não há espaço. Funes presentifica o argumento de que a
memória é um belo recorte daquilo que nos marca a ferro e fogo, do que queremos
trazer para o presente, do que nos significa e, ao mesmo tempo, nos lembra que
esquecer é tão fundamental quanto rememorar, e é na dança entre esses dois
elementos que vamos jogando com o tempo e nos (re)inventando.
O taiko nesse primeiro momento estava associado aos imigrantes japoneses
e suas lembranças, que teciam coletivamente e de forma intima a memória do país
de origem. A memória, enquanto faculdade humana, não pode ser observada e
quantificada a não ser através das lembranças pessoais, e nesse momento os dois
termos, que podem parecer sinônimos em um primeiro instante, estavam
estreitamente ligados e precisam de um cuidado maior de conceituação. Nessa fase
de transição, dos recém chegados ao Brasil, vejo como há uma situação em que
podemos pensar a memória através da exploração dos constrangimentos sociais
que atuaram nos imigrantes japoneses quando se referiam ao seu passado recente,
ou seja, a questão é: como se deu a produção de memórias (um dado social) a
partir da tecelagem de lembranças (pessoais).
No livro A saga dos japoneses no Paraná (1988) escrito por Homero Oguido,
podemos notar a tentativa de reconstrução da história a partir das lembranças dos
imigrantes pioneiros, onde o autor utiliza o termo memória e lembrança sem
discriminação. No capitulo “A história contada ao vivo”, o livro apresenta quatro
personagens idosos, que estão no Brasil há mais de 80 anos, e narram de forma
íntima as experiências oriundas da viagem que empreenderam para a terra
desconhecida, quando eram apenas crianças. O texto nos leva a mergulhar nas
lembranças pessoais como fragmentos da história,

Retraídos a princípio, vão aos poucos se soltando e juntando os


pedaços da história. Forçam a memória e, como um quebra-
cabeças, remontam suas próprias vidas. Às vezes, gotas de
lágrimas escorrem e molham as faces esculpidas pelo tempo
impiedoso. A emoção aflora e a história flui. Vasculham o passado
como se estivessem fazendo a viagem pioneira outra vez (OGUIDO,
1988, p. 39)

25
As dificuldades resultantes das drásticas diferenças culturais são colocadas
no decorrer do livro, que apresenta o processo de imigração através da perspectiva
das lutas empreendidas e os conflitos oriundos dos movimentos de permanência e
abandono de práticas da "cultura japonesa". Perante a consciência de que a
categoria "japoneses" não abarca a realidade da diversidade regional presente no
Japão, podemos compreender como a tentativa de reconstrução da história através
da memória envolve a problemática da invenção de uma unidade e da exaltação de
aspectos específicos da identidade que precisava se reestruturar diante do processo
de imigração.
O ponto central de antes da vinda do Oda-sensei é o fato de que o taiko era
uma prática conhecida apenas por imigrantes e os primeiros descendentes em
algumas comunidades japonesas, sendo que o kumi-daiko, o taiko moderno
performado por vários tocadores, foi introduzido no país na década de 1970 em São
Paulo. Traçar o percurso de construção inventiva dessa "memória viva", através do
relato ou biografia dos primeiros imigrantes tocadores, está além dos limites do
trabalho em questão e demandaria um estudo de campo intenso na cidade de São
Paulo. Me interessa discutir adiante o segundo momento do taiko no país, contexto
em que o grupo Ishindaiko está inserido.
A chegada no Brasil de Yukuhisa Oda em 2002 através da JICA (Agência de
Cooperação Internacional do Japão) promoveu uma difusão do taiko, popularizando
em diversas partes do país. Além de ministrar oficinas, Oda-sensei ensinou a
fabricar o Okedo-daiko13, o mais comum dos tambores, facilitando assim a criação
de novos grupos, principalmente em São Paulo e Paraná, regiões que concentram a
maioria dos imigrantes e descendentes de japoneses do país. Outro aspecto
importante da influência de Yukihisa Oda foi a criação da ABT (Associação
Brasileira de Taiko) em 2004, que conta hoje com diversos grupos de taiko filiados à
instituição. Entretanto, ocorreu uma cisão entre Oda Sensei e a ABT devido à baixa
influência que o mestre possuía no Japão, sendo “substituído” por Watanabe
Sensei, que permanece à frente da ABT até os dias atuais.
A partir desse momento, em que houve a criação da ABT, a história do taiko
no Brasil ganhou um corpo diferenciado, passando a tecer novas relações com a
memória e a forma que era construída. Podemos observar como o campeonato

13
Vide caderno de referências etnomusicológicas nº II.
26
instituído pela Associação Brasileira de Taiko fomentou nos grupos filiados um
objetivo e um ponto de encontro, um local de referência para medir o nível dos
tocadores e do taiko nacional, além de ampliar e regular a criação de novos grupos.
A ABT surge também como uma instituição que difunde através do taiko aspectos
relacionados a princípios e valores da cultura japonesa, que são colocados por meio
da prática do kumi-daiko. Nesse processo a relação Brasil-Japão mediada pela
prática do taiko moderno se reformulou, sendo esse um aspecto que será melhor
desenvolvido no segundo capitulo, que contem uma narrativa acerca do
campeonato do ano de 2015, que pude presenciar. O que cabe frisar nesse instante
é o fato de que a ABT institucionalizou a prática do kumi-daiko no país.
O discurso acerca do taiko passa a direcionar o olhar para os descendentes
da terceira e quarta geração, enfatizando a reconstrução de uma memória étnica
particular que está, de certa forma, em consonância com certos valores de
etnicidade presentes no Japão nos dias atuais. Com isso, as falas em prol da
preservação da prática do taiko, afirmam que ela colabora para manter viva a
particularidade e existência da “cultura japonesa” no Brasil.
Por ora, não pretendo me alongar na Associação Brasileira de Taiko pois ela
não é o foco do meu estudo e não tenho dados suficientes para me alongar esses
aspectos; entretanto, vale apontar um questionamento pertinente para pesquisas
futuras: como se deu/ o que motivou o surgimento dessa instituição? Compreendo
que os dois momentos aqui descritos idealmente de forma separada – o primeiro
momento restrito às comunidades japonesas e o segundo a partir da vinda do Oda-
sensei e da criação da ABT – possuem contornos mais complexos e sinuosos, até
mesmo fronteiras mais fluidas do que aparentam. O processo de institucionalização
da prática e a forma com que são criadas normas e tradições merece um estudo
especifico e aprofundado que está além das possibilidades desse trabalho.
Não obstante, diante do que foi apresentado até aqui, percebo que o taiko
pode ser inserido dentro da discussão feita por Eric Hobsbawm em “A invenção das
tradições” (1997). Neste livro, resultado de uma série de debates sobre tradições
que aparentam ser milenares e que, no entanto, remontam a pouco mais de uma
centena de anos, como é o caso da guarda inglesa, Hobsbawm argumenta que
“muitas vezes tradições que parecem ou são consideradas antigas são bastante
recentes, quando não inventadas” (HOBSBAWM, 1997, p. 09). No entanto, a ideia
27
de invenção de tradições com a qual trabalha o historiador e os demais
colaboradores da coletânea não remete à falsificação cultural, como pode ser
entendido de uma maneira vulgar. Como ele mesmo afirma, logo ao início de seu
texto:

O termo tradição inventada é utilizado num sentido amplo, mas


nunca indefinido. Inclui tanto as tradições realmente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que
surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e
determinado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e
se estabeleceram com enorme rapidez. Por tradição inventada
entende-se um conjunto de práticas geralmente reguladas por regras
tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou
simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento
através da repetição, o que implica, automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível,
tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico
apropriado (HOBSBAWM, 1997, p. 09).

Se partirmos dessa definição para pensarmos o kumi-daiko, entenderemos


como foi necessário ressignificar, em termos rituais, simbólicos e performáticos, o
toque dos tambores para a constituição de um novo ethos japonês, que precisava
se refazer após a perda da Segunda Guerra Mundial. O uso dos tambores milenares
é atributo de etnicidade, atribui o lastro histórico necessário à tradição inventada,
mas é feito de maneira distinta: mais artística e menos religiosa, com abertura a
percussionistas mulheres e com a incorporação de elementos musicais advindos da
“criatividade” e até mesmo de um diálogo intercultural, a ser estabelecido com
outros países nos quais houve migração japonesa. O mito de origem do taiko
continua o mesmo, referente aos kami xintoístas já relatado e, apesar da datação
recente, ao falar sobre o taiko feito na contemporaneidade no Japão e nas
comunidades nipônicas fora do arquipélago, associa-se sempre esta prática à arte
milenar existente desde os primórdios da civilização japonesa.
A tradição tem como característica a invariabilidade, e nesse ponto o taiko
mistura em seu cotidiano tradição e costume. A diferença entre os dois está
principalmente na relação estabelecida com a inovação, pois enquanto o primeiro se
funda na repetição com funções simbólicas de uma determinada prática, o segundo
permite mudanças e inovações, desde que possua o aval do antecessor. Ou seja, o
costume possui relativa flexibilidade, pois a vida é mutável e exige as
28
transformações, contudo, há um certo comprometimento com o passado. O próprio
kumi-daiko é oriundo de mudança na performance e na concepção da prática do
taiko, e a abertura para a inovação dentro das composições das músicas é
incentivada. Apesar disso, inúmeros elementos do taiko moderno podem ser
considerados despidos de função pragmática, sendo utilizados por sua eficácia
simbólica e ritual, o que caracteriza aspectos de tradição. Um exemplo disso são os
happis, vestimenta tradicional japonesa usada nas apresentações e o caráter
sagrado atribuído aos bacchis14.
Um dos atributos da invenção da tradição é a capacidade de fazer uso de
elementos antigos na construção de novas tradições, que possuem também
aspectos originais. Penso no taiko brasileiro dentro do processo de invenção da
tradição por dois motivos principais: o primeiro está ligado ao fato de que o próprio
kumi-daiko possui uma origem recente e transformações profundas, mas se vincula
ao passado imemorável da história da percussão no Japão. O segundo motivo é
oriundo do hibridismo e das novas configurações que a prática assume a partir do
momento em que foi desenvolvida no Brasil e institucionalizada a partir da criação
da ABT.
Hobsbawm aponta três características que permitem pensar a classificação
das tradições inventadas, sendo elas:

a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as


condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou
artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições,
status ou relações de autoridade, e c) aquelas cujo propósito
principal é a socialização, a inculcação de idéias, sistemas de
valores e padrões de comportamento. Embora as tradições dos tipos
b) e c) tenham sido certamente inventadas (como as que simbolizam
a submissão à autoridade na Índia britânica), pode-se partir do
pressuposto de que o tipo a) é que prevaleceu, sendo as outras
funções tomadas como implícitas ou derivadas de um sentido de
identificação com uma “comunidade” e/ou as instituições que a
representam, expressam ou simbolizam, tais como a “nação”
(HOBSBAWM, 1997, p.17)

O taiko, como será demonstrado mais detalhadamente nos capítulos


seguintes, se enquadra na categoria A, e na categoria C. Apesar de haver traços do
B, esses pontos não se sobressaem como o foco de análise e encontra-se em

14
Vide caderno de referências etnomusicológicas nº VII.
29
segundo plano no enfoque aqui apresentado. Devemos lembrar que essa definição
oferecida pelo autor supõe que elas são classificações que se sobrepõe na maioria
dos casos. Contudo, o diagnóstico de que as tradições inventadas "comunitárias"
são majoritárias em relação às outras duas categorias instiga a compreender a
natureza dessas tradições. Estudar o processo de como se deu a invenção do taiko
moderno no Brasil elucida aspectos da relação dos descendentes japoneses com os
seus antepassados e a construção da memória dessa ligação. A análise
comparativa do taiko "daqui" com o taiko "de lá" foi sentida através da percepção
dos nativos, que demonstraram a plena consciência de que há diferenças
fundamentais que devem ser vistas como positivas e valorizadas. A troca oriunda
dessa situação de fronteira será discutida no capítulo 3 desse trabalho.
Retomando a questão do local do taiko brasileiro dentro da discussão acerca
da invenção das tradições, podemos observar como a legitimação da prática através
do passado se dá por meio de um duplo distanciamento: é fruto de um passado
imemorável e oriundo de outro país. Tendo em vista que se trata de uma tradição
japonesa, cabe nos questionar o quanto a realização do taiko no Brasil esbarra na
fabricação da ideia do que é o Japão, em termos de nação, e na ênfase em sua
história milenar como motivo de orgulho e participação por partes dos descendentes
na perpetuação de práticas dos antepassados. Hobsbawm aponta como

As nações modernas, com toda a sua parafernália, geralmente


afirmam ser o oposto do novo, ou seja estar enraizadas na mais
remota antigüidade, e o oposto do construído, ou seja, ser
comunidades humanas, “naturais” o bastante para não necessitarem
de definições que não a defesa dos próprios interesses. Sejam quais
forem as continuidades históricas ou não envolvidas no conceito
moderno da “França” e dos “franceses” - que ninguém procuraria
negar - estes mesmos conceitos devem incluir um componente
construído ou “inventado”. E é exatamente porque grande parte dos
constituintes subjetivos da “nação” moderna consiste de tais
construções, estando associada a símbolos adequados e, em geral,
bastante recentes ou a um discurso elaborado a propósito (tal como
o da “história nacional”), que o fenômeno nacional não pode ser
adequadamente investigado sem dar-se a atenção devida à
“invenção das tradições” (HOBSBAWM, 1997, p. 22/23)

O kumi-daiko criado em um Japão moderno do pós guerra já demonstra


possuir diversas possíveis ligações com o processo de construção da ideia de
nação e da renovação de práticas tradicionais. Entretanto, meus olhos estão
30
direcionados para o kumi-daiko performado no Brasil, que acrescentam a isso o fato
de ser praticado majoritariamente por nipo-brasileiros, que constroem suas
identidades e memórias em uma região fronteiriça de invenção de tradições e ideais
de nações. A história do Ishindaiko está atrelada aos primórdios da difusão do taiko
no país, e ao movimento de construção de novos grupos do estilo kumi-daiko.
Em primeiro de maio de 2003, Yukihisa Oda veio a Londrina e ofertou o curso
que ministrava por todo o país. O Ishindaiko surgiu em novembro de 2003, fundado
por três jovens que participaram desse curso acerca da arte do taiko. Lucas
Muraguchi, um dos fundadores, permanece no grupo e é uma grande referência,
não apenas para os tocadores do Ishindaiko, mas em todo Brasil. Uma das
principais características que consolidam Lucas Muraguchi são as composições,
que possuem tanto complexidade quanto criatividade enquanto elementos chaves
que o diferenciam no cenário nacional.
Apesar do comportamento que lança olhos atentos sobre a tradição, o grupo
Ishindaiko se destaca por inovações na forma de tocar o taiko, devido
principalmente, as coreografias que fogem da maneira mais tradicional. Segundo
Muraguchi, o Ishindaiko é um grupo de inovação, composto pela mistura de diversos
elementos, que combinam tanto o estilo Kawasuji Daiko do mestre Oda, quanto do
Amanotaku, do mestre Watanabe, sucessor do Oda-sensei na ABT. O segundo
estilo é marcado fortemente por treinos pesados, e para Muraguchi, a vinda de
Watanabe elevou o nível do taiko nacional. Em entrevista, o fundador do grupo
Ishindaiko quantificou de forma idealizada a influência dos mestres até aqui
apresentados na configuração do Ishindaiko da seguinte maneira:

Kawasuji Daiko de Oda Sensei – 25%


Amanotaku de Watanabe Sensei – 25%
Outras influencias – 50%

O fato do Lucas Muraguchi tentar quantificar influências aparece enquanto


um dado interessante em relação aos meus nativos, que possuem um discurso de
análise do próprio grupo. O fato de priorizarem as "outras influências" demonstra o
quanto o grupo carrega em si o elemento de inovação como um traço característico
e exaltado, e consciência do lado "brasileiro" do taiko que performam. A música
31
"Nosso" por exemplo, mistura ritmos como o samba e batidas do Olodum na
composição, inserindo instrumentos que fogem do taiko como a caixa e o apito15.
Entretanto, como já apontei anteriormente, a tensão entre Brasil e Japão que aqui
se insinua será retomada no terceiro capitulo. Diante do que já foi apresentado até
esse momento, considero que para concluir essa breve apresentação do taiko deve
constar a resposta da seguinte questão: o que é taiko para o Ishindaiko? Reproduzo
na integra, a definição oferecida pelo próprio grupo no seu site:

A Arte do Taiko é a arte do aprimoramento diário, da esmerilhação


da alma, e para exercê-la é necessária força física, mental e
espiritual, bem como disciplina, rigor, força de vontade, energia,
união e harmonia. É uma arte normalmente coletiva que exige a
comunhão espiritual daqueles que a buscam. A palavra taiko é a
denominação usualmente dada ao instrumento de percussão
japonesa que surgiu há mais de 2000 anos e que já serviu a
propósitos militares, religiosos, teatrais, musicais e práticos, devido
ao seu som vibrante, vigoroso e místico. Contudo, Taiko não é,
unicamente, a simples tradução para tambor japonês. A palavra
carrega um significado mais amplo e profundo, de forma que serve
para definir tanto o gênero dos instrumentos japoneses de
percussão quanto a prática dessa arte, que não se resume a
simplesmente bater tambores, mas sim, a incorporar e expressar
sentimentos, além de por em prática valores morais e sociais em
busca de um constante aperfeiçoamento do ser (Definição de Taiko,
site do Ishindaiko16, acesso 26/07/2017)

Diante dessa definição, podemos observar como o discurso do Ishindaiko


acerca do taiko está permeado por valores ligados ao ideal do que seria a cultura
japonesa, como por exemplo, a exaltação da busca constante por aprimoramento, a
disciplina e o rigor atrelados a valores como a harmonia e união, e a espiritualidade
vinculada ao soar dos tambores. A descrição do grupo demonstra, em parte, o
tecido de memórias sendo construído socialmente pelos descendentes, devido à
vontade de buscar o significado mais profundo do termo indo além da tradução
"tambores japoneses". A construção da memória, quando adentramos no universo
dos nikkeis, da forma que observei no Ishindaiko, passa a ser tecida através de
relações complexas e em muitas vezes transportadas para o presente, sendo que o
significado do que é o taiko emerge da prática, da busca por expressar a tradição no
cotidiano e dar continuidade a arte milenar. Nesse sentido o taiko emerge como um

15
Vide caderno de referências etnomusicológicas nº XV.
16
Link de acesso: http://www.ishindaiko.com.br/index.php/o-que-e-taiko
32
"produtor de memórias", devido a capacidade de criar momentos de intensa emoção
e significados.
A possibilidade de se ensinar valores considerados como japoneses através
do taiko também é um fato expresso constantemente no discurso dos dirigentes da
ABT e nos membros mais antigos do Ishindaiko. A possibilidade do intercâmbio com
o Japão é posto como um dos prêmios do campeonato organizado periodicamente
pela ABT, estimulando aos jovens o interesse pela cultura japonesa e a valorização
da mesma. Um exemplo do taiko enquanto um agente produtor de memórias e a
perpetuador de valores aparece na fala do Yudji, membro do Ishindaiko desde 2005,
no qual ele afirma

O que o Ishindaiko proporciona vai muito além da simples


apresentação da arte e cultura dos tambores japoneses às pessoas.
Trata-se de construir com muita dedicação e altruísmo de longas
datas, um elo no qual os momentos sejam inigualáveis. Além de
ajudar na formação de caráter e princípios morais, o Ishindaiko
oferece experiências e situações para serem lembradas por toda a
vida.” (Definição do que é Ishindaiko por Yudji, domínio público, site
Ishindaiko, acesso: 26/07/201717)

A ligação e o respeito às tradições aparece dentro do Ishindaiko diante das


mais variadas práticas do grupo. Contudo, o que de fato é exaltado
conscientemente por todos os membros são os vínculos criados através do taiko,
sendo que valores comunitários são fortemente reforçados no cotidiano. O grupo
Kodo, mencionado anteriormente quando apresentei o surgimento do kumi-daiko no
Japão, constitui uma das referências para o Ishindaiko, não necessariamente nas
composições, mas nos valores que o grupo transmite através do taiko. Vivendo o
taiko atrelado à outras esferas da vida comunitária da Ilha de Sato, o grupo Kodo
emerge no cenário internacional enquanto um tipo ideal de kumi-daiko, devido às
práticas espirituais e à disciplina. Em fevereiro de 2014, Yoshikazu Fujimoto e Yoko
Fujimoto, do grupo Kodo, vieram a Londrina através do Ishindaiko, e ministraram um
workshop para os tocadores, além de apresentarem um show no teatro Marista em
conjunto com o grupo londrinense.
Após essa breve apresentação acerca da constituição do taiko moderno tanto
no Japão como no Brasil, o próximo capítulo pretende abordar elementos do

17
Link de acesso: http://www.ishindaiko.com.br/index.php/integrantes
33
trabalho de campo que realizei junto ao grupo Ishindaiko durante cerca de dois anos
de um ano, com períodos de breves (porém intensas) incursões.

34
Capítulo 2
Tornar-se Ishindaiko: perceptos e afetos

Cada pessoa que integra o Ishindaiko trilhou um caminho que pode chamar
de seu no contato com o taiko. Uns receberam seu primeiro CD aos 8 anos de idade
e, ao atingir a idade suficiente, criou o próprio grupo de taiko; outros entraram pelo
interesse na cultura japonesa. Há aqueles que levados pelos seus pais enquanto
jovens se apaixonaram durante o processo de aprender; e há também quem assistiu
a alguma performance e se encantou. Dentro do Ishindaiko podemos imaginar as
mais variadas experiências que levaram a cada um dos membros a se interessar
pela prática e decidir adentrar no grupo. Apesar disso, a grande maioria dos
membros tem descendência japonesa, o que nos leva a pensar como se deu o
"acesso" ao taiko. De toda forma, seja descendente ou não, todos precisaram
passar por um curso de formação em taiko antes de poder dizer que faz parte do
Ishindaiko. Como meu contato com o grupo foi feito enquanto pesquisadora, não
vivenciei os percursos daqueles que se propõem a ingressar de fato no Ishin18.
Quando iniciei meu campo o curso de formação ofertado pelo Ishindaiko
estava chegando ao final. Meu horário pessoal não se enquadrava com o do curso,
e poucas vezes consegui acompanhar a aula, pois, de modo geral, chegava no final
do curso e início do treino do Ishindaiko propriamente dito. Mas se fosse criar uma
narrativa da entrada, através das histórias dos integrantes, podemos perceber como
o processo criado pelo grupo gera uma interação prévia através do curso que se
transforma intensamente após a formatura. A entrada de novos membros depende
da necessidade do grupo, variando de ano a ano. A resistência daqueles que
entram no curso também é um fator levado em consideração, pois os treinamentos
são puxados e muitos desistem no meio do caminho. Já ocorreu de poucos se
formarem e o grupo ter espaço para acolher todos os formandos, já aconteceu de
precisarem apenas de crianças ou estarem com muitos membros, convidando
apenas aqueles que consideram que devem entrar, levando em considerações
alguns fatores: facilidade de aprender, idade, e acompanhamento dos pais no curso.

18
Forma como o grupo é chamado internamente.
35
O curso é ofertado no segundo semestre, após o campeonato. Como não
pude acompanhar de perto a entrada de um membro em específico, ou de uma
turma, pensei em criar uma breve história acerca da entrada de um jovem fictício,
com base nos relatos que recolhi dos membros mais antigos. A ficção nesse ponto,
mais do que no restante do texto, mistura as lembranças dos membros com as
minhas, e a imagem idealizada do processo de entrada no Ishindaiko se transforma
em uma narrativa mais ordenada.

2.1 A iniciação

Sábado à tarde, 12h. Shinichi19, jovem de 16 anos, se prepara para ir ao


primeiro dia do curso de taiko ofertado pelo Ishindaiko. Seu primo, tocador do grupo
há quatro anos, passa em sua casa para levá-lo. Dentro do carro, Shinichi percebe
que a estrada aos poucos vai perdendo os aspectos da cidade, afastando-se do
centro. Diante do portão elétrico da entrada da chácara onde acontecem os
encontros, o coração de Shinichi começou a disparar. Era um jovem tímido, e de
poucos amigos. Já havia assistido apresentações de seu primo com o Ishindaiko e
admirava o grupo a distância a um tempo, porém somente agora tinha tomado
coragem de participar do curso. Chegaram com 10 minutos de antecedência, no
curso que iniciava 13h, mas ao entrar no salão, já havia jovens mais novos do que
Shinichi varrendo e passando rodo no chão, integrantes do Ishindaiko, preparando o
espaço para o início do curso. Cumprimentaram Shinichi, que ficou constrangido por
estar assistindo a limpeza e não ajudando. Ficou um tempo do lado de fora,
observando o amplo espaço verde enquanto outros jovens chegavam para o curso.
No horário previsto de iniciar, todos foram convidados a entrar e ouvir uma breve
apresentação do que é o Ishindaiko e arte do taiko, além da proposta do curso.
Reunidos em um grande círculo no salão, aprenderam que antes de iniciar as
atividades deveriam reverenciar e demonstrar respeito pela prática, saudando
através da expressão Yoroshiku Onegaishimasu, que significa um pedido de licença
para iniciar e postura de humildade diante do local de treinamento. De joelhos, com
as mãos apoiadas no chão em um ângulo de aproximadamente 45º, inclinavam a
cabeça em direção as mãos. Após a saudação, foram ensinados sobre o respeito

19
Nome que significa “ajuda no crescimento da fé”.
36
que devem nutrir pelo local do treinamento, além de questões sobre limpeza e
organização do lugar. Algumas brincadeiras de interação deixaram o ambiente mais
descontraído depois da apresentação carregada de responsabilidades. Shinichi
sabia que era um curso de apenas três meses e que não garantia entrada no grupo,
mas isso, ao ser expresso abertamente no primeiro dia do curso deixou seu coração
apertado. O objetivo do curso era disseminar a cultura e ele devia se ater a isso
para não criar expectativas para além do que poderia ter. Em seguida, uma série de
alongamentos e exercícios para aquecer o corpo foram conduzidos pelo treinador, e
esses exercícios eram marcados através de uma contagem em língua japonesa. A
forma como a marcação era feita possuía um ritmo atraente, fácil de aprender, e até
o final do alongamento, Shinichi contava baixo junto aos seus companheiros. Antes
de iniciar os toques, a postura Kamae era o foco da aprendizagem, e suas bases
eram semelhantes à das artes marciais. Era custoso para Shinichi permanecer
naquela posição, e tocar nela parecia ser algo ainda mais custoso de executar. A
música escolhida para ser tocada no decorrer do curso era Kikon, que possui
células rítmicas relativamente fáceis em comparação com as músicas criadas para o
campeonato. Os instrumentos foram apresentados, mas os nomes japoneses eram
ainda estranhos e, por conta disso, Shinichi se concentrou em aprender apenas o
nome daquele que tocou: Okedo. Suas mãos suadas seguraram os Bacchis,
ansioso para o primeiro toque. Antes de aprender a música, foi ensinado o toque da
"cavalgada", onde há alternância continua entre a direita e a esquerda, variando
apenas a intensidade da batida: uma mão batia mais forte que a outra, depois
invertia. A repetição dessa célula se deu constantemente até que todos tivessem
aprendido. O tekkan20 marcava o tempo, tocado pelo treinador. Shinichi apresentava
dificuldade com as postura, suas pernas formigavam e sentia que tremiam devido a
força exigida. A postura ideal não tinha sido alcançada por nenhum dos outros
companheiros de curso e isso acalmou o jovem Shinichi. Ele não esperava o prazer
que sentiu ao tocar em conjunto com aquelas pessoas. O som dos tambores
ressoava pelo salão e a vibração parecia percorrer todo seu corpo. Tocava o tambor
e o tambor o tocava de volta. Agradava o fato de que a sua timidez era
compartilhada com os outros. Não apenas aqueles que começavam o curso, mas
muitos integrantes do próprio Ishindaiko pareciam ser reservados e tímidos. Ao se

20
Vide caderno de referências etnomusicológicas nº IV.
37
aproximar do final do horário de termino do curso, mais e mais integrantes do
Ishindaiko chegavam na chácara vestidos com as roupas que levavam o nome do
grupo. Shinichi foi buscado por sua mãe as 15h, horário do término, e seguiu a
semana com pequenas dores musculares no início e com a ansiedade do retorno.
Os meses se passavam e cada vez mais a música ganhava contornos e
complexidade, os treinos ficavam mais vigorosos no aquecimento e na disciplina
exigida. O contato com o grupo aos poucos se tornava mais íntimo, com pequenas
brincadeiras internas e interações, que levavam a conhecer os familiares. Isso durou
por três meses, que passaram rapidamente para o jovem de 16 anos, sendo que ao
final, Shinichi estava com imensa vontade de participar do grupo e de fato poder
dizer que era um tocador do Ishin. A formatura do curso se aproximava, um grande
jantar foi oferecido pelo Ishindaiko para os familiares e convidados dos alunos do
curso. O nervosismo de tocar em público, mesmo que um público conhecido,
tomava conta de Shinichi. Tocadores antigos, os pais, amigos, todos estavam
presentes para assistir a performance na formatura. Kikon foi apresentado, e
aqueles poucos minutos se passaram como se estivessem fora do tempo. O
coração do jovem tímido vibrava e seus olhos não contiveram as lagrimas ao
receber o diploma de conclusão do curso. A primeira formação havia sido concluída.
O jantar continuou, com risadas e conversas. Shinichi foi para casa sem saber que
os integrantes do Ishindaiko posteriormente se reuniram para decidir aqueles que
seriam convidados a participar do grupo. O foco estava nas crianças, menores de
18, pois precisavam de tocadores para o Junior21, e a garra demonstrada por
Shinichi além do fato de ele ser parente de um dos membros, o colocou como um
daqueles que viriam a ser chamados a fazer parte do Ishin. Seus pais foram
contatados, e o resto da história, ainda está por vir.

2.2 Os tambores de uma só alma

A principal característica ressaltada pelos membros do Ishindaiko é o fato de


que eles não se veem enquanto um grupo de taiko, mas sim como uma família. Por
conta disso, a entrada no grupo demanda ao menos três meses de socialização
anterior e a formatura marca claramente o momento de "tornar-se Ishindaiko". A

21
Categoria do campeonato que será retomada posteriormente.
38
concepção do grupo enquanto tal não se dá apenas através das práticas criadas
para conscientemente gerar essa integração, mas também pelo discurso comum
dos membros do grupo. Certos elementos se sobressaem como fundamentais para
a permanência dessa união propagada e para a sensação de que constituem uma
família, sendo um deles o espaço que dispõem para os encontros e treinos.
Uma das maiores dificuldades apresentadas por grupos de taiko no Brasil,
exposto no Simpósio organizado pela ABT 22, está em encontrar um local para
ensaiar que comporte os instrumentos (que são grandes e pesados) e que possua
uma vizinhança disposta a escutar os treinos. O Ishindaiko dispõe de um grande
salão aos fundos da chácara Graciosa, com duas cozinhas, banheiros, mesas e
cadeiras, geladeira, fogão, além de uma ampla área verde e uma extensa estrutura
de madeira que comporta os instrumentos. Esse espaço foi cedido ao grupo por um
dos seus maiores patrocinadores, que possui relações de parentesco com o líder
fundador, e incentiva financeiramente o grupo das mais variadas formas.

22
Realizado em São Paulo, em novembro de 2016. Foi o primeiro Simpósio organizado pela ABT,
onde estive presente juntamente com as lideranças do Ishindaiko.
39
Entrada do salão utilizado pelo grupo. Foto: Raissa Romano

Área externa coberta onde geralmente realizam as refeições. Foto: Raissa Romano

Inúmeros grupos ao redor do país treinam sem utilizar instrumentos devido ao


barulho, ou com toalhas para abafar o som dos tambores. Sem vizinhos próximos
além do caseiro (que é presenteado pelo grupo anualmente por "aguentar" seus
treinos pesados), o salão na chácara possibilita que o Ishindaiko desenvolva seus
treinos com liberdade e use os instrumentos da maneira que melhor convém. O
salão é equipado com espelhos, que permitem aos tocadores analisar suas
performances e a sincronia dos movimentos, além de possibilitar observar a
posturas dos tocadores mais experientes. Ter à sua disposição um espaço como
esse facilita a construção de uma sociabilidade que está além do treino.

40
Estrutura que suporta os instrumentos. Foto: Raissa Romano

Além das festas e jantares, que acontecem com certa frequência, o grupo
também promove um acampamento de taiko, onde há workshop intensivo acerca da
prática e inúmeros jogos para estimular a criação. No cotidiano, o grupo utiliza o
espaço praticamente todos os dias da semana, no período da noite. Aos sábados, o
encontro inicia no começo da tarde e termina 20h, e envolve a participação ativa dos
familiares, além de todos os membros do grupo. Durante a semana, os dias são
divididos entre as equipes do campeonato. A divisão de equipes depende do ano,
sendo que houve campeonatos em que o Ishindaiko se apresentou com duas
equipes para a mesma categoria. Entretanto, de modo geral, há ao menos uma
equipe para a categoria Livre e outra para a categoria Junior.
O campeonato brasileiro de taiko, organizado pela ABT, está dividido em
cinco categorias, sendo elas: Mirim, Junior, Livre, Odaiko e Master. A restrição de
idade ocorre em três delas: Mirim são tocadores abaixo de 12 anos, Junior até 18
anos e Master acima de 45. As principais categorias do campeonato são o Junior
(que possui como prêmio principal uma viagem ao Japão) e o Livre (na qual
normalmente é exigida uma maior complexidade técnica). O grupo Ishindaiko possui

41
o maior número de títulos brasileiros, sendo heptacampeão brasileiro de taiko. Por
conta da originalidade, alta qualidade técnica e administrativa, o Ishindaiko é
referência para os grupos de taiko de todo país, sendo que tal reconhecimento gera
grandes responsabilidades para seus representantes. A performance do Ishindaiko
é esperada com ansiedade pelo público, mas noto que o diferencial do grupo no
campeonato está além do palco.
A postura de prestação de serviço aos outros grupos e organização do
evento, somado a honra de cumprimentar o sensei independente do resultado,
demonstra o reconhecimento que o grupo possui diante dos demais. Ao pensar na
minha vivência com o Ishindaiko, imaginava o campeonato como o grande evento,
lugar em potência. Criei tal imaginário por conta da expectativa dos tocadores; mas
quando cheguei, percebi que a dinâmica era cansativa, carregada de seriedade e
responsabilidades. O calendário do grupo gira em torno desse evento, sendo ele o
ponto central que regula todas as atividades do Ishin no decorrer do ano.
Pensando a organização através de uma perspectiva cíclica, tomando o
campeonato, que ocorre geralmente no mês de julho, como o ponto mais alto,
podemos estabelecer que após esse evento o Ishindaiko se recolhe em “férias”,
para o descanso dos tocadores. Em seguida, retornam com os treinos que
envolvem outras músicas além das do último campeonato, promovendo shows e o
acampamento, que atrai membros de outros grupos de taiko do país, principalmente
do Paraná. Além disso, também articulam e promovem o curso de formação que foi
apresentado no início do capítulo. Há, nesse momento, dedicação para a criação e
inovação, estimulando a composição das músicas que serão apresentadas no
campeonato seguinte. O processo de composição da música acontece inicialmente
de forma individual, quando um membro experiente possui um “insight” ou se dedica
à criação da composição.
Em seguida, a música passa por um vasto processo de alteração e
interferência no decorrer dos treinos, pois todos os integrantes são convidados a
expor sua opinião a respeito da criação e transformá-la durante o processo. Como o
grupo é dividido em mais de uma equipe para o campeonato, a avaliação da
composição ocorre geralmente aos sábados, quando todos os membros estão
reunidos (até mesmo aqueles que não irão participar da competição em nenhuma
das equipes) e podem expor suas impressões. A análise da música exige a
42
participação de todos os que assistiram, mesmo que seja apenas para colocar uma
percepção intimista e emocional do efeito que teve a performance. Observei como
várias das avaliações eram técnicas, e o quanto o meu juízo se transformou no
decorrer de minha experiência no trabalho de campo. Inicialmente minhas
considerações se atinham a uma avaliação emotiva, mas após estar mais
familiarizada com a musicalidade taiko, comecei a perceber fatores técnicos de
postura corporal, tempo e performance. De toda forma, com a presença ou não do
antropólogo em campo, após esse momento de reavaliação da música criada e de
recomposição da mesma, os treinos se intensificam, focando o aperfeiçoamento da
performance musical, a ser desempenhada pelos percussionistas no campeonato.
O Campeonato Brasileiro de Taiko avalia as equipes através dos seguintes
quesitos: 1- disciplina e traje, 2- postura, 3- técnica, 4- interpretação da música e 5-
trabalho em equipe. Esses pontos de avaliação já demonstram os valores que o
taiko pretende transmitir através da sua prática, sendo o desenvolvimento de
sentimentos comunitários e a disciplina dois dos principais pilares. O campeonato é
o instante do reconhecimento nacional do suor gasto em cada dia, cada treino, cada
instante dedicado ao taiko. Um dos pontos que chamou minha atenção quando
acompanhei o grupo no campeonato de 2015 foi o fato de que a ansiedade rasgava
cada instante, mas o ambiente permanecia organizado e contido. Cada equipe
permanecia unida e performando a música que iria apresentar, com raros momentos
de exaltação.
Nesse ano, o grupo estava inscrito em três equipes, duas no Livre e uma no
Junior. Apenas o Ishindaiko inscreveu duas equipes em uma mesma modalidade na
história do campeonato brasileiro, sendo diferenciado pelas letras "A" e "B" na
disputa. As músicas do Livre foram “Ken ni iki, ken ni taore” que significa "Viver pela
espada, morrer pela espada" e “Shiechitten Hakki” que significa, "Caia sete vezes,
levante 8". Apesar dessa nomenclatura, internamente as músicas são conhecidas
como Samurai e Caverna, respectivamente. Na categoria Junior, o Ishindaiko se
apresentou com a música “Shoshi” que significa "Desejo de alcançar o primeiro
objetivo". Cada uma das músicas apresentadas buscava atrelar as expressões
corporais ao sentido do nome e o que motivou a composição. No caso da Caverna
(“Shiechitten Hakki”) por exemplo, a música foi inspirada no processo de cura de um
câncer sofrido por uma das integrantes do Ishindaiko, enquanto que a música do
43
Juniors ("Shoshi") tem relação com o fato de que a maioria dos integrantes eram
iniciantes no Ishindaiko.
A performance do "Ken ni iki, ken ni taore" conduziu a audiência a uma
atmosfera de guerra, pintada de forma poética, onde sentimos a vida enquanto
movida por aquilo que nos dedicamos de corpo e alma, seja a espada ou o bacchi.
A música inicia enfatizando os kiais e as batidas do Odaiko, além da performance
dos tocadores que se preparam para a luta.
A música “Shiechitten Hakki” lembra o mito de origem do taiko, que descrevi
no primeiro capítulo, por tratar do desespero e da escuridão, sendo que a analogia
da caverna está presente tanto no mito, quanto na fala dos tocadores quando eles
explicaram sobre o que a música falava. Em ambos os casos, tanto no mito, como
na performance musical, o desfecho vem com a harmonia das batidas, com a
alegria, com o grito, o riso e a consequente libertação da caverna inicial.
No caso da música do Juniors, só posso comentar que os observei realizando
no decorrer da minha vivência em seus treinos exatamente o que ela expressa em
seu nome: eles conseguiram alcançar o primeiro objetivo, que consistia em
representar o Ishindaiko pela primeira vez no campeonato de uma forma que
agradou aos tocadores mais antigos.
O grupo foi campeão na categoria Livre, com a música “Ken ni iki, ken ni
taore”. Nessa música, três membros tocaram Horagais23, um seguido do outro com
um pequeno espaço de tempo entre eles, com o intuito de anunciar o início da
guerra. Esse é um instrumento criado a partir de uma concha do mar, e a forma
como a concha se transforma em instrumento é mantida em segredo, sendo esse
um objeto sagrado utilizado em cerimonias xintoístas e budistas, considerado capaz
de promover purificação no espaço. Nas guerras, era amplamente usado para
comandar a marcha dos soldados. Esse é um exemplo entre os vários instrumentos
diferenciados que emergem nas performances do grupo, que possuem a intenção
de ser um diferencial e ainda conseguir construir uma atmosfera permeada por
maior encantamento.
Como já foi colocado, a performance do taiko, além da execução das células
rítmicas, demanda dos tocadores movimentos que envolvem dança, expressões
corporais/faciais específicas (as quais demonstram o sentimento que a música quer

23
Ver caderno de referências etnomusicológicas número IX.
44
passar) e ainda por cima, a postura oriunda das artes marciais. Nas apresentações,
os tocadores utilizam o happi, uma vestimenta tradicional japonesa. A entrada no
palco é feita de maneira disciplinada, segurando os bacchis na posição horizontal
com ambas as mãos. Após o posicionamento dos tocadores, um dos membros é
selecionado para dar os comandos “Rei”, para que todos inclinem reverenciando a
plateia, e em seguida “Kamai”, para que todos os tocadores se coloquem na postura
para iniciar a tocar. O "Rei" é uma saudação utilizada em artes marciais como o
judô, sendo evocada pelo lutador mais graduado. No Ishindaiko, normalmente é o
líder ou algum tocador experiente que puxa os comandos de início da performance.
Cada instrumento possui uma postura para seu toque, sendo que podem
variar dependendo do suporte e inclinação que foram colocados. A dimensão e
altura dos tambores influencia diretamente no alcance do som que produzem, por
conta disso, o Odaiko, o tambor mais grave, tem um alcance sonoro maior do que
os demais e geralmente as músicas contam com apenas um. Ele pode ser tocado
em pé, com o tocador de costas para o público, ou na posição horizontal. O Okedo e
o Nagado24 também possuem variações na posição de tocar: o primeiro e mais leve,
pode tanto ser utilizado no suporte na vertical quanto pode ser colocado no corpo
através de um talabarte. Já o Nagado, existe a possibilidade de tocar na vertical, ou
inclinado, de acordo com o ajuste do suporte. A inclinação gira em torno de 45º e o
instrumento passa a ser chamado de Naname, que significa “ser flexível”.
O Nagado era um instrumento de difícil aquisição no Brasil, entretanto, a
partir de 2010, surgiram fabricantes nacionais que permitiram a popularização desse
instrumento nas equipes brasileiras. Outro instrumento importante para os kumi-
daiko é o Shime, instrumento agudo que possui geralmente a maior complexidade
rítmica. Geralmente ele é tocado no suporte rente ao chão, sendo que os tocadores
sentam em sua frente com as pernas cruzadas. A única exceção para que isso
ocorra é quando eles devem ser utilizados em conjunto com outro tambor: nesses
casos eles são colocados em suportes altos, que permitem que os tocadores o
toquem em pé. Um único tocador pode ter a sua disposição três ou mais
instrumentos, que serão tocados em conjunto no decorrer da performance.
Grande parte da magia dos instrumentos está na multiplicidade enorme de
sons e vibrações que o grupo consegue extrair de cada um. Além do couro, outras

24
Vide caderno de referências etnomusicológicas figura I.
45
partes dos instrumentos até aqui apresentados são tocadas com a intenção de
extrair sonoridades diferenciadas, como por exemplo, as bolas de ferro que se
encontram ao redor do Nagado-daiko, e que são utilizadas com frequência pelos
tocadores. Até mesmo quando o instrumento não possui ferros ao redor, como o
Okedo, batidas na lateral do couro produzem sonoridades mais agudas.

Odaiko com afinação de cordas. Foto: Raissa Romano

A troca de instrumentos (ou retirada deles) entre uma música e outra é feita
de forma rápida, tanto no campeonato quanto nos shows, sendo cronometrada
pelos integrantes do grupo. Para que funcione plenamente, os tocadores estudam o
mapa de palco que é desenhado antes de qualquer apresentação e, no caso do
campeonato, deve ser enviado aos organizadores com antecedência. O Ishindaiko
em diversos momentos durante seus treinos, ensaia apenas a entrada e saída entre
as músicas. As apresentações das músicas terminam com o mesmo kiai de início, o
“Rei”, que chama a reverência seguido da saída dos tocadores.
Em 2016, a ABT organizou o primeiro Simpósio de taiko, que consiste em um
ciclo de palestras que visam abordar o tema pelas mais variadas frentes: o
condicionamento físico, a estrutura interna, a criação, os valores. Segundo a
46
organização, a proposta do Simpósio era auxiliar na troca de conhecimento entre os
grupos, visando o fortalecimento das equipes. Além das palestras, o simpósio
contou com um fórum de perguntas para os líderes dos melhores grupos do país,
sendo que o Ishindaiko estava entre eles. Participei do Simpósio juntamente com o
líder atual, Erick Takihara (que compôs a mesa do fórum de discussão), o
coordenador do grupo Nelson Hidemi Okano (carinhosamente conhecido por “tio
Nelson”), e o líder fundador, Lucas Muraguchi, convidado enquanto palestrante do
Simpósio.
A primeira palestra abordou a estruturação dos grupos de taiko, sendo
apresentada por Marco Teruo Tanaka, integrante da ABT. Em sua análise dos
grupos de taiko do Brasil, Teruo afirmou que em relação aos membros, as equipes
tendem a apresentar um pico de adesão no começo, e depois decair em número de
integrantes. No quesito técnico, a tendência é aumentar no decorrer dos anos a
qualidade das equipes, entretanto, a parte administrativa não acompanha essa
“evolução” e aí está um dos principais problemas diagnosticados por ele. Por conta
disso, a palestra direciona para os elementos que devem constar dentro de uma
equipe para que ela seja “bem estruturada”.
Segundo Teruo, a estruturação da equipe é indispensável para que o grupo
crie identidade. Todas as equipes devem possuir um coordenador e um líder. O
coordenador deve ser responsável pela parte administrativa do grupo, enquanto o
líder deve atuar como um exemplo, um professor e uma liderança técnica. As
equipes devem conter também um Estatuto que regule as regras de funcionamento
da coletividade. Além dessas regras maiores, os grupos devem instituir regras de
conduta e comportamento para os treinos e objetivos a longo e curto prazo. O
Ishindaiko possui um modelo ideal de boa estruturação, dentro desses pressupostos
colocados por Teruo.
A palestra de Yaohey Kaito, chamada “Cultivando valores através do taiko”,
trouxe vários elementos que dialogam com o que vim observando no Ishindaiko ao
longo do tempo e as reflexões presentes nesse estudo. Na sua fala, Kaito apontou
como no taiko os valores são adquiridos através do tempo, em uma relação de
organicidade. Para ele, o valor e objetivo dessa prática no Brasil está atrelada à
capacidade de difundir a cultura japonesa. Para a exposição, o palestrante

47
apresentou sua experiência de intercâmbio dentro do grupo Kodo, e a forma que
este grupo se organiza na Ilha de Sato.
Como já foi dito anteriormente, o grupo Kodo apresentasse no cenário
mundial enquanto um modelo ideal da prática, e para Bender Shawn (2012), esse
processo transformou a Ilha de Sato, onde o Kodo reside, de um espaço regional
para um lugar cosmopolita, que promove intercâmbios culturais e hospeda pessoas
dos mais variados lugares do globo. Kaito foi um, dos muitos interessados, que
participaram desse intercambio promovido no Kodo Village. Segundo ele, o Kodo
tem como pilares do taiko que praticam o doryoko (esforço), o autoconhecimento e a
auto superação. A estrutura é hierárquica, de acordo com a idade e o peso
simbólico de cada membro dentro do grupo. Os membros mais jovens do Kodo
possuem funções específicas e responsabilidades e seu trabalho é reconhecido
pelos mais velhos através da execução dessas funções.
A vida dentro do Kodo foi dividida por Kaito através de três grandes eixos: 1-
Vida, 2- Aprender, 3- Fazer/Construir. No primeiro eixo, consta a convivência
comunitária dos seus membros, os cantos e o taiko. O segundo é formado pela
agricultura praticada na comunidade, a cerimônia do chá e a cultura de fabricação
dos instrumentos. No último eixo, está o festival promovido pelo grupo que reúne
todos os membros e envolve a prática do taiko de modo geral. O Kodo foi
apresentado enquanto um ideal a ser buscado na medida do possível pelos grupos
de taiko do Brasil, devido aos seus valores comunitários, à organização interna em
relação às responsabilidades e trabalhos, além da espiritualidade atrelada a prática
do taiko. De um certo modo, e isso será exposto de modo mais aprofundado mais a
frente, o Ishindaiko busca se espelhar nesses valores colocados pelo Kodo tanto em
seu discurso quanto em suas práticas.
A palestra ofertada por Lucas Muraguchi abordou a expansão artística dentro
dos grupos de taiko brasileiros. Para Muraguchi, o taiko nacional, apesar de possuir
um nível técnico cada vez maior, ainda possui pequena relevância no cenário
mundial, apesar de o Brasil ser a segunda maior colônia japonesa. A exposição
aponta o kumi-daiko como a expansão do taiko, e que as equipes precisam se
decidir sobre ser um grupo de preservação ou inovação, para evitar futuras crises
de identidade. Como já coloquei anteriormente, Lucas Muraguchi define o Ishindaiko
enquanto um grupo de inovação, devido às composições que performa. Ainda
48
analisando o taiko brasileiro, Muraguchi diagnostica enquanto principais problemas
o fato de que está enquadrado em uma zona de estabilidade, pois, depois de ter
alcançado um determinado nível técnico, falta interesse e inspiração para continuar
crescendo. Para ele, os grupos deveriam "abrir a cabeça" para buscar novas fontes
no estrangeiro.
Novamente, o Ishindaiko, surge como um grupo que foge da norma nesse
quesito, sendo referência quando se trata de criatividade e inovação na
performance. O fórum que fechou o Simpósio contou com os líderes de quatro
equipes de grande reconhecimento nacional para responder as questões levantadas
pelo público, sobre como sanar determinados problemas. As perguntas foram
voltadas para a relação entre os pais, líderes e tocadores, arrecadação de
patrocínios e outras fontes de renda, atração de novos membros e treinamentos.
Um ponto que me chamou atenção foi o fato de que todas as respostas e palestras
possuíam discursos motivacionais e exaltavam a união enquanto um dos valores
primordiais. Nesse encontro tive acesso ao presidente da ABT, Sensei Watanabe, e
isso me fez perceber como, por ser um circuito fechado, o acesso a membros de
alto escalão na hierarquia é possível mesmo com pouco tempo de relação com o
taiko. Apesar disso, precisei do coordenador do Ishindaiko enquanto intermediário
nessa apresentação.
Para concluir esse tópico, gostaria de tecer um diálogo com o livro "O
crisântemo e a espada" (1946) da antropóloga americana Ruth Benedict. No livro,
Benedict se propôs a refletir acerca da cultura japonesa através de entrevistas com
japoneses que viviam nos Estados Unidos, no período da Segunda Guerra Mundial.
A análise era voltada para o serviço de inteligência norte americana e é passível de
duras críticas levando em consideração questões mais atuais levantadas pela
antropologia, como por exemplo, a discussão acerca do Orientalismo empreendida
por Edward Said25. Além de ser criticada por conta de pressupostos genéricos e

25
A definição de Orientalismo, nas palavras do de Said (2007, p.15): “O orientalismo é um estilo de
pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre "o Oriente" e (a maior
parte do tempo) "o Ocidente". Desse modo, uma enorme massa de escritores, entre os quais estão
poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais, aceitou a
distinção básica entre Oriente e Ocidente como o ponto de partida para elaboradas teorias, épicos,
romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, dos seus povos, costumes,
"mente", destino e assim por diante. [...] O orientalismo pode ser discutido e analisado como a
instituição organizada para negociar – negociar com ele fazendo declarações a seu respeito,
autorizando opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo, o
49
moralistas, com a finalidade de ajudar seu Estado-nação a vencer a guerra, a obra é
apontada como reforçadora de estereótipos na relação entre o Nós-Eles,
protagonizados pelos Estados Unidos e Japão. Nesse ponto, há o silenciamento das
diferenças internas presentes em cada um dos países, conjuntamente a criação de
um ideal do "ser japonês" detentor de uma suposta unidade cultural.
Ainda assim, a obra é considera clássica e expõe dados que gostaria de
apresentar aqui com o intuito de pensar a construção feita pelo Ishindaiko e, de
certo modo, o discurso proferido pela ABT, acerca do taiko. No capítulo “A
autodisciplina”, Benedict analisa como japoneses e estadunidenses entendem a
noção de autodisciplina. Segundo ela, nos EUA, a autodisciplina está associada a
uma prática individual regulada a partir da consciência de cada um, sem um método
específico. Em muitos casos, está associada a noção de auto sacrifício, quando
realizada de modo intenso. A execução da autodisciplina depende, portanto, de um
projeto pessoal que envolve a ambição de cada um. No caso do Japão a
autodisciplina depende de um treinamento particular e técnico, capaz de regular o
aprendizado de uma determinada prática que o sujeito se propõe a dominar. A
autodisciplina, nesse caso, está atrelada a outras duas noções: autocontrole e
autodomínio técnico. Para Benedict, é um dos princípios base da "cultura japonesa"
a ideia de que

A vontade deve reinar suprema sobre o corpo infinitamente


ensinável e que este não possui leis de bem-estar, desprezadas pelo
homem por sua própria conta. Toda a teoria japonesa de
“sentimentos humanos” repousa sobre esta pressuposição. Quando
se trata das questões realmente sérias da vida, as exigências do
corpo, por mais essenciais à saúde, por mais destacadamente
aprovadas e cultivadas, deverão ser drasticamente subordinadas
(BENEDICT, 1946, p. 195).

No acompanhamento dos treinos, percebi que a autodisciplina é colocada


enquanto um valor essencial, sendo imposta pelo coordenador do treino e no caso
do sábado, quando estão todos reunidos, pelo líder do grupo. O tempo é utilizado de
forma rígida dentro do taiko, pois cada música dentro do campeonato possui um
tempo ideal a ser atingido de acordo com cada categoria. Quanto mais distante

orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente.”.
Said, E. Orientalismo. Companhia das Letras, São Paulo. 2007.
50
desse tempo, maior é o custo na pontuação da apresentação como um todo, por
conta disso, a disciplina em relação a execução da performance perpassa os
mínimos detalhes de precisão, o que demanda dos tocadores alto domínio técnico e
o autocontrole, levando em conta que o momento da apresentação no campeonato
envolve nervosismo, ansiedade, euforia, entre outros sentimentos oriundos da
responsabilidade de representar o grupo.
Em seu livro, Benedict aponta o quanto a noção de sacrifício, tão presente
dentro dos valores ocidentais, é dissonante com as premissas japonesas que
regulam as relações com a base voltada para o coletivo. Segundo ela, os japoneses
tendem a se empenhar ao máximo para cumprir obrigações externas e a sanção
tradicional com base na reciprocidade não permite que sintam auto piedade pelos
esforços dispostos em prol do outro. Observo o quanto esse ideal voltado para o
coletivo está colocado nos discursos dos membros do Ishindaiko, sendo que todo
esforço é posto na qualidade de dedicação ao grupo. Contudo, esse não é o tipo de
valor que "naturalmente" flui dentro do coletivo, mas que precisa ser construído
cotidianamente através do discurso das lideranças e da rotina imposta nos treinos.
A prática do taiko se insere dentro do que Benedict define enquanto
autodisciplina "competente", onde as técnicas dos treinos empreendidos visam o
aprimoramento da conduta na vida da pessoa. A ABT afirma estar entre os valores
propagados pela associação a disciplina e resiliência na busca para alcançar a
excelência, sendo que o aprimoramento pessoal está colocado enquanto resultado
da prática do taiko. Dessa forma, além de estar distante da ideia do sacrifício, a
noção de autodisciplina está associada à um benefício pessoal, sendo que qualquer
impaciência resultante do início do treinamento desaparece com o tempo ou gera a
desistência do iniciante.
No Ishindaiko, antes do início de todo treino o salão é limpo por dois ou mais
integrantes, sendo que nos sábados, quando estão reunidos todos os membros
ativos, essa função fica a encargo dos mais novos, incutindo dessa forma maior
responsabilidade e disciplina nos iniciantes. O erro durante um treino nunca é
considerado uma falha individual, pois se o seu companheiro errou, você de alguma
forma também falhou ao ajuda-lo. Principalmente dentro do treino dos iniciantes,
concentrados no Junior, o erro leva a flexões enquanto "punição", sendo que todos
pagam em conjunto. Essa norma de conduta está relacionada com os valores
51
propagados através da ABT acerca da prática do taiko. Além da disciplina, alguns
aspectos de treinos específicos me conduziram a pensar a dimensão do sagrado
dentro do grupo.

Tocadores do Junior treinando no intervalo. Foto: Raissa Romano

Tocadores do Junior realizando flexões pelos erros cometidos. Foto: Raissa Romano

52
2.3 A vitalidade dos corpos exauridos

Às vésperas do campeonato presenciei um treino diferenciado, ministrado


pelo líder fundador do Ishindaiko, Lucas Muraguchi, que, a meu ver, possui
aspectos de um ritual. Parto de Mariza Peirano (2002) para afirmar que não me
cabe aqui definir o que são rituais, mas sim, demonstrar como o instrumental
analítico direcionado para o exame de rituais pode ser utilizado na análise de um
evento especial e comunicativo dentro do universo do grupo, no caso, o Ishindaiko.
A ênfase recai sobre a ação criada pelo coletivo para lidar com as fortes pressões
que à véspera do campeonato gera em seus membros, assim, observo a potência
do evento em questão por ser um acontecimento de intensificação do usual. Esse
treino especial possui três características fundamentais, que consta em Peirano,
que me permite pensa-lo dentro da categoria de ritual: 1- momento distinto do
cotidiano; 2- performance coletiva que envolve todos os membros; 3- possui uma
estrutura especifica que ordena a ação.

O foco aqui está nos ritos de passagem, devido ao fato de esse treino ter sido
descrito enquanto tal por Muraguchi e por ter observado algumas relações com essa
categoria de ritual. Através do conceito de liminaridade, desenvolvido por Victor
Turner (2005, 2013), o ritual de passagem é pensado enquanto um período em que
a estrutura está suspensa por alguns instantes, ao mesmo tempo em que é
posteriormente reforçada. Apesar de não possuir o caráter místico e poderes
sobrenaturais, o treino em questão possui elementos que dialogam com a produção
do autor, principalmente devido à alta dramaticidade envolvida; ser povoado de
símbolos e representações que promoveram ao final uma alteração (a nível
simbólico e físico) daqueles que participaram.

O treino por mim presenciado é executado por todas as equipes, todos os


anos, na proximidade do campeonato, e consiste em um intensivo onde os
tocadores performam a música que será apresentada na competição por cem vezes
das mais variadas formas. Segundo Muraguchi, o treino das cem vezes gera o
sentimento de ter “sobrevivido” e alcançado um outro patamar no taiko. A equipe
que acompanhei foi do Junior no ano de 2015, composto, majoritariamente, por
jovens com idades de 12 a 15 anos. O treino das cem vezes enquanto preparação

53
final para o campeonato me pareceu surpreendente devido a capacidade de
provocar estados diferenciados de percepção. Era requisitado que os tocadores
performassem a música inteira com apenas a mão direita, apenas com a esquerda,
de trás pra frente, no escuro, em um instrumento que não era o usual, etc. No caso
do Junior, havia uma música obrigatória de 1’, e a música original, contabilizando no
total o tempo (ideal) de 4’ e 45’’ de performance. Apesar de desafios desse tipo
terem ocorrido antes, um treino dedicado a eles, com a meta das cem vezes, é uma
experiência à parte e ansiosamente aguardada pelos integrantes do grupo.

Performar a mesma música, repetidamente, de maneiras inusitadas, sendo


que cada performance sela um desafio distinto, suspende a estrutura "normal" da
música, habitual e constantemente repetida nos treinamentos. No decorrer da
performance das cem vezes, pude observar que, ao mesmo tempo que a estrutura é
suspensa de maneira radical, é reforçada a partir do momento que os tocadores
precisam apresentar um domínio da música para além do que estão acostumados a
realizar, sendo treinados a lidar com o imprevisível e adentrar em novas percepções
acerca da própria performance. Outro fator importante desse treino é a questão
física. Os tocadores são conduzidos a uma exaustão descomunal: sem momentos
para pausa consideráveis, eles seguem executando a mesma música de formas
diversas durante horas a fio. Esse aspecto me chamou atenção pensando na
descrição de ritos, principalmente de passagem, por Pierre Clastres (2003).

Segundo Clastres (2003), constantemente os rituais submetem o corpo do


iniciado a torturas. Essas torturas se inscrevem no corpo, e, se as técnicas variam
de sociedade para sociedade, o objetivo permanece o mesmo: o iniciado precisa
sofrer. A forma como o treino das cem vezes conduz o corpo dos tocadores a
extremos, e mais do que isso, como a cada momento que passam nessa condição
eles apresentam ainda mais força para tocar, como se a vitalidade aumentasse à
medida que a exaustão se instaura no corpo, é um dado que me remete a questão
da resistência dos iniciados nos rituais apontada por Clastres. A memória inscrita no
corpo do iniciado através de cicatrizes não está presente no treino especial,
entretanto, o corpo é marcado de outras formas após a árdua performance, e a
memória do grupo é ativada logo em seguida.

54
Se aproximando do final, ao atingir noventa e quatro vezes, os tocadores são
levados a apresentar a música da forma “normal” por cinco vezes sem nenhuma
pausa, durando em média uma performance de 25’. Levando em consideração que
os tocadores já haviam performado noventa e quatro vezes antes disso, e que a
apresentação conta com posturas oriundas das artes marciais, além da dança e do
toque em si, esse quadro gera uma condição no físico desgastante, que se mantém
firme devido ao poder simbólico e eficácia ritual que o treino possui (LÉVI-
STRAUSS, 1970, 1970). Após as cinco vezes seguidas, inicia-se um relaxamento
no escuro, conduzido por falas de duas figuras referenciais no Ishindaiko: Lucas
Muraguchi e Yudji Higashi26. A história contada pelo Lucas projetava o futuro como
presente e conduzia os integrantes ao campeonato, narrando o que aconteceu.

Na fala, os tocadores do Junior passavam por todos os preparativos para


entrada no palco: os pensamentos, a ansiedade, a concentração. A performance foi
narrada como atingindo os tempos ideais de 1’ para a primeira música e 4’ 45’’ a
apresentação total. A condução da história era rica em detalhes e sentimentos: a
saída do palco, os familiares e apoios que sustentam os jovens tocadores, tudo
entrelaçado na trama do campeonato que passou após aqueles breves minutos e se
resumia agora no sentimento de dever comprido e comemoração com os entes
queridos. A sala estava escura, mas uma luz entrava sutilmente do lado de fora,
criando uma atmosfera teatral, onde o fundador do Ishindaiko era levemente
iluminado enquanto contava um sonho em frente ao Odaiko27, que compunha a
cena. Após o Lucas, Yudji assumiu a fala por convite da Cíntia (treinadora do Junior
na época), para que conversasse com os jovens tocadores.

Logo no início a voz começou a contar a história do passado, da equipe do


Junior que ganhou o campeonato brasileiro de taiko e foi para o Japão representar o
Brasil no Concurso Junior de lá. A narrativa construída por Yudji era carregada de
emoção, que crescia a cada palavra, sendo que, o conto do campeonato passado
fez com que as lágrimas se proliferassem por todo o espaço. Assistindo a cena,
estavam juntamente comigo os tocadores do Livre, que acompanhavam em silencio

26
Higashi se enquadra na categoria de líder emocional por ser o encarregado (informal) de promover
discursos motivacionais e carregados de emoção, além de coordenar treinos e enfatizar a expressão
corporal dos integrantes

55
tudo que ocorria. Ao terminar, Yudji levantou os tocadores organizando uma roda,
abraçados, e com um gesto chamou todos que estavam no local para se
aproximarem. Todos colocaram as mãos nas costas dos Junior que estavam no
centro, e a fala do Yudji ressaltava o apoio, a união, a força, e acima de tudo: o
quanto eles não estavam sozinhos e o que representavam. As mãos nas costas
simbolizavam o peso da responsabilidade de ser-Ishindaiko e performar no
campeonato, ao mesmo tempo em que eram exaltados o suporte e o elo. No
discurso proferido, as mãos que ali pesavam possuíam a função também de apoiar
e segurar em possíveis quedas.

O Banzai (saudação que deseja vida longa e antigamente era usado como
grito de guerra), utilizado antes das apresentações, foi feito de forma intensa por
todos. Esse grito possui uma definição ambígua, pois ao mesmo tempo em que
remete a alegria e saudação de longevidade, também é um grito de desespero
usado em momentos de guerra e morte iminente. Mergulhados em lágrimas,
exaustos, emocionalmente frágeis devido à pressão do campeonato, o grito tomou
proporções catárticas, misturando tanto desespero quanto alegria. Após esse
momento, os tocadores do Junior foram conduzidos no escuro para seus
instrumentos, para performar a última vez na noite, as músicas do campeonato.
Começaram tocando no escuro, os integrantes do Livre permeavam o ambiente
soltando os kiais, termo que se refere à exteriorização da energia corporal,
juntamente com o Junior.

Todos os membros presentes na sala estavam no espaço reservado para a


performance, circulando energeticamente e coreografando (“tocando no ar”) como
se fizessem parte da música. Durante os solos, os gritos se concentravam nos
tocadores que estavam solando, movendo-se rapidamente pelo espaço. Os jovens
tocadores do Junior em lágrimas pareciam possuir mais vigor do que em qualquer
outra performance, apesar dos corpos exauridos após as noventa e nove execuções
anteriores. Quando terminou, pude anunciar 28 que os tempos ideais de 1’ para
primeira música e 4’ 45’’ no total, que não haviam sido alcançados em nenhum dos
treinos anteriores, foram concretizados. Todos os presentes estavam comovidos

28
Cronometrei a performance para o grupo.
56
com o ocorrido, e penso ter sido um momento de catarse para os tocadores do
Junior e fortalecimento dos laços sociais do coletivo.

A equipe do Junior daquele ano era composta, em grande maioria, por


integrantes considerados "novos" no grupo (com aproximadamente 2 anos de taiko),
sendo, portanto, o primeiro campeonato para a maioria deles, o que tornava o treino
das cem vezes daquela noite envolto por maiores características de um rito de
passagem. Diante disso, penso como a descrição do campeonato no futuro e no
passado, além da eficácia ritual do discurso das autoridades, demonstra alguns
aspectos do momento limiar vivido pelos tocadores. Pois, viviam o quase-
campeonato, às vésperas, onde o psicológico sofre com as pressões e
responsabilidades de forma mais intensa. Naquele período limiar o conflito
vivenciado pelos jovens tocadores estava em não haver mais tempo de treino ao
mesmo tempo em que precisavam esperar o dia do campeonato.

Bourdieu (2008) discute a eficácia dos discursos dentro dos processos rituais,
apontando o quanto esta depende do poder conferido pelo grupo ao portador da
fala. É necessário que a figura que promova o discurso seja imbuída de poder
simbólico dentro do coletivo, e se assim for, suas palavras possuem a capacidade
de agir sobre os demais. Como podemos perceber, aqueles que assumiram as falas
foram as figuras dotadas de maior autoridade simbólica dentro do coletivo, capazes
de conduzir os tocadores do Junior a uma condição em que, de forma ficcional, já
haviam passado pelo campeonato. A eficácia simbólica desses discursos decorre da
legitimidade que as duas lideranças dispõem para transmitir aos tocadores a
percepção de que "cumpriram" seu dever, consagrados após as noventa e nove
vezes.

Vejo como o treino teve aspectos rituais por conta da alta dramaticidade,
performance, intensificação do pertencimento ao coletivo, jogo com as estruturas, e
principalmente, por conta da efetividade que teve no Junior, que foram os atores
centrais de toda a trama, expresso pelos tempos alcançados nas músicas ao final.
Observo nesse treino especial, promovido pelo grupo Ishindaiko, a capacidade de
produzir em seus participantes o sentimento de sair de si, o êxtase, no momento do
tocar. O êxtase aqui compreendido está, portanto, relacionado aos sentimentos
intensos compartilhados através do treino das cem vezes atrelado ao físico
57
conduzido aos extremos. O sair de si dos integrantes do Junior é a entrada plena no
grupo, através da provação física e da dor a qual resistiram.

2.4 O intercâmbio entre tambores londrinenses

Ao ingressar no campo, levei comigo não apenas a bagagem adquirida


durante a formação em Ciências Sociais, mas também minhas vivências enquanto
percussionista e integrante de um grupo percussivo dentro da mesma cidade, o
Maracatu Semente de Angola. Considero como potência para a análise partir da
contraposição entre minha experiência com o Ishindaiko e a da Natalia Akiko Nasu
no Maracatu Semente de Angola em relação ao tema corpo, e tecer comparações
ao abordar a organização interna e a relação com os mestres. O intercâmbio de
tambores foi realizado com o intuito de promover essa noção do "eu" através do
contraste com um "outro", e vejo o quanto isso repercute em grande parte do
trabalho. A ênfase permanece no Ishindaiko, contudo, relacionar com o Maracatu
Semente de Angola amplia o fenômeno que me proponho a abordar, além de situar
a minha presença no texto levando em conta a complexidade da troca estabelecida
no campo.
Em "As técnicas do corpo", Mauss (2003) nos convida a pensar como,
através da tradição, técnicas corporais são transmitidas nas sociedades. Antes de
qualquer instrumento criado, o corpo surge como o meio técnico primordial que o
ser humano tem acesso para desenvolver as suas atividades. As técnicas corporais
são construídas socialmente, e envolvem a transmissão e repetição da prática para
a construção social do corpo. Essa perspectiva aponta a técnica enquanto um ato
tradicional eficaz, ou seja, para Mauss, sem tradição não é possível a transmissão e
repetição, e portanto não há a técnica. Pensar o corpo na percussão em seu
processo de construção dentro de um saber que é transmitido oralmente o enquadra
dentro da categoria de técnicas de atividade e movimento. A proposta não é de
traçar uma teoria da técnica do corpo dentro desses grupos, mas demonstrar o
quanto, através do intercâmbio de tambores, ficou evidente o quanto as técnicas
corporais incutidas em nossos corpos se evidenciaram a partir do contato com o
diferente.

58
Quando tive oportunidade de aprender um pouco de taiko com a Natália
Akiko e no curso de formação ofertado pelo Ishindaiko, percebi como a questão do
corpo era um fator essencial. A consciência corporal exigida dos tocadores é
elevadíssima: o treinamento é rigoroso, para que cada parte do seu corpo
internalize o tempo da música e flua de forma “natural”, expressando sentimentos e
passando a mensagem desejada por cada composição. Toquei o Okedo-daiko, e a
posição para tocá-lo tem uma base semelhante à das artes marciais. Os tocadores
devem permanecer com a coluna ereta, a perna esquerda posicionada a frente e
flexionada, e a direita estendida. Os braços possuem um movimento reto e firme,
sendo que o punho deve quebrar no momento de bater no tambor.
No Maracatu Semente de Angola, tocamos o maracatu de baque virado da
Nação Porto Rico, e o corpo acompanha o baque das ondas, característica da
nação. Há movimentos que lembram "remadas" na jogada do corpo e o gingado
permeia todo o toque. A dança é essencial para tocar, e os joelhos sustentam a
alfaia (tambor), permitindo caminhar no ritmo cadenciado. Há coreografias
especificas para certos Orixás, mas em geral, dançamos de forma fluida e com
poucas regras. Existe o bate e o rebate no lugar dos bacchis, e o braço direito e
esquerdo se alternam, sendo que o direito tira o som enquanto o esquerdo marca o
tempo. O corpo acompanha a batida no tambor, e a cada célula forte os joelhos
seguem, flexionando.
No caso do Ishindaiko, cada ação possui uma métrica especifica que deve
ser respeitada na sua totalidade, sendo composto por movimentos uniformizados e
coreografados entre os tocadores, sendo que, o objetivo é a sincronia entre os
percussionistas e atingir tempos específicos para cada música. Segundos de
diferença podem custar um bom resultado no Campeonato, e por conta disso, a
ênfase na precisão do tempo e do movimento do corpo é essencial. A resistência
física para manter as posições e executar as células rítmicas demanda que os
tocadores alonguem por um período de tempo considerável durante os treinos antes
de iniciar as músicas.

59
Parte do corpo de um tocador durante o treino. Foto: Raissa Romano

Por conta do corpo socializado em outro universo, quando tentei aprender a


postura corporal para tocar taiko tive enorme dificuldade: a rigidez e precisão
somadas a leveza em momentos específicos me eram muito custosas. Meu corpo
ficava dolorido após pouco tempo tocando, principalmente as pernas. O interessante
era observar que a Natalia Akiko no Semente de Angola passava pela mesma
dificuldade no quesito movimentação corporal, ficando exausta enquanto eu não
apresentava nenhum sinal de cansaço quando eu lá tocava. A socialização que se
inscreve com o tempo em nossos corpos foi um elemento intrigante de observar
durante o trabalho de campo. As técnicas corporais inscritas durante os anos
interferiam durante o aprendizado da nova técnica.

60
Fragmentos de corpos dos tocadores do Ishindaiko durante treino. Foto: Raissa Romano

Tanto eu quanto a Natalia Akiko não apresentamos dificuldades em aprender


as células rítmicas que cada grupo performava, entretanto, os pontos de resistência
estavam intimamente atrelados à nossa formação anterior. Além das dores na perna
por permanecer na posição de "Samurai", meus braços possuíam "gingado", criando
movimentos que não deveriam ocorrer, pois na música que estava aprendendo,
enquanto um braço desce para bater no tambor o outro sobe reto e firme, sem
ondulações. No Maracatu Semente de Angola, Akiko apresentava dificuldades em
realizar a "remada", maneira de bater no tambor que solta o braço na diagonal com
força na primeira batida e deixa que a baqueta retorne de forma mais leve para o
segundo toque, continuação do mesmo movimento. Pude observar que o processo
de construção do corpo dos tocadores do Ishindaiko demonstra maior rapidez
quando aplicado aos jovens, que ainda possuem flexibilidade para aprender as
técnicas transmitidas.

2.5 Hierarquia e a organização

61
Antes de entrar nas questões referentes à organização interna, devo
apresentar brevemente a fundação do grupo de maracatu da cidade de Londrina. O
Maracatu Semente de Angola, deriva do grupo LATA, formado por universitários da
UEL, que estudavam ritmos percussivos da cultura popular de forma geral, desde
samba coco, cucuriá, samba de roda, maracatu, entre outros. Em 2010, após a
vinda de Rumenig Dantas, batuqueiro da Nação de Maracatu Porto Rico, o grupo
decide que a partir de então iria tocar apenas maracatu, e mais do que isso, que
seriam “filhos” de Porto Rico, criando um vínculo direto com Recife e a com o
maracatu Nação. Rituais religiosos dentro do candomblé, com a Yalorixá Mukumby,
marcaram o nascimento do grupo, Semente de Angola. O grupo possui esse nome
devido a casa da Mãe Mukumby (ou Dona Vilma), ser da nação Angola.
Tanto o grupo Ishindaiko quanto o Semente de Angola pensam a si mesmos
como uma família, valorizando os relacionamentos que são estabelecidos através
do taiko e do maracatu. Levando os seus discursos enquanto fatos, observo que o
Semente de Angola é uma família só de irmãos, ou de pais que moram longe.
Composto majoritariamente por universitários, com idades que variam
predominantemente entre os 20 – 30 anos, que em sua grande maioria vivem
sozinhos. Se existem figuras de autoridade paternais na família construída no
Semente de Angola, elas estão no Recife e são representados pelo mestre Chacon
Viana e pela mestra Joana Cavalcante, por meio de um parentesco
religioso/musical. A organização interna está centralizada atualmente em um grupo
pequeno de membros, que assumem as principais responsabilidades; entretanto, a
participação de todos os integrantes é requisitada para que o grupo funcione e todas
as decisões são tomadas em coletivo após os ensaios.
No que diz respeito ao Ishindaiko, os pais e mães dos tocadores são
essenciais para a construção do grupo e são integrados a ele, compondo-o, tanto
quanto seus filhos. Um dos exemplos que demonstra a presença ativa é a questão
da alimentação. As famílias dos tocadores estão divididas em cinco grupos que se
revezam para trazer comidas durante os treinos que ocorrem aos sábados.
Acompanhei também uma rotação interna em relação a comida dentro do Junior,
que reverenciava com Itadakimasu "obrigado pela comida" no início, selando a
existência de um momento especial e respeito com a tradição nipônica. Os

62
alimentos levados são geralmente lanches como salgados dos mais variados, tortas,
doces, acompanhados de sucos e refrigerantes.

Mães preparando o lanche do sábado. Foto: Raissa Romano

O grupo de famílias responsáveis pelo lanche do sábado geralmente


acompanham todo o treino do grupo, sendo comum que certas mães estejam
presentes na maioria dos sábados. No início de 2017, um grupo delas resolveu
aprender a tocar taiko durante os sábados à tarde, seguido de aulas de crochê.
Segundo elas, o interesse em aprender a tocar surgiu pelo fato de que "não tinham
o que fazer" além de "jogar conversa fora", e decidiram se divertir e exercitar o
corpo e a mente, aumentando as atividades promovidas por elas e a convivência. A
dinâmica da aula de taiko das mães é completamente distinta dos treinos do
Ishindaiko. As oito senhoras fazem brincadeiras e chacotas durante toda a aula,
geralmente sobre o fato de serem "velhas" e cansarem. Uma delas, que pouco
conseguia acompanhar as células ensinadas, tentou atingir um pernilongo que
passava.
A "leveza" presente no treinamento está relacionada ao descompromisso em
relação a apresentações ou campeonato, apesar de que, esse tema surge enquanto
63
possibilidade distante nas conversas do grupo. Elas colocam como objetivo primeiro
ter coragem de apresentar para os filhos, antes de qualquer apresentação para um
público maior. As senhoras são ensinadas por uma jovem do grupo, que tem
aproximadamente 25 anos, e não está participando dos treinos para o campeonato.
As brincadeiras sobre nesse momento ela ser uma autoridade são constantes, me
levando a pensar a questão da hierarquia posta dentro do ideal da cultura japonesa
em que os jovens devem respeitar e se submeter aos ensinamentos dos mais
velhos. A inversão de "valores" não poderia passar sem zombaria por parte das
mães.
São também as mães e pais que atuam ativamente na organização de
eventos promovidos pelo Ishindaiko, como no caso das apresentações no Teatro
Marista, em que a família dos tocadores trabalhou na venda de ingresso, recepção,
entre outras tarefas. É nítido o orgulho que as mães e pais sentem de seus filhos e
do Ishindaiko no todo, e mais ainda, o orgulho de ser parte do grupo, de ser-
Ishindaiko. As roupas com o nome e símbolo do grupo (calças, blusas e casacos),
são usadas tantos pelos tocadores quanto pelos familiares. Os tocadores
apresentam grande respeito aos mais velhos, que são constantemente
lembradosnas falas como fonte de inspiração para realizar as apresentações.

Mãe acompanhando treino de sábado. Foto: Raissa Romano.

64
No caso da liderança, em um primeiro momento ao observar o grupo,
podemos ser levados a crer que todas as tarefas, responsabilidades e os poderes
da chefia estão centralizados em uma única figura: o líder, que no momento em que
iniciei o campo era Gabriel Hideki e atualmente a função está a encargo de Erick
Takihara. Apesar de rotativo, de fato, o líder ocupa diversas tarefas e
responsabilidades, principalmente enquanto porta-voz, mas essa centralidade inicial
é diluída em partes com o convívio. É possível observar como há outras lideranças
fortes no cotidiano e andamento do grupo, que cumprem funções específicas.
Há as lideranças dos treinos, como por exemplo, a Cintia no Junior, que é
responsável por eles não apenas enquanto treinadora, mas também fora dos
treinos, ao organizar encontros para que a interação seja maior e os laços cada vez
mais fortes. É de extrema importância para o Ishindaiko que ocorra essa união entre
seus membros, que os laços familiares sejam criados como sendo o diferencial do
grupo que é "um só coração". Nesse sentido, o Yudji surge como um grande líder
emocional, não apenas por treinar o Samurai, mas por conta da capacidade de
promover discursos com forte carga emotiva, que comovem a todos e inspiram nos
tocadores. Nos treinos em que o Yudji está à frente, a questão das expressões
faciais e corporais se sobressaem mais do que em qualquer outro.
Há vários líderes que poderiam ser pontuados, por conta da referência e
capacidade de ser treinador das equipes do campeonato. Esses integrantes antigos
são colocados enquanto fonte de inspiração para os mais jovens através das
atitudes, composições, entre outras qualidades que servem de modelo. Por conta
disso, concluo que mesmo tendo um líder oficial, que assume as responsabilidades
com maior força, o modelo de discussões coletivas para tomada de decisões
somado aos líderes "informais" tornam menos verticais as já hierárquicas relações
existentes no taiko.

65
Olhar capturado por uma das lideranças, Sato. Foto: Raissa Romano

Além da questão da organização dos tocadores, há também a liderança e


organização das mães e pais. O coordenador do Ishindaiko, “tio Nelson”, cuida de
questões financeiras entre outras responsabilidades administrativas. Devido à
grande quantidade de trabalho envolvido quanto às questões financeiras,
geralmente um tocador mais experiente auxilia o tio Nelson nas finanças. Acredita-
se que esse seja um possível caminho de estreitamento de laços com as lideranças
do grupo, inclusive porque o líder do Ishindaiko serve enquanto uma ponte entre os
tocadores e o coordenador do grupo. A organização através de lideranças também
se estende aos pais no quesito do lanche. Em cada um dos cincos grupos
responsáveis pelo lanche dos sábados há uma coordenadora para lembrar e
organizar a questão da comida.

66
Erick Takihara na posição das finanças em 2015. Foto: Raissa Romano

Ao me deparar com a obra “O tempo das tribos” de Maffesoli (2005),


encontrei conceitos chaves para pensar as relações estabelecidas nos dois grupos
percussivos apresentados até aqui. Para o autor, observamos na sociedade pós-
moderna um retorno de elementos “arcaicos”, de valores comunitários e tendências
a constituição de clãs urbanos, onde o aspecto cultural se sobressai sobre o
econômico e o político. Esse movimento é marcado por traços como a valorização
dos saberes interstícios em contraposição aos saberes “dominantes”. O tribalismo
emerge como um retorno dos traços dionisíacos, após um momento de excesso de
valores apolíneos, sendo esse um movimento em espiral para Maffesoli. Isso implica
que, atualmente, após um período marcado pela racionalidade instrumental e
domínio do logos, acompanhamos a emergência do eros, através da valorização
dos sentimentos, dos afetos, do gozo e do corpo.
A aura da contemporaneidade é caracterizada por Maffesoli como a aura
estética, que consiste em ser voltada para a pulsão comunitária, mística e ecológica
da vida. Esse "paradigma estético" é descrito enquanto a necessidade de vivenciar
o sentir comum, dentro de grupos. Para Maffesoli, os grupos da sociedade pós-
moderna tem a potência de criar em suas relações a capacidade de sair de si, ex-

67
stase, o êxtase. Esse êxtase é mais eficaz para Maffesoli quando diz respeito a
pequenos grupos. Por conta disso, os termos utilizados pelo autor “tribalismo” e
“tribo” estão relacionados a coesão de valores e ideias circunscritos em um espaço
especifico.
Busco aqui demonstrar o tribalismo escancarado que se apresenta através
dos grupos Ishindaiko e Maracatu Semente de Angola, para pensar esse fenômeno
da sociedade pós-moderna enquanto um possível “reencantamento do mundo” por
parte da juventude, através de transformações no âmbito dos relacionamentos e da
cultura. A respeito dos valores comunitários, o grupo, nos dois casos se porta como
o centro e prevalece sobre posições individuais, criando o sentimento de
pertencimento entre seus membros. Apesar das lideranças, todas as decisões
precisam ser tomadas definidamente dentro do grupo e das discussões que
envolvem todos os membros. Os líderes, apesar de figuras importantes dentro da
organização interna, necessitam do aval dos demais membros para colocar em
prática qualquer decisão, sendo que quando não o fazem dessa maneira, sofrem
críticas internas.
Para Maffesoli, o sentimento de horizontalidade e de fraternidade é uma das
principais marcas das tribos, que trazem em si a nostalgia do pré-individual. Nessa
forma de sociabilidade, o “individuo” se perde no todo e emerge um “narcisismo de
grupo”, onde o que realmente está na base é o estar junto. Podemos observar que
nenhum dos dois grupos trazem algum retorno financeiro para seus membros, pelo
contrário, fazer parte desses grupos demanda gastos para manutenção do coletivo,
que cobram uma colaboração mensal de seus membros. As bandeiras políticas,
mesmo que existam, como no caso do Semente de Angola, estão em disputa e são
colocadas enquanto secundárias pelos mestres em relação aos elementos sagrados
e de comunidade enaltecidos. Isso demonstra como ambos os grupos, por seus
discursos com base no afeto e no vínculo familiar que une os membros, e sua
organização interna pautada na horizontalidade mantendo a figura de lideranças, se
caracterizam dentro do quadro de tribalismo apontado por Maffesoli.
Uma das chaves centrais para compreender o retorno do Eros é a
sacralização das relações sociais. No tribalismo, as emoções e paixões coletivas
são potencializadas e o quotidiano é permeado por rituais. Há, portanto, uma
valorização das experiências oníricas compartilhadas pelo grupo, das fantasias
68
coletivas e manifestações lúdicas. A dimensão “afetual” está na base da estrutura
das relações dentro do coletivo. Durante minha vivência com o Ishindaiko e meu
cotidiano dentro do Semente de Angola, pude observar que ambos são permeados
pelo universo do sagrado, além de serem movidos por instantes de êxtase ao tocar
coletivamente. A própria definição do que é taiko para o Ishindaiko em seu site
online demonstra esse aspecto, ao afirmar que se trata de uma arte coletiva que
exige a comunhão espiritual entre os praticantes.
O Maracatu Semente de Angola está intimamente vinculado ao candomblé,
pois para a Nação de Porto Rico não há sequer distinção entre eles, portanto, os
rituais cotidianos são escancarados enquanto tais. O Ishindaiko, entretanto, não
possui esse vínculo com rituais de forma explicita, apesar do treino apresentado
anteriormente possuir alguns aspectos que apresentam a dimensão do sagrado
permeando o cotidiano do taiko. Outro fator que aponta para isso está no fato de
que antes de qualquer apresentação os tocadores do Ishindaiko se abraçam em
roda e entoam uma oração, direcionada para o "anjo de guarda". O divino no social
significa para Maffesoli a força agregadora, uma fonte de união, e a motivação para
que as pessoas se agrupem. Esse aspecto não implica uma religião no sentido
institucional do termo, mas o retorno da preponderância do simbólico e da
imaginação, no sentimento de reconexão com algo além de si.
A tendência apresentada pelo autor da pós-modernidade caminhar para uma
transformação das relações individuais entre grupos contratuais para pessoas com
tribos afetuais constitui outro ponto que parece ter sido efetivado pelos dois grupos
percussivos. A arte do taiko é pautada, assim como o maracatu, na tradição oral e
as informações são transmitidas de forma “orgânica”, na convivência com mestres.
A memória é um aspecto importante para os tocadores, pois não há partituras, e é a
partir da inscrição no corpo de cada toque, através da repetição, que se internalizam
as músicas. O corpo enquanto um elemento central e valorizado é um dos aspectos
do retorno do eros dionisíaco do tribalismo. Outra autora que me permitiu traçar
essas comparações foi Helena Abramo, em sua obra Cenas Juvenis: Punks e darks
no cenário urbano (1993).
Através de Helena Abramo, podemos pensar como os jovens trazem em si
marcas de hibridismo, por se encontrar entre o ser adulto e o ser criança, momento
que caracteriza um ser composto de duas naturezas, em um processo de vir a ser.
69
Essa ambiguidade, característica de seres no entremeio de dois estados bem
definidos, associa a juventude a potencias de imprevisibilidade, rebeldia, fuga das
normas bem estabelecidas. A juventude que me proponho estudar, diferentemente
da escolhida pela Helena Abramo em Cenas Juvenis, não traz em si os elementos
de delinquência e rebeldia constantemente associados a juventude. Entretanto, a
distinção estética (através das roupas da "cultura popular" e uniformes) e a
construção de uma identidade especifica, estão presentes em ambos os grupos.
O Maracatu Semente de Angola e o grupo Ishindaiko, no que diz respeito ao
entremeio, possuem ainda outra variável além da idade: ambos possuem um
hibridismo cultural. No caso do primeiro, a mais marcante ambiguidade está na troca
entre as raízes nordestinas do maracatu pernambucano sendo difundidas e
produzidas no sul do país, por jovens universitários que não são introduzidos nas
religiões de matriz africana; o segundo grupo, é formado em sua maioria por
descendente de japoneses, que buscam no Japão e nos Senseis que vem ao Brasil,
a orientação para a prática da arte do taiko. Essa relação, no caso do Ishindaiko,
será retomada com maior ênfase no terceiro capitulo. Por enquanto, ressalto apenas
o fato de que as possibilidades de inovações transgressoras emergem
constantemente em ambos os grupos, mas dentro dos limites da tradição.
A ideia de que os jovens criam distinções na produção de sua cultura
especifica, e que esse elemento abarca a quebra com outros padrões estabilizados,
está presente tanto dentro do Ishindaiko quanto do Maracatu Semente de Angola. A
inovação, quando os jovens entram em contato com a tradição, ainda mais quando
é de uma prática que não necessariamente está inserida desde a infância, é algo
que tem potenciais criativos e de tensões constantes com as gerações mais velhas.
A seguir, buscarei pontuar alguns elementos que diferenciam a produção dos
grupos quando em comparação com os mais "tradicionais", e que geram conflitos e
reflexividade interna.
No caso do Maracatu Semente de Angola, a busca por seguir à risca os
ensinamentos da Nação Porto Rico, são colocados em prática por todos os
membros, principalmente no que diz respeito à maneira de tocar e fundamentos
religiosos. Mas um dos principais conflitos diz respeito a questões de gênero: as
mulheres, na Nação Porto Rico, não podem tocar atabaque e os homens não tocam

70
o agbê29 - são instrumentos que possuem a divisão sexual marcada. Os jovens
universitários que compõem o maracatu londrinense são majoritariamente
profissionais da educação, se posicionam politicamente à esquerda, lutam por
causas sociais de diversas frentes, sendo uma delas o feminismo. Em um maracatu
formado por aproximadamente 85% de mulheres, esse ponto gerou conflitos e
tensões em relação à tradição.
No Maracatu Semente de Angola, as mulheres tocam o atabaque e os
homens dançam e tocam o agbê, não há restrições de gênero de acordo com os
instrumentos e essa discussão é constantemente levantada nas trocas entre as
batuqueiras do grupo e o Mestre (liderança do maracatu) da Nação de Porto Rico.
Entretanto, quanto os representantes do grupo vão para Recife e tocam juntamente
com a Nação, respeitam a separação dos instrumentos por gênero, não criando
enfrentamentos radicais a esse respeito.
O grupo Ishindaiko, por outro lado, se destaca por inovações na forma de
tocar o taiko, devido principalmente, às coreografias que fogem da maneira mais
tradicional. A inovação do Ishindaiko, entretanto, esbarra em certos limites que a
tradição impõe, através do campeonato. Em um dos anos da competição, o grupo
decidiu que iria de fato inovar, quebrando comportamentos fundamentais para a
cultura japonesa, transgredindo padrões básicos instituídos para a performance do
taiko. O Ishindaiko entrou no palco correndo, jogou Bacchis (que são considerados
sagrados), e apesar de ter sido uma apresentação emocionante, o grupo saiu do
campeonato sem nenhuma premiação, fator que nunca havia acontecido
anteriormente. Para Muraguchi, o campeonato coloca os pés do grupo no chão, e
isso é bom para que eles não se percam em suas criações.
Em minha análise, o campeonato é o momento em que a tradição “fiscaliza” a
prática dos grupos de taiko que se espalham pelo país, onde as gerações são
colocadas em confronto, e os jovens precisam demonstrar de forma equilibrada, o
respeito aos antigos e a sua forma de realizar a “arte milenar”, ao mesmo tempo em
que apresentam a vitalidade inovadora que lhes é esperada. No caso do Maracatu
Semente de Angola, é semelhante aos encontros dos batuqueiros e do grupo com o
Mestre. As figuras do Mestre e do Sensei estão revestidas de autoridade máxima e
apesar das tensões mencionadas entre a tradição e a inovação dos grupos, no final,

29
Vide caderno de referências etnomusicológicas figura XIV.
71
a liderança é respeitada e são eles que decidem como se deve ser o maracatu e o
taiko, pois carregam a “autenticidade”, pensada enquanto origem, das duas práticas
percussivas.
Se Helena Abramo, em Cenas Juvenis, nos dá material para pensar a
construção de uma identidade que se distingue das demais a partir de vestimentas,
comportamentos, músicas e afins, Maffesoli apresenta argumentos de uma
dissolução dessa identidade individual devido ao coletivo. Creio que ao analisar os
grupos, dá para perceber que em relação aos demais “clãs” ou coletivos, a
identificação com o grupo atinge aspectos mais próximos dos apresentados por
Abramo, enquanto que dentro das práticas cotidianas no interior do grupo, o
sentimento de pertencimento dilui o indivíduo e integra a pessoa em uma
construção de self coletivo, próximo da descrição de Maffesoli. Ambos os autores
frisam o elemento de solidariedade que esses grupos geram dentro de um cenário
urbano caótico, e o retorno da empatia.
Após verificar a importância dos valores comunitários para os grupos
musicais juvenis, inclusive no que tange à questão da construção de suas
identidades sociais, o próximo capítulo abordará outra relação de fundamental
importância para a análise do taiko moderno: seu caráter de etnicidade. As
discussões sobre relações étnicas e as fronteiras que elas implicam serão
discutidas mais calmamente no próximo capítulo, em um diálogo com a produção
que vem sendo feita a respeito do taiko, oriunda de pesquisas nos EUA, Canadá e
Brasil.

72
Capítulo 3
Entre lugares: Brasil e Japão na música dos tambores

A produção acadêmica voltada para a análise dos grupos de taiko no Brasil


ainda está em fase incipiente. Em meu levantamento bibliográfico, no quesito
literatura nacional, tive acesso somente à dissertação de mestrado defendida na
Unicamp por Henrique Okajima Nakamoto, denominada “Significados do taikô no
Instituto Cultural Nipo Brasileiro de Campinas” (2010). No caso das produções
estrangeiras, a maior parte dos artigos se concentra nos EUA e Canadá. O que me
chamou atenção foi o fato de que todos os trabalhos tendiam a analisar o fenômeno
dos grupos de taiko através do conceito de etnicidade (ou niponicidade, como
Nakamoto), sendo essa uma discussão que vejo como fundamental para inserir a
pesquisa desenvolvida com o Ishindaiko dentro de uma perspectiva maior,
retomando muitos pontos que foram apresentados nos capítulos anteriores.
Inicialmente, gostaria de apresentar minimamente o exposto pela dissertação de
Nakamoto, seguido de considerações sobre a produção norte-americana.
Nakamoto aponta em sua tese como não há estudos sobre o taiko no Brasil e
análises comparativas ficam comprometidas diante disso, pois suas reflexões tem
como base um grupo especifico. No meu caso, tenho a possibilidade de tecer
relações com a sua tese, e vejo como potência pensar os grupos através da
perspectiva de fronteiras e hibridismos. Uma das questões colocadas por Nakamoto
que o levou a campo foi: “por quê, em que dimensão e desde quando se dá a
popularidade etnicamente centrada das atividades culturais referentes a
comunidade nipo-brasileira?” Para tentar analisar esse tema, Okajima Nakamoto se
propôs a estudar o Instituto Cultural Nipo Brasileiro de Campinas (ICNBC),
associação voltada para a comunidade nikkei que possui e promove variadas
atividades etnicamente centradas.
A princípio, Nakamoto pretendia estudar as artes marciais dentro do Instituto,
entretanto, ao se deparar com os participantes das artes marciais, percebeu que
grande parte não possuía descendência japonesa. A atividade que possuía
majoritariamente os jovens nikkeis era o taiko. Segundo Nakamoto, o taiko no
ICNBC se constituía enquanto uma prática interna, compondo as atividades que
eram parte do convívio comunitário da associação e geravam a coesão entre os
73
membros, sendo vista enquanto a atividade que mais detinha a capacidade de atrair
os jovens nikkeis para dentro do Instituto, vinculando-os às práticas etnicamente
centradas, já que as artes marciais não cumpriam mais esse papel.
A pratica do taiko raramente é conhecida para além da comunidade nikkei, e
esse quadro apresentado por Nakamoto esteve presente em uma das minhas
conversas com o fundador do Ishindaiko, Muraguchi. Em sua visão, o taiko é
predominantemente praticado por descendentes devido ao pouco tempo em que
adentrou terras ocidentais. Muraguchi usou o exemplo das artes marciais, que a
princípio também eram praticadas somente por nikkeis, e com o passar do tempo se
popularizou, deixando de ser uma prática etnicamente centrada. Para ele, o
caminho do taiko será parecido, e seu desejo é que seja de fato uma prática
associada para além das fronteiras étnicas que a definem na atualidade. Observo
que essa necessidade de afirmação da prática para além dos descendentes
encontra respaldo na defesa contra o estereotipo de que os japoneses são
"inassimiláveis". Essa luta, que também está manifesta no grupo Wadaiko Tsubame
Nipo Campinas estudado por Nakamoto, emerge segundo ele da inversão da
condição minoritária no microcosmo do Instituto, ou no meu caso, do Ishindaiko.
Um dos conceitos chaves apresentados por Nakamoto em sua dissertação é
o de niponicidade. A definição desse termo diz respeito à construção de identidade
através de práticas, símbolos ou costumes associados à cultura japonesa. Dentro
do Ishindaiko, podemos observar como além da prática em si, os símbolos da
niponicidade se estendem para pensar a própria apropriação do espaço, através
dos quadros e troféus expostos no salão, do símbolo do grupo, que carrega a cor
vermelha e branca, de seus patrocinadores e apoiadores nikkeis, entre outros
elementos. É fundamental perceber que, diante desse quadro, a etnicidade que a
princípio é colocada exteriormente, dentro de um país que se recusa a reconhecer
os nipo-descendentes enquanto minoria étnica (por associar essa condição a
pobreza), ela passa por um processo de apropriação por parte dos nikkeis, que
constroem através das fronteiras entre o Brasil e o Japão, uma identidade híbrida
que não corresponde a "cultura" de nenhum dos países em questão.

74
Líder atual, Erick Takihara com troféus expostos no salão. Foto: Raissa Romano

Quadros expostos no salão principal. Foto: Raissa Romano

75
Segundo Nakamoto, os seus nativos, assim como os meus, tem noção de
que o "Japão daqui" não é o "Japão de lá" e que quando eles viajam e entram em
contato com os japoneses são questionados do por que realizam determinadas
práticas tidas como tradicionais, pois são, muitas vezes, consideradas
ultrapassadas, não sendo mais realizadas no "Japão de lá". Quando questionados
da necessidade de manter símbolos que não são mais utilizados, a postura se volta
para o ideal de cultura japonesa que eles possuem, independente do Japão atual
corresponder ou não a essa visão. Eles mantêm porque gostam e porque isso é
cultura japonesa para eles.
É necessário diante disso, novamente ressaltar o caráter não essencial da
cultura japonesa, mesmo quando os nativos constroem em seu cotidiano uma visão
"orientalista" da mesma. Um exemplo disso no Ishindaiko pode ser expresso na
conversa que tive com o líder atual, na qual pude perceber que ele se surpreendeu
quando foi ao Japão, pois sua visão de como era o "japonês" contrastou com a
realidade. Esperava que fossem fechados e distantes, mas sentiu que foi bem
acolhido e que eram até mesmo "calorosos" em sua recepção e o Japão era
divergente da imagem que havia construído, menos "tradicional" que o esperado.
Isso posto, somos levados a tentar compreender melhor esse "Japão de cá",
com o intuito de aprofundar o conceito de niponicidade. Os símbolos e as práticas
oriundas da "cultura japonesa", quando são incorporados no Ishindaiko ou no
Instituto estudado por Nakamoto, não são meras reproduções dos significados que
foram criados em terras japonesas. Esses símbolos são reinterpretados, ganhando
novos significados em relação aos "originais", através das negociações que são
estabelecidas com a sociedade local, nos diálogos estabelecidos nas fronteiras.
Produtos ou práticas que inicialmente foram introduzidas no Brasil, no período da
imigração, logo tomaram novas acepções e sentidos "japoneses" que não possuíam
no Japão, criando assim significados híbridos, que distinguem os nikkeis
etnicamente tanto dos "brasileiros" quanto dos "japoneses". Ainda a respeito desse
ponto, Nakamoto afirma em seu texto que,

No ICNBC, o hibridismo estratégico se dava pela invenção de um


Japão brasileiro, através do reconhecimento de uma identidade
hifenizada, caracterizada, entre outras coisas, pela abertura do
instituto aos não nikkeis e, no caso do taikô, pela inclusão de

76
elementos “brasileiros” nesta prática japonesa (NAKAMOTO, 2010,
p. 64)

Esse hibridismo acarreta situações de disputa no contato com o "Japão de


lá". Nakamoto afirma que um dos entrevistados denunciou um certo "preconceito
japonês", pois até certo ponto os japoneses que os recebem desejam manter o
controle sobre a prática do taiko, e deslegitimam a apropriação da mesma pelos
nikkeis, como se não pudessem em momento algum ser considerados melhores do
que o taiko realizado no Japão.
No Brasil, tratados como "japoneses" e no Japão, como brasileiros. É diante
desse cenário que assumir a identidade híbrida tem se tornado cada vez mais
exaltada pelos praticantes do taiko. A ideia de que o taiko praticado no Brasil une
elementos de ambas as culturas tem se tornado fonte de orgulho e diferencial, pois
a "criatividade" e os ritmos tidos como brasileiros somados à disciplina associada ao
Japão geram uma afirmação positiva da identidade através dos estereótipos acerca
dos dois países.
Diante disso, podemos observar como os discursos a respeito dos dois
países se sobressaem no momento de pensar como se dá a prática do taiko no
Brasil. No Ishindaiko, é comum a defesa de que não é restrito aos japoneses, como
já foi colocado anteriormente. Esse ponto é enfatizado apesar da enorme maioria
dos membros serem nikkeis, e dos pais que se envolvem com maior intensidade
com as atividades do grupo, serem os descendentes. Esse quadro é o mesmo em
todo o país, sendo que, de acordo com os dados da ABT, 85% dos membros das 56
equipes que fazem parte da associação (contabilizando 3 mil e 300 adeptos), são
nikkeis. Nakamoto se questiona durante sua dissertação de mestrado se, caso o
número de nikkeis e não-nikkeis se invertesse e o taiko deixasse de ser uma prática
etnicamente centrada, esse discurso de abertura aos não descendentes continuaria
da forma com que se dá atualmente. Outro ponto importante é pensar o quanto,
mesmo com a afirmação da particularidade "brasileira", o desejo de "difundir a
cultura japonesa" está presente no discurso tanto dos integrantes do Ishindaiko
quanto do grupo estudado por Nakamoto.
A ênfase no coletivo é posta enquanto o valor primordial, sendo a
individualidade constantemente vista com aversão pelos membros do grupo.
Quando usada em prol do coletivo, particularidades individuais são bem aceitas,
77
contudo, precisam estar combinada com a humildade do membro que a possui, sem
criar distinções em relação aos demais integrantes. Aqueles que de algum modo
apresentam um "ego" inflado, principalmente se for pelo fato de tocar melhor,
passam por críticas dentro do grupo. Atitudes egoístas são rechaçadas e até
mesmo a comemoração do vencimento do campeonato precisa ser feita de modo
contida e com respeito as outras equipes participantes. No campeonato que
acompanhei, o Ishindaiko foi campeão por meio da categoria Livre e os membros
que comemoravam mencionando os títulos anteriores eram repreendidos pelos
outros integrantes. Principalmente nas lideranças encontramos discursos voltados
para a ênfase no coletivo e na união de todos.
Contudo, as diferenças marcadas por eles são feitas através da dedicação ao
grupo e ao esforço empreendido. Aqueles que estão distantes do grupo, pouco
envolvidos com as atividades, se sentem em dívida em suas falas em relação ao
Ishindaiko, isso porque, para ser um membro ativo é necessário uma dedicação que
se estende por toda a semana, sendo esse um dos principais motivos de evasão
dos membros. Esse quadro pode ser percebido na fala de Junko, durante uma
entrevista, em que afirma "O taiko exige muito treino, dedicação, esforço e nós
treinamos aos fins de semana e em um lugar afastado, então muitos acabam
desistindo pois acabam perdendo o fim de semana e coisas do tipo". Aqueles que
assumem funções para além dos treinos, de finanças, organização, entre outras
ações, são valorizados coletivamente.
Existe por trás dessa postura a ideia de que os valores da "cultura japonesa"
são transmitidos através da prática do taiko, sem precisar discursar a respeito. Além
da coletividade, a disciplina é outro dos valores tidos como japoneses que são
colocados em todas as atividades desenvolvidas pelo Ishindaiko. Um exemplo
disso, para além da performance do taiko (que exige por si só disciplina corporal),
está na rigidez dos horários de início, pausa e final do treino. Há também um
sistema de limpeza de banheiros semanal, que ocorrem aos sábados, momento em
que todos os membros se reúnem na chácara. São dois no salão (um masculino e
outro feminino), que contém uma lista com os nomes dos integrantes pendurada na
porta, para o controle de quem limpou o ambiente a cada fim de semana. As
limpezas são feitas em duplas ao final do treino.

78
Apesar de toda a responsabilidade e disciplina imposta, a atmosfera criada
pelo grupo tende a tornar o ambiente descontraído para aqueles que fazem parte do
Ishin, sendo uma dinâmica específica que envolve piadas internas e jogos quando
necessários. As crianças, quando definem o Ishindaiko, ainda não possuem o
discurso dos mais velhos − que enfatiza a questão da "família" e dos laços criados −
mas sim, o fato de ser divertido. Apesar de não ser o foco da descrição, aqueles que
possuem maior tempo dentro do Ishindaiko são os mais descontraídos e que
"puxam" brincadeiras. Podemos retomar a descrição acerca do treino das 100 vezes
para pensar as palavras de Nakamoto, ao afirmar que,

Este prazer, ou “espírito lúdico”, como menciona Borges, presente


nas provações físicas e espirituais promovidas por meio de
exercícios intensos e agonizantes, que, de fora, podem ser
interpretados meramente como um tipo de doutrinamento e
imposição externa, foi expresso nas falas dos diferentes
entrevistados, por meio de alguns termos, como: “superação”, “auto-
superação”, “força de vontade”, “ir além”, “batalha para melhorar”,
“dar o máximo”, “empenhar”, “força de vontade”, “correr atrás do que
quer”, “nunca desistir”, “ser o melhor em tudo”. (NAKAMOTO, 2010,
p. 102)

No caso do artigo “She's Really Become Japanese Now! Taiko drumming and
Asian American identifications” de Paul Jong-Chul Yoon, as questões referentes a
construção de uma identidade étnica através da prática do taiko tomam contornos
aparentemente mais delimitados, apesar do hibridismo, que se coloca de maneira
distinta do que foi até então relatado. A questão levantada pelo autor está
direcionada ao reconhecimento étnico do grupo Soh Daiko, que é composto por
asiáticos nascidos nos Estados Unidos. Para ele, a música possui, entre outras
características, a qualidade de ser socialmente significativa por permitir que as
pessoas reconheçam identidades através delas, e principalmente, as fronteiras.
Enquanto pesquisador e integrante do grupo, Yoon nos leva a analisar como,
através da performance do taiko, o grupo contribui para a desconstrução de
estereótipos ligados aos asiáticos que vivem nos Estados Unidos. Ao apresentar
mulheres e homens asiáticos como dotados de força e poder, através dos toques
dos tambores japoneses, Soh Daiko confronta estereótipos que atribuem

79
características de “naturalmente” quietos e subordinados à população asiática ou
descendente de asiáticos.
A questão central levantada por Yoon diz respeito a tentar compreender que
tipo de identidade asiática está sendo construída ou reconhecida através da
performance do taiko, tanto pelos integrantes do Soh Daiko, quanto por seu público.
Segundo o autor, existe uma luta constante para os descendentes asiáticos nos
Estados Unidos diante da ambígua posição que ocupam: ao mesmo tempo em que
desejam conseguir a aceitação enquanto "americanos", sabem da importância de
afirmar o reconhecimento de que tem uma identidade cultural distinta. A luta por
reconhecimento está associada à enfrentar estereótipos relacionados aos "yellow"
enquanto mais fracos e subservientes, além disso, a criação de uma consciência
pan-asiática para a construção dessa identidade. É, como afirma Yoon, uma forma
de utilização da ideia da existência de uma “essência étnica” asiática a seu favor,
algo que o autor denomina de “essencialismo estratégico”,

Which argues for a situationally specific positionality that


understands the political exigencies of unity under a larger Asian
American umbrella, while recognizing this as a socially constructed
entity that can be (or must be) disassembled and reassembled as the
situation warrants (YOON, Paul. 2001, p. 419)

Assim sendo, a construção de uma unidade para fins de luta política frente a
um ambiente externo hostil está presente no taiko do Soh Daiko. Entretanto, isso
não ocorre sem problematizações: ao mesmo passo em que para o público externo
o Soh Daiko aparece como uma ferramenta política importante de afirmação cultural
pan-asiática, no interior do grupo, bem como na comunidade asiática, as diferenças
entre japoneses (e seus descendentes), coreanos (e seus descendentes), chineses
(e seus descendentes) são também reconhecidas e exaltadas.
A história do taiko nos Estados Unidos inicia em 1967, através da ida do
Sensei Seiichi Tanaka, que inicialmente pretendia abrir uma escola de artes
marciais, porém, percebendo a ausência do taiko no país, mudou o foco de sua
atuação. O crescimento dessa prática nos Estados Unidos está associado ao que
Yoon define como o nascimento de uma consciência política e a ênfase nos
agrupamentos étnicos. O grupo estudado por Yoon surgiu em 1979, sendo um dos
primeiros grupos formados nos EUA. Inicialmente, possuíam sua sede em uma

80
igreja Budista da região, sendo um exemplo da ligação entre o taiko e o budismo.
Todos os membros do grupo são descendentes de asiáticos, porém, não
necessariamente nipo-americanos.
É importante ressaltar como os membros do Soh Daiko constroem, assim
como os do Ishindaiko e do ICNBC, uma identidade hifenizada a partir da prática do
taiko. Todavia, antes de continuarmos a aproximação dos casos dos grupos
brasileiros de taiko com o estadunidense descrito por Yoon, uma ressalva
fundamental deve ser realizada: não se observa, ao menos ainda, a existência de
uma construção identitária de cunho pan-asiático nos grupos estudados no Brasil.
Aqui a comunidade que constitui os grupos é composta em grande maioria de nipo-
brasileiros, como já dito anteriormente, sendo a outra categoria existente a de
“brasileiros”. Não há nos grupos investigados, seja por mim ou por Nakamoto,
qualquer aproximação com descendentes de chineses, coreanos e demais etnias
asiáticas que também estão presentes no cenário brasileiro.
Yoon aponta o quanto essa ideia de identidade híbrida carrega em si
também conflitos para aqueles que a vivem, pois não é sempre que uma
comunidade ou as pessoas que a compõem conseguem balancear sem
divergências as culturas envolvidas. O Soh Daiko se afirma através de uma mistura
de estereótipos acerca dos jeitos "americanos" e "japoneses" de ser. Entre as
qualidade “americanas” do grupo, eles afirmam constantemente a horizontalidade e
igualdade entre os membros, tendo rejeitado a sugestão do Sensei Tanaka sobre
instalar um sistema de lideranças e hierarquia para que os jovens respeitassem os
mais velhos.
O Soh Daiko criou tradições a partir de novos valores oriundos do seu lado
"americano", onde se alinham de frente uns para os outros, sem distinções acerca
de habilidades ou tempo de taiko para iniciar e terminar o treino. A liderança é
rotativa assim como no Ishindaiko, sendo que qualquer membro que tenha as
qualidades necessárias para estar na liderança do grupo pode chegar a ocupar esse
papel. Assim como no Ishin, a liderança é baseada mais no mérito do que em
critérios etários. Apesar disso, dentro do Ishindaiko pude perceber que existem
lideranças especificas para além do "líder oficial" que são fixas, e possuem sua
posição em virtude dos deveres prestados ao grupo, tempo no taiko e habilidade

81
técnica, sendo que para ser líder oficial, a pessoa deve ter essas características
também, exceto o tempo no taiko.
As técnicas de treinamento dos "japoneses" são tidas como "brutas" pelo Soh
Daiko, e distintas da forma como eles conduzem a prática. Apesar disso, um
membro do grupo é japonês e a ligação do Soh Daiko com o Kodo é
constantemente ressaltada, criando a ponte entre o taiko performado nos Estados
Unidos e no Japão e um jogo entre o "aqui" e o "lá", onde os membros, assim como
no Ishindaiko, exaltam as peculiaridades oriundas do lado não-japonês, ao mesmo
tempo que reforçam a importância de transmitir a história, a música e a cultura
japonesa. Diante disso, a identidade hifenizada se cria na prática do taiko do Soh
Daiko representando uma luta política, pois os elementos "americanos" são
reconhecidos quando confrontados com o taiko do Japão; entretanto, diante do
público e na vida prática nos Estados Unidos, surge enquanto enfrentamento no
combate de estereótipos negativos e reforço do movimento pan-asiático, como
expresso por Yoon,

Taiko is not simply na "expression of cultural affirmation," but an


expression of my culture, my culture as an Asian American. Implied
here is that unlike Asians performing jazz or folk music, taiko was
created for Asians, by Asians, and for the purpose of highlighting the
Asian American experience. [...]. In other words, taiko, although
specifically Japanese in origin, has the ability to cross ethnic
boundaries between Chinese, Korean, Japanese, and so on. Taiko
is, therefore, able to cover an area that is open to "pan-Asian"
involvement (YOON, Paul. 2001, p. 425-426)

Apesar disso, essa perspectiva gera conflitos dentro do grupo, principalmente


com os familiares. Em muitos casos, memórias e lembranças referentes ao passado
de guerras e disputas entre o Japão e Coreia são um exemplo das tensões na
proposta do movimento pan-asiático. As particularidades que são colocadas frente a
comunidade americana, através da categoria ásio-americano, causa desconforto em
muitos. Yoon relata a fala de uma mulher de origem chinesa, que afirma nunca ter
se sentido confortável quando classificada como ásio-americana, sendo que essa
categorização fez com que criasse maior identificação com o fato de ser chinesa.
Dentro do Soh Daiko, composto majoritariamente por asiáticos não
descendentes de japoneses, uma tensão é o fato do taiko ser exclusivamente

82
japonês, não englobando a representação de outros países asiáticos na
performance. Um dos exemplos que provoca essa associação imediata, além do
nome, é o uniforme. A vestimenta tradicional, o happi, também é utilizado pelo
grupo, e podemos observar pelo relato de Yoon, no diálogo empreendido por um
dos entrevistados, a tensão que gera dentro das famílias dos membros,

For instance, Choony Lee, a Korean American, noted her parents'


reaction to the uniform. She said, "So when I was wearing this happi
[my father] was like, 'Oh my gosh! She's really became a Japanese
now!' (YOON, 2001, p. 431).

Soh Daiko, portanto, apesar de se definir enquanto um grupo de taiko


formado por "Asians Americans", acaba transmitindo ao seu público uma identidade
explicitamente japonesa. O grupo se incomoda com a orientalização da performance
do taiko promovida pelo próprio discurso interno e que se propaga quando
escrevem sobre eles. A percepção orientalista foi difundida pelo próprio Soh Daiko
ao, por exemplo, iniciar a apresentação do grupo remontando a evocação dos
deuses ancestrais através dos tambores, ressaltando a ligação com o sagrado,
como no Budismo, onde o soar dos tambores são considerados a "voz de Buda".
Quando posto dessa forma por um jornal, como o caso do New York Times (que fez
uma matéria sobre o grupo), gera um desconforto e reforço de estereótipos que
remetem a ideia de mistério e exotismo, criando uma imagem do Oriente ficcional,
com base nas necessidades de alteridade do Ocidente.
É interessante perceber como a discussão empreendida por Yoon está
pautada em uma disputa política através da identidade construída no taiko. É posto,
e conscientemente expresso pelos membros o fato de que a performance tem a
possibilidade de quebrar estereótipos negativos associados à comunidade asiática
nos Estados Unidos. A questão do grupo ser percebido através de uma identidade
"japonesa", enquanto o grupo se percebe como "pan-asiático", é outro campo de
disputa que envolve um movimento político e construção ativa da identidade, tanto
pessoal quanto coletiva dentro do Soh Daiko.
Os problemas levantados por Yoon me fazem questionar os motivos da
distinção entre o viés político do taiko do Soh Daiko e a ênfase no cultural do
Ishindaiko e do grupo do ICNBC. Nos dois grupos brasileiros aqui abordados, o

83
discurso é sempre voltado para a difusão e preservação da cultura japonesa no
Brasil.
No caso do artigo “Reconsidering ethnic culture and community: a case study
on Japanese Canadian Taiko”, Masumi Izumi apresenta uma questão que me
acompanhou enquanto preocupação durante o decorrer de todo o trabalho. Como
compreender identidade e cultura étnica sem cair em uma análise que reforce
estereótipos e essencialismos? Izumi parte de uma perspectiva da etnicidade
enquanto fluída e em constante (re)construção, analisando o taiko performado no
Canadá como fonte de busca por significados e (re)construções identitárias. A
questão política e de busca por se afirmar positivamente diante da sociedade norte
americana é presente no artigo de Izumi assim como no do Yoon, sendo esse um
aspecto que reforça a disparidade entre o discurso produzido pelos membros do
taiko da américa do norte e do sul.
O taiko representa, na leitura de Izumi, parte do processo de redescoberta da
história do Japão, após um longo período de silenciamento derivado da Segunda
Guerra Mundial. A imagem dos japoneses como inimigos, gerava um ambiente
hostil e carregado de culpa, sendo que muitos dos primeiros imigrantes e
descendentes estiveram afastados da história, cultura, língua, manifestações
culturais do país de origem. O processo de emergência do taiko está associado a
vontade de luta por espaço e reconhecimento étnico, associado à ideia de
comunidade. A ligação entre os tocadores do Canadá com o Japão é semelhante
aquela que observamos no Ishindaiko e nos tocadores do ICNBC, como podemos
observar pelo trecho abaixo:

Taiko has provided a link for the players to their land of ancestry.
This link is both symbolic and concrete. While taiko players do not
regard Japan as their “homeland” in a literal sense, taiko has created
cultural exchanges and communication between players in Japan
and those in the United States and Canada (IZUMI, 2001, p. 41).

Assim como no Brasil, a conexão com o Japão passa a ser criada através do
intercâmbio entre as equipes e instituições que desejam disseminar a prática, sendo
comum que os membros dos grupos promovam viagens ao Japão com o intuito de
aprender e apresentar o trabalho que desenvolvem. No Brasil, a própria ABT

84
promove regularmente essa troca através do prêmio da categoria Junior, como foi
comentado anteriormente, inserindo a equipe campeã dentro do campeonato dos
juniors do Japão, representando o Brasil. As performances dos grupos de taiko de
fora do Japão, sendo deliberada ou não a luta por reconhecimento étnico, expressa
a ligação através da apresentação, sendo sentida tanto pelos tocadores quanto pelo
público, motivando sentimentos de pertença e orgulho.
Ainda assim, apesar desse vínculo, os grupos de taiko da América do Norte
apresentam inúmeras inovações dentro da performance em comparação aos grupos
do Japão. Como os do Brasil, os grupos criam suas próprias peças incorporando
outros ritmos dentro da performance, além de adicionar maior teatralidade e
coreografias que fogem da maneira tradicional. Algumas vezes, entretanto, os
grupos de taiko norte-americanos vão mais longe quando a questão é inovação do
que os grupos brasileiros aqui descritos, chegando a acrescentar instrumentos
completamente distintos à prática, como guitarras e saxofones.
O Ishindaiko, quando comparado aos grupos de taiko descritos por Yoon e
Izumi, mantém-se mais próximo do taiko feito no Japão, adicionando instrumentos
diferenciados apenas em uma de suas músicas (sendo um instrumento de
percussão e um apito), e não apresentam em campeonato essa inovação. Apesar
disso, as outras características apontadas por Izumi se encontram no grupo
londrinense, sendo o hibridismo de estilos nas composições uma marca registrada e
exaltada pelos membros. A fusão e hibridismo das composições tem respaldo na
posição híbrida presente na maioria dos seus integrantes.
Um outro aspecto político levantado por Izumi ao analisar do taiko no Canadá
é o fato de que a maioria dos tocadores são mulheres. Esse é um dado interessante
pelo fato de que no Japão a imagem do taiko está associada à masculinidade,
sendo que Izumi se questiona: “o que significa para as mulheres tocarem taiko no
Canadá em termos de formação de identidade além de políticos e culturais?” O
poder do taiko é uma das características mais ressaltadas quando os membros são
entrevistados sobre o que mais os atrai na prática, e esse poder está intimamente
relacionado com a demanda física que a prática exige dos tocadores. Seja através
da postura, dos kiais, da batida forte no tambor, o tocador necessita despender
esforço físico e resistência para praticar o taiko, sendo essas características
usualmente associadas ao sexo masculino. Novamente, assim como no trabalho de
85
Yoon, as mulheres que tocam taiko são símbolos de força e enfrentam a imagem
socialmente construída de que as mulheres de origem asiáticas são quietas e
subservientes. Diferente do Ishindaiko, o taiko apresentado por Izumi possui uma
postura política clara, se definindo como centro-esquerda e apoiando diversas
causas de lutas por direitos.
As semelhanças entre todos esses estudos está na análise do taiko centrado
na diáspora que ocorreu durante os anos 1970, onde a prática migrou para os
países ocidentais, reacendendo o interesse pela prática e associando ao movimento
de construção de comunidades étnicas, criando identidades hifenizadas. Tanto nas
relações entre os grupos não japoneses com o Japão, quanto entre os
descendentes e a sociedade em torno (Brasil, Estados Unidos, Canadá), podemos
observar as mais variadas configurações e tensões oriundas das fronteiras e das
práticas afirmativas da definição dos grupos. No caso dos Estados Unidos e do
Canadá, podemos perceber o quanto o diálogo é estabelecido de forma clara com
movimentos pan-asiáticos e afirmativos de uma identidade positiva em relação aos
ásio-americanos, sendo fundamental também o papel das mulheres nos grupos,
enquanto símbolo de força. A inovação frente ao modelo tradicional também parece
ser mais marcada do que nos grupos do Brasil.
Como pontuado por Lucas Muraguchi, os grupos brasileiros possuem pouca
“criatividade e inovação” em comparação com o cenário mundial. Apesar da alta
qualidade técnica, a estabilidade é uma marca que tem sido analisada através da
performance do campeonato. A distinção feita por Muraguchi, entre grupos de
inovação e de tradição me parece bem pertinente, apesar de mais difícil do que o
líder fundador do Ishindaiko demonstra parecer. Por mais que o grupo se auto
defina pelo conceito de "inovação" a prática do taiko está associada à tradição e a
invenção dela, (retomando conceitos de Hobsbawm), tendo o seu valor vinculado ao
elo com o passado ancestral. É diante do diálogo com o passado que a música dos
tambores japoneses ressoa na América, tanto do Norte quanto do Sul, gerando
sentimentos de pertencimento e comunidade, apesar das inovações.
A partir da leitura do livro Teorias da Etnicidade (1995), de Philippe Poutignat
e Jocelyne Streiff-Fenart, podemos discutir alguns pontos centrais a respeito do
conceito de etnicidade, que perpassa os estudos apresentados, inclusive o meu. No
livro, os autores se propõe a apresentar um quadro geral do conceito, percorrendo
86
as vertentes mais variadas. A principal referência é Frederik Barth, e é com esse
autor que pretendo estabelecer diálogos para pensar o Ishindaiko. Para Barth
(1995) a etnicidade não constitui um conjunto de traços culturais imutáveis e
atemporais que são passados de geração em geração dentro de um determinado
grupo, mas é dinâmica e envolve ações e reações, sendo perpassada por
transformações na organização social dentro do grupo, principalmente, através do
contado com o “outro”.
É na fronteira que as relações identitárias dos grupos em contato se tornam
ainda mais evidentes, pois quando diferentes grupos étnicos estão em contato eles
constituem uma série de sinais diacríticos, que marcam linhas de demarcações
entre os grupos, ou seja, entre o “nós” e o “eles”. Esses símbolos e traços culturais
fundam a crença dos membros em uma “origem comum” que os unifica, entretanto,
essa identidade étnica que se apoia no passado pouco tem relação com o
construído a partir da ciência histórica, mas sim, de uma história mítica. Diante
disso, analisar um grupo étnico envolve adentrar na interpretação do imaginário
social criado acerca de suas origens e símbolos, ou seja, no sistema poético dos
agrupamentos humanos. Dentro dessa perspectiva, vejo que o Ishindaiko apresenta
um imaginário social voltado para a criação de si a partir de relações afetivas,
exaltando as relações (família) e laços comunitários, que são baseados na própria
ética de conduta dentro do grupo, que mistura elementos tidos como oriundos da
“cultura japonesa” e “brasileira”.
A criação das músicas emerge como uma fonte para analisar o sistema
poético que está intimamente relacionado aos discursos proferidos pelos integrantes
do Ishindaiko. A grande maioria das composições são autorais, e todas possuem
uma história por trás da criação que representa aquilo que o grupo gostaria de
transmitir com a música. De modo geral, são relacionadas com os elementos da
natureza: vento, tempestade, trovão, montanhas, animais, neve, estações do ano,
atrelados a aspectos da força humana e principalmente a espiritualidade, abordando
como tema central o espírito, energia, transcendência, entre outros. Uma das
músicas, chamada Pururuca30, apresenta uma sequência que conta, de forma
resumida, parte da história do grupo que possui mais de 10 anos de existência.

30
Juntamente com “Nosso” (2014), “Pururuca” (2012) são as únicas músicas que não tem nome
japonês e elas não foram apresentadas em campeonato.
87
A maior parte das músicas possuem relações com as experiências
vivenciadas pelo grupo, sendo uma expressão poética das mais variadas sensações
e sentimentos compartilhados pelo coletivo. Além da natureza, como fonte principal
de inspiração para as histórias e composições, alguns valores como: disciplina,
foco, força, superação, são colocadas como base para as músicas do grupo.
Contudo, todas as criações apresentam um vínculo com a “cultura japonesa”, seja
uma homenagem direta ou indireta. Um exemplo é a música composta em 2016,
Undokai. De acordo com a descrição no site do Ishindaiko,

O Undokai (運動会) é uma gincana de confraternização muito


tradicional, tanto no Japão como no Brasil. Cabo de Guerra, Bola no
Cesto e Corrida de Revezamento são algumas das atividades deste
grande evento, onde participa toda a família. De forma divertida, o
Undokai preserva um princípio fundamental da cultura japonesa: A
União. (Definição música Undokai, site do Ishindaiko31, acesso
26/07/2017)

A respeito das composições, uma conversa com Muraguchi, o autor da


maioria das músicas do Ishindaiko, serve para pensar como o grupo conta sua
história. Quando perguntei sobre as músicas preferidas, Muraguchi começou a me
contar cronologicamente as primeiras composições, afirmando ter evoluído de uma
para a outra; e quando perguntei se eram as preferidas por serem as primeiras
experiências compondo, ele me respondeu que

Não, elas não são as preferidas, mas eu contei a história de como


uma levou a outra. O importante não era a música em si, mas a
trajetória de uma pra outra. As músicas não são entidades
separadas, são parte de um trajeto. Cada ano é tentativa e erro, e os
erros e acertos de um ano servem como lição para o seguinte 32.

Diante disso e analisando a lista de músicas do Ishindaiko com suas


descrições, pude perceber que estão interligadas tanto enquanto tema quanto com
as vivências do grupo. Se os integrantes são muito jovens, normalmente a música
que performam foi criada para expressar a conquista de um primeiro objetivo ou de
fundamentos básicos para se tornar um bom tocador; se por acaso, o grupo passa

31
Link de acesso: http://www.ishindaiko.com.br/index.php/musicas/229-2016-undokai
32
Depoimento de Lucas Muraguchi a mim, durante trabalho de campo realizado.
88
por algum desafio em conjunto, a música do ano carrega elementos motivacionais e
direcionados para a superação. Além disso, um grande número de músicas está
atrelada aos sentimentos e às sensações do tocador no taiko, a energia, alegria,
euforia, explosão de movimentos. A composições carregam em suas histórias um
sistema poético que, à semelhança dos mitos, um sempre remete ao outro,
interligados (LÉVI-STRAUSS, 1978). Como mencionado por Muraguchi, uma levou
a outra e não são entidades separadas. A construção da música, como mencionado
no capítulo anterior, envolve tanto uma produção individual quanto coletiva, através
das modificações a que é submetida nas diversas avaliações dentro do grupo.
Por conta disso, apesar da autoria permanecer, o próprio grupo,
coletivamente, participa da criação das composições. Isso permite que até as
músicas que são de outros integrantes, possuam uma ligação em suas histórias
com aquelas que antecederam. Os nomes das músicas são todos em língua
japonesa e com grandes significados por trás, sendo mais um símbolo distintivo da
prática no Brasil. Retomando as discussões levantadas por Philippe Poutignat e
Streiff-Fenart, uma questão que perpassa os trabalhos que envolvem o estudo do
taiko consiste em tentar compreender o que levou a erupção do “pertencimento
étnico” a partir da década de 70 no mundo contemporâneo? Segundo Poutignat e
Streiff-Fenart,

A constatação da importância atribuída aos liames étnicos nas


sociedades modernas traz um desmentido radical à tese
convencionada do “eclipse da comunidade” sob a tripla ação da
urbanização, industrialização e burocratização. Ao mesmo tempo a
oposição entre individualismo de um universo urbano e o
comunitarismo das sociedades tradicionais culturalmente
homogêneas, vivendo no isolamento e caracterizadas por um grande
sentimento de solidariedade não parece mais tão evidente
(POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1997, p. 30).

Uma das respostas possíveis repousa na ideia de que o renascimento dos


grupos étnicos está associado aos desgastes das relações criadas pela sociedade
moderna, ou seja, isso implica pensar os grupos étnicos enquanto um “remédio”
para as disfunções geradas, como por exemplo a despersonificação/desumanização
dentro dos vínculos sociais da sociedade de massa. Essa perspectiva pensa esses
grupos como uma forma de reintegração social. A etnicidade torna-se portanto uma

89
questão também simbólica, que não necessariamente possui proximidade com a
cultura “tradicional” que reivindica, sendo assim, o foco para a análise desses
grupos está direcionado para a dimensão afetual. Visão essa que dialoga com as
abordagens de Maffesoli (2006)33.
Vejo o Ishindaiko dentro desse processo, e mais precisamente dentro da
categoria de grupo étnico devido a alguns aspectos de sua configuração e relações
de fronteiras que estabelece. Ao invés de enfatizar os grupos étnicos através da
visão de isolamento e preservação, a ideia apresentada por Poutignat e Streiff-
Fenart, consiste conceber dentro de um movimento dinâmico e potencializado nas
relações com outros grupos, nas fronteiras. De modo geral, as teorias da etnicidade
tendem a concordar com o fato de que a construção do Nós em relação ao Eles
está na base das investigações dos grupos étnicos. Assim, o universo urbano, onde
as interações são intensificadas, a emergência de grupos étnicos se torna ainda
maior. A ideia central é que a etnicidade não surge a partir da diferença étnica, mas
sim, através da comunicação cultural, onde símbolos são paralelamente
compreendidos tanto pelos "insiders" quanto os "outsiders".
No caso do Ishindaiko, a relação de fronteira se estabelece tanto nos
contatos com o Japão quanto com a sociedade Nacional. Além disso, em uma
esfera menor, o fato de ser Ishindaiko é exaltado também em relação aos outros
grupos de taiko do país, sendo uma distinção interna dentro do campeonato. Apesar
disso, meu foco esteve nas fronteiras oriundas das relações étnicas que pude
perceber através da construção do "Nós" dentro do Ishin. É fundamental perceber
que o caso da imputação étnica, no caso do Ishindaiko, é tanto endógena quanto
exógena, pois mesmo que o grupo não exaltasse aspectos da cultura japonesa (o
que de fato faz), a própria imagem que seus espectadores possuem ao assistir uma
apresentação cria uma associação direta ao Japão, seja pelas vestimentas,

33
Aqui, vale ressaltar que os autores criticam os termos “tribalismo” e "tribo" para abordar esses
fenômenos (como faz Maffesoli) por considerar que são termos carregados de uma visão
estereotipada e pejorativa para os africanos, preferindo portanto, os termos etnia e etnicidade.
Entretanto, ao ler a obra de Maffesoli compreendemos o quanto o autor atribui esses termos para
análise dos mais variados grupos, principalmente dentro das cidades, até mesmo grupos de
pesquisa em Universidades são usados como exemplos. Apesar disso, acredito ser pertinente as
críticas dos antropólogos aos termos e considero viável a substituição por outros, menos carregados
de estereótipos. De toda forma, o movimento de construção de grupos que enfatizam as relações
comunitárias são um ponto de consenso entre os autores.

90
discursos de abertura, performance, ou pela maioria dos membros serem de
descendência japonesa. Para Poutignat e Streiff-Fenart, independentemente de ser
exógena ou endógena, ou ambas, um ponto fundamental é compreender as
distinções de pertença e os critérios utilizados pelos grupos para tal.
As relações criadas dentro dos grupos estabelecem símbolos que são
utilizados para demarcar as fronteiras e criar o sentimento de pertencimento. No
caso do Ishindaiko, percebo o grupo inserido dentro de uma comunidade
“nipobrasileira” que ainda possui contornos “velados” nos discursos sobre sua
distinção, até mesmo ambíguos em alguns casos. Na maior parte encontramos
discursos voltados para uma “integração” e “mistura” em relação ao Brasil, enquanto
em outros momentos (e na prática) há um direcionamento para descendentes e
enaltecimento do pertencimento a uma forma de conduta distinta, que
principalmente, prima pela disciplina e valores familiares. Diferente da ação adotada
na América do Norte, que enfatiza em sua retórica a construção do movimento pan-
asiático, sendo o taiko considerado, também, um instrumento na luta política por
reconhecimento, no Brasil, o contorno político aparece de forma sutil nas falas, onde
o aspecto comunitário se sobressai.
A etnicidade enquanto um “parente fictício” está presente nos grupos de taiko
do Brasil devido, em primeiro momento, aos dados empíricos. O fato da grande
maioria dos membros serem de descendência japonesa entra em conflito com os
discursos de que a prática é aberta para “todos”, pois o próprio conhecimento do
taiko demanda uma via de acesso que, normalmente, envolve conhecer alguém de
dentro da “comunidade nikkei". A “luta” contra o estigma de não assimiláveis pode
ser o fator que gera os discursos de abertura e exaltação do “não-descendente” que
está inserido dentro dos grupos. De todo modo, a ênfase está na cultura e nas
formas de ser e estar em sociedade, sendo que, independente da “origem étnica”,
os comportamentos são analisados dentro de parâmetros estipulados pelo ideal que
se tem da “cultura japonesa”. É legitimo, dentro dos discursos, que um não-nikkei
participe e seja integrado a comunidade desde que apresente alguns valores como
a "disciplina", "organização", "dedicação ao coletivo", "esforço", entre outros.
Em Grupos étnicos e suas fronteiras (1995), Fredrik Barth apresenta a
possibilidade se pensar os grupos étnicos enquanto uma forma de organização
social. Dentro dessa perspectiva, as diferenças, que demarcam as fronteiras em
91
relação aos outros grupos, não são necessariamente distinções “objetivas”, mas
sim, aquelas diferenças que o grupo considera enquanto significantes. Como já
abordei anteriormente, alguns aspectos dentro do Ishindaiko são exaltados
enquanto valores fundamentais e distintivos do grupo, uma vez que ele assume uma
identidade híbrida, torna-se ainda mais evidente a criação de tradições particulares
e atribuições de práticas “japonesas” que não necessariamente possui qualquer
fundamento com o Japão dos dias atuais ou de um passado remoto.
Apesar disso, a imagem do grupo carrega marcas distintivas que interligam
estereótipos para a criação de uma identidade única, particular daqueles que
integram o "ser-Ishindaiko", e dentro de um cenário maior, estão inseridos dentro da
"comunidade nikkei" do Brasil, sendo uma expressão de resistência cultural e
perpetuação do que eles pensam ser a “cultura japonesa” no país. Em sua
apresentação formal, o discurso do Ishindaiko está direcionado para a manifestação
do seu lado “mais japonês”, e expõe símbolos variados em referência a essa
“origem”, como os textos em língua japonesa, saudações em japonês, vestuário, e
toda a performance do taiko.
No dia a dia, os traços da “cultura japonesa” são menos visíveis e mais
práticos, através dos valores comportamentais e o ritmo de treino do grupo, além
das relações sociais estabelecidas no interior do Ishindaiko. A mistura de
comportamentos que “mesclam” características tidas como “brasileiras e japonesas”
não são ressaltadas no cotidiano do grupo. No contato com o Japão encontra-se o
momento em que o “lado brasileiro” é reconhecido, e necessita de exaltação e
particularidade. Fredrik Barth aponta, que dentro dessa visão de organização social,
o conteúdo cultural dos grupos está separado em duas ordens, sendo elas:

1. Sinais ou signos manifestos – os traços diacríticos que as


pessoas procuram e exibem para demonstrar sua identidade, tais
como vestuário, a língua, a moradia, ou o estilo geral de vida; e 2.
orientações de valores fundamentais – os padrões de moralidade e
excelência pelos quais as ações são julgadas (BARTH, Fredrik.
1969)

No decorrer do trabalho, tanto o primeiro quanto o segundo ponto ressaltados


por Barth foram apresentados para compreender o fenômeno do taiko através do
estudo de caso do grupo Ishindaiko. Os traços culturais realçados e organizadores

92
das relações podem se alterar no decorrer do tempo, sendo maleáveis de acordo
com as circunstâncias, entretanto, o ponto central é pensar que através da prática
do taiko e da inserção dentro da comunidade nikkei, há uma distinção entre o “Nós”
e o “Eles” devido ao sentimento de pertencimento criado dentro do grupo. Como já
pontuei anteriormente, o afeto e a "união" do grupo que se considera uma família
está na base dos sentimentos de pertença ao grupo.
Pude observar durante o campo, que um dos elementos que geram conflito
são quando membros se sentem “menos” integrados nos ritos particulares criados
pelo Ishindaiko. Se retomarmos, por exemplo, o caso do campeonato de taiko de
2015, quando o Ishindaiko concorreu com duas equipes na categoria Livre
(internamente chamadas de Samurai e Caverna), ouvi de uma tocadora sobre o
incômodo que ela sentia devido a um suposto tratamento desigual a que as duas
equipes estavam sujeitas. Como prova de que a outra equipe possuía preferência
para ganhar o campeonato, ela relatou a ausência dos outros membros do
Ishindaiko no treino das 100 vezes (resquícios de um ritual) de sua equipe, o que
para ela demonstrava um descaso. A presença dos integrantes que compõe o Ishin,
mas que não estavam escalados para a performance daquela música, apresentava-
se enquanto um fator essencial devido a importância desse treino, que não poderia
ter sido ignorado dentro do grupo.
No futuro, esse treino pode deixar de existir ou assumir novas formas,
entretanto, o ponto é compreender que existem certos símbolos, práticas e valores
que são significantes para a construção da identidade do grupo e do sentimento de
pertencimento dos seus membros. As fronteiras estabelecidas pelo Ishindaiko na
construção da sua identidade, como já afirmei anteriormente, podem ser vistas de
acordo com a situação em que o grupo se encontra. Assim sendo, a respeito da
identidade étnica podemos perceber como a marca principal o hibridismo, assim
como no grupo do ICNBC, sendo fundamental ressaltar o caráter dinâmico da
construção dessa identidade. Mesmo não desejando adentrar na questão dos
grupos étnicos pelo viés da “diáspora”, acompanhando as comunidades de
imigrantes e seus descendentes, o próprio contexto do taiko do Brasil me levou a
necessidade de apresentar a prática levando em consideração essa perspectiva.

93
Considerações finais

Penso o quanto, no decorrer desses dois anos, o processo de troca com o


grupo Ishindaiko criou contextos que me permitiram gerar associações e
significados para as relações que ali se estabeleciam, tanto entre eles quanto
comigo. Através da imersão em seu microcosmo pude relacionar as experiencias
vivenciadas com grandes temas da antropologia: etnicidade, ritual, tradição, corpo,
etc. Por ser um nicho especifico e pouco estudado, o acesso a grupos e tocadores
do mundo todo é facilitado uma vez que você faz parte desse universo, sendo um
campo vasto e ainda pouco habitado para pesquisa. Nessa breve consideração
final, busco retomar o que foi apresentado no trabalho de forma resumida e expor
alguns pontos que podem ser explorados em futuramente.
De modo geral, podemos perceber como os temas tradição, etnicidade e arte,
envolvem todo a pesquisa em maior ou menor escala, através das mais variadas
perspectivas que o campo me possibilitou acessar. A questão da tradição por
exemplo, perpassa todas as partes do trabalho à medida em que, em um primeiro
momento percorremos o tema através da “Invenção das tradições”, adentrando em
memórias e imaginários. No centro do trabalho encontramos as tensões entre os
jovens e aqueles que detêm a “autenticidade” da prática, em um jogo que envolve a
disputa entre os ideais de “preservação” e “inovação”. Ao final, observamos as
tradições sendo re(construídas) e inventadas constantemente na demarcação das
fronteiras entre os grupos.
A ênfase no conceito de etnicidade para pensar a prática do taiko, tanto
dentro quanto fora do cenário nacional, aponta para uma tendência da literatura
acadêmica ao analisar os grupos que emergiram a partir de 1970. O conceito de
etnicidade permitiu compreender o Ishindaiko enquanto possuidor de traços
distintivos, significantes, que geram o sentimento de pertencimento em seus
membros, capaz de estabelecer fronteiras em relação a outros grupos. Diante disso,
podemos compreender como o foco no caráter comunitário e saber dos interstícios,
marcados por características de exaltação da união e pertença ao coletivo, presente
no segundo capítulo, dialoga com aspectos dos grupos étnicos.
Na produção desse trabalho pude perceber lacunas que são potenciais focos
para pesquisas futuras, como por exemplo, o processo de institucionalização do
94
taiko no Brasil. Adentrando mais a fundo na criação da ABT, questionamos como se
deu o processo que conduziu ao surgimento dessa instituição que, a partir de um
determinado momento, passou a regulamentar a prática no país. A fronteira,
aparentemente bem definida, entre o antes e o depois da criação da ABT,
possivelmente pode apresentar contornos mais fluídos com a emergência de
pesquisas de campo que direcionem o olhar para a presença do taiko no Brasil.
Outro ponto que ainda apresenta lacunas na análise consiste em
compreender, de modo aprofundado, a razão da notável diferença entre nos
discursos étnicos proferidos pelos grupos oriundos da América do Norte e do Sul. A
breve análise aqui realizada já demonstrou a relação do taiko com os movimentos
pan-asiáticos da América do Norte, enquanto que os grupos do Brasil analisados
enfatizam aspectos culturais sem envolver a prática dentro de uma ação afirmativa
pan-asiática, mantendo o taiko, predominantemente, dentro do circuito da
comunidade nikkei e enfatizando a abertura à “mistura” com todos que não são
nipo-descendentes. Adentrar nessa problemática possibilita que os estudos sobre
asiáticos enquanto “minoria modelo” seja desenvolvida de forma comparativa
partindo da prática do taiko.
Para concluir, gostaria de frisar que o trabalho em questão apresenta os
significados que o grupo Ishindaiko apresentou após perpassar os filtros dos meus
olhos no decorrer desses dois anos de contato. Agradeço ao acolhimento dos meus
nativos, que ao abrir seu cotidiano para uma estranha, possibilitaram o
desenvolvimento desse estudo, que além de material acadêmico, teceu fios de
lembranças inquebráveis em minha mente, nessa primeira experiência em campo.

95
Referências

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96
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ANEXO
Caderno de referências etnomusicológicas

I.Nagado-daiko: O nagado é formado por duas membranas de couro presas por


tachas de ferro a um corpo abaulado de madeira. Sua afinação ocorre apenas no
momento de fabricação.

II.Okedo-daiko: Instrumento mais comum no Brasil devido a facilidade de sua


fabricação. É formado por duas membranas de couro costuradas a aros de
metal, cordas e um corpo de madeira compensada, possuindo afinação pelo
sistema de cordas. É um instrumento leve e de variadas sonoridades a partir da
afinação. Esse instrumento pode ser comparado a alfaia (ou tambor).

III.Shime-daiko: O shime pode ser fabricado tanto por sistema de cordas quanto por
sistema de afinação com porcas e parafusos. Possui sonoridade mais aguda e é
responsável pela marcação do ritmo da musica. Tanto pela som quanto pelo
tamanho e formato, o shime-daiko pode ser comparado a caixa de bateria.

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IV.Tekkan: Instrumento metálico com três variações de tonalidades, agudo,
responsável pela marcação do tempo e ritmo. O tekkan, tanto por possuir o
som metálico quanto por sua função de marcar o tempo pode ser comparado
com gonguê ou agogô.

V. Fue: Instrumento de sopro transversal comumente atrelado aos tambores


no Taiko. A intenção é que se consiga expressar sons da natureza através do
seu toque.

VI. Odaiko: Comumente o maior instrumento de taiko, pode ser fabricado tanto
como o Nagado quanto o Okedo. Sua principal característica é possuir o som
mais grave dentre os tambores. Devido ao grande diâmetro do couro, exige
maior força e vigor do percussionista.

VII. Bacchi: Bastões de madeiras utilizados para tocar os tambores. É um


instrumento reverenciado enquanto uma extensão do corpo e da alma do
tocador. Semelhante as baquetas utilizadas em outros grupos de percussão.

99
VIII.Chappa: Instrumento formado por dois pratos metálicos. Permite grande
liberdade de movimentação aos seus tocadores.

IX.Horagai: Instrumento feito à base de concha do mar, com confecção mantida em


segredo por ser considerada sagrada.

X.Melê: Denominação da base do maracatu de baque virado, formado por três


marcações fortes no tambor com o braço direito alternando com duas marcações
de tempo com o braço esquerdo.

XI.Viração: Nome atribuído a outras combinações de células rítmicas que variam da


marcação e ocorrem em determinados momentos da Loa.

XII. Loa: nome dado as músicas oriundas do Maracatu de Baque Virado.

XIII. Atabaque: Instrumento considerado sagrado para o Candomblé, é formado por


um corpo cilíndrico e couro, podendo ser tocado tanto com as mãos ou

100
baquetas.

XIV. Agbê: Instrumento feito de cabaças e miçangas/malha de contas.

XV. Caixa e Apito: Dois instrumentos utilizados tanto no Maracatu


quanto em outros ritmos percussivos brasileiros. A Caixa
possui uma estrutura metálica e duas peles fixadas por aros, além de uma
esteira de metal na pele de baixo responsável por "vibrar"
ao toque do instrumento. É utilizada, tanto na música do Ishindaiko quando no
Maracatu, pendurada através de um talabarte. O Apito serve como instrumento
daquele que está "liderando" a performance, dando sinais para finalização ou
alterações na música.

101

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