Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

5019 1647 PB

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 206

1

Expediente
Revista Eletrônica de Direito Penal e Política Criminal – REDPPC
Vol. 11, n° 1/2, 2023
ISSN 2358-1956

EQUIPE EDITORIAL

Editores
Odone Sanguiné, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Pablo Rodrigo Alflen, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Assistente editorial
Tiago Kalkmann, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO


Alejandro González Gómez, Universidad de Morélia (UDEM), Mexico
André Luís Callegari, Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), Brasil
Andrea Castaldo, Facoltà di Giurisprudenza dell'Università di Salerno (UNISA), Itália
Angelo Roberto Ilha da Silva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil
Bartira Macedo de Miranda, Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil
Christiano Falk Fragoso, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil
Daniela Villani Bonaccorsi, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMG), Brasil
Danilo Knijnik, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil
Diego Nunes, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
Diogo Rudge Malan, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil
Eduardo Alcócer Povis, Pontificia Universidad Católica del Perú (PUCP), Perú
Emetério Silva de Oliveira Neto, Universidade Regional do Cariri (URCA), Brasil
Emilio Dolcini, Università degli Studi di Milano (UniMi), Itália
Fabio Coppola, Università degli Studi di Salerno (UNISA), Itália
Gerson Faustino Rosa, Faculdade Maringá (FM), Brasil
Giovanni Cocco, Università degli Studi di Cagliari (UniCa), Itália
Guillermo Jorge Yacobucci, Universidad Austral (UAustral), Argentina
Guillermo José Ospina López, Universidad Autónoma del Cauca (Uniautónoma), Colômbia
John Vervaele, Universiteit Utrecht (UU), Holanda
Julia Sáenz, Facultad de Derecho Universidad de Panamá (UP), Panamá
Luciano de Freitas Santoro, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Brasil
Manuel Cancio Meliá, Universidad Autónoma de Madrid (UAM), Espanha
Marco Aurélio Florêncio Filho, Universidade Presbiteriana Mackenzie (Mackenzie), Brasil
Marcus Alan de Melo Gomes, Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil
Marcus Vinicius Aguiar Macedo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil
Ramon Ragués I Vallés, Universitat Pompeu Fabra (UPF), Espanha
Raphael Boldt de Carvalho, Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Brasil
Rosmar Rodrigues Alencar, Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Brasil
Sérgio Bruno Araújo Rebouças, Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil
Stephen Legomsky, Washington University in St. Louis (WashULaw) Estados Unidos
Thiago Allisson Cardoso de Jesus, Universidade Ceuma/Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Brasil
Thiago Baldani Gomes De Filippo, Universidade Anhembi Morumbi (UAM), Brasil
Vanessa Chiari Gonçalves, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil

AVALIADORES DESTA EDIÇÃO


Adriane Pinto Rodrigues da Fonseca Pires  Ana Carolina da Luz Proença  Anair Isabel Schaefer  André Adriano do Nascimento
da Silva  Bruna Azevedo de Castro  Christiane Kalb  Diego Alan Schöfer Albrecht  Emetério Silva de Oliveira Neto  Fábio
Guedes de Paula Machado  Fernanda Pacheco Amorim  Guilherme Dutra Marinho Cabral  Gustavo de Souza Preussler  José
Eduardo Lourenço dos Santos  Lara Ferreira Lorenzoni  Leonardo Agapito  Priscila Vargas Mello  Rafaela Bogado Melchiors
 Raíssa Lima e Salvador  Renata Morais Leimig  Rodrigo da Silva Brandalise  Stephan Doering Darcie  Tatiana Lourenço
Emmerich de Souza  Thiago Allisson Cardoso de Jesus  Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa  Túlio Felippe Xavier Januário
 Viviane Nery Viegas  Wilson Franck Junior

Endereço
Avenida João Pessoa, n° 80, Centro Histórico, DIR 01
Porto Alegre-RS, CEP 900040-000
https://seer.ufrgs.br/redppc
redppc@ufrgs.br
1
Editorial

A presente edição da Revista Eletrônica de Direito Penal e Política Criminal – REDPPC do


corrente ano mais uma vez conta com valiosas contribuições de professores e pesquisadores nacionais
e estrangeiros.
Nesta edição são tratadas questões atuais, polêmicas e de particular relevância para o debate
jurídico-penal nacional e estrangeiro: ▪ O caso do Promotor v. Bosco Ntaganda, que foi o primeiro caso
em que o Tribunal Penal Internacional emitiu uma condenação por crimes sexuais e de gênero; ▪ A
anatomia funcional do compliance officer e sua responsabilidade penal segundo a abordagem espanhola,
em que é abordado de criticamente o tratamento conferido à responsabilização penal do compliance
officer como se fosse um órgão que possui as mesmas atribuições e desempenha funções semelhantes
em qualquer tipo de organização, quando, em realidade, pode estar configurado de forma diversa e
desempenhar funções muito diferentes consoante a respectiva organização empresarial; ▪ A
problemática da tortura à luz do “Caso Evandro”, que trata sobre a atualidade da prática da tortura no
Brasil, notadamente sobre o seu uso como instrumento para a obtenção de confissões que,
posteriormente, são levadas aos processos judiciais e valoradas como provas que dão azo a condenações
manifestamente injustas; ▪ A mistanásia e a responsabilidade criminal do Estado, em que é apresentado
um instigante estudo de caso sobre a falta de oxigênio medicinal na cidade brasileira de Manaus/AM;
▪ Discute-se, ademais, a relevância da ideia de consenso e de verdade no Processo penal, em especial, a
partir dos influxos da justiça penal negocial no Brasil; ▪ O aumento da execução da pena provenientes
da Lei Anticrime e seus os impactos na execução da medida de segurança são tratados amplamente;
▪ “Sextortion”, enquanto modalidade de cibercrime, é apresentado em um interessantíssimo estudo que
examina o aumento da sua incidência e as dificuldades na sua tipificação e diferenciação em relação a
outros tipos de delitos; ▪ No “Caso Jesuitas” é efetuada uma ampla, profunda e crítica análise da sentença
da Audiencia Nacional Espanhola que julgou o caso Jesuitas, por força do princípio da jurisdição
universal, e neste contexto é examinada a caracterização da coautoria conjunta mediata em aparatos
organizados de poder em caso de terrorismo; ▪ Reflete-se, outrossim, sobre o discurso midiático de
“tolerância zero” e o seu impacto sobre a atuação do poder Judiciário e das instituições de repressão
estatal; ▪ Por fim, a partir de uma análise pragmática e interdisciplinar desenvolve-se um estudo a
respeito do suicídio na polícia militar estado de São Paulo.
Agradecemos a todos os autores e a todas autoras por suas valiosas contribuições, bem como aos
avaliadores, cuja colaboração tem sido fundamental para a qualificação do periódico.
Desejamos uma boa leitura e esperamos que aproveitem.
Porto Alegre, dezembro de 2023

os Editores
Sumário

Artigos
Ntaganda Case: Lessons learnt from Katanga, Lubanga, and Bemba cases ...................................7
Ana Silvia Sanches Amaral

Functional anatomy of the “compliance officer” and his criminal liability from the Spanish
Approach: The complexity arising from the specific Delegated Tasks ..........................................19
Rafael Aguilera Gordillo
Jesica Hita Ruiz

Tortura nunca mais? O que nos ensina o “Caso Evandro”.............................................................49


César Augusto Luiz Leonardo
Heitor Moreira de Oliveira

A mistanásia e a responsabilidade criminal do Estado: estudo de caso sobre a falta de oxigênio


medicinal na cidade brasileira de Manaus – AM ..............................................................................75
Samuel Mendonça
Christiany Pegorari Conte
Luiz Guilherme Luz Cardoso

Breves apontamentos sobre o consenso e a verdade no processo penal: Reflexões a partir dos
acordos de não persecução penal ......................................................................................................103
Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa

O aumento da execução da pena provenientes da Lei Anticrime e os impactos na execução da


medida de segurança ..........................................................................................................................115
Fábio Manoel Fragoso Bittencourt Araújo
Ana Beatriz Vasconcelos de Medeiros

Sextortion: caracterização dogmática e delimitação da imputação criminal em Portugal ..........129


Joaquim Ramalho
Susana Ramalho

Caso Jesuitas: justicia universal, coautoría conjunta mediata en aparatos organizados de poder,
terrorismo desde el Estado y prueba* ..............................................................................................143
Manuel Ollé Sesé
Manuel Cancio Meliá

O judiciário e as instituições de repressão frente ao discurso midiático de


tolerância zero ....................................................................................................................................177
Doacir Gonçalves de Quadros
Ezequiel Schukes Quister

O suicídio na Polícia Militar no Estado de São Paulo: análise e compreensão da


sua incidência ......................................................................................................................................191
Luiz Sérgio Mussolini Filho
Andreza Marques de Castro Leão
1

Seção
ARTIGOS
7
Ntaganda Case:
Lessons learnt from Katanga,
Lubanga, and Bemba cases

Caso Ntaganda:
Lições extraídas dos casos Katanga,
Lubanga e Bemba

Ana Silvia Sanches Amaral


Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004),
mestrado (LL.M.) em Direito dos Negócios Internacionais pela The London School of
Economics and Political Science (2009) e doutorado pela Universidad del País Vasco-
UPV/EHU (2020). Pós-doutoranda da Universidad del País Vasco- UPV/EHU (2022-
2024), realizando estância no Departamento de Direito Penal, Medicina Legal e
Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Abstract: The Prosecutor v. Bosco Ntaganda was the first case in which the International
Criminal Court (ICC) issued a conviction on sexual and gender-based crimes (SGBCs). However,
Ntaganda´s condemnation for rape and sexual slavery came as the crowning point of a lengthy
process of development of the Court´s approach to the prosecution of sexual and gender crimes,
along three cases- Thomas Lubanga Dyilo, Germain Katanga e Jean-Pierre Bemba Gombo. The
present work analyses the impact of each of the cases in the International Criminal Court handling
of sexual and gender-based crimes and how they paved the way for punishmenr of Ntaganda for
the crimes of rape and sexual slavery.

Keywords: Ntaganda, sexual and gender-based crimes, International Criminal Court

Resumo: O caso do Promotor v. Bosco Ntaganda foi o primeiro em que a Corte Penal
Internacional emitiu uma condenação por crimes sexuais e de gênero. No entanto, a condenação
de Ntaganda por estupro e escravidão sexual veio como o ponto culminante de um longo processo
de desenvolvimento da abordagem do Tribunal para o julgamento de crimes sexuais e de gênero,
ao longo de três casos - Thomas Lubanga Dyilo, Germain Katanga e Jean- Pierre Bemba Gombo.
O presente trabalho analisa o impacto de cada um dos três casos no tratamento de crimes sexuais
e de gênero pela Corte Penal Internacional e como abriram caminho para a punição de Ntaganda
pelos delitos de estupro e escravidão sexual.

Palavras-chave: Ntaganda, crimes sexuais e de gênero, Tribunal Penal Internacional

1. Introduction

The Prosecutor v. Bosco Ntaganda case is a landmark. For the first time, the International
Criminal Court entered a final judgment convicting a defendant for sexual and gender-based crimes. On
8 July 2019 the Trial Chamber (TC) VI issued a verdict and found Ntaganda guilty on 18 counts,
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
8 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

including of being co-perpetrator of the crimes of rape and sexual slavery, as war crimes and crimes
against humanity. On 7 November of the same year, he was sentenced to 30 years imprisonment.
Subsequently, on 30 March 2021, the Appeals Chamber (AC) confirmed the verdict, by Majority, and
the sentence, by unanimity.1
In the antecedent cases involving sexual and gender-based crimes in which final judgments were
entered (namely, the Prosecutor v. Thomas Dyilo Lubanga, the Prosecutor v. Germain Katanga and
Prosecutor v. Jean-Pierre Bemba Gombo), the ICC did not render a final conviction for sexual and
gender-based crimes. Such circumstance tarnished the Court´s credibility and put in doubt its ability to
try this class of crimes.2
Nevertheless, in spite of their discouraging outcomes, the Lubanga, Katanga and Bemba cases
were fundamental and allowed the Court to progress in prosecuting SGBCs.3
In view of that, the present work shows how each of the cases contributed to capacitate the Court,
promoting a better approach in its handling of the sexual and gender-based crimes, which ultimately led
to Ntaganda´s final conviction for rape and sexual slavery.

2 The Prosecutor v. Thomas Dyilo Lubanga

The Prosecutor vs. Thomas Lubanga Dyilo was the International Criminal Court´s first case/ trial/
verdict. Therefore, was a lot of expectation with regard to how the case would be conducted.4
The background was the armed conflict of a non-international character that took place the region
of Ituri in the Democratic Republic of the Congo (DRC) between 2002 and 2003. Lubanga was the
president of the “Union des Patriotes Congolais” (UPC). It made use of “Force Patriotique pour la
Libération du Congo” (FPLC), its military wing, to carry out large-scale military operations against the
Lendu militia forces and Lendu civilians, so as to establish Hema dominance and control in Ituri. In the
course of the conflict, the UPC/ FPLC allegedly perpetrated several of the crimes enlisted in the Rome
Statute, including rape and sexual slavery.5
Since the Rome Statute furnished the ICC with the most progressive structure in history of sexual
and gender-based violence in International Criminal Law, it was expected that the crimes rape and sexual

1 ICC, Ntaganda case, Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019; ICC, Ntaganda case, Appeals Chamber, Judgment on the
appeals of Mr Bosco Ntaganda and the Prosecutor against the decision of Trial Chamber VI of 8 July 2019 entitled ‘Judgment’,
30 March 2021; ICC, case, Appeals Chamber, Judgment on the appeal of Mr Bosco Ntaganda against the decision of Trial
Chamber VI of 7 November 2019 entitled ‘Sentencing judgment, 30 March 2021; ICC website, Press Release, ICC Trial
Chamber VI declares Bosco Ntaganda guilty of war crimes and crimes against humanity, 2019; United Nations, ReliefWeb,
International Criminal Court Upholds Landmark Conviction of Warlord for Atrocities Committed in the Democratic Republic
of the Congo - Democratic Republic of the Congo
2 ICC, The Prosecutor v. Thomas Dyilo Lubanga, Case No. ICC-01/04-01/06; ICC, the Prosecutor v. Germain Katanga, Case

No. ICC-01/04-01/07; ICC, the Prosecutor v. Jean-Pierre Bemba Gombo, Case No. ICC-01/05-01/08; KAMBALE, P. K.
(2015). In De VOS, C., KENDALL, S., & STAHN, C. (eds.), pp. 171-197; DAMASKA, M. R. (2009), pp. 19-35.
3 AMARAL, A. S. S. do (2020), pp. 480-498
4 ICC website, Case Information Sheet, Situation in the Democratic Republic of the Congo, The Prosecutor v. Thomas Lubanga

Dyilo, 15 December 2017


5 Ibidem; ICC, Lubanga case, Pre-Trial Chamber I, Document Containing the Charges, Article 61(3) (a), Annex 2, pp. 3-7,

paras. 4-5, 12-14, 19 (28 August 2006); ICC, Lubanga case, Trial Chamber I, Judgment pursuant to Article 74 of the Statute,
pp. 24, 591, paras. 25, 27, 1359 (14 March 2012); ICC, The Office of the Prosecutor. Report on the activities performed during
the first three years (June 2003 – June 2006), p. 2
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
9

slavery allegedly perpetrated would be investigated and included in the charges.6


Nonetheless, the Office of the Prosecutor (OTP) opted for a practical approach based on the
political convenience of gathering evidence quickly in detriment of a more thorough accounting of the
full extent of the DRC conflict. In the Document Containing the Charges, the Prosecutor only accused
Lubanga of the crimes of conscripting and enlisting children under the age of fifteen years into the FPLC
and using them to participate actively in hostilities.7
As a consequence, although it was well reported that rape and other types of sexual-oriented
crimes were largely committed during the UPC/ FPLC operations, they were not among the initial
charges brought by the OTP. Also, there was no amendment to the charges in order to include more
crimes since the Prosecution sustained that it was not feasible to amend them within an acceptable time
frame. Further, the Prosecution opposed the legal re-characterisation of the facts as sexual slavery and
inhuman and/or cruel treatment, which had been requested by the legal representatives of the victims,
who were dissatisfied with the lack of charges related to SGBCs. The Prosecution thwarted a
comprehensive prosecution of the crimes, including rape and sexual slavery.8
On 14 March 2012, Lubanga was found guilty of the crimes of conscripting and enlisting children
under the age of fifteen years into the FPLC and using them to participate actively in hostilities.
Subsequently, he was sentenced to 14 years imprisonment and the Appeals Chamber maintained the
Trial Chamber´s judgment and sentence.9
Despite Lubanga´s conviction, there was an overall dissatisfaction with the Prosecution´s limited
charging. The OTP´s approach prevented a fuller accounting of the broad range of the criminality
perpetrated by the UPC/FPLC in the conflict at issue. Victims, Non-Governmental Organizations
(NGOs) and women´s rights institutions especially resented the absence of charges of rape and sexual
slavery in the case.10
In view of that, in the 2011 Gender Report Card, the Prosecutor (after asserting that the OTP had
“explained the gender dimension of the crime of enlisting and conscripting children under the age of 15
years” during the trial of the Lubanga case) affirmed that “[t]he office took note of the reactions of civil

6 INDER, B. (2008), p. 3
7 KAMBALE, P. K. (2015). In De VOS, C., KENDALL, S., & STAHN, C. (eds.), pp. 171-197; ICC, Lubanga case, Pre-Trial
Chamber I, Document Containing the Charges, Article 61(3) (a), Annex 2, p. 24
8 ICC, Lubanga case, Trial Chamber I, Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute, 10 July 2012, p. 24, para.

60; ICC, Lubanga case, Trial Chamber I, Prosecution’s Application for Leave to Appeal the “Decision giving notice to the
parties and participants that the legal characterisation of the facts may be subject to change in accordance with Regulation 55(2)
of the Regulations of the Court", 12 August 2019, pp. 8-9, paras. 22-23; ICC, Lubanga case, Trial Chamber I, Prosecution's
Further Observations Regarding the Legal Representatives' Joint Request Made Pursuant to Regulation 55, 12 June 2009; ICC,
The Office of the Prosecutor. Report on the activities performed during the first three years (June 2003 – June 2006), p. 2; ICC
website, Case Information Sheet, Situation in the Democratic Republic of the Congo, The Prosecutor v. Thomas Lubanga
Dyilo; ICC website, Case Information Sheet, Situation in the Democratic Republic of the Congo, The Prosecutor v. Thomas
Lubanga Dyilo; KAMBALE, P. K. (2015). In De VOS, C., KENDALL, S., & STAHN, C. (eds.), pp. 171-197
9 ICC, Lubanga case, Trial Chamber I, Judgment pursuant to Article 74 of the Statute, 14 March 2012; ICC, Lubanga case,

Trial Chamber I, Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute, 10 July 2012; ICC, Lubanga case, Appeals
Chamber, Judgment on the appeal of Mr Thomas Lubanga Dyilo against his conviction, 1 December 2014
10 Women’s Initiatives for Gender Justice, Statement by the Women’s Initiatives for Gender Justice on the Arrest of Germain

Katanga; PIA-COMELLA, J. (2013), p.3; KAMBALE, P. K. (2015). In De VOS, C., KENDALL, S., & STAHN, C. (eds.), pp.
171-197; ICC, The Office of the Prosecutor. Report on the activities performed during the first three years, pp.7-8; ICC website,
Case Information Sheet, Situation in the Democratic Republic of the Congo, The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
10 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

society and their preference for these aspects to be explicitly charged.”11


The background of the Ntaganda case comprises the same facts of the Lubanga case, specifically
the attack promoted by the UPC/FPLC in Ituri in the DRC during 2002/2003. Ntaganda was Deputy
Chief of Staff in charge of Operations and Organisation in UPC/FPLC.12
However, when reviewing the events and criminal conduct, the OTP´s strategy was distinct from
the one it had deployed in the case against Lubanga.
Besides bringing charges for the crimes of conscripting and enlisting children under the age of 15
years into an armed group and using them to participate actively in hostilities, the Prosecution accused
Ntaganda of the following crimes: rape and sexual slavery (as crimes against humanity and war crimes
and against children under the age of 15 years incorporated into the UPC/FPLC); murder and attempted
murder; intentionally directing attacks against civilians; persecution; pillage; forcible transfer of
population; ordering the displacement of the civilian population; intentionally directing attacks against
protected objects; destroying the adversary’s property.13
It is noteworthy that Ntaganda was charged of rape and sexual slavery, as an indirect co-
perpetrator under article 25(3)(a) of the Rome Statute, committed not only against women of non-Hema
origin, but also against children under 15 years of age who were part of the UPC/FPLC.
The ICC adduced that militia members who are subject to rape and/or sexual enslavement cannot
be regarded as being taking active part in hostilities at the specific time they suffer sexual abuse.
Therefore, it understood that UPC/FPLC child soldiers under the age of 15 are within the scope of
protection against SGBCs. Accordingly, the Court innovated on the matter by considering that child
soldiers can be regarded as victims of the crimes of rape and sexual slavery (as war crimes) perpetrated
by combatants from the same armed forces.14
Therefore, the Prosecution enlarged the list of crimes when charging Ntaganda with crimes related
to the same facts tackled in the Lubanga case. It was an opportunity to amend the rather limited
accusation against Lubanga and provide victims and the DRC society with a fuller accounting of the
crimes. Moreover, the ICC enhanced the protection against SGBCs crimes by rendering that the
combatants can carry out such crimes against women and girls who are members of their own militia.
The Appeals Chamber upheld the Trial Chamber VI verdict in which it found Ntaganda guilty of
all the 18 counts of war crimes and crimes against humanity, including the crimes of rape and sexual
slavery, being sentenced to 30 years imprisonment. While the TC VI decision was the Court´s first
conviction based on sexual slavery, the Appeals Chamber judgment was the first time in which the ICC
secured a final conviction against a defendant based on sexual and gender-based crimes.15

11 ICC, the Office of the Prosecutor, Fatou Bensouda. Launch of the Gender Report Card on the International Criminal Court
2011, 13 December 2011, p.3
12
ICC, Ntaganda case, Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019
13 “Ibidem”
14 ICC, Ntaganda case, Pre-Trial Chamber II, Decision on the charges, 9 June 2014, p. 29; ICC, Ntaganda case, Conclusions

écrites de la Défense de Bosco Ntaganda suite à l’Audience de confirmation des charges, 14 April 2014, paras 251-263; ICC,
Ntaganda case, Pre-trial Chamber II, Prosecution’s Submission of Document Containing the Charges and the List of Evidence,
Annex A, 10 January 2014, pp. 33-35
15 ICC, Ntaganda case, Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019, pp. 535-539; ICC, Ntaganda case, Trial Chamber VI,

Sentencing Judgment, 7 November 2019; ICC, Ntaganda case, The Appeals Chamber, Judgment on the appeal of Mr Bosco
Ntaganda against the decision of Trial Chamber VI of 7 November 2019 entitled ‘Sentencing judgment, 30 March 2021
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
11

Therefore, the Court´s change of the approach in relation to the charges, in general, and to sexual
and gender violence, in particular, was of paramount importance. Due to such paradigm shift, victims
of sexual violence perpetrated by the UPC/FPLC during the Ituri attack, who were disappointed by the
lack of SGBCs charges and the overall unfolding of the Lubanga case, could finally experience
vindication and a sense of justice when the Appeals Chamber confirmed Ntaganda´s condemnation for
the crimes of rape and sexual slavery “inter alia”.

3 The Prosecutor v. Germain Katanga

In this case, the second in which the International Criminal Court had to deal with sexual and
gender-based crimes, Katanga was charged with rape and sexual slavery, as both war crimes and crimes
against humanity. In view of the lack of SGBCs charges in the Lubanga case, it constituted a step
forward in the prosecution of such crimes before the Court.16
Initially, the Trial Chamber II affirmed that the acts of sexual violence during the attack to destruct
Bogoro’s civilian population were perpetrated with the same goal and objectively constituted part of
that operation, not being isolated acts. In spite of that, the Chamber ultimately understood that rape and
sexual slavery were not part of the militia´s common purpose, as set up in art. 25(3)(d) of the Statute. It
sustained that the perpetration of rape and sexual slavery was not crucial to achieve the goal of
eliminating the Hema population. Also, in support of its finding, the TC II affirmed that such crimes
were not part of the militia's “modus operandi” in its prior attacks and did not occur repeatedly and/or
on a large scale.17
As a result, even though the Chamber recognised that rape and sexual slavery had been committed
during the attack, it regarded that the group´s criminal common purpose did not necessarily encompass
their commission. Accordingly, it found that such crimes did not fall within the common purpose, and,
hence, Katanga could not be considered responsible for them in the terms of article 25(3)(d) of the Rome
Statute.18
Moreover, the Trial Chamber II adopted a restrictive interpretation of indirect co-perpetration in
the terms of article 25(3)(a) of the Statute demanding proof that the defendant devised the crime,
supervised its preparation, and was in charge of its performance and execution. This strategy consists in
a high threshold for the prosecution of SGBCs. In fact, sexual violence crimes, even when widespread,
normally are committed because they are tolerated and permitted instead of being directly ordered or
planned.19
On the other hand, in the Ntaganda case, the Trial Chamber VI when addressing joint commission
within the meaning of article 25(3)(a) of the Statute, understood that it was not a requirement that the
common plan between individuals was expressly directed at the perpetration of a crime. It was enough

16 AMARAL, A. S. S. do (2020), p. 388


17 ICC, Katanga case, Trial Chamber II, Judgment pursuant to article 74 of the Statute, 7 March 2014, pp. 442, 637, 638
18 “Ibidem”
19 ICC website, Statement of ICC Prosecutor, Fatou Bensouda, on the recent judgment of the ICC Appeals Chamber acquitting

Mr Jean-Pierre Bemba 2018; ICC, Katanga case, Trial Chamber II, Judgment pursuant to article 74 of the Statute, 7 March
2014, pp. 541-542
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
12 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

that the common plan encompassed a “critical element of criminality”,20 and that it was “virtually
certain”21 that the execution of the common plan would result in the commission of the crimes at stake.22
Following this logic, the Chamber considered that Ntaganda together with other co-perpetrators
had an agreement to eliminate the Lendu population, which meant beyond reasonable doubt for civilians
to be raped and subjected to sexual slavery, among other crimes.23
Additionally, it regarded that Ntaganda “foresaw with virtual certainty”24 that the implementation
of the common plan would lead to the perpetration of the crimes of recruitment and active use in
hostilities of children under the age of 15 within the UPC/FPLC as well as the rape and sexual slavery
of these kids.25
In this respect, the TC VI affirmed that although Ntaganda knew that UPC/FPLC commanders
and fighters were subjecting girls below the age of 15 years to sexual violence, the latter were placed in
UPC/FPLC camps together with male combatants, being exposed to suffer sexual abuses. Consequently,
he was aware that it was nearly inescapable that the young female recruits and soldiers would be raped
and sexual enslaved as a consequence of the execution of the common plan.26
Therefore, in accordance with the Chamber´s view, were part of the common plan not only the
rape and subjection to sexual slavery of civilians during the attack to drive out the Lendu population but
also the rape and sexual slavery of children recruited into UPC/FPLC. Thus, the Court went beyond its
previous findings on SGBCs and enlarged the range of protection of women against such crimes by
disposing that combatants also can perpetrate rape and sexual slavery against women and girls members
of their own militia.27
Hence, while in the Katanga case the ICC had a restrictive interpretation of the criminal conducts
which could be considered part of the common purpose, which caused the exclusion of sexual crimes
and Katanga not being held accountable for them in the terms of article 25(3)(a), in the Ntaganda case
the Court´s approach was more flexible. It stated that for crimes to be regarded as integrating the
common plan, it would suffice that their commission was foreseeable as an “almost inevitable outcome”
of the implementation of the common plan” and, hence, considered that rape and sexual slavery were
within the common plan.28
The ICC´s decision to apply a more comprehensive criterion to judge the crimes which are
subsumed into the common plan enabled Ntaganda´s conviction for the crimes of rape and sexual
slavery.

20 ICC, Ntaganda case, Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019, p. 367
21
“Ibidem”
22 ICC, Ntaganda case, Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019, pp. 367, 379
23 ICC, Ntaganda case, Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019, p. 379
24 “Ibidem”
25 ICC, Ntaganda case, Pre-Trial Chamber II, Decision on the charges, 9 June 2014, p. 49-50; ICC, Ntaganda case, Trial

Chamber VI, Judgment, 8 July 2019, pp. 367, 379


26 “Ibidem”; ICC, Ntaganda case, Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019, pp. 372-373, 379
27 ICC, Ntaganda case, Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019, pp. 379, 536
28 ICC, Ntaganda case, Pre-Trial Chamber II, Decision on the charges, 9 June 2014, p. 49
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
13

4 The Prosecutor v. Jean-Pierre Bemba Gombo

The Bemba case was the first case of the International Criminal Court whose main focus was the
perpetration of sexual crimes, specifically rapes.29
In the 2016 judgment, the Trial Chamber III considered Bemba guilty as a person effectively
acting as a military commander of the crimes of rape, murder and pillaging. He was sentenced to 18
years of imprisonment.30
It passed almost 14 years since the beginning of the works of the International Criminal Court
before an accused was tried and condemned by the Court for sexual and gender-based crimes for the
first time. Also, it was the first ICC conviction based on the accused person´s command responsibility
for the his/her troops actions.31
However, the verdict and sentence were subject to appeals and, by Majority, the Appeals Chamber
decided to reverse the judgment.32
The Majority “adopted a number of modifications to the standard of appellate review for alleged
errors of fact”.33 Instead of verifying “whether a reasonable Trial Chamber could have been satisfied
beyond a reasonable doubt as to the finding in question”34(that confers a “margin of deference” to the
Trial Chamber´s evaluation of the evidence), the Majority of the Appeals Chamber decided to adopt a
new standard,35 according to which it can “interfere with the factual findings of the first-instance
chamber whenever the failure to interfere may occasion a miscarriage of justice”36 in the occasions it is
“able to identify findings that can reasonably be called into doubt.”37
It is noteworthy that in consonance with the new standard of appellate review, the Majority was
entitled to review the record itself (instead of relying on the assessment of Trial Chamber, as in the usual
standard of review), but decided not to assess all evidence again.38

29
ICC website, Central African Republic, Situation in the Central African Republic, ICC-01/05,
30 ICC, Bemba case, Trial Chamber III, Judgment pursuant to Article 74 of the Statute, 21 March 2016, p. 364; ICC, Bemba
case, Trial Chamber III, Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute, 21 June 2016, pp. 43, 44, 45
31 ICC, Bemba case, Pre-Trial Chamber II, Mr. Bemba’s claim for compensation and damages, Annex E “The Guardian

(2018). Jean-Pierre Bemba 's war crimes conviction overturned, 19 March 2019, pp. 3-5
32 ICC, Bemba case, the Appeals Chamber, Judgment on the appeal of Mr Jean-Pierre Bemba Gombo against Trial Chamber

III’s “Judgment pursuant to Article 74 of the Statute”, 8 June 2018, p. 4; ICC. Media Advisory, Bemba case: Appeals Chamber
to issue appeals judgments on verdict and sentence on 8 June 2018, 18 May 2018
33 ICC, Bemba case, the Appeals Chamber, Dissenting Opinion of Judge Sanji Mmasenono Monageng and Judge Piotr

Hofmański, 21 March 2016, p. 4


34 ICC, Lubanga case, the Appeals Chamber, Judgment on the appeals of the Prosecutor and Mr Thomas Lubanga Dyilo against

the “Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute”, 1 December 2014, p. 13; ICC. Bemba case, the Appeals
Chamber, Judgment on the appeal of Mr Jean-Pierre Bemba Gombo against Trial Chamber III’s “Judgment pursuant to Article
74 of the Statute”, 8 June 2018, p. 13; SÁCOUTO, S. (2018) https://www.ijmonitor.org/2018/06/the-impact-of-the-appeals-
chamber-decision-in-bemba-impunity-for-sexual-and-gender-based-crimes/
35
ICC, Lubanga case, the Appeals Chamber, Judgment on the appeals of the Prosecutor and Mr Thomas Lubanga Dyilo against
the “Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute”, 1 December 2014, p. 13; ICC, Bemba case, the Appeals
Chamber, Judgment on the appeal of Mr Jean-Pierre Bemba Gombo against Trial Chamber III’s “Judgment pursuant to Article
74 of the Statute”, 8 June 2018, p. 13; SÁCOUTO, S. (2018)
36 ICC, Bemba case, the Appeals Chamber, Judgment on the appeal of Mr Jean-Pierre Bemba Gombo against Trial Chamber

III’s “Judgment pursuant to Article 74 of the Statute”, 8 June 2018, p. 13


37 “Ibidem”, p. 15
38 SÁCOUTO, S. (2018) https://www.ijmonitor.org/2018/06/the-impact-of-the-appeals-chamber-decision-in-bemba-impunity-

for-sexual-and-gender-based-crimes/
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
14 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Furthermore, it decided to deviate from the ulterior jurisprudence of the ICC and international
practice in relation to how criminal actions brought later in the proceedings can be considered within
the scope of the charges independently of their explicit confirmation by the Pre-Trial Chamber (PTC).
In fact, instead of understanding that the charges had been formulated in a broad manner, the Majority
considered that the crimes added by the Prosecution after the Confirmation Decision required express
confirmation by the PTC to be within the facts and circumstances described in the charges pursuant to
article 74 (2) of the Statute. In these circumstances, the Majority regarded that these criminal acts were
outside the reach of the case and the related proceedings were discontinued.39
In what concerns the criminal acts that had been specifically confirmed by the Pre-Trial Chamber
in the Confirmation Decision, the Majority of the Appeals Chamber understood that Bemba, as a
commander, did not fail “to take all reasonable and necessary measures within his or her power to
prevent or repress their commission or to submit the matter to the competent authorities for investigation
and prosecution”. As a consequence, one of the elements of command responsibility (article 28(a)(ii) of
the Rome Statute) was missing and Bemba was acquitted of the charges. However, to reach this
conclusion, the Majority did not conduct a thorough analysis. Apart from reviewing only part of the
evidence, it did not verify if the measures that Bemba had adopted were adequate to the nature of the
crimes and sufficed to stop or avoid them.40
Consequently, upon deploying a novel standard of appellate review, the Majority of the Appeals
Court regarded that the criminal acts included in the case after Confirmation Decision were not within
the scope of charges and discontinued the related proceedings. Further, after a partial and limited
examination, it determined that Bemba had adopted all reasonable and necessary measures within his
power to prevent or repress the commission of the crimes and, for this reason, did not have command
responsibility. As a result, the Majority considered that he could not be rendered guilty and overruled
the conviction.
After the Bemba case, the Prosecutor released a statement affirming that it was unfortunate that
both the change from the Court's previous jurisprudence on the standard of appellate review (and its
substitution with uncertain standards), and the shift about the level of detail demanded from the
Prosecution to bring charges in mass criminality cases had occurred “in the most serious case of sexual
and gender-based violence decided upon by this Court to date”. In the same opportunity, the Prosecutor
expressed that she hoped to that the novel features of the Majority's ruling would be redirected over
time, including “a return to those standards of appellate review”.”41
As already state, Ntaganda was found guilty on 18 counts, inclusive of rape and sexual slavery as
both crimes against humanity, as an indirect co-perpetrator under Article 25(3)(a) of the Statute, and as
war crimes, as an indirect co-perpetrator under Article 25(3)(a) of the Statute; and against children under

39
ICC, Bemba case, the Appeals Chamber, Judgment on the appeal of Mr Jean-Pierre Bemba Gombo against Trial Chamber
III’s “Judgment pursuant to Article 74 of the Statute”, 8 June 2018, pp. 41, 79; ICC website, Statement of ICC Prosecutor,
Fatou Bensouda, on the recent judgment of the ICC Appeals Chamber acquitting Mr Jean-Pierre Bemba 2018
40 ICC, Bemba case, the Appeals Chamber, Judgment on the appeal of Mr Jean-Pierre Bemba Gombo against Trial Chamber

III’s “Judgment pursuant to Article 74 of the Statute”, 8 June 2018, p. 14; SÁCOUTO, S. (2018)
https://www.ijmonitor.org/2018/06/the-impact-of-the-appeals-chamber-decision-in-bemba-impunity-for-sexual-and-gender-
based-crimes/
41 ICC website, Statement of ICC Prosecutor, Fatou Bensouda, on the recent judgment of the ICC Appeals Chamber acquitting

Mr Jean-Pierre Bemba 2018


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
15

the age of 15 years incorporated into the UPC/FPLC. He was sentenced to 30 years in prison, the longest
sentence ever imposed by the Court, within the terms of Article 77(1)(a) of the Statute.42
On 30 March 2021, the Appeals Chamber confirmed, the verdict by Majority and the sentence
unanimously. The AC went back to the ICC´s usual standard of appellate review by stating that its role
was “to ensure that, in arriving at its conclusion, the trial chamber correctly appreciated and applied the
standard of beyond reasonable doubt”.43 It continued saying that it would not disturb a Trial Chamber’s
factual finding solely because it would have come to a different conclusion.44
Hence, the criticism and disappointment over the Bemba case led to the restatement of the usual
standard of appellate review by the Appeals Chamber.45
In fact, the Bemba case exerted a negative impact on the victims and had a detrimental effect on
the ICC ´s reputation. It tarnished the Court´s reliability, by giving rise to the question if the Court was
not entering final sentences against defendants based on SGBCs as a consequence of the its inefficiency
to translate into practical action the Statute's groundbreaking provisions on sexual and gender-based
crimes, or because it was promoting selective justice.
However, the Ntaganda case proved these doubts wrong. The confirmation of Ntaganda´s
conviction for the crimes rape and sexual slavery (among others) by the Appeals Chamber was important
in the International Criminal Court´s history. After almost 19 years of activities, it finally managed to
issue a final decision holding a defendant responsible for the crimes of rape and sexual slavery, thus,
translating into its practice the innovative dispositions of the Statute on SGBCs. The ICC demonstrated
its capacity to prosecute and punish this kind of crimes, living up to its mandate as established in the
Rome Statute.
The outcome of the Ntaganda case meant accountability, justice and reparation to victims of
sexual violence. Also, this long-awaited final conviction for rape and sexual slavery can contribute to
bring to an end the underlying impunity of sexual and gender-based crimes and have a deterrent effect
by inhibiting their practice in future conflicts.

5 Conclusion

The Ntaganda case consists in the corollary of a long, evolving process along which the
International Criminal Court advanced in the prosecution of sexual and gender-based crimes.
In the Lubanga case, the scope of the charges was limited to the crimes of conscripting and
enlisting children under the age of fifteen years into the UPC/ FPLC and using them to participate

42 ICC, The Prosecutor v. Bosco Ntaganda, Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019, pp. 1-539; ICC website, Press Release,
ICC Trial Chamber VI declares Bosco Ntaganda guilty of war crimes and crimes against humanity, 2019; United Nations,
ReliefWeb, International Criminal Court Upholds Landmark Conviction of Warlord for Atrocities Committed in the
Democratic Republic of the Congo - Democratic Republic of the Congo; ICC website, Press Release, ICC Trial Chamber VI
declares Bosco Ntaganda guilty of war crimes and crimes against humanity, 2019; Rome Statute, Art. 77(1)(a)
43 ICC. The Prosecutor v. Ntaganda, the Appeals Chamber, Judgment on the appeals of Mr Bosco Ntaganda and the Prosecutor

against the decision of Trial Chamber VI of 8 July 2019 entitled ‘Judgment’, 30 March 2021, p. 20
44 ICC. The Prosecutor v. Ntaganda, the Appeals Chamber, Judgment on the appeals of Mr Bosco Ntaganda and the Prosecutor

against the decision of Trial Chamber VI of 8 July 2019 entitled ‘Judgment’, 30 March 2021, p. 22
45 “Ibidem”
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
16 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

actively in hostilities. However, the ICC learned from its first case that both victims and the international
community were yearning for sexual and gender-based crimes to be included in the charges.
In the Katanga case, the defendant was charged with the crimes of rape and sexual slavery,
circumstance that represented a progress in the trial of SGBCs by the Court. Nevertheless, Katanga
could not be held responsible for these crimes since the TC II considered that they were not part of the
common purpose of the militia. In spite of that, the case led the Court to apply a new approach in the
Ntaganda case and consider a crime- including a SGBC- to be part of a militia´s common plan if its
occurrence was foreseeable with virtual certainty in the unfolding of the events.46
In the Bemba case, the accused was charged and found guilty of rape, but the Appeals Chamber,
by Majority, reversed the conviction. The decision of the Majority to acquit Bemba was heavily
criticized. It was considered grounded on unsolid, unjustified basis which warrantied neither a deviation
from the Court´s standard of appellate review nor the requirement of a higher threshold of specificity in
the charging process. As a result, the ICC was aware that it should no longer recur to the method it had
employed in the judgment of these appeals. In the Ntaganda case, the Appeals Chamber had the chance
to go back to the usual standard of appellate review. By resorting to the commonly applied standard, the
Appeals Chamber confirmed the Trial Chamber VI´s finding that Ntaganda was guilty of the crimes of
rape and sexual slavery.
Therefore, each of the cases constituted a further step, allowing the ICC to progress in its handling
of sexual and gender-based crimes. Undoubtedly, the first cases played a crucial role. They served as
empirical catalysts for the ICC training and evolution, furnishing it with practical experience and
knowledge on how to address these crimes. As a consequence, they enabled the Court to lay the correct
foundations to effectively try sexual violence.
The evolution process of the ICC´s approach towards sexual and gender-based crimes reached its
apex in the Ntaganda case. The defendants´ final conviction for rape and sexual slavery was possible
due to the lessons learnt by the Court along the Lubanga, Katanga and Bemba cases. Undeniably, the
three initial cases were instrumental for the successful outcome of the Ntaganda case.
It seems that the International Criminal Court is in the correct path with respect to the prosecution
of sexual and gender-based crimes. Ntaganda´s final conviction restored the Court´s reputation and
trustworthiness regarding their trial and punishment. However, the Court ought to maintain its newly
achieved course of action in future cases in order to further the implementation of its central objective:
that sexual and gender-based crimes, being among the most serious crimes for the international
community, do not remain unpunished and are effectively prosecuted.47

46 ICC, Katanga case, Trial Chamber II, Judgment pursuant to article 74 of the Statute, 7 March 2014, p. 542; ICC website,
Statement of ICC Prosecutor, Fatou Bensouda, on the recent judgment of the ICC Appeals Chamber acquitting Mr Jean-Pierre
Bemba 2018
47 Rome Statute, preamble
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
17

Bibliography

AMARAL, Ana Silvia Sanches do. Sexual and gender-based crimes in the International Criminal Court,
Universidad del País Vasco, UPV-EHU, San Sebastián, 2020, pp. 1-605.
DAMASKA, Mirjan R., “The International Criminal Court Between Aspiration and Achievement”, UCLA Journal
of International Law and Foreign Affairs, 2009, pp. 1-36. https://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/1572
(23 November 2022)
INDER, Brigid. Making a Statement, a Review of Charges and Prosecutions for Gender-based crimes before the
International Criminal Court, 2008, pp. 1-37. Retrieved from
http://www.iccwomen.org/publications/articles/docs/MakingAStatement-WebFinal.pdf (23 November 2022)
International Criminal Court´s Documents
International Criminal Court, The Prosecutor v. Bosco Ntaganda, ICC-01/04-02/06
Pre-Trial Chamber II, Conclusions écrites de la Défense de Bosco Ntaganda suite à l’Audience de confirmation
des charges, 14 April 2014, pp. 1-136
Pre-Trial Chamber II, Decision Pursuant to Article 61(7)(a) and (b) of the Rome Statute on the Charges of the
Prosecutor Against Bosco Ntaganda, 9 June 2014, pp. 1-98
Pre-trial Chamber I, Prosecution’s Submission of Document Containing the Charges and the List of Evidence,
Annex A, 10 January 2014, pp. 1-60
The Appeals Chamber, Judgment on the appeals of Mr Bosco Ntaganda and the Prosecutor against the decision of
Trial Chamber VI of 8 July 2019 entitled ‘Judgment’, 30 March 2021, pp. 1-426
The Appeals Chamber, Judgment on the appeal of Mr Bosco Ntaganda against the decision of Trial Chamber VI
of 7 November 2019 entitled ‘Sentencing judgment, 30 March 2021, pp.1-116
Trial Chamber VI, Judgment, 8 July 2019, pp. 1-539
Trial Chamber VI, Sentencing Judgment, 7 November 2019, pp. 1-117
International Criminal Court, the Prosecutor v. Germain Katanga, Case No. ICC-01/04-01/07
Trial Chamber II, Judgment pursuant to article 74 of the Statute, 7 March 2014, pp. 1-660
International Criminal Court, The Prosecutor v. Jean-Pierre Bemba Gombo, Case No. ICC-01/05-01/08
Pre-Trial Chamber II, Second Public Redacted Version of "Mr. Bemba’s claim for compensation and damages",
Annex E, “The Guardian (2018). Jean-Pierre Bemba 's war crimes conviction overturned”, 19 March 2019, pp. 1-
93
The Appeals Chamber, Dissenting Opinion of Judge Sanji Mmasenono Monageng and Judge Piotr Hofmański, 21
March 2017, pp. 1-269
The Appeals Chamber, Judgment on the appeal of Mr Jean-Pierre Bemba Gombo against Trial Chamber III’s
“Judgment pursuant to Article 74 of the Statute”, 08 June 2018, pp. 1-80
Trial Chamber III, Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute, 21 June 2016, pp. 1-47,
Trial Chamber III, Judgment pursuant to Article 74 of the Statute, 21 March 2016, pp. 1-364
International Criminal Court, The Prosecutor v. Thomas Dyilo Lubanga, Case No. ICC-01/04-01/06
The Appeals Chamber, Judgment on the appeal of Mr Thomas Lubanga Dyilo against his conviction, 1
December 2014, pp. 1-193
The Appeals Chamber, Judgment on the appeals of the Prosecutor and Mr Thomas Lubanga Dyilo against the
“Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute”, 1 December 2014, pp. 1-50;
Pre-Trial Chamber I, Document Containing the Charges, Article 61(3) (a), Annex 2 , pp. 1-24, 28 August 2006;
Trial Chamber I, Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute, 10 July 2012, pp. 1-52;
Trial Chamber I, Judgment pursuant to Article 74 of the Statute, 14 March 2012, pp. 1-593;
Trial Chamber I, Prosecution’s Application for Leave to Appeal the “Decision giving notice to the parties and
participants that the legal characterisation of the facts may be subject to change in accordance with Regulation
55(2) of the Regulations of the Court", 12 August 2019, pp. 1-12
Trial Chamber I, Prosecution's Further Observations Regarding the Legal Representatives' Joint Request Made
Pursuant to Regulation 55, 12 June 2009, pp. 1-19
International Criminal Court, the Office of the Prosecutor, Fatou Bensouda. Launch of the Gender Report Card on
the International Criminal Court 2011 (13 December 2011). Retrieved from https://www.icc-
cpi.int/NR/rdonlyres/BCB9AB3F-4684-4EC3-A677-73E8E443148C/284154/111213StatementFB.pdf (23
February 2022)
International Criminal Court, the Office of the Prosecutor. Report on the activities performed during the first three
years (June 2003 – June 2006), 12 September 2006. The Hague. Retrieved from https://www.icc-
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
18 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

cpi.int/nr/rdonlyres/d76a5d89-fb64-47a9-9821-725747378ab2/143680/otp_3yearreport20060914_english.pdf
(23 November 2022)
International Criminal Court website
Case Information Sheet, Situation in the Democratic Republic of the Congo, The Prosecutor v. Thomas Lubanga
Dyilo, ICC-01/04-01/06. ICC-PIDS-CIS-DRC-01-016/17_Eng, Updated: 15 December 2017 Retrieved from
https://www.icc-cpi.int/CaseInformationSheets/LubangaEng.pdf (23 November 2022)
Central African Republic, Situation in the Central African Republic, ICC-01/05. Retrieved from https://www.icc-
cpi.int/car (23 November 2022)
Media Advisory, Bemba case: Appeals Chamber to issue appeals judgments on verdict and sentence on 8 June
2018. ICC-CPI-20180518-MA225 (18 May 2018) Retrieved from https://www.icc-
cpi.int/Pages/item.aspx?name=ma225 (23 November 2022)
Press Release, ICC Trial Chamber VI declares Bosco Ntaganda guilty of war crimes and crimes against humanity,
ICC-CPI-20190708-PR1466 (8 July 2019). Retrieved from https://www.icc-
cpi.int/Pages/item.aspx?name=pr1466 (23 November 2022)
Statement of ICC Prosecutor, Fatou Bensouda, on the recent judgment of the ICC Appeals Chamber acquitting Mr
Jean-Pierre Bemba (13 June 2018). Retrieved from https://www.icc-cpi.int/Pages/item.aspx?name=180613-OTP-
stat (23 November 2022)
DE VOS, Christian, KENDALL, Sara, & STAHN, Carsten (eds.) (2015). Contested Justice: The Politics and
Practice of International Criminal Court Intervention. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 171-197
PIA-COMELLA, Jelena, Talking points for panel presentation, Prosecuting gender-based crimes before the ICC,
New York: CICC, 2013, pp. 1-6
Rome Statute of the International Criminal Court
SÁCOUTO, Susana, “The Impact of the Appeals Chamber Decision in Bemba: Impunity for Sexual and Gender-
Based Crimes?”, Commentary from Jean-Pierre Bemba Gombo at the International Criminal Court”. International
Justice Monitor, 2018 Retrieved from https://www.ijmonitor.org/2018/06/the-impact-of-the-appeals-chamber-
decision-in-bemba-impunity-for-sexual-and-gender-based-crimes/ (23 November 2022)
United Nations, Office for the Coordination of Humanitarian Affairs, ReliefWeb, DR Congo International
Criminal Court Upholds Landmark Conviction of Warlord for Atrocities Committed in the Democratic Republic
of the Congo, 30 March 2021 Retrieved from https://reliefweb.int/report/democratic-republic-
congo/international-criminal-court-upholds-landmark-conviction-warlord (23 February 2022)
Women’s Initiatives for Gender Justice
Statement by the Women’s Initiatives for Gender Justice on the Arrest of Germain Katanga, 2007. Retrieved
from http://iccwomen.org/documents/ArrestKatanga_Statement_2007.pdf (23 November 2022)

Recebido em: 04/02/2023


Aprovado em: 29/08/2023
19
Functional anatomy of the
“compliance officer” and his criminal
liability from the Spanish Approach:
The complexity arising from the
specific Delegated Tasks

Anatomia funcional do "compliance officer" e sua


responsabilidade penal segundo a abordagem espanhola: A
complexidade decorrente da delegação de funções específicas

Rafael Aguilera Gordillo


Academic visitor at University of Oxford. Co-director of the
postgraduate course in Criminal Liability of Legal Entities, Forensic and
Compliance Systems at University of Valladolid. Director of the postgraduate
course of Specialization in Compliance at Loyola University.
raguilera@uloyola.es

Jesica Hita Ruiz


Senior Compliance Specialist at Clece S.A. (ACS Group) and former
Chief Auditor of Compliance Management Systems. Compliance officer
accredited by the International Federation of Compliance Association (IFCA)
and compliance lecturer in several postgraduate courses.
jesica.h.r@gmail.com

Abstract: In the academic field, studies are usually presented that contemplate a functional
analysis and the eventual criminal liability of the compliance officer as if it were a body that has
the same attributions and performs similar functions in any type of organization. However, the
corporate reality is much more complex and diverse. The bodies responsible for exercising the
"compliance function" may be configured differently and perform very different functions
depending on the organization. Moreover, within the same organization there may be multiple
bodies that perform more specific functions directly involved in what we generically call
"compliance". These circumstances have been enhanced by the publication of increasingly
specific standards. This paper analyzes aspects of critical importance for a better understanding
of the different realities that this type of bodies may present, such as the configuration they may
have, their competences, hierarchical structure, delegation system, etc. (as well as the most
common defects) to then examine possible scenarios that may trigger or originate the criminal
liability of these professionals for omission of their duties. Although this study takes into account
international technical standards (compliance management systems), the legal-criminal approach
will be eminently Spanish, as we consider it to be of great value due to the interrelation, imprinting
and mutual feedback that exists with a large majority of Latin American countries and for the
international context.

Keywords: Bodies with compliance function; criminal liability of compliance officers; criminal-
legal guarantor position; delegation mechanism; whistle-blower channel
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
20 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Resumo: No âmbito acadêmico, normalmente são apresentados estudos que contemplam uma
análise funcional e a eventual responsabilização penal do compliance officer como se fosse um
órgão que possui as mesmas atribuições e desempenha funções semelhantes em qualquer tipo de
organização. No entanto, a realidade empresarial é muito mais complexa e diversificada. Os
órgãos responsáveis pelo exercício da "função de compliance" podem estar configurados de forma
diversa e desempenhar funções muito diferentes consoante a organização. Além disso, dentro de
uma mesma organização podem existir múltiplos órgãos que desempenham funções mais
específicas diretamente envolvidas naquilo que genericamente chamamos "compliance". Estas
circunstâncias têm sido potencializadas pela publicação de normas cada vez mais específicas. O
presente trabalho analisa aspectos de importância crítica para uma melhor compreensão das
diferentes realidades que este tipo de órgãos pode apresentar, tais como a configuração que podem
ter, as suas competências, estrutura hierárquica, sistema de delegação, etc. (bem como os defeitos
mais comuns) para, após, examinar possíveis cenários que podem desencadear ou originar a
responsabilidade penal destes profissionais por omissão dos seus deveres. Embora este estudo
tenha em conta as normas técnicas internacionais (sistemas de gestão da conformidade), a
abordagem jurídico-penal será eminentemente espanhola, uma vez que a consideramos de grande
valor devido à interrelação, impressão e feedback mútuo que existe com a grande maioria dos
países latino-americanos e para o contexto internacional.

Palavras-chave: Organismos com funções de compliance; responsabilidade penal dos


compliance officers; posição jurídico-penal de garante; mecanismo de delegação; canal de
denúncia.

1. Introduction: the variety present in today's corporate scenarios in the corporate world

"Compliance officer", "compliance manager", "chief compliance officer", "ethics and compliance
committee" or "compliance body" are some of the most common designations used at the legal level for
the point out the individuals who, acting individually or as part of a collegiate body, perform compliance
and irregularity prevention functions within organizations. It might be thought that all of them are, in
essence, a univocal figure with identical functions in all organizations. However, although these types
of bodies may have quite similar functions and compositions, they can also follow very different
structures and perform very different tasks depending on the company being analyzed. In other words,
contrary to what is usually analyzed in criminal doctrine, the compliance function in a company may
have different roles and functions that are both disparate and complementary in the case of division and
specialization of tasks. Among other factors, the commercial and business development of
standardization in compliance has also contributed greatly to increase the specialization of these
professionals given the specificity of the standards developed by certain committees within the
International Organization for Standardization (ISO)1.
The current complex corporate reality not only shows us that there may be bodies with different
compliance functions depending on the corporation we are analyzing, but also that within the same

1Among other standards developed by these committees, the following may be noted: ISO 37001:2016 - Anti-bribery
management systems; ISO 37301:2021 - Compliance management systems; ISO 37002:2021 - Whistleblowing management
system, etc. It should be noted that ISO/AWI 37003 Fraud Control Management Systems and ISO/DTS 37008 - Internal
investigations of organizations are pending to be published. In the Spanish context, as a result of the work carried out within
the Spanish Association for Standardization (UNE), we can mention the standards on management systems UNE 19601:2017
- Criminal compliance management system; UNE 19602:2019 - Tax compliance management systems.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
21

organization there are bodies with different compliance functions (e.g.: subjects dealing with risk
analysis and review, responsible for monitoring the compliance management system or exclusively
dedicated to the management of the whistleblower channel system and/or the development of internal
investigations, etc.). And all this, with full respect for the essence of the term "compliance function"
coined globally by the community and international standards on compliance management systems.
As we have pointed out, in the examination of the compliance officer that has been carried out by
the criminal doctrine, there has been a predominant focus or vision of these professionals as a subject
with identical tasks, an aspect that does not correspond to the business reality and neither to the diversity
of options or possibilities offered by compliance management systems. For this reason, this article will
analyze the figure or body with compliance functions and its possible criminal liability, taking into
account this complex and diverse business reality2.
To this end, we will begin the analysis of this type of body by contrasting it with what is
contemplated in the famous standardized technical standards on compliance management systems, and
then address possible specific scenarios of both deficiencies or habitual errors and the criminal liability
of these professionals for failure to perform their duties, which will depend on the specific functions or
duties that the compliance officer has assumed in each organization. Although this study takes into
account international technical standards, the legal-criminal approach will be eminently Spanish, as we
consider it to be of great value due to the interrelation, imprinting and mutual feedback that exists with
a large majority of Latin American countries.

2. The paradox about the basis of composition.

At the legislative level in Spain, the concept is substantially introduced through the Criminal Code
in its 2015 reform3, where through the regulation of prevention and compliance programs or models,
reference is made to the existence of a "body of the legal person" as an essential requirement 4. On the
other hand, the already known Circular 1/2016 of the State Attorney General's Office5 also pointed

2 We believe that this article offers the reader a dual vision that enriches the analysis of the issue as it is carried out by two
authors specialized in compliance, but from different fields: on the one hand, a researcher with a doctorate in law specializing
in criminal law and, on the other hand, a professional in corporate compliance, who has extensive practical experience in large
companies and multinationals (she has been an auditor of compliance management systems for various companies operating in
different countries and is currently a compliance officer in a large corporation). Also, for this article, many substantial aspects
of the study on this issue have been extracted from the Compliance Advisory LAB, a space dedicated to research in the field
of criminal liability of legal persons and compliance, which aims to promote the interrelationship between academia and
business. The article has been completed in the framework of a research stay as academic visitor of prof. Rafael Aguilera at the
CSLS of the Faculty of Law of the University of Oxford, during the trinity term (2023). Proyectos generación del conocimiento
2022.
3 It should be borne in mind that prior to the creation of the figure of the compliance officer in the criminal field, there were

already other areas dedicated to compliance with professionals who performed "internal/regulatory control" functions in
relation to sectors such as banking, prevention of money laundering and terrorist financing, pharmaceuticals, etc.
4
This specific regulation is contained in the article 31 bis 2.2º of Spanish Criminal Code. The Spanish Criminal Code was
approved by Oganic Law 10/1995, of November 23, 1995. In: Boletín Oficial de Estado núm. 281, de 24/11/1995. Available
at: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1995-25444 . Access on: 14th June 2023.
5 Circular 1/2016 of the State Attorney General's Office -Spanish- on the criminal liability of legal persons under the reform

operated by the organic law 1/2015 (which is a document addressed to all prosecutors where the criteria to be followed in
matters of corporate criminal liability, compliance bodies and compliance systems are contemplated). Although this document
refers to the compliance officer in many sections, it devotes a specific section to this figure: 5.4. The compliance officer. In:
Doctrina de la Fiscalía General del Estado, FIS-C-2016-00001, 22/01/2016. Available at:
https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=FIS-C-2016-00001. Access on: 16th June 2023.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
22 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

throughout its wording, to the necessary creation within the company of a control body, subsequently
dedicating a complete section to the figure of the compliance officer.
With this starting point, an important debate began in Spain on the body or bodies with
compliance functions, which continues to this day. On one side are those who adhere to an Italian
position and, on the other, those who defend a more flexible position. The former argue that, since the
Spanish Criminal Code copied significant aspects of Italian Legislative Decree 231/2001 regarding the
attribution and release of liability of the legal entity or person6, its structures and systems of corporate
governance should also be copied, where there is a very clear approach of organic division between the
tasks of supervision and enforcement. From this point of view, in the field of compliance we would find
two main bodies: a) the "supervisory and control body", which must be limited to purely supervisory
tasks, and b) the "enforcement body", which is responsible for meeting the requirements of the
"compliance program" (referred to in paragraph 5 of Art. 31 bis of the Spanish Criminal Code),
performing executive functions such as, for example, the reception of internal complaints. The
supervisory body of the compliance program cannot issue guidelines as it does not have executive
powers, but must issue recommendations to the governing body and, depending on the case, it may
coincide with the audit committee, but it must be clear that the pre-established functions derive from
different sources (Criminal Code and Spanish Capital Companies Act7). In this regard, it is possible that
this supervisory body depends on the internal auditor, since it enjoys great independence (and
functionally has analogous characteristics, it supervises without executing). The "executing body", on
the other hand, performs tasks that are clearly executive in nature, as it ensures that the compliance
program remains in line with what was set at the time of approval and is aligned with the requirements
of the Criminal Code.
On the other side, there are those who oppose this thesis and claim that, while in the Italian
corporate context the governance system is traditionally dualistic (where one body has executive
functions and the other, the audit body, predominantly supervisory), in Spain there is a clearly monistic
system (although in certain highly regulated areas or particularly sensitive sectors the creation of an
audit body is mandatory). Furthermore, they add that there are doubts as to whether, given that some
precepts have been copied, we are obliged to copy the Italian corporate governance structures as well.
And, if we follow such a dynamic, we should also be obliged to copy the very nature of the sanction
imposed on legal persons in Italy (which is administrative and not criminal) or any other requirement
associated with the translation not only of the literal meaning of the precept, but also of everything that
lies behind it in the Italian legal sphere (down to the last implications). This thesis seems to be the one
that is gaining more strength, since it is based on the idea that the central figure in charge of supervising
the operation and compliance of the crime prevention program is the compliance officer. The Circular
of the State Attorney General's Office seems to take the latter thesis when it identifies the compliance

6 Although in Spain the liability of a legal person has a criminal or penal nature, while in Italy it has an administrative nature.
The aforementioned Legislative Decree 231 of June 8 of the year 2001 was published on the Gazzetta Ufficiale. In: Gazzetta
Ufficiale della Repubblica Italiana n.º 140 (19th june 2001), p. 4. http://www.camera.it/parlam/leggi/deleghe/01231dl.htm.
Access on: 16th June 2023.
7 Real Decreto Legislativo 1/2010, de 2 de julio, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley de Sociedades de Capital.

In: Boletín Oficial de Estado núm. 161, de 03/07/2010. Available at: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2010-
10544 . Access on: 16th June 2023.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
23

officer with the task of "supervising the prevention model" and with other tasks with the reception of
warnings through the complaints channel8.
Thus, a panorama began to emerge in which there is a certain interpretative diversity with
repercussions on the structures of companies and other types of organizations. In any case, it is clear
that it is necessary to designate or formally appoint a body to deal with the "compliance function". The
organization, based on the analysis of its size, operational sector, regulation and internal organization,
among other key elements, will choose whether the composition of this body with the compliance
function is individual (a compliance officer) or collegiate (and, in this case, the number of members).
Likewise, the aforementioned Circular 1/2016 itself foreshadowed what would end up being the current
panorama regarding compliance professionals, favoring the path towards decentralization, functional
cooperation and the existence of delegation of functions when it indicated: "this does not imply that this
body must perform by itself all the tasks that make up the regulatory compliance function, which may
be performed by other bodies or units other than the specific regulatory compliance body…"9.
In this way, vertical and horizontal lines of connection arise towards other corporate bodies such
as risk committees, internal control bodies or other units for the prevention, management and control of
the different types of risks by subject matter. In addition, there is the possible existence of external
experts from outside the organization, either with regular or merely occasional participation, as well as
the possible composition of the compliance function through the collegiate formula with disparate roles
framed in different fields of action and with disparate optional or functional levels (generally specifically
attributed to supervision, advice, internal operational, among others, depending on the degree of
assignment and delegation).

2.1 Regulatory landscape linked to the evolution of the compliance function: some key
aspects.

In the field of soft law, international standards on Compliance Systems Management have also
contributed to and promoted the development of the terminology used in this area. In this way, they
fulfill part of their purpose of establishing, harmonizing, homogenizing and specifying or completing
certain issues, in this case, those related to the practical application and development of Compliance and
its structures.
The original non-certifiable standard, now repealed ISO 19600 - Compliance Management
Systems, understood "compliance function" as the person/s with responsibility for "compliance

8 An example of this is provided in the Circular 1/2016 of the State Attorney General's Office when, in the section aimed at
addressing the figure of the compliance officer, it states (pp. 46-50): "The second condition of section 2 of art. 31 bis attributes
the supervision of the crime prevention model implemented to a specific body of the legal person with autonomous powers of
initiative and control, which must be specifically created to assume this function, except in those entities in which, by law, it is
already provided for to verify the effectiveness of the internal risk controls of the legal person, among which is crime
prevention." [Translation of the following extract: La segunda condición del apartado 2 del art. 31 bis atribuye la supervisión
del modelo de prevención de delitos implantado a un órgano específico de la persona jurídica con poderes autónomos de
iniciativa y de control, que deberá ser creado específicamente para asumir esta función, salvo en aquellas entidades en las que,
por ley, ya se encuentra previsto para verificar la eficacia de los controles internos de riesgos de la persona jurídica, entre los
que se encuentra la prevención de delitos].
9 [Translation of the following extract: “Ello no implica que este órgano deba desempeñar por sí todas las tareas que configuran

la función de cumplimiento normativo, que pueden ser realizadas por otros órganos o unidades distintos al específico de
cumplimiento normativo…”].
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
24 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

management", including, as a note or recommendation, the preference for the designation of a single
individual to whom all such responsibilities are assigned.10.
In 2017, the current certifiable standards UNE-ISO 37001- Anti-Bribery Management Systems
and UNE 19601 Criminal Compliance Management Systems emerged. The first standard provides a
brief description of the so-called "Anti-Bribery Compliance Function"11 , indicating that these are those
persons with responsibility and authority for the operation of the Anti-Bribery Management System.
indicating that it refers to those persons with responsibility and authority for the operation of the Anti-
Bribery Management System. On the other hand, UNE 19601 deepens in the definition of "Criminal
Compliance Body"12, in line with what has already been exposed and anticipated in the Circular of the
Prosecutor's Office 1/2016, being of special interest the clarifying notes regarding: (i) the pre-existence
of bodies whose supervision and control function is legally entrusted to a certain control body; (ii) the
possible creation of an ad-hoc body; (iii) the casuistry of legal persons of small dimensions13.
The latest developments come from the current certifiable standard UNE-ISO Compliance
Management Systems, approved in 2021, where the concept of "body" is discarded and replaced again
by "compliance function", returning to the initial transversal and global definition already included in
the original 19600 standard14. This terminological reconsideration makes perfect sense by combining
the breadth and generality granted by the standard with the possibility of accommodating any type of
structure (unipersonal, collegiate) and composition, in line with the growing tendency to implement and
develop (as far as possible) a Compliance of an integrating, homogeneous and systematic nature. In
addition, the term offers a response to the current casuistry, facing the emergence of new positions and
related legal figures as, for example, in terms of management of whistleblowing channels, through the
"whistleblowing and irregularities management function"15 and / or the need to identify the person
responsible for the internal reporting system as stated in Article 8 of Law 2/2023, of 20 February,
regulating the protection of persons who report regulatory infringements and the fight against
corruption16, derived from the EU Directive 2019/1937 of 23 October 2019 on the protection of persons
who report breaches of Union law, whose specialty always requires training, qualification and specific
positioning17.
In relation to other areas or fields of compliance, for instance, in the area of Antitrust, the Guide
on Compliance Programs prepared by the Spanish National Commission for Markets and Competition

10 UNE- ISO 19600 - Compliance Management Systems. Guidelines. - Point 3.6.- Definition of compliance function.
11 UNE-ISO 37001 - Anti-bribery Management Systems. Requirements with guidance for its use - Point 3.8.- Definition of
anti-bribery compliance function.
12 UNE -19601 - Sistemas de Gestión de Compliance Penal. Requisitos con orientación para su uso - Point 3.21.- Órgano de

Compliance Penal [Criminal Compliance Body].


13 In addition, during 2019, the current and certifiable UNE 19602 standard for Tax Compliance Management Systems was

also introduced, with the same definition, except for the substitution of criminal matters for tax matters. On the issue at hand,
the following point is particularly relevant its point 3.23.- Órgano de Compliance Tributario [Tax Compliance Body].
14
UNE-ISO 37301- Compliance Management Systems. Requirements with guidance for its use - Point 3.23.- Compliance
function.
15 UNE-ISO 37002 - Whistleblowing management systems. Directrices: - Point 3.11.- Whistleblowing management function.
16 Ley 2/2023, de 20 de febrero, reguladora de la protección de las personas que informen sobre infracciones normativas y de

lucha contra la corrupción. In: Boletín Oficial de Estado núm. 44, de 21/02/2023. Available at:
https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2023-4513 Access on: 16th June 2023.
17 Directive (EU) 2019/1937 of the European Parliament and of the Council of 23 October 2019 on the protection of persons

who report breaches of Union law. In: Official Journal of the European Union, L 305/17, 26.11.2019.Available at: https://eur-
lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A32019L1937 Access on: 16th June 2023.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
25

(CNMC) in 202018, establishes the need to designate a "direct responsible" in charge of the design and
execution of the program, equating and finally designating this figure to the "compliance officer", thus
enabling the possibility of merging these roles. Likewise, without prejudice to the fact that this issue
deserves a specific comparative study, it is very appropriate to highlight the Compliance Program
Evaluation Guide issued by the United States Department of Justice in 2020 and updated in March
202319, which again refers to the concept of "function" when establishing the requirements for assessing
its effectiveness, Among these, the structure and hierarchy, roles and functions, personnel profile,
experience and qualifications, training, resources, autonomy and independence, as well as the possible
outsourcing of functions and control over them are analyzed.
Finally, the so-called Libro Blanco Sobre la Función de Compliance20 rightly exposes, in a clear
approach to the reality of the structure of the "compliance function" within organizations, the variety of
options and typologies that may occur in the performance of Compliance, always taking into account,
based on the principle of proportionality, the structure of the organization itself and the appropriate
provision of resources; from a unipersonal structure to collegiate bodies, whether in public
organizations, private for-profit or not-for-profit entities, but making it clear in any case, that it will
always be considered as an internal function of the organization itself, regardless of whether it can count
on the support and advice of external experts in the field, and without losing the control and supervision
function that is intrinsic to it.
Therefore, without prejudice to public law regulations of a criminal nature (which will be
discussed in more detail below), this regulatory landscape has boosted a multiplying and/or amplifying
effect of roles and obligations compared to the traditional and "simple" figure of compliance limited to
the exclusively criminal sphere, making it necessary to evolve towards much more complex apparatuses
and structures in which roles, positions, as well as positions internal and external to the organization are
intermingled, or whose ultimate aim tends towards the creation of "all-powerful or omnipotent
compliance figures". Currently, to speak of the "compliance function" implies the permutation of the
traditional concept towards new structures, frameworks and increasingly complex apparatus, where
order and hierarchy must be a priority, both when designing and approving its composition and when
defining its roles and responsibilities so that the required basic principles of autonomy and independence
can be guaranteed. These factors have led to a two-speed transition between business practice or reality
and the theoretical, dogmatic and even legal sphere, offering conflicting or outdated responses. It is
therefore essential, in order to determine the role and responsibility of each possible member of the

18 CNMC- Guidance on compliance programs in relation to antitrust rules of June 10, 2022. Section D - Independence and
autonomy of the person responsible for the design and control of compliance policies [CNMC- Guía sobre los programas de
cumplimiento en relación con las normas de defensa de la competencia de fecha 10 de Junio 2022. Apartado D - Independencia
y autonomía del responsable de diseño y control de las políticas de cumplimiento]. In: CMNC website. Available
at:https://www.cnmc.es/sites/default/files/editor_contenidos/Competencia/Normativas_guias/202006_Guia_Compliance_FIN
AL.pdf Access on: 16th June 2023.
19
Evaluation of Corporate Compliance Programs (Updated March 2023)- U.S. Department of Justice Criminal Division-
Question II- I. Is the Corporation’s Compliance Program Adequately Resourced and Empowered to Function Effectively?- B-
Autonomy and Resources-. In: U.S. Department of Justice Criminal Division. Available at:
https://www.justice.gov/opa/speech/file/1571911/download Access on: 16th June 2023.
20 Section or item 1 Estructuras de la función de compliance [Structures of the compliance function.], in MAZA MARTIN,

José Manuel; miembros de la Junta Directiva de la Asociación Española de Compliance y diversas instituciones. Libro Blanco
sobre la Función de Compliance [White Paper on the Compliance Function], marzo, 2017. In: Official website of the Spanish
Compliance Association (ASCOM). Available at: https://www.asociacioncompliance.com/wp-content/uploads/2017/08/Libro-
Blanco-Compliance-ASCOM.pdfAccess on: 16th June 2023.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
26 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

"compliance function", to take into account the composition, position or hierarchy within it, competence,
roles, as well as the functions actually assigned.

2.2 Anatomy of the Compliance Structures

The casuistry related to the composition is very varied and there is no "infallible magic formula"
for all cases. Depending on the different characteristics of the organization itself, the most effective
solution must be chosen, taking into account the different variables that make up part of its context, such
as: size, internal structure, territoriality and jurisdictions, organizational functional dependencies, the
activities and sectors in which it operates, markets, regulatory frameworks, matters, resources,
stakeholders, among others. The following are the most common elementary structures when setting up
bodies with the "compliance function" within companies and other organizations with legal personality.
In SMEs, it is usual for the structure to be centered on an individual profile (compliance officer),
either internally, with external support or outsourced in its entirety. On the other hand, depending on the
size of the organization, it can be constituted independently or end up merging into the senior
management / governing body profile or even converging in a global symbiosis. With regard to large
companies and organizations, the delimitation between the stages relating to the Governing Body, Senior
Management and the Compliance Function is usually better defined. As for the compliance structure, it
can be set up in a unique manner, along the same lines as described above. In addition, it can be
designated for a specific matter, for example, Criminal Compliance Officer or be considered at a
general/global level. Sometimes it may also have a support team or department. The second option
involves the designation of a collegiate body made up of members who are usually complementary in
functions and competencies, among whom the director/compliance officer or compliance officer is
designated, and may repeat the characteristics of the previous schemes in terms of resources and the
figure of the external advisor. Likewise, it may be limited to a specific area, in which case the
Organization may have other structures at a transversal and/or vertical level articulated by means of
gears of different categories for delegation, reporting, supervision and/or coordination; or it may
integrate the different roles and profiles into a single compliance function.
Listed companies or companies listed on the market have an audit and compliance committee in
which the compliance function is directly integrated, articulated through the control body. However, it
is becoming increasingly common for this to be supported by a "specific delegated compliance body"
specialized by subject matter or that simply performs this function in a more focused and operative
manner, without forgetting the particularities already mentioned in the previous cases, which can be
replicated. In this way, the aim is not only to tend towards specialization through technical improvement
and optimization of resources, but also to reinforce the model of the three lines itself, which will be
referred to below. Finally, in the case of groups of companies, whether at a national, international or
mixed level, the cases described for large entities and listed companies are amplified and interconnected.
The main difference lies in the type of compliance structure advocated by the group.
If the option chosen involves the creation of a "hybrid / decentralized or cascade model", it will
be characterized by granting certain autonomy to the compliance of the entities that make up the business
conglomerate, based on common premises and a wide margin or degree of delegation of functions,
being, in any case, hierarchically linked to that of the parent company. This gives rise to the figure of
the "compliance liaison" or "delegated compliance officer" reporting to the chief compliance officer.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
27

This structure offers an advantage at a territorial level, facilitating presence at a more localized level,
with greater knowledge of the area, its context and regulations, without overlooking the disadvantages
that may arise, relating to problems of legitimacy, operability and loss of control. The second option is
based on the development of a "centralized model" from the parent company, replicating the rest of the
cases envisaged for large companies, but with the particularity that a single figure/body will be in charge
of performing the compliance function at group level. This choice is made when the territoriality is very
focused on one area or when the number of companies is limited. It can be seen from the above that the
different compositions are replicated and become more complicated in proportion to the organizational
structure and size of the entity itself.

2.3 Substantive aspects regarding the bodies responsible for the compliance function

As noted above, the first step in the configuration of any compliance model or system is the
determination of the "compliance function". This aspect is key as it is the starting point or initial stage
in which the "conscious appointment of the structure" takes place: whichever model or composition is
chosen, it must be based both on the analysis of the organization's context and on the requirements set
out below, aspects that underpin the suitability of the design and the competence of its "responsible
person/s" (an issue that will have a full impact on the correct implementation and development of the
compliance model or system).
Furthermore, guaranteeing an adequate institution of the structure makes it possible to consolidate
and assertively motivate the maximum guarantees of the composition and functioning of this element
without it being a promoter of future damage to the system or model based on the imputation of the legal
entity in accordance with the jurisprudential criterion of "structural organizational defect"21.

21 ESPAÑA. Tribunal Supremo. Sentencia de la Sala de lo Penal. STS nº 4116/2022 de 11 de noviembre: “[…] en la medida
que su imputación ha de asentarse en criterios de imputabilidad propios, tal imputación habrá de ponerse en relación con los
fallos en que, por defecto de organización o funcionamiento, incurra en el ejercicio de su actividad sobre la gestión, el control,
la supervisión o vigilancia para la prevención del delito de que se trate […] para hablar del fundamento de esa responsabilidad
exigible a la persona jurídica por su propio delito, es preciso partir de la constatación de algún defecto estructural en los
mecanismos de prevención y control que le fueran exigibles por razón de su organización tendentes a los fines a que se orienta
su actividad, y ello porque la responsabilidad penal de la persona jurídica gira en clave de complejidad organizativa” [“…to
the extent that its imputation must be based on its own criteria of imputability, such imputation will have to be related to the
failures in which, due to organizational or operational defects, it incurs in the exercise of its activity regarding management,
control, supervision or vigilance for the prevention of the crime in question [...]. in order to speak of the basis of the liability of
the legal person for its own crime, it is necessary to start from the finding of some structural defect in the mechanisms of
prevention and control that were required by reason of its organization aimed at the purposes for which its activity is oriented,
and this because the criminal liability of the legal person is based on organizational complexity”]. In: Centro de Documentación
Judicial del Consejo General del Poder Judicial (CENDOJ). Available at:
https://www.poderjudicial.es/search/AN/openDocument/16aa9cd321ffac14a0a8778d75e36f0d/20221125 Access on: 16th
June 2023. Tribunal Supremo, Sentencia de la Sala de lo Penal. STS nº 3430/2020 de 22 de octubre. Finally, the Spanish
Supreme Court's decision STS nº 234/2019, 8 de mayo stated: "Las dudas sobre la naturaleza de la responsabilidad penal de
las personas jurídicas han quedado resueltas por la doctrina de esta Sala de la que es exponente la Sentencia del Tribunal
Supremo español núm. 221/2016, de 16 de marzo, entre otras, en la que se establece que la sanción penal de la persona jurídico
tiene su fundamento en la responsabilidad de la propia empresa por un defecto estructural en los mecanismos de prevención
frente a sus administradores y empleados en los delitos susceptibles de ser cometidos en el ámbito de actuación de la propia
persona jurídica” [“Doubts about the nature of the criminal liability of legal persons have been resolved by the doctrine of this
Chamber of which the Spanish Supreme Court Ruling No. 221/2016 of March 16, 2016, among others, is an exponent, in which
it is established that the criminal sanction of the legal person has its basis in the liability of the company itself for a structural
defect in the prevention mechanisms against its managers and employees in crimes likely to be committed within the scope of
action of the legal person itself”]. In: Centro de Documentación Judicial del Consejo General del Poder Judicial (CENDOJ).
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
28 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

The designation is thus marked by the very phenomenon of the descriptive multiplicity of the
figure and the organic structural complexity at the internal level, which in turn causes the need to
establish, define and document perfectly the roles and functions to be performed by each of the members
that make up the "compliance function", as well as the interrelation, connection and operation with the
rest of the complementary figures. This work must be carried out considering the requirements relating
to the composition, competence and internal organizational structure, so that both the obligatory
framework and the level of responsibility of each one of them can be clarified without any apparent
difficulty, thus avoiding possible dysfunctions that may cause their invalidity or distortion. Thus, the
concept of delegation of functions at internal and external level comes into play, which must be perfectly
determined without "the compliance function" being emptied of content in terms of its attributions,
duties and minimum obligations required both by legislation and by the internal application regulations
adopted by the Organization (protocols, procedures, best practices, etc.).

2.3.1 Functional typology

The structural and functional mix originated when configuring and designating the body with the
compliance functions must be analyzed from an operational and executive point of view with respect to
those tasks that can be approved and carried out directly by the autonomous subjects; of coordination or
collaboration with other bodies at a vertical and transversal level; of supervision and evaluation within
the internal and external hierarchy; and of advisory consultancy with respect to all tasks that necessarily
entail a transfer and elevation of information to another body of an executive or optional nature.
The singular or collegial tinge in the composition will also qualify the qualification with respect
to the decision-making process. This distinction is essential in motivating both the due diligence of the
compliance function and the evaluation of its performance. In addition, it favors individual
accountability both at the organizational level and in the event of a possible conflict or legal situation.
In any case, a distinction must be made between those structures and figures that will form part of the
"hard core" of the "compliance function" on the basis of their tasks, whether general, global or
interchangeable, or specific to compliance, such as, for example, the person responsible for the criminal
complaints channel or the person in charge of the internal information system; the person in charge of
monitoring and updating risks and controls, among others; and those other related, collateral, occasional
or support roles or bodies. This functional and hierarchical mix must respond, in any case, to a
discretionary criterion of the organization, which must respect some elementary premises or
requirements in order to guarantee its effectiveness and validity as detailed below.

2.3.2 Composition and competencies

The main elements that must be observed to ensure the effectiveness of the "compliance function"
are based not only on the Compliance regulations and standards referred to above, but also on the
specific rules that may be applicable, as well as the experience drawn from practical business and legal
evidence. In relation to this matter, it is usual to extract four points in relation to the effectiveness of the
compliance function: (i) to ensure its correct designation and composition; (ii) to evaluate and determine

Available at: https://www.poderjudicial.es/search/AN/openDocument/cbd42f7be72d6616/20201103 Access on: 16th June


2023.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
29

the competence; (iii) to establish the structure, hierarchy and principles that assist it; (iv) to determine
the roles and delegation of functions, if applicable. The lack of any of these elements, as well as their
alteration or irregularity, can have significant adverse effects both on the effectiveness of the compliance
model or system and on the parties involved.
With regard to the appointment of the compliance officer or of the components of the compliance
body, it should be noted that it must be made by the organization's governing body 22, reinforcing the
commitment and transmission of a culture of ethics and compliance based on the "tone from the top"
philosophy. Depending on the structure or typology of the figure chosen, in accordance with the
principles of proportionality and efficiency of the organization itself, one of the typical failures that can
occur is the absence of the same, either by the parent company or by the investee company, which in
fact, at a material level, would turn it into an entity devoid of the necessary authority; or, from a merely
formal and tacit point of view, it would cause the invalidation of an easily rectifiable element. On the
other hand, the practical complexity of the different structures described above can lead to the creation
of overly simplified and artificial structures that do not respond to certain basic principles of the
organization, distorting and invalidating its own functioning and denoting fiction, incomprehension or
even a lack of means and resources.
Regarding the qualification and training of the personnel that make up "the compliance function",
it is curious that such a simple and elementary criterion goes so unnoticed in its analysis both at a
practical level and by the courts. However, the absence of a specific assessment is developed in the
UNE-ISO standards for compliance management systems23, which outline the following as minimum
requirements to be considered: (i) integrity and commitment; (ii) effective communication skills; (iii)
ability to influence; (iv) professional prestige; (v) determination of competence (education, training and
experience) in accordance with the development of the assigned functions (roles and responsibilities);
(vi) detection and evaluation of possible complementary needs. On the other hand, circumstances such
as, for example, professional intrusion or the appointment of individuals with circumstances that
undermine their integrity and professional prestige (conflicts of interest or having been internally
sanctioned by the Organization itself or having a criminal record) have a direct negative impact both on
the validity and effectiveness of the function itself and on the reputational ethics of the organization
itself.
Finally, another of the reasons that affect the competence criterion involves the non-compliance
with the minimum recommendations required by the reference norms or standards in compliance matters
due to the absence of an adequate selection and evaluation process for professionals, as well as the lack
of a performance evaluation that would allow the detection of shortcomings as opposed to deficiencies.
It should be emphasized that the suitability of the "candidate" affects not only the future credibility of
the compliance function, but also the very mechanism of delegation of functions or the decision-making
process. The competence and capacity of the professional that he/she must have for the assigned

22 Power or function attributed by the compliance standards with respect to the minimum functions required of the Governing
Body or by law in accordance with the specific precept. E.g. Art. 8.1. of Ley 2/2023, de 20 de febrero, reguladora de la
protección de las personas que informen sobre infracciones normativas y de lucha contra la corrupción (above-mentioned)
regarding the designation of the internal information system that may or may not coincide in figure with the person in charge
of the regulatory compliance function according to section 6 of the same article.
23 “Competence" is defined according to Compliance standards as the ability to apply knowledge and skills to achieve the

intended objectives.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
30 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

compliance function can also be decisive when it comes to assessing the intentionality in non-compliant
actions, whether consciously, intentionally or recklessly.

2.3.3 Hierarchy, roles and delegation of functions

As regards the internal organic positioning of the "compliance function" and the hierarchy that its
members occupy within the overall structure of the Organization, it should be emphasized that the
scheme to be followed is one that responds to the traditional principles required for the function of
"autonomy - initiative - control and independence”24. The purpose is that the position of the body with
the compliance function should act as a delegated guarantor of the supervision, monitoring and control
of compliance, as well as having direct and immediate access to the governing body and the other units
or operational areas of the organization, guaranteeing the principles of information and collaboration.
The aforementioned Libro Blanco de la Función de Compliance makes a series of nuances
regarding the composition of a collegiate body, as the following conditions are established, which clearly
respond to the obligation to define the internal hierarchical structure. On the one hand, it is important to
identify the person who acts or performs the functions of head or maximum representative of the
Compliance Body. This figure will be the main person in charge of answering and acting before the
Senior Management, the Governing Body, as well as of directing and coordinating the rest of the
members that make up the function. On the other hand, in cases where a compliance macrostructure or
transversal body is set up, both the overall responsible (Chief Compliance Officer, President or
Compliance Director) and the different subordinates by subject or typology (Head of Criminal
Compliance, Anti-bribery, Tax, Competition, and may include figures such as the Data Privacy Officer,
etc.) must be identified.
The lack of guaranteed independence within the internal and external hierarchy and the
contamination of autonomy in the process of "making and/or proposing decisions" is one of the most
common defects that undermine this elementary requirement. In addition, hierarchical dysfunction can
lead the compliance body to be subjected to "compromised" situations or scenarios in which the ethics
and professionalism of compliance collide with the interests, mandate or order of a third party.
Furthermore, the lack of transparency and arbitrariness in the appointment of the compliance
officer or the members of the compliance body is evidence of the existence of a "muppet compliance"
or function totally conditioned to the wishes of the organization's own governing body or senior
management. Likewise, the confusion and internal chaos caused by the overlapping of positions,
positions and committees that should be at different levels (Governing Body, Senior Management,
Internal Audit, Compliance Function, etc.) and which, at the same time, go against the usual structures
of good Corporate Governance25 or even the model known as the Three Lines Model26. These
circumstances may imply an impairment of the proper functioning of the compliance model or system.

24 It should be emphasized that independence presupposes neutrality and the absence of interference that would undermine its
own control and oversight functions. This issue overlaps and directly conflicts with the need to occupy a high position in the
organization, which would in turn undermine the "principle of autonomy".
25 UNE-ISO 37000:2022- Governance of organizations.
26 THE INSTITUTE OF INTERNAL AUDITORS; The IIA’S three lines model. In: Official website of The Institute of Internal

Auditors (IIA). Available at: https://www.theiia.org/globalassets/documents/resources/the-iias-three-lines-model-an-update-


of-the-three-lines-of-defense-july-2020/three-lines-model-updated-english.pdf Access on: 15th June 2023.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
31

In this type of cases, a clear dysfunction is observed by linking the compliance figure very closely
to the apparatus of power or even through the intrusion of other figures/roles, leading to situations in
which there is a duplication of positions, conflicts of interest, an inevitable contamination of operations
and even the absence of a proper segregation of functions. In this line, there are cases such as: (i) an
organization whose chief compliance officer (CCO) was integrated and coordinated its activity through
a compliance committee made up of the CCO (as secretary), the chairman of the board of directors
(governing body) together with three additional members belonging to senior management27; (ii) an
organization designates as individual compliance officer (CO) the human resources management and
the chairmanship of the works council28, etc. In these cases it will be crucial to elucidate whether the
deficits or organizational chaos in the compliance function as a result of any of the above-mentioned
cases is merely a circumstantial situation or a manifest intentionality reflecting a desire for intense
control over the body with the compliance function and opacity in the management of compliance-
related matters.
The controversy and controversies about the functional determination seem to be reduced when a
single Compliance Officer is appointed. However, it should be taken into account the vicissitudes that
may arise with respect to the establishment of certain specific compliance roles when within the
organization itself, not all the compliance control and management functions are attributed to the
Compliance Officer, and when different positions with differentiated or even overlapping competencies
concur in parallel, without ever constituting and consolidating a clear and defined compliance structure.
This is one of the most common cases of dysfunction where an organization begins to undergo a
transformation and adaptation of its compliance model/system without having a clear "road map",
designating in an uncoordinated and uncontrolled manner different specific or subject-specific
compliance roles.
Continuing with the above approach, it is essential to point out the following: despite the fact that
within a collegiate body a specific individual is appointed from among its members to perform certain
management, representation and coordination functions, this circumstance does not exempt, per se, the
rest of the members from their intrinsic duty of due diligence with regard to the basic functions expressly
attributed to them by law and the specific regulations on compliance matters, without any dilution,
therefore, of the liability that may arise, even in a criminal law context29. These circumstances arising
from the hierarchy and delegation are applied following similar dynamics to those applicable to partners
and directors of the organization, in terms of their duty of supervision, monitoring and reporting on
compliance.
The lack of definition or obscurantism in the definition and designation of roles and functions
(consciously and intentionally) is another of the usual tricks and scourges whose purpose is to blur and
hinder the burden of proof in the event of irregularities or non-compliance (usually carried out by those
with greater power in the organization). Other deficiencies of this type are the global delegation in favor

27 ESPAÑA. Tribunal Superior de Justicia de Catalunya. Sala de lo Social. STSJ nº 3357/2022 de 1 de abril. In: Centro de
Documentación Judicial del Consejo General del Poder Judicial (CENDOJ). Available at:
https://www.poderjudicial.es/search/AN/openDocument/ca8cef4659a2b6a9/20220607 Access on: 15th June 2023.
28 ESPAÑA. Juzgado de los Social nº 6 de Oviedo. Sentencia nº 386/2021 de 8 de junio. In: Centro de Documentación Judicial

del Consejo General del Poder Judicial (CENDOJ). Available at:


https://www.poderjudicial.es/search/AN/openDocument/134d5ee9ca30cad3/20220110 Access on: 15th June 2023.
29 LIÑAN FUENTE, Alfredo. La responsabilidad penal del compliance officer, Madrid: Editorial Aranzadi, 2019, pp.18-

19.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
32 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

of employees with no effective capacity to perform tasks or the total outsourcing of the compliance
function, with the consequent loss of control and breach of the duty of supervision.
Part of these problems are a consequence of the lack of a statute for the "compliance function",
which clearly and expressly sets out the specific attributions, functions and obligations incumbent on
each of the members of the body (without prejudice to and must differentiate between those that are
intrinsic and non-delegable, whether by legal imperative, internal regulations or by positioning/position,
and those functions that are divisible and can be delegated, internal regulations or by
positioning/position, from those functions that can be divided and delegated), so that the responsibilities
required of each of them in the event of measuring the performance of the function itself or in the event
of evaluation and/or non-compliance can be clearly differentiated30.
Likewise, it should be understood that the delegation of functions in compliance matters is a
particularly sensitive process due to the subject matter involved. Therefore, as will be explained in the
following section, the delegation is always more specific and there cannot be a total dissociation of the
delegating body. The production of a cascading or progressive delegation that obviates this premise is
based on the erroneous thought that the higher hierarchical positions are absolutely residual and that
they can totally disengage from everything related to compliance.
Therefore, in order to avoid these risks, it is of great importance to carry out a series of actions
that allow: (i) the establishment of limits and perimeters of action, as well as the anchoring and
articulation with other control and supervision figures of the Organization; (ii) the delimitation and
positioning of external parties to whom a delegation of compliance functions can be made and the
determination of shared responsibility31; (iii) the forecast and analysis on the determination of new needs
or restructuring with an impact on the context of the organization that imply a functional reorganization,
as well as the adequacy of staffing 32.
In short, the list of possible defects and errors when implementing or configuring bodies with the
compliance function are innumerable and can have devastating effects for the organization. Moreover,
the legal-criminal consequences that may emerge as a consequence of the inadequate development or
exercise of the compliance function will impact both individually when determining the individual
responsibility of each subject, and globally, representing a serious blow that will affect not only the
integrity of the compliance system or molding, but will also seriously jeopardize the credibility and trust
placed in the development of the compliance culture within the organization and at a public or global
level33.

30 International standards have foreseen this need when they expressly regulate the issue by establishing as requirements of the
"Compliance Management Systems" the minimum functions attributed to the body with the "Compliance Function", as well as
the need to ensure by Senior Management and the Governing Body, aligned with the Organization's Governance System and
strategy, that the responsibility and authority of the essential functions are perfectly attributed, determined, assigned and
communicated.
31 Likewise, another of the classic elements of support to clarify the disjunctive and positioning among the members of the

Compliance Body is the need to regulate the tools and mechanisms that contribute to the process of "decision making and/or
adoption of proposals", through the voting formulas and the instruments that make it possible to verify their evidence.
32 ESPAÑA. Tribunal Superior de Justicia de Madrid. Sala de lo Social. STSJ nº 921/2022 de 30 de noviembre. In: Centro de

Documentación Judicial del Consejo General del Poder Judicial (CENDOJ). Available at:
https://www.poderjudicial.es/search/AN/openDocument/6d31fb8b23165ae3/20210324 Access on: 15th June 2023.
33 AGUILERA GORDILLO, Rafael. Manual de Compliance Penal en España. 2ª ed. Cizur Menor: Thomson Reuters

Aranzadi, 2022, p. 228-223.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
33

3. Criminal Liability for noncompliance with the “compliance function” or for omission
of the compliance officer: the Spanish approach

3.1. The position of legal-criminal guarantor in terms of risk prevention and non-
compliance within the organization

Focusing on the legal-criminal aspects relating to the liability of the organization's professionals
who perform compliance functions, we must point out that the starting point is inevitably the figure of
the partner. The partners of a legal entity are the precursors and ultimate beneficiaries of the services or
products offered by the organization, they are those who decided to establish or, as the case may be,
maintain34 that source of risk (the activity of the company) in a certain social context with the purpose
of obtaining some kind of benefit, profit or gain. Since these subjects are those who insert in society a
source of risk to obtain profit, it is logical to extract that, at least, they must make sure that this source
of risk performs an activity within the margins of legality, keeping the levels of risk within what is
allowed and, of course, avoiding the materialization of risks or non-compliance of criminal significance
that affect third parties.35.
However, it is a reality that partners are increasingly distanced from the management of
organizations (especially in listed companies). This original identification between the classic sole
proprietor who created his business and the partners who now make up more complex companies is
undergoing a major transformation. The position of guarantor of risk control and prevention of illicit
activities has shifted to the highest executive bodies of the organizations and, in the case of Spanish
companies, to the board of directors. The company's administrator or board of directors is conceived as
the body that assumes in a global and clear manner the duty of supervision and control of the
organization in order to guarantee that it complies with the law and to avoid harmful results. When the
mechanism of delegation of functions from the partners to this body operates validly, the partners free
themselves from this functional scope by transferring it to the administrative body.
In other words, the supervisor or supervisors with primary control duties (in this case, the partners
of the company) entrust this supervisory body with monitoring and control tasks relating to compliance
and risk prevention, but such delegation (governed by the principle of trust) is subject to certain
requirements in order for it to have criminal-legal effects. In Spain, these requirements relating to the
delegation mechanism arise from the application of various precepts together with the development of
the jurisprudential doctrine (which we will analyze in the following pages). Nor does delegation imply
that, as a consequence of this, there can be absolute disregard of what happens in the organization on
the part of the partner, since certain supervision (albeit much more lax) of the administrator must be
maintained.36.

34 E.g.: creating or incorporating the company itself (in accordance with art. 20 del Real Decreto Legislativo 1/2010, de 2 de
julio, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley de Sociedades de Capital) or subsequently, as a result of corporate
M&A operations, etc.
35
DEMETRIO CRESPO, Eduardo. Responsabilidad penal por omisión del empresario. In: MIR PUIG, Santiago (dir.),
Responsabilidad penal de las empresas y sus órganos y responsabilidad por el producto. Barcelona: Ed. Bosch, Barcelona,
1996.
36 The "delegation" of control and supervision tasks in favor of the management body does not allow the shareholders to totally

disregard what the management body does; in order for the delegation mechanism to operate properly, the shareholders must
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
34 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Likewise, as we are going to explain, in order to attribute individual criminal liability to the
subjects with supervisory duties in order to avoid harmful results generated in the corporate context, it
is unavoidable that the crime committed by another member of the organization could have been
prevented as a consequence of the duty of avoidance (originated by the position of guarantor) held by
the supervisor. The attribution of criminal liability for improper omission or commission by omission
(Art. 11 of the Spanish Criminal Code37), regardless of the position of the supervisor and the category
in which his role could be subsumed (necessary cooperation, complicity, etc.)38, is not only subject to
the principles of Criminal Law, and the principle of guilt and personality of the penalties must be
guaranteed, but it is also endowed with a relevant additional requirement linked to his position of
guarantor and omissive conduct: the additional judgment of equivalence between the hypotheses. The
capacity of the omitting party to carry out an active conduct that would have hindered or made the crime
impossible must be shown, together with a hypothetical causality, arising from his position of dominion
over the source of danger, so that it would have been possible to paralyze or prevent the result (STS
613/2018, of November 29, regarding the attribution of criminal liability for omission under the category
of necessary cooperation and complicity: STS 258/2007 of July 19 and STS 749/2010 of December
16,39, respectively).
In turn, when the boards of directors or administrators of commercial entities (or similar bodies
in legal entities of another nature) approve the constitution of bodies with functions in the area of
compliance -criminal- and delegate supervisory functions in this area through the adoption of the
corresponding resolutions, the administrative bodies themselves (delegators) are left in a residual or
secondary position as guarantors of supervision for the prevention of risks of criminal significance.
Thus, the position of main guarantor is occupied by the members of the compliance bodies (compliance
officers, compliance managers, etc.). However, the position of guarantor is more precise and limited to
the supervision of risks in accordance with the "parameters and procedures contained in the compliance
program or system" (which, in principle, must be approved by the management body). Moreover, not

regularly control the actions of the management body (lax supervision). Among the many precepts that enable the shareholder
to exercise control functions in Spain, it is worth highlighting, for example, those contemplated in Articles 93 and following,
and 159 and following of the Real Decreto Legislativo 1/2010, de 2 de julio, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley
de Sociedades de Capital en España. This issue is discussed at length in PASTOR MUÑOZ, Nuria. ¿Responsabilidad penal
del socio por la criminalidad de la empresa? Reflexiones sobre la posibilidad de fundamentar una posición de garantía del
socio. Diario la Ley, nº 9400, 2019, p. 1-14.
37 Article 11 of the Spanish Criminal Code states: "Crimes that consist of the production of a result shall only be understood to

be committed by omission when the failure to avoid the result, by infringing a special legal duty of the perpetrator, is equivalent,
according to the meaning of the text of the law, to its causation. For this purpose, omission shall be equated to action: a) When
there is a specific legal or contractual obligation to act. b) When the omitting party has created an occasion of risk for the legally
protected property by means of a preceding action or omission."
38 AGUILERA GORDILLO, Rafael. Manual de Compliance Penal en España. 2ª ed. Cizur Menor: Thomson Reuters

Aranzadi, 2022, p. 450-471.


39 In our opinion, the Spanish Supreme Court's ruling No. 1273/2004 is a landmark judicial decision in this field. ESPAÑA.

Tribunal Supremo. Sentencia de la Sala de lo Penal. STS nº 1273/2004, de 2 de noviembre. This sentence states: “La
jurisprudencia de esta Sala, si bien ha reconocido expresamente que la admisibilidad de una participación omisiva es de difícil
declaración, ha aceptado ésta, asociando su concurrencia a la de los elementos propios del art. 11 del CP, entre ellos, que el
omitente ocupe una posición de garante. De ahí que sea posible incluso en los delitos de acción , cuando la omisión del deber
de actuar del garante haya contribuido, en una causalidad hipotética, a facilitar o favorecer la causación de un resultado propio
de un delito de acción o comisión y que podría haberse evitado o dificultado si hubiera actuado como le exigía su posición de
garante.” [“The jurisprudence of this Court, although it has expressly recognized that the admissibility of omissive participation
is difficult to declare, has accepted it, associating its concurrence with that of the elements of art. 11 of the Criminal Code,
among them, that the omitting party occupies a position of guarantor. Hence, it is possible even in crimes of action, when the
omission of the guarantor's duty to act has contributed, in a hypothetical causality, to facilitating or favoring the cause of a
result of a crime of action or commission that could have been avoided or hindered if he had acted as required by his position
of guarantor”].
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
35

only are we faced with a process of delegating functions protected by ordinary legislation, but in the
case of Spain and many other countries that have adopted the institution of criminal liability of legal
persons, it is strongly encouraged through a norm of extraordinary relevance: the Spanish Criminal Code
itself40. This is the materialization of a criminal policy that enhances and rewards, through exemption
from criminal liability, legal entities that, together with the adoption of a compliance system, incorporate
in their corporate organization charts bodies specifically dedicated to compliance.
However, it is obvious to point out that the compliance officer or member of the body with the
function of compliance will never be responsible for breaches of criminal law or crimes committed by
other members of the organization in a broad sense (since he/she is not the guarantor that no crimes are
committed in the corporate context), only in very specific and precise cases could his/her possible
liability be addressed as a participant in an improper omission for a crime committed by a third party41.
This type of cases may arise when its intentional inactivity or wilful neglect of the specific functions
conferred (specified in its functional scheme and clearly indicated in the compliance system) made
possible the commission of the crime by the third party and it was aware of its contribution. And this,
provided that the aforementioned delegation mechanism had previously operated in a valid manner,
which places him in a position of guarantor based on specific contractual duties acquired42. Thus, the
criminal liability of the compliance officer responsible for the whistleblower channel could be declared
if, having received through this channel a warning of an imminent crime, he/she did not act voluntarily
in accordance with the applicable procedures contained in the compliance program and did not report it
urgently to the corresponding body so that it could take the pertinent decisions43.
The complexity in the precision of the tasks conferred in a context of such intense functional
interaction as corporations are, together with the demands of the delegation mechanism which, at the
same time, can operate on other bodies with more specific compliance functions, contribute to the fact
that the clarification of possible criminal liability for omission is not a simple task. In fact, we could find
ourselves with the attribution of possible criminal liability for improper omission in the form of
fraudulent participation to members of some bodies with tasks related to compliance and exclude from

40
It is clearly stated in condition 2 of 31 bis 2 of the Spanish Criminal Code: "the supervision of the functioning and compliance
of the prevention model implemented has been entrusted to an organ of the legal person with autonomous powers of initiative
and control or which is legally entrusted with the function of supervising the effectiveness of the internal controls of the legal
person".
41 We must emphasize that this is a matter in which, in Spain, there is some uncertainty due to the absence of case law that

would allow us to point out or define a clear and specific line of jurisprudence on the criminal liability of this type of bodies
with functions directly involved in or linked to compliance. What is set forth in this part of the paper is the line predominantly
taken by the most representative Spanish doctrine, which we share; DEL ROSAL BLASCO, Bernardo. Manual de
responsabilidad penal y defensa penal corporativas. Madrid: Ed. Wolters Kluwer, 2018. DOPICO GÓMEZ-ALLER,
Jacobo. Presupuestos básicos de la responsabilidad penal del “compliance officer” tras la reforma penal de 2015. In: FRAGO
ARMADA, Juan Antonio (dir). Actualidad Compliance 2018. Cizur Menor: Ed. Thomson Reuters Aranzadi, 2018.
42 And encouraged by law (ley orgánica) -and minimally specified- in the Spanish Criminal Code itself: Art. 31 bis 2.2ª and

5.4º.
43 The reasoning is recalled by DOPICO GÓMEZ-ALLER when he says 43: “Esa conducta (ocultar el delito a los ojos del

órgano que debía intervenir para impedirlo, hurtarle la información al respecto) es una conducta de cooperación, pues
favorece o facilita que el delito sea cometido; y atendiendo a su relevancia deberá ser considerada como complicidad o, si se
trata de una aportación esencial, cooperación necesaria. Y ello, independientemente de si el omitente obligado a transmitir
esa información se llama compliance officer, auditor interno, director financiero, etc.” ["This conduct (hiding the crime from
the eyes of the body that should intervene to prevent it, stealing information about it) is a cooperative conduct, since it favors
or facilitates the crime to be committed; and depending on its relevance, it should be considered as complicity or, if it is an
essential contribution, necessary cooperation. And this, regardless of whether the omitter obliged to transmit that information
is called compliance officer, internal auditor, financial director, etc."]. In DOPICO GÓMEZ-ALLER, Jacobo. Presupuestos
básicos de la responsabilidad penal del “compliance officer” tras la reforma penal de 2015. In: FRAGO ARMADA, Juan
Antonio (dir). Actualidad Compliance 2018. Cizur Menor: Ed. Thomson Reuters Aranzadi, 2018, p. 220-221.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
36 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

liability the members of other compliance bodies of the same organization (depending on the specific
tasks assumed). Moreover, as mentioned above, there may be cases of different individuals belonging
to the same compliance body, some of whom may be declared criminally liable and others not
(depending on factors such as the duty of correspondence between formally assigned tasks and their
actual performance, the level of technical knowledge, etc.).
Given the enormous variety of cases we may encounter, since the functions of the body or bodies
with powers in compliance matters may vary greatly depending on the legal entity in which they are
included, the most important thing to clarify the cases that may arise is, first of all, to know what are the
requirements for the aforementioned delegation mechanism to be considered valid, which, as I have
been indicating throughout the text, operates in a sequential or staggered manner in the delegation of
supervisory functions44. Once the requirements are clear, it can be determined whether or not the
delegation was valid and, therefore, whether its criminal effects can be deployed. If it is invalid, the
delegating organ would retain the position of guarantor in its entirety (it would not have managed to
divest itself of that position); on the other hand, if it is valid, the delegated organ would occupy the
position of principal guarantor and could be the sole recipient of criminal liability for commission by
omission for wilful participation in a crime committed or executed by a third party (or several) of the
organization. Secondly, once this scrutiny has been overcome, the hypothetical relationship between the
specific function or task willfully omitted and the possible obstruction or hindering of the crime should
be carefully examined in the case of having performed an active conduct in accordance with the
procedure.
In accordance with the above, we will now point out the essential requirements of the delegation
mechanism and then we will analyze the conditions that would indicate when the inaction or passivity
of the delegated body that holds functions in compliance matters is susceptible to criminal reproach in
the form of commission by omission or improper omission. To conclude, we will give some examples
that take into consideration or have as their basis some of the specific functions or tasks that are usually
assigned to this type of bodies by virtue of the usual practice in Spain or of the application of the
provisions of the compliance management systems mentioned at the beginning of the article. In this
review, we will disregard those cases in which, under one category or another (perpetration, co-
perpetration, perpetration-by-means, inducement, necessary cooperation or complicity) the compliance
officer, compliance officer or compliance body clearly develops an active conduct in the crime, as their
imputation (and subsequent attribution of criminal liability) is less complex and contested45.

44 Although in the successive delegations made in the area of criminal risk control, the management body should always show
its acquiescence (demonstrated by the approval of the design of the compliance structures) and maintain a lax supervision of
the actions or work of the delegated body.
45 Excluded are all those cases in which, in accordance with Spanish law, there is a general duty addressed to every citizen

(whether compliance officer, administrator, etc.) for individuals to prevent or, failing that, to report certain crimes. Among
other articles, this duty is regulated in Article 450 of the Spanish Criminal Code. In these cases, we would rather speak of
perpetration of a criminal conduct typified in the Criminal Code and carried out by the individual himself. The aforementioned
Article 450 states: "1. Whoever, being able to do so with his immediate intervention and without risk to himself or others, does
not prevent the commission of a crime that affects people's life, integrity or health, freedom or sexual freedom, shall be punished
with a prison sentence of six months to two years if the crime is against life, and a fine of six to twenty-four months in other
cases, unless the crime not prevented corresponds to the same or lesser penalty, in which case the lower penalty shall be
imposed.
2. The same penalties shall be incurred by whoever, being able to do so, does not go to the authority or its agents to prevent a
crime provided for in the preceding paragraph and whose next or current commission is known to him."
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
37

3.2. The “delegation mechanism” in Spain: validity requirements and criminal effects in
companies

The first requirement for the delegation mechanism to be considered valid is the suitability of the
delegate for the exercise of the position or adequate professional training. The administrative body or
corresponding body must select the professional or professionals that will be part of the supervisory
body or compliance delegate under solvent selection criteria that will ensure that these subjects have
the appropriate preparation, professional qualifications and technical skills. The degree of experience,
according to the categorization of the position, is also relevant.
The performance of interviews, the requirement to provide documentation showing the required
knowledge (specific postgraduate degrees, workshops or practical courses, etc.) and the requirements
tending to accredit certain previous experience (especially for those who occupy positions of
responsibility or head of compliance) would demonstrate compliance with this important requirement.
In order to prove this requirement in a possible criminal proceeding, it is essential to ensure evidence of
the development of these due diligence processes in the selection of professionals with supervisory or
compliance functions.
The second requirement or demand of the delegation mechanism is the provision of resources and
tools to the delegate to enable him/her to carry out his/her supervisory activity with autonomy. This
implies that the compliance officer and compliance body must be provided with the human resources
and technical means necessary to adequately carry out its activity (in accordance with criteria of
proportionality depending on the organization). In this regard, it must have the financial capacity to
enable it to perform the precise functions assigned to it. It must also have the material capacity to issue
requirements or certain guidelines and, of course, to warn, to alert about a dangerous activity or one
likely to generate risks46 inked to the control or control tasks assigned.
Obviously, it must be ensured that the organization provides him/her with all the information
necessary for the proper exercise of his/her supervisory and control functions. In this regard, the
delegate must have tools and protocols to avoid information asymmetries. If this is not respected and a
risk materializes due to the absence of knowledge on the part of the supervisor, not only does the
mechanism not operate but, in parallel, we could find ourselves with other legal-criminal notions that
strengthen the impossibility of attributing criminal liability to the delegate (e.g.: invincible type error,
invincible indirect prohibition error, etc.).
The third and final requirement is that, in any case, there must be some soft or lax supervision
on the part of the delegator. In practice, this is the exercise of weak control. What is required is, quite
simply, that the delegator demands accountability and does not totally disregard what the delegated
supervisor does. As LASCURAÍN SÁNCHEZ rightly points out, to entrust or "delegate a task is not to
simply pass it on as if it were a purchase and sale"47. The delegator cannot totally disconnect from the
work of the delegated supervisor, since he is bound by the organic context of the corporation; the
delegatee maintains, consequently, a position of secondary control. Thus, the existence of obligations
addressed to the delegator, such as the submission of regular accountability reports, the submission of
extraordinary reports in the event of urgent or critical risks, etc. (which the delegating body must

46Or even a precautionary suspension (a particularly recommendable practice).


47LASCURAÍN SÁNCHEZ, Juan Antonio. Los delitos de omisión: fundamento de los deberes de garantía. Madrid: Ed.
Civitas, 2002, p. 115-117.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
38 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

examine and approve), together with the warning for non-compliance with such obligations, are
evidence of the proper exercise of this lax supervision required of the delegator. However, we must
not lose sight of the fact that the specific nature of this requirement may vary according to the case in
question (for example, depending on the level of specialization required or the basis of the delegation
itself)48.
When these three requirements are met, the delegation will be considered valid and will have
legal-penal effects. This can be extracted from the jurisprudential analysis on the matter and from the
criteria followed by the Prosecutor's Office in cases of delegation of supervisory functions in corporate
contexts49. It is also worth considering the special relevance of incorporating a precision that is not trivial
in the field in which we find ourselves: our Supreme Court, in its STS 234/2010, dated March 11, came
to point out that the position of guarantor undergoes a reinforcement requirement in those cases in which
the delegator is aware of the high risk present in the scenarios whose supervision is delegated or when
it is a matter of controlling especially sensitive operations.

3.3. Requirements for the specific attribution of criminal liability to the compliance
officer for “omissive participation”

In addition to the requirements of the delegation mechanism, in order for the compliance officer
to be criminally prosecuted (for improper omission or commission by omission under any of the
categories of participation) when a third party within the organization commits a crime, several
conditions must be present at the same time:
As regards the subjective aspect or subjective imputation, it is essential that, in the compliance
officer, the double malice50 of the participant is appreciated. That is, the compliance officer or member
of the compliance body must know that a crime is being committed and, at the same time, that with his
own inactivity or omission he is facilitating the crime of the principal. In addition, the Spanish High
Court accepts the imputation of the participant under eventual malice in cases where the participant
appreciates a high risk of materialization of the crime of the third party, as indicated, among others, by
STS nº 503/2008, of July 1751 or STS nº 311/2014, April 1652.

48 ROBLES PLANAS highlights the great difficulties, or even the factual impossibility, of truly controlling the delegator when
the latter performs functions that require very high technical qualifications; in ROBLES PLANAS, Ricardo. Principios de
imputación en la empresa. In: BACIGALUPO SAGGESE, Silvina; FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo; ECHANO BASALDUA,
Juan Ignacio (coords.). Estudios de Derecho Penal. Homenaje al profesor Miguel Bajo. Madrid: Ramón Areces, 2016, p.
497-499.
49 For example: ESPAÑA. Tribunal Supremo. Sentencia de la Sala de lo Penal. STS nº 1828/2002 de 25 de octubre. DEL

ROSAL BLASCO reminds us that this ruling ratifies the requirements that had already been demanded by lower case law and
follows the criteria indicated in the Circular 4/2011 de la Fiscalía General del Estado. In: DEL ROSAL BLASCO, Bernardo.
Manual de responsabilidad penal y defensa penal corporativas. Madrid: Ed. Wolters Kluwer, 2018, p. 252.
50 In Spanish: doble dolo.
51 “Se ha admitido que, en este sentido, es bastante el dolo eventual, de forma que no es preciso que el cooperador oriente su

conducta de modo directo a la facilitación del hecho del autor principal cuyo propósito de ejecución conoce…” ["It has been
admitted that, in this sense, eventual malice is sufficient, so that it is not necessary for the cooperator to direct his conduct
directly to the facilitation of the act of the principal perpetrator whose purpose of execution is known to him...."].
52 “El dolo del cómplice radica en la conciencia y voluntad de coadyuvar a la ejecución del hecho punible. Quiere ello decir,

por tanto, que para que exista complicidad han de concurrir dos elementos: uno objetivo, consistente en la realización de unos
actos relacionados con los ejecutados por el autor del hecho delictivo, que reúnan los caracteres ya expuestos, de mera
accesoriedad o periféricos; y otro subjetivo, consistente en el necesario conocimiento del propósito criminal del autor y en la
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
39

Together with the double malice, the following three conditions of an objective nature must be
met: 1) the crime or alleged crime of a third party that the compliance officer perceives or notices by
receiving a complaint, alert or information received must be located within the perimeter of the business
activity and, in turn, within the material scope of application or extension marked by the compliance
system; 2) that alert, complaint or communication-information received by the compliance officer must
offer information on a non-previous criminal conduct; that is, it must be factually possible to hinder or
obstruct the crime. There is no logical scenario for omissive participation in a crime that has already
been committed, and 3) the omission or inactivity of the compliance officer must consist of an inaction
of a singular or specific function entrusted (formally and materially) by this professional and that, if this
singular duty had not been breached, the crime could have been hindered or hindered. On the one hand,
the specific omitted function must be evidenced and, on the other hand, a hypothetical relationship
between the unfulfilled duty and the hindering of the crime must be established.
On this issue, we will have to analyze the specific contractual framework formally accepted by
the compliance officer, the procedures contemplated in the compliance program or, as the case may be,
in the compliance management system53 and, of course, the functions actually performed by the
professional. Criminal liability for commission by omission due to inactivity of a task that, although
apparently assigned to the compliance officer, is actually deprived of its exercise or significantly
hindered. Once this point has been clarified, the hypothetical judgment must be overcome, a requirement
linked to the position of guarantor and which implies a thought exercise that points to the fact that, had
the entrusted function been performed, the crime would have been prevented or, at least, hindered or
obstructed. The functions or tasks assumed are really decisive when examining the possible criminal
liability in commission by omission of the subjects with supervisory or compliance functions, since the
omission is equivalent to its causation (in this case, as contribution -participation-) as long as a special
legal duty is transgressed or breached54.

voluntad de contribuir con sus hechos de un modo consciente y eficaz a la realización de aquél…”["The accomplice's intent is
found in the awareness and willingness to contribute to the execution of the punishable act. This means, therefore, that for
complicity to exist, two elements must concur: one objective, consisting of the performance of acts related to those executed
by the perpetrator of the criminal act, which meet the characteristics already mentioned, of mere accessory or peripheral nature;
and another subjective, consisting of the necessary knowledge of the criminal purpose of the perpetrator and the will to
contribute with his acts in a conscious and effective way to the accomplishment of the criminal act..."].
53 It is true that, as stated at the beginning of this section, the standardization or normalization generated by compliance

management systems or other compliance-related management systems has helped to clarify tasks; however, for whatever
reasons, they sometimes do not help to clearly outline the responsibilities of each body or bodies. In such cases, this gap must
be filled in order to understand the delegation mechanism as validated.
54 In relation to the omissive participation in the crime, STS nº 749/2010, of December 16, 2010, is enlightening, specifically

when, in its Seventeenth Fundamento de Derecho, it recalls the requirements that must be met in order to be able to appreciate
it: “La jurisprudencia de esta Sala, si bien ha reconocido expresamente que la admisibilidad de una participación omisiva es de
difícil declaración, ha aceptado ésta, asociando su concurrencia a la de los elementos propios del art. 11 del “, entre ellos, que
el omitente ocupe una posición de garante (STS nº 1273/2004, 2 de noviembre). De ahí que sea posible incluso en los delitos
de acción, cuando la omisión del deber de actuar del garante haya contribuido, en una causalidad hipotética, a facilitar o
favorecer la causación de un resultado propio de un delito de acción o comisión y que podría haberse evitado o dificultado si
hubiera actuado como le exigía su posición de garante. [...]
La jurisprudencia de esta Sala, en relación con la complicidad omisiva impone la concurrencia de los siguientes requisitos: a)
un presupuesto objetivo, esto es, el favorecimiento de la ejecución; b) un presupuesto subjetivo consistente en la voluntad de
facilitar la ejecución; y c) un presupuesto normativo, consistente en la infracción del deber jurídico de impedir la comisión del
delito o posición de garante ...” ["The jurisprudence of this Court, although it has expressly recognized that the admissibility
of omissive participation is difficult to declare, has accepted it, associating its concurrence to that of the elements of art. 11 of
the Criminal Code, among them, that the omitting party occupies a position of guarantor (STS 1273/2004, November 2). Hence,
it is possible even in crimes of action, when the omission of the guarantor's duty to act has contributed, in a hypothetical
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
40 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Therefore, as a recapitulation, it could be stated that the singular task or function assumed, the
knowledge of the criminal act linked to the business activity that is being committed (or is going to be
committed) and the hypothetical correlation consisting in the hindering of the crime that would have
occurred if the compliance officer had exercised his function, are elements that are of critical importance.
Thus, we will now use the conditions and assumptions explained to bring them closer to practical reality
and analyze possible scenarios of liability of compliance officers or members of compliance bodies
depending on the specific tasks they perform. For example, a person in charge of the whistleblowing
channel will not have the same probability of knowing about the occurrence of a crime, nor the same
degree of certainty about it as a person in charge of monitoring other aspects of the compliance
management system.

3.4. Scenarios of possible liability for compliance officers depending on the specifics
assumed: “whistleblower channel”, “internal investigations”, “compliance management
system monitoring” and” analysis or review of corporate criminal risks”

The first case we will deal with concerns those compliance officers who, being in charge of the
whistleblowing channel, omit their duties after being alerted of a crime. This may be considered the
most obvious case (although practice shows that it is not so easy to clarify): the person in charge of the
whistleblowing channel receives a warning and the message informs that a crime is being committed by
some members of the organization (for example, a continuing offense of fraud in favor of the legal
entity). Assuming in this case that the crime falls within the perimeter of the corporate activity and that
it is not a past crime (which are the two most easily solvable cases), we will have to determine, on the
one hand, if the inactivity of the compliance officer generated the non-obstruction of the crime and, on
the other hand, if in this subject there was the necessary double malice that must be present in the
participant.
Regarding the first point, we will have to pay attention to the functional scope assumed by the
compliance officer, in particular, to the procedure or procedures related to the whistle-blowing channel.
If, for example, the procedure determines something similar to "when a report is received in the
whistleblowing channel about a possible risk of a crime being committed -or its imminent commission-
that includes certain data or attaches documents that point to its verisimilitude, the responsible
compliance officer must immediately initiate an investigation and, if the risk is urgent, communicate it
urgently to body X (which is usually the administrative or senior management body) in order to adopt
the necessary measures to cease or avoid the crime". Under this assumption, if the compliance officer
does not communicate it to the corresponding body and the crime materializes, a hypothetical causal
relationship seems to be shown between the omission of the specific function of the compliance officer
and the non-obstruction of the crime.
However, it would still be necessary to clarify the concurrence of double malice in this compliance
officer in order to be able to speak of his possible imputation as a participant by omission in the crime.

causality, to facilitating or favoring the cause of a result of a crime of action or commission that could have been avoided or
hindered if he had acted as required by his position as guarantor. [...]
The jurisprudence of this Court, in relation to omissive complicity, imposes the concurrence of the following requirements: a)
an objective premise, that is, the favoring of the execution; b) a subjective premise consisting of the will to facilitate the
execution; and c) a normative premise, consisting of the infringement of the legal duty to prevent the commission of the crime
or guarantor position…"].
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
41

As I have explained, double malice would imply that the compliance officer knows that the crime is
being committed or is going to be committed imminently and, at the same time, that with his omission,
he is preventing the hindering of the crime (i.e., that this omissive contribution favors the crime). This
is a key issue in the examination. When can it be said that the compliance officer "knew" of the real risk
of committing the crime and that his omission paves the way for the criminal conduct?
In the case of a compliance officer responsible for the whistleblowing channel and with a protocol
that specifies something similar to the above, it will be "relatively easy" to answer affirmatively to the
second part of the question (evidence by the compliance officer himself that his omission facilitates or
facilitates the criminal conduct), the complex and intricate part will be to answer whether the compliance
officer "knew" of the real risk of committing the crime. If the notice received via the whistleblower
channel contains detailed information on the crime, numerous verifiable data and graphic documents or
other types of evidence, it would be logical to assume that the compliance officer, due to his training
and skills, was aware of a real risk of criminal conduct. Consequently, there would be criminal liability
for improper omission in degree of participation55.
However, except in exceptional cases, the compliance officer will not be certain of the
commission of the crime (and much less so in the first moments of receipt of the complaint). Moreover,
the compliance officer cannot transform "his" function into a "jurisdictional function", since he is not a
criminal judge and, therefore, his role is not to judge whether or not a crime has been committed. His
role in determining the possible commission of a crime is "approximate". The compliance officer should
not have detailed knowledge of the criminal plans, only their essential aspects. Let us recall what the
aforementioned STS nº 503/2008, dated July 17, 2008, states in this regard: "the doctrine and case law
have demanded that the cooperator must have a double intent. It must include, on the one hand, the fact
that the perpetrator performs or is going to perform, whose purpose must be known in its essential
aspects, and on the other hand, that his contribution is a collaboration”56.
At this point, the possible attribution of criminal liability to this professional as a participant in an
improper omission under eventual malice aforethought (which in Spain marks the borderline with
conscious negligence, which would prevent the imputation as a participant) is of particular importance.
In Spain, the probabilistic element is essential to determine whether there is eventual malice
aforethought. Regarding this legal-criminal concept of participation, we consider STS 442/2014 of June

55 In fact, the Spanish State Attorney General's Office, through the aforementioned Circular 1/2016 (p. 49-50) already warned
that the entrustment of the whistleblower channel is clearly the most delicate task in the context of the compliance function:
“… la exposición personal al riesgo penal del oficial de cumplimiento no es superior a la de otros directivos de la persona
jurídica. Comparativamente, su mayor riesgo penal sólo puede tener su origen en que, por su posición y funciones, puede
acceder más frecuentemente al conocimiento de la comisión de hechos delictivos, especialmente dada su responsabilidad en
relación con la gestión del canal de denuncias y siempre que la denuncia se refiera a hechos que se están cometiendo y que, por
tanto, el oficial de cumplimiento pueda impedir con su actuación” ["... the personal exposure to criminal risk of the compliance
officer is not higher than that of other managers of the legal person. Comparatively, his higher criminal risk can only originate
from the fact that, due to his position and functions, he may have more frequent access to knowledge of the commission of
criminal acts, especially given his responsibility in relation to the management of the whistleblowing channel and provided that
the complaint refers to acts that are being committed and that, therefore, the compliance officer may prevent with his actions].
56 Also illustrative is STS nº 258/2007 of July 19, 2007, which states: ”...el partícipe debe haber tenido una representación

mental del contenido esencial de la dirección del ataque que emprenderá el autor. No se requiere, por el contrario, conocimiento
de las particularidades del hecho principal, tales como dónde, cuándo, contra quién, etc. será ejecutado el hecho, aunque éstas
pueden ser relevantes, en algún caso, para determinar la posible existencia de un exceso, por el que el partícipe no está obligado
a responder" ["...the participant (of the crime) must have had a mental representation of the essential content of the direction of
the attack to be undertaken by the perpetrator. On the other hand, knowledge of the particularities of the main act, such as
where, when, against whom, etc. the act will be carried out, is not required, although these may be relevant, in some cases, to
determine the possible existence of an excess, for which the participant is not obliged to answer"].
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
42 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

257, a decision that, in addition, marks the defining line between the imputation as a necessary
cooperator (with a penalty similar to that of the perpetrator) and accomplice (with a lower penalty in
degree58).
Obviously, this is not a simple matter, since the conclusion about the appropriateness of
attributing criminal liability to the compliance officer in charge of the whistleblowing channel will
depend on a multitude of circumstances and factors, such as the time element and the assessment that
an internal investigation can be carried out to further clarify the facts and those involved and
communicate to the competent body to prevent it before the materialization of the crime, etc. Likewise,
it is "relatively easy" for the compliance officer to assume a safe and proactive position to keep as far as
possible away from the risk of accusation which, very briefly and with nuances, would be the following:
to report whenever a certain risk of criminal transcendence is appreciated and, if there is time (and he
has the necessary powers) to carry out the internal investigation before the report, to develop it in order
to contrast the presence of such risk and those involved, reporting such investigation to the
corresponding body. At that point, the compliance officer would have fulfilled his specific supervisory
tasks entrusted to him, so now the possible attribution of responsibilities would be elucidated in the body
receiving the report.
On the other hand, we may encounter a second case: when a company compliance officer is not
in charge of the whistleblowing channel, but his task is limited to the development of internal corporate
investigations, because a clear division of functions and professionals has been established in the
compliance structure (e.g.: one or several compliance officers decide on the relevance of admitting the
complaint and another or others are in charge of the development of the internal investigation, which
can be carried out alone or with the support and external advice specialized in investigations and
forensics). Obviously, we would be dealing with a clearly different functional scope.
Likewise, the internal investigation could be triggered by the admission of information via a
whistleblower channel or by the receipt of a warning or alert perceived through another monitoring tool
of the compliance system. Consequently, the examination of the hypothetical causality in case of
omission of duties should be done using the notions set out above, but adapting them to the specific
obligations of the person responsible for the investigation. Under this assumption, the inaction of the
compliance officer, consisting in not investigating, could be considered a conduct of participation in
another's crime, provided that it can be appreciated that this professional knew of the notable probability
of the materialization of the crime and his contribution, which is not easy. In many cases, it will be
particularly difficult to determine whether, on the basis of the information available to him, it was

57 "in the case of a cooperator, the eventual malice must be manifested in the knowledge, on the one hand, of the probable
intention of the principal perpetrator and, on the other hand, of the probable consequences of his contribution with respect to
the execution by the principal perpetrator of a minimally determined act. It is this identification of the perpetrator's act, directly
related to the cooperator's contribution, which makes it possible to consider that it is a question of concrete danger. Therefore,
the cooperator must know that there is a concrete danger of realization of the type by the principal perpetrator, and that his
contribution means an increase of such risk. The importance of his contribution, reflected in the level of increased risk, will
determine the imputation as a necessary cooperator or, at a lower level, as an accomplice. The existence of malice aforethought
with respect to the principal perpetrator's action and its result depends to a great extent on the factual circumstances in which
the cooperator's contribution takes place or is framed, among them, a certain temporal immediacy between the two. The
possibilities of appreciating eventual malice will increase in inverse proportion to the factual options directly derived from the
contribution, depending on its own nature and those circumstances".
58 Article 63 of the Spanish Criminal Code: “A los cómplices de un delito consumado o intentado se les impondrá la pena

inferior en grado a la fijada por la Ley para los autores del mismo delito”[ "Accomplices to a completed or attempted crime
shall be sentenced to the lesser degree of punishment than that established by law for the perpetrators of the same crime].
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
43

possible to infer that he was aware of a high risk of crime. A number of factors, such as the information
available in the file, context or qualification, will have to be assessed in assessing possible malice (if
any, malice aforethought).
The examination of the information received by the compliance officer who functionally precedes
him in the previous procedural iter (the one who deals with the admission/inadmission of the complaint
received in the complaints channel) and the arguments expressed regarding the decision to admit the
complaint will be of particular importance in this case. In all these types of cases, it cannot be ignored
that it must be inferred that the professional knew of the high probability of materialization of the
criminal risk of the third party in order to be able to attribute criminal liability to him. If this is not
appreciated, due to the information available or because the compliance system can be improved or
clearly could be improved, the imputation would not be appropriate.
A third case or assumption to analyze is the one in which we find a compliance officer or
compliance professional who is in charge of monitoring and verifying compliance with the compliance
management system. Under this assumption, the examination of the possible attribution of criminal
liability may be much more complex. If the compliance system is accompanied by IT tools that provide
regular or constant information about its operation and the performance of the control mechanisms
implemented (e.g. automatic control of emissions or discharges, random analysis of a certain food
component, comparison and examination of transfers not duly justified for a given amount, etc.), it is
possible to assign its control to a specific body or bodies.
In these cases, clear information regarding the commission of a possible crime is not usually
received with the level of precision that can be obtained through the whistleblowing channel or internal
investigation; what is usually perceived is an alert signal or warnings via KRIs that point to possible
risks of criminal significance. To speak of possible criminal liability for omissive participation, we
would have to deal with cases where, for example, through monitoring, the compliance officer does
receive an alert that illustrates aspects of a certain criminal risk; for example, that toxic substances are
being discharged or are going to be discharged into an estuary above authorized levels (because the
monitoring incorporates automatic analysis of the substance to be discharged) and, despite the fact that
its protocol or procedure indicates that it must inform the corresponding body so that the appropriate
mechanisms can be deployed to stop the discharge, it does not do so. The "crux" of the matter will be to
determine whether, based on the type of warning and characteristics of the monitoring system, the
compliance officer can extract the notable or high probability of the crime. Of course, there is no scope
for attributing criminal liability to these compliance bodies when the third party, member (or members)
of the organization, who commits the crime or is going to commit it fraudulently circumvents the
monitoring and control systems.
On this point, it should be noted that, if the criminal risk is not assessed because the compliance
system is manifestly improvable, it would not be appropriate to charge those who are entrusted with the
task of overseeing its operation. With regard to the inappropriateness of attributing criminal liability to
compliance officers in cases of "improvable compliance", I believe that the arguments contained in the
Fifth Ground of Law of the Order of the Central Court of Instruction No. 6 of the Spanish National High
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
44 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Court (Día Case), dated February 26, 2021, may be illustrative, where the importance of the functions
and training of the subjects in order to determine the relevance of the imputation is emphasized59.
With respect to those compliance professionals or compliance officers of the corporation who
have been entrusted with the specific tasks of risk mapping, the following could be said: when there is
a subject or subjects of the organization that hold attributions concerning risk analysis and/or its periodic
review, we are faced with a scenario similar to the one just described with respect to those responsible
for monitoring the compliance program or system.
Consequently, criminal liability for omissive participation will not be attributed to this type of
professionals unless, during their specific work of identification, analysis and assessment of risks of
criminal transcendence in the organization, they appreciate a high probability that a crime is being
committed by a third party (or that, imminently, it is going to be committed) and that, in the protocol or
procedure that is applicable, a duty to warn the body with the corresponding competence has been
specified. That is to say, if they had complied with their due and contractually established action (the
report to the corresponding body), the crime could have been hindered. And this is without prejudice to
possible cases in which the compliance officer may be charged as the perpetrator for his own negligence
(not for participation) when he infringed his duty of care in the exercise of certain control functions.
Finally, it is worth mentioning the scenario of those legal advisors or external specialists who
provide the organization with their technical-legal knowledge on criminal matters, internal
investigations, criminal risks, etc. The considerations, opinions or reports (of extraordinary value) do
not act as a protective screen that automatically precludes the attribution of criminal liability for
improper omission on the subjects with compliance functions or compliance officers within the
organization (when the latter perceive a possible risk of criminal significance, for example, the reason
for requesting the advice). Of course, it would be necessary to evaluate the particularities of each case,
especially the data available regarding the alleged criminal risk or offense in order to determine the
existence of malice in that potential participant by improper omission (the compliance officer), even if
it is possible. Likewise, with regard to the perspective of the actions of the lawyers of the organization,
I share the opinion expressed by LASCURÁIN SÁNCHEZ when he indicates that this type of
professionals are not delegated subjects60 who occupy a position of guarantor of risk control, but rather

59Regarding the Audit and Compliance Committee (CAC), which is the name given to the body with the "compliance function"
in that company, the aforementioned court order [auto judicial] states the following: [ "III. But regardless of such a possible
conclusion of an administrative nature, what is certain is that from the point of view of strictly criminal authorship, it has not
been proven that the members of the CAC had direct or indirect knowledge of the irregular accounting practices that were
being carried out on the instructions of the CEO, Pedro Enrique. [...]Responsible for the regulatory compliance policy: Germán:
I. it is also appropriate to provisionally dismiss the case against him, since all the documentation collected shows that his degree
of control was focused more on mercantile regulatory matters than on accounting control. II. It could be argued that its
management, from the perspective of ensuring proper regulatory compliance, was "improvable", especially in relation to the
complaint of the former employee who, in several aspects, points out several of the irregular accounting practices later detected.
However, once again, such a retrospective vision would lead us to incur in a bias problem, since it is not supported by
documentary evidence. One thing is to have been able to better ensure the application of the regulatory compliance policy, such
as generating a climate of trust in the figure of the person in charge that would allow, not only the senior management personnel,
but also the employees of the next rank to come forward to expose their doubts and vision, and quite another is to try to derive
a criminal liability for it"].
60
“¿Qué pasa con el asesor jurídico de una empresa que no hace nada para evitar el delito de otro miembro de la empresa del
que él tiene conocimiento? Penalmente, nada […] No es un órgano ejecutivo y por ello no es el garante delegado de un garante
delegante: no se le ha encomendado la función ejecutiva de controlar un riesgo. Y tampoco es un órgano de cumplimiento: no
es un gatekeeper, no tiene un deber específico de impedimento cuya omisión pueda verse como una participación omisiva en
el delito. Tanto es así que algunos ordenamientos han decidido establecer tal deber por ley (así, el estadounidense a través de
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
45

they are subjects who hold executive positions related to the legal advice and defense of the interests of
the organization. Consequently, there would be no solid legal-criminal argument for attributing criminal
liability to them as participants in commission by omission in cases where they do not act to prevent
crimes committed by other members of the organization.

4. Conclusions

The reality of the bodies exercising the compliance function within organizations is
extraordinarily diverse and increasingly complex. The impact of softlaw regulations, such as the
standards on "compliance management systems" or standards deriving from them, together with
corporate practices (tending to encourage the assignment of increasingly specific functions) has
triggered a multiplying and/or amplifying effect of the roles and obligations as opposed to the traditional
figure of the compliance officer limited to the exclusively criminal sphere. The result is an evolution
towards much more complex structures and bodies where roles, positions and internal and external
positions are interrelated or intermingled. In this way, vertical and horizontal lines of connection arise
towards other figures such as risk committees, internal control bodies or other units for the prevention,
management and control of the different types of risks by subject matter.
The Spanish legal-criminal panorama has not remained outside this trend either and, despite the
fact that the Spanish Criminal Code addresses this figure in a generic (and somewhat ambiguous) way
by pointing out certain attributions that correspond to the bodies with the "compliance function". The
Circular 1/2016 of the State Attorney General's Office itself already favored the path towards
decentralization and the existence of a delegation of functions when it indicated: "This does not imply
that this body should perform by itself all the tasks that make up the regulatory compliance function,
which can be performed by other bodies or units other than the specific regulatory compliance body"61.
Within this framework, special attention must be paid to aspects and circumstances that are of
critical importance, such as: the composition and structures of this type of bodies, the requirements
regarding their configuration and effective functioning, the hierarchical relationships established or the
processes of delegation of functions. Likewise, the main risks associated with the deficits that may affect
the creation and effective functioning of these bodies must be examined.
Consequently, all this functional and organizational diversity, etc. of the compliance officers or
bodies that deal with the "compliance function", as well as the circumstances described above, must be

la ley federal Sarbanes Oxley Act)” ["What happens to the legal counsel of a company who does nothing to prevent the crime
of another member of the company of which he has knowledge? Criminally, nothing [...] He is not an executive body and
therefore he is not the delegated guarantor of a delegating guarantor: he has not been entrusted with the executive function of
controlling a risk. Nor is it a compliance body: it is not a gatekeeper, it does not have a specific duty to prevent the omission
of which could be seen as an omissive participation in the crime. So much so that some jurisdictions have decided to establish
such a duty by law (e.g., the United States through the federal Sarbanes Oxley Act)"]. In: LASCURÁIN SÁNCHEZ, Juan
Antonio. La responsabilidad pena individual en los delitos de empresa (3). In: DE LA MATA BARRANCO, Norberto;
DOPICO GÓMEZ-ALLER, Jacobo; LASCURAÍN SÁNCHEZ, Juan Antonio; NIETO MARTIN, Adán (eds.). Derecho Penal
Económico y de la Empresa, Madrid: Ed. Dykinson, 2018, p. 120-121.
61 Circular 1/2016, de 22 de enero, sobre la responsabilidad penal de las personas jurídicas conforme a la reforma del Código

Penal efectuada por Ley Orgánica 1/2015: “Ello no implica que este órgano deba desempeñar por sí todas las tareas que
configuran la función de cumplimiento normativo, que pueden ser realizadas por otros órganos o unidades distintos al específico
de cumplimiento normativo”.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
46 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

taken into account when clarifying the limited scenarios where it is possible to attribute criminal liability
to this type of professionals.
It can be stated that the set of points analyzed in this paper show that the different cases in which
compliance officers or subjects with responsibilities linked to compliance could be criminally punished
for commission by omission (improper commission) are very difficult to declare and, moreover,
constitute a complex matter, with numerous legal-criminal issues. We find ourselves in a context where
there is a lack of solid legal certainty to provide greater operational comfort to compliance officers and
bodies with unique delegated functions in the area of compliance and management of whistleblowing
channels.
The precision of the functional scope and the content of the procedures assumed by compliance
officers are of critical importance in determining a singular position of guarantor that protects the
possible attribution of criminal liability as a participant by improper omission. Therefore, it is not
accurate to make generic statements about the criminal liability of bodies with supervisory or
compliance functions, since it is essential to evaluate each specific case in a given corporate scenario.

Bibliographic references

AGUILERA GORDILLO, Rafael. Manual de Compliance Penal en España. 2ª ed. Cizur Menor: Thomson
Reuters Aranzadi, 2022
DEL ROSAL BLASCO, Bernardo. Manual de responsabilidad penal y defensa penal corporativas. Madrid:
Ed. Wolters Kluwer, 2018.
DEMETRIO CRESPO, Eduardo. Responsabilidad penal por omisión del empresario. In: MIR PUIG, Santiago
(dir.), Responsabilidad penal de las empresas y sus órganos y responsabilidad por el producto. Barcelona:
Ed. Bosch, Barcelona, 1996.
DOPICO GÓMEZ-ALLER, Jacobo. Presupuestos básicos de la responsabilidad penal del “compliance officer”
tras la reforma penal de 2015. In: FRAGO ARMADA, Juan Antonio (dir). Actualidad Compliance 2018.
Cizur Menor: Ed. Thomson Reuters Aranzadi, 2018
LASCURAÍN SÁNCHEZ, Juan Antonio. Los delitos de omisión: fundamento de los deberes de garantía.
Madrid: Ed. Civitas, 2002
LASCURÁIN SÁNCHEZ, Juan Antonio. La responsabilidad pena individual en los delitos de empresa (3). In:
DE LA MATA BARRANCO, Norberto; DOPICO GÓMEZ-ALLER, Jacobo; LASCURAÍN SÁNCHEZ, Juan
Antonio; NIETO MARTIN, Adán (eds.). Derecho Penal Económico y de la Empresa, Madrid: Ed. Dykinson,
2018
MAZA MARTIN, JOSE MANUEL; miembros de la Junta Directiva de la Asociación Española de Compliance y
diversas instituciones; Libro Blanco sobre la Función de Compliance [White Paper on the Compliance
Function], marzo, 2017.
PASTOR MUÑOZ, Nuria. ¿Responsabilidad penal del socio por la criminalidad de la empresa? Reflexiones sobre la
posibilidad de fundamentar una posición de garantía del socio. Diario la Ley, nº 9400, 2019, p. 1-14.
ROBLES PLANAS, Ricardo. Principios de imputación en la empresa. In: BACIGALUPO SAGGESE, Silvina;
FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo; ECHANO BASALDUA, Juan Ignacio (coords.). Estudios de Derecho Penal.
Homenaje al profesor Miguel Bajo. Madrid: Ramón Areces, 2016
THE INSTITUTE OF INTERNAL AUDITORS; The IIA’S three lines model. In: Official website of The Institute
of Internal Auditors (IIA).

Regulatory references

Spanish Criminal Code was approved by Oganic Law 10/1995, of November 23, 1995. In: Boletín Oficial de
Estado núm. 281, de 24/11/1995. Available at: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1995-25444 .
Circular 1/2016 of the State Attorney General's Office -Spanish- on the criminal liability of legal persons under
the reform operated by the organic law 1/2015 (which is a document addressed to all prosecutors where the criteria
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
47

to be followed in matters of corporate criminal liability, compliance bodies and compliance systems are
contemplated). Although this document refers to the compliance officer in many sections, it devotes a specific
section to this figure: 5.4. The compliance officer. In: Doctrina de la Fiscalía General del Estado, FIS-C-2016-
00001, 22/01/2016. Available at: https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=FIS-C-2016-00001.
Real Decreto Legislativo 1/2010, de 2 de julio, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley de Sociedades
de Capital. In: Boletín Oficial de Estado núm. 161, de 03/07/2010. Available at:
https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2010-10544
Ley 2/2023, de 20 de febrero, reguladora de la protección de las personas que informen sobre infracciones
normativas y de lucha contra la corrupción. In: Boletín Oficial de Estado núm. 44, de 21/02/2023. Available at:
https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2023-4513
Directive (EU) 2019/1937 of the European Parliament and of the Council of 23 October 2019 on the protection of
persons who report breaches of Union law. In: Official Journal of the European Union, L 305/17,
26.11.2019.Available at: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A32019L1937 Access
on: 16th June 2023.
Legislative Decree 231 of June 8 of the year 2001, published on the Gazzetta Ufficiale. In: Gazzetta Ufficiale
della Repubblica Italiana n.º 140 (19th june 2001), p. 4. http://www.camera.it/parlam/leggi/deleghe/01231dl.htm.
Evaluation of Corporate Compliance Programs (Updated March 2023)- U.S. Department of Justice Criminal
Division- Question II- I. Is the Corporation’s Compliance Program Adequately Resourced and Empowered to
Function Effectively?- B- Autonomy and Resources-. In: U.S. Department of Justice Criminal Division. Available
at: https://www.justice.gov/opa/speech/file/1571911/download
UNE-ISO 37001- Anti-Bribery Management Systems.
ISO 37301:2021 - Compliance Management systems.
ISO 37002:2021 - Whistleblowing Management System.
ISO/AWI 37003 Fraud Control Management Systems.
ISO/DTS 37008 - Internal Investigations of Organizations.
UNE-ISO 37000:2022- Governance of Organizations.
UNE 19601:2017 - Criminal Compliance Management System.
UNE 19602:2019 - Tax Compliance Management Systems.

Court decisions cited (from Spain)

STS nº 1828/2002, 25th October.


STS nº 1273/2004, 2nd November.
STS nº 258/2007, 19th July 19.
STS nº 503/2008, 17th July.
STS nº 234/2010, 11th March.
STS nº 749/2010, 16th December.
STS nº 311/2014, 16th April,
STS nº 442/2014, 2nd June.
STS nº 221/2016, 16th March.
STS nº 234/2019, 8th May.
STS nº 3430/2020, 22nd October.
STS nº 4116/2022, 11th November.
STSJ Madrid nº 921/2022, 30th November.
Fifth Ground of Law of the Order of the Central Court of Instruction No. 6 of the Spanish National High Court
(Día Case), February 26th, 2021.

Recebido: 19/06/2023
Aprovado:01/09/2023
49
Tortura nunca mais?
O que nos ensina o “Caso Evandro”

No more torture?
What the “Evandro Case” teach us

César Augusto Luiz Leonardo


Doutor em Direito (2018) e Mestre em Direito (2013) pela Universidade de
São Paulo (USP). Graduado e especialista em Direito Processual Civil pela
Associação Educacional Toledo de Presidente Prudente - SP (2006). Atualmente é
Defensor Público - Defensoria Pública do Estado de São Paulo, na Regional de
Marília, e leciona as disciplinas de Direito Processual Civil e Direito Processual
Constitucional no Curso de Graduação em Direito e no curso de Mestrado em
Direito no Centro Universitário Eurípides de Marília - SP (UNIVEM). Membro do
CEAPRO (Centro de Estudos Avançados em Processo). Palestrante e professor
convidado em cursos de Pós-graduação.

Heitor Moreira de Oliveira


Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo;
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de
Marília – UNIVEM; Bacharel em Direito pela Universidade Federal
de Goiás – UFG, com intercâmbio na Universidade de Coimbra.

Resumo: Este artigo pretende refletir sobre a atualidade da prática da tortura no Brasil,
notadamente sobre o seu uso como instrumento para a obtenção de confissões que,
posteriormente, são levadas aos processos judiciais e valoradas como provas que dão azo a
condenações manifestamente injustas. Ainda, objetiva-se elencar algumas medidas que podem
ser vislumbradas como mecanismos de correção contra a cultura de impunidade e uso sistemático
da tortura. Para tanto, vale-se de ampla revisão sistemática da bibliografia sobre o tema, incluindo
convenções internacionais, atos normativos e relatórios produzidos por instituições abalizadas.
Além disso, será feito estudo de caso sobre rumoroso julgamento que culminou na condenação
de sete pessoas inocentes por suposto crime praticado em contexto de ritual satânico na cidade de
Guaratuba, litoral do Paraná, na década de 1990. O foco será, especialmente, o uso da tortura
durante as investigações policiais do denominado “Caso Evandro”. À luz do referido caso, o
problema de pesquisa é, justamente, verificar em que medida ainda persiste a tortura como prática
institucional dos aparatos policiais no Brasil. A hipótese que norteia o trabalho é que, ainda hoje,
a tortura é empregada porque há impunidade e as provas ilícitas dela derivadas continuam a ser
valoradas para condenações injustas.

Palavras-Chave: O Caso Evandro; provas ilícitas; erro judiciário; polícia; confissão.

Abstract: This article intends to reflect upon the current practice of torture in Brazil,
notably on its use as an instrument to obtain confessions that are later taken to the judicial
proceedings and valued as evidence giving rise to manifestly unfair convictions. Still, the
objective is to list some measures that can be envisioned as corrective mechanisms against
the culture of impunity and systematic use of torture. For that, it makes use of a wide
systematic review of the bibliography on the subject, including international conventions,
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
50 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

normative acts and reports produced by authoritative institutions. In addition, a case study
will be carried out on a rumored trial that culminated in the conviction of seven innocent
people for an alleged crime committed in the context of a satanic ritual in the city of
Guaratuba, on the Paraná coast, in the 1990s. The focus will be the use of torture during
the police investigations of the so-called “Evandro Case”. In light of the aforementioned
case, the research problem is precisely to verify to what extent torture still persists as an
institutional practice of police apparatus in Brazil. The hypothesis that guides the work is
that, even today, torture is used because there is impunity and the illicit evidence derived
from it continues to be valued for unjust convictions.

Keywords: The Evandro Case; illicit evidence; miscarriage of justice; police; confession.

1 Introdução

“O fato puro e simples de a tortura existir, ser permitida, ser tolerada –


ou não poder deixar de existir – denuncia todos os dias o fracasso da
ideia de humanidade do homem. Evidencia que o homem é essa
imponderável incerteza que cria e destrói, que faz nascer e extermina,
que mata para viver e vive para matar.”1
A citação acima, que inaugura o presente estudo, foi extraída de artigo científico da lavra do
professor Paulo Endo, psicanalista, e destaca, a um só tempo, que a tortura é uma odiosa prática que
representa o que de pior pode ser feito pelo ser humano e que, infelizmente, cuida-se de fenômeno que
ainda hoje persiste em se perpetuar.
Aliás, a pesquisa do professor Endo, publicada em 2018, tinha como objetivo promover um
comparativo entre os resultados empíricos descritos em dois trabalhos que examinaram a situação da
tortura no Brasil e que igualmente servirão de subsídio para o presente artigo, a saber: o Relatório
apresentado pelo Relator Especial Contra a Tortura, da Organização das Nações Unidas (ONU), Sir
Nigel Rodley, elaborado após visita feita ao Brasil, apresentado em abril de 2001 à Comissão de Direitos
Humanos da ONU e catalogado sob o número E/CN.4/2001/66/Add. 22; e o Relatório Anual 2015-2016
do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)3. Foi concluído, então, que
mesmo decorridos os quinze anos que separam a análise de Nigel Rodley e o estudo do MNPCT, muito
pouco se alterou ou, em verdade, aumentaram-se os números de torturas praticadas no país,
principalmente pela Polícia Civil e Militar. Tudo a indicar que, ainda nos dias de hoje, a tortura
permanece sendo uma prática usualmente utilizada no Brasil, especialmente pelas forças policiais e de
segurança pública. Com efeito, “provavelmente seria possível concluir que nenhuma das 30
recomendações da ONU, de 2001, foi levada às últimas consequências, indicando claramente que há no
Brasil um sistema implantado pró-tortura”4.

1 ENDO, Paulo. Sobre a prática da tortura no Brasil. Revista USP. n. 119. São Paulo, SP: 2018, p. 45.
2 RODLEY, Nigel. Relatório sobre a tortura no Brasil. Produzido pelo relator especial sobre a tortura da Comissão de Direitos
Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Genebra, Suíça: 2001.
3 BRASIL. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2015-2016. Brasília, DF: 2016.
4 ENDO, Paulo. op. cit., p. 57.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
51

Passam-se os anos, mas a tortura permanece, ainda que de modo escamoteado. Inclusive, em
abril de 2022, a jornalista Míriam Leitão, colunista de ‘O Globo’, publicou áudios de Ministros do
Superior Tribunal Militar (STM) que relatam casos de tortura durante o período da ditadura militar, em
mais de 10 mil horas de gravação, obtidos pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, donde se ouve, dentre outros relatos, este: “Por que razão ele havia confessado? E ele disse:
'Ou a gente confessa ou entra no pau'. E é o que está acontecendo”5.
A propósito, o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 10 de dezembro de
2014, no Capítulo 9, da Parte III (“Métodos e práticas nas graves violações de direitos humanos e suas
vítimas”), do Volume I, bem destacou o caráter massivo e sistemático da tortura praticada pelo aparelho
repressivo do regime militar, e anotou que “a tortura passou a ser sistematicamente empregada pelo
Estado brasileiro desde o golpe de 1964, seja como método de coleta de informações ou obtenção de
confissões (técnica de interrogatório), seja como forma de disseminar o medo (estratégia de
intimidação)”6.
Contudo, a tortura não foi criação da ditadura militar e tampouco cessou com a
redemocratização do Brasil, infelizmente. Deveras, “embora a tortura seja moralmente condenada e
amplamente combatida, ela continua a ocorrer em todas as partes do mundo, tanto em regimes
democráticos quanto em regimes autoritários”7 e na história do Brasil tem sido um método empregado
sistematicamente, sobretudo contra a parcela da população mais marginalizada e subalternizada,
principalmente os negros e pobres8.
Ainda hoje, portanto, há inequívoca atualidade do tema, o que definitivamente justifica a
presente pesquisa. Nesse sentido, aliás, segundo levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio de
Janeiro, entre junho de 2019 e agosto de 2020, 1.250 pessoas foram submetidas a tortura física e
psicológica e maus tratos ao serem presas, principalmente, em flagrante9.
Diante desse cenário de persistência histórica da adoção da tortura, este artigo tem por objetivo
investigar quais as razões que explicam por que ainda hoje, ou seja, mais de trinta anos depois do fim
da ditadura militar, são comuns relatos de pessoas que alegam terem sido torturadas pela Polícia, Civil
ou Militar, de todos os cantos do Brasil.
A reflexão que ora se propõe tenciona verificar, especialmente, o que justifica a Polícia
brasileira, ainda hoje, fazer uso da tortura como mecanismo de obtenção de confissões de pessoas presas
e/ou possíveis suspeitos, que são trasladadas para processos judiciais e acabam por desencadear
condenações criminais flagrantemente injustas.
Numa perspectiva propositiva, também se objetiva arrolar algumas sugestões de mecanismos
corretivos que podem contribuir para eliminar em definitivo com a cultura da impunidade e com o uso
sistemático da tortura pelo Estado brasileiro.

5 G1. Em áudios, integrantes do Superior Tribunal Militar relatam casos de tortura durante ditadura. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/04/17/audios-do-superior-tribunal-militar-mostram-relatos-de-tortura-durante-a-
ditadura.ghtml. Acesso em: 19 abr. 2022.
6 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório da Comissão Nacional da Verdade, vol. 1. Brasília: CNV, 2014.
7 ALVAREZ, Marcos César. Tortura, história e sociedade: algumas reflexões. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol.

72. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2008, p. 275.


8 ALVAREZ, Marcos César. op. cit.
9 G1. Defensoria Pública diz que, em um ano, 1.250 pessoas sofreram maus-tratos e tortura ao serem presas no RJ. Disponível

em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/09/17/defensoria-publica-diz-que-em-um-ano-1250-pessoas-sofreram-
maus-tratos-e-tortura-ao-serem-presas-no-rj.ghtml. Acesso em: 30 jun. 2022.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
52 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Nessa linha de raciocínio, o problema de pesquisa a ser enfrentado é o seguinte: “por que a
tortura ainda é uma prática sistemática no Brasil, notadamente como método para a extração de
confissões criminais?”.
A hipótese que norteia o desenvolvimento da pesquisa é a de que a continuidade do uso da
tortura tem como possível causa a impunidade na investigação das denúncias e para o esclarecimento
dos fatos e, inclusive, para a responsabilização dos agentes torturadores, bem como a condescendência
do Poder Judiciário nacional quanto à admissão de provas obtidas por meio de torturas, cuja alegação é
sistematicamente rechaçada pelos juízes.
Para alcançar os seus objetivos e a fim de responder a questão de pesquisa, o presente trabalho
se pauta em ampla revisão sistemática de bibliografia autorizada sobre o tema, incluindo convenções
internacionais, atos normativos, a exemplo de leis e de resoluções do Conselho Nacional de Justiça, bem
como os dois relatórios citados acima (Relatório de Nigel Rodley, de 2001, e o Relatório Anual 2015-
2016 do MNPCT).
A par disso, é realizado um estudo de caso sobre o episódio criminal que ficou amplamente
conhecido como “As Bruxas de Guaratuba” e diz respeito ao assassinato brutal do menino Evandro
Ramos Caetano, em 1992, na cidade litorânea de Guaratuba, no Estado do Paraná, que deflagrou
posterior acusação e prisão de sete pessoas, a saber: Beatriz e Celina Abagge, respectivamente filha e
mulher do Prefeito de Guaratuba à época dos fatos, os “pais-de-santo” Osvaldo Marcineiro, Vicente de
Paula Ferreira e Davi dos Santos Soares10, além de Airton Bardelli e Francisco Sérgio Cristofolini. Com
exceção dos dois últimos, todos os demais acusados confessaram extrajudicialmente a suposta
participação no homicídio do garoto Evandro, inclusive com gravação em fitas cassete (áudio) e VHS
(vídeo), mas posteriormente e durante todo o curso do processo, alegaram que confessaram mediante
tortura levada a cabo pela Polícia Militar, o que também foi mencionado por Bardelli e Cristofolini. As
alegações de tortura, contudo, foram desacreditadas e Beatriz, Osvaldo, Vicente e Davi acabaram
condenados a longas penas privativas de liberdade, e, inclusive, de Paula veio a óbito enquanto estava
preso.
O caso voltou a ganhar repercussão nacional com a publicação, em 2018, do podcast produzido
por Ivan Mizanzuk denominado O Caso Evandro, e posteriormente lançado em formato de série
documental, de mesmo nome, pelo streaming Globo Play. Ao longo do trabalho, o jornalista obteve
acesso a gravações inéditas, que não tinham sido incluídas nos autos processuais, que demonstram, à
saciedade, fortes elementos de prática de tortura contra os acusados, o que veio à baila no episódio 25
(Sete segundos).
Nessa toada, a proposta do presente artigo, composto por cinco seções, incluindo esta introdução
e as considerações finais, é estabelecer, à luz do “Caso Evandro”, uma análise crítica sobre a persistência
histórica e a continuidade atual do emprego da tortura pelos aparatos policiais brasileiros, mormente
para a extração de (falsas) confissões que são (ainda que desavisadamente) utilizadas para embasar
condenações penais injustas.
Desde já, é importante deixar claro que, conforme se evidencia nas linhas que seguem, em que
pese se tratar de um caso judicial da década de 1990, portanto, de trinta anos atrás, o que ali se verificou,
lamentavelmente, insiste em acontecer, ainda hoje, na realidade brasileira, de sorte que muitos casos

10Na verdade, Davi dos Santos Soares era o Vice-Presidente da Associação dos Artesãos de Guaratuba, contudo, acabou sendo
amplamente referenciado, inclusive pela mídia, como mais um “pai-de-santo”.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
53

atuais, da década de 2020, refletem muito do que ali se verificou. Portanto, analisar o “caso Evandro” é,
segundo nossa proposta, um bom material que serve de objeto de reflexão sobre as práticas (policiais,
judiciais, estatais, etc.) que ainda são adotadas.

1. O “caso Evandro” ou “As Bruxas de Guaratuba”

Na onda de uma série de sequestros contra crianças no Estado do Paraná no início da década de
1990, no dia 06 de abril de 1992, na cidade de Guaratuba, no litoral paranaense, o pequeno Evandro
Ramos Caetano, que contava com seis anos de idade, desapareceu quando fazia o trajeto entre a casa e
a escola. Para a investigação do possível sequestro, foi acionado o Grupo T.I.G.R.E. (Tático Integrado
de Grupos de Repressão Especial), equipe de elite da Polícia Civil do Paraná. Poucos dias depois do
sumiço do garoto, em 11 de abril, o seu corpo foi encontrado, num matagal, mutilado, sem as mãos,
escalpelado e com as vísceras arrancadas. A investigação da Polícia Civil prosseguiu para que se
esclarecesse o homicídio do pequeno Evandro, contudo, sem grandes avanços. O caso apresentou
significativa reviravolta com as prisões efetuadas pelo Grupo ÁGUIA (Ação de Grupo Unido de
Inteligência e Ataque) da P-2, o setor de inteligência da Polícia Militar do Paraná, na chamada
“Operação Magia Negra”. No dia 1º de julho de 1992, foram presos Osvaldo Marcineiro e Davi dos
Santos Soares; no dia seguinte, 02 de julho, Celina Abbage, Beatriz Abbage e Vicente de Paula Ferreira;
e, finalmente, no dia 03 de julho, Airton Bardelli e Francisco Sérgio Cristofolini. De fato, após breve
investigação deflagrada a pedido do Doutor Celso Carneiro Amaral, então Procurador de Justiça do
Estado do Paraná, em atenção às denúncias formuladas por Diógenes Caetano dos Santos Filho, parente
próximo de Evandro, a Polícia Militar concluiu que o crime bárbaro teria sido cometido pelos sete
presos, a título de sacrifício em ritual de magia negra, encomendado pela esposa do então Prefeito de
Guaratuba, com a finalidade de trazer fortuna e conquistas políticas para a família11.
O caso contém considerável complexidade, na medida em que envolve muitos elementos de
diferentes naturezas, a exemplo de disputas políticas, trama motivada por vingança pessoal e
preconceitos de ordem religiosa. A bem dizer, no caso Evandro “o que não falta são teorias da
conspiração – tanto para a defesa quanto para a acusação”12, razão pela qual “as convicções sobre a
culpa ou a inocência nesse processo parecem se formar não por méritos das partes, mas por absurdos
feitos pelos opositores”13.
Os sete presos foram denunciados pelo Ministério Público, processados no âmbito do Poder
Judiciário do Estado do Paraná, pronunciados e, em seguida, julgados pelo Tribunal do Júri. Ao longo
de décadas, ocorreram diversos julgamentos, incluindo aquele que ficou conhecido como o mais longo
da história do Brasil, realizado na cidade de São José dos Pinhais, em 1998, e que durou um total de
trinta e quatro dias. Ao final, Celina e Beatriz foram absolvidas, porque o corpo de jurados votou
negativamente o quesito da materialidade, endossando a tese defensiva de que o corpo achado no
matagal não pertencia ao garoto Evandro. Entretanto, o júri foi anulado pelo Tribunal de Justiça do
Paraná, pois se entendeu que o resultado era manifestamente contrário à prova dos autos, sobretudo

11 PROJETO HUMANOS: O caso Evandro. [Locução de]: Ivan Mizanzuki. 2019. Podcast. Disponível em:
https://open.spotify.com/show/3ImOWdGnN8mHFNaKwMSFJx. Acesso em: 02 fev. 2022.
12 MIZANZUK, Ivan. O caso Evandro - sete acusados, duas polícias, o corpo e uma trama diabólica. Rio de Janeiro:

HarperCollins, 2021, p. 176.


13 MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 271.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
54 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

porque o caso Evandro foi uma das primeiras investigações criminais no Brasil a empregar técnicas de
DNA, tendo sido realizado exame que comprovara que o corpo era de Evandro. Ao fim e ao cabo,
Osvaldo, Davi e de Paula foram condenados em julgamento de 2004 e Beatriz foi condenada no ano de
20111415.
O processo judicial que resultou na condenação de quatro dos sete acusados foi marcado por uma
intensa disputa de narrativas entre acusação e defesa. Nesse sentido, a defesa baseou sua argumentação
em quatro teses principais, a saber: que a investigação conduzida pela Polícia Militar era ilegal e
inconstitucional; que tudo não passou de uma perversa trama montada por Diógenes Caetano dos Santos
Filho, declarado inimigo da família Abagge, que tinha interesse em se vingar de Celina, suposto pivô
que provocou o divórcio de seus pais; que o corpo encontrado no dia 11/04/1992 não era de Evandro; e
que os sete acusados teriam sido submetidos a cruéis sessões de tortura, o que deu azo às confissões
extrajudiciais declaradas e gravadas pelo Grupo ÁGUIA.
Considerando as condenações de Osvaldo, Davi, Vicente e Beatriz, é fato que, apesar dos relatos
das vítimas, a tese de tortura não restou acreditada pelos jurados.
Anos depois, no dia 31 de outubro de 2018, o professor e jornalista independente Ivan Mizanzuk
publicou o primeiro episódio de O Caso Evandro, a quarta temporada do podcast Projeto Humanos16.
Num total de trinta e seis episódios, o podcast revisitou os principais pontos que permearam o caso,
incluindo os meandros dos julgamentos dos sete réus, valendo-se dos áudios das gravações de algumas
das sessões do Júri popular. O trabalho ganhou ampla notoriedade e resultou na produção de série
documental pelo streaming Globoplay, bem como na publicação de um livro de autoria de Mizanzuk.
Para fins deste trabalho, insta salientar que foram exploradas as alegações de tortura, inclusive com a
reprodução de depoimentos dos acusados sobre o que teriam sofrido, divulgadas no podcast e/ou
contidas na obra de Mizanzuk, bem como em autobiografia lançada por Celina e Beatriz Abagge logo
após a repercussão positiva do podcast.

1.1. As alegações de torturas

Como dito, os sete acusados, sem exceção, declararam ter sofrido torturas por parte dos policiais
militares que efetuaram as suas prisões. Com efeito, “durante todo o processo do caso Evandro, a defesa
das Abagge buscou construir a tese da tortura”17.
Segundo a versão dos réus Osvaldo e Davi, um grupo de policiais os capturaram e os levaram
para a residência do ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, no município de Guaratuba, que serviu
como uma “casa ou chácara das torturas”. Lá, teriam sofrido toda espécie de ameaças e agressões, físicas
e psicológicas. Nessa toada, alegam que foram vítimas de afogamento, que levaram choques e que

14 Airton Bardelli e Francisco Sérgio Cristofolini foram absolvidos em julgamento ocorrido em 2005. Contra a decisão, foi
interposto recurso pelo Ministério Público, porém reconheceu-se a extinção da punibilidade pela ocorrência da prescrição. Da
mesma forma, devido à redução do prazo prescricional pela avançada idade, Celina Abagge não foi submetida a novo júri, pois
sua punibilidade já estava extinta.
15 PROJETO HUMANOS: O caso Evandro. op. cit.
16 PROJETO HUMANOS: O caso Evandro. op. cit.
17 MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 157.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
55

sofreram variadas sevícias, além de ouvir gritos e testemunharem agressões alheias, que serviam para
construir um ambiente ameaçador, de pressão e de desespero, que despertou aflição e angústia18.
No mesmo sentido, Beatriz e Celina também alegaram terem sido levadas para a mencionada
“casa das torturas” e lá submetidas a sessões de insuportável dor e medo19.
A tese que a defesa buscou, ainda que sem êxito, emplacar nos julgamentos era a de que os
acusados foram gravemente torturados pelos policiais para que confessassem ter matado o menino
Evandro num ritual satânico, e que, por horas, foram violentados freneticamente para que reproduzissem
fatos, ‘encaixando’ a narrativa o mais próximo possível dos elementos contidos na denúncia apresentada
por Diógenes dias antes ao Ministério Público do Estado do Paraná. Portanto, o objetivo espúrio da
tortura infligida contra os acusados era nítido: fazê-los confessar crime que alegam não ter cometido.
Aqui, convém transcrever parte do depoimento judicial prestado por Beatriz e reproduzido entre
52’24’’ e 57’22’’ do episódio 10 (As prisões de 1 e 2 de julho) do podcast, que foi ao ar em 13/03/201920.
Ao leitor, convém alertá-lo antecipadamente que o trecho a seguir é forte e contém denso relato de
agressão sexual (estupro).

Eles me levaram para um quarto. Quando eu cheguei nesse quarto, eles me jogaram
numa cama. Eu comecei a ouvir os gritos da minha mãe. Eu pedi para eles não
colocarem a mão nela, porque ela tinha problema de coração. [choro] Aí eles foram
tirando a minha roupa e falavam: “que putinha gostosa que você é”. Tiraram a minha
bota. Tiraram a minha calça. E tentaram me virar de costas. Nesse momento, eu senti
alguma coisa sendo introduzida no meu ânus. [choro] Eu gritava “tira a mão de mim,
seus porcos, isso não, isso não. Eles arrancaram toda a minha roupa. No momento em
que eles foram arrancar a minha blusa, eu consegui ver exatamente o rosto daquele
monstro que estava em cima de mim. Uns me seguravam pelos braços, outros me
seguravam pelas pernas. [...] Eles foram me violentando. [choro] Eles me violentavam
ora pela frente, ora por trás. Introduziam objetos e eu gritava. Eu gritava e pedia “pelo
amor de Deus, parem com isso”. Eles não paravam nunca. Não foi uma, nem duas,
foram várias vezes. [...] Eles me jogaram nessa outra cama. Eu estava inteiramente
nua. Eles começaram o afogamento. Pegaram uma toalha com sabão e apertavam em
mim, falavam assim “foi assim que você matou a criança?”, e eu dizia “que criança?”,
eu não sabia por que, não sabia o que eles queriam de mim. Eu só dizia que não tinha
feito nada, para eles pararem com aquilo. E eles continuaram com o afogamento, com
a toalha molhada de sabão, por bastante tempo. Nisso, eles entravam no quarto todos
correndo, saiam todos correndo. Eu não sei precisar quantos policiais estavam.
Policiais não, são torturadores, são monstros.21

No mesmo sentido, em seu livro de memórias, Beatriz detalha o modus operandi que a Polícia
Militar paranaense teria adotado para fazê-la encampar, mediante tortura, a narrativa que desejavam ver
reproduzida pela prisioneira.

Amarraram fios nos meus dedos e comecei a sentir choques elétricos. Estavam me
treinando para eu saber o que deveria e como deveria falar durante a ‘confissão’. Com
os choques, meus esfíncteres relaxaram. Evacuei e urinei nas calças. Desmaiei
diversas vezes. Não aguentava mais e ia, aos poucos, falando tudo o que mandavam.
Quando errava alguma palavra, eles davam novamente o choque e diziam: –– Fale

18 PROJETO HUMANOS: O caso Evandro. op. cit.


19 PROJETO HUMANOS: O caso Evandro. op. cit.
20 Disponível em: https://www.projetohumanos.com.br/o-caso-evandro/10-as-prisoes-de-1-e-2-de-julho/.
21 PROJETO HUMANOS: O caso Evandro. op. cit.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
56 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

tudo certinho que não fazemos mais nada com você. Eu prometo que vou deixar vocês
em Guaratuba e lá vocês terão advogados... Agora confesse! –– Não é assim... Diga
que você matou a criança. Então eu dizia o que eles queriam: –– Eu matei a criança,
pronto! E assim continuaram até se sentirem satisfeitos e com tudo que queriam
gravado em fita cassete.22

Na mesma obra, também Celina ilustra a forma como a tortura foi utilizada como mecanismo de
extração forçada de falsas ‘confissões’. O procedimento consistia, em síntese, no aperfeiçoamento da
versão dos fatos mediante reiteradas agressões:

–– Celina, você vai dizer que matou o menininho e que está arrependida. Fale quando
eu apertar o seu braço. –– Eu matei o menininho! –– Matou como? Antes de ligar
novamente o gravador, o policial dizia com o que e como eu teria cometido o crime.
–– Matei com uma serra. –– Que serra? –– Serra de cortar pão! Gravador desligado.
Socos, tapas, estrangulamento. –– Está bem, com serra da serraria! E assim foi. Se
não estava como queriam, batiam em mim, torciam meu braço para trás, minha perna
para cima... E eu não aguentava mais! Quando ficaram satisfeitos, saíram.23

Cumpre registrar, uma vez mais, que, malgrado os relatos supratranscritos, a tese de tortura não
foi reconhecida pelos jurados e jamais foi reputada como digna de fé pelo Ministério Público do Estado
do Paraná. De outra banda, as confissões dos acusados inequivocamente serviram como elemento de
convencimento para suas condenações24, até mesmo pela notória repercussão social que gerou a
transmissão midiática, nas redes de televisão, da gravação do áudio dos acusados supostamente
confessando o crime. Afinal, “Com os casos penais polêmicos que são abordados pela mídia,
especialmente, os que tratam de crimes contra a vida, percebe-se que os acusados são vistos, pela
sociedade, como pessoas indignas de viver no meio social”25. Deveras, não há como ignorar a
espetacularização que se criou com a prisão dos sete acusados e o impacto que isso deflagrou no
imaginário social, fomentado pela veiculação nacional das confissões. Aliás, no dia 03 de julho de 1992
os réus Osvaldo, Davi e de Paula foram apresentados ao público numa entrevista coletiva na Secretaria
de Segurança Pública do Paraná, onde, mais uma vez, sob os holofotes de muitas câmeras, confessaram
a prática do crime. Aqui é importante registrar que “a imprensa sensacionalista forma a opinião de
milhares de pessoas a partir de narrativas enviesadas, capazes de construir no imaginário social a figura
de inimigos sociais, por meio de julgamentos morais sumários”26, o que não foi diferente com o caso
Evandro, que recebeu massiva atenção dos meios de comunicação.
Cumpre registrar ainda que, não sem alguma dose de polêmica27 (o que, em se tratando do “caso
Evandro” se tornou algo ordinário), as alegações de torturas foram objeto de investigação no bojo de

22 ABAGGE, Celina Cordeiro; ABAGGE, Beatriz Cordeiro; organização de Sheila Cordeiro Abagge. Malleus: relatos de
injustiça, tortura e erro judiciário. 1ª ed. Curitiba: Brazil Publishing, 2021, p. 53.
23 ABAGGE, Celina Cordeiro; ABAGGE, Beatriz Cordeiro. op. cit., p. 38.
24
MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 177.
25 SANTOS, Mariane Isabel Silva dos; CAMPELO, Raissa Braga; SILVA, Pollyana de Queiroz. Influências midiáticas nas

decisões dos magistrados criminalistas. Revista da Defensoria Pública da União. n. 7. Brasília, DF: jan./dez. 2014, p. 143.
26 MONTEIRO, Paulo Henrique Drummond. Papéis sociais, preconceito, estereótipo e estigma. A apresentação da imagem/voz

de pessoas presas como instrumento do processo de degradação da personalidade. Revista do Instituto de Ciências Penais. v.
4. Belo Horizonte, MG: 2019, p. 410.
27 Uma das alegações da defesa durante os julgamentos dos acusados consistia na indevida participação de membro do

Ministério Público que também teria contribuído para as torturas e, mesmo assim, atuou como órgão oficiante no curso do
inquérito policial de investigação das alegações de torturas.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
57

inquérito policial aberto em 06 de novembro de 1992 a pedido da defesa das Abagge. Entretanto, ao fim
e ao cabo, o inquérito foi arquivado.
Sem dúvidas, as alegações das torturas ganharam importante contribuição da advogada Isabel
Kugler Mendes, que à época chefiava o Conselho Municipal da Condição Feminina, órgão responsável
pela elaboração de dois dossiês sobre o tema: o primeiro, “Relatório - Caso Evandro de Guaratuba”, foi
feito no dia 23 de novembro de 1992; o segundo, mais completo, data do dia 23 de junho de 1993, e é
intitulado “Tortura Nunca Mais?”, contendo uma série de depoimentos dos acusados, colhidos em visitas
que fez às penitenciárias onde estavam presos. Note o leitor que o título do presente artigo retoma aquele
do segundo dossiê, que, na forma de pergunta, provoca inquietação: depois de um longo período de
ditadura militar que se notabilizou pelo uso sistemático da tortura, o anseio da população brasileira, pelo
fim do emprego da tortura, tornou-se realidade? Infelizmente, o caso Evandro mostrava que o lema
“Tortura Nunca Mais” continuava sendo mais um programa de expectativas para o futuro do que uma
conquista em termos práticos no tempo presente. Nessa trilha, considerando que o caso Evandro ocorreu
pouco tempo após a vigência da Constituição de 1988, este artigo lança a indagação se atualmente, após
mais de trinta anos, “Tortura Nunca Mais” permanece sendo uma pretensão ou se a abolição do uso da
tortura é, de fato, uma realidade.

1.2. As comprovações de torturas

Em várias oportunidades em que se dirigiu à imprensa ou mesmo em que foi inquirido em juízo,
Diógenes Caetano sempre insistia na existência de outra fita cassete que continha mais uma confissão
de Osvaldo Marcineiro28. Contudo, a citada fita não constava dos autos, o que fez com que Ivan
Mizanzuk sobre ela se referisse como “uma fita fantasma”29.Ocorre que, durante o tempo em que
publicava os episódios do podcast, uma fonte anônima disponibilizou para o jornalista Ivan Mizanzuk
a tal fita remanescente (em verdade, duas fitas), cujo teor finalmente tornou-se público com o
lançamento do episódio de número 25 de O caso Evandro30. Nas palavras do próprio Ivan:

A partir do momento em que falaram das torturas, Osvaldo, Davi, De Paula, Beatriz e
Celina repetiam que os policiais gravavam constantemente o que diziam com um
pequeno gravador. Contudo, os únicos registros anexados ao processo eram as fitas
VHS dos dias 2 e 3 de julho e a fita cassete com a confissão das Abagge, no início da
qual aparece, de maneira inexplicável, Osvaldo. Para a promotoria, era falsa a
afirmação dos réus de que havia gravações além daqueles vídeos e da fita cassete. Mas
as fitas que recebi provam que os acusados falavam a verdade. 31

As fitas novas trouxeram sólidos indícios de que, de fato, os acusados foram submetidos a cruéis
sessões de tortura para que confessassem o homicídio de Evandro. De fato, “É chocante, ao ouvir (...),
perceber a voz ofegante de Osvaldo, algo que não se espera de um interrogatório policial, e o momento
em que ele, quando diz seu endereço, dá um grito de dor”32. Não só. As novas fitas contêm vários trechos
que evidenciam o uso de técnicas de inquirição inadequadas, bem como súplicas e manifestações verbais
de dor e tensão, tudo a conduzir para a irrefutável conclusão de que houve torturas. Nesse sentido, é o

28 PROJETO HUMANOS: O caso Evandro. op. cit.


29 MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 188-189.
30 Disponível em: https://www.projetohumanos.com.br/o-caso-evandro/25-sete-segundos/.
31 MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 317-318.
32 MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 320.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
58 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

que se extrai do trecho em que Osvaldo, em voz ofegante, diz ao inquiridor: “Não faz isso, por favor, eu
tô falando tudo, eu tô cooperando”33. Ainda, em outro trecho, ouve-se o interrogador de Beatriz dizendo-
lhe: “Olhe, menina, acho que nós vamos ter que continuar na nossa sessão”34. Em suma, “se há algo que
essas fitas nos contam é que houve muita invenção e dor”35.
Aliás, até mesmo o Doutor Paulo Markowicz, então Promotor de Justiça que liderou a acusação
nos Júris do caso Evandro, não conteve a estranheza diante do teor das novas fitas, conforme registrou
Ivan Mizanzuk, referindo-se ao momento da apresentação ao membro do Ministério Público nas
gravações da série do Globoplay:

Mais reticente, o promotor Markowicz começa dizendo não notar nada


necessariamente errado ali. Mas a postura neutra se mantém só até o trecho em que
um dos torturadores diz a Beatriz algo como: “Nós vamos ter que continuar a nossa
sessão”. Nesse momento, Markowicz admite ao diretor Aly Muritiba, que conduz as
conversas, que isso, sim, é estranho. “Sessão de quê? De cinema que não é”.36

Insta salientar que, diante da divulgação pública das novas fitas, Beatriz, Davi e Osvaldo
ingressaram, no Tribunal de Justiça do Paraná, com pedido de revisão criminal das sentenças que os
condenaram, para que sejam declarados inocentes, absolvidos e indenizados pelo erro judiciário37. O
processo ainda aguarda julgamento.
Ademais, após a repercussão nacional do trabalho de Ivan Mizanzuk, o Governo do Paraná criou
o Grupo de Trabalho “Caso Evandro – Apontamentos para o Futuro”, com o objetivo de “aprender com
os possíveis erros do passado para que estes não se repitam no futuro”. O GT finalizou seu trabalho com
a elaboração de um relatório que deu azo a um pedido formal de perdão para a senhora Beatriz Abagge,
assinado pelo secretário da Justiça, Ney Leprevost, que consignou ter formado convicção pessoal no
sentido “de que são muitas as evidências que a Senhora e outros condenados no caso foram vítimas de
torturas gravíssimas” e, ao final, expressou seu repúdio “ao uso da máquina estatal para prática de
qualquer tipo de violência, e neste caso em especial contra o ser humano para obtenção de confissões”38.
De fato, as novas fitas são reveladoras e o seu conteúdo não pode ser ignorado.
Mais uma vez, alinhando-se às palavras de Ivan Mizanzuk:

O que mais me assombra nisso tudo é uma percepção de que os policiais sentem que
estão fazendo um bom trabalho, que basta apertar um pouco mais para Osvaldo falar
a ‘verdade’. Seguindo a lógica perversa de que é por meio de violência que se faz um
assassino confessar, os policiais talvez nem considerassem aquilo tortura, mas um
método de investigação.39

33 MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 322.


34 MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 336.
35
MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 323.
36 MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 343.
37 G1. Caso Evandro: Defesa de condenados por morte da criança pede à Justiça revisão criminal das sentenças. Disponível

em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2021/12/07/caso-evandro-defesa-de-condenados-por-morte-da-crianca-pede-a-
justica-revisao-criminal-das-sentencas.ghtml. Acesso em: 21 abr. 2022.
38 G1 Paraná RPC. Caso Evandro: Governo do Paraná faz carta com pedido de perdão por 'torturas' a Beatriz Abagge.

Disponível em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2022/01/15/caso-evandro-governo-do-parana-faz-carta-com-pedido-


de-perdao-por-torturas-a-condenada-por-morte-da-crianca.ghtml. Acesso em: 22 abr. 2022.
39 MIZANZUK, Ivan. op. cit., p. 325.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
59

É justamente sobre isso que o presente trabalho se debruça a seguir. Vale dizer, por que ainda é
viva uma cultura institucional, enraizada no Brasil, que faz crer que o policial realiza um ‘bom trabalho’
ao obter confissões mediante a tortura de suspeitos?
Na próxima seção, a tarefa que se põe é entender como funciona e porque é tão viva essa lógica
perversa citada por Mizanzuk no trecho transcrito acima.

2. A radiografia da tortura no Brasil: passado e presente

A tortura é prática conhecida e empregada com frequência desde priscas eras. Com efeito, “a
história do direito penal demonstra que desde a Antiguidade existem e foram usadas várias formas de
tortura, com métodos e finalidades diversas, uma prática regulamentada e aceita pela sociedade primitiva
como forma de manter a ordem”40.
De fato, foram muitas as finalidades utilizadas, historicamente, para justificar o uso da tortura.
Durante a pré-história e a Antiguidade, a tortura foi utilizada como forma de reprimenda e punição
contra malfeitores que praticassem atos contrários à harmonia do bando ou da sociedade. Na Idade
Média, sob os auspícios da Igreja, a tortura passou a ser aplicada com finalidade instrumental, isto é,
como mecanismo para apuração de delitos e/ou para aplicação de castigos. Nesse período histórico, se
consolida o emprego da tortura como instrumento apto para extrair confissões da prática de crimes,
valoradas como provas no processo penal para a descoberta da verdade e, assim, de condenações.
Noutras palavras, “historicamente a tortura foi utilizada como meio de prova, através da confissão e de
declarações, artifícios para chegar à descoberta da verdade”41.
É somente nos séculos XVII e XVIII, na esteira do Iluminismo e do movimento para humanização
das penas, capitaneado por Cesare Beccaria, autor da célebre obra Dos Delitos e Das Penas, que ocorre
a proscrição da tortura42. E apenas em meados do século XX, especialmente a partir da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, de 1948, é iniciado o processo para a criminalização da prática da
tortura, de modo que atualmente o emprego da tortura assume a condição de crime43.
Em síntese, hodiernamente é assente o entendimento de que “torturar é proibido. O fundamento
desta proibição está em que a tortura viola a dignidade humana”44.
Sobre a dignidade da pessoa humana, Immanuel Kant registrava que o homem, considerado como
uma pessoa, isto é, como um sujeito de uma razão prático-moral, não deve ser tratado como meio, ou
seja, como um instrumento para satisfação de interesses alheios, mas sim como um fim em si mesmo,

40
CARVALHO, Gisele Mendes de; OLIVEIRA, Flávio Henrique Franco de. “Direito a não ser torturado?” A integridade
moral como bem jurídico indisponível no Direito Penal brasileiro. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional. vol. 8. São
Paulo, SP: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
41 CARVALHO, Gisele Mendes de; OLIVEIRA, Flávio Henrique Franco de. op. cit.
42 BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Edizione di riferimento: a cura di Renato Fabietti, Mursia: Milano, 1973.

Disponível em: http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_7/t157.pdf. Acesso em: 04 mai. 2022.


43 CARVALHO, Gisele Mendes de; OLIVEIRA, Flávio Henrique Franco de. op. cit.
44 GRECO, Luís. As regras por trás da exceção – Reflexões sobre a tortura nos chamados “casos de bomba-relógio”. Revista

Jurídica. v. 23. n. 7. Curitiba, PR: 2009, p. 235.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
60 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

uma vez que é portador de um valor interno inderrogável, qual seja, a dignidade, “pela qual ele
constrange todos os outros seres racionais do mundo a ter respeito por ele”45.
Ocorre que a tortura é precisamente a completa e integral negação da dignidade da pessoa
humana, na medida em que a pessoa tortura é tratada como um mero objeto nas mãos do agente
torturador. Vale dizer, a tortura anula em absoluto a autonomia do indivíduo, que se transforma em
instrumento do torturador para que atenda aos seus interesses, notadamente para que, forçadamente,
emita uma declaração (comumente falsa) contra a sua vontade, a saber, uma confissão – conforme se
verificou no “caso Evandro”. Em verdade, a tortura viola a dignidade humana na medida em que
prejudica a capacidade de resistência e de agir da vítima torturada, mas, não só, também é um ato
perverso e odioso que tem o condão de colocar a vítima contra si mesma, para que, por suas próprias
mãos (ou, por sua própria ‘boca’, no caso de falsas confissões), contribua para um dano contra a sua
pessoa, tornando-se assim, sem querer, um cúmplice de sua própria violação. Noutras palavras, “Quando
realizada como forma de interrogatório, a tortura não apenas fere e degrada, mas coloca a própria vítima
contra si mesma, obrigando-a a confessar segredos ou a se auto-incriminar”46.
Em síntese,

A tortura significa um atentado à dignidade humana. Ao torturado se nega sua


condição de pessoa e é convertido a objeto. O uso da tortura significa degradar a
vítima de sua condição humana, negando-lhe sua liberdade, considerando-o 'algo'
sujeito a leis puramente mecanicistas: seu corpo nas mãos do torturador tem que reagir
como ele pretende. Esta é a ideia que está presente na mente do torturador e que o
torturado percebe e vive em sua própria pessoa: 'seu corpo é fraco, tão fraco que basta
que te faça sofrer para você dizer e fazer o que eu quero: você não agirá de acordo
com sua vontade, mas de acordo com a minha'. O torturado é considerado pelo
torturador como um simples objeto em suas mãos, o que significa negar-lhe que seja
um fim em si mesmo (essência da dignidade).47

É justamente uma relação de assimetria de poder que caracteriza a tortura, que pode se verificar
mesmo quando não haja efetiva imposição de dor física ou psíquica ao sujeito torturado. De fato, ao
contrário do que advogava o modelo psicologista, baseado numa perspectiva psicológico-naturalista, “o
aspecto decisivo da tortura não é a imposição de dor ou sofrimento, e sim o exercício da dominação
mais completa que se pode imaginar sobre uma pessoa”48, o que evoca a perversidade da prática,
consistente “na inversão das concepções tradicionais de ação, consentimento e responsabilidade que a
tortura provoca, uma vez que a tortura teria o significado de que o torturado, ao não cooperar, seria o
próprio autor das ações de tortura”49. O que caracteriza, pois, a tortura é uma relação de absoluta

45 KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Trad. por Clélia Aparecida Martins [primeira parte], Bruno Nadai, Diego
Kosbiau e Monique Hulshof [segunda parte]. Petrópolis, RJ: Editora Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São
Francisco, 2013, p. 208.
46 ALVAREZ, Marcos César. op. cit.
47 GRIMA LIZANDRA, Vicente. Los delitos de tortura y de tratos degradantes por funcionarios públicos. Valencia: Tirant lo

Blanch, 1998, p. 64. Tradução livre. No original: “La tortura significa una agresión a la dignidad humana. Al torturado se le
niega su condición de persona y se le convierte en un objeto. El uso de la tortura significa degradar a la víctima de su condición
humana, negarle su libertad, considerarlo ‘algo’ sometido a leyes puramente mecanicistas: su cuerpo en manos del torturador
tiene que reaccionar tal como éste pretende. Esta es la idea que está presente en la mente del torturador y que el torturado
percibe y vive en su propria persona: ‘tu cuerpo es débil, tan débil que basta que te haga sufrir para que digas y hagas lo que
yo quiera: no actuarás conforme a tu voluntad, sino conforme a la mía’. El torturado es considerado por el torturador como un
simple objeto en sus manos, lo que supone negarle que es un fin en sí mismo (esencia de la dignidad)”.
48 GRECO, Luís. op. cit., p. 235. Itálico no original.
49 GRECO, Luís. op. cit., p. 235.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
61

desigualdade entre o agente torturador e a vítima torturada. “A tortura é uma totalidade. É a presença
assumida, deliberada, explícita da imposição da dor, da morte, do fim de tudo numa cena em que uns
podem tudo e alguém pode nada”50. A tortura é, em resumo, uma perversa cena na qual a vítima nada
pode fazer. Se não cooperar com o torturador, irá sofrer, física e psicologicamente, por ‘culpa’ sua,
porque não está ‘colaborando’. Se acabar cooperando com o torturador, ironicamente terá sido cúmplice
de seu próprio infortúnio, pois terá produzido prova contra si mesmo.
De prática pública comum e até mesmo amplamente aplicada, como no tempo da Santa
Inquisição, no século XX houve a proibição, no plano jurídico-formal (frise-se51), da prática da tortura,
que foi finalmente considerada crime.
A propósito, a Assembleia Geral das Nações Unidas, a 10 de dezembro de 1984, adotou a
Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
internalizada pelo direito nacional pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Segundo a dicção do
artigo 1º da Convenção, o termo ‘tortura’ designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos,
físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa com a finalidade de obter informações
ou confissões e/ou de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter
cometido e/ou de intimidar ou coagir, bem como por qualquer motivo baseado em discriminação de
qualquer natureza52.
Na mesma toada, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, concluída em
Cartagena, Colômbia, em 09 de dezembro de 1985, e promulgada pelo Decreto nº 98.386, de 09 de
dezembro de 1989, entende por ‘tortura’ todo ato pelo qual “são infligidos intencionalmente a uma
pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de
intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim” e
“a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir
sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica”53.
No ordenamento jurídico nacional, a proibição e repressão da prática da tortura também encontrou
especial previsão no período da redemocratização, logo após o fim da ditadura militar. Nesse sentido, a
Constituição Federal de 1988, no inciso III do artigo 5º, prescreve que “ninguém será submetido a tortura
nem a tratamento desumano ou degradante”, e no inciso XLIII do mesmo dispositivo assevera que a lei
considerará a tortura, o tráfico de drogas e o terrorismo, além daqueles definidos como hediondos, como
“crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia (...) por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”54.
Convém observar que as duas convenções internacionais, a interamericana e a da Organização
das Nações Unidas (ONU), já estavam vigentes, inclusive no ordenamento jurídico nacional, bem como
a Constituição de 1988, à época do “caso Evandro”. Noutras palavras, ao tempo em que, segundo os

50 ENDO, Paulo. op. cit., p. 45.


51 O destaque é feito porque, como será dito em seguida, desafortunadamente a proscrição jurídica não foi acompanhada, no
plano dos fatos, pela eliminação prática do uso da tortura, no mundo e no Brasil.
52 BRASIL. Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas

Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Brasília, DF: 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-


1994/d0040.htm. Acesso em: 22 abr. 2022.
53 BRASIL. Decreto nº 98.386, de 09 de dezembro de 1989. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a

Tortura. Brasília, DF: 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/d98386.htm. Acesso em:


22 abr. 2022.
54 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: 1988. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 abr. 2022.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
62 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

sete acusados, a Polícia Militar do Paraná empregou a tortura como mecanismo para extração de (falsas)
confissões, já era assentado, ao menos no plano dogmático jurídico, a proibição da tortura.
No ano de 1997 foi editada a Lei nº 9.455, que assim define os crimes de tortura:

Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência


ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter
informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar
ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou
religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito
anos. § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de
segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto
em lei ou não resultante de medida legal. § 2º Aquele que se omite em face dessas
condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção
de um a quatro anos.55

Diferentemente dos textos convencionais, a lei brasileira prevê a tortura como um crime comum,
que pode ser praticado por qualquer pessoa, independentemente de qualidade ou condição especial do
agente ativo (o torturador). Desse modo, segundo a Lei nº 9.455/97, o crime pode ser praticado não
apenas por “funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas”, conforme exige a
definição contida no artigo 1º da Convenção da ONU, mas também por qualquer particular. Na verdade,
nos termos da lei brasileira, o fato de o autor do delito ser funcionário público figura como causa de
aumento da pena (artigo 1º, § 4º, inciso I), e não como elementar do tipo penal.
O conceito extensivo de tortura é elogiado pela doutrina especializada:

O delito de tortura possui uma especificidade ímpar, ele protege um bem jurídico não
tratado pelo Código Penal ou pelas demais leis, e nesse sentido é que se deve
considerar torturador todo aquele que, a serviço do Poder Público ou atuando na esfera
particular, no recesso do seu lar, de uma creche, de uma escola ou de um asilo,
coloquem em risco ou lesionem a dignidade única e inerente a cada ser humano pelo
simples fato de sê-lo.56

Comparando-se as definições convencional e legislativa, alinha-se ao conceito multijurídico de


tortura contido no Manual de Prevenção e Combate à Tortura e Maus-tratos para Audiência de
Custódia, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), calcado no princípio pro homine ou pro
personae, que prestigia a norma mais ampla ou a interpretação mais ampla. De acordo com esse
conceito, a designação de um ato como tortura contempla os seguintes elementos, a saber, “(i) ato de
infligir dor ou sofrimento, por ação ou omissão; (ii) intencionalidade da conduta; (iii) finalidade57,
considerada dentro de um rol não exaustivo e, portanto, bastante amplo”58, incluindo obtenção de

55 BRASIL. Lei nº 9.455, de 07 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Brasília, DF: 1997.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm. Acesso em: 22 abr. 2022.
56 CARVALHO, Gisele Mendes de; OLIVEIRA, Flávio Henrique Franco de. op. cit.
57 Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a tortura, quando praticada contra pessoa presa, independe da

finalidade, uma vez que não se exige o especial fim de agir na conduta do agente. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
Recurso Especial nº 856706 AC 2006/0114492-0, Relatora: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento 06/05/2010, T5-
QUINTA TURMA, DJe 28/06/2010.
58 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Manual de prevenção e combate à tortura e maus-tratos para audiência de custódia.

Conselho Nacional de Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Escritório das Nações Unidas sobre
Drogas e Crime; coordenação de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi ... [et al.]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2020.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
63

informação ou declaração da pessoa ou de terceiro e a extração de confissão da pessoa ou de terceiros,


e, por fim, (iv) realizado por agente público ou outra pessoa no exercício de funções públicas ou por
qualquer particular59, por ação, incluindo a sua instigação, ou por omissão, incluindo o seu
consentimento ou aquiescência.

2.1. A tortura como (oculta, escondida, disfarçada) prática institucional

Como visto, nos séculos XVII e XVIII a tortura, de prática amplamente aceita e até mesmo
executada publicamente, passou a constituir expediente proibido, cujo uso pelo Estado foi banido por
força de lei. Em seguida, no século XX, a prática da tortura foi considerada crime. Atualmente, no Brasil
a tortura é considerada crime equiparado a hediondo, não admitindo fiança, graça ou anistia. Portanto,
no plano jurídico-formal, não há dúvidas de que a tortura é ato que não mais se tolera. De modo
veemente, repita-se: torturar é proibido. Contudo, uma análise detida sobre o tema, revela que, ao lado
da proscrição jurídica, impera uma crescente cultura disseminada de amplo uso da tortura.
De fato, mesmo com a proibição legal da tortura, o aparato estatal continuou a fazer uso dessa
prática. Na verdade, após a vigência da Constituição Federal de 1988, ironicamente, o emprego prático
da tortura apenas acentuou. Não é outra a conclusão do estudo de Paulo Endo, após examinar o que
mudou em quinze anos, entre o Relatório de Nigel Rodley (2001) e o do MNPCT (2016): “as práticas
de tortura no Brasil não apenas não cederam, como, de diversas maneiras, se aprofundaram e se
enraizaram como prática corriqueira cometida pelas instituições e agentes do Estado brasileiro”60.
O paradoxo da tortura na atualidade situa-se na comparação entre o tratamento jurídico-formal e
a realidade fática, e reside justamente na constatação de que, malgrado “a tortura seja – assim como o
genocídio e a escravidão – moralmente condenada e amplamente combatida, as práticas de tortura
continuam a ocorrer em todas as partes do mundo, quer em regimes democráticos, quer em regimes
autoritários”61.
Noutros termos, oficialmente a tortura não é admite, criminalmente é punida e socialmente é
rejeitada, contudo, na realidade dos fatos ainda existe e o seu uso aumenta cada vez mais. Isso porque a
tortura continua a ser empregada sistematicamente, porém, de modo clandestino, oculto, escamoteado,
às escondidas, de forma extraoficial. Aliás, “o que singulariza a prática de tortura ao longo do século
XX, diferentemente de outros períodos históricos, é que ela foi conduzida quase sempre de forma
extralegal, praticada sem regulamentação precisa e em segredo”62.
Assim sendo, em termos práticos, “a tortura ainda é empregada com frequência no Brasil
democrático, mesmo anos depois do fim do regime autoritário”63. Justamente por isso, em junho de
2021, o Brasil foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela ausência de

59 Na verdade, o conceito contido no Manual do CNJ prevê como elemento essencial da definição do ato como tortura que seja
realizado por agente público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, reconhecendo, contudo, que “a lei brasileira não
limita o crime de tortura a agentes públicos, podendo ser imputável também aos demais indivíduos”, porém, consignando que
“essa análise escapa aos objetivos e finalidades da Resolução CNJ nº 213/2015, a qual se centra especificamente sobre a
prevenção e combate à tortura e maus-tratos cometidos por agentes públicos” (pág. 29), uma vez que, para fins de audiência de
custódia é importante aferir eventual tortura praticada por agentes da segurança pública contra o preso.
60 ENDO, Paulo. op. cit., p. 44.
61 ALVAREZ, Marcos César. op. cit.
62 ALVAREZ, Marcos César. op. cit.
63 ALVAREZ, Marcos César. op. cit.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
64 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

respostas às denúncias de tortura recorrente praticada entre 2015 e 2017 na unidade Cedro da Fundação
Casa, do complexo Raposo Tavares, em São Paulo, quando se constatou que 147 adolescentes foram
vítimas de cruéis sevícias, com o emprego de cintos, correntes, cabos de vassoura, além de relatos de
sessões de pancadaria64. Com efeito, a realidade das unidades incumbidas da aplicação da medida
socioeducativa de internação para adolescentes infratores, à semelhança das penitenciárias, também é
marcada pelo emprego sistemático da tortura e dos maus tratos65. A tortura, seja contra adultos, seja
contra jovens, é prática que se reverbera com o passar dos anos, mantendo-se entre as décadas de 1990
e 2020.
A propósito, uma das justificativas para o crescimento do uso sistemático da tortura é a
invisibilidade da prática. Afinal, não sendo algo visível, não é visto, e não sendo visto, não precisa ser
combatido, pode continuar a ser ignorado, num indecoroso disfarce coletivo que finge que nada está
acontecendo e que não há nada para ser modificado. Inclusive, o manto da invisibilidade que esconde
as cifras da tortura se conecta umbilicalmente com a garantia da impunidade dos agentes criminosos, o
que, por sua vez, incentiva a prática do crime, calcado na certeza de que não haverá quaisquer
consequências.
No particular, calha trazer à baila as razões que fundamentam tal invisibilidade:

A invisibilidade da tortura materializa-se na sociedade por um sistema de negação


obtuso que vem à tona por três modos: 1) crença de que a prática só ocorreu no
passado; 2) que existe apenas em sociedades distantes; 3) só ocorre em situações de
anormalidade plenamente justificáveis.66

Outro fato que explica a ampliação do uso da tortura é a seletividade da prática. Em 2001, Nigel
Rodley já apontava que “a tortura é prática generalizada e, na maioria das vezes, envolve pessoas das
camadas mais baixas da sociedade e/ou de descendência africana ou que pertencem a grupos
minoritários”67. Assim, enquanto se concentra sobre a população mais marginalizada e subalternizada,
o interesse social e político na efetiva fiscalização da proibição da prática e na punição dos infratores
permanece adormecido.
Um raio-X da situação no Brasil demonstra que os principais responsáveis pela tortura “são
policiais civis e policiais militares, em proporções elevadas e equiparáveis reciprocamente, seguidos por
agentes prisionais e responsáveis por unidades de internação de adolescentes”68. A tortura tem como
alvos preferenciais o suspeito da prática de crime e o indivíduo sob custódia do Estado, seja em
Delegacias de Polícia, penitenciárias ou estabelecimentos de internação, isto é, “pessoas "suspeitas" de

64 FOLHA DE S. PAULO. Brasil é denunciado a comissão de direitos humanos por crimes de tortura. Por Fernanda Mena.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/06/brasil-e-denunciado-a-oea-por-nao-solucionar-crimes-de-
tortura.shtml. Acesso em: 30 jun. 2022.
65 FERRAZ, Hamilton Gonçalves; CHIES-SANTOS, Mariana. “Vou temperar vocês”: um estudo de caso sobre a

responsabilidade do Judiciário no combate às práticas de tortura no sistema socioeducativo. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. v. 190. ano 30. p. 275-307. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, maio/jun. 2022.
66 RODRIGUES, João Gaspar. Programa resolutivo de prevenção e de enfrentamento à tortura. Revista Eletrônica do CNJ. v.

5. n. 2. Brasília, DF: jul./dez. 2021, p. 89.


67 RODLEY, Nigel. op. cit.
68 MAIA, Luciano Mariz. Do controle judicial da tortura institucional no Brasil hoje. À luz do direito internacional dos direitos

humanos. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, p. 89.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
65

práticas de delitos, que foram consideradas (pelos agressores) como detentoras de informações
relevantes sobre práticas delituosas ou pessoas presas, "merecedoras" de castigo”69.
É verdade que a tortura é uma prática desvirtuada das instituições e que o desvio não é regra para
todos os agentes públicos, e evidentemente há em todas as corporações bons funcionários que bem
representam os ideais democráticos. Contudo, é necessário superar o “frequente argumento da ‘maçã
podre’, ou seja, de que os atos de tortura seriam excepcionais, perpetrados por indivíduos que não
representariam mais os valores das instituições da justiça criminal e da segurança pública”70, na medida
em que esse argumento contribui para a pouca sensibilização da sociedade em torno do problema.
É urgente, pois, que se torne o problema visível: ainda hoje, a tortura, que em sua trajetória
histórica sempre esteve atrelada aos abusos do Poder Público na apuração das infrações penais,
permanece sendo empregada como prática generalizada e sistemática pelo Estado em todas as etapas da
persecução penal, incluindo a investigação criminal e, também, durante a execução da pena. Ainda que
de forma oculta, escondida, disfarçada, “a prática da violência ainda está presente tanto na dinâmica do
trabalho policial quanto no cotidiano das prisões”71. Em suma, “apesar de todas as estruturas criadas
para a criminalização da tortura, tem-se que ela ainda é um método constantemente exercido por agentes
públicos em muitas ocasiões”72. Nesse sentido, no Relatório Anual 2015-2016 do MNPCT há relatos de
casos de “tortura policial durante a prisão em flagrante, sobretudo em São Paulo e no Amazonas. Tais
práticas eram cometidas tanto por policiais militares durante o ato da detenção quanto por policiais civis
nas delegacias”73.
Os órgãos estatais incumbidos de zelar pela segurança pública, a exemplo das Polícias Civil e
Militar, por vezes deverão fazer uso da violência. Quando necessária à luz do caso concreto e justificada
por lei, a violência estatal é legítima e não configurará tortura, como, aliás, reconhece o artigo 1º da
Convenção da ONU74. Entretanto, o uso da violência ilegal, ilegítima, como ocorre no caso da tortura,
estará sempre vedado ao agente do Estado (sobretudo, o policial).

Contudo, avaliar a licitude do uso da força impõe um exame complexo que envolve:
a legalidade (dos métodos, tipos de armamento e munição permitidos e em quais
condições, procedimentos, condições de detenção, etc.), a necessidade (respeito ao
uso da força como ultima ratio, planejamento operacional, circunstâncias pessoais e
contextuais do agente e da pessoa implicada, avisos orais prévios), e
proporcionalidade (medida menos danosa, resposta diferenciada, circunstâncias do
caso concreto), além de considerações quanto à cadeia de comando e monitoramento
da ação.75

No “caso Evandro” as alegações de tortura foram desacreditadas pela Justiça, mesmo com a
riqueza de detalhes fornecida pelos acusados, muitas vezes em sintonia, e mesmo com as inconsistências
entre as confissões e as provas materiais dos autos76. Para a acusação, havia falhas nas versões dos réus,

69 MAIA, Luciano Mariz. op. cit., p. 89.


70
ALVAREZ, Marcos César. op. cit., p. 294.
71 ALVAREZ, Marcos César. op. cit., p. 290.
72 CARVALHO, Gisele Mendes de; OLIVEIRA, Flávio Henrique Franco de. op. cit.
73 BRASIL. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. op. cit., p. 28.
74 Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que

sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.


75 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. op. cit., p. 31.
76 A título de exemplo, Osvaldo Marcineiro confessou, em áudio, que teria participado da emasculação do menino Evandro,

que, contudo, conforme demonstrou o laudo necroscópico, mantinha o pênis íntegro.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
66 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

o que indicava se tratar de mera tese fantasiosa, emplacada como tentativa de se furtar à responsabilidade
penal, por orientação dos advogados. Esse também é o entendimento de Diógenes Caetano: “Todos
confessaram ter sacrificado Evandro em um ritual de magia negra, na serraria do então prefeito do
município. Em seguida, orientados pela defesa, começaram a negar, alegando terem sido torturados”77.
Ao final, a tese de tortura foi rejeitada e, noutro giro, as confissões impactaram significativamente o
resultado final, o que indica, na prática, que comumente as denúncias de tortura não são levadas a sério,
que há dificuldade processual em prová-las e que a prova obtida mediante tortura, ao fim e ao cabo,
surte efeitos jurídicos. O que aconteceu no “caso Evandro” continua a acontecer comumente no Brasil,
na medida em que o Estado brasileiro não apresenta mecanismos seguros para investigar e punir torturas.
Nesse sentido, aliás, estudo do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
evidenciou que é recorrente a violência estatal e a tortura praticada por agentes públicos brasileiros e
que é deficitária a resposta estatal a esse quadro sistêmico78. É, pois, um cenário ideal para que a tortura
continue a ser praticada (cada vez mais) pelos aparatos estatais, especialmente pela Polícia, ainda que
de forma clandestina.

2.2. A tortura como instrumento para obtenção de confissões criminais

Um fator decisivo para a explicação do crescimento da ocorrência da tortura no meio policial,


mesmo num país que se pretende democrático e que tem como lei maior uma Constituição que abomina
a prática e a classifica como hedionda, é o fato de que “a tortura é um crime de oportunidade. Isso
significa dizer que as oportunidades desempenham papel relevante para que a tortura ocorra”79 e que,
ainda hoje, são muitas as oportunidades que um cenário de negligência confere aos agentes mal-
intencionados.
Uma das principais notas que concede oportunidade para a ocorrência de tortura é a execução de
atos estatais de forma sigilosa, às escondidas. Deveras, historicamente as “prisões, delegacias de polícia
e coisas do gênero são lugares fechados e secretos, com atividades internas escondidas das vistas do
público”80, de sorte que o que acontece em tais ambientes não é levado ao escrutínio público e tampouco
se submete a controle. Mais, amparando-se na crença de que o que é feito em tais espaços escapa à
fiscalização externa, os agentes públicos se libertam de qualquer receio de responsabilização, o que
muitas vezes acaba por significar uma "carta branca" para agir de forma arbitrária.
A falta de transparência é campo fértil para a tortura como prática institucional nas Polícias do
Brasil. Por exemplo, a ausência de monitoramento e/ou de registro do traslado dos presos pode abrir
amplo espaço para que sejam cometidas arbitrariedades. É dizer, “o transporte de presos para audiências
judiciais ou extrajudiciais e tratamento em unidades hospitalares, pode ensejar espaços pouco visíveis
ou zonas obscuras para o cometimento de abusos por parte de agentes públicos”81. Inclusive, no “caso
Evandro” há alegação de que Beatriz e Celina Abagge teriam sido raptadas do fórum da Comarca de
Guaratuba, pela Polícia Militar, e então conduzidas, de modo clandestino e velado, para a casa do ex-

77 SANTOS FILHO, Diógenes Caetano. A verdadeira história do Caso Evandro. 1ª ed. Publica Livros: 2012. Versão Kindle®.
p. 5.
78 RBA. Rede Brasil Atual. Um país em que a tortura faz parte do cotidiano. Disponível em:
https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2021/07/tortura-brasil-pesquisa-cotidiano/. Acesso em: 1 jun. 2022.
79 MAIA, Luciano Mariz. op. cit., p. 87.
80 RODLEY, Nigel. op. cit.
81 RODRIGUES, João Gaspar. op. cit., p. 93.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
67

ditador Stroessner, onde foram submetidas a cruéis sessões de tortura. No mesmo sentido, a defesa
suscita que houve inexplicável demora no deslocamento de Vicente de Paula Ferreira da cidade de
Curitiba (onde foi preso) para Guaratuba, o que iria ao encontro de sua narrativa, de que teria sido
torturado durante todo o trajeto.
Um outro importante fator que justifica a continuidade do uso da tortura é o seu interesse para o
agente criminoso. A tortura tem um valor na medida em que por meio dela se obtém (pseudo) elementos
de prova que repercutem no processo penal. Destarte, a prática da tortura, sob certa perspectiva, é uma
escolha racional (rational choice), pois os torturadores têm objetivos quando cometem o crime.
Segundo o Relator da ONU, 1 de cada 3 casos de tortura tem como responsável policial civil, e, de igual
modo, 1 em cada 3 casos tem como responsável policial militar e em 30,1% dos casos a tortura tinha
por objetivo a obtenção de confissão82. De mais a mais, assim como se verificou no “caso Evandro”, “a
jurisprudência brasileira ainda apresenta certa insensibilidade (ou tolerância) às alegações de tortura,
coação ou violência na obtenção da confissão, aceitando-a e admitindo-a como prova válida”83, o que
irremediavelmente surtirá efeito de sinalização positiva para a persistência da perpetuação do uso da
tortura. Afinal, enquanto a tortura ainda tiver valor processual certamente subsistirá na prática policial.
Inclusive, no estudo “Tortura como marca cotidiana”, que reúne narrativas de atores da sociedade
civil e do poder público a respeito do atendimento concedido a vítimas de violações de direitos nos
Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, constou que “dinâmicas operadas pelo sistema de justiça
criminal também foram apontadas com unanimidade entre os entrevistados como gargalos às ações de
atenção às vítimas de tortura”84. Vale dizer, existem inequívocos obstáculos para o enfrentamento da
tortura no próprio sistema de Justiça (o que bem é ilustrado pelo “caso Evandro”), a exemplo a
banalização da violência, a morosidade e falta de empenho nas investigações, lentidão do processamento
dos casos, a descredibilidade conferida ao relato das vítimas, a culpabilização da própria vítima e a alta
consideração que se dá à versão do policial acusado das torturas. Nas palavras do entrevistado 19 do
citado estudo, “A palavra da vítima não vale nada, a palavra do policial vale para condenar e vale para
absolver”85. A palavra da vítima é ignorada e a dos torturadores assume proeminência para a condenação
de inocentes, como ocorreu no “caso Evandro” e ainda hoje ocorre no Brasil.
A obtenção de confissão mediante tortura é um exercício por tudo sádico e que representa a
absoluta negação da dignidade da pessoa humana, que é tratada como um mero instrumento pelo
criminoso e tem a sua vontade completamente aniquilada. É, pois, “uma covardia de tal tamanho que
manda o torturado a acatar a vontade implícita do torturante, confessando qualquer que seja a culpa,
mesmo que inexistente, com o único intuito de fazer cessar o sofrimento cultivado”86.
Além da própria violência (física e/ou psicológica) que envolve o ato, de per si, a confissão
derivada de tortura é imprestável como prova processual, pois a sua própria credibilidade probatória é
extremamente frágil. O ato não é espontâneo, como exige o artigo 65, III, “d”, do Código Penal, ou seja,
não advém da genuína vontade da pessoa. Ademais, o sofrimento que é infligido é assaz apto a forçar a

82
RODLEY, Nigel. op. cit.
83 RODRIGUES, João Gaspar. op. cit., p. 103.
84 JESUS, Maria Gorete Marques de; SILVESTRE, Giane; DUARTE, Thais Lemos. Tortura como marca cotidiana: Narrativas

sobre os serviços de atenção às vítimas de tortura desenvolvidos no Rio de Janeiro e em São Paulo. DIGNITY PUBLICATION
SERIES ON TORTURE AND ORGANISED VIOLENCE. DIGNITY – Danish Institute Against Torture, 2021, p. 29.
Disponível em: https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2021/07/35-TORTURA-COMO-MARCA-COTIDIANA_v05.pdf.
Acesso em: 30 jun. 2022.
85 JESUS, Maria Gorete Marques de; SILVESTRE, Giane; DUARTE, Thais Lemos. op. cit., p. 29.
86 CARVALHO, Gisele Mendes de; OLIVEIRA, Flávio Henrique Franco de. op. cit.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
68 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

vítima a ‘confessar’ qualquer fato que lhe seja exigido, justamente para se livrar da dor decorrente da
tortura.
Ao invés de expressar a livre revelação de um criminoso sobre crime cometido, a confissão obtida
por tortura é uma falácia guiada pelo agente torturador e tão somente reproduzida pela boca da vítima
torturada. No “caso Evandro”, por exemplo, as vítimas disseram que o expediente da Polícia era o
seguinte: ligavam o gravador para registrar a fala do acusado, de acordo com o que havia sido
previamente ajustado; quando a vítima não dizia o que se queria ouvir, o aparelho era desligado e
começavam as torturas, por choque, afogamento, agressões etc.; então, o aparelho era novamente
acionado para que a vítima prosseguisse na narrativa fantasiosa, e assim sucessivamente.
A cessação do uso da tortura como meio para extração de confissões depende de uma rígida
política judiciária que vede peremptoriamente a valoração de qualquer prova obtida mediante tal prática,
bem como aqueles dela derivadas. É preciso, pois, retirar o valor da tortura. Enfim, é essencial eliminar
as oportunidades para a prática do crime.
A confissão obtida por meio de tortura é prova ilícita e, portanto, inadmissível para o processo
penal, nos termos do artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal e do artigo 157 do Código de
Processo Penal. “E uma vez confirmada a tortura, a prova decorrente dela deve ser excluída (ou
desentranhada) do processo”87.
Ainda, cumpre registrar que diante de uma alegação de tortura o ônus da prova recai sobre o
Estado e não sobre a pessoa que alega sua prática. Assim sendo, “é preciso ter em conta que cabe ao
Estado o ônus de provar o uso legítimo da força”88.
Assim, “se uma pessoa alegar que confessou em virtude de tortura, o órgão acusador (Ministério
Público) deve provar que a confissão foi obtida sem coação. Se esse ônus recai sobre a suposta vítima
de tortura há uma clara violação de seus direitos”89.

3. A prevenção e a eliminação da tortura: o que esperar do futuro?

Ainda nos dias atuais, a tortura é prática generalizada e sistemática no Brasil e é utilizada com
especialmente pelo aparato policial e de segurança pública, com o fim espúrio de obter confissões de
supostas práticas de crimes. Na verdade, o uso da tortura, em vez de diminuir, vem aumentando ano
após ano.
Sobre a prática da tortura no Brasil, diz Nigel Rodley, Relator Especial da ONU:

A prática da tortura pode ser encontrada em todas as fases de detenção: prisão,


detenção preliminar, outras formas de prisão provisória, bem como em penitenciárias
e instituições destinadas a menores infratores. Ela não acontece com todos ou em
todos os lugares; acontece, principalmente, com os criminosos comuns, pobres e
negros que se envolvem em crimes de menor gravidade ou na distribuição de drogas
em pequena escala. E acontece nas delegacias de polícia e nas instituições prisionais
pelas quais passam esses tipos de transgressores. Os propósitos variam desde a
obtenção de informação e confissões até a lubrificação de sistemas de extorsão

87 RODRIGUES, João Gaspar. op. cit., p. 103.


88 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. op. cit., p. 136.
89 RODRIGUES, João Gaspar. op. cit., p. 103.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
69

financeira.90

A tortura ainda é uma prática sistemática no Brasil porque em solo brasileiro encontra terreno rico
em oportunidades para o seu banal cometimento diuturno. Assim, para alterar esse cenário é
imprescindível que sejam eliminadas tais oportunidades. Aliás, para o crime de tortura a reparação
dificilmente consistirá em justa composição, pois os efeitos deletérios da agressão sofrida são
incalculáveis. Deveras, “é impossível restaurar o status quo ante, principalmente tendo em conta os
danos psíquicos infligidos. Estes danos, em especial, são inextirpáveis”91. Por conseguinte, é
fundamental investir na prevenção, no afã de se evitar (previamente, portanto) que a tortura seja
praticada.
A prevenção da tortura deve compreender políticas públicas de conscientização da população em
geral e da comunidade jurídica em especial, inclusive dos juízes e tribunais pátrios, no sentido de que a
vedação da tortura, em toda e qualquer situação, é um direito fundamental de todo cidadão e uma
garantia inegociável, que não admite nenhuma flexibilização, nem mesmo nas hipóteses mais extremas
que se possa cogitar. A tortura deve ser indefensável, inclusive diante do denominado ticking bomb
scenario, uma vez que a “discussão sobre os casos da bomba relógio, não se trata do nosso
comportamento hipotético numa situação imaginária, que oxalá nunca venha a ocorrer, mas sim de nosso
comportamento presente – isto é, de nossa renúncia à tortura”92. Portanto, de modo enfático, diga-se: “a
proibição da tortura é absoluta e inderrogável. Ressalta que nenhuma circunstância excepcional pode
ser invocada por um Estado Parte para justificar atos de tortura em qualquer território sob sua
jurisdição”93. É fundamental ter em devida conta que a inadmissível prática da tortura está proibida em
qualquer situação, seja ela qual for. Em outras palavras,

(...) pretende-se destacar o caráter absoluto da proibição da tortura na esfera jurídico-


política: nenhuma situação de emergência pública (interna ou internacional) justifica
a prática da tortura. (...) não há interesses gerais considerados superiores à proibição
da tortura. Nem mesmo a mais grave situação de perigo para o próprio sistema
democrático ou para a sobrevivência do Estado pode justificar a tortura. Não existe
interesse político dominante que possa justificar (dar direito à) a utilização da
tortura.94

Além disso, a prevenção à tortura exige que haja efetiva responsabilização penal, civil e
administrativa, do agente que a executa, eliminando-se a cultura da impunidade.
Uma análise em perspectiva de comparação entre o que ocorreu no “caso Evandro” e o que se vê
nos dias atuais escancara como até hoje é demasiadamente rara qualquer forma de punição ao agente
público que comete tortura. É, portanto, uma empreitada criminosa atrativa. Nesse sentido, um relatório

90 RODLEY, Nigel. op. cit.


91 RODRIGUES, João Gaspar. op. cit., p. 88.
92 GRECO, Luís. op. cit., p. 258.
93
COMMITTEE AGAINST TORTURE. Convention against Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or
Punishment. General Comment No. 2. Genebra, Suíça: United Nations, 2008. Tradução livre. No original: “the prohibition
against torture is absolute and non-derogable. It emphasizes that no exceptional circumstances whatsoever may be invoked by
a State Party to justify acts of torture in any territory under its jurisdiction”.
94 GRIMA LIZANDRA, Vicente. op. cit., p. 159. Tradução livre. No original: “(…) se pretende destacar el carácter absoluto

de la prohibición de torturas en el ámbito jurídico-político: ninguna situación de emergencia pública (interna o internacional)
justifica la práctica de torturas. (…) no hay intereses generales que se consideren superiores al de la prohibición de la tortura.
Ni aun la más grave situación de peligro para el proprio sistema democrático o la supervivencia del Estado puede justificar la
tortura. No existe interés político preponderante que pueda justificar (dar derecho a) la utilización de la tortura”.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
70 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

preliminar que avalia a resposta do estado brasileiro às cobranças na ONU, entre 2017-2021, elaborado
pela Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, mostra que nos últimos dez anos nenhum
servidor público foi sancionado, afastado ou punido no sistema carcerário federal por tortura95. A cultura
da impunidade ainda se faz presente.
O relatório “O fim da liberdade”, feito pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), traz
dados importantes que confirmam a tese de que, à semelhança do que ocorreu em 1992 quando da prisão
dos sete acusados no “caso Evandro”, muitas pessoas que são recolhidas ao cárcere, ainda hoje em dia,
são submetidas a uma série de torturas, maus tratos e tratamento degradante, que desconsidera a
dignidade da pessoa humana. Com efeito, o estudo traz números coletados a partir da análise das
audiências de custódia, que atualmente servem como porta de entrada do sistema processual penal. Dele
se extrai, por exemplo, que dentre as “85,5% pessoas custodiadas que foram explicitamente
perguntados/as sobre a ocorrência de violência policial, 25,9% responderam afirmativamente”96, sem
prejuízo da possível subnotificação dos casos de tortura, “seja porque o/a custodiado/a não entende a
pergunta, seja porque se sente constrangido/a em respondê-la”97. Passam-se os anos, mas, se não forem
tomadas medidas para resolução efetiva do problema, a tortura permanecerá nas instituições.
A propósito, João Gaspar Rodrigues propõe esboço de programa resolutivo de prevenção e de
enfrentamento à tortura, a consistir num conjunto integrado, articulado e interconectado de medidas de
cunho preventivo e repressivo à prática da tortura98.
Dentre as medidas preventivas propostas, cite-se: criação de um banco de dados referente a
alegações, investigações e responsabilizações judiciais sobre a prática de tortura, incluindo a análise
preditiva dos dados; maior transparência das ações policiais; adoção de câmeras policiais individuais ou
câmeras junto ao corpo (body-worn cameras); criação de órgãos efetivos de monitoramento99, com
capacidade de vigilância ativa, por meio de visitas preventivas (não anunciadas), periódicas e regulares;
aumento e difusão dos conhecimentos públicos em matéria de prevenção da tortura; gravação
audiovisual dos interrogatórios em Delegacias de Polícia; criação de uma barreira legal à progressão
funcional ou assunção de cargos em comissão de agentes envolvidos em tortura; e investimento nas
audiências de custódia como um canal privilegiado de encaminhamento célere das alegações de tortura.
De outra banda, dentre as medidas de enfrentamento à tortura, destaca-se: investigação célere e
por órgão imparcial; punição dos estratos superiores da Polícia; melhoria do serviço forense na
documentação eficaz da tortura; aplicação do princípio constitucional da razoável duração às
investigações e processos de responsabilização; capacitação de servidores públicos, incluindo agentes
do Sistema de Justiça, com a introdução de conceitos em matéria de direitos humanos desde o início da
carreira; efetiva responsabilização integral, nas quatro searas (1. criminal; 2. cível; 3. por ato de
improbidade administrativa; e 4. administrativo-disciplinar); e, por fim, proibição da valoração de

95 UOL Notícias. Em 10 anos, ninguém nas prisões federais foi punido por tortura no Brasil. Por Jamil Chade. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/02/03/em-10-anos-ninguem-nas-prisoes-federais-foi-punido-por-tortura-
no-brasil.htm. Acesso em: 30 jun. 2022.
96 INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. IDDD. Relatório Nacional Completo. O fim da liberdade. A

urgência de recuperar o sentido e a efetividade das audiências de custódia. 2019, p. 76. Disponível em:
http://www.iddd.org.br/wp-content/uploads/2020/07/OFimDaLiberdade_completo.pdf. Acesso em: 30 jun. 2022.
97 INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. IDDD. Op. cit. p. 77.
98 RODRIGUES, João Gaspar. op. cit.
99 A Lei nº 12.847, de 02 de agosto de 2013, instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - SNPCT e criou

o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - CNPCT e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
- MNPCT.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
71

provas ilícitas obtidas por tortura, com o desentranhamento dos autos. Sobre a última medida, bem
esclarece o autor:

A exclusão de informação ou confissão obtida por tortura ou maus-tratos é medida de


importância superior, por dois motivos básicos: 1) é um sinal claro de que não vale a
pena torturar porque o fruto dessa árvore envenenada não será levado em consideração
pelo órgão julgador (elimina-se um incentivo à tortura); 2) provas obtidas sob tortura
são pouco fidedignas e declará-las inadmissíveis contribui para evitar a condenação
de pessoa inocente.100

Com razão. Para que no futuro os lamentáveis episódios de tortura não mais se repitam é
necessário que o Poder Judiciário sinalize que o resultado obtido por meio de tal prática não surtirá
qualquer efeito para a condenação das vítimas, mas, ao contrário, servirá para a efetiva e integral
responsabilização dos agentes que praticaram a tortura.

Considerações Finais

“Tortura nunca mais?”. Esse era o título do dossiê elaborado pela advogada Isabel Kugler Mendes
e que denunciava uma série de torturas a que foram submetidos os sete acusados do homicídio do garoto
Evandro Ramos Caetano, em Guaratuba-PR. É curioso observar que o título é escrito na forma
interrogativa, como a conduzir o leitor a uma reflexão provocativa. Afinal, as torturas relatadas foram
praticadas no ano de 1992, no início da vigência de uma Constituição Federal cujo texto pretende
eliminar todas as formas de tortura. Contudo, a interrogação faz sentido quando se lança atento olhar
para o mundo dos fatos e se percebe que, na prática, a tortura ainda insiste em continuar.
Ainda hoje, passados trinta anos, a tortura permanece sendo uma odiosa prática generalizada e
sistemática junto aos órgãos de segurança pública no Brasil, em especial a Polícia Civil e Militar, dentre
outras finalidades, para a extração de confissões penais. Nessa toada, a presente pesquisa buscou
investigar a razão pela qual a tortura ainda é, nos dias atuais, uma prática comum (embora clandestina)
no Brasil.
Entender as razões que justificam a continuidade da tortura conduz ao caminho para a sua total
eliminação no mundo dos fatos. A tortura é um crime de oportunidades, que é cometido em ambientes
de opacidade (pouca transparência) e sem vigilância e cujo resultado obtido comumente é valorado pela
Justiça, que muitas vezes desacredita as alegações feitas pelas vítimas. Consequentemente, para que no
futuro a máxima “Tortura nunca mais” possa ser escrita na afirmativa é imprescindível que se eliminem
as oportunidades, o que exige da Justiça brasileira atuação firme e comprometida na apuração das
denúncias de tortura e na desconsideração de (falsas) confissões obtidas mediante tortura. Afinal, tal
como ocorreu no “caso Evandro”, quando uma tortura é cometida para extrair uma confissão, além da
vítima do crime que se está a investigar (in casu, o menino Evandro), todas as pessoas que são torturadas
(e as suas famílias) também passam a ser vítimas de um inaceitável crime hediondo, de danos
irreparáveis.

100 RODRIGUES, João Gaspar. op. cit., p. 104.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
72 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Referências

ABAGGE, Celina Cordeiro; ABAGGE, Beatriz Cordeiro; org. Sheila Cordeiro Abagge. Malleus: relatos de
injustiça, tortura e erro judiciário. 1ª ed. Curitiba, PR: Brazil Publishing, 2021.
ALVAREZ, Marcos César. Tortura, história e sociedade: algumas reflexões. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. V. 72. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2008.
BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Edizione di riferimento: a cura di Renato Fabietti, Mursia: Milano,
1973. Disponível em: http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_7/t157.pdf. Acesso em: 04 mai. 2022.
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório da Comissão Nacional da Verdade, v. 1. Brasília: CNV,
2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.
Acesso em: 20 abr. 2022.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Manual de prevenção e combate à tortura e maus-tratos para audiência
de custódia. Conselho Nacional de Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Escritório
das Nações Unidas sobre Drogas e Crime; coordenação de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi ... [et al.]. Brasília:
Conselho Nacional de Justiça, 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2020/11/manual_de_tortura-web.pdf. Acesso em: 20 abr. 2022.
BRASIL. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2015-2016. Brasília, DF:
2016. Disponível em: https://mnpctbrasil.files.wordpress.com/2019/09/mecanismo-nacional-de-prevencao-e-
combate-a-tortura-relatorio-anual-2015-2016.pdf. Acesso em: 20 abr. 2022.
CARVALHO, Gisele Mendes de; OLIVEIRA, Flávio Henrique Franco de. “Direito a não ser torturado?” A
integridade moral como bem jurídico indisponível no Direito Penal brasileiro. Doutrinas Essenciais de Direito
Constitucional. V. 8. São Paulo, SP: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
COMMITTEE AGAINST TORTURE. Convention against Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading
Treatment or Punishment. General Comment No. 2. Genebra, Suíça: United Nations, 2008.
ENDO, Paulo. Sobre a prática da tortura no Brasil. Revista USP. n. 119. São Paulo, SP: 2018. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/151575. Acesso em: 27 abr. 2022.
FERRAZ, Hamilton Gonçalves; CHIES-SANTOS, Mariana. “Vou temperar vocês”: um estudo de caso sobre a
responsabilidade do Judiciário no combate às práticas de tortura no sistema socioeducativo. Revista Brasileira
de Ciências Criminais. v. 190. ano 30. p. 275-307. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, maio/jun. 2022.
GRECO, Luís. As regras por trás da exceção – Reflexões sobre a tortura nos chamados “casos de bomba-relógio”.
Revista Jurídica. v. 23. n. 7. Curitiba, PR: 2009. Disponível em:
http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/95/71. Acesso em: 20 abr. 2022.
GRIMA LIZANDRA, Vicente. Los delitos de tortura y de tratos degradantes por funcionarios públicos. Valencia:
Tirant lo Blanch, 1998.
INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. IDDD. Relatório Nacional Completo. O fim da liberdade.
A urgência de recuperar o sentido e a efetividade das audiências de custódia. 2019, p. 76. Disponível em:
http://www.iddd.org.br/wp-content/uploads/2020/07/OFimDaLiberdade_completo.pdf. Acesso em: 30 jun.
2022.
JESUS, Maria Gorete Marques de; SILVESTRE, Giane; DUARTE, Thais Lemos. Tortura como marca cotidiana:
Narrativas sobre os serviços de atenção às vítimas de tortura desenvolvidos no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Danish Institute Against Torture, 2021, p. 29. Disponível em: https://nev.prp.usp.br/wp-
content/uploads/2021/07/35-TORTURA-COMO-MARCA-COTIDIANA_v05.pdf. Acesso em: 30 jun. 2022.
KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Traduzido por Clélia Aparecida Martins [1ª parte], Bruno Nadai,
Diego Kosbiau e Monique Hulshof [2ª parte]. Petrópolis, RJ: Editora Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco, 2013.
MAIA, Luciano Mariz. Do controle judicial da tortura institucional no Brasil hoje. À luz do direito internacional
dos direitos humanos. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco, 2006. Disponível
em: https://apublica.org/wp-content/uploads/2012/06/DO-CONTROLE-JUDICIAL-DA-TORTURA-
INSTITUCIONAL-NO-BRASIL-HOJE.pdf. Acesso em: 20 abr. 2022.
MIZANZUK, Ivan. O caso Evandro: sete acusados, duas polícias, o corpo e uma trama diabólica. Rio de Janeiro:
HarperCollins, 2021.
MONTEIRO, Paulo Henrique Drummond. Papéis sociais, preconceito, estereótipo e estigma. A apresentação da
imagem/voz de pessoas presas como instrumento do processo de degradação da personalidade. Revista do
Instituto de Ciências Penais. V. 4. Belo Horizonte, MG: 2019. Disponível em: https://doi.org/10.46274/1809-
192XRICP2019v4p399-428. Acesso em: 27 abr. 2022.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
73

PROJETO HUMANOS: O caso Evandro. [Locução de]: Ivan Mizanzuki. 2019. Podcast. Disponível em:
https://open.spotify.com/show/3ImOWdGnN8mHFNaKwMSFJx. Acesso em: 02 fev. 2022.
RODLEY, Nigel. Relatório sobre a tortura no Brasil. Produzido pelo relator especial sobre a tortura da Comissão
de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Genebra, Suíça: 2001. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/dh/br/relatores_onu/rodley/relatorio.htm. Acesso em: 20 abr. 2022.
RODRIGUES, João Gaspar. Programa resolutivo de prevenção e de enfrentamento à tortura. Revista Eletrônica
do CNJ. v. 5. n. 2. Brasília, DF: jul./dez. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.54829/revistacnj.v5i2.238.
Acesso em: 27 abr. 2022.
SANTOS FILHO, Diógenes Caetano. A verdadeira história do Caso Evandro. 1ª ed. Publica Livros: 2012. Versão
Kindle®.
SANTOS, Mariane Isabel Silva dos; CAMPELO, Raissa Braga; SILVA, Pollyana de Queiroz. Influências
midiáticas nas decisões dos magistrados criminalistas. Revista da Defensoria Pública da União. n. 7. Brasília,
DF: jan./dez. 2014. Disponível em: https://revistadadpu.dpu.def.br/article/view/122. Acesso em: 26 abr. 2022.

Recebido: 12/07/2022
Aprovado: 29/06/2023
75
A mistanásia e a responsabilidade
criminal do Estado: estudo de caso
sobre a falta de oxigênio medicinal na
cidade brasileira de Manaus – AM

Mystanasia and the criminal responsibility of the State: a case study on the lack of
medicinal oxygen in the Brazilian city of Manaus – AM

Samuel Mendonça
Professor Permanente vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Mestrado
e Doutorado, linha de pesquisa Políticas Públicas em Educação, líder do grupo de
pesquisa Política e Fundamentos da Educação (CNPq/PUC Campinas), da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas. Membro Titular do Comitê de Ética em Pesquisa
com Seres Humanos da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde
(2019-2022). Bolsista de Produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Realizou estágio pós-doutoral pelo
Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da FE-USP, sob a
supervisão do Prof. Dr. Romualdo Luiz Portela de Oliveira. Atuou como Professor
Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Campinas no ano de
2019. É o Presidente da Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação (2018-2022),
membro da Comissão de Avaliação da área de Educação da CAPES (2019/2020).

Christiany Pegorari Conte


Advogada. Mestre em Direito pela FMU/SP. Doutora em Educação pela PUC
Campinas. Professora de Direito Penal e Processual Penal da PUC de Campinas/SP.
Coordenadora dos cursos de Especialização sobre Direito Digital (presencial) e
LGPD: aspectos teóricos e práticos (EAD) da PUC de Campinas. Professora do
Curso de Especialização em Direito Privado da PUC- Poços de Calda/MG.
Professora dos Cursos de Especialização em Direito Penal e Processual Penal do
Proordem Goiânia e de Campinas. Professora do Curso de Especialização em
Direito Ambiental com ênfase ao Agronegócio do CERS/SP. Professora da
ESA/Campinas. Membro da Comissão de Direito Digital da OAB/Campinas.

Luiz Guilherme Luz Cardoso


Mestrando em Direito, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito
Agrário da Universidade Federal de Goiás. Bolsista CAPES.

Resumo: O conceito de mistanásia foi formulado em 1989 por Márcio Fabri dos Anjos, bioeticista
brasileiro como: morte miserável, infeliz, precoce e evitável. O problema sobre o qual a pesquisa
se debruçou apresenta-se na forma de pergunta: diante da configuração da mistanásia quem
deveria figurar como sujeito ativo e ser responsabilizado criminalmente? Para responder ao
questionamento, a pesquisa valeu-se do estudo de caso da situação de falta de oxigênio em
Manaus – AM e utilizou-se da abordagem qualitativa e do método descritivo – analítico.
Constatou--se que o Estado Brasileiro, em razão do dever constitucional de garantir saúde, deve
figurar como sujeito ativo e ser responsabilizado criminalmente com a incidência da pena de
multa.

Palavras-chave: Mistanásia; Miserável; Evitável; Precoce; Responsabilização Criminal.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
76 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Abstract: The concept of mythanasia was formulated in 1989 by Márcio Fabri dos Anjos,
a bioethicist as: miserable death, Brazilian unhappy, precocious and avoidable. The
problem that the research addressed is presented in the form of a question: given the
configuration of mythanasia who should appear as an active subject and be held
criminally responsible? To answer the question, the research used the case study of the
situation of lack of oxygen in Manaus - AM and used the qualitative approach and the
descriptive - analytical method. It was found that the Brazilian State, due to the
constitutional duty to guarantee health, must appear as an active subject and be criminally
liable with the incidence of a fine.

Keywords: Mythanasia; Miserable; Preventable; Precocious; Criminal Accountability.

1. Introdução

A mistanásia é um fenômeno analisado no contexto da bioética, seu conceito permeia o final da


vida, podendo ser definida em algumas palavras como: “morte miserável, infeliz, precoce e evitável” 1.
Esse termo foi elaborado na segunda metade do século XX, mais precisamente em 1989 por Márcio
Fabri dos Anjos, bioeticista brasileiro.
Este termo insurgiu-se na contramão da ideia terminológica, até então difundida, de “eutanásia
social”, uma vez que a eutanásia, ao contrário da mistanásia, pode ser entendida como “boa morte, morte
apropriada ou benéfica”2, já a mistanásia, para além do conceito, enfoca-se na dimensão social, cotidiana
e crítica da vida humana.
Trata-se, portanto, de um conceito provocatório, sobretudo quando pensado pelas quantidades
expressivas de mortes não acidentais, criadas a partir das omissões mistanásicas que na maioria das
vezes antecedem as mortes mistanásicas.
No campo jurídico, o conceito de mistanásia abre precedentes para inúmeras discussões,
principalmente porque essas mortes são evitáveis, atingem a coletividade, por conseguinte ferem o
direito à saúde razão pelo qual se discute a responsabilidade criminal por tantas mortes, bem como as
formas de prevenção firmadas nas ações afirmativas. Não somente por estas razões, a própria bioética
estabelece normas e recomendações para o respeito da vida humana que necessitam de regulamentação
jurídica para alcançarem o campo da efetividade.
Nesse sentido, o Direito confere efetividade para as normas em geral e, como não é diferente com
a bioética. A efetividade das normas éticas, para que ultrapasse o campo da medicina e da ética
deontológica necessitam da positivação pelo Direito, ou melhor, pelo (Bio) direito 3, que transforma
normas éticas em normas jurídicas.
No contexto brasileiro, a investigação levou em consideração a região norte do país, em específico
o Estado do Amazonas, dado que a cidade de Manaus-AM fora uma das primeiras capitais do Brasil a

1 RICCI, Luiz Antônio Lopes. A morte social: mistanásia e bioética. São Paulo: Paulus. 2017, p. 09.
2 BARBOZA; LEAL; ALMEIDA. Biodireito tutela jurídica das dimensões da vida. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 264.
3 ROCHA. Renata Da. Fundamentos do Biodireito. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 69.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
77

registrar causa da COVID-194. Não somente por esta razão, tal região como será demonstrado no estudo
de caso foi considerada abaixo da linha da pobreza no ano anterior ao estopim da pandemia5,
característica peculiar, que necessariamente acompanha as mistanásias ocorridas na América do Sul.
Desse modo, a pesquisa acadêmica abrirá agenda quanto ao alargamento do horizonte reflexivo jurídico
em matéria de mistanásia no cenário da bioética transnacional, global e plural, a partir da realidade
brasileira.
Nesse interim, a pesquisa se atentou aos reflexos jurídicos da mistanásia debruçando-se para a
solução da problemática atinente a delimitação do sujeito ativo e responsabilização criminal do Estado
(pessoa jurídica de direito público).
O principal objetivo materializou-se em: por meio da situação problema da falta de cilindros de
oxigênio no Estado do Amazonas, verificar elementos que configurem “mistanásia”, para
posteriormente dissertar em matéria de eventual enquadramento típico à atribuição de responsabilização
criminal para o Estado Brasileiro.
Para tanto, a pesquisa utilizou-se do método descritivo analítico 6 materializado no estudo de caso
da falta de oxigênio na cidade brasileira de Manaus, por sê-la uma das primeiras capitais brasileiras a
registrar casos da doença (COVID – 19) entre abril/ maio de 2020 e por demonstrar aspectos específicos
da mistanásia no Brasil.
Em primeiro lugar, com intuito de levantar conteúdo, foram selecionados alguns autores, livros e
artigos que já dissertaram sobre matéria atinente a mistanásia. Posteriormente, para o estudo de caso,
escolheram-se algumas notícias que veicularam na mídia nacional e internacional à questão da falta de
cilindros de oxigênio na cidade brasileira, Manaus - AM.
Ao final da primeira etapa, constatou-se que a situação problema (da falta de cilindros de oxigênio
em Manaus) reunia as principais características que compõe o conceito de morte mistanásica: miserável
(miserabilidade), infeliz (infelicidade), precoce (precocidade) e evitável (evitabilidade).
Feito isso, a pesquisa utilizou-se da característica não acidental dessas mortes, na maioria das
vezes criada pela omissão de quem deveria prover o direito à saúde, para então, dissertar sobre a
responsabilidade criminal do Estado (compreendido nos entes da federação: União, Estados, Distrito
Federal e Municípios).
Para a construção da segunda etapa da pesquisa, foram selecionados e analisados alguns artigos
da Constituição Brasileira de 1988, sobre o direito à saúde e responsabilidade da pessoa jurídica de
direito público. De forma complementar se alisou a Lei n° 8.080/1990 (Lei do Sistema único de Saúde);
Lei nº 13.979/2020 (Lei que dispõe sobre o enfrentamento da emergência de saúde Pública) e Lei n°
9.0605/1998 (Lei que dispõe sanção penal e administrativa para atos lesivos ao meio ambiente).
Enfim realizou-se a explanação teórica do termo “mistanásia” em confronto com as características
perquiridas no estudo de caso. Notou-se a constatação aproximativa entre a literatura e a realidade

4 G1. Manaus foi a capital mais atingida pela Covid-19 no Brasil, diz estudo da Fiocruz. Disponível em:
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/06/02/manaus-foi-a-capital-mais-atingida-pela-covid-19-no-brasil-diz-
estudo-da-fiocruz.ghtml. Acesso em 30 abr. 2020.
5 IBGE. Síntese de Indicadores Sociais. 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf. Acesso em 30 abr. 2021.
6 GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2002.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
78 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

estudada, bem como se definiu a responsabilidade criminal e os sujeitos ativos responsáveis pela
configuração das mortes mistanásicas.

2. Mistanásia: conceito, dimensão, aspectos jurídicos

Na primeira metade do século XX falava-se em eutanásia social para referir-se àquelas situações
em que as pessoas desfaleciam vítimas de fatores externos, não ligados a responsabilidade médica, mas
atrelados à falta de recursos que possibilitassem a vida.
Em contraposição a esse conceito insurgiu o termo “Mistanásia” por Márcio Fabri dos Anjos em
1989. Para o Bioeticista era necessário estabelecer diferenças e ponderar significações entre eutanásia e
mistanásia, vez que afirmar uma em detrimento da outra não traria complementação, pelo contrário, ante
a característica antagônica de ambos os conceitos ensejaria confusão etimológica.
Nas palavras do citado Bioeticista:

A eutanásia pode ser entendida como morte suave, feliz, ao passo que a mistanásia é
a morte infeliz, dolorosa. Isso nos remete, dentro da área da biomedicina, aos
pacientes terminais sofredores, seja pela convicta recusa em não se inferir no processo
de morte, seja pelo mau atendimento médico – hospitalar. Mas nos remete também
muito além da área hospitalar. E nos faz pensar na morte provocada de formas lentas
e sutis por sistemas e estruturas7

Nesse sentido, a mistanásia possui um significado distinto de eutanásia, pois a primeira esta
atrelada a morte de pessoas cujas vidas são desvalorizadas, que acontece às margens da sociedade, ao
passo que a segunda não possui atrelamento com a dimensão social estando tão somente ligadas as
questões médicas que favorecem a antecipação normalizada, suave e feliz da morte. Desse modo, a
mistanásia:

Trata-se de um conceito de grande poder provocatório, convocatório, sobretudo no


campo ético-moral, justamente por ser capaz de deslocar o foco ao situar a morte
precoce na esfera do “mal evitável”, evocando o princípio moral de “evitar o mal”. A
atribuição de responsabilidade moral e social pelas mortes evitáveis sacode as
consciências, mobiliza para ações defensivas, preventivas e afirmativas em situações
adversas e de vulnerabilidade, além de favorecer e insistir nas mudanças
comportamentais e socioestruturais8.

Essa conceituação consubstanciada na contemporaneidade, não impediu que a palavra mistanásia


fosse pensada a partir da sua etimologia carregando prefixos antigos, do vocabulário inglês “MIS” que
quer dizer “mau, errado, inadequado” ao derivado do grego “Tanatos” equivalente à “morte”, ou seja,
“morte de forma inadequada” 9. Para, além disso, a configuração da mistanásica foi desde sempre uma
realidade presente na sociedade brasileira principalmente quando pensada pelos indicadores
socioeconômicos que vitima pobres solícitos a vida precária, com pouca ou nenhuma qualidade.

7 ANJOS, Márcio Fabri. Eutanásia em chave de libertação. Boletim do Instituto São Camilo n° 57. 1989, p. 06.
8 RICCI, 2017, op. cit., p. 09.
9 OLIVEIRA. Cleberson Cardoso De. Mistanásia: Responsabilidade Estatal e o acesso à saúde. Londrina: Thoth. 2020, p.

43.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
79

Em complementação ao conceito, Chiavacci classificou a mistanásia como “morte indireta” 10,


que seria possível evitá-la, se não fosse à negligência pessoal e social, bem como o abandono com que
se ocasiona a morte previsível e evitável. A mistanásia de acordo com citado autor envolve aspectos
sociais e pessoais, consequências da atuação ou omissão de vários sujeitos sejam eles: o Estado em seu
dever de garantia a efetividade do Direito a saúde, seja o médico em seu dever de zelar pela vida do
paciente.
No que tange aos aspectos jurídicos, não existe texto de lei que faça menção explícita a mistanásia,
assim como não existem para a eutanásia, distanásia e ortotanásia, mas isso não impediu que os códigos
disciplinares, a exemplo do Código de Ética Médica (2019) elencasse expressa vedação quanto ao
adiantamento da vida. No artigo n° 41 “proibiu-se que o médico encurte, seja de que forma for à vida
de seu paciente, independente da solicitação ou consentimento do paciente ou seu representante legal”11.
Tal ausência legislativa, não impediu que a mistanásia fosse interpretada e discutida como uma
violação ao direito a saúde, direito este que deve ser considerado um direito fundamental amplo, pois
abarca na perspectiva do legislador uma conduta holística por parte do Estado que extrapola os limites
das unidades básicas de saúde, unidades pronto atendimento, ambulatórios e hospitais. Assim quis
preceituar o legislador constituinte de 1988, em especial no Art. 196 da Constituição Federal:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação12.

Perceba que o legislador foi categórico ao elencar o dever do Estado atrelado à promoção da
efetividade do Direito a Saúde, muito embora seja essa uma norma de eficácia limitada, o texto prevê
caminhos para a efetivação do Direito, o primeiro são as políticas públicas sociais e econômicas, o
segundo consiste no acesso universal e igualitário de todos os cidadãos ao sistema de saúde. Como se
não bastasse, no artigo subsequente o legislador reafirmou a competência do poder público em fiscalizar
e controlar as ações de serviço de Saúde, assim predispôs:

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle,
devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por
pessoa física ou jurídica de direito privado13.

Nesse sentido, não existe outra saída para o Estado, a não ser provê o acesso à saúde, caso
contrário estaremos diante de uma irreverência a esse direito, por conseguinte uma irreverência à própria
cidadania que consiste no “exercício do poder para a educação e para a saúde" 14.
Ademais, apontar aspectos jurídicos não é somente falar sobre violação ao Direito a saúde, mas é
também sobre prevenção, e nesse aspecto o legislador fora assertivo ao mencionar dentro do artigo 198
da Constituição Federal (que versa sobre as ações e serviços públicos de saúde), ações concretas. Dentre

10 CHIAVACCI. Elena. A raiz profunda da miséria e da morte prematura de grande parte da família humana está ligada
a estruturas financeiras e produtivas planetárias. São Paulo: Non uccidere’ in economia. 2004, p. 539-541.
11 BARROS. Edmilson de Almeida Júnior. Código de Ética Médica comentado e interpretado. Resolução CFM 2217/2018.

São Paulo: CIA do e-book. 2019. p. 466.


12 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 2017, p. 61.
13 BRASIL. 2017, op. cit., p. 61.
14 OLIVEIRA. 2020, op. cit., p. 29.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
80 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

estas ações, vale ressaltar, a ação disposta no inciso II: “atendimento integral, com prioridade para as
atividades preventivas”, ou seja, na perspectiva do legislador esse direito é antes de qualquer atitude
“prevenção”.
No mais, longe de qualquer preciosismo enfatizar prioridade à prevenção demonstrou um
legislador preocupado em prevenir violações e consequências, pois quando o Estado descumpre sua
função de garantir saúde prevenindo doenças e fornecendo bem – estar faz-se necessário à intervenção
de medicamentos e médicos, e quando isso ocorrer, já houve violação, pois não há de se falar em saúde,
mas em tratamento para as doenças.
No âmbito internacional do Direito, a Declaração Universal sobre bioética e direitos humanos
também não trouxe o conceito de mistanásia, no entanto encontram-se positivados no capítulo “da
promoção da Declaração” as diretrizes para que se evitem as mortes mistanásicas como é caso da: a)
Criação de comitês de ética pelos Estados; b) Implementação dos princípios da Declaração por meio de
medidas legislativas e administrativas; bem como, c) O incentivo a educação em bioética15.
Em época anterior à citada Declaração sobre bioética, verificou-se importante contribuição ao
tema da saúde, em especial no ano de 1948 com a criação e constituição jurídica da Organização Mundial
da Saúde (OMS). Com sua ascensão, rompeu-se o pensamento tradicional negacionista, para dar lugar
à concepção positivista e progressiva da saúde, segundo o qual a saúde deve ser considerada um estado
de bem-estar físico, social e mental, e não somente como ausência de doenças16.
Igualmente, a Magna Carta de 1988 influenciada pelos valores da citada Declaração consagrou o
direito à saúde em amplitude como um direito social atrelado ao direito à vida, de modo a abarca-lo
como um direito de todos (da coletividade) e um dever do Estado.
Destarte, pode-se aferir que o direito a vida, e, por conseguinte a saúde assumiu pós Declaração
(1948) uma nova conceituação jurídica, não somente porque fora elevado a condição de pré – requisito
para a aquisição de outros direitos, mas pelo fato de abranger o dever do Estado em fornecer bem –
estar.
Nesse particular, Moraes salientou que o direito a vida consiste no principal direito atribuído aos
seres humanos, do qual insurgem os demais direitos. O direito a vida abrange o direito de manter-se
vivo, bem como, o direito de acesso às possibilidades de viver e desenvolver as faculdades inerentes ao
pleno desenvolvimento humano17.
A questão da mistanásia reflete-se na seara jurídica, quando pensada pelo prisma da provocação,
pois as mortes não são culturais, mas ocasionadas, “enquanto a eutanásia, distanásia e ortotanásia estão
relacionadas ao despedir da vida, a mistanásia impede o bem – viver” 18 mata, não no sentido direto
empregado pelo homicídio “matar alguém”, mas mata lentamente pela negligência, falta de recursos,
fatores socioeconômicos dentre outras causas.
Por esta razão, a mistanásia deve ser discutida ante a possibilidade de enquadramento em um tipo
penal, para posteriormente, ser punida, ainda que em alguns casos aparentemente o sujeito ativo pareça
abstrato, (como foi o que ocorreu no caso da falta de oxigênio na cidade de Manaus – AM), a discussão

15 UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, 2005. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf. Acesso em 01 mar. 2021.
16 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. São Paulo: Atlas, 2005. P. 515-516.
17 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 15. Ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 66.
18 RICCI, 2017, op. cit., p. 54.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
81

passa necessariamente pela obrigação do Estado, não só de evitar as mortes mistanásicas, mas em prover,
nos moldes da Constituição Federal, o direito à saúde.
Para além de interrogar a estrutura social, política e econômica, faz-se necessário uma atuação
efetiva do Direito para que se impeça a ocorrência das mortes evitáveis. Assim, a solução elucida-se,
sobretudo, com a elaboração de leis e políticas públicas permeadas por regras – princípios. E, desse
modo, deve-se entender o Direito:

Um sistema de normas e as normas como um conjunto de regras princípios, ambos


constitutivos de uma ciência jurídica autônoma, que tem na lei positiva, a expressão
maior de garantia dos direitos humanos fundamentais, que se afirma a necessidade,
não de um catálogo fechado de regras a obstaculizar o avanço da Biomedicina, da
Biotecnologia, da Bioengenharia, mas a exigência de normas biojurídicas, isto é, de
regras e princípios próprios, que possam tanto informar os limites seguros ao avanço
da Biociência, quanto auxiliar na solução de conflitos19.

Nota-se que, o excerto acima chamou atenção no que diz respeito à impossibilidade de
regulamentação exaustiva de todas as questões bioéticas em lei, mas ao mesmo tempo reconheceu que
por mais que sejam os temas bioéticos eivados de plurivocidade e significações, faz-se necessário a
regulamentação de algumas questões para a solução de dilemas éticos, como por exemplo: as mortes
mistanásicas, o desligamento de aparelhos que mantém vivo o paciente, a seleção de embriões, bem
como, para atribuição das consequências jurídicas.
Com efeito, autenticar um sistema de normas próprias para a regulamentação destas questões
citadas, em especial, a “mistanásia”, não significa exaurir as temáticas em um tipo penal, mas reconhecer
a necessidade de uma nova ordem jurídica, que seja capaz de postular direitos e punir atrocidades
favoráveis ao crescimento deste tipo de morte.
Ainda sobre o aspecto jurídico, vale ressaltar que o direito à saúde deve ser pensando
primeiramente ante a configuração das situações lastimáveis de mistanásia como um direito humano
universal e fundamental que impõe o dever ao Estado de se abster das violações seja por ação ou, (no
caso em apreço estudado, por omissão). Nesse sentido, o Estado deve prover saúde para diminuir as
exclusões sociais das camadas mais vulneráveis, caso contrário, a falta de condições mínimas só
favorece a mistanásia.
Na contramão da problemática, o Estado Brasileiro com o intuito de corresponder à política
pública de saúde para todos e driblar as mortes mistanásicas criou o Sistema Único de Saúde (SUS),
lapidado no artigo 200 da Constituição Federal, que dispõe suas competências:

I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a


saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos,
hemoderivados e outros insumos;
II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde
do trabalhador;
III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;
IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento
básico;
V - incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico
e a inovação;

19 ROCHA, 2018, p. 100.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
82 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor


nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;
VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização
de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho 20.

Em complementação o legislador infraconstitucional criou a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de


1990 (Lei do SUS), por meio do qual regulamentou as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Mais uma vez a
legislação trouxe um conceito ampliativo para a saúde não entendida em um contexto isolado, mas
atrelado ao bem – estar.
Pode-se notar no artigo 3° da citada Lei do SUS que a saúde deve levar em consideração algumas
condicionantes, como: alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda,
educação, atividade física, transporte e lazer, que possam garantir o bem estar social físico e mental de
todos21.
No mesmo sentido o artigo 2° da mencionada Lei n° 8.080/90 elevou-se a saúde como um direito
fundamental que deve ser provido pelo Estado através de condições ao seu exercício, de forma a não
deixar dúvidas quanto a este dever do Estado, malgrado, sobretudo, no zelo pela vida e dignidade da
pessoa, bem como no fomento as políticas de prevenção.
Nesse particular, Vidal Serrano Nunes Junior ao comentar a amplitude jurídica do direito a saúde
apontou que o direito a saúde abrange duas dimensões: de estar são e permanecer sem doenças. Assim,
segundo o autor, cabe ao Estado desenvolver políticas públicas de Saúde, para que se evite a exposição
dos indivíduos às situações de doenças. Isso porque, o direito a prevenção é a consequência da efetivação
plena do direito à saúde. Portanto, o direito à saúde pode ser considerado amplo e dependente de outros
direitos, tal como, direito a habitação e reabilitação, capaz de possibilitar o desenvolvimento do Estado
físico e mental dos indivíduos22.
Em suma, ao conceito de mistanásia foram atribuídas inúmeras significações quando pensada seu
aspecto jurídico, o Direito aproveitando-se da postulação bioética dedicou-se a atribuir valoração
ampliativa a saúde dissertando sobre prevenção, não omissão, e políticas públicas.
No campo jurídico, ainda que não exista menção explicita a temática da mistanásia, percebeu-se
que, o direito à saúde e a mistanásia, juridicamente falando, constituem aspectos dicotômicos, de modo
que a não salvaguarda do primeiro em seu sentido amplo (prevenção e remediação) constitui a realização
da segunda, melhor dizendo: a realização das mortes indignas e prematuras (mortes mistanásicas).
Além disso, o Direito materializado na Constituição Federal colaborou para a imputação de
responsabilidade e dever jurídico quando descreveu a obrigação exclusiva do Estado Brasileiro em
propiciar ao cidadão, o direito fundamental à saúde, que consiste, sobretudo, na prevenção à doença.
Não hesitou falar em prevenção, e quando da violação, se falou da tutela efetiva para o fornecimento de
meios médicos eficazes para que se evitem mortes mistanásicas.

20 BRASIL. 2017, op. cit., p. 59.


21 BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação
da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. DOU. 20.9.1990. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 27 jul.2021
22 JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. A Cidadania Social na Constituição de 1998. Editora: 2009, p. 21 – 22.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
83

3. Estudo de caso: análise da falta de cilindros de oxigênio no estado do amazonas

O estudo de caso desenvolveu-se a partir da situação de crise na saúde pública do Brasil que foi
agravada pela situação de epidemia do COVID-19. Debruçou-se na problemática da falta de oxigênio
em Manaus, cidade Brasileira situada no Estado do Amazonas. Para melhor compreensão do caso, foram
selecionadas algumas manchetes noticiarias que veicularam na mídia nacional e internacional “à crise”,
bem como, índices socioeconômicos da região estudada e trechos do relatório final da Comissão
Parlamentar de Inquérito da COVID - 19.
A pesquisa utilizou-se do método descritivo23 para a construção do estudo de caso, preocupando-
se em analisar a crise de saúde pública na cidade de Manaus, Estado do Amazonas, a partir da
configuração do fenômeno bioético intitulado: “mistanásia”.
Para tanto, escolheu-se como campo de estudo a cidade de Manaus, por sê-la, uma das primeiras
capitais do Brasil a registrar casos da doença entre abril e maio de 2020. Não só, a própria repercussão
da (falta de cilindros de oxigênio) na mídia e sua notoriedade pelas imagens de pacientes que eram
transferidos às pressas a outros hospitais ou que morriam por falta de ar (asfixia), também despertou o
anseio para a pesquisa jurídica, acerca das responsabilidades por tantas mortes que poderiam ser
evitadas.
Nesse período citado, (entre abril e maio de 2020) houve a chamada “primeira onda” da pandemia,
momento em que os sistemas de saúde do Amazonas evidenciaram dificuldades para responder
efetivamente ao recrudescimento do número de casos da doença. Por conseguinte, os leitos de UTI
alcançaram a quase totalidade de ocupação24 e o sistema funerário entrou em colapso, sendo necessário
o sepultamento de vítimas da doença em valas comuns 25.
Alguns meses após o primeiro pico da doença, (dezembro de 2020), a Secretaria Estadual de
Saúde do Amazonas (SES/AM) registrou na quinta versão do documento “Plano de Contingência
Estadual para o Recrudescimento da Infecção Humana pelo SARS-CoV-2 COVID-19” 26, dados da
Fundação de Vigilância de Saúde (FVS) que demonstravam novo indicador de alta na média móvel de
internações desde setembro daquele ano. No mesmo período, demonstrou-se também um aumento
significativo da ocupação de leitos de UTI em Manaus, tanto na rede pública quanto na rede privada,
chegando-se a números elevados ao final de 2020.
No mais, percebeu-se a configuração do reconhecimento pelo poder público, de uma situação
nova que demandava atenção e providências, tendo em vista a publicação do Decreto estadual nº 43.234,
de 23/12/2020, (que estabeleceu medidas restritivas no período de festividades e a abertura de novos

23 GIL, 2002, op. cit., p. 42.


24 G1. Jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/04/23/amazonas-atinge-96percent-de-
ocupacao-em-leitosde- uti-da-rede-publica-de-saúde-diz-susam.ghtml. Acesso em 24 out. 2021.
25 G1. Jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/06/17/cemiterio-de-manaus-suspende-

enterros-em-valacomum- e-volta-a-usar-covas-individuais-apos-redução-de-mortes.ghtml.Acesso em 24 out. 2021.


26 PLANO MANAUS. Plano de contingência estadual para infecção humana pelo novo coronavírus 2019 – Ncov.

Disponível em: https://semsa.manaus.am.gov.br/wp-content/uploads/2020/02/PLANO-


CONTINGENCIA_CORONAVIRUS_PARA-O-AMAZONAS.pdf. Acesso em: Acesso em 24 out. 2021
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
84 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

leitos de UTI) 27. Essa publicação prova que os agentes estatais detinham conhecimento da grave
situação epidemiológica no Estado.
Naquele momento, os indicadores apontavam para o aumento exponencial de casos e de óbitos
por COVID- 19, além dos riscos que as aglomerações decorrentes das festividades de fim de ano
exerciam sobre a taxa de contágio; Reconheceu-se também o “caos” que poderia sobrevir ao sistema
hospitalar – seja em termos de infraestrutura ou recursos – que suportasse a alta projeção de casos da
doença28. Apesar disso, o Governo estadual revogou o citado Decreto no dia 27 de dezembro de 2020,
motivado por diversas manifestações contrárias às medidas de isolamento realizadas na capital
Amazonense.
Diante dos fatos, em momento posterior, o Ministério da Saúde enviou uma equipe ao Estado do
Amazonas, isso somente no dia 3 de janeiro de 2021, semana que houve nova crescente no número de
internações 29. Essa equipe tinha apenas o objetivo de avaliar uma situação que já se evidenciava grave,
portanto, e em razão da natureza fiscalizatória da equipe, não foram executadas medidas que, de fato,
mitigassem ou prevenisse “o colapso” do sistema de saúde local.
Conforme distado no documento “Plano Manaus”:

Decidiu-se, então, pelo envio, a Manaus, de um dos secretários, formado em medicina,


para avaliar a situação logo após a virada do ano. Escolheu-se, para a tarefa, a
Secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro. Decidiu-
se por realizar a viagem apenas após o ano novo, em virtude do início de mandato de
gestores municipais e de possíveis trocas de secretariado.

Ademais, diante do conteúdo do intitulado “Plano Manaus” (2021) elaborado em 04 de janeiro de


2021 e após reunião do ministério público com as autoridades estaduais, conclui-se que:

a) Há possibilidade iminente de colapso do sistema de saúde, em 10 dias, devido à


falta de recursos humanos para o funcionamento dos novos leitos;

b) Há deficiência na resolutividade da atenção primária, por não estarem utilizando as


orientações de intervenção precoce para COVID-19, conforme orientações do MS;

c) Há dificuldades na aquisição de materiais de consumo hospitalar, medicamentos e


equipamentos;

d) Há dificuldades na contratação de profissionais com habilitação para atuação nas


UTIs;

e) Há necessidade de estruturação de leitos de UTI com celeridade para atendimento


aos pacientes que já demandam internação, constatada pela alta ocupação dos leitos
dos serviços de urgência e emergência (salas rosas e vermelhas) - taxa de ocupação
atual de 89,1%; e - estima-se um substancial aumento de casos, o que pode provocar
aumento da pressão sobre o sistema, entre o período de 11 a 15 de janeiro, em função

27 DECRETO ESTADUAL nº 43.234, de 23/12/2020. Manaus, quarta-feira, 23 de dezembro de 2020 | Poder Executivo.
Disponível em: https://www.transparencia.am.gov.br/wp-content/uploads/2020/12/Decreto-n.-43.234-de-23-de-dezembro-de-
2020.pdf. Acesso em 24 de out. 2021.
28 SENADO FEDERAL. Relatório Final da CPI da COVID-19. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1wyq0Lwe0a6mLRz1a4xKqdpjarIWTDXPj/view. Acesso em 24 de out. 202, p. 25.
29 SENADO FEDERAL, 2021, op. cit., p. 250.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
85

das festividades de Natal e réveillon30.

Ou seja, já havia previsibilidade da situação caótica existente, desde o início da pandemia, não
somente isso, a responsabilidade legal – constitucional pela manutenção das unidades hospitalares de
saúde que seria alvo do agravamento e superlotação pela pandemia paira exclusivamente sob os
governos que possuem sua administração, portanto, sob o Governo Estadual e Federal.
Diante disso, pode-se concluir neste primeiro momento que o governo federal por meio da
comitiva enviada para a observância do avanço da situação de pandemia já possuía antes do colapso no
sistema de saúde, ciência da carência de insumos que fosse capaz de estagnar as atividades hospitalares.
Como se não bastasse, houve alerta inclusive de governos exteriores ao governo brasileiro. O
Japão, por exemplo, notificou o Brasil no dia 09 de janeiro de 2021, sobre uma nova variante do vírus
Sars-CoV-231. Tal nova cepa havia sido identificada pelo Ministério da Saúde do Japão em viajantes
oriundos do Brasil.
Nas semanas posteriores, o Estado do Amazonas, mais especificamente, sua capital, Manaus,
testemunharam a previsível subida no número de casos, com uma demanda de serviços hospitalares
ainda maiores do que a verificada no 1º semestre de 2020. Diante disso, ante a ausência de um
monitoramento e de um planejamento acerca do fornecimento de insumos hospitalares, sobretudo o
abastecimento de oxigênio medicinal, instalou-se o estopim para a grave crise de saúde e humanitária
que estava por vir.
Ao encontro disso, muitos meios de comunicação internacional noticiaram “a crise no Brasil”,
dentre eles, um dos primeiros jornais a veicular a notícia foi o “The Gaurdian”, assim predizia a
manchete: “Erupção de COVID no maior estado do Brasil deixa trabalhadores da saúde implorando por
ajuda”:

(Fonte: The Gaurdian).

Essa manchete destacada no âmbito internacional veiculou somente a notícia do “caos” na saúde
pública, materializada nos sofrimentos emocionais e físicos dos profissionais da saúde que se
encontravam exaustos em suas atribuições.

30 SENADO FEDERAL, 2021, op. cit., p. 251-252.


31 SENADO FEDERAL, 2021, op. cit., p. 252.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
86 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

No Brasil, a notícia repercutiu de maneira diversa, uma vez que, se discutiu após um curto período
de tempo, as consequências e as ações que foram ou não foram tomadas pelo governo do Estado do
Amazonas e Governo Federal, no que tange ao combate da pandemia e providência de insumos
hospitalares. Assim ressalvou o noticiário:

(Fonte: 15 jan. 2021 - G1 – PORTA DE NOTÍCIAS GLOBO)

(Fonte: 25 jan. 2021 - G1 – PORTA DE NOTÍCIAS GLOBO)

Segundo a primeira notícia do Portal G1 da Rede Globo de televisão (meio de veiculação


nacional), o consumo de oxigênio em períodos sem picos de internação era entre 15 e 17 mil litros
cúbicos por dia, já nos picos de internação esse valor triplicava podendo chegar a 76,5 metros cúbicos
dia, o que superava a capacidade de produção das três principais fornecedoras da região (White Martins,
Carbox e Nitron), uma vez que juntas produziam 28,2 mil metros cúbicos diários, tendo um déficit,
portanto, de 48,3 mil litros32.
Por conseguinte, antes que ocorressem as 30 mortes, da forma como preditas na segunda
manchete, foram necessárias duas opções: a) transportar pacientes de um hospital para outro que tivesse
reservas do referido gás; ou b) transportar mais cilindros de oxigênio para o Estado do Amazonas.
Primeiro se apostou na segunda opção, no entanto, foram detectados outros problemas de ordem
logística quanto ao tamanho dos cilindros e a capacidade dos aviões de carga. Não sendo possível essa

32G1. 15, jan. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/15/crise-do-oxigenio-no-amazonas-


entenda-o-quanto-falta-e-as-acoes-para-repor-o-insumo.ghtml. Acesso em 28 abr. 2021.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
87

opção, muitos pacientes morreram, outros tiveram que ser transportados para cidades ou Estados
vizinhos.
A segunda notícia, já citada, também do portal G1, elucidou as consequências, tanto da falta de
oxigênio, quanto das omissões por parte do Governo Estadual e Federal. A primeira, porém,
consubstanciou-se na configuração explícita da mistanásia, vez que, a partir da falta de oxigênio, em
consideração a peculiaridade do vírus, de ataque ao sistema respiratório, culminou-se as chamadas:
“mortes coletivas”, que com base na notícia supracitada totalizaram aproximadamente 30 mortes
(óbitos) 33.
Nota-se que, ambas as notícias foram categóricas ao afirmar que a situação era evitável, já que
uma vez constatados os picos da doença deveria o Governo (Federal e Estadual) ter previsto “o caos”,
mais do que isso, deveria haver um plano subsidiário de infraestrutura para a saúde em razão do dever
incutido ao Estado de prover saúde por meio de políticas sociais e econômicas, materializadas no
atendimento integral, assistencial e preventivo, conforme preceituam os artigos: 196; 197; e 198 da
Constituição Federal34.
Em razão do recrudescimento da pandemia, os insumos hospitalares foram usados em maiores
proporções, porém, por ser a doença de natureza respiratória, utilizou-se em maior escala os cilindros
de oxigênio. Segundo o relatório final da CPI da COVID-19, os médicos contaram a morte por asfixia
de grande número de pacientes. Dentre os depoimentos do relatório que apontam para a falta de cilindros
de oxigênio, vale ressaltar a comunicação nº TG AMR 19/2021.03, de 16 de janeiro de 2021 que foi
realizada pela diretora executiva da Anistia Internacional ao Ministro da Saúde da época, Eduardo
Pazuello:

Não há leitos, não há ambulâncias e não há oxigênio em diversos hospitais e unidades


de saúde de Manaus e também alguns do interior do Estado do Amazonas. Segundo
dados coletados pelo Consórcio de imprensa que reúne diversos veículos de
comunicação do Brasil, a média móvel de óbitos pela covid-19 no Estado do
Amazonas aumento em 187% nos 14 primeiros dias desse ano de 2021. Esse
percentual do Amazonas é mais que quatro vezes maior que a média móvel de mortes
no Brasil todo que é de 42%, também de 1º a 14 de janeiro35.

Em momento posterior insurgiu o Relatório técnico parcial de vigilância de óbitos por hipóxia em
pacientes com COVID-19, que foi elaborado pela Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas
(FVS/AM). Na ocasião, narrou-se a falta de insumos em geral (medicamentos, leitos, e etc.), e a falta de
cilindros de Oxigênio nos dias 14 e 15 de janeiro de 2021. Desse modo, o citado relatório concluiu:

33 G1. 25, jan. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/25/documentos-mostram-que-mais-


de-30-morreram-nos-dois-dias-de-colapso-por-falta-de-oxigenio-em-manaus.ghtml. Acesso em 28 abr. 2021.
34 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à

redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre
sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também,
por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema
único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...).
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
(BRASIL, 2017, p. 11; 61 op, cit.).
35 SENADO FEDERAL, 2021, op. cit., p. 253.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
88 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Após análise parcial de 184 prontuários e livros de ocorrência de serviço, foi possível
identificar registro em déficit crítico ou falta de oxigênio na rede de gases medicinais
em evoluções médicas e de enfermagem de 34 pacientes. Cabe ressaltar que a
associação do registro da falta de oxigênio com o desfecho clínico dos casos (óbito)
deve ser investigada com maior detalhamento observando-se processos assistenciais
e prescrições, além de discussão com equipes responsáveis pela assistência aos
pacientes, com metodologia de análise de causa-raiz, uma vez que a assistência clínica
é complexa e multifacetada36.

Ao encontro dessas informações, a empresa White Martins, (principal fornecedora do gás


oxigênio à época) apontou que, a partir de 26 de dezembro de 2020, passou-se a verificar um consumo
diário no Estado superior à capacidade produtiva nominal da planta da empresa em Manaus, conforme
disposto no gráfico:

(Fonte: Relatório da CPI da COVID 19 – Senado Federal, 2021).

Percebe-se que, os dados apontam para uma possível falta do referido gás, ainda que considerado
a existência de estoques da empresa no Amazonas, era notório que ao final de 2020 o cenário
epidemiológico demandaria atenção dobrada dos gestores públicos estaduais e federais acerca de um
possível desabastecimento do insumo naquela localidade.
No mais, o relatório da CPI da COVID-19 trouxe dois outros pontos cruciais que foram discutidos
em reunião no Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE-COVID-19) de 18 de maio
de 2020. Primeiramente, observou-se que já havia um mapeamento da necessidade de abastecimento de
oxigênio em Municípios amazonenses e constatou-se:

Possibilidade de TED para aquisições das usinas de oxigênio de São Gabriel e


Tabatinga, com custo aproximado de R$ 561.436,22 cada usina via SESAI; (...).
Aporte para SUSAN na compra de cilindros de oxigênio devido à alta demanda, desta
forma não dependeria de avião evitando alto custo deste transporte para cilindros, o
custo por cilindro seria uma média de R$ 2.650,00, via SAES.

Posteriormente, o segundo relatório da CPI-COVID também trouxe a resposta da empresa White


Martins no processo nº 1000577-61.2021.4.01.3200. Nessa resposta, a empresa ressaltou a obrigação do
Estado e dos seus gestores públicos em coordenar, monitorar e estimar a oferta e a demanda de insumos
médicos nas unidades hospitalares. Em suas palavras:

As questões relativas à demanda e a necessidade dos hospitais do Estado do Amazonas


não podem ser respondidas pela WHITE MARTINS, que atua como fornecedora do
Estado e de hospitais privados, mas não exerce qualquer atividade médica, na área de

36 SENADO FEDERAL, 2021, op. cit., p. 256.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
89

epidemiologia ou de políticas públicas relativas à saúde pública, e tampouco tem


ciência da capacidade de produção de seus concorrentes.

Na tentativa de driblar as mortes mistanásicas e possibilitar melhores condições para se evitar


situações emergenciais de saúde pública, o governo federal sancionou a lei 13.979/20 que trouxe
diversas medidas para o enfrentamento da pandemia, dentre elas vale citar, algumas aquelas dispostas
no Art. 3° da citada lei: I - isolamento; II - quarentena; III - determinação de realização compulsória de:
a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas
profiláticas; e) tratamentos médicos específicos.
Com tudo, ante a configuração da situação da falta de cilindros oxigênio liquido, percebeu-se, o
não cumprimento da alínea (e) da citada lei 13.979/20, pois os pacientes em seus quadros clínicos
necessitavam desse tratamento especial, para a manutenção da sua saúde, o que não ocorreu.
Diante do exposto, se verificou uma conduta omissiva por parte dos gestores estaduais, além
disso, se deve considerar que o governo federal não adotou previamente, mecanismos de controle do
consumo de oxigênio pelo país, apesar de o produto ser essencial na terapia de pacientes infectados pelo
COVID-19.
Tudo isso se verificou em desacordo com a previsão do artigo 16° da lei 8.080/90 que assevera a
direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) a responsabilidade para: “XVIII - elaborar o
Planejamento Estratégico Nacional no âmbito do SUS, (em cooperação técnica com os Estados,
Municípios e Distrito Federal)” 37.
No entanto, o que se verificou com o estudo de caso foi exatamente o contrário, isso porque,
mesmo diante do recrudescimento da pandemia materializado na citada comunicação nº TG AMR
19/2021.03, que apontou a ausência de leitos, ambulância e insumos hospitalares, bem como, diante do
relatório técnico parcial de vigilância do Estado do Amazonas que apontou para o déficit crítico ou falta
de oxigênio na rede de gases medicinais, o Estado permaneceu-se inerte, não no sentido de não fazer,
ele fez, por exemplo, (ao enviar uma equipe de sanitaristas a Manaus), porém, sua conduta foi
meramente reativa, sem estratégias capazes de reverter ou amenizar a situação.
Ademais, a pandemia da realidade local de Manaus-AM, deve ser entendida em seu contexto de
inserção social, (não querendo estabelecer uma relação de causa e consequência), mas vale dizer que o
ocorrido se realizou em uma das regiões mais pobres e de grande número de vulneráveis do Brasil. De
acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE (2019), 47,4% da população
amazonense estavam abaixo da linha de pobreza em 2019, isso significa dizer que de um total de 4,1
milhões de pessoas, 1,9 milhões vive nessa condição, conforme demonstrado no gráfico abaixo:

37 BRASIL, Lei n° 8.080/90, op. cit.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
90 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

(Fonte: IBGE- Síntese de Indicadores sociais 2019)

Esse indicador socioeconômico, particularmente demonstra uma característica peculiar da


mistanásia nos países em desenvolvimento localizados na América Latina (como é o caso do Brasil),
cito à pobreza, pois as mortes mistanásicas são em sua maioria acompanhadas pela omissão, ou melhor,
dizendo, pela pobreza e omissão, consideradas facilitadoras para a ocorrência de mortes e doenças.
Nas palavras de Leonardo Martin:

De modo geral, na América Latina a forma mais comum de mistanásia é a


omissão de socorro estrutural que atinge milhões de doentes durante sua vida
inteira, e não apenas nas fases avançadas e terminais das suas enfermidades.
Fatores geográficos, sociais, políticos e econômicos se juntam para espalhar
pelo nosso continente a morte miserável e precoce [...]. A fome, condições de
moradia precária, falta de água limpa, desemprego ou condições de trabalho
massacrantes, todos contribuem com sua parcela para espalhar a falta de saúde
e uma cultura excludente e mortífera. É precisamente a complexidade das
causas dessa situação que gera na sociedade certo sentimento de impotência
propício da mentalidade “se salva quem puder” 38.

Em suma, a situação em apreço contribuiu para a atribuição de responsabilidade jurídica ao Estado


ante a configuração da mistanásia, notória em três elementos significativos, são eles: I) Mortes coletivas
(30 mortes); II) Evitáveis: se o Governo tivesse cumprido as exigências preventivas do artigo 3°, inciso
III, alínea (e) da lei 13.979/20, promulgada dois meses antes do colapso ou atendido as exigências do
plano Manaus e do relatório técnico parcial de vigilância, as mortes não teriam ocorrido; e III) Precoces:
pacientes faleceram, não em virtude de uma doença hereditária, ou degenerativa, mas por uma virose,
que até o presente momento carecia de vacina, no entanto, poderia evitar-se as mortes com as medidas
de profilaxia.

38MARTIN. Leonardo. Eutanásia – Distanásia – Ortotanásia. Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde. São Paulo:
Paulus 2000, p. 472.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
91

Mais do que isso, o estudo de caso demonstrou a caracterização de uma peculiaridade da


mistanásia no Brasil, (uma vez que as mortes não constituíram um problema isolado, ou restrito a uma
única causa e consequência), elas veicularam outros problemas como a pobreza, a falta de saneamento
e infraestrutura, próprios da região norte do Brasil.

4. Responsabilidade do Estado frente aos tipos de mistanásia

Com a ocorrência da mistanásia insurge à responsabilidade pelo dano (mortes mistanásicas)


justificado na latente violação ao direito à vida e a saúde dos pacientes. Isso porque, a mistanásia consiste
na realização de uma conduta omissiva, pautada na evitabilidade. Para melhor entender o instituto da
responsabilidade, faz-se necessário à conceituação de Estado, bem como a compreensão dos tipos de
mistanásia e procedimentos para a fiscalização e tutela do interesse público coletivo.
No mais, a punibilidade do Estado necessariamente deve ser pensada a partir dos tipos de
mistanásia presentes na literatura. Para Cleberson Cardoso de Oliveira a mistanásia classifica-a em cinco
grupos: mistanásia ativa; mistanásia passiva ou omissiva; mistanásia negligente; mistanásia imprudente
e a mistanásia por imperícia 39.
A primeira, “mistanásia ativa” consiste na forma mais incomum de falar em mistanásia, pois nessa
o indivíduo é submetido a experiências como se fosse uma cobaia, a título de exemplo, vale citar os
holocaustos, a retirada de órgãos para o mercado negro de transplantes, bem como o aceleramento da
morte de idosos ou doentes, por grupos, que no Brasil e Reino Unido ficaram conhecidos como “anjos
da morte” 40.
Já a segunda, “mistanásia omissiva”, não consiste em uma ação, mas em um processo
materializado na antecipação da morte, na maioria das vezes ocasionada pela imprudência, negligência
ou imperícia no atendimento médico. Em outras palavras, esse tipo de mistanásia deve ser entendido
como uma inacessibilidade do indivíduo ao tratamento necessário para a preservação de sua saúde.
Ainda nessa classificação, vale citar as pessoas com deficiência ou doentes em condições de carência
pela exclusão econômica, política ou social 41.
A terceira situação, a intitulada “mistanásia negligente” se perfaz com a omissão de socorro por
parte do médico que se recusa a atender o paciente, também se elucida naquelas circunstâncias em que
o enfermeiro que possuía o dever de verificar os medicamentos das bombas de infusão, não o faz,
possibilitando o agravamento da situação clínica do paciente, e, por conseguinte sua morte 42.
Em penúltimo lugar, se classifica a “mistanásia imprudente”, que pode ser entendida como um
julgamento subjetivo do médico. Diante de uma situação clínica, que ele julga pouco reversível, resolve
não aplicar tratamento paliativo necessário para a atenuação dos sofrimentos da fase terminativa de vida.
Nessa situação, a culpa do médico (agente) pode ser considerada omissiva, pois o médico age com
irreflexões, sem a cautela necessária que justifique a não aplicação do referido tratamento paliativo 43.

39 OLIVEIRA. 2020, op. cit.


40 OLIVEIRA. 2020, op. cit., p. 88.
41 OLIVEIRA. 2020, op. cit., p. 89.
42 OLIVEIRA. 2020, op. cit., p. 90.
43 OLIVEIRA. 2020, op. cit., p. 91.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
92 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Por último, a “mistanásia por imperícia”, (fruto da inaptidão técnica dos agentes médicos), que
estagnaram na profissão sem buscar novos conhecimentos técnicos – científicos ou que simplesmente
não aprenderam determinada matéria. Para essa espécie, a título de exemplo, podem-se citar os
indivíduos vítimas de procedimentos médicos que não deram certo, como as condições desumanas pelo
qual são submetidos os indivíduos em clínicas, asilos e casa de repouso 44.
Enfim, para esta pesquisa interessa falar-se da espécie “mistanásia omissiva”, por ser mais comum
quando se fala em responsabilidade penal do Estado.

4.1 Da responsabilidade estatal

A responsabilidade do Estado (pessoa jurídica de direito público) em matéria de violação ao


direito à saúde encontra-se positivada na Constituição Federal no artigo 196. Resguarda-se a saúde para
todos, sem qualquer distinção e observa-se o dever garantidor inerente ao Estado. Na primeira parte do
artigo 196, restou enfatizado: “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, já a segunda enfocou-se
na promoção das políticas sociais e econômicas como garantia para a efetivação desse direito.
Mas afinal, como a doutrina define responsabilidade? Aproveitando-se da construção embrionário
conceitual do Direito Civil, a responsabilidade esta relacionada à ideia de não causar prejuízos aos
outros, razão que implica ante a sua configuração a reparação dos danos.
Em outras palavras:

A responsabilidade é o modo de exteriorização da própria justiça, é a tradução para o


sistema jurídico do dever moral de não prejudicar o outro. O conteúdo vislumbra que
a responsabilidade não é fenômeno exclusivo da vida jurídica, antes se liga a todos os
domínios da vida social. O seu conceito é o dever de reparar um dano causado por
ação ou omissão, de sujeito de direito público ou privado, contrário à norma
subjetiva45.

Em comento à (as) ordem (ns) positivada (s) nas normas que versam sobre os direitos sociais José
Afonso da Silva apontou para a necessidade de efetivação desses direitos, dentre eles o direito à saúde
(considerado um direito social pelo artigo 6° da Constituição Federal), para tanto, propôs:

[...] prestações positivas proporcionais pelo Estado direta ou indiretamente,


enunciadas nas normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida
aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização das situações sociais
desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como
pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições
materiais mais propicias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez,
proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade 46.

Observa-se que, o doutrinador no excerto acima apontou tão somente para as “prestações
positivas”, no entanto, como se sabe, a doutrina majoritária disserta sobre a dupla natureza dos direitos
sociais. Nessa esteira, Pedro Lenza preceituou:

44 OLIVEIRA. 2020, op. cit., p. 91.


45ACERVO SABER. Responsabilidade civil. Disponível em:
http://www.acervosaber.com.br/trabalhos/direito/responsabilidade_civi. php. Acesso em 21 jun. 2021.
46 SILVA. José Afonso Da. Curso de direito constitucional positivo. 26 Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 285-286.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
93

[...] no tocante ao direito à saúde [enquanto direito social] no texto de 1988, os direitos
sociais assumem duas naturezas: a) negativa: o Estado ou o particular devem abster-
se de praticar atos que prejudiquem terceiros; b) positiva: fomenta-se um Estado
protecionista para implantar o direito social47.

Desse modo, a luz do texto constitucional constitui dever do Estado garantir a efetividade do
direito a saúde, pois essa foi à vontade do legislador, e, portanto se o Estado não exerce com mastreia
tal prestação, ele não cumpre o seu dever institucionalizado ferindo o direito da coletividade. Por esta
razão, o legislador quis que o Estado respondesse pelos danos ocasionados ante a insuficiente prestação
de recursos à saúde de todos. Se não fosse essa a vontade do constituinte originário, os entes da federação
não deveriam ser citados categoricamente no artigo 23, inciso II da Constituição Federal como
responsáveis comuns em matéria de saúde, assim reza o artigo:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios: II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das
pessoas portadoras de deficiência48.

No mesmo sentido, prevê o artigo 24 da Constituição Federal:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente
sobre: XII - previdência social, proteção e defesa da saúde49.

Nessa toada, o legislador reservou um capítulo da Magna Carta para tratar questões atinentes ao
Direito à saúde, em especial nos artigos de 196 ao artigo 200. Ambos são unanimes quanto à imposição
do dever do Estado para o fornecimento da saúde enquanto (direito e pressuposto que garante a
dignidade humana).
Como se não bastasse à previsão do artigo 196, quanto à imposição do dever do Estado no que
tange ao provimento da saúde, o já citado artigo 197 da Constituição Federal vai além, pois se fala da
relevância quanto às ações e serviços de saúde e diz que cabe ao Poder Público regular, fiscalizar e
controlar tais ações e serviços. E quanto a essas ações e serviços públicos de saúde, dissertou o artigo
198 da Carta Magna sobre “descentralização” do sistema de saúde brasileiro.
Isso, porém, não significa possibilidade para a irresponsabilidade, pelo contrário, embora cada
Estado federado seja responsável dentro dos seus limites territoriais e dada a autonomia de cada qual.
Quando o legislador elenca a descentralização sua intenção não foi livrar os entes federados de algumas
responsabilidades, mas foi, reconhecer a autonomia dos Estados, bem como ao término dos limites
territoriais à própria solidariedade existente entre eles, quando se tratar de matéria atinente à violação
do direito à saúde.
Para complementar esse argumento, o legislador no artigo subsequente, dispôs: “a assistência à
saúde é livre à iniciativa privada” 50, ou seja, pode a iniciativa privada atuar como assistente, mas isso
não quer dizer sê-la responsável pelo provimento primeiro do direito à saúde, já que a assistência, não é
sinônima de “dever”, cabendo esse último exclusivamente ao Estado.

47 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19° Ed. São Paulo: Saraiva 2015, p. 1281.
48 BRASIL. 2017, op. cit., p. 16.
49 BRASIL. 2017, op. cit., p. 17.
50 BRASIL. 2017, op. cit., p. 62.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
94 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

No artigo 2 da Lei 8.0880/90 preceituou-se que a saúde é um direito fundamental do ser humano
e que deve o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. E, predispuseram-se
formulações em seu parágrafo 1° para a realização do dever do Estado, pautando-se principalmente na
prevenção que evita doenças e mortes mistanásicas 51.
Dentre os objetivos e atribuições do Sistema Único de Saúde, estão conforme os incisos I, II e III
do Art. 5° da lei 8.080/90: a divulgação e identificação de condicionantes e determinantes da saúde; a
formulação de políticas de saúde; e a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção,
proteção e recuperação da saúde 52. Assim, a referida lei vai ao encontro do que dispõe a Constituição
Federal de modo a enfatizar a responsabilidade do Estado, inovou, porém, quando citou diretrizes para
a efetivação do direito à saúde.
Nesse sentido, a Constituição Federal colaborou para a definição do sujeito ativo, mas do que
isso, “o Estado” foi entendido no sentido “lato sensu” englobando o Distrito Federal, os Municípios e a
União. Com isso, enalteceu-se a responsabilidade solidária entre todos os entes públicos, podendo
qualquer destes ser pleiteados em demandas judiciais para a prestação de serviços de saúde ou pelas
violações ao direito à saúde.
Essa questão repercutiu inclusive no Supremo Tribunal Federal no julgamento do recurso
extraordinário n° 855178. Na ocasião, a Suprema Corte firmou a tese em repercussão geral optando pela
responsabilidade solidária, da forma como ilustrado na ementa:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO


EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL
RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU
OBSCURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PROCEDENTE. POSSIBILIDADE.
RESPONSABILIDADE DE SOLIDÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS
NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o
tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do
Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo
pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim
de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial,
diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar,
caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e
determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que
demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão
necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718,
Rel. Min. Alexandre de Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos 53.

Em outras palavras o Estado tem o deve de assegurar efetividade ao direito à saúde independente
da divisão de tarefas entre os entes governamentais e a organização do Sistema único de Saúde, uma
vez que essa divisão meramente doutrinária, não pode, ante uma situação concreta, obstaculizar o direito
do indivíduo à percepção de medicamentos ou tratamento médico específico.

51 BRASIL, Lei n° 8.080/90, op. cit.


52 BRASIL, Lei n° 8.080/90, op. cit.
53 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 855178. Des. Relator: Min. Luiz Fuz. Tribunal pleno.

Data do Julgamento 23/05/2019. Dje: 16/04/2020. Disponível em:


https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur422158/false. Acesso em 14 jul. 2021.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
95

Como já foi destacado nos parágrafos anteriores, constitui dever do Estado garantir saúde para
que este direito não seja violado, qualquer atitude por parte do Estado que obstaculize o seu cumprimento
ou possibilite a existência de falhas à prestação dos serviços de saúde, e, que por sua vez venham causar
dano aos pacientes gera o dever de indenizar, pois a administração pública tinha o dever de prestar um
serviço de qualidade, isso na esfera civil.
Pode-se afirmar, portanto, que na situação problema dessa pesquisa que houve omissão pelo
Estado do Amazonas (governo federal e estadual), haja vista que a falta de oxigênio na cidade de Manaus
era uma situação evitável, perante o dever do Estado de fornecer insumos suficientes para a manutenção
da saúde. Desse modo, essas mortes poderiam ser evitadas sê houvesse um planejamento estratégico da
secretaria de saúde do Estado do Amazonas em parceria com o governo federal para o fornecimento de
cilindros de oxigênio medicinal em número suficiente para atender a demanda.
No todo, conclui-se que: figuram culpados como “sujeitos ativos”, o município de Manaus, o
Estado do Amazonas e a União, pois ambos, como demonstrado, possuem o dever comum de prover o
direito à saúde. Todos e cada um dos entes da federação têm legitimidade para figurarem na qualidade
de sujeitos ativos como causadores do dano (mortes mistanásicas), ou, eventualmente, ante a uma
demanda judicial de determinado cidadão, violado no seu exercício do direito à saúde, figurar no polo
passivo como demandado judicial.

4.2 Da responsabilidade criminal das pessoas jurídicas de direito público pela


configuração da mistanásia.

Com a configuração de um crime é comum veicular na mídia protestos clamando por justiça e
pedidos por responsabilizações para que se possa punir o agressor. No entanto, o sujeito ativo de que
estamos tratando é uma pessoa jurídica de direito público. Por esta razão, questões ainda mais reflexivas
evidenciam-se, principalmente no que tange às sanções, dada a impossibilidade de aplicação das penas
privativas de liberdade ou restritivas de direito a essas pessoas jurídicas.
Entretando, estes questionamentos não impediram a configuração da responsabilidade jurídica
por danos em gerais. Tanto é verdade, que a responsabilidade pode ser penal ou civil. “A primeira, objeto
desse estudo, é prevista, como inovação em nosso ordenamento jurídico na Lei n° 9.605, de 12 de
fevereiro de 1998, que trata dos crimes ambientais” 54.
Sobre o tema da responsabilidade e com fulcro em uma abordagem arcaica, porém ampla, Kelsen
disserta:

[...] apesar de nenhum delito, no sentido do Direito nacional, poder ser imputado ao
Estado, o Estado pode, contudo, ser obrigado a reparar o dano que consiste no não
cumprimento de sua obrigação. Isso significa que um órgão do Estado é obrigado a
anular o ato antijurídico cometido por um indivíduo que, como órgão do Estado, era
obrigado a cumprir a obrigação do Estado, mas não o fez, a punir esse indivíduo e a
reparar com o patrimônio do Estado o dano antijuridicamente causado 55.

54 GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, parte geral. 16 ed. São Paulo: Saraiva Educação 2018, grifo nosso
p. 268.
55 KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 200.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
96 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Veja que, mesmo diante das barreiras impostas pela própria legislação em matéria de punibilidade
do Estado, Kelsen reafirma a necessidade de reparo (indenização) pelo Estado caso se configurem
violações. Tudo isso, sem driblar a legislação vigente, pois não é a impossibilidade de aplicar uma pena
de prisão (privativa de liberdade) ao Estado que vai conferir-lhe “status” de inimputável. Pelo contrário,
sobretudo, em razão do dever de prestar saúde, malgrado na Constituição Federal, é que o Estado deve
ser punido.
Com fulcro na possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica, o artigo 173, parágrafo 5 da
Magna Carta ao tratar da exploração direta da atividade econômica pelo Estado versa sobre a punição
criminal da pessoa jurídica (de direito público ou privado), como dissertou a doutrina dos
constitucionalistas, a exemplo de Gandra Martins, José Afonso da Silva e Ribeiro Bastos56.
Dispõe o citado artigo:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de


atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos
da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa


jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a as punições compatíveis
com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra
a economia popular57.

No mesmo sentido, o artigo 225 parágrafo § 3º da Constituição Federal, em matéria de meio


ambiente fornece indícios para a possibilidade de punição criminal do Estado ao positivar que:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações

§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os


infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados58.

Nelson Roberto Bugalho ao analisar os aspectos do referido artigo 225 comentou que os preceitos
constitucionais positivados neste artigo, servem para alargar a incidência do direito penal como forma
de elevar essa seara à proteção dos direitos coletivos, cuja tutela deve ser imposta na busca de uma
justiça mais autêntica que atenda às exigências da justiça material59.
Em complementação à reflexão atinente a punição criminal do Estado em matéria de meio
ambiente, insurgiu no ano de 1998 a Lei n° 9.605 que versa sobre crimes ambientais60. Com uma
inovação, a citada lei previu expressamente a responsabilidade penal dos entes morais, o que se observa

56
SANTOS, Juarez Cirino dos. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-
content/uploads/2013/01/responsabilidade_penal_juridica.pdf Acesso em 21/07/2021.
57 BRASIL. 2017, op. cit., p. 57.
58 BRASIL. 2017, op. cit., p. 68.
59 BUGALHO, Nelson Roberto. Sociedade de risco e intervenção do direito penal na proteção do ambiente. Revista dos

Tribunais: Ciências Penais, São Paulo, v. 6, p. 286-314, jan. 2007.


60 BRASIL. Lei n° 9.605 de 12 de Fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas

e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 13.2.1998. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em 27, jul. 2021.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
97

no artigo 3: “As pessoas jurídicas serão responsabilizada administrativa, civil e penalmente conforme
o disposto nesta Lei”.
Ademais, (antes de tratar das sanções penais para a pessoa jurídica de direito público), vale fazer
duas ponderações referentes ao conteúdo dos artigos supracitados: primeiramente, a Constituição
Federal quando disserta a respeito da possibilidade de punição penal da Pessoa Jurídica de Direito
Público, faz em situações restritivas às esferas do meio ambiente. E, segundamente, a Lei 9.605/98 (que
dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente), também o faz nos termos restritivos ao meio ambiente.
Diante dessas informações, pergunta-se: por qual razão se aplica uma interpretação ampliativa
desses dispositivos para a formação do conteúdo jurídico em matéria de responsabilidade penal da
pessoa jurídica de direito público, já que a mistanásia é uma questão ligada ao direito à saúde? Para
responder a essa pergunta é importante estabelecer relação entre o direito à saúde e o meio ambiente.
A Lei orgânica da saúde n° 8.080/90 estabeleceu expressamente em seu art. 3° a relação entre
saúde e meio ambiente, sendo que este último é fator determinante para a saúde. Do mesmo modo, a
Constituição Federal dispõe sobre a saúde e o meio ambiente no mesmo Título VIII, da ordem social,
determinando em seus artigos 196 e 225 (que ambos são direitos de todos e dever do Estado),
mutualmente organizados um como condição do outro.
Ao determinar que o meio ambiente seja ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição
Federal) 61 para a sadia qualidade de vida, a Constituição Brasileira enfatizou as proximidades jurídicas
e de dependência existente entre o meio ambiente e o direito à saúde. Esse vínculo existente entre a
saúde e meio ambiente encontra-se ainda mais explícito na Magna Carta de 1988 em outros artigos.
No Capítulo VI do Título VIII, por exemplo, ou a referência ao meio ambiente do trabalho feita
na Seção II do Capítulo II desse Título, que versa sobre saúde, preceituando em seu artigo 200, inciso
VIII que: “ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei, colaborar
na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho” 62.
Destarte, ficou caracterizada no artigo 200, inciso VIII, a atribuição de colaboração da saúde para
a proteção do meio ambiente. Estreitou-se a relação entre ambos os direitos, de modo que a defesa,
proteção e preservação do meio ambiente pela coletividade e pelas instituições prestadoras de serviços
de saúde, significam retornos benéficos à vida e saúde de todos. Por esta razão, aplicar dispositivo
referente ao meio ambiente em matéria de responsabilização criminal e violação ao direito à saúde
significa em outras palavras atender a pretensão do legislador que os tratou em correlação.
Dito isso, a Lei 9.605/98 cuidou-se em apresentar espécies de sanções penais para a pessoa
jurídica, muito embora, sem dissertar ou diferenciar a natureza da pessoa jurídica de que trata sê pública
ou privada. Isso, porém, não obstaculizou a atividade do interprete do direito, que pode entender pelo
comando geral da norma e trata-las de forma isonômica, já que a lei não impõe barreiras à interpretação
ampliativa. Aliás, em se tratando de matéria penal as exceções devem ser previstas em lei com fulcro
no princípio da legalidade.

61 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras
gerações (BRASIL. 2017, op. cit., p. 68).
62 BRASIL. 2017, op. cit., p. 62.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
98 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Do mesmo modo, dissertou Paulo Affonso Leme, em comento a referida lei n° 9605/98 sobre a
responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público:

A administração pública direta como a Administração indireta pode ser


responsabilizada penalmente. A lei brasileira não colocou nenhuma exceção. Assim,
a União, os Estados e os Municípios, como as autarquias, as empresas públicas, as
sociedades de economia mista, as agências e as fundações de Direito Público, poderão
ser incriminados penalmente. (MACHADO, 2014, p. 838).

Por estas razões, as sanções do artigo 21 da referida Lei63 podem ser perfeitamente aplicadas à
pessoa jurídica de direito público. É claro que, nem todas as sanções descritas no artigo 21 poderão ser
aplicadas ao Estado, tendo em vista a sua natureza de pessoa jurídica de direito público. Entretanto, nada
impede a aplicação da multa enquanto pena e ressalvadas ainda, as possibilidades de indenização civil
por parte dos entes públicos aos familiares das vítimas que sofreram mistanásia.
De acordo com Alaim Stefanello para às pessoas jurídicas de direito público,

[...] não haveria como aplicar uma suspensão parcial ou total de atividades para a
União ou para um município, por exemplo. Porém, ao mesmo tempo, negar que se
possa aplicar uma pena de multa ou de recuperação de espaços públicos é recusar o
que já está ocorrendo diariamente nas condenações cíveis aplicadas pelo Judiciário. A
alegação de que a multa geraria um mero remanejamento de créditos orçamentários –
não se constituindo numa pena propriamente dita – também não prospera: ao
remanejar estes recursos, o juiz estará decidindo em favor da reparação do dano
ambiental, dando outro destino ao dinheiro do contribuinte. Logo, filiamo-nos à
corrente de opinião que as pessoas jurídicas de direito público podem ser
responsabilizadas penalmente, competindo ao Poder Judiciário, dentro do princípio
da tripartição dos poderes e do princípio da proporcionalidade, analisar qual
penalidade melhor se adequará ao caso concreto, para proteger o direito das presentes
e futuras gerações a um meio ambiente ecologicamente equilibrado64.

Por todo o exposto, “o Estado” (União, Estados e Distrito Federal) pode ser responsabilizado
criminalmente nos moldes da Constituição Federal, bem como da Lei n° 9605/98 na qualidade de pessoa
jurídica de direito público pelas mortes mistanásicas, uma vez que a saúde violada constitui um direito
público, subjetivo, fundamental, social e inerente à dignidade humana, razão que torna passível a sua
exigência, ainda que ausente regulamentação específica em lei infraconstitucional, pois como já foi dito,
a saúde é em primeiro lugar dever do Estado, devendo esse ser responsabilizado por não garantir o pleno
exercício do direito à saúde, em razão do referido dever constitucional.

5. Considerações finais

Com o estudo de caso da falta de cilindros de oxigênio na capital Amazonense pode-se verificar
a configuração dos elementos que significam o termo “mistanásia”, são eles: miserabilidade,
infelicidade, precocidade e evitabilidade, pois, restou demonstrado que:

63
BRASIL. LEI 9605/98, op, cit.
64STEFANELLO, Alaim Giovani Fontes. Reflexões acerca da responsabilidade das pessoas jurídicas nos crimes ambientais.
Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 17, n. 29, p. 19-29, dez. 2010.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
99

I) A região norte do Brasil segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
integra uma população economicamente pobre e de usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS);
II) Aproximadamente 30 (trinta pessoas) morreram precocemente em circunstancias que
poderiam ser evitadas caso o governo federal e estadual tivesse atendido às estratégias do Plano Manaus
e dos relatórios que apontavam para o colapso na saúde e provável falta do insumo (oxigênio medicinal);
III) Com a inação dos agentes públicos: Presidente, Governador do Estado e Ministros da saúde
a pandemia assumiu consequências maiores.
Diante desta situação, discutiu-se a responsabilidade criminal do Estado (pessoa jurídica de
Direito Público) para, então, definir o sujeito ativo que deverá ser responsabilizado pelas mortes
coletivas, precoces e evitáveis. Essa responsabilidade por omissão é em outras palavras a
responsabilidade por comportamento ilícito, de modo a suplantar subjetividade que consiste na
configuração das modalidades: negligência, imperícia ou imprudência. Embora o Estado não seja uma
pessoa individualizada, existe uma culpa em razão do dever constitucional não executado, e que,
portanto, deve ser punido.
Percebeu-se de antemão que não há um enquadramento típico para a mistanásia, da mesma forma
que não existe para a eutanásia, no entanto, verificou-se um dever positivado no artigo 196 da Magna
Carta que supre as necessidades de um tipo penal específico, refiro-me ao dever de prestar, fornecer e
garantir efetividade a saúde.
Quanto à responsabilização das pessoas jurídicas de direito público concluiu-se pela possibilidade
de responsabilização criminal do Estado, tendo em vista que a saúde constitui um direito público,
subjetivo, social e fundamental, ligada diretamente a outros dois outros direitos: dignidade e vida. Essa
foi a vontade do legislador ao positivar no artigo 23, inciso II da Constituição a competência comum,
isto é, não individual, dos entes da federação no “cuidado da saúde”, de modo que todos os entes devem
prestar condições à efetivação do direito à saúde.
Como se não bastasse afirmar: “o Estado deve ser responsabilizado criminalmente pelas mortes
mistanásicas ocorridas em Manaus, em razão do dever constitucional de garantir a saúde e prevenir
violações”, o legislador em outros artigos ensejou possibilidades para a punição criminal da pessoa
jurídica de direito público.
É o que se vê na redação do artigo 173, parágrafo 5 da Constituição Federal que admitiu a
responsabilização da pessoa jurídica, no que tange aos atos contra a ordem econômica e financeira, e
contra a economia popular. Da mesma forma, o artigo 225, parágrafo 3° da referida Constituição que
preceituou em matéria de meio ambiente, (sanções penais) aos infratores sejam pessoas físicas ou
jurídicas.
No tocante as espécies de penas aplicáveis às pessoas jurídicas de direito público, parte da
doutrina aproveita-se daquelas previstas na Lei 9.605/98 (que versa sobre sanções penais e
administrativas em matéria de meio ambiente), pois como se verificou, existe um vínculo entre o meio
ambiente e o Direito à saúde. Por pretensão do legislador, ambos são tratados no capítulo VI do Título
VIII e no art. 200, inciso VIII como condição um do outro. Por esta razão, aplica-se o dispositivo
referente ao meio ambiente em matéria de responsabilidade criminal e violação ao direito à saúde como
resposta à vontade do legislador.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
100 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Além disso, a lei 9.605/98 de característica penal-administrativa não trouxe distinções, nem
elencou exceções quanto às naturezas das pessoas jurídicas, admitindo interpretação ampliativa. É claro
que, não são todas as penas aplicáveis, pois com base no artigo 21 da citada lei, as punições consistem
em: multa; restritiva de direitos; e prestação de serviços à comunidade.
Destarte, “o Estado”, em sentido lato sensu, englobando os demais entes federados, deve ser
considerado, sujeito ativo, podendo responder pela omissão relevante do artigo 13 do Código Penal, haja
vista o dever positivado no artigo 196 da Constituição Federal e culpa anônima, aqui já salientada, bem
como, a vontade explicita do legislador que coloca ao Estado o “status” de garantidor. Ao Estado,
portanto, ante a configuração das 30 (trinta) mortes, ocorridas em situação que poderia ser evitada,
devem culminar pena, não todas, (dada à característica inerente de pessoa jurídica de direito público),
mas tão somente: a pena de multa.

Referências bibliográficas

ACERVO SABER. Responsabilidade civil. Disponível em:


http://www.acervosaber.com.br/trabalhos/direito/responsabilidade_civi. php. Acesso em 21 jun. 2021.
ANJOS, Márcio Fabri. Eutanásia em chave de libertação. Boletim do Instituto São Camilo n° 57. 1989.
BARBOZA; LEAL; ALMEIDA. Biodireito tutela jurídica das dimensões da vida. Indaiatuba: Foco, 2021.
BARROS. Edmilson de Almeida Júnior. Código de Ética Médica comentado e interpretado. Resolução CFM
2217/2018. São Paulo: CIA do e-book. 2019.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 2017.
BRASIL. Lei n° 9.605 de 12 de Fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas
de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União.
13.2.1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em 27, jul. 2021.
BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência
de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Diário Oficial da União. 07.02.2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/lei/L13979compilado.htm. Acesso em: 27 jul. 2021.
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
providências. Diário Oficial da União. 20, set. 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 27 jul.2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 855178. Des. Relator: Min. Luiz Fuz.
Tribunal pleno. Data do Julgamento 23/05/2019. Diário de justiça eletrônico: 16/04/2020. Disponível em:
https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur422158/false. Acesso em 14, jul. 2021.
BUGALHO, Nelson Roberto. Sociedade de risco e intervenção do direito penal na proteção do ambiente.
Revista dos Tribunais: Ciências Penais, São Paulo, v. 6, p. 286-314, jan. 2007.
CHIAVACCI. Elena. A raiz profunda da miséria e da morte prematura de grande parte da família
humana está ligada a estruturas financeiras e produtivas planetárias. Ed. Non uccidere’ in economia.
2004, p. 539-541.
DECRETO ESTADUAL nº 43.234, de 23/12/2020. Manaus, quarta-feira, 23 de dezembro de 2020 | Poder
Executivo. Disponível em: https://www.transparencia.am.gov.br/wp-content/uploads/2020/12/Decreto-n.-
43.234-de-23-de-dezembro-de-2020.pdf. Acesso em 24 de out. 2021.
DECRETO FEDERAL. Nº 4.388, de 25/09/2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em 01 mar.2021.
Enciclopédia of Bioethics, 2° Ed., vol. 1, Introdução, W.T. Rich, editor responsável, p. 21, 1995.
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (FIOCRUZ). Nota técnica 2020/03 – ILMD/Fiocruz Amazônia –
Observatório COVID-19 – INFO Gripe. Reflexões sobre o comportamento da epidemia da COVID-19
segundo as regiões de saúde do estado do Amazonas. Disponível em:
https://amazonia.fiocruz.br/wpcontent/uploads/2020/11/NOTA-TECNICA-N3-aprovado.pdf. Acesso em 28
abr. 2021.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
101

G1. 15, jan. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/15/crise-do-oxigenio-no-


amazonas-entenda-o-quanto-falta-e-as-acoes-para-repor-o-insumo.ghtml. Acesso em 28 abr. 2021.
G1. 25, jan. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/25/documentos-mostram-
que-mais-de-30-morreram-nos-dois-dias-de-colapso-por-falta-de-oxigenio-em-manaus.ghtml.Acesso em 28
abr. 2021.
G1. Jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/04/23/amazonas-atinge-
96percent-de-ocupacao-em-leitosde- uti-da-rede-publica-de-saúde-diz-susam.ghtml. Acesso em 24 out. 2021.
G1. Jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/06/17/cemiterio-de-manaus-
suspende-enterros-em-valacomum- e-volta-a-usar-covas-individuais-apos-redução-de-mortes.ghtml.Acesso
em 24 out. 2021.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2002.
GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, parte geral. 16 ed. São Paulo: Saraiva Educação 2018.
GUARDIAN. THE. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2021/jan/14/brazil-manaus-amazonas-
covid-coronavirus. Acesso em 20, abr. 2021.
IBGE. Síntese de Indicadores Sociais. 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf. Acesso em 30 abr. 2021.
JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. A Cidadania Social na Constituição de 1998. São Paulo: Verbatim, 2009.
KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 200.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19° Ed. São Paulo: Saraiva 2015.
MARTIN. Leonardo. Eutanásia – Distanásia – Ortotanásia. Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde.
São Paulo: Paulus 2000.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. São Paulo: Atlas, 2005.
MIRANDA. Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 15. Ed. São Paulo: Atlas, 2004.
OLIVEIRA. Cleberson Cardoso De. Mistanásia: Responsabilidade Estatal e o acesso à saúde. Londrina – PR.
Ed. Thoth. 2020.
PLANO DE CONTINGÊNCIA NACIONAL PARA INFECÇÃO HUMANA PELO NOVO CORONAVÍRUS
COVID-19. Centro de OPERAÇÕES DE EMERGÊNCIAS EM SAÚDE PÚBLICA | COE-COVID-19.
Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2020/fevereiro/13/plano-contingencia-
coronavirus-COVID19.pdf. Acesso em 24 de out. 2021.
PLANO MANAUS. Plano de contingência estadual para infecção humana pelo novo coronavírus 2019 –
Ncov. Disponível em: https://semsa.manaus.am.gov.br/wp-content/uploads/2020/02/PLANO-
CONTINGENCIA_CORONAVIRUS_PARA-O-AMAZONAS.pdf.
Resolução CFM n° 2217. 2018. Código de ética médica. Disponível em:
https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf. Acesso em 28 fev. 2021.
RICCI, Luiz Antônio Lopes. A morte social: mistanásia e bioética. São Paulo: Ed. Paulus. 2017.
ROCHA. Renata Da. Fundamentos do Biodireito. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 69.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. Disponível em:
http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2013/01/responsabilidade_penal_juridica.pdf Acesso em 21/07/2021.
SENADO FEDERAL. Relatório Final da CPI da COVID-19. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1wyq0Lwe0a6mLRz1a4xKqdpjarIWTDXPj/view. Acesso em 24 de out. 2021
SILVA. José Afonso Da. Curso de direito constitucional positivo. 26 Ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
STEFANELLO, Alaim Giovani Fontes. Reflexões acerca da responsabilidade das pessoas jurídicas nos crimes
ambientais. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 17, n. 29. 2010.
UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, 2005. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf . Acesso em 01 mar. 2021.

Recebido: 04/02/2023
Aprovado: 08/07/2023
103
Breves apontamentos sobre o
consenso e a verdade no processo
penal: Reflexões a partir dos acordos
de não persecução penal

Brief notes on consensus and truth in criminal procedure:


Reflections from the criminal non-prosecution agreements

Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa


Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais. Professor de Direito Penal, Processo Penal e
Filosofia do Direito na Faculdade Paranaense.

Resumo: Pretende-se discutir a relevância da verdade no Processo penal, nos moldes em que se
conforma a sistemática processual brasileira na atualidade. Ademais, com os novos influxos da
justiça penal negocial no Brasil, almeja-se analisar se tais teorias sobre a verdade representam um
contributo e um limite a esta seara, especialmente ao se tratar dos pressupostos necessários para
o oferecimento do acordo de não persecução penal.

Palavras-chave: justiça penal negocial; Processo penal; verdade; epistemologia jurídica;


política-criminal.

Abstract: It is intended to discuss the relevance of the truth in the criminal procedure, along the
lines of the current Brazilian procedural system. Furthermore, with the new inflows of criminal
justice in Brazil, the aim is to analyze whether such theories about the truth represent a
contribution and a limit to this harvest, especially when dealing with the necessary assumptions
for offering the non-criminal prosecution agreement.

Keywords: plea bargaining; Criminal proceedings; truth; legal epistemology; criminal-policy.

1 Considerações iniciais

A problemática sobre a verdade no Processo penal poderia parecer superada ou ultrapassada,


principalmente ante a enormidade da produção teórica sobre o assunto no Brasil nos últimos anos.1 Tal
conclusão seria verdadeira se efetivamente tal discussão tivesse gerado um ganho prático condizente
com a estatura e importância de tal tópico. Parece, no entanto, que nenhuma resposta definitiva ou, ao
menos, capaz de fornecer uma solução razoável da controvérsia foi apresentada, motivo pelo qual se

1Vide a discussão, no Brasil, problematizada por COUTINHO, Jacinto. Glosas ao ‘Verdade, dúvida e certeza’, de Francesco
Carnelutti, para os operadores do Direito. In. COUTINHO, Jacinto. Observações sobre a propedêutica processual penal.
Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019, p. 161 e ss. Recentemente: KHALED JR., Salah. A busca da verdade
no Processo penal. Belo Horizonte: Letramento, 2020; além de TAVARES, Juarez; CASARA, Rubens. Prova e Verdade.
Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2020.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
104 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

justifica tecer algumas considerações sobre a verdade no Processo, especialmente à luz da realidade
imposta pela inserção dos acordos de não persecução penal.2
Como lembra NEUMANN, a pretensão de verdade em Direito em geral, e no Processo penal em
particular, está ligada necessariamente à ideia de legitimidade.3 Justamente por esse motivo, seu
completo abandono na discussão sobre a finalidade do Processo penal, partindo de críticas pautadas em
raciocínios históricos anacrônicos, acarreta aparentemente um tipo de niilismo metodológico quanto às
funções que se pretendem obter do procedimento. Aliás, como se extrai das lições de FERRER
BELTRÁN, apenas se o Processo penal cumprir a função sobre a determinação da verdade acerca das
proposições aferidas sobre os fatos provados é que se poderá concluir sobre o êxito do Direito como
mecanismo dirigente da conduta individual.4 Onde não haja efetividade sobre a aplicação de sanções,
ou pelo menos uma grande probabilidade de sua imposição, não há que se falar em validade das
pretensões prescritivas sobre determinados comportamentos.
Nada obstante, com isso não se pretende afirmar que a única finalidade do Direito processual seja
a incansável busca da verdade, ou que esse seja o único objetivo das partes no Processo. A finalidade
que pretende atingir a Ciência nem sempre corresponde àquela dos cientistas. A delimitação de um fim,
por óbvio, não exclui outros propósitos igualmente válidos que, inclusive, limitam e conformam aquele
primeiro. Ao lado da busca da verdade como critério de legitimidade da ciência processual, encontram-
se ladeados o desejo de celeridade na tomada de uma decisão resolutiva, a realização da justiça material,
a proteção dos direitos e garantias individuais, a consecução dos princípios de Direito material, fins
político-criminais etc.5 Nesse ponto entram em discussão as finalidades dos mecanismos de
diversificação processual como instrumentos de realização dos fins próprios do Processo penal.
Exatamente pela dificuldade de vislumbrar essa distinção fundamental, aparenta-se haver uma má
colocação do problema por parte de certa doutrina processual brasileira, que somada a uma insistência
em determinadas temáticas parece ter levado a polêmica a uma circularidade insanável. Em termos
formais, o respeito às regras do procedimento, por si só, não acarreta necessariamente uma conclusão
correta e verdadeira. A coisa julgada ou o princípio do in dubio pro reo podem levar a decisões
materialmente injustas ou não necessariamente correspondentes com a verdade dos fatos.6 Mesmo diante
de uma situação ideal de respeito às regras do jogo, não se trata de um mero cálculo lógico-matemático.

2 Fato é que discorrer sobre verdade e justiça negocial seria objeto de um trabalho próprio, sendo arriscado tecer considerações
sobre tema tão complexo em poucas páginas. Todavia, algumas considerações são relevantes para a verificação da hipótese
desse trabalho. Em realidade, sendo os acordos mecanismos de Política criminal, se referem a outra lógica que a da verdade
como correspondência. Ainda assim, demandam um certo lastro para sua consecução, dado que acarretaria uma grande injustiça
aceitar uma sanção sem ter qualquer responsabilidade para o fato. Nesse sentido, não é possível abrir mão de um certo lastro
de verossimilhança das acusações, até como forma de garantir ao investigado um efetivo direito de defesa, como forma mesmo
de perfazer um modelo principialista de Política criminal, como anteriormente pleiteamos. Especificamente sobre a temática
das relações da verdade com a justiça negocial, vide o trabalho de SANTANA, Gabriel Andrade. Verdade e Justiça negocial:
o paradigma filosófico do novo realismo como limite à expansão dos espaços de consenso no campo jurídico-penal brasileiro.
Dissertação de Mestrado. Brasília: IDP, 2019, p. 92 e ss. Recentemente, com uma pretensão mais restrita, cf. KIRCHER, Luis
Felipe Schneider. Justiça penal negocial e verdade: há algum tipo de conciliação possível? In. SALGADO, Daniel et. al (org.).
Justiça consensual: acordos criminais, cíveis e administrativos. Salvador: Editora JusPodivm, 2022, p. 61 e ss.
3 NEUMANN, Ulfrid. La pretensión de verdad en el Derecho. Bogotà: Universidad Externado de Colombia, 2010, p. 13 e ss.
4 FERRER-BELTRÁN, Jordi. Valoração racional da prova. Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 45.
5 FERRER-BELTRÁN, Valoração racional da prova, op. cit., p. 47.
6 DIAS, Direito processual penal, op. cit., p. 44.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
105

2 Teorias sobre a verdade

É certo que, no âmbito da filosofia, é possível recobrar vários séculos nos quais pensadores das
mais diversas filiações teóricas polemizaram sobre a questão da verdade. Especialmente em sua
interseção com as funções do Direito, quando a verdade, pelo menos no sistema continental, é
apresentada como condição necessária para a justiça das decisões judiciais,7 já se pleiteou sua restrição
a uma espécie de verdade formal (Processo civil) em contraposição a uma verdade material (Processo
penal), no sentido de que nem as partes nem o juiz podem se valer de quaisquer meios para alcançá-la,
tendo em vista as estritas regras de admissibilidade probatórias. Não pende dúvida sobre o fato de que
qualquer verdade dependa de um contexto específico. Nada obstante, concordamos com TARUFFO,
para quem as regras do sistema processual não podem ser vistas como obstáculos para a busca da
verdade, nem para restringi-la a um aspecto meramente formal.8
Tal qual o método científico em geral, no qual há rígidas regras de procedimento para se verificar
ou refutar uma hipótese, não o é diferente no Direito processual, em que as regras pretendem racionalizar
a valoração dos fatos e evitar erros e má compreensões sobre as provas. Dessa maneira, a verdade pode
tanto ser buscada no Processo como de fato é perseguida em diversas outras searas do conhecimento.9
As normas jurídicas definem o contexto da verdade no Processo, assim como a historiografia e suas
teorias o fazem para as pesquisas históricas. Por conseguinte, tendo em vista não haver diferença
epistemológica entre verdade judicial e não judicial é que se podem formular observações gerais em
nível filosófico, subjacente a tais discussões.
Obviamente, para obter um ganho prático de tal discussão, deve-se rechaçar pontos de vista
ceticistas, descontrutivistas ou niilistas, de acordo com os quais se considera sem sentido uma busca
científica pela verdade, ou ainda de teorias do conhecimento baseadas exclusivamente no sujeito ou em
um ponto de vista solipsista ou idealista, que rechaçam a possibilidade de se falar, a priori, sobre uma
concepção racional de verdade, em geral.10 Obviamente com isso não se tem a pretensão de construção
de verdades absolutas, ideia vista com reserva até para ciências consideradas “duras”, como a Física ou
a Matemática. A ideia de verdade, como aqui se sustenta, parte da premissa, tal qual apresenta
TARUFFO, de ideal regulatório, ponto de referência teórico que orienta a busca do conhecimento na
experiência real.11
Passando para o conteúdo do conceito de verdade, uma breve e sintética exposição não pode
deixar de destacar as duas grandes teorias que concorrem para apresentar uma solução satisfatória:12 (1)
as teorias da coerência e (2) as teorias da correspondência. Do primeiro critério de verdade apresentado
(1), tendo sido inicialmente formulado por BRADLEY, postula-se que a verdade consiste em relações
coerentes estabelecidas entre um conjunto de crenças.13 A verdade de um enunciado depende de sua

7 Nesse sentido: TARUFFO, Michele. La prueba. Madrid: Marcial Pons, 2008, p. 23. No mesmo sentido DIAS, Direito
processual penal, op. cit., p. 43.
8 TARUFFO, La prueba, op. cit., p. 24.
9 TARUFFO, La prueba, op. cit., p. 24-25.
10 TARUFFO, La prueba, op. cit., p. 25-26.
11 TARUFFO, La prueba, op. cit., p. 26.
12 Sobre a verdade enquanto uma das finalidades do processo penal vide DIAS, Direito processual penal, p. 40 e ss.;

BAUMANN, Jürgen. Derecho Procesal penal; ROXIN, Claus. Derecho Procesal penal, op. cit., p. 4.
13 HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. São Paulo: Unesp. 2002. Ainda, cf. GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el Proceso

penal: una contribuición a la epistemologia jurídica. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2011, p. 52.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
106 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

coerência em um contexto de vários enunciados.14 Diversas críticas foram apresentadas a tal perspectiva,
principalmente a de confundir verdade com coerência ou de que somente a coerência não assegura o
caráter verdadeiro de uma afirmação.15 No Processo judicial pode fazer sentido quando se julga a
fiabilidade de um enunciado ante sua coerência com o contexto de diálogos apresentados pelas
testemunhas e demais provas. A coerência do relato apresenta um importante papel persuasivo,
principalmente diante da escolha das provas que se apresentam, o que a torna muito favorável na
perspectiva do advogado que quer provar seu ponto de vista. Deve-se, no entanto, ter em vista que o
advogado nem sempre quer obter a verdade dos fatos, mas antes disso fazer valer sua tese defensiva
favorável a seu assistido. Narrativas coerentes e persuasivas nem sempre correspondem com a
realidade.16
No segundo grupo de teorias (2), as quais remontam em certa medida a ARISTÓTELES,17 baseia-
se na ideia de que o enunciado verdadeiro é aquele que se funda na ou corresponde à realidade, ao
mundo empírico.18 À primeira vista tal ideia pode parecer tautológica. Contudo, considera como
condição necessária e suficiente para a aplicação do direito substantivo que os fatos, colocados de forma
adequada, sejam baseados em elementos de prova relevantes e admitidos: os fatos narrados devem
corresponder às provas apresentadas. A função da prova é a de fornecer ao julgador os elementos
empíricos necessários para formular racionalmente um enunciado ou juízo sobre a ocorrência dos
fatos.19
O debate em torno da verdade no Processo penal, principalmente nas discussões teóricas
brasileiras, está ligado essencialmente a um certo tipo de “fundamento histórico” do sistema inquisitivo.
Recorrendo a uma ideia medieval, sobretudo ante os métodos de tortura para obtenção de confissões, o
conceito de verdade ganhou o adjetivo de real: “verdade real” ou verdade material. O objetivo era de
justificar a obtenção da verdade com a utilização de qualquer meio para prová-la, sob pena de se estar
diante de uma versão falsa dos fatos e com isso macular a função do Processo penal. A verdade estava
com o acusado e para obtê-la poder-se-ia utilizar qualquer meio.20 Mas nem por isso se deve abandonar
por completo o conceito. Além de se tratar de um pleonasmo carente de conteúdo, os meios para a
obtenção da verdade não podem ser confundidos com a verdade como objetivo em si, ou pelo menos
uma das finalidades a serem alcançadas pelo Processo.
Um conceito de verdade, seja ele qual for, não se confunde com o método pelo qual se utiliza para
alcançá-lo.21 A verdade não pode ser simplesmente uma narrativa livremente construída entre acusação
e defesa, nem pode ser confundida com a facticidade histórica.22 Da mesma forma que renunciar à lógica
inquisitiva não significa renunciar ao valor da verdade, caso contrário se perde um referencial de
legitimidade para a aplicação de uma pena. Basta analisar o caminho inverso para se concluir que um
sistema inquisitivo, baseado na tortura por exemplo, também não se logra atingir a verdade, visto que
obterá, ao mais das vezes, confissões falsas.23 Por esse motivo, qualquer conceito de verdade que se

14 TARUFFO, La prueba, op. cit., p. 26-27.


15
GUZMÁN, La verdad en el Proceso penal, op. cit., p. 52.
16 TARUFFO, La prueba, op. cit., p. 27-28.
17 ARISTÓTELES, Metafísica, Livro IV, VII. Cf. GUZMÁN, La verdad en el Proceso penal, op. cit., p. 49.
18 TARUFFO, La prueba, op. cit., p. 27.
19 TARUFFO, La prueba, op. cit., p. 28-29.
20 CORDERO, Guida alla procedura penale, op. cit., p. 49. LANGBEIN, Tortura e plea bargaing, op. cit., passim.
21 HABERMAS, Teorías de la verdad, op. cit., p. 139. GUZMÁN, La verdad en el Proceso penal, op. cit., p. 41.
22 DIAS, Acordos sobre a sentença em processo penal, op. cit., p. 49.
23 GUZMÁN, La verdad en el Proceso penal, op. cit., p. 41.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
107

queira pretender em Processo penal deve compatibilizar-se com a facticidade, condicionando-a e


limitando-a às garantias e direitos do imputado face ao Estado, em especial ante às iniciativas e
admissibilidades probatórias.24

3 Relevância da discussão sobre a verdade em Processo penal

Indiscutível que os acordos representam uma mudança de paradigma ante o papel da verdade no
sistema penal. De fato, haverá situações em que não se encontrará correspondência entre as afirmações
do Ministério Público e o que efetivamente tenha sido praticado pelo acusado, no entanto, um acordo
será estrategicamente mais favorável ao imputado, sob o risco de ser condenado em uma pena muito
mais grave. Essa conclusão serve para pensar, inclusive, sobre os limites da renúncia de direitos
fundamentais por parte do réu em troca de uma solução mais favorável: há limites para a substituição
do devido processo? Certamente sim. E é exatamente nessa intersecção que se encontram os possíveis
freios aos acordos sobre a sentença, ou pelo menos um chamado à reflexão quanto à modulação de seus
efeitos. Afirmar ser a verdade uma, dentre tantas outras, das finalidades do procedimento é, antes de
tudo, uma defesa do devido processo legal. Como se pretende demonstrar, não é essa lógica que segue
a sistemática dos acordos.
Inevitável para se avançar na polêmica questão sobre a verdade no Processo penal, portanto, que
se passe pelo conjunto de críticas que a ela é apresentado quando definida como finalidade da
persecução. Ao se recorrer ao esclarecedor estudo de DE-LORENZI e CEOLIN, pode-se agrupá-las e
sistematizá-las, basicamente em três grupos: (1) críticas políticas; (2) críticas filosóficas; e (3) críticas
pragmáticas.25
(1) Na esfera das críticas políticas encontra-se aquela principal sobre a suposta “verdade real” no
Processo penal que, como se viu, antes de mais nada, diz respeito a uma má-colocação do problema
sobre a verdade. Baseiam-se primordialmente na utilização de tal artifício como mecanismo para
legitimar abusos e violações de direitos e garantias fundamentais dos acusados ao se alargarem as
situações em que o juiz tem iniciativa probatória, herança de um certo tipo de pensamento inquisitivo
baseado em um maquiavelismo vulgar de que os fins justificam os meios.26 O problema deveria ser
colocado de outra forma: a busca da verdade está atrelada ao princípio da investigação? Parece-nos que
não. Busca da verdade não pode ser confundido com amplo rol de poderes instrutórios do juiz. Tanto
não é um problema de sistema inquisitivo que o modelo adversarial americano, por sua vez, não rejeita
a busca da verdade como fim do Processo, obviamente nas hipóteses em que o caso penal não seja
resolvido por meio de acordos. O princípio da investigação diz respeito ao papel que se atribui a cada
sujeito processual para atingir essa finalidade e, a seu turno, ao funcionamento das regras processuais.
Toda Ciência tem princípios e limites para a busca da verdade, regras que não podem ser
desconsiderados entre as variáveis para se atingir um resultado válido. E isso também sucede com o
Direito, em geral, e o Processo, em particular, no qual os direitos e garantias fundamentais são limites
explícitos a uma suposta busca incontrolável da verdade. 27

24 DIAS, Acordos sobre a sentença em processo penal, op. cit., p. 49.


25 DE-LORENZI, Felipe; CEOLIN, Guilherme. O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo: os novos
caminhos para uma antiga controvérsia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 177, mar/2021, versão online.
26 DE-LORENZI; CEOLIN, O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo, op. cit., versão online, p. 3.
27 DE-LORENZI; CEOLIN, O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo, op. cit., versão online, p. 5.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
108 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

(2) Em termos filosóficos, desde há muito se afirma a impossibilidade de se atingir o conceito de


verdade. CARNELUTTI, recorrendo à HEIDEGGER, em seu texto de 1965 “Verità, dubbio,
certezza”,28 já advertia para o fato de filosoficamente ser impossível se atingir a verdade, pois esta
pressuporia uma ideia de totalidade inalcançável ao entendimento humano. Essa crítica, atrelada a um
certo tipo de pensamento cético, pode satisfazer uma certa concepção filosófica, mas não parece
conduzir a uma solução convincente às exigências próprias do Processo penal, bem mais restritas.
A ideia da busca da verdade no Processo parece ser bem mais singela, como apontam DE-
LORENZI e CEOLIN: significa que a decisão deve estar de acordo com critérios verossímeis de
verdade, e não estar ligada a uma falsa versão dos fatos. Em última análise, significa dizer: o mais
relevante é que se tenha uma vinculação objetiva entre a decisão e os fatos exteriores ao processo. 29 A
exigência da verdade, nesse caso, diz respeito inclusive à gravidade da consequência penal a ser
aplicada. Aplicar uma pena injustamente a um inocente é atentar frontalmente à ideia de busca da
verdade.30 Outrossim, quando se fala em busca da verdade, não se trata de recuperar o fato tal qual tenha
acontecido, o que de fato é impossível, mas sim de certa proposição sobre fatos ocorridos no passado,
que podem ser verdadeiras ou falsas conforme se assentem ou não nas provas trazidas ao conhecimento
do magistrado, no caso.
(3) Por fim, no âmbito de preocupações pragmáticas, encontra-se a crítica segundo a qual o
Processo penal não seria instrumento idôneo a conhecer a verdade, pelos problemas na reconstrução dos
fatos pretéritos que apresentaria. A ineficácia epistêmica das técnicas de prova iria desde a possibilidade
de valorar falsas memórias, colocando-se em xeque a credibilidade de testemunhas, ou ainda admitir
reconhecimentos pessoais amparados por ressentimentos pessoais ou racismo estrutural.31 Tal crítica
também seria mal colocada, uma vez que se dirige aos métodos da busca da verdade, não à busca da
verdade em si.
A busca da verdade, pelo contrário, serve para garantir meios para uma melhor reconstrução dos
fatos, não ser um subterfúgio para aplicação de uma pena a qualquer custo. Sempre válido recordar que
a busca da verdade não é e nem pode ser atrelada a uma busca cada vez maior de condenações. Pelo
contrário, deve ser um meio de limitar o exercício da atividade cognitiva da jurisdição para valorar
apenas os fatos verossímeis e evitar condenações injustas e sem um lastro probatório adequado para
assegurar a imposição de uma sanção.
Em contraposição a tais posicionamentos críticos é possível sistematizar, também na linha de DE-
LORENZI e CEOLIN, outros três argumentos em favor de se considerar a verdade como finalidade do

28 CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza. Rivista di Diritto Processuale. Vol. XX, anno 1965, p. 4 e ss. Sobre as
ideias de Carnelutti na doutrina brasileira vide: COUTINHO, Jacinto. Glosas ao ‘Verdade, dúvida e certeza’, de Francesco
Carnelutti, para os operadores do Direito. In. COUTINHO, Jacinto. Observações sobre a propedêutica processual penal, op.
cit., p. 161 e ss.
29 DE-LORENZI; CEOLIN, O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo, op. cit., versão online, p. 7.
30 Em sentido similar: MATIDA, Janaina; NARDELLI, Marcella Mascarenhas; HERDY Rachel. No processo penal, a verdade

dos fatos é garantia. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jun-19/limite-penal-processo-penal-verdade-fatos-


garantia. Acesso em 19 de dezembro de 2021. Em síntese, as autoras sentenciam: “Deve o processo penal perseguir a verdade?
A resposta é afirmativa. A busca pela verdade pode ser resumida como a tentativa de fazer corresponder a premissa fática do
raciocínio judicial com os fatos como efetivamente ocorreram. Não se quer apenas que a decisão seja válida do ponto de vista
jurídico, mas também que ela seja justa – isto é, que atribua penalidade somente àqueles que as fazem por merecer. Logo, a
preocupação com a relação entre processo penal e verdade consiste na preocupação com os erros judiciais que devemos
evitar.” Em resposta, com sentido diverso, e em grande parte repetindo o objeto da crítica apresentada: COUTINHO, Jacinto.
Quando se fala de verdade no processo penal, do que se fala? Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jun-26/limite-
penal-quando-verdade-processo-penal. Acesso em 19 de dezembro de 2021.
31 DE-LORENZI; CEOLIN, O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo, op. cit., versão online, p. 8
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
109

Processo penal. São eles: (1) a busca da verdade pode ser considerada, na mesma linha a qual se filia
FIGUEIREDO DIAS, como critério para a concretização da justiça material no caso concreto;32 (2)
considerar a verdade como garantia real do acusado, ao fazer depender sua pena de uma prova robusta
de sua culpabilidade; e (3) de um ponto de vista eminentemente prático, ao se aceitar a possibilidade de
revisão criminal dos enunciados formulados na sentença, com força de coisa julgada, se abre espaço
para criticar a prévia avaliação sobre os fatos, dado que não corresponderiam à realidade.
(1) O Processo penal deve buscar sempre uma solução justa, previsível e isonômica ao caso penal.
Para que uma decisão contemple todos esses adjetivos, DE-LORENZI e CEOLIN apontam a
necessidade de dois requisitos fundamentais: a) que seja resultado de um procedimento de acordo com
regras e princípios constitucionais e processuais; e b) que seja baseada em fatos considerados
verdadeiros.33 A verdade é um dos requisitos necessários para uma solução justa, mas não o único: uma
decisão baseada em uma versão falsa dos fatos será inevitavelmente injusta.
(2) No entanto, nem sempre as decisões judiciais estarão baseadas em fatos verdadeiros e a
intuição de justiça é insuficiente para afirmar sua certeza. Há ainda a necessidade de se recorrer a
argumentos racionais para justificar a busca da verdade no Processo penal. De um lado, a aplicação de
uma consequência jurídica depende sempre da adequação da norma a um pressuposto fático, condição
necessária para sua subsunção. Esse processo pressupõe que as variáveis do silogismo sejam
verdadeiras, a fim de que não se cheguem a conclusões inválidas: um argumento somente é válido e
correto quando suas premissas sejam verdadeiras.
De outro, a busca da verdade diz respeito exigência dos fins a que se destina o Direito penal: a
reafirmação da norma de conduta depende da veracidade dos fatos para efetivar a tutela de bens
jurídicos, assim como somente a verdade sobre a culpa do réu possibilita a aplicação de uma pena justa
e proporcional. Apenas assim se concretiza o princípio da culpabilidade.34 Como bem lembram DE-
LORENZI e CEOLIN, tais argumentos, antes de justificarem uma suposta busca da verdade real com
quaisquer meios ilegítimos que esse propósito possa legitimar, reafirmam o papel da verdade como
garantia do acusado.35
(3) O terceiro argumento apontado pelos autores diz respeito ao instrumento processual da revisão
criminal, fundado essencialmente na ideia de verdade e que opera sempre em favor do réu. Se a decisão
penal fosse apenas um “um ato de convencimento formado em contraditório e a partir do respeito às
regras do devido processo”,36 sem a necessidade de uma vinculação epistemológica com os fatos em si
considerados, não haveria razão para a desconstituição da coisa julgada, sempre quando todas as regras
formais do procedimento fossem devidamente observadas.37

32
DIAS, Direito processual penal, op. cit., p. 43.
33 DE-LORENZI; CEOLIN, O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo, op. cit., versão online, p. 9. No
mesmo sentido: TAVARES; CASARA, Prova e verdade, op. cit., p. 15: “a verdade é não só uma condição inegociável à
justiça da decisão como também um limite ao arbítrio estatal”.
34 DE-LORENZI; CEOLIN, O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo, op. cit., versão online, p. 10.
35 DE-LORENZI; CEOLIN, O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo, op. cit., versão online, p. 10. Assim

como MATIDA; NARDELLI; HERDY, No processo penal, a verdade dos fatos é garantia, op. cit., versão online.
36 LOPES JR, Direito processual penal, op. cit., p. 371 e ss.
37 DE-LORENZI; CEOLIN, O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo, op. cit., versão online, p. 11.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
110 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

4 Verdade e consenso

Como uma terceira via ao problema da verdade no Processo penal, a doutrina tem apontado uma
ideia de consenso como passível de embasar a justeza das decisões. O consenso, como visto
anteriormente, pode ser uma forma de obtenção de um critério de verdade. Segundo HABERMAS,
“verdade é uma pretensão de validade que vinculamos a enunciados ao afirmá-los”.38 No entanto, foge
à tradicional definição da verdade como correspondência, isto é, cuja pretensão de validade se dá pela
correlação empírica a um fato real, ao modo como os objetos se mostram à nossa experiência e pela qual
podemos fazer afirmações sobre eles.39 Para o filósofo, a teoria consensual da verdade pretende explicar
um discurso como resultado não de uma coação lógica ou de uma coação empírica, mas pela força do
melhor argumento, isto é, por sua motivação racional.40
Advogando a tese segundo a qual uma decisão baseada no consenso favorece a realização
cooperada da justiça e com isso lhe garante mais dinamicidade, ANDRADE, seguindo a linha de
HABERMAS, afirma que para a concretização desta possibilidade, emerge a necessidade de que, na
construção do consenso, a relação intersubjetiva subjacente seja formada livremente, sem
constrangimentos ou ameaças que maculem a manifestação de vontade do acusado.41 Referindo-se
especificamente ao fenômeno do plea bargaining, como expressão máxima da justiça negociada,
FISCHER chega a afirmar que a decisão construída no processo de negociação ajuda inclusive a proteger
a legitimidade do sistema penal, uma vez que ao reconhecerem as partes uma decisão como válida, tiram
do Judiciário o peso do erro acerca de uma condenação errada, pautada em falsas premissas.42
Sem a pretensão de avançar na discussão da verdade na seara Filosofia em geral, ou no Processo
penal em particular, o que renderia um trabalho autônomo,43 a controvérsia assente na intersecção entre
consenso e verdade seria a de se obter um enunciado verossímil não pelos fatos propriamente
apresentados, mas pela negociação entre as partes envolvidas no caso penal. Dessa intersecção também
surgem seus problemas. De um lado, ressaltando o ponto apresentado por ANDRADE, isto é, a ideia
pela qual a decisão seria fruto de uma manifestação de vontade voluntária e livre de qualquer coação.
De outro lado, visto que é difícil exigir do Poder Legislativo a descriminalização material de algumas
condutas proibidas, recorre-se ao procedimento para um controle racional da distribuição de penas. Daí
surge a possibilidade da desformalização do Processo, a fim de se imporem condições às condutas leve
ou mediamente lesivas, na forma de sanções sem natureza criminal, de maneira a racionalizar a
atribuição de encargos na administração da justiça criminal.
Para HASSEMER, por sua vez, a negociação no Processo penal implica nada menos que o
abandono sistemático da busca da verdade como critério legitimador do procedimento. Isso porque, na
maioria dos casos envolvendo a média e grave criminalidade há especiais dificuldades probatórias que

38 HABERMAS, Teorias de la verdad, op. cit., p. 114.


39 HABERMAS, Teorias de la verdad, op. cit., p.118.
40
HABERMAS, Teorias de la verdad, op. cit., p.140.
41 ANDRADE, Justiça penal consensual, op. cit., p. 53.
42 “To the extent a plea bargain delivers a verdict that onlookers acknowledge to be truthful, it protects the jury and the system

that sponsors it from the risk of issuing the wrong verdict – or to be precise, a verdict the public will perceive to be wrong”, cf.
FISCHER, Plea bargaining’s triumph, op. cit., p. 178. A visão segundo a qual os acordos evitariam o erro parece, antes de
tudo, parcial e errônea. De fato, desde há muito a própria doutrina americana vem levantando os riscos advindos do fenômeno
do overcharging. Cf. ALSCHULER, Um sistema quase perfeito para condenar os inocentes, op. cit., p. 127 e ss.
43 Sobre a questão da verdade no processo, vide, por todos, TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção

dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
111

tornam a busca da verdade complexa e laboriosa. A solução simplificada ou abreviada de casos é um


dos principais instrumentos para se obter respostas: em troca da confissão se oferece uma especial
atenuação da sanção.44 A lógica dos acordos é a de, justamente, evitar a busca da verdade. Como ressalta
LANGER, importa menos em saber como os fatos ocorreram e mais atribuir às partes o poder de
decisão.45 Em realidade, sequer é necessária tal busca, haja vista a aceitação da sanção, ou condição nos
casos do ANPP, depender apenas do consentimento do acusado.46
Em linha similar, SCHÜNEMANN afirma que nesse movimento de meios alternativos de
resolução de casos penais deve-se recorrer a outro princípio legitimador, no lugar da averiguação da
verdade material para a aplicação de uma consequência jurídica. A pressão das circunstâncias exercida
sobre o imputado, principalmente a possibilidade futura de receber uma pena desvantajosa, impede que
a aceitação do acordo seja interpretada como manifestação de puro consenso. Nada obstante, tal instituto
pode ser perfeitamente legitimado ante os interesses defensivos do acusado.47 E isso como medida
eminentemente político-criminal.
Principalmente no tocante aos acordos de não persecução penal, a resolução do caso penal, haja
vista a presença de indícios de autoria e materialidade de um fato descrito na lei como típico, a
justificativa se adere ao fato de que não haverá um juízo de cognição por parte do magistrado acerca da
culpabilidade do acusado. Além disso, as condições aceitas pelo acusado pelo fato cometido, uma vez
cumprido integralmente o acordo, acarretarão a extinção de sua punibilidade, não possuindo natureza
de consequência penal.48

5 Considerações finais

Em que pese o caput do art. 28-A estabeleça como pressuposto para a formalização do acordo a
confissão formal e circunstancial do acusado, a sentença que avalia os requisitos do acordo tem natureza
eminentemente homologatória, nos termos do §6º do mesmo artigo. Outro questionamento é se a
confissão efetivamente corresponde à narrativa dos fatos apresentada pelos agentes penais, ou se apenas
foi obtida como simulacro estratégico de defesa ante a possibilidade de consequências penais mais
graves em caso de eventual condenação (overcharging, por exemplo). Por esse exato motivo se vê com
ressalvas a possibilidade de se utilizar essa confissão com valor probatório em outros procedimentos,
dado que obtida sem o controle judicial do contraditório, além da corroboração exigida pelo art. 197 do
CPP.
Outra conclusão não é possível chegar, senão aquela de que os acordos atendem muito mais a
uma utilidade dos sujeitos processuais do que à satisfação de algum critério de verdade.49 Antes de tudo
denota o caráter estratégico do discurso, na linha daquilo que aponta FOUCAULT em “A verdade e as
formas jurídicas”.50 Os acordos de não persecução penal não se fundam propriamente em uma ideia de

44
HASSEMER, Winfried. Verdad y búsqueda de la verdad en el proceso penal. Cidade do México: Ubijus, 2009, p. 20.
45 LANGER, From legal transplants to legal translations, op. cit., p. 10.
46 HASSEMER, Verdad y búsqueda de la verdad en el proceso penal, op. cit., p. 22.
47 SCHÜNENANN, La reforma del proceso penal, op. cit., p. 104-105.
48 Mutatis mutandis, acerca do Absprachen alemão (§153 StPO), vide: SCHÜNENANN, La reforma del proceso penal, op.

cit., p. 105.
49 SCHÜNEMANN, La reforma del proceso penal, op. cit., p. 103.
50 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003, p. 9. No mesmo sentido:

PRADO, Campo jurídico e capital científico, op. cit., p. 61.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
112 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

consenso, mas sim, de um lado, pelo poder-dever do Ministério Público de oferecer uma medida
despenalizadora, por meio de uma faculdade atribuída e limitada a ele pela lei, como forma de
caracterização de uma certa Política criminal.51 De outro lado, na ideia de estratégia processual de
defesa, segundo a qual, diante do contexto dos indícios de provas apresentadas, o acusado quer obter
uma resposta jurídica mais favorável a seu caso.
De toda forma, sob pena de se descerrar um acordo em um caso no qual fosse viável o
arquivamento, por exemplo, o mínimo de verossimilhança é exigido em relação às provas colhidas no
procedimento preliminar e a imputação atribuída pelo Ministério Público ao investigado. A verdade
como coerência deve funcionar aqui como limite de garantia, e não, propriamente, como finalidade dos
acordos. A sua homologação judicial passa, necessariamente, pela análise da justa causa exigida para o
exercício da ação penal.
Por sua vez, o problema sobre a verdade no Processo penal é um pouco mais complexo quando se está
a tratar dos acordos sobre a sentença, que efetivamente produzem efeitos penais. Em tais casos há a
necessidade de se comprovar a culpabilidade do acusado, não sendo suficiente sua confissão ou mero
consentimento. Ante o risco de se impor uma pena a um inocente, parece ilegítima a força de um falso
consenso para fundamentar consequências jurídicas tão graves. De tal deficiência padece o instituto do
guilty plea americano, por exemplo. Tenta-se substituir a ideia de realização de justiça material pela
“justiça do procedimento”, nas palavras de SCHÜNEMANN.52 Esse, no entanto, é um questionamento
a ensejar outro trabalho.

6 Referências bibliográficas

ALSCHULER, Albert. Um sistema quase perfeito para condenar os inocentes. In. GLOECKNER, Ricardo
(org.). Plea bargaining. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.
ANDRADE, Flávio da Silva. Justiça penal consensual. Salvador: JusPodivm, 2018
BAUMANN, Jürgen. Derecho Procesal penal. Santiago: Ediciones Olejnik, 2019.
CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza. Rivista di Diritto Processuale. Vol. XX, anno 1965.
CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986.
COUTINHO, Jacinto. Glosas ao ‘Verdade, dúvida e certeza’, de Francesco Carnelutti, para os operadores do
Direito. In. COUTINHO, Jacinto. Observações sobre a propedêutica processual penal. Curitiba:
Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019.
COUTINHO, Jacinto. Quando se fala de verdade no processo penal, do que se fala? Disponível em
https://www.conjur.com.br/2020-jun-26/limite-penal-quando-verdade-processo-penal. Acesso em 19 de
dezembro de 2021.
DE-LORENZI, Felipe; CEOLIN, Guilherme. O processo penal busca a verdade, mas não a qualquer custo: os
novos caminhos para uma antiga controvérsia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 177,
mar/2021, versão online.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Acordos sobre a sentença em Processo penal. Porto: Ordem dos Advogados
Portugueses, 2011.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1974.
FERRER-BELTRÁN, Jordi. Valoração racional da prova. Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 45.
FISCHER, George. Plea bargaining’s triumph. Palo Alto: Stanford University Press, 2004.

51 Em sentido análogo, sustentam LUCCHESI e ARNS DE OLIVEIRA que “não há qualquer discricionariedade ampla na
atuação do Ministério Público, tratando-se a oferta de proposta de ANPP de um poder-dever, proporcional e compatível com
a infração imputada”. Cf. LUCCHESI, Guilherme; OLIVEIRA, Marlus. Sobre a discricionariedade do Ministério Público no
ANPP e o seu controle jurisdicional: uma proposta pela legalidade. Boletim do IBCCRIM, v. 344, jul/2021, versão online.
52 SCHÜNEMANN, La reforma del proceso penal, op. cit., p. 106.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
113

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003.
GUZMÁN, Nicolás. La verdad en el Proceso penal: una contribuición a la epistemologia jurídica. Buenos
Aires: Editores Del Puerto, 2011.
HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. São Paulo: Unesp. 2002.
HABERMAS, Teorías de la verdade. In. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios prévios.
Madrid: Catedra, 1989.
HASSEMER, Winfried. Verdad y búsqueda de la verdad en el proceso penal. Cidade do México: Ubijus,
2009, p. 20.
KHALED JR., Salah. A busca da verdade no Processo penal. Belo Horizonte: Letramento, 2020
KIRCHER, Luis Felipe Schneider. Justiça penal negocial e verdade: há algum tipo de conciliação possível? In.
SALGADO, Daniel et. al (org.). Justiça consensual: acordos criminais, cíveis e administrativos. Salvador:
Editora JusPodivm, 2022, p. 61 e ss.
LANGBEIN, John. Tortura e plea bargaining. In. GLOCKNER, Ricardo (org.) Sistemas processuais penais.
Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
LANGER, Maximo. From legal transplants to legal translations: the globalization of Plea bargaining and the
Americanization thesis in criminal procedure. Harvard International Law Journal, v. 45, n.1, 2004.
LUCCHESI, Guilherme; OLIVEIRA, Marlus. Sobre a discricionariedade do Ministério Público no ANPP e o
seu controle jurisdicional: uma proposta pela legalidade. Boletim do IBCCRIM, v. 344, jul/2021, versão
online.
MATIDA, Janaina; NARDELLI, Marcella Mascarenhas; HERDY Rachel. No processo penal, a verdade dos
fatos é garantia. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jun-19/limite-penal-processo-penal-
verdade-fatos-garantia. Acesso em 19 de dezembro de 2021.
NEUMANN, Ulfrid. La pretensión de verdad en el Derecho. Bogotà: Universidad Externado de Colombia,
2010.
PRADO, Geraldo. Campo jurídico e capital científico: o acordo sobre a pena e o modelo acusatório no Brasil. In.
Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012.
ROXIN, Claus. Derecho Procesal penal. Buenos Aires: Ediciones del Puerto, 2000.
SANTANA, Gabriel Andrade. Verdade e Justiça negocial: o paradigma filosófico do novo realismo como
limite à expansão dos espaços de consenso no campo jurídico-penal brasileiro. Dissertação de Mestrado.
Brasília: IDP, 2019.
SCHÜNEMANN, Bernd. La reforma del processo penal. Madrid: Dykinson, 2005.
TARUFFO, Michele. La prueba. Madrid: Marcial Pons, 2008.
TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016.
TAVARES, Juarez; CASARA, Rubens. Prova e Verdade. Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2020.

Recebido: 13/01/2023
Aprovado: 29/08/2023
115
O aumento da execução da pena
provenientes da Lei Anticrime e os
impactos na execução da medida de
segurança

The increase in the execution of the penalty arising from the


Anticrime Law and the impacts on the execution of the safety measure

Fábio Manoel Fragoso Bittencourt Araújo


Advogado. Atualmente é Procurador-Chefe Adjunto do Tribunal de Contas do Estado de
Alagoas. Doutorando em Direito e Mestre em Administração Pública pelo Instituto
Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP. Especialista em Direito Tributário
pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Ex-Procurador Municipal. Ex-
Assessor Parlamentar da Assembléia Legislativa do Estado de Alagoas.

Ana Beatriz Vasconcelos de Medeiros


Assessora de Desembargador do TJ/AL. Mestranda em Direito
Público pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Pós-
Graduanda em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.

Resumo: O presente estudo tem por objetivo avaliar se o tratamento realizado nos hospitais
psiquiátricos, na execução da medida de segurança é, de fato, adequado, trazendo como hipótese
que a prática da violência institucional na execução das medidas, as fazem ser semelhantes à uma
pena, propriamente dita. O trabalho busca apresentar as disparidades entre pena e medida de
segurança e apontar pontos de convergência entre ambas. Mais especificamente, o presente artigo
objetiva, também, expor que a medida de segurança pode ser, ainda mais severa, do que a
aplicação de uma eventual pena, considerando que não existe um tempo estabelecido para sua
duração. Ademais, será analisada a modificação trazida pela Lei 13.964/19 que ampliou o tempo
de cumprimento de pena no ordenamento jurídico brasileiro para 40 (quarenta) anos e suas
implicações na execução da medida de segurança. Assim, por meio da pesquisa doutrinária, visa-
se analisar o processo de construção da loucura como doença mental e a formulação dos
mecanismos de controle social.

Palavras-chave: Medida de segurança; violência institucional; lei anticrime.

Abstract: The present study aims to evaluate whether the treatment performed in psychiatric
hospitals, in the execution of the mental heath treatment, is, in fact, adequate, suggesting that the
practice of institutional violence in the execution of the measures, makes them similar to a penalty,
itself. The work seeks to present the disparities between penalty and mental heath treatment and
to point out points of convergence between both. More specifically, this article also aims to expose
that the security measure can be, even more severe, than the application of an eventual penalty,
considering that there is no established time for its duration. In addition, the modification brought
by Law 13.964 / 19 will be analyzed, which extended the time of serving time in the Brazilian
legal system to 40 (forty) years and its implications in the execution of the security measure. Thus,
through doctrinal research, the aim is to analyze the process of building madness as a mental
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
116 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

illness and the formulation of social control mechanisms.

Keywords: Mental heath treatment; institutional violence; anti-crime law.

1 Introdução

A medida de segurança é um instituto do direito penal que sanciona o indivíduo, considerado


inimputável, a tratamento ambulatorial ou manicomial, em razão da prática de um crime.
Os objetivos da abordagem proposta se orientam no sentido de avaliar se o tratamento é, de fato,
adequado, trazendo como hipótese que a prática da violência institucional na execução das medidas, as
fazem ser semelhantes à uma pena propriamente dita.
Partindo deste pressuposto, é que será discorrida as diferenciações entre pena e medida de
segurança, trazendo como ponto de convergência o tempo de duração das sanções penais, que conferem
um caráter aflitivo.
Ademais, será analisada a modificação na execução da pena, trazida pela Lei 13.964/19,
popularmente conhecida como “Lei anticrime”, que ampliou o tempo de cumprimento de pena no Brasil,
estabelecendo o patamar de 40 (quarenta) anos, alterando, portanto, o art. 75 do Código Penal.1
Sob a justificativa de que o tempo máximo de pena com teto em 30 anos teria sido estabelecido
em momento social anterior, o legislador entendeu que com a elevação da expectativa de vida, seria
prudente, igualmente, o aumento do cumprimento da penalidade.2
O presente estudo se propõe avaliar os impactos trazidos por essa modificação na execução da
medida de segurança, averiguando se houve racionalidade no aumento e qual a sua finalidade, realizando
apontamentos críticos.
Inicialmente, será discorrida uma apresentação doutrinária acerca das fundamentações filosóficas
sobre o tempo como efetivo significante da pena3, trazendo digressões de pensadores como Hegel,
Cesare Beccaria e Ana Messuti. Após, será analisada se essa modificação se mostra congruente com a
disposição dos tratados internacionais os quais o Brasil é signatário, para, por fim, apontar as mudanças
provocadas pela Lei n. 13.964/19, traçando um contraponto com a realidade brasileira.

2 A violência institucionalizada: a medida de segurança

A violência enraizada na sociedade assume diversas faces. É óbvio que ao se pensar em violência,
o primeiro juízo que se faz é a ocorrência de um delito na comunidade, contudo, não é esse o significado
que se pretende atribuir.

1 CARVALHO, Salo. Lei Anticrime e Proibição de Retrocesso: sobre o aumento do limite máximo das penas na Lei 13.964/19.
In: Boletim do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Salvador: Trincheira Democrática, ano 3, v. 7, fevereiro de 2020,
p. 10.
2 IBGE. Resolução nº 06, de 26 de novembro de 2019. Divulga a Tábua Completa de Mortalidade - ambos os sexos - 2018.

Diário Oficial da União, Brasília, DF, DO-U de 28-11-2019.


3 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2006, p. 75
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
117

Para o presente artigo, ao se mencionar a violência, a referência a ser associada é aquela praticada
pela própria instituição. Parece estranho conceber que a violência possa ser cometida pelos próprios
agentes estatais, que seriam revestidos de poder para, ao revés, conter os arbítrios das agressões. Franco
Basaglia4 é certeiro ao demonstrar que a violência do sistema é extremamente evidente, podendo ser
vislumbrada nas instituições religiosas, nas relações familiares, mas, com ainda maior ênfase, no próprio
poder público.
Faz-se relevante destacar que o estado se utiliza da violência para manutenção de seu controle,
contudo, para não expor abertamente essa faceta5, entrega o poder para aqueles que seriam teoricamente
capacitados para impor a sanção necessária. Isto é, ao conceder a outros atores do sistema o controle,
faziam com que esses últimos exercessem a violência em seu nome, que seriam, à vista do seio social,
justas e adequadas.
Quando se trata das medidas de segurança, objeto de pesquisa do presente artigo, essa relação se
torna, ainda mais evidente. É com o intuito de excluir do sistema os que seriam socialmente inaptos, que
se entregou ao judiciário e aos médicos o poder de retirá-los do convívio social. Trata-se assim, de uma
relação de opressão que exclui o doente.6
Foucault7 ressaltava que esse domínio, antes de ressaltar o papel negativo da própria exclusão,
ressaltava o papel positivo da organização social, que seria mantida após a eliminação. Desta feita, a
sociedade antes suja pela presença dos ditos doentes mentais, poderia, ao afastá-los, conviver com uma
comunidade limpa e segura, o dito fenômeno da higienização social.
O autor prossegue afirmando que o conceito de loucura, a qual seriam acometidos os doentes
mentais, sofreu uma grande transformação no decorrer do século XIX, em especial após os estudos da
escola positivista. Tobias Barreto8, igualmente assegura, que o conceito é variável e sofre
transformações ao longo do tempo, por considerar que a loucura seria algo genérico e divisível em
espécies, considerando a existência de diversas patologias, as quais os indivíduos poderiam ser
acometidos. Contudo, ambos os autores aceitavam a existência de um denominador comum entre todos
os conceitos de loucura: a sua manifestação não era óbvia e clara, de forma que o indivíduo acometido
de incapacidade psicológica, não era facilmente detectável, razão pela qual, poderia se mostrar ainda
mais perigoso, por sua imprevisibilidade.9
Para determinar, portanto, a loucura ou a alienação do doente mental, passou -se a exigir um
exercício comparativo entre o indivíduo sob suspeita e uma ficção do que seria um homem médio
ou normal. Isto é, todo aquele que não se comporta como um ser humano normal, seria

4 BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Relato de um hospital psiquiátrico. Tradução de Heloísa Jahn. Rio de Janeiro.
Editora Graal, 1985. p. 100
5 BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Relato de um hospital psiquiátrico. Tradução de Heloísa Jahn. Rio de Janeiro.

Editora Graal, 1985. p. 101


6BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Relato de um hospital psiquiátrico. Tradução de Heloísa Jahn. Rio de Janeiro.

Editora Graal, 1985. p. 101


7 FOUCAULT, Michel. História da Loucura. Tradução: José Teixeira Coelho Netto. São Paulo. Editora Perspectiva, 1978.

P. 91
8 BARRETO, Tobias. Menores e Loucos em Direito Criminal. In: Coleção História do Direito Brasileiro, Senatus, Brasília, v.

3, n. 1, 2004. p. 744
9 CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro.

EdUERJ, 1998. P. 77
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
118 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

considerado como louco 10.


Vê-se, portanto, que o problema enfrentado não é a doença em si, já que não se buscam meios
para classificá-la, mas a relação que é estabelecida com ela. Dessa forma, para neutralizar o dito doente
mental, os agentes estatais não visam sua cura, mas envolvem outros atores, como a sociedade, o médico
psiquiatra, o judiciário, para justificar uma segregação11.
Trata-se, assim, de uma modernização intelectual que constrói institutos que legitimam a prática
de violência12, encobertas sob a justificativa de tratamento à sua periculosidade.
Franco Basaglia prossegue ao reiterar que a tarefa dos médicos passa a ser adaptar os indivíduos
a aceitar sua condição de objetos de violência, fazendo-os enxergar que a única realidade a qual eles
possuem é serem objeto dessa mesma coerção13. Em sendo assim, os doentes mentais não conhecem
outra realidade, a não ser aquela de que não seriam considerados aptos ao convívio social. O diagnóstico,
portanto, assume um rótulo que codifica uma passividade dada por irreversível. 14
Desta feita, o doente mental passa a ser visto como um objeto, uma vez que foi despido de sua
identidade e de sua capacidade de controle, sendo tratado como um mero corpo da instituição,
plenamente segregado, pelo tempo necessário à sua reabilitação – se é que essa venha a existir15.
A instituição do manicômio judiciário, portanto, reveste-se de um caráter extremamente anti-
terapêutico, que nega ao portador da doença mental a possibilidade de responsabilizar-se pelas suas
práticas16, ou de se sequer, tratar sua enfermidade, o que faz com que seja tratado como um louco, onde
quer que se encontre, reafirmando o perfil que fora construído a ele: de que é um ser a-social17.
Ludmilla Correia realizou um estudo dentro dos hospitais psiquiátricos no ano de 2008,18 e,
vislumbrou que a falta de tratamento adequado dentro dos espaços destinados à segregação dos internos,
não são ideais, sendo constantes o excessivo uso de medicamentos para sedação; condições sanitárias
precárias, maus-tratos e falta de preparo dos profissionais, o que faz com que essas estruturas se
assemelhem a penitenciárias.
Ora, se a função da medida de segurança seria o tratamento dos doentes mentais e, se o espaço
destinado a eles não é revestido do equipamento necessário a esse tratamento, não se pode assumir outra

10 CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro.
EdUERJ, 1998. P. 77
11 BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Relato de um hospital psiquiátrico. Tradução de Heloísa Jahn. Rio de Janeiro.

Editora Graal, 1985. p. 103


12 BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Relato de um hospital psiquiátrico. Tradução de Heloísa Jahn. Rio de Janeiro.

Editora Graal, 1985. p. 105


13 BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Relato de um hospital psiquiátrico. Tradução de Heloísa Jahn. Rio de Janeiro.

Editora Graal, 1985. p. 105


14 BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Relato de um hospital psiquiátrico. Tradução de Heloísa Jahn. Rio de Janeiro.

Editora Graal, 1985. p. 108


15 WEIGERT. Mariana de Assis Brasil e. Medidas de segurança e reforma psiquiátrica. Silêncios e invisibilidades nos

manicômios judiciários brasileiros. Florianópolis: Empório do Direito. p. 112.


16 WEIGERT. Mariana de Assis Brasil e. Medidas de segurança e reforma psiquiátrica. Silêncios e invisibilidades nos

manicômios judiciários brasileiros. Florianópolis: Empório do Direito. p. 118.


17 WEIGERT. Mariana de Assis Brasil e. Medidas de segurança e reforma psiquiátrica. Silêncios e invisibilidades nos

manicômios judiciários brasileiros. Florianópolis: Empório do Direito. p. 113.


18 CORREIA, Ludimila; PASSOS Rachel (org.). Dimensão jurídico-política da reforma psiquiátrica brasileira: limites e

possibilidades. Rio der Janeiro: Gramma: 2017. p. 80.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
119

afirmação, senão a de que a separação dos loucos da punição ordinária é meramente conceitual e
simbólica.
Defendia esse posicionamento, Fragoso19, ao assegurar que, na prática, a medida de segurança
não se distinguiria da pena: ela também representaria perda de direitos e poderia ser, inclusive, mais
aflitiva do que a pena. Pode-se conceber, portanto, que toda medida coercitiva imposta pelo Estado é
uma violência, revestida e encoberta por qualquer nome ou procedimento que se queira atribuir,
tornando-se clara a necessidade de visualizar a semelhança entre os institutos penais a disposição, no
nosso ordenamento.

3 O tempo como fator convergente da pena e da medida de segurança

Conceitualmente, a pena e a medida de segurança possuem divergências e particularidades. No


presente capítulo, julga-se como essencial pontuar tais disparidades, para, por fim, demonstrar pontos
de semelhança entre ambas.
Pois bem. Nelson Hungria destaca que a pena seria uma sanção aplicada ao indivíduo, que,
consciente de suas ações e deliberadamente, lesiona ao bem jurídico alheio. Por esse motivo, deveria
receber uma penalidade, baseada em caráter ético, que serviria para afligí-lo, mas também, para expiá-
lo, pelo mal causado.
Ao revés, a medida de segurança se revestiria de um caráter terapêutico e preventivo e, seria
aplicada àqueles ditos irresponsáveis, incapazes de dirigir as próprias ações. Teria por fundamento a
utilidade e, seria atribuído um tratamento adequado, que poderia cessar seu caráter periculoso.20
No capítulo anterior já fora demasiadamente debatida a tese de que, ainda que revestidas de
particularidades, a pena e a medida de segurança seriam consideradas como espaços de violência
institucional e, que, portanto, não estariam tão distantes uma da outra.
Mariana Weigert pontua que a proteção atribuída pelo ordenamento aos inimputáveis, seria uma
falácia pela qual, em nome da suposta garantia de seus direitos, seria excluída a possibilidade da
responsabilização penal, vedando a imposição de penas. Todavia, de modo visivelmente contraditório,
seriam afastados todos os limites à intervenção punitiva, isto é, em nome do suposto tratamento
atribuído, encontraria-se a possibilidade legal de que não fossem respeitados os limites à temporalidade
da execução.21
Quando se trata da aplicação da pena, faz-se relevante destacar que o ordenamento atribuiu balizas
para a sua fixação. Ana Messuti avulta que se trataria de uma relação de intercâmbio, em que aceitando
a comunidade que cada prestação daria lugar a uma contraprestação, sendo ela negativa ou positiva,
deveria ser suportada pelo meio.22 Daí que os atos autoritários passaram a ser vistos não como medidas

19 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. P. 548-560
20 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Vol. III. 3 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1942, p. 50
21 WEIGERT. Mariana de Assis Brasil e. Medidas de segurança e reforma psiquiátrica. Silêncios e invisibilidades nos

manicômios judiciários brasileiros. Florianópolis: Empório do Direito.p. 174.


22 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 20
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
120 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

duras, mas como necessárias, sendo justificáveis a aplicação de penas longas, pois estas seriam as únicas
capazes de proporcionar a paz social23., negando o delito24.
Assim, se por um lado faz-se necessário atribuir garantias aos delinquentes com maior respeito
em seu tratamento25, por outro é essencial que seja aplicada uma justa reprimenda, já que essa determina
a reprovação da prática de vários atos, em favor dos direitos fundamentais..26
A grande questão reside em como aplicar essa penalidade. A resposta é evidente, uma vez que
sendo negadas as aplicações de penas corporais, zelando pelo princípio da humanidade27, a solução
encontrada teria sido a de afastar o delinquente do seio social, dando-lhe a oportunidade de refletir sobre
os atos praticados. E, tal reflexão – que serve de pena – deve guardar uma certa proporcionalidade, isto
é, não pode ser tão curta, a ponto de desprezar o mal causado, tampouco,28 tão longa a ponto de retirar
o que existe de mais efêmero no homem: sua vida. Teoriza Ana Messuti29:
A pena de prisão, que veio para humanizar o direito, para substituir a barbárie dos castigos
corporais, afeta o sujeito em seu ponto mais vulnerável: esse pouco tempo de vida que lhe corresponde,
e que é a própria vida.
Trata-se, portanto, de uma questão essencialmente relacionada ao tempo30.
Focault31 já predizia que a prisão e o cárcere ofereceriam essa clareza jurídica, uma vez que,
permitindo que o indivíduo refletisse sobre o mal que efetivamente teria causado, permitiria quantificar
a pena em função do tempo. Esse pensamento também foi partilhado por Ana Messuti,32 que ao entender
a pena como uma retribuição e, consistindo ela no transcurso de tempo, estaria se empregando o tempo
como castigo.
A pena de prisão, portanto, seria diferenciada das demais formas de aplicação de pena – isto é,
penas pecuniárias, prestações de serviços à comunidade – por combinar dois elementos: o tempo e o
espaço33.
Ora, considerando esses dois elementos, isoladamente, não seria a medida de segurança um
atributo semelhante? Ao entregar aos hospitais psiquiátricos o suposto tratamento dos indivíduos e
deixá-los segregados por tempo indeterminado, traz-se à medida de segurança um caráter aflitivo,
característico da pena.
Pode-se ainda, afirmar que, a medida de segurança poderia ser, ainda mais severa, ao se considerar
que sua durabilidade pode ser maior que a aplicação de uma pena.

23 PRADO, Geraldo. O processo penal brasileiro vinte e cinco anos depois da constituição: Transformações, permanências,
resistência democrática. In Resistência democrática: II Congresso de direito penal e criminologia. Rio de Janeiro: R. EMERJ,
jan.-fev. 2015. V. 18, p. 553.
24 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 22
25 Durkheim, Émile Durkheim, Deux lois de L'évolution pénale. Paris: L'Année Sociologique, 1899-1900, vol. IV. p. 9.
26
SOZZO, Máximo. La inflación punitiva. Un análisis comparativo de las mutaciones del derecho penal en América Latina
(1990 – 2015). 1ª ed. Buenos Aires, Argentina: Fronteras, 2017, p. 173
27 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2006, p. 74.
28 Hegel, G. W. F., Fundamentos de la filosofia del derecho. 5ª ed. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1968 p. 127.
29 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 62
30 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 70
31 FOUCAULT. Michel. Vigiar e punir: nascimento na prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 269.
32 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 34
33 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 33
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
121

Pondera-se que, a passagem do tempo é, de fato, relativa e que o sujeito poderá senti-la de modo
mais ou menos severo a depender de uma série de fatores, dentre eles, psicológicos, relacionados à sua
vida pregressa, ou ainda, às condições do próprio cárcere ou manicômio: medidas que são internas e
relacionam-se a eles próprios.
Dessa forma, o sujeito estaria imobilizado em determinado espaço, no qual transcorre um tempo
diferente, qualificando-se tal imobilidade como uma espera.34 Assim, é que assiste razão à Beccaria
quando afirma que não seria a intensidade da pena o seu verdadeiro significante: mas sim sua extensão.35
Sendo assim, além de medida prática e aplicável, a pena e a medida de segurança seriam, também,
normas jurídicas antecipadoras do futuro, determinando uma quantidade de tempo específica – ou não -
que se configurará na duração da reprimenda36.
Para definir essa duração, deve existir uma proporcionalidade entre o ato praticado, o desvalor
que é atribuído pela comunidade e as condições pessoais e patológicas do indivíduo37, de sorte que tal
proporção só será conhecida ao se medir a intensidade de todos os atos.38
Desta feita, entendendo a pena e, aqui por extensão a medida de segurança, como uma forma do
subordinar o tempo aos fins que o direito almeja39 - isto é, a punição -, é que se verifica que a passagem
desse transcorrer é relativa.
Assim, devem ser levados em consideração fatores como a gravidade do delito e questões
concretas, relacionadas à própria integridade do indivíduo.

4 As disposições do ordenamento jurídico nacional e dos tratados internacionais de


direitos humanos os quais o Brasil é signatário

Com a compreensão de que o tempo de pena é a medida que irá determinar o índice de
reprovabilidade da conduta, certo é que este não se revela uniforme no plano concreto, diante da
diversidade de ordenamentos jurídicos40. Isso porque, cada sistema possui um histórico diferente, cujas
fraquezas e violações de direitos são variáveis e, portanto, podem e devem estabelecer penalidades
distintas para os delitos cometidos, a depender de como a conduta afeta aquela determinada comunidade.
Entretanto, a facilidade de livre circulação, combinada com o crescimento desenfreado das
organizações e potências mundiais41, gerou cenários em que a competência de determinado ordenamento
restava obscura: suscitando o questionamento “a penalidade de qual ordenamento deve ser aplicada?” e
mais, “havendo uma penalidade mais grave, a reprovabilidade da conduta será medida no grau de qual
ordenamento?”

34 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 44
35 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2006, p. 75.
36
MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 44
37 LIMA, Alberto Jorge Correia de Barros. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios constitucionais penais.

São Paulo: Saraiva, 2012, p. 93.


38 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 36
39 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 42
40 AKEMI BELTRAME, Priscila. Tutela penal dos direitos humanos e o expansionismo punitivo. 20135. 271 páginas. Tese

de Doutorado (Doutorado em Direito Penal) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: São Paulo, p. 95.
41 AKEMI BELTRAME, Priscila. Tutela penal dos direitos humanos e o expansionismo punitivo. 20135. 271 páginas. Tese

de Doutorado (Doutorado em Direito Penal) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: São Paulo, p. 98.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
122 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Tratando-se de uma preocupação legítima com alcance global, que estava em crescente expansão
e atingia diversos bens jurídicos, é que esses ordenamentos jurídicos42, baseados em princípios da
cooperação e dignidade da pessoa humana, decidiram estabelecer normas, aplicando uma jurisdição
internacional comum, que culminou na criação do Estatuto de Roma.
A função primordial do Estatuto de Roma foi ratificar entre os Estados membros um compromisso
de cooperação. É de se ressaltar que essa cooperação não significou, necessariamente, que as
penalidades aplicadas seriam idênticas em todos os ordenamentos. Por outro lado, verificou-se a
existência de eventuais incompatibilidades em relação a alguns dos valores consagrados pelos Estados
e as disposições do Tratado.43
A relevância de compreender a importância de Tratados Internacionais os quais o Brasil é
signatário para o presente estudo, e, em especial, ao Estatuto de Roma, é avaliar se existe congruência
entre os índices de reprovabilidade das condutas adotadas por ambos, bem como, se em eventual
incongruência, há violação a garantias constitucionais.
Pois bem. Partindo-se da disposição mais controvertida do Estatuto de Roma e da Constituição
Federal Brasileira, tem-se a cominação da prisão perpétua no art. 77, §1º, que vai de encontro ao
preceituado no art. 5º da CF/88.44
Observe-se:

Art. 5º
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;

Assim, há previsão expressa no ordenamento jurídico pátrio vedando a cominação de penas de


caráter perpétuo ou pena de morte.
Desta feita, restaria incompatível acatar a disposição do Estatuto de Roma, seja pela própria
disposição legal, seja pelo respeito aos princípios da humanidade e da dignidade da pessoa humana. Ora,
trata-se de uma questão internacional relacionada à aplicação de uma penalidade que é vedada pelo
ordenamento.
A questão fora, inclusive, discutida por Ana Messuti, que suscita o questionamento primordial:
“por quanto tempo quer se retirar esse indivíduo do convívio social?” A resposta, levando-se em
consideração a disposição do Estatuto de Roma, seria “para sempre”, trazendo como consequência a
disposição da pena perpétua45.

42
GOMES, Luiz Flavio; GARCIA, Antônio; MOLINA, Pablos De; BIANCHINI, Alice. Direito penal introdução e
princípios fundamentais. 2. ed. Editora: RT. São Paulo, 2009, p. 141.
43 DELLA TORRE NETTO, Adhemar. O Tribunal Penal Internacional como órgão do Poder Judiciário brasileiro e a ordem de

entrega. Cadernos de Direito, Brasil, v. 11, n.21, mai. 2012. Disponível em: < https://www.metodista.br/revistas/revistas-
unimep/index.php/direito/article/view/186>, acesso em 25 de julho de 2020.
44 BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 30 de julho de 2020.
45 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 38
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
123

Tal conceito iria de encontro a ideais filosóficos e humanitários e retiraria do homem o que há de
mais sagrado: sua esperança. A duração da pena, conforme já discutido no tópico anterior, reveste-se de
importância por deixar sua marca na mente dos destinatários da mensagem da pena, isto é, nos
condenados46. Ao lidar com penas perpétuas, essa marca faz com que o homem necessite desaprender o
aprendido, encarando e vivendo uma nova realidade, dentro das paredes do cárcere: tornando-se agora
sua única realidade.
Esse pensamento é defendido e explanado por Ana Messuti47 e reafirmado por Alberto Jorge
Correia de Barros Lima48 em sua obra, ao dissertarem que a vida homem seria consumida junto com
pena e que, ao fim de seu cumprimento, menos vida restaria e que sua alegria restaria no consolo do que
lhe faltava viver.
Levando-se em consideração esses ideais, não se concebe o entendimento das cortes superiores
de que a medida de segurança possa ser executada por tempo indeterminado, ainda que se entenda que
a periculosidade não é um conceito que possa ser objetivamente aferido. Por considerar a vida como
algo único e, ainda, efêmero e passageiro, é que o ordenamento jurídico brasileiro, não comina à prática
de um crime a condenação eterna, razão pela qual, não se julga razoável que o indivíduo possa ser
retirado do convívio social por período indeterminado, por uma condição patológica a qual lhe é
inerente.
O Superior Tribunal de Justiça, ao editar a súmula nº 527 estabeleceu que “O tempo de duração
da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao
delito praticado”.
Contudo, o entendimento jurisprudencial aceita a perpetuidade da referida medida, mantendo a
internação enquanto não houver laudo positivo que indique a cessação da periculosidade do internado,
prazo esse que pode se prolongar até o máximo da execução da pena no país, isto é, por 30 (trinta) anos.
Ora, ao que parece, o ordenamento concebe que não seria possível dar outras alternativas ao
sujeito louco que cometeu um delito, porque a sua periculosidade estaria sempre à espreita, esperando
um momento certeiro para se manifestar e dar origem a outro ato violento49.

5 O aumento no limite máximo de cumprimento de pena estabelecido na Lei n° 13.964/19


e os efeitos para a execução da medida de segurança

Com o advento da Lei n. 13.964/19, inúmeras medidas foram implantadas no ordenamento


jurídico, dentre elas a alteração do art. 75 do Código Penal, que ampliou o tempo de cumprimento de
pena no Brasil, estabelecendo o patamar de 40 (quarenta) anos, antes fixado em 30 (trinta).
A justificativa apresentada pelo legislador para tal aumento é de que para o estabelecimento do
tempo máximo de cumprimento de pena, teriam que ser analisados fatores como o grau de
reprovabilidade da conduta e o tempo médio de vida do cidadão brasileiro, de modo a criar

46 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2006, p. 75.
47 MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 16
48 LIMA, Alberto Jorge Correia de Barros. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios constitucionais penais.

São Paulo: Saraiva, 2012, p. 90.


49 WEIGERT. Mariana de Assis Brasil e. Medidas de segurança e reforma psiquiátrica. Silêncios e invisibilidades nos

manicômios judiciários brasileiros. p. 27.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
124 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

proporcionalidade entre o tempo que o condenado passaria na prisão para ser punido pelo mal causado,
sem que isso afetasse significativamente o seu tempo de vida.50
Tal aumento no cumprimento de pena reflete diretamente na execução das medidas de segurança,
uma vez que, caso tenha sido ultrapassado o período máximo da pena cominada em abstrato, poderia o
tratamento do indivíduo ser prolongado por até 40 (quarenta) anos.
Pois bem. No momento da edição do Código Penal, em 1940, de acordo com a pesquisa realizada
pelo IBGE, a expectativa média de vida do cidadão brasileiro seria de 73 anos, o que tonaria razoável o
estabelecimento do limite de pena máximo em 30 (trinta) anos.
Com a expansão do direito penal e o recrudescimento vislumbrado nas sociedades pós-industriais,
verificou-se uma tendência dominante em introduzir novos tipos penais e agravar aqueles já existentes,
gerando uma clara antinomia entre o direito penal da intervenção mínima e a suposta necessidade de
conferir proteção a bens jurídicos relevantes.51
A partir desse ideal expansionista, aliado à necessidade de conferir maior reprovabilidade às
condutas e, com o aumento da expectativa de vida do brasileiro para 76,3 anos52, como justificativa
plausível, é que o legislador no chamado “Pacote Anticrime”, decidiu por aumentar o limite máximo de
cumprimento de pena.
No tópico anterior, suscitou-se sobre a legalidade desse aumento, que a princípio, não encontraria
qualquer óbice, haja vista que a Constituição Federal veda, tão somente, o estabelecimento de penas
perpétuas e as de morte, bem como, penas cruéis.
Ainda que por um viés filosófico possa se pensar que esse aumento se reveste de crueldade, por
afetar a alma humana, nos preceitos de Beccaria53, tal argumento, por si só, não é suficiente para tornar
esse aumento ilegítimo. Por outro lado, quando se analisam os princípios constitucionais, vê-se que a
decisão do legislador, fez o direito penal retornar ao seu viés vingativo54, afastando-se da previsão de
um Estado democrático de direito e suas previsões.
Salo de Carvalho55 propõe avaliar a humanidade das sanções das penas privativas de liberdade
em dois critérios: o abstrato, tratando da quantidade máxima da pena; e o segundo, concreto, tratando
da realidade do sistema punitivo.
Passemos à análise de cada um deles.
Conforme já destacado, o critério abstrato é aferido com base na quantidade máxima de pena que
pode ser aplicada a cada indivíduo. Trata-se de uma questão de proporcionalidade, que remete a uma

51 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. La expansión de Derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades
postindustriales. 2. ed. revisada y ampliada. Madrid: Civitas, 2001. p. 22.
52
IBGE. Resolução nº 06, de 26 de novembro de 2019. Divulga a Tábua Completa de Mortalidade - ambos os sexos - 2018.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, DO-U de 28-11-2019.
53 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2006, p. 75.
54 CARVALHO, Salo. Lei Anticrime e Proibição de Retrocesso: sobre o aumento do limite máximo das penas na Lei 13.964/19.

In: Boletim do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Salvador: Trincheira Democrática, ano 3, v. 7, fevereiro de 2020,
p. 10
55 CARVALHO, Salo. Lei Anticrime e Proibição de Retrocesso: sobre o aumento do limite máximo das penas na Lei 13.964/19.

In: Boletim do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Salvador: Trincheira Democrática, ano 3, v. 7, fevereiro de 2020,
p. 10.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
125

concepção jusnaturalista de que a pena deveria se igualar ao crime praticado, consistindo em um mal de
igual intensidade e natureza56, transfigurado em tempo.
Assim, com o aumento da expectativa de vida e, analisando-se unicamente o critério abstrato, o
legislador julgou possível a elevação do tempo máximo de cumprimento de pena. Todavia, parece que
tal elevação é vislumbrada por um único patamar e desprovida de qualquer estudo aprofundado, o que
é possível afirmar a partir do critério concreto, isto é, da realidade do sistema punitivo.
Quando se concebe que os hospitais psiquiátricos e as penitenciárias podem privar o indivíduo de
sua liberdade, por mais tempo, deve-se provocar um investimento financeiro ainda maior57. Isso porque
ao aumentar a sua convivência naquele espaço, deve o Estado prover as condições necessárias para o
seu regular convívio, nessa nova realidade, sem que isso desumanize o ser humano.
Desta feita, o cárcere, ainda que eminentemente punitivo não pode ter o condão de animalizar o
homem e fazê-lo viver em condições precárias. Da mesma forma, não pode o hospital psiquiátrico anular
o indivíduo e sedá-lo, indefinidamente. É o que prevê o princípio constitucional penal da humanidade,
que supera e transcende a própria ideia de proporcionalidade, mas leva em consideração a própria
realidade da política criminal.58
Por outro lado, não é o que se verifica no cenário brasileiro. No julgamento da cautelar da Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, o Supremo Tribunal Federal (STF)
reconheceu a inconstitucionalidade do estado das penitenciárias no sistema brasileiro59.
Nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio, nas penitenciárias ocorreria uma violação
generalizada aos direitos fundamentais dos presos, no tocante a sua dignidade, higidez física e
integridade psíquica. E, ainda, que:
“a superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que
inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno
a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios
convertem-se em penas cruéis e desumanas”.60
Ora, o que se verifica é que as penitenciárias, num cenário concreto, não possuem condições
estruturais para abarcar os presos que já existem, e com o aumento do limite máximo de cumprimento
de pena, a consequência natural e aritmética é que mais condenados permaneçam por mais tempo nessa
condição degradante.
Com relação aos hospitais psiquiátricos, vê-se situação semelhante. O relatório de inspeção
nacional nos Hospitais Psiquiátricos do Brasil61, realizado em 2019, verificou a existência de uma

56 LIMA, Alberto Jorge Correia de Barros. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios constitucionais penais.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 93.
57 CARVALHO, Salo. Sobre as possibilidades de uma penologia crítica: Provocações criminológicas às teorias da pena na

era do grande encarceramento. Polis e Psique, v. 3, 2013, p. 147.


58
LIMA, Alberto Jorge Correia de Barros. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios constitucionais penais.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 93.
59 CARVALHO, Salo. Lei Anticrime e Proibição de Retrocesso: sobre o aumento do limite máximo das penas na Lei 13.964/19.

In: Boletim do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Salvador: Trincheira Democrática, ano 3, v. 7, fevereiro de 2020,
p. 11.
60 STF, ADPF 347, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ. 09.09.15.
61 Conselho Federal de Psicologia - CFP, & Ministério Público do Trabalho - MPT. (2019). Hospitais psiquiátricos no Brasil:

Relatório de Inspeção Nacional - 2019. Brasília, DF: os autores. Recuperado de < https://site.cfp.org.br/wp-
content/uploads/2019/12/549.3_ly_RelatorioInspecaoHospPsiq-ContraCapa-Final_v2Web.pdf>
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
126 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

situação alarmante no que se refere à desassistência da atenção à saúde nos hospitais psiquiátricos
brasileiros, tendo sido observadas com graves e múltiplas violações de direitos humanos das pessoas
com transtornos mentais. Dentre eles, destacou a utilização de castigos, o isolamento e o uso excessivo
de medicação, que vulnerabilizam ainda mais os sujeitos nelas inseridos.
Desta feita, seriam instituições que possuem uma expressão histórica de incapacitação, em que o
meio, faz com que as pessoas submetidas ao tratamento, tornem-se com o passar do tempo ainda mais
incapacitadas.
Por fim, o que se vê é que não há proporcionalidade, ou sequer respeito aos princípios
constitucionais, no aumento provocado pela Lei nº 13.964/19, pensamento esse defendido por Salo de
Carvalho, que assegura que a opção político criminal de tal matéria teve o único intuito de consolidar
de modo formal e explícito o sofrimento da medida punitiva, que se estende, de modo arrazoado às
medidas de segurança.

6 Considerações finais

O presente estudo buscou analisar se as medidas de segurança cumpriam a sua finalidade e


exerciam a função de tratar os indivíduos inimputáveis, que haviam cometido delitos.
A partir da análise doutrinária, foi verificada a prática da violência institucional na execução das
medidas, tanto pelo espaço, que não atende a condições sanitárias adequadas, como pela ausência de
profissionais capacitados.
Ademais, através da própria previsão legal, que atribui uma extensão indeterminada de sua
duração, foi possível concluir que, na prática, as medidas de segurança, em muito se assemelham à
cominação de uma pena, que as fazem ser semelhantes a uma pena propriamente dita.
Nesse teor, o escorço filosófico e teórico permitiu compreender como a pena aplicada se revestia
em aspecto temporal, capaz de configurar um caráter retributivo, demonstrando que deveria existir
proporcionalidade entre o tempo no cárcere e o delito cometido.
Associou-se a essa premissa teórica um estudo acerca dos tratados internacionais os quais o Brasil
é signatário, destacando especial importância ao Estatuto de Roma, que prevê a possibilidade de
aplicação de pena perpétua. Com efeito, a partir da análise da Constituição Federal, concluiu-se que,
apesar de ser vedado o estabelecimento de tais medidas em âmbito nacional, seria possível sua
ocorrência em seara internacional na prática de delitos cuja competência lhe alcançasse, sem que isso
ferisse a qualquer dispositivo nacional.
Todavia, após análise, longe de exaurir o tema, foi possível verificar que essa elevação influi
diretamente na execução da medida de segurança, cuja duração, agora pode se estendera até 40
(quarenta) anos e que, não foi baseada em um estudo da conjuntura concreta, mas tão somente, em dados
teóricos, que foram utilizados para justificar um expansionismo penal.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
127

Referências

AKEMI BELTRAME, Priscila. Tutela penal dos direitos humanos e o expansionismo punitivo. 20135. 271
páginas. Tese de Doutorado (Doutorado em Direito Penal) – Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo: São Paulo.
BARRETO, Tobias. Menores e Loucos em Direito Criminal. In: Coleção História do Direito Brasileiro, Senatus,
BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Relato de um hospital psiquiátrico. Tradução de Heloísa Jahn.
Rio de Janeiro. Editora Graal, 1985. Brasília, v. 3, n. 1, 2004.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret Ltda, 2006, p. 75
BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 30 de julho de 2020.
CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de
Janeiro. EdUERJ, 1998.
CARVALHO, Salo. Lei Anticrime e Proibição de Retrocesso: sobre o aumento do limite máximo das penas na
Lei 13.964/19. In: Boletim do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Salvador: Trincheira
Democrática, ano 3, v. 7, fevereiro de 2020.
CARVALHO, Salo. Sobre as possibilidades de uma penologia crítica: Provocações criminológicas às teorias
da pena na era do grande encarceramento. Polis e Psique, v. 3, 2013.
Conselho Federal de Psicologia - CFP, & Ministério Público do Trabalho - MPT. (2019). Hospitais psiquiátricos
no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional - 2019. Brasília, DF: os autores. Recuperado de <
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/549.3_ly_RelatorioInspecaoHospPsiq-ContraCapa-
Final_v2Web.pdf>
CORREIA, Ludimila; PASSOS Rachel (org.). Dimensão jurídico-política da reforma psiquiátrica brasileira:
limites e possibilidades. Rio der Janeiro: Gramma: 2017. p. 80.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. P. 548-
560
DELLA TORRE NETTO, Adhemar. O Tribunal Penal Internacional como órgão do Poder Judiciário brasileiro e
a ordem de entrega. Cadernos de Direito, Brasil, v. 11, n.21, mai. 2012. Disponível em: <
https://www.metodista.br/revistas/revistas-unimep/index.php/direito/article/view/186>, acesso em 25 de julho
de 2020.
DURKHEIM, Émile. Deux lois de L'évolution pénale. Paris: L'Année Sociologique, 1899-1900, vol. IV. p. 9.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. Tradução: José Teixeira Coelho Netto. São Paulo. Editora
Perspectiva, 1978.
GOMES, Luiz Flavio; GARCIA, Antônio; MOLINA, Pablos De; BIANCHINI, Alice. Direito penal introdução
e princípios fundamentais. 2. ed. Editora: RT. São Paulo, 2009, p. 141.
HEGEL, G. W. F., Fundamentos de la filosofia del derecho. 5ª ed. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1968 p.
120-140
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Vol. III. 3 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1942.
IBGE. Resolução nº 06, de 26 de novembro de 2019. Divulga a Tábua Completa de Mortalidade - ambos os
sexos - 2018. Diário Oficial da União, Brasília, DF, DO-U de 28-11-2019.
LIMA, Alberto Jorge Correia de Barros. Direito penal constitucional: a imposição dos princípios
constitucionais penais. São Paulo: Saraiva, 2012.
MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
PRADO, Geraldo. O processo penal brasileiro vinte e cinco anos depois da constituição: Transformações,
permanências, resistência democrática. In Resistência democrática: II Congresso de direito penal e
criminologia. Rio de Janeiro: R. EMERJ, jan.-fev. 2015. V. 18.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. La expansión de Derecho penal. Aspectos de la política criminal en las
sociedades postindustriales. 2. ed. revisada y ampliada. Madrid: Civitas, 2001. p. 22.
SOZZO, Máximo. La inflación punitiva. Un análisis comparativo de las mutaciones del derecho penal en
América Latina (1990 – 2015). 1ª ed. Buenos Aires, Argentina: Fronteras, 2017.
WEIGERT. Mariana de Assis Brasil e. Medidas de segurança e reforma psiquiátrica. Silêncios e
invisibilidades nos manicômios judiciários brasileiros. Florianópolis: Empório do Direito.

Recebido: 15/07/2022
Aprovado: 29/08/2023
129
Sextortion: caracterização dogmática e
delimitação da imputação criminal em
Portugal

Sextortion: dogmatic characterization and limitation


of criminal imputation in Portugal

Joaquim Ramalho
Advogado. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto,
Portugal. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto,
Portugal. Doutor em Direito pela Faculdad de Ciencias Jurídicas y del Trabajo, Universidad
de Vigo, Espanha. Professor Associado na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Fernando Pessoa, Portugal. Investigador no Observatório Permanente de
Violência e Crime, Universidade Fernando Pessoa, Portugal.

Susana Ramalho
Doutoranda em Neurociencia e Psicoloxía Clínica pela Universidade de A Coruña,
Universidade de Santiago de Compostela e Universidade de Vigo, Espanha; Licenciada
em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade Fernando Pessoa, Portugal;
Membro do I3ID - Research, Innovation and Development Institute da Escola Superior
de Saúde do Instituto Politécnico do Porto, Portugal; Membro do CECLIN- Center for
Clinical Studies do Hospital Escola Fernando Pessoa, Portugal.

Resumo: O sextortion, tal como o cibercrime em geral, é um crime que tem vindo a sofrer um
aumento da prevalência, manifestando o Direito dificuldades na sua tipificação e diferenciação
em relação a outros tipos de crime. Deste modo, este artigo visa realizar uma abordagem reflexiva
sobre a imputação da responsabilidade criminal em Portugal, procurando uniformizar a sua
tipificação e evitar divergências doutrinais. Na imputação, partindo de uma conceção stricto
sensu, o crime de sextortion subsume-se à posse autorizada das imagens da vítima e, através da
ameaça de partilha das mesmas no ciberespaço, procurar obter vantagem financeira, novos
conteúdos íntimos e encontros presenciais.

Palavras-chave: Devassa por meio de informática; Extorsão; Cibercrime; Crimes Sexuais;


Relações virtuais.

Abstract: Sextortion, like cybercrime in general, is a crime that has been experiencing an increase
in prevalence, with the law showing difficulties in its classification and differentiation from other
crimes. Thus, this article aims to conduct a reflexive approach on the imputation of criminal
responsibility in Portugal, seeking to standardize its classification and avoid doctrinal
divergences. In imputation, based on a stricto sensu conception, the crime of sextortion is
subsumed in the authorized possession of the victim's images and, through the threat of sharing
them in cyberspace, seeking to obtain financial advantage, new intimate content and face-to-face
encounters.

Keywords: Debauchery through IT; Extortion; Cybercrime; Sexual Offences; Online


relationships.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
130 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

1 Introdução

A violência tem vindo a disseminar-se nas sociedades contemporâneas e percebe-se que, em certa
medida, as políticas de segurança pública implementadas não têm sido suficientemente eficazes para a
enfrentar. Deste modo, decorrente de novos contornos e de novas práticas criminosas, há um crescente
número de vítimas cujas agressões não se restringem ao âmbito patrimonial ou à integridade física do
indivíduo e são suscetíveis de causar enormes consequências, em alguns casos irreparáveis (Rodrigues
Nunes, 2020).
Os crimes realizados através sistemas informáticos, o denominado cibercrime em sentido amplo,
envolve dificuldades em identificar o agente do crime, mas também devido ao seu elevado grau de
difusão e de perpetuação, são dos crimes que mais impacto têm nas vítimas.
O cibercrime é hoje uma das principais ameaças ao respeito pelos Direitos Fundamentais dos
cidadãos, podendo até ser, por variadas razões, uma ameaça à própria segurança nacional e internacional.
Como a internet favorece o anonimato, facilitando o acesso às vítimas, ocorre uma significativa
deterioração dos mecanismos que permitem a identificação dos agentes do crime, resultando daqui
prejuízos para a investigação policial, dado que é mais difícil aceder ao fato criminoso. Deste modo, é
imprescindível que o Direito, respeitando o seu princípio atualista, tal como as outras ciências sociais,
seja atualizado de acordo com a evolução das sociedades, procurando recuperar algum tempo perdido,
devido ao facto de não estar pensado e preparado, designadamente na prova e na obtenção de prova
(Venâncio, 2011), para alguns tipos de crimes.
Pelo exposto, percebe-se que o Direito deve adequar-se às novas práticas delituosas e essa
adequação, inclusive, pode se dar com a criação de novos tipos ou com a adaptação dos já definidos em
lei, porque, tal como refere Venâncio (2022), na construção dos tipos legais de crime exige-se ao
legislador que descreva o facto punível da forma o mais precisa possível. É constitucionalmente imposto
que a conduta qualificada como crime seja objetivamente determinável pelos destinatários da norma
penal.
É, com este fundamento, que, como ponto de partida da presente investigação, se torna
fundamental elaborar uma caracterização dogmática e uma reflexão profunda acerca da delimitação da
imputação penal de um crime que pode ter um colossal impacto nas vítimas, como é o caso do sextortion,
o qual ocorre quando, após a obtenção ou a partilha de conteúdos de natureza sexual, como, por exemplo,
fotografias ou vídeos, o agente do crime utiliza esses mesmos conteúdos para coagir e chantagear a
vítima de forma a obter vantagem financeira, novos conteúdos íntimos e encontros presenciais com a
vítima.

2. Cibercrime

As novas tecnologias apresentam uma enorme relevância na vida dos cidadãos. Estas,
normalmente, são usadas em benefício dos seus utilizadores, permitindo que, em segundos, se possa ter
acesso a informação contida em qualquer parte do mundo. No entanto, as novas tecnologias não
acarretam apenas vantagens, dado que a utilização universal de meios como o correio eletrónico ou as
redes sociais, constituem um meio de proliferação de determinados tipos de condutas lesivas e ilícitas,
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
131

como, por exemplo, a criminalidade informática, designada de cibercrime, que, sob os prismas do
anonimato e da gigantesca velocidade de divulgação de informações, fazem estimular diversos crimes.
Numa perspetiva jurídica, a aplicabilidade do Direito Positivo à sociedade de informação
levantou, desde sempre, diversos problemas de competência territorial, de ausência de previsão legal e
de serviços dificilmente enquadráveis nos diplomas legais existentes (Venâncio, 2022), pelo que, deste
modo, se deverá definir uma temática tão complexa como é o cibercrime.
Procurando definir cibercriminalidade, importa salientar que não existe consenso doutrinal quanto
à sua definição e tipologia. Uma das entidades que mais tem vindo a estudar e classificar este tipo de
crimes é a Comissão Europeia (2007)1, encarando o cibercrime como sendo referente a todos os atos
criminosos praticados com recurso a redes comunicacionais eletrónicas e sistemas de informação ou
contra este tipo de redes ou sistemas, acrescentando também que o cibercrime envolve ainda os crimes
de cariz convencional, que sejam realizados por meio ou intermédio de dispositivos eletrônicos ou que
incluam a utilização de alguma ação digital como instrumento para a prática do crime.
A globalização é vista como um agente facilitador dos crimes praticados por meios eletrónicos e,
assim sendo, no mundo e particularmente na europa, têm vindo a ser desenvolvidas diversas fontes
normativas no que respeita à cibercriminalidade, uma vez que, tal como acrescenta Marques Dias
(2012), a diversidade de ordens jurídicas e a respetiva diferente qualificação do ilícito, levam a que à
mesma conduta lesiva sejam aplicadas diferentes sanções ou até que a conduta seja vista como um ilícito
criminal num país e não o seja noutro.
Até ao ano de 2009, Portugal não havia dado cumprimento aos diferentes preceitos de cariz
internacional a que se encontrava vinculado, resultantes do facto de ter assinado, em 23 de novembro de
2001, a Convenção sobre o Cibercrime do Conselho da Europa, que é, ainda hoje, considerada como o
primeiro e mais importante trabalho internacional versando a temática cibercrime. Em 2009, com a
publicação da Lei nº 109/2009 de 15 de setembro, Portugal transpôs para a ordem interna a Decisão-
Quadro nº 2005/222/JAI do Conselho da Europa, relativa a ataques contra sistemas de informação2,
tornando mais clara a aplicação da lei penal portuguesa e a competência dos tribunais nesta matéria.
De acordo com a Procuradoria-Geral da República de Portugal (2022), uma forma de cibercrime
que tem vindo a verificar um aumento significativo em termos de prevalência é o sextortion. Com isto,
até porque são poucas as investigações que versam sobre o regime deste crime, é deveres relevante
aprofundar o estudo jurídico deste regime, delimitando a sua tipificação e imputação criminal.

3. Sextortion

Muitos têm sido os esforços no combate ao cibercrime, no entanto, a cibercriminalidade tem vindo
a aumentar ao longo dos anos. De acordo com a Procuradoria-Geral da República de Portugal (2022),
crimes como os de divulgação de fotografias e de outras informações pessoais, o de incremento do
discurso de ódio online, o ciberstalking e o sextortion, são dos crimes que mais têm vindo a aumentar a
sua prevalência, nomeadamente nos últimos 5/6 anos.

1 Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho e ao Comité das Regiões. Rumo a uma política geral de luta
contra o cibercrime. In https://eur-lex.europa.eu.
2 Tal como refere o artº 1.º da Lei nº 109/2009 de 15 de setembro.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
132 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Refere a mesma fonte que as denúncias de cibercrime, em sentido amplo, têm vindo a crescer, de
uma forma consistente, desde o ano de 2016. No ano de 2020, as denúncias aumentaram de uma forma
excecional, no entanto, o aumento foi ainda mais expressivo no ano de 2021, revelando que entre os dias
01 de janeiro e 31 de dezembro foram recebidas 1160 denúncias, enquanto no total do ano anterior foram
registadas 544 denúncias, ou seja, de ano para ano, as denúncias têm vindo a duplicar.
Passando a analisar, especificamente, o regime do sextortion, importa, desde já, referir que não
estamos a abordar um crime que seja propriamente novo, dado que os tribunais (nacionais e
internacionais) têm vindo, ao longo dos anos, a analisar processos judiciais que envolvem este tipo de
crime. De acordo com Wittes, Poplin, Jurecic & Spera (2016), há acórdãos internacionais sobre este
crime a partir de 2010, no entanto, tal como referem Patchin & Handuja (2020), a reflexão sobre o
regime de imputação criminal é absolutamente essencial, dado que, apesar do aumento exponencial de
casos de sextortion, alguns deles bastante proeminentes, a atenção do legislador para o assunto não tem
sido significativa, nomeadamente quando comparado com crimes como os de bullying ou de stalking,
embora o impacto do sextortion na vítima possa até ser mais profundo e duradouro.
O sextortion é um termo de origem inglesa, revelando uma conduta que pode ser estudada sob
diversas perspetivas, por ser de interesse de estudo multidisciplinar de distintas áreas, como sejam a
jurídica, a social, a psicológica, entre outras.
Este crime ocorre quando, após a obtenção ou a partilha de conteúdos de natureza sexual, tais
como fotografias ou vídeos, o agente do crime utiliza esses mesmos conteúdos para coagir a vítima, de
modo a obter, por exemplo, vantagem financeira, novos conteúdos íntimos e encontros presenciais com
a vítima (APAV, 2020).
Numa fase inicial3, o ofensor procura a vítima e tenta estabelecer uma relação de confiança com
a mesma, de modo que esta lhe possa facultar ou fornecer conteúdos comprometedores (Wittes, Poplin,
Jurecic & Spera, 2016). As técnicas mais utilizadas passam sempre pela manipulação (através de elogios
permanentes) e persuasão (Açar, 2016; O´Malley & Holt, 2022; Walker & Sleath, 2017), designadas
como grooming online, o qual corresponde a um processo de manipulação e aliciamento. Inicia-se com
uma abordagem não sexual, de modo a convencer a vítima a encontrar-se pessoalmente com o agente
ou a produzir e enviar conteúdos de cariz íntimo.
Pelo exposto, percebe-se que o sextortion corresponde também a uma forma de violência
emocional, em que a vítima vivencia uma enorme ansiedade, apreensão ou medo4. Algumas vítimas de
sextortion mencionam também que revelam sentimentos próximos dos de violação, uma profunda
sensação de perda de controlo sobre a sua própria vida (Sanders, 2017), bem como uma sensação de
isolamento e de desconfiança generalizada em relação aos outros (O´Malley & Holt, 2022; Walker &
Sleath, 2017).

3 Através, por exemplo, do sexting, que consiste no envio e partilha, através de tecnologias de informação e comunicação, de
conteúdos sexuais ou eróticos.
4 Um caso que demonstra o impacto que o sextortion pode evidenciar foi o suicídio de uma adolescente canadiana, que, no ano

de 2012, com apenas 15 anos, foi vítima de extorsão sexual no ciberespaço, fazendo assim realçar alguns aspetos que a
sociedade não tinha valorizado. Esta adolescente, decorrente de uma conversa, através de um chat, com um adulto neerlandês,
mostrou os seus seios depois de ter aliciada. Posteriormente, este adulto ameaçou a vítima, realçando que divulgaria a sua
imagem para que esta realizasse o mesmo tipo de comportamento. Como a jovem não cumpriu as exigências do ofensor, este
cumpriu a ameaça e divulgou a imagem da jovem na internet, o que originou problemas emocionais severos na vítima,
nomeadamente, ansiedade, ataques de pânico e depressão profunda, tendo levado a que a jovem e a sua família mudassem de
residência. Um ano após os factos, a adolescente, que continuava a ser vítima de bullying, cometeu suicídio.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
133

Passando a analisar os fatores de prevalência, importa, desde já, ter em conta que os indicadores
de prevalência relatados são, sem dúvida, escassos quando comparados com os indicadores reais, uma
vez que não são amplos os casos que vivenciam sextortion e os relatam às autoridades competentes, por
vergonha ou por receio de retaliações.
Durante todo o ano de 2021, foram feitas em Portugal 21 denúncias, com exigência de quantias
monetárias para que os conteúdos íntimos não fossem divulgados. Conforme relata a Procuradoria-Geral
da República (2022), este crime ocorreu sobretudo com vítimas que conheceram pessoas desconhecidas
através da internet.
Embora qualquer pessoa possa ser vítima, o sextortion é, sem dúvida, mais prevalente nos
adolescentes e jovens, tal como percebe pela tipologia do crime, por razões de imaturidade e também
pelo maior índice de utilização das novas tecnologias, sendo também manifesto que os sujeitos do sexo
feminino são um alvo bem mais prevalente por parte dos ofensores em comparação com o sexo
masculino5 (O´Malley & Holt, 2022; Patchin & Handuja, 2020).
No que diz respeito à ligação entre o agente e a vítima, há fatores que parecem evidenciar que,
em muitos casos, o agente e a vítima não se conhecem pessoalmente, nem o conteúdo sexual foi
partilhado através de contactos físico e íntimos entre ambos. De acordo com Patchin & Handuja (2020),
a maioria das vítimas relatou serem ofendidas por alguém que conheciam, com quem tinham relações
de confiança, geralmente anteriores parceiros românticos.
Porém, podemos realçar que os casos de sextortion também são bastante prevalentes quando já
existe uma relação anterior entre a vítima e o agente do crime, que pode passar por antigos parceiros
sexuais ou amigos separados.
Tendo em conta este facto, em 2018, Portugal promulgou a Lei n.º 44/2018, de 9 de agosto, a qual
reforça a proteção jurídico-penal da intimidade da vida privada na internet, procedendo à alteração dos
artº 152.º/2 do Código Penal Português, referente ao crime de violência doméstica, expressando, na sua
alínea b), a punição com pena de prisão6 para quem difundir através da internet ou de outros meios de
difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade
da vida privada das vítimas sem o seu consentimento.
Em termos gerais, os fatores que potenciam a vulnerabilidade e o risco de ser vítima sexual na
internet passam pela insuficiência de conhecimento e consciencialização dos riscos associados à
internet, as quais fazem, por exemplo, com que se forneçam informações e conteúdos verdadeiramente
privados (Wittes, Poplin, Jurecic & Spera, 2016).
O aumento da prevalência de casos e as pesquisas mais recentes têm contribuído para uma
melhoria da situação através de métodos padronizados de avaliação e gestão dos riscos do sextortion
(Wittes, Poplin, Jurecic & Spera, 2016), procurando proteger bens jurídicos absolutos como sendo, entre
outros, direitos individuais, integridade física e reserva e intimidade da vida privada.

5 Por isso, é tão importante o estabelecimento da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência
contra as Mulheres e a Violência Doméstica, conhecida como Convenção de Istambul. Portugal foi o primeiro membro da
União Europeia a aderir a esta convenção, entrando em vigor no ano de 2014. De acordo com o expressamente previsto, nesta
convenção, a violência contra as mulheres consiste na violação dos direitos humanos e é uma força de discriminação contra as
mulheres, abrangendo todos os atos de violência de género que resultem, ou possam resultar, em danos físicos, sexuais,
psicológicos, entre outros.
6 Pena de prisão de dois a cinco anos.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
134 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

O recurso a ferramentas mais complexas tem vindo a auxiliar os especialistas a avaliar e a


monitorizar o risco. Paralelamente algumas mudanças fundamentais podem ser encorajadas através da
educação, no sentido de reconhecer e denunciar atos que envolvam a devassa da vida privada através da
partilha de informações íntimas das vítimas, identificando este comportamento como algo sério, levando
também os possíveis perpetradores a reconhecerem a natureza inaceitável e as consequências de suas
ações (Wittes, Poplin, Jurecic & Spera, 2016).
O mais incompreensível de tudo o que envolve o sextortion é que, não raras vezes, o móbil do
crime nem é propriamente, em si, a questão sexual, mas sim o sentimento de posse e de controlo que um
procura exercer sobre o outro, a imposição de manutenção num relacionamento que não é desejado ou
até mesmo a questão financeira, com o objetivo de obtenção de ganhos pessoais (Açar, 2016).
No plano técnico-jurídico, como se percebe, o sextortion possui vínculos estreitos com outras
tipologias de crimes, pelo que é relevante delimitar a sua imputação, uma vez que não é incomum a
existência de uma ténue diferenciação do sextortion com outros crimes. De acordo com O´Malley &
Holt (2022), embora o método utilizado e algumas das razões que estão na base e estimulam o sextortion
sejam semelhantes a outros tipos de cibercrimes de natureza interpessoal, ele difere desses mesmos
crimes, cuja imputação criminal é diversa, como são os casos do revenge porn, da chantagem sexual no
trabalho e da gravação e fotografias ilícitas.
O sextortion é um crime de abuso sexual, no entanto, este tipo de crime é diferente de outros tipos
de abuso sexual baseados em imagens, tal como o revenge porn. No sextortion, as imagens são,
normalmente, enviadas ao agente com o consentimento das vítimas, no entanto, posteriormente, elas
serão distribuídas sem o seu consentimento caso não obtenha os benefícios que pretende. No crime de
revenge porn7, o agente, como forma de retaliação, publica imagens da vítima no ciberespaço, sem
autorização da vítima e sem que com isso procure obter benefícios (Wittes, Poplin, Jurecic & Spera,
2016).
A imputação é também diferenciada do crime de gravação e fotografias ilícitas (previsto e punido
pelo artº 199.º do Código Penal Português), dado que no sextortion as imagens são enviadas com
conhecimento e assentimento da vítima, enquanto no crime de gravação e fotografias ilícitas não há
consentimento para a gravação.
O sextortion está próximo também do crime de assédio (crime que não está tipificado como crime
autónomo no Código Penal Português, sendo correspondente ao crime de importunação sexual, previsto
e punido pelo artº 170.º do Código Penal). Segundo a APAV (2020), o assédio poderá ser definido como
qualquer comportamento indesejado praticado com algum grau de reiteração, que tem como objetivo
afetar a integridade física e/ou psicológica de uma pessoa ou criar um ambiente intimidatório, hostil,
humilhante, ofensivo e desestabilizador. Ocorre quando os referidos comportamentos indesejados de
natureza verbal ou física revestem caráter sexual (por exemplo, convites de teor sexual, envio de
mensagens de teor sexual, tentativa de contacto físico constrangedor, chantagem para obtenção de
emprego ou progressão laboral, em troca de favores sexuais e gestos obscenos). Está expressamente
previsto no Código do Trabalho Português, enquanto assédio sexual laboral (chantagem sexual no

7Também referida na doutrina como “pornografia da vingança”, “cyber rape” ou “involuntary porn”. Ocorre quando existe
uma quebra da confiança e de sigilo entre a vítima e o agente do crime, que divulga as imagens sem a autorização da primeira.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
135

trabalho - previsto e punido pelo artº 29.º do Código do Trabalho8), o qual se insere na prática criminosa
em que o agente, com promessas de progressão na carreira, de denegação de progressão na carreira ou
ameaça de despedimento, compele a vítima a praticar relações sexuais (Açar, 2016). O assédio sexual
laboral é caracterizado pelo uso abusivo de poder e transforma o local de trabalho num lugar vulnerável
socialmente devido às relações de dependência que são criadas e mantidas por aqueles que beneficiam.
Na nossa apreciação, um dos casos de imputação doutrinal errada do crime de sextortion são os
autores Sundström & Wängnerud (2021), que consideram que este crime corresponde a uma forma de
exploração sexual que ocorre quando pessoas de autoridade procuram extorquir a vítima com favores
sexuais em troca de algo. Em nosso entender, parece-nos absolutamente evidente que a imputação do
crime está deveras incorreta, correspondendo este ao crime de chantagem sexual no trabalho.
Convém realçar que o sextortion possui ainda alguns vínculos com outros tipos de crimes, como
sejam os crimes de ameaça (previsto e punido pelo artº 153.º do Código Penal Português), de coação
(previsto e punido pelo artº 154.º do Código Penal Português) e de coação sexual (previsto e punido
pelo artº 163.º do Código Penal Português).
Deste modo, após a diferenciação do regime do sextortion com outros crimes, na conceção de
Açar (2016), é relevante destacar três fundamentos distintivos na imputação deste crime: o ciberespaço
(não é necessário que ocorra uma interação física - presencial - entre o ofensor e a vítima), a posse (o
ofensor está na posse autorizada de imagens privadas da vítima) e a extorsão (o ofensor força a vítima
a praticar certos atos com base na ameaça de publicação dessas mesmas imagens).
É uma relação de poder e de controle que o ofensor exerce sobre a vítima, como seja, por exemplo,
a incerteza de divulgação de imagens, cria medo e desespero para a vítima (O´Malley & Holt, 2022).
Conforme referem Wittes, Poplin, Jurecic & Spera (2016), através do ciberespaço, o agente não tem de
estar no mesmo país da vítima para a ameaçar sexualmente. Tal como refere Açar (2016), o desequilíbrio
de poder existente entre o ofensor e a vítima após o ofensor ter na sua posse conteúdo íntimo, faz com
que a vítima se torne extremamente vulnerável a ameaças e a chantagem.
O elemento mais importante do sextortion é que, após estar na posse autorizada de imagens, o
ofensor usa essas mesmas imagens para ameaçar as vítimas e forçar o cumprimento de determinados
tipos de comportamentos.
Portanto, partindo de uma imputação stricto sensu, relevam-se os seguintes elementos
fundamentais que permitem delimitar o regime de imputabilidade do crime de sextortion face a outros
crimes, nomeadamente com os supra citados e com os quais apresenta vínculos estreitos: posse
autorizada das imagens da vítima e, através da ameaça de partilha das mesmas no ciberespaço, procurar
obter vantagem financeira, novos conteúdos íntimos e encontros presenciais.

8 Refere o artº: 1 - É proibida a prática de assédio; 2 - Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o
baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação
profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente
intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador; 3 - Constitui assédio sexual o comportamento indesejado de
carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito referido no número anterior; 4 - A prática de
assédio confere à vítima o direito de indemnização, aplicando-se o disposto no artigo anterior; 5 - A prática de assédio constitui
contraordenação muito grave, sem prejuízo da eventual responsabilidade penal prevista nos termos da lei; 6 - O denunciante e
as testemunhas por si indicadas não podem ser sancionados disciplinarmente, a menos que atuem com dolo, com base em
declarações ou factos constantes dos autos de processo, judicial ou contraordenacional, desencadeado por assédio até decisão
final, transitada em julgado, sem prejuízo do exercício do direito ao contraditório.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
136 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Realce-se que a ausência de qualquer uma destas premissas, impede a imputação criminal do
sextortion, podendo, ainda assim, constituir um delito diferente.

4. Imputação criminal do sextortion

O princípio da legalidade (artº 29.º da Constituição da República Portuguesa e artº 1.º do Código
Penal Português) defende que apenas é crime o que a lei tipifica como tal, correspondendo o crime, num
sentido formalístico, à conduta típica, ilícita, culposa e punível. Deste modo, será seguidamente
analisado, o regime de imputação do crime de sextortion, de modo a procurar promover coerência na
sua imputação nacional e internacional.
Começando por analisar a conduta, seja esta por ação ou por omissão, apresenta como requisitos
obrigatórios que a mesma se trate de um comportamento humano e voluntário, o que exclui da ação os
simples e puros atos reflexos ou os atos cometidos num estado de inconsciência ou realizados sob um
impulso de forças irresistíveis (artº 10.º do Código Penal Português)9.
No crime de sextortion, este apenas pode ser cometido por ação, em que há uma vontade, enquanto
intenção de praticar o facto. Para Figueiredo Dias (2011), no âmbito do conceito baseado na teoria geral
do crime, o conceito normativo-social de ação pode ser encarado como o suporte de todo o sistema do
facto punível, já que este conceito de ação desempenha uma função de exclusão, segundo a qual se
excluem todos os factos que não devam ser considerados jurídico-penalmente relevantes e que, por esse
motivo, não são objeto de tipificação penal, selecionando apenas aqueles comportamentos socialmente
inadequados, os quais, pelo seu maior dano social, devem ser tipificadas criminalmente em função do
valor do bem jurídico e da gravidade da conduta10.
Abordando a matéria da tipicidade, relembre-se que o tipo diz respeito à ligação do crime à
discrição da conduta proibida, o que acaba por ser uma função de garantia do cidadão, ao cumprir o
princípio da legalidade penal e relevando a função político-criminal de proteção dos bens jurídicos.
A conduta típica será sempre aquela que lese ou coloque em perigo os bens jurídicos considerados
fundamentais para a sociedade, seja por desvalor da ação11 ou seja por desvalor do resultado, sendo que
a primeira compreende o conjunto de elementos subjetivos que conformam o tipo de ilícito e o tipo de
culpa, enquanto que a segunda compreende a criação de um estado juridicamente desaprovado e, assim,
o conjunto de elementos objetivos do tipo de ilícito que configuram o delito (Figueiredo Dias, 2011).
Entendendo-se a subsunção como a verificação da correspondência entre a factualidade e a
previsão legal, a tipificação do sextortion subsume-se aos crimes de devassa por meio de informática
(que tipifica um crime contra a reserva e intimidade da vida privada - previsto e punido pelo artº 193.º

9 De acordo com Simas-Santos & Leal-Henriques (2018), a conduta depende de 4 componentes: a vontade, enquanto intenção
de praticar o facto; a atividade, que corresponde à ação propriamente dita; o resultado, como consequência material da ação; e
o nexo causal, que diz respeito ao nexo de causalidade entre a conduta e o resultado.
10 A conduta é, portanto, o conceito base de qualquer modalidade de crime (por ação ou por omissão; por dolo ou por

negligência), suscetível de qualificações jurídico-penais da típicas, ilícitas e culposas.


11 A relevância do desvalor da ação foi muito enfatizada pelas teorias finalistas, ou seja, se a finalidade da ação - ação final -

constitui o elemento essencial da ação, então ela tem de ser o fator integrante do tipo e do ilícito, designando-se de ilícito
pessoal.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
137

do Código Penal Português) e de extorsão (que tipifica um crime contra o património - previsto e punido
pelo artº 223.º do Código Penal Português).
O artº 193.º do Código Penal, relativo à tipificação do crime de devassa por meio de informática,
menciona que aquele agente que criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados
individualmente identificáveis e referentes à vida privada, é punido. Neste tipo de crime, ao contrário
do que acontece com a devassa da vida privada, trata-se de um crime público, pelo que, o procedimento
criminal não depende da apresentação de queixa nem da dedução de acusação particular.
O artigo 223.º, referente ao crime de extorsão, tipifica como crime quem, com intenção de
conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de
violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para
outrem, prejuízo. O procedimento judicial não está dependente de queixa.
Refere um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que o crime de extorsão, em termos de
dogmática jurídica, pode bem ser denominado como um crime de coação qualificado12. Caracteriza-se
como um crime híbrido com um significado pluriofensivo, uma vez que protege, simultaneamente, bens
jurídicos distintos, designadamente o património e a liberdade. A ação típica corresponde a uma conduta
de constrangimento de outra pessoa, através da ameaça com um mal importante, que tem como seu
objeto um ato de disposição patrimonial13.
Devido à facilidade e enorme amplitude e rapidez de divulgação de conteúdos, a devassa por meio
de informática e a extorsão, traduzem-se num método convencional utilizado pelos ofensores, em geral,
que atuam no âmbito do cibercrime. A extorsão ocorre quando o ofensor se encontra na posse -
autorizada - de conteúdos íntimos e constrangedoras da vítima e, consequentemente, utiliza esses
mesmos conteúdos para coagir e chantagear a vítima de obter vantagem financeira, novos conteúdos
íntimos e encontros presenciais com a vítima.
A tipicidade corresponde à divulgação ilícita das imagens e não no acesso, uma vez que essas
mesmas imagens são disponibilizadas pela vítima, mas o uso indevido que o agente do crime vai fazer
com elas é que constitui o ato ilícito.
Deste modo, em termos de ilicitude, começaremos por abordar a ilicitude objetiva. Analisando o
bem jurídico, importa desde logo referir que um bem jurídico manifesta algo que o Direito considera
relevante e, desse modo, pretende proteger. A expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade,
na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e
por isso juridicamente reconhecido como valioso. Atendendo a um dos principais princípios
orientadores dos programas político-criminais, que é o princípio da congruência substancial entre a
ordem axiológica constitucional e ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal
(Antunes, 2013), importa dizer que qualquer proteção da lesão do bem jurídico deve ser sempre
enquadrada com próprias finalidades do Direito Penal.
No crime de sextortion, a proteção consiste em garantir aos cidadãos uma vida segura e sem
intromissões alheias na sua esfera privada. Deste modo, o Direito deve proteger Direitos Fundamentais,
previstos e formalmente estabelecidos na Constituição da República Portuguesa, como sejam, entre

12 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. Processo 562/15.8PBCTB.C1 de 13.12.2017.


13 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora. Processo 3/07.4GACVD.E1 de 22.11.2011.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
138 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

outros, a reserva da esfera e intimidade da vida privada (artº 26.º/1) e o Direito à liberdade e à
segurança (artº 27.º).
Relembrando que, quanto ao modo de ofender o bem jurídico, podemos ter crimes de dano, onde
se verifica a lesão efetiva do bem jurídico tutelado pelo tipo, ou os crimes de perigo, em que se bastam
com a colocação em perigo do bem jurídico que a lei pretende proteger. Nesta última categoria, podemos
ainda distinguir os crimes de perigo concreto, que exigem que o bem jurídico tenha sido efetivamente
colocado em perigo; os crimes de perigo abstrato, relativamente aos quais basta a existência de
perigosidade para fundamentar a incriminação, isto porque se parte de uma presunção inilidível de
perigo associado à conduta típica (Figueiredo Dias, 2011). No tipo de crime que é o sextortion,
consideramos que apenas se aceita a imputação enquanto crime de perigo concreto, não se aceitando o
mesmo como um crime de perigo abstrato14 pelo facto de ser necessário fazer prova da adequação da
conduta a lesar o bem.
Avançando para a classificação do tipo legal segundo o critério do resultado material, importa
referir que estes crimes podem ser classificados crimes de resultado, em que o resultado tem que ser um
elemento do ilícito, no qual o tipo ilícito se preenche com a simples execução pelo agente do
comportamento proibido, configurando-se a ameaça de partilha de informações íntimas e a extorsão
como sendo o próprio resultado.
Passando agora à ilicitude subjetiva, relembre-se que os elementos subjetivos do tipo são aqueles
que se referem à dimensão psicológica do agente, ou seja, àquilo que o agente pretendia quando realizou
a sua conduta, ou seja, a ação típica por dolo ou por negligência.
O dolo (artº 14.º do Código Penal Português), enquanto representação e vontade da realização do
facto típico, é o elemento subjetivo que abrange todos os elementos objetivos do tipo. Consiste no
propósito de praticar o facto descrito na lei penal (Simas-Santos & Leal-Henriques, 2018). É composto
por um elemento intelectual ou cognitivo e um elemento volitivo ou emocional. O elemento intelectual
traduz-se na representação que o agente realiza dos elementos objetivos do crime. Tal como refere
Figueiredo Dias (2011), para que exista, é necessário que o agente conheça e represente corretamente
ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objetivo. Por outro lado,
o elemento volitivo consiste na vontade do agente de cometer o facto ou de concretizar os seus efeitos,
ou seja, consiste na vontade dirigida à sua realização.
Atento o exposto, parece óbvio que o crime de sextortion apenas poderá ser cometido com dolo
direito, tal como tem também vindo a ser o enquadramento da jurisprudência15 para estes casos, ou seja,
há sempre a intenção de o agente praticar o crime.

14
Em Portugal, a doutrina tem vindo colocar em causa a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, devido ao facto de
poderem constituir uma tutela excessiva de bem jurídico em causa, colocando em risco não só o princípio da legalidade, mas
também o princípio da culpa. Ainda assim, o Tribunal Constitucional considera que este tipo de crime não são inconstitucionais
quando visam a proteção de bens jurídicos de enorme relevância, quando for possível identificar o bem jurídico tutelado e
quando a conduta típica for descrita de uma forma precisa e minuciosa.
15 Excluindo o dolo eventual e o dolo necessário, na medida em que este tipo de crime pressupõe a lesão efetiva do bem jurídico,

no caso a privacidade ou a intimidade da pessoa humana, onde iniludivelmente se inclui a sua vida sexual, e não o mero pôr
em perigo essa mesma reserva ou intimidade (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Processo 3827/16.8JAPRT.P1 de
06.01.2019)
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
139

Num acórdão do Tribunal da Relação do Porto16 refere-se que a intenção de devassar a vida
privada das pessoas por meio informático, enquanto elemento subjetivo típico, não assume uma
específica autonomia, tendo apenas como efeito prático dizer-nos que este crime só admite o dolo direto.
Um dos princípios basilares do Direito Penal é o princípio nulla poena sine culpa, que estabelece
que não pode haver sanção sem culpa e que a medida da pena não pode nunca ultrapassar a medida da
culpa. Apenas é punível o facto praticado com culpa na forma dolosa, ou nos casos que estejam
especialmente previstos na lei, de negligência.
De acordo com Simas-Santos & Leal-Henriques (2018), a culpa pode ser definida como o juízo
de censura ao agente por ter adotado a conduta que adotou, quando de acordo com o comando legal
estaria obrigado a adotar uma conduta diferente17. A culpa assenta, assim, num juízo de censurabilidade
pessoal. Reprova-se ou condena-se a atitude individual do autor de certa conduta revelada pela forma
como atuou indevidamente ou pela forma como omitiu certa ação devida, na suposição de que lhe era
exigível comportamento inverso ou diverso18.
Tendo em conta o que atrás foi mencionado, é deveras importante realçar que não basta este dolo
psicológico para que o agente seja punido uma vez que este dolo não é uma forma de culpa e sem culpa
não haverá pena. Deste modo, não parecem existir grandes dúvidas de que estamos na presença de um
crime que só pode ser cometido com culpa dolosa, uma vez que o agente representa a sua conduta
sabendo que, ao praticá-la, está a afetar a esfera privada da vítima e, mesmo assim, tem vontade de a
praticar realizando um ato ilícito, manifestando uma atitude de contrária ou verdadeiramente indiferente
ao bem jurídico que tem a necessidade de ser protegido.
Analisando, por fim, a punibilidade, importa relembrar que a pena corresponde à consequência
jurídica do crime, ou seja, pode ser entendida como a consequência jurídica desfavorável pela prática
culposa de um ilícito típico, sendo que o ius puniendi previsto no texto da lei, terá sempre por finalidade
a proteção de bens jurídicos e a possível reintegração do infrator na sociedade19.
Para que haja punibilidade do crime de sextortion, tal como referido anteriormente, é necessária
a coexistência da posse autorizada das imagens e a ameaça de partilha no ciberespaço sem autorização
da vítima como forma de extorsão20.
Tal como referido, a tipificação subsume-se aos tipos legais de devassa da vida privada por meio
informático, através da ameaça de divulgação de fotografias e/ou vídeos, e de extorsão, com animus
lucrandi, ou seja, com o intuito de, assim, obter benefícios. Estamos a falar na punição do agente num
crime unitário e não em concurso de crimes.

16 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Processo 3827/16.8JAPRT.P1 de 06.01.2019.


17 Tendo em conta que a culpa exprime um juízo de valor ético-jurídico sobre o ato do agente, que se baseia na culpa em sentido
lato, mas que não se confina a esta, é necessário acrescentar algo à voluntariedade para que possa haver censura sobre o agente.
Pelo que, a sanção criminal apenas pode fundar-se na constatação de que deve reprovar-se o autor pela formação da vontade
que o conduziu a tomar aquela decisão de facto.
18 Pode ser ainda entendida como a omissão da diligência que seria exigível ao agente, de acordo com o padrão de conduta que

a lei impõe, ou seja, corresponde à censura dirigida ao agente por ter praticado o facto típico e ilícito. Consistindo a culpa na
atitude psicológica do agente relativamente ao facto, a culpa abrange todos os elementos subjetivos do delito (o dolo e a
negligência), traduzindo-se na censura dirigida ao agente por atuar com o conhecimento do facto que está a praticar (culpa
dolosa) ou por estar a atuar sem o devido cuidado (culpa negligente).
19 Materialmente, aquilo que legitima o Direito Penal é a própria manutenção do Estado e da própria sociedade. Portanto, o

Direito Penal só deve intervir quando e onde se torne absolutamente necessário para acautelar a ordem social.
20 A ausência de qualquer um destes componentes, impede a imputação criminal do sextortion.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
140 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

No que respeita à punibilidade do crime de devassa da vida privada por meio informático,
estabelece o artº 193.º do Código Penal Português que é punido com pena de prisão até dois anos ou
com pena de multa até 240 dias, acrescentando o nº 2 do mesmo artigo que a tentativa é punível. Quanto
ao crime de extorsão, transcreve o artº 223.º do Código Penal Português, que o agente é punido com
pena de prisão até cinco anos. O nº 2 refere que se a ameaça consistir na revelação, por meio da
comunicação social, de factos que possam lesar gravemente a reputação da vítima ou de outra pessoa, o
agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.

5. Considerações finais

No século XXI, embora o estudo do sextortion tenha vindo a ser fonte de maior atenção e
investigação no âmbito das ciências jurídico-penais, a tipificação deste crime é, ainda hoje, um grande
desafio para o legislador.
Embora em Portugal, as queixas que envolvem este tipo de crime estejam, manifestamente, a
aumentar, a sua identificação e a sua censura social, continuam não ter o alcance devido, porque se
reconhece - mesmo nos dias de hoje - alguma indiferença social face a esta problemática.
Para uma melhor compreensão e intervenção neste fenómeno, o ponto de partida tem
forçosamente que passar por um conhecimento mais efetivo dos fatores que promovem este tipo de
comportamentos e de qual será a forma mais eficaz de os extinguir, não sendo suficientes meras novas
propostas legislativas. Por tudo isto, levando em consideração as teorias da prevenção geral e especial,
a educação e a literacia informática são fundamentais, não descurando a perfil de análise do ofensor e
do seu grau de perigosidade.
Refletindo sobre a punibilidade, no processo de determinação da pena, devem ser tidos em conta
os requisitos da culpa do agente, mas também os da prevenção e de reação, enquanto critério geral de
regulação da medida da pena. Em termos substantivos, a moldura penal para este crime é manifestamente
pequena, quando se percebe que o impacto na vítima é enorme, havendo casos em que o impacto persiste
para toda a vida. Por outro lado, em termos adjetivos, podemos encontrar uma tipologia jurídica que
assenta na proteção da vítima que passa, globalmente, por medidas de coação ao ofensor, ainda assim,
poder-se-ia colocar a questão de qual o real impacto que uma medida, como por exemplo, a de proibição
de contacto com a vítima, uma vez que este crime não implica sequer contacto pessoal entre agente e
vítima.
Por fim, conforme acontece com a generalidade dos crimes cometidos no ciberespaço, há que ter
em conta dois aspetos fundamentais. Primeiro, o problema da prova, que, devido à sua natureza volátil,
nem sempre é fácil aceder à prova digital. Segundo, os problemas de articulação legal entre a legislação
nacional (por exemplo, Código de Processo Penal e Lei do Cibercrime) e a internacional, resultando,
tudo isto, em alguma incerteza e insegurança jurídicas.

6. Referências bibliográficas

AÇAR, K. V. (2016). Sexual extorsion of children in cyberspace. International Journal of Cyber Criminology,
10 (2), 110-126.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
141

ANTUNES, M. J. (2013). Consequências Jurídicas do Crime. 1ª edição. Coimbra: Coimbra Editora.


APAV. Associação Portuguesa de Apoio a Vítima. (2020). Violência Sexual Online.
https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/FI_VSCPA_2020.pdf. Acedido em 18.03.2022.
COMISSÃO EUROPEIA. (2007). Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho e ao
Comité das Regiões. Rumo a uma política geral de luta contra o cibercrime. In https://eur-lex.europa.eu.
CONDE CORREIA, J. (2020). Prova digital: enquadramento legal. In Cibercriminalidade e prova digital.
Jurisdição penal e processual penal, 23-37. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários.
EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. (2014). Violence against women: Na EU-
Wide Survey. Luxembourg; Publications Office of the European Union.
FIGUEIREDO DIAS, J. (2011). Direito Penal Português: Parte Geral II. As Consequências Jurídicas do Crime.
2ª reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora.
KOPECKÝ, K., HEJSEK, L., KUSÁ, J. MAREŠOVÁ, H. & ŘEŘICHOVÁ, V. (2015). Specifics of children
communication and online agressor within the online assaults on children (analysis of selected utterances). In
SGEMS2015 Conference Proceedings, 195-202.
IRELAND, J., BIRCH, P. & IRELAND, C.A. (2018). The Routledge International Handbook of Human
Agression: Current Issues and Perpectives. New York: Routledge.
MARQUES DIAS, V. (2012). A problemática da investigação do cibercrime. Data Venia, Revista Jurídica
Digital, 1 (1), 63-88.
MELO ALEXANDRINO, J. (2007). Direitos Fundamentais. 2ª edição. Revista e Atualizada. Cascais: Edições
Princípia.
MIRANDA RODRIGUES, A. (2014). A determinação da medida da pena privativa da liberdade: os critérios da
culpa e da prevenção. 1ª edição. Coimbra: Coimbra Editora.
OFFICE FOR NATIONAL STATISTICS. (2016). Compendium: Intimate Personal Violence and Partner Abuse.
London: Office of National Statistics.
O´MALLEY, R. & HOLT, K. (2022). Cyber Sextortion: An Exploratory Analysis of Different Perpetrators
Engaging in a Similar Crime. Journal of Interpersonal Violence. 37 (1-2), 258-283.
PATCHIN, J. W. & HINDUJA, S. (2020). Sextortion Among Adolescents: Results From a National Survey of
U.S. Youth. Sexual Abuse. A Journal of Research and Treatment, 32 (1), 30-54.
PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA. (2022). Cibercrime: denúncias recebidas. Lisboa: Ministério
Público de Portugal.
RAMALHO, J. (2022). Prova digital: articulação entre o Código Processual Penal Português e a Lei do
Cibercrime. Revista Eletrónica Direito Penal e Política Criminal, 10 (2), pp. 7-20.
RAMALHO, J. & RAMALHO, S. (2023). Sextortion: nova prática de cibercrime. Emergência(s) na pesquisa
sobre a violência e o crime. Sani, A. & Araújo, D. (Org). pp. 113-127. Belo Horizonte: Conhecimento
Editora.
RODRIGUES NUNES, D. (2020). Os crimes previstos na lei do cibercrime. Lisboa: Editora Gestlegal.
RODRIGUES NUNES, D. (2021). Os meios de obtenção de prova previstos na lei do cibercrime. Revista e
atualizada. Lisboa: Editora Gestlegal.
SANDERS, T. (2017). The Oxford Handbook of Sex Offences and Sex Offenders. New York: Oxford University
Press.
SILVA, T. M., TEIXEIRA, T. & FREITAS, S. M. (2015). Ciberespaço: uma nova configuração do ser no mundo.
Psicologia em Revista, 21 (1), 176-196.
SIMAS-SANTOS, M. & LEAL-HENRIQUES, M. (2018). Noções de Direito Penal. 6ª edição. Porto: Editora
Rei dos Livros.
SUNDSTRÖM, A. & WÄNGNERUD, L. (2021). Sexual forms of corruption and sextortion How to expand
research in a sensitive area. Gothenburg: The Quality of Government Institute.
VENÂNCIO, P. D. (2022). Lições de Direito do Cibercrime. E da tutela penal de dados pessoais. Coimbra:
Editora D´ideias.
VENÂNCIO, P. D. (2011). Lei do Cibercrime: anotada e comentada. Coimbra: Coimbra Editora.
WITTES, B., POPLIN, C., JURECIC, Q. & SPERA, C. (2016). Sextortion: Cybersecurity, teenagers, and
remote sexual assault. Washington, DC: Center for technology innovation at Brooking.

JURISPRUDÊNCIA
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora. Processo 2034/19.2T8PTM.E1 de 04.06.2020.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Processo 3827/16.8JAPRT.P1 de 06.01.2019.
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. Processo 562/15.8PBCTB.C1 de 13.12.2017.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
142 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora. Processo 648/14.6GCFAR-A.E1 de 20.01.2015.


Acórdão do Tribunal da Relação de Évora. Processo 3/07.4GACVD.E1 de 22.11.2011.

Recebido: 07/03/2023
Aprovado: 28/08/2023
143
Caso Jesuitas: justicia universal,
coautoría conjunta mediata en aparatos
organizados de poder, terrorismo
desde el Estado y prueba*

Jesuits case: universal justice, indirect co-perpetration in organized


structures of power, terrorism from the State and evidence.

Manuel Ollé Sesé


Abogado, Madrid. Profesor Asociado,
Univ. Complutense de Madrid, España. Acred.. Prof. Titular.

Manuel Cancio Meliá


Catedrático de Derecho Penal. Universidad Autónoma
de Madrid, España. Patrono de la FICP.

Resumen: La Sentencia de la Audiencia Nacional en el caso Jesuitas plantea cuestiones jurídicas


relevantes. En este trabajo se analiza la jurisdicción de los Tribunales españoles para la investigación y
enjuiciamiento de los hechos, bajo el principio de jurisdicción universal, y la incidencia de la reforma de
este principio. Abordamos el principio de especialidad extradicional y como éste limita el enjuiciamiento
de determinados delitos. Desarrollamos el terrorismo cometido desde el Estado y su encaje jurídico.
Determinamos que el interviniente cometió los hechos en coautoría conjunta mediata en aparatos
organizados de poder. Y nos referimos sintéticamente a la incidencia en los procedimientos judiciales
penales de la cosa juzgada fraudulenta, de las comisiones de la verdad, de las periciales de inteligencias no
policiales y de la importancia de la acusación popular en este tipo de procedimiento.

Palabras clave: Aparatos organizados de poder, Coautoría mediata, Comisión de la verdad, Conflicto
armado no internacional, Criminalidad estatal.

Abstract: The Judgment of the Audiencia Nacional in the Jesuitas case raises relevant legal
questions. This paper analyzes the jurisdiction of the Spanish courts to investigate and prosecute
the facts, under the principle of universal jurisdiction, and the impact of the reform of this
principle. We address the principle of extraditional specialty and how it limits the prosecution of
certain crimes. We develop terrorism committed by the State and its legal framework. We
determined that the intervener committed the acts in indirect co-perpetration in organized
structures of power. And we refer synthetically to the incidence in criminal judicial proceedings
of fraudulent res judicata, truth commissions, non-police intelligence experts and the importance
of the popular accusation in this type of procedure.

Keywords: Organized apparatuses of power, indirect co-perpetration, Truth Commission, Non-


international armed conflict, State criminality.

* Artículo publicado originalmente en La Ley Penal, 146, 2020, bajo el mismo título.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
144 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

1. Introducción

El 11 de septiembre de 2020, la Sección 2.ª de la Sala de lo Penal de la Audiencia Nacional dictó


una Sentencia por la que condenaba al ex coronel del ejército salvadoreño y ex viceministro de defensa
de El Salvador, Inocencio Orlando Montano Morales, como «responsable en concepto de autor, de cinco
asesinatos de carácter terrorista»1. Esta Sentencia fue el broche jurídico a un procedimiento judicial
penal iniciado en España en el año 2008, gracias al principio de jurisdicción universal2.
La Sentencia en la que se enjuiciaba al citado coronel Montano, como uno de los responsables del
asesinato de seis padres jesuitas y dos mujeres en El Salvador, la madrugada del 16 de noviembre de
1989, resuelve interesantes cuestiones jurídicas, algunas de ellas inéditas, hasta el momento, en la
doctrina jurisprudencial española. De esta forma, la Sentencia se convierte, en esos novedosos aspectos
jurídicos, en un leading case, que pasa a formar parte del necesario diálogo interjurisdiccional horizontal,
con otras jurisdicciones nacionales; y vertical, con Tribunales internacionales y de derechos humanos,
en materia de crímenes internacionales cometidos desde el Estado. También sus razonamientos jurídicos
pasan a ser ingredientes esenciales para el debate doctrinal y servirán de herramienta jurídica a
organismos internacionales universales y regionales de defensa de los derechos humanos.
El denominado caso Jesuitas ha planteado, desde su incoación, en el año 20083, complejos
problemas jurídicos. Como ejemplo de ello, podemos citar la afección al procedimiento de las dos
reformas operadas, por la Ley Orgánica 1/20094 y, especialmente, por la Ley Orgánica 1/20145, en el
artículo 23.4 de la Ley Orgánica del Poder Judicial6 (en adelante, LOPJ), que restringían
considerablemente la aplicación del principio de jurisdicción universal en España7; la denegación de las
demandas extradicionales de los procesados salvadoreños, por parte del El Salvador, con el consiguiente
incumplimiento de las obligaciones internacionales aut dedere aut iudicare; la condición impuesta por
los Estados Unidos de América (en adelante, EE.UU.) para enjuiciar al coronel Montano, cuando
accedió a la extradición activa solicitada por España, al limitar su enjuiciamiento a asesinatos terroristas
y sólo por las cinco víctimas de nacionalidad española; la vigencia de la Ley de Amnistía; o la posible
existencia de cosa juzgada por la firmeza de las Sentencias dictadas en el procedimiento judicial seguido
en El Salvador por los mismos hechos.

1 Sentencia 17/2020, de 11 de noviembre, Rollo de Sala: 4/2015, Sumario 97/2010, procedente del Juzgado de Instrucción
número 6, dictada por los magistrados José Antonio Mora Alarcón, Fernando Andreu Merelles y María Fernanda García Pérez,
siendo el primero el Presidente del Tribunal y el segundo el ponente de la sentencia. En el momento de cerrar este artículo la
sentencia no es firme. El Ministerio Fiscal estuvo representado, desde la incoación del procedimiento hasta su finalización, por
la fiscal Teresa Sandoval Altelarrea.
2 Dos acusaciones populares, entre ellas la Asociación Pro Derechos Humanos de España, interpusieron querella criminal contra

los presuntos autores del asesinato de seis sacerdotes jesuitas y dos mujeres, la noche del 15 al 16 de noviembre de 1989.
Posteriormente, se personaron en la causa, en la misma calidad de acusación popular, la Asociación de Antiguos Alumnos del
Colegio San José de la Compañía de Jesús de Valencia; y, como acusación particular, familiares de uno de los padres jesuitas
asesinados.
3
Ante el Juzgado Central de Instrucción número 6, de la Audiencia Nacional, siendo instruido por el magistrado Eloy Velasco
Muñoz y, en la etapa final de la investigación judicial, por Manuel García Castellón.
4 Ley Orgánica 1/2009, de 3 de noviembre, complementaria de la Ley de reforma de la legislación procesal para la implantación

de la nueva Oficina judicial, por la que se modifica la Ley Orgánica 6/1985, de 1 de julio, del Poder Judicial.
5 Ley Orgánica 1/2014, de 13 de marzo, de modificación de la Ley Orgánica 6/1985, de 1 de julio, del Poder Judicial, relativa

a la justicia universal.
6 Ley Orgánica 6/1985, de 1 de julio, del Poder Judicial.
7 Sobre la evolución legislativa del principio universal, v. OLLÉ SESÉ, M., Crimen internacional y jurisdicción penal nacional:

de la justicia universal a la jurisdicción penal interestatal, Thomson Reuters, Aranzadi, Cizur Menor, 2019, pp. 165-206.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
145

Los aspectos principales pivotaron, por un lado, sobre la atribución jurisdiccional a España del
enjuiciamiento de hechos cometidos fuera de nuestras fronteras (principio de jurisdicción universal). Y,
por otro, sobre determinar realmente la autoría del asesinato de las ocho víctimas, el marco estatal o no
y el contexto en el que se produjeron. Era indiscutible que los crímenes los ejecutaron materialmente
miembros de las fuerzas armadas salvadoreñas (el batallón Atlacatl). Se conocía la identidad del oficial
militar que impartió a este batallón la orden de eliminar a Ellacuría sin dejar testigos. Se sabía la
identidad de todos los militares que participaron en el operativo criminal de la madrugada del 16 de
noviembre de 1989 y que ejecutaron a los padres jesuitas, a Elba y a Celina. Se desconocía, sin embargo,
quiénes idearon, deliberaron y decidieron ejecutar ese plan criminal y si fue iniciado y ejecutado dentro
de la estructura estatal del Alto Mando Militar. Y había que determinar si el viceministro de defensa, el
coronel Montano, fue autor de esos hechos.
La Sentencia, en una extensa motivación jurídica, desgrana los elementos probatorios y su aptitud
de validez para que los hechos alcancen la autoridad de hechos probados. Destaca el análisis que efectúa
de la prueba directa, indiciaria y de referencia8. También el valor probatorio que la Sentencia otorga a la
Comisión de la Verdad de Naciones Unidas sobre El Salvador9 y a los dictámenes de la Comisión
Interamericana de Derechos Humanos10 Igualmente es relevante la naturaleza jurídica de periciales de
inteligencia que concede a dos pericias elaboradas por autoridades académicas11. En el terreno sustantivo
penal, el Tribunal no albergó duda alguna en declarar probado que los hechos de enjuiciamiento se
enmarcan en un contexto de conflicto armado no internacional. Calificó la conducta de Montano como
delitos de asesinato de carácter terrorista: concurso ideal de delitos entre los artículos 406 (asesinato) y
174 bis b) (terrorismo), del Código Penal de 1973, al resultar más favorable para el ya condenado12.
Aplica, en materia de intervención punible, por primera vez en España, la coautoría mediata en aparatos
organizados de poder, para encuadrar la contribución a la ejecución delictiva del coronel y viceministro
Montano en los hechos13. Explica —a pesar de declarar probado que Montano fue coautor del
asesinato terrorista de las ocho víctimas, incluidas las tres de nacionalidad salvadoreña— por qué, ante
las exigencias extradicionales de EE.UU., sólo condena por asesinato terrorista respecto de las cinco
víctimas de nacionalidad española14.
Igualmente, la Sentencia destaca la conducta de encubrimiento de las autoridades de El Salvador
para sustraer de la responsabilidad penal a los intervinientes en los hechos y declara que se vulneraron
los estándares internacionales del proceso debido en el procedimiento judicial celebrado en el Salvador15.
Y concluye con la relevancia del papel desempeñado por la acusación popular en el procedimiento16.

8 Sentencia, fundamento jurídico (en adelante, FJ) octavo.


9 Sentencia, FJ octavo, 11º.
10 Sentencia, FJ octavo, 12º.
11 Sentencia FJ octavo, 10º.
12 Sentencia, FJ tercero a séptimo.
13 Sentencia, FJ noveno. Tenía razón la catedrática Alicia GIL cuando en 2008 vaticinó que si seguían adelante los procesos

iniciados en España por crímenes internacionales «quizá en un futuro […] la autoría mediata por aparatos de poder empiece a
aplicarse». V. GIL GIL, A., La autoría mediata por aparatos jerarquizados de poder en la jurisprudencia española, ADPCP,
2008, p. 84. En este trabajo GIL analiza por qué la jurisprudencia de nuestro país no aplicaba la autoría mediata por aparatos
organizados de poder jerarquizados —lo que no significaba que lo rechazaran— y sí, dependiendo de los casos, los responsables
penales de hechos semejantes eran considerados como coautores, inductores o cooperadores necesarios. Apunta también la
profesora GIL como posible alternativa, también inédita, si concurren los elementos de esta figura, la aplicación de la
responsabilidad del superior.
14 Sentencia, FJ tercero.
15 Sentencia Hecho Probado (en adelante, HP) duodécimo y FJ octavo.
16 Sentencia, FJ décimo tercero.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
146 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Los hechos probados y los fundamentos jurídicos de esta Sentencia nos sugieren diferentes ideas
relacionadas con el Derecho penal internacional, con el Derecho penal y con el Derecho procesal penal,
lo que plantea interesantes interacciones entre el Derecho penal internacional y el nacional, cuando
crímenes de esta naturaleza se enjuician en Tribunales nacionales17. Por lógicas razones de espacio en
los apartados que siguen, plasmaremos algunas de esas ideas —otras se quedarán en el tintero— con las
que trataremos de analizar concretos aspectos adjetivos y sustantivos de la criminalidad estatal y de los
crímenes internacionales. No obstante, y antes de ello, dejamos apuntadas telegráficamente algunas de
ellas, que consideramos relevantes.

2. Cosa juzgada fraudulenta, comisión de la verdad, informes de inteligencia y acusación


popular

A continuación nos referiremos, a modo de bosquejo, a resaltar la importancia de la sentencia


respecto de cuatro temas jurídicos relevantes: cosa juzgada fraudulenta, comisión de la verdad, informes
de inteligencia y acusación popular.
En primer lugar, la Sentencia reprocha la conducta de las autoridades salvadoreñas de la época
para garantizar la impunidad de los verdaderos autores de los hechos, así como la vulneración del
derecho al proceso debido en el juicio seguido en ese país centroamericano, al impedir una investigación
acorde con el proceso justo y cerrar fraudulentamente, con ese propósito, el procedimiento judicial.
Antes del juicio oral, el Tribunal Supremo español, por Auto de 20 de abril de 2015, contestaba a la
exposición razonada que el Magistrado instructor le había planteado —para que determinara «si las
actuaciones que en su día se siguieron para el enjuiciamiento de los hechos en el Salvador fueron
fraudulentas o incompletas»18— declarando que el proceso salvadoreño «no garantizó el castigo efectivo
de sus responsables, sino que, por el contrario, pudo tratar de sustraerlos a la acción de la justicia», ante
la «ausencia de las garantías necesarias de independencia e imparcialidad»19. En definitiva, estamos en
presencia de la denominada cosa juzgada fraudulenta20, y, por tanto, carente de efectos en el
procedimiento judicial español.
En segundo lugar, el Tribunal sentenciador acepta como prueba hábil los resultados de la referida
Comisión de la verdad21. La Sentencia destaca cómo la Comisión de la Verdad para El Salvador22,
creada en el marco de las Naciones Unidas, investigó los graves hechos ocurridos en ese país desde 1980

17 V. OLLÉ SESÉ, M., La aplicación del Derecho penal internacional por los tribunales nacionales, en: Gil Gil, A. /Maculan,
E. (dirs.), Derecho penal internacional, 2.ª ed., Dykinson, Madrid, 2019, pp. 145-173.
18 En este escrito, de 22 de diciembre de 2014 —y remitido a la Sala Segunda del Tribunal Supremo por imperativo del artículo

23.5 LOPJ—, el Magistrado Velasco argumentaba y enumeraba con evidencias lo que a su entender, de acuerdo con lo
mantenido por las acusaciones, fue una «inefectiva justicia», «simulación de procedimiento penal» o un «fraude».
19 V. Sentencia HP duodécimo y FJ octavo.
20 V. un estudio sobre la misma en HORMAZÁBAL MALARÉE, H., Interdicción de la impunidad y cosa juzgada fraudulenta

en el Pacto de San José y en el Estatuto de Roma, en: Portilla, G./Velásquez, F. (dirs.)/Pomares, E./Fuentes, J. (coords.), Un
juez para la democracia, libro homenaje a Perfecto Andrés Ibáñez, Dykinson, Madrid, 2019, pp. 253-267 y en OLLÉ SESÉ,
M., Derecho penal, amnistías, indultos y cosa juzgada fraudulenta en los procesos transicionales, en: Turégano Masilla, I. (ed.),
La justicia de transición: concepto, instrumentos y experiencias, Universidad del Rosario, Bogotá, 2013, pp. 99-113. V. también
artículos 17 y 20 del Estatuto de la Corte Penal Internacional.
21 V. la relevante monografía de RODRÍGUEZ RODRÍGUEZ, J., Derecho a la verdad y Derecho internacional en relación con

graves violaciones de los derechos humanos, Berg Institute, Madrid, 2017.


22 Se denominó «De la locura a la esperanza. La guerra de 12 años en El Salvador». El informe se publicó el 15 de marzo de

1993.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
147

y, entre ellos, los referidos al asesinato de los padres Jesuitas y las dos mujeres. Tilda el informe de
«especialmente relevante» por «la objetividad con la que [se] elaboró, al efectuarse por mandato de un
acuerdo de paz y, por lo tanto, de ambas partes en conflicto, y todo ello bajo el paraguas garantista e
independiente de las Naciones Unidas»23.
El valor probatorio en los procedimientos judiciales de las Comisiones de la verdad es, en cierta
medida, controvertido. Es indudable que tendrá valor de prueba documental, pero también sus hechos,
consideraciones y conclusiones pueden ser introducidos en el plenario judicial como prueba testifical a
través de la deposición de las personas que participaron en la misma, de tal forma que estos actores se
pueden convertir en testigos directos o de referencia de lo plasmado por la Comisión de la verdad24.
Las recomendaciones del Alto Comisionado de Naciones Unidas para los derechos humanos son
significativas. Este documento destaca la importancia de las Comisiones de la verdad para el
enjuiciamiento penal de los hechos, mientras se esté desarrollando la Comisión, una vez concluida ésta
o años después. Considera a las Comisiones como «complementarias de la acción judicial». Resalta
su papel de «material de referencia» y de «medio para localizar testigos». Las considera de utilidad,
porque «aunque no se identifique a autores concretos, la información que contiene puede revelar las
características más amplias de las infracciones y mostrar cuál ha sido el grado de participación y de
responsabilidad institucional, así como la responsabilidad de los cargos más altos». Y debe reflejar
también los elementos exculpatorios25. También recomienda respetar la confidencialidad si la
información se ha recogido en un «acuerdo de confidencialidad»26.
En tercer lugar, la Sentencia otorga la naturaleza jurídica de informes de inteligencia a dos pericias
presentadas en el plenario por una profesora de ciencias políticas y estudios de América Latina de la
Universidad de Stanford (EE.UU.)27. La resolución de la Audiencia Nacional resalta que, en los dos
informes de la referida profesora, «confluyen los conocimientos, directos o por referencia, del perito,
con sus conocimientos y experiencia sobre la materia de que tratan»28.
Recordemos que los informes de inteligencia, hasta el momento, parecían reservarse a los
elaborados por las fuerzas y cuerpos de seguridad, en materia de crimen organizado29. Sin embargo, en
este caso, el método policial propio de las genuinas periciales de inteligencia brilla por su ausencia,
porque la metodología de la perito académica obedece a otros estándares diferentes, ajenos a la lógica
policial, y más dificultosos en su elaboración al no revestir la perito la condición de autoridad. Su labor

23 Sentencia, FJ octavo, 11º. El informe fue ratificado en el acto de la vista por el que fuera asesor jurídico de la Comisión,
quien, en palabras de la Sentencia, «aclaró y explicó con meridiana lucidez diversos aspectos del mismo».
24 La jurista Almudena BERNABEU GARCÍA (conferencia sobre informes emitidos por las comisiones de la verdad y su valor

probatorio en los tribunales federales de EE.UU, University of Minnesota Law School: class «Human Rights in Practice»
November 3, 2017) es partidaria —y lo compartimos con ella— de otorgar aptitud plena a las Comisiones de la verdad para
engrosar el acervo probatorio en los procedimientos judiciales, y ello sin perjuicio de la valoración final de los Tribunales de
justicia.
25 OFICINA DEL ALTO COMISIONADO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS DERECHOS HUMANOS, Instrumentos del Estado

de Derecho para sociedades que han salido de un conflicto, Comisiones de la verdad, Naciones Unidas, Nueva York y Ginebra,
2006, pp. 27 y 28.
26 Ibidem.
27 FJ octavo, 10º.
28 Esta perito, que elaboró dos contundentes y rigurosos informes, fue la profesora Terry Lynn KARL, especialista en política

comparada, política latinoamericana y especialmente política centroamericana, gobierno militar, partidos políticos,
instituciones religiosas, guerras civiles y problemas de desarrollo, con una amplia experiencia en el estudio y análisis de los
abusos de los derechos humanos y las respuestas de los gobiernos a los mismos.
29 V. por todas, SSTS 104/2019, 27 febrero; 984/2016, de 11 de enero; 783/2007, de 1 de octubre; y 786/2003, de 29 de mayo.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
148 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

en la obtención y estudio de fuentes de todos los signos es transparente, tratando de alcanzar, como
único interés, desde la imparcialidad, la verdad de lo sucedido, sea cual sea.
Concluye la Sentencia sintetizando la doctrina jurisprudencial sobre esta tipología probatoria de
inteligencia: i) es una prueba singular que se utiliza en algunos procesos complejos en los que son
necesarios especiales conocimientos porque no responden a los parámetros habituales de las pruebas
periciales más convencionales; ii) es un medio probatorio que, aunque no está previsto expresamente ni
en la Ley de Enjuiciamiento Civil ni en la Criminal, se puede utilizar en el proceso penal cuando se
precisen los conocimientos aportados por los autores de dichos informes; iii) su valoración es libre, por
lo que el tribunal puede apartarse de los mismos; iv) no se trata de pura prueba documental; y vi) es una
prueba próxima a la pericial, porque los autores de dichos informes aportan conocimientos propios y
especializados para la valoración de determinados documentos o estrategias30.
Y, en cuarto lugar, el derecho a ejercer la acusación popular forma parte del derecho fundamental a
la tutela judicial efectiva y está reconocido en el artículo 125 de la Constitución Española y en los
artículos 100, 101 y 270 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal (en adelante, LECrim). La acción penal
popular, como actor acusatorio, en el proceso penal, no está exento de críticas31. Críticas que se pueden
compartir cuando la finalidad de ese ejercicio es desviado o fraudulento al obedecer a motivaciones
espurias y ajenas a la verdadera realización de la justicia al utilizar este instituto en nombre o interés
propio o ajeno32. Pero no cuando se esgrime para la defensa de la sociedad en su conjunto porque viene
«a asumir dentro del proceso un rol similar al del Ministerio Fiscal, cual es la protección de la legalidad y
del interés social»33.
Es significativa la mención expresa que la Sentencia dedica a la acusación popular por su «papel
determinante y decisivo […] en la tramitación del proceso, no solo por cuanto fue dicha acusación la que
interpuso la querella inicial y que dio origen a la causa, y que lo hizo poco antes de que transcurriesen
los veinte años que tiene señalada la prescripción del delito, sino también por su esencial contribución
en el buen fin del proceso, coadyuvando a la tramitación de la causa, tanto en España como en el
extranjero, facilitando la labor del Juzgado Central en fase de instrucción y la de este Tribunal en la
celebración del juicio, todo lo cual nos lleva a calificar su intervención como de determinante para la
terminación, en justicia, del presente proceso y de la impunidad en que se encontraban los crímenes
enjuiciados»34.
Después de estas breves referencias, en las líneas que siguen nos referiremos, con mayor
detenimiento, a los hechos probados como verdad judicial, a la jurisdicción universal y al principio de
especialidad extradicional, a la coautoría mediata y al terrorismo de Estado.

30 FJ octavo, 10º.
31 V. Argumentos favorables a la acusación popular: GIMBERNAT ORDEIG, E., Cero a la acusación popular, El Mundo,
6.595, 8 de enero de 2008, pp. 4 y 5; y GIMBERNAT ORDEIG, E., La sombra de la doctrina Botín no es tan alargada, El
Mundo, 15 de julio de 2014, pp. 19 y 20.
32 V. SSTC 62/1983, de 11 de julio; 108/1983, de 29 de noviembre; 115/1984, de 3 de diciembre; 147/1985, de 29 de octubre;

137/1987, de 22 de julio; 34/1994, de 31 de junio y 64/1998, de 17 de marzo.


33 STS 5661/1997, de 26 de septiembre, FJ XI, primero.
34 Sentencia, FJ decimotercero.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
149

3. Hechos probados: verdad judicial

La Sentencia, en apretada síntesis, condenó a 133 años y cuatro meses de prisión al ex coronel y
viceministro de Seguridad Pública, Inocente Orlando Montano, por el asesinato de cinco jesuitas
españoles35, cometido la noche del 15 al 16 de noviembre de 1989, en la Universidad Centroamericana
José Simeón Cañas (en adelante, UCA). La pena impuesta, por cada uno de los asesinatos, fue de 26 años,
8 meses y un día de prisión. Los hechos de la Sentencia también declaran probado que el viceministro y
coronel fue responsable del asesinato del otro padre de nacionalidad salvadoreña y de las dos mujeres,
madre e hija, de la misma nacionalidad36.
Los hechos probados son sinónimo de verdad judicial. La narración que se efectúa en el factum
se extrae después de la sujeción del procedimiento a los estándares del proceso debido y con todas las
garantías para el derecho de defensa de Montano. El respeto a estos estándares confirma que los
hechos que han alcanzado la autoridad de probados, han sido sometidos a la rigidez probatoria de una
Sentencia condenatoria. No estamos ante una verdad —por mucho o poco que pueda coincidir—
obtenida por periodistas, historiadores, sociólogos o politólogos. Ni ante una verdad fijada por
organismos nacionales o internacionales no jurisdiccionales. Estamos ante una verdad judicial.
Los hechos se enmarcan dentro del contexto del conflicto armado interno existente en la década
de los ochenta en El Salvador, entre las fuerzas gubernamentales y la guerrilla del Frente Farabundo
Martí de Liberación Nacional (en adelante, FMLN)37.
La Sentencia resalta la importancia de la UCA en aquel entonces en El Salvador y la figura de su
rector, el padre Ignacio Ellacuría, considerado como uno de los analistas políticos más importantes del
país. Ellacuría propugnaba el diálogo para conseguir la paz, lejos de una victoria, ni de las fuerzas armadas
ni del FMLN. El pensamiento de Ellacuría, su análisis y propuestas, manifestadas a través de artículos,
conferencias o declaraciones, impactaban fuertemente en el pueblo salvadoreño. Por ello, la transmisión
de sus ideas y su participación en la vida pública le granjeó poderosos enemigos. Por ejemplo, como
narra la Sentencia, la UCA y los jesuitas fueron blanco de amenazas y atentados durante la década de
los 80, que alcanzaron los 49 sucesos en el año 198938.
El papel de la Iglesia y, especialmente, las ideas e insistencia de Ignacio Ellacuría para alcanzar
la paz, le valieron a éste la enemistad de la extrema derecha, que temía por el despojo de sus privilegios.
Los meses anteriores al asesinato, ante la insistencia de Ellacuría para que se alcanzara una solución
negociada al conflicto, la línea dura gubernamental trató de obstaculizar la negociación por la paz, porque
uno de los fines del discurso de Ellacuría era la depuración de las fuerzas armadas y, especialmente, la
expulsión de los oficiales que conformaban el grupo denominado la Tandona, al que pertenecía
Montano. Por este motivo, los miembros del Alto Mando Militar salvadoreño, los cuales, casi en su
totalidad, pertenecían a la Tandona, consideraron a Ignacio Ellacuría como un «enemigo» y se plantearon

35
Ignacio Ellacuría Beascoechea, Ignacio Martín Baró, Segundo Montes Mozo, Amando López Quintana y José Ramón
Moreno Pardo.
36 Joaquín López y López, Julia Elba Ramos (persona que ayudaba a los padres jesuitas en las tareas domésticas) y su hija

Celina Mariceth Ramos.


37 La Sentencia describe, en los hechos probados (en adelante, HP), el contexto político social existente en El Salvador desde el

golpe de Estado de 15 de octubre de 1979 (asesinato de Monseñor Oscar Romero Arnulfo, creación del FMLN, las elecciones
de 1982 a la Asamblea Constituyente, las elecciones presidenciales de 1984 y de 1989, y los esfuerzos por algunas partes y
organismos de dialogar y alcanzar la paz); y la situación de «guerra civil» (HP Primero).
38 Sentencia, HP segundo y tercero.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
150 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

la conveniencia de acabar con su vida porque su labor de intermediación era una amenaza para la
posición privilegiada de la Tandona39.
La resolución condenatoria relata todos los sucesos previos al asesinato, que se desencadenan a
partir de la ofensiva del FMLN del 11 de noviembre de 1989 y los preparativos previos al asesinato
(arengas mediáticas, estado de excepción y toque de queda, registros en la UCA y su entorno)40. Describe
las diferentes reuniones mantenidas por los miembros del Alto Mando Militar a lo largo del día 15 de
noviembre de 1989 y, especialmente, la celebrada por 24 oficiales de alto rango desde las 18:30 hasta el
filo de las 22:30 horas, en los cuarteles del Estado mayor Conjunto. En esa reunión, por un lado, el jefe
del Estado mayor autorizó la eliminación de cabecillas, sindicalistas y miembros del FMLN; y, por otro,
durante esa misma reunión, los oficiales se mantuvieron de pie, hablando en grupos. Uno de éstos estaba
formado por el Jefe del Estado mayor Conjunto, el Jefe de la Fuerza Aérea, el Coronel Jefe de la Primera
Brigada de Infantería, el Viceministro de Defensa y el Viceministro de Seguridad Pública, Coronel
Montano. «En esa situación, el Jefe del Estado mayor llamó al Coronel Director de la Escuela y delante
de los otro cuatro oficiales, le ordenó matar al padre Ellacuría y no dejar testigos. También le ordenó usar
las unidades del batallón Atlacatl»41.
El factum relata, seguidamente, cómo se ejecutaron los crímenes en la UCA42. La resolución de
condena rememora la deliberada ausencia de justicia en la investigación de los hechos y de sus
responsables, así como la inexistencia de un procedimiento judicial imparcial y objetivo que cumpliera
los estándares del proceso debido, en El Salvador. Y finalmente concluye recordando que las únicas
personas condenadas por los tribunales salvadoreños fueron amnistiadas en ese país, a pesar de que la
Ley de Amnistía sería contraria a la Convención Americana de Derechos Humanos vulnerando, entre
otros, el derecho a la justicia y a la obligación de investigar, procesar y reparar, en perjuicio de los
familiares de las víctimas y de los miembros de la comunidad religiosa y académica a la que pertenecían.

4. La jurisdicción universal y el principio de especialidad extradicional

El procedimiento del que trae causa la Sentencia pudo instruirse y enjuiciarse en España gracias
al principio de jurisdicción universal. El 18 de noviembre de 2008 se incoaron las correspondientes
diligencias previas que posteriormente, el 8 de noviembre de 2010, fueron transformadas en sumario
ordinario. El caso Jesuitas, comenzó, como hemos adelantado, su cobertura normativa jurisdiccional
bajo la vigencia del original artículo 23.4 LOPJ, que instauraba un modelo de jurisdicción universal puro
o absoluto y relativamente concurrente. A partir de entonces, el procedimiento sobrevivió a las dos
reformas legislativas de mayor calado sobre el principio de justicia universal, operadas por las citadas
LLOO 1/2009 y 1/2014, que implantaron el modelo restringido y e l restringidísimo de justicia universal
de justicia universal43.
El Auto de procesamiento, de 30 de mayo de 2011, dictado por el Juez instructor, procesó a veinte
personas, entre las que se encontraba el viceministro y coronel Montano por «ocho delitos de asesinato

39 Ibidem.
40 Sentencia, HP cuarto a séptimo.
41 Sentencia, HP octavo.
42 Sentencia, HP noveno.
43 Sobre la evolución legislativa en España de este principio v: OLLÉ SESÉ, Crimen internacional y jurisdicción penal

nacional, 2019, pp. 165-169.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
151

terrorista [crimen de Estado44] y un delito de crimen de lesa humanidad o del Derecho de gente[s]»,
según el Código Penal de 1973 (artículos 406, 174 bis y 137 bis), vigente en el momento de los hechos.
Esta resolución especificaba, expresamente, que se procesaba a esas personas por la comisión de las ocho
muertes objeto de denuncia inicial: la de los cinco jesuitas españoles, la del sacerdote salvadoreño y las
de las dos mujeres también salvadoreñas45.
La reforma restringida de 2008 apenas tuvo repercusión en el procedimiento, sin embargo, la
restringidísima de 2014, que padeció el artículo 23.4 a) LOPJ, condicionó el devenir del caso Jesuitas,
al limitar la jurisdicción española para la persecución de los delitos de «[g]enocidio, lesa humanidad o
contra las personas y bienes protegidos en caso de conflicto armado» a que el procedimiento se dirigiese
«contra un español o contra un ciudadano extranjero que resida habitualmente en España, o contra un
extranjero que se encontrara en España y cuya extradición hubiera sido denegada por las autoridades
españolas». Presupuestos o nexos alternativos de conexión que no concurrían en el caso y vetaban,
legislativamente, la posible calificación definitiva de los hechos como crímenes de genocidio, de lesa
humanidad o de guerra. Sin embargo, el nuevo texto legal sí permitía la jurisdicción penal de los
Tribunales españoles, si los hechos eran susceptibles de ser tipificados como delitos de terrorismo y
siempre que, como sucedía, existiesen víctimas españolas en el momento de la comisión de los hechos
(artículo 23.4 e) 4º LOPJ)46.
La disposición transitoria única de esta LO 1/2014 ordenaba el sobreseimiento de las causas que
en el momento de su entrada en vigor se encontraran en tramitación, por los delitos referidos en la
misma, hasta que no se acreditara el cumplimiento de los requisitos establecidos en la insólita norma47.
Esta imposición normativa provocó, finalmente, que el procedimiento judicial se continuase por los
mismos hechos, pero bajo la única calificación de asesinato terrorista48.
La persecución del crimen de guerra y del crimen de lesa humanidad, al amparo del principio de
jurisdicción universal, quedaba vetado por la decisión del Pleno de la Sala de lo Penal de la Audiencia
Nacional, adoptada por razones de legalidad procesal. El artículo 23.4 LOPJ, en su apartado a),
introducido por la LO 1/2014 —dejando al margen las críticas que pudiéramos formular a esta reforma,
por necesarias que sean— lo impedía, por no concurrir ninguno de los puntos de conexión exigidos que

44 Así lo calificaba el Auto de procesamiento en el FJ primero.


45 V. Auto de procesamiento, FFJJ primero, segundo y parte dispositiva.
46 Este precepto imponía otros nexos de conexión alternativos, diferentes al ya referido de personalidad pasiva, para el ejercicio

jurisdiccional español [apartados 1º a 8º, del citado artículo 23. 4 e)]. Con independencia de la crítica global a esta reforma, es
incomprensible la disfunción de la tutela judicial efectiva nacional entre víctimas españolas en el extranjero de crímenes de
genocidio, lesa humanidad o crímenes de guerra, que no van a ser protegidas jurisdiccionalmente en nuestro país, frente a las
de terrorismo que sí gozarán de la tutela judicial. El legislador introdujo, de este modo, una lamentable distinción en la
condición de víctimas. Sobre justicia universal como único recurso para las víctimas y la necesidad de cooperación internacional
en materia penal, V. BERNABEÚ GARCÍA, A., La querella siria ante la Audiencia Nacional de España, Revista Teoría y
Derecho, 21, 2017, pp. 213-224.
47 V. un análisis crítico de esta disposición en OLLÉ SESÉ, M., La nueva regulación del principio de justicia universal, Actas

de las XIV Jornadas de Derecho de profesores y estudiantes de Derecho penal de las Universidades de Madrid, Facultad de
Derecho, Universidad Complutense, 2014, pp. 57-64.
48 El Juzgado Central de Instrucción número 6, por Autos de 31 de marzo de 2014 y 23 de abril de 2014, dejó sin efecto el

procesamiento por los cargos de lesa humanidad y contra el derecho de gentes y ordenó la continuación del procedimiento
únicamente por los delitos de asesinato terrorista. La oposición jurídica de las acusaciones particular y popular, que trataron de
combatir, a través de los pertinentes recursos, la exclusión de los delitos y hechos objeto de procesamiento, derivada de
los postulados de la reforma legislativa, no fue acogida. Definitivamente, el Auto 77/2014, de 10 de diciembre, dictado por
el Pleno de la Sala de Penal, de la Audiencia Nacional, confirmaba las decisiones del Juzgado instructor de continuar
la causa únicamente por los delitos de asesinato. Posteriormente, la Sección 4ª de la Sala de lo Penal, de la Audiencia Nacional,
en el Auto 396/2018, de 12 de julio, confirmó que el coronel Montano sólo podía ser enjuiciado por delitos de terrorismo.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
152 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

hemos referido49. La barrera jurisdiccional operada por la repetida ley igualmente afectaba al delito de
terrorismo, pero, en el caos Jesuitas, de forma favorable: los tribunales españoles podían enjuiciar los
hechos, si las víctimas de los asesinatos terroristas eran de nacionalidad española [artículo 23.4 e) 4º
LOPJ]. Esta suerte de principio de personalidad pasiva, incrustado en el de justicia universal, reducía el
objeto del procedimiento que se instruía en el Juzgado Central de Instrucción, al asesinato de los cinco
padres jesuitas españoles. El sacerdote salvadoreño y las dos mujeres de esa nacionalidad, por decisión
legislativa, quedaban desamparados por nuestros Tribunales.
A este impedimento jurisdiccional se sumaba, en el plano sustantivo, otro de estricta legalidad
material: los vigentes artículos 607 bis50 (delitos de lesa humanidad), y 608 a 614 bis, en los que tipifica
los delitos contra las personas y bienes protegidos en caso de conflicto armado, al sancionar diferentes
vulneraciones de normas contenidas en los Convenios de Ginebra y en sus Protocolos Adicionales I y II
de 1977, aplicables tanto a los conflictos armados internacionales como a los de carácter no
internacional51, que no eran típicos en nuestro Código Penal, en el momento de comisión de los hechos.
No obstante, frente a esta postura de legalidad material doméstica, cabría invocar la aplicación del
Derecho penal internacional y, en concreto, de los Convenios de Ginebra, que defiende algún sector
doctrinal y que produce irritaciones y rechazo en otros52.
Sin embargo, el problema jurisdiccional de aplicación del principio universal quedó
definitivamente diluido en el seno del procedimiento extradicional seguido en EE.UU. contra el coronel
Montano. La resolución de los Tribunales americanos concedió su extradición exclusivamente, como
hemos adelantado, por «el asesinato terrorista de cinco sacerdotes jesuitas de origen y nacionalidad
española»53. De esta forma, se producía un cierre jurisdiccional provocado por un instrumento
internacional de cooperación judicial en materia penal: Montano, de acuerdo con el tratado bilateral de
extradición entre España y EE.UU.54, únicamente podía ser juzgado en nuestro país por los cinco

49 V. supra, nota 46. MARTÍNEZ ALCAÑIZ, A., El principio de justicia universal y los crímenes de guerra, Instituto
Universitario General Gutiérrez, Mellado, Madrid, 2015, analiza con precisión la persecución del crimen de guerra al amparo
del principio de jurisdicción universal.
50 Introducido por primera vez en nuestro Código sustantivo —como consecuencia de la implementación del Estatuto de la

Corte Penal Internacional en nuestro ordenamiento jurídico— por la LO 15/2003, de 25 de noviembre, por la que se modifica
la Ley Orgánica 10/1995, de 23 de noviembre, del Código Penal. Este artículo fue posteriormente modificado por la LO 5/2010,
de 22 de junio, y por la LO 1/2015, de 30 de marzo, por la que se modificaba la LO 10/1995, de 23 de noviembre, del Código
Penal. Para un estudio completo de este crimen v: LIÑÁN LAFUENTE, A., El crimen contra la humanidad, Dykinson, Madrid,
2015.
51 V. Un exhaustivo trabajo al respecto en: PIGNATELLI Y MECA, F., La sanción de los crímenes de guerra en el derecho

español, Ministerio de Defensa, Madrid, 2003.


52 Sobre este complejo y polémico debate, v. OLLÉ SESÉ, M., Principios generales, en: Gil Gil/ Maculan (dirs.), Derecho penal

internacional, 2.ª ed., 2019, pp. 178-192; y OLLÉ SESÉ, M., El principio de legalidad en el Derecho penal internacional: su
aplicación por los tribunales domésticos, Estudios Penales en Homenaje a Enrique Gimbernat, I, Edisofer, Madrid, 2008, pp.
559-582.
53 In the United States District Court for the Eastern District of North Carolina Northern Division, 4 4th of February 2016, in re

request by Spain for the extradition of Inocente Orlando Montano Morales, No. 2:15-MJ-1021-KS. Resolución que fue
confirmada por la Orden de 21 de agosto de 2017 —al desestimar el recurso de habeas corpus interpuesto por Montano— por
the United States District Court for the Eastern District of North Carolina Western Division, INOCENTE ORLANDO
MONTANO MORALES, Petitioner v. NEIL ELKS, Sheriff of Pitt Counly, Norih Carolina; SCOTT J. PARKER, United States
Marshal for the Eastern District of North Carolina; LOREUA E. LYNCH, Attorney General, US. Department of Justice, in her
Official Capacity and her successor and assigns; and THE UNITED STATES OF AMERICA, No. 5:16- HC-2066-BO.
54 Instrumento previsto en el artículo 3(2) del Acuerdo de Extradición entre la Unión Europea y los Estados Unidos de América

de 25 de junio de 2003, para la aplicación del Tratado de Extradición entre España y los Estados Unidos de América de 29 de
mayo de 1970, y Tratados Suplementarios de Extradición de 25 de enero de 1975, 9 de febrero de 1988 y 12 de marzo de 1996.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
153

asesinatos terroristas cometidos contra ciudadanos españoles55.


El principio de especialidad, previsto en el artículo 21 de la Ley de Extradición Pasiva (en
adelante, LEP), y en los diferentes tratados extradicionales, impiden, salvo renuncia del extraditurus,
que éste sea juzgado por hechos anteriores por los que ha sido concedida su extradición y/o por hechos
distintos por los que se accedió a la misma. Este principio considerado como costumbre internacional y,
por tanto, de aplicación general y universal56, se convierte, por un lado, en una garantía para el
extradendus (a no ser juzgado por esos hechos distintos por los que se accedió a su extradición, ni por
otros conexos57); y, por otro lado, también se fundamenta en el deber de respeto y de protección de la
soberanía del Estado requerido —que es cedida por éste al Estado requirente58 — y que ha entregado al
extradendus para el enjuiciamiento por determinados hechos59 y/o delitos. La única posibilidad de
enjuiciar otros hechos o delitos distintos por los que fue concedida la extradición, pasaría por la solicitud
del Estado requirente al requerido de una ampliación de la misma, y que éste accediera a ella60.
Partimos, junto con la doctrina mayoritaria, de que el principio de especialidad se debe proyectar
sobre hechos y no sobre calificaciones jurídicas, esto es, siempre que se respeten los hechos objeto del
pedido extradicional activo, los órganos jurisdiccionales pueden variar la calificación jurídica de los
mismos, respecto del inicial nomen iuris, con el que se interesó y se concedió la extradición. Sin embargo,
hay que reconocer que en el espectro normativo de tratados internacionales nos encontramos
instrumentos extradicionales, como el tratado bilateral entre España y EE.UU., en el que el principio de
especialidad rige respecto de delitos y no de hechos. Este tratado, en el artículo XIII61, prohíbe al Estado
requirente, detener, juzgar o castigar a la persona que le haya sido entregada «por un delito distinto de
aquél por el cual se ha concedido la extradición»62.
La Sentencia de la Audiencia Nacional acogió —con sujeción al tratado bilateral de extradición,
fundando en la invocada garantía del extraditurus y en la soberanía de los EE.UU.— el principio de
especialidad y delimitó el objeto procesal, lógicamente, según el contenido de la citada resolución
extradicional dictada por los EE.UU.63, al enjuiciamiento de Montano por el «asesinato terrorista de

55 Al respecto, v. el interesante trabajo de GIMBERNAT DÍAZ, E., La extradición como instrumento de cooperación en el
Derecho penal internacional, Liñan, A./Ollé, M. (coords.), Estudios sobre Derecho penal internacional, Madrid, Universidad
Complutense de Madrid, 2018, pp. 21-32.
56 BAUTISTA SAMANIEGO, C., Procedimiento de extradición pasiva, Sepin, Madrid, 2020, p. 91.
57 Ibidem, p. 90.
58 BELLIDO PENADÉS, R., La extradición en derecho español, Civitas, Madrid, 2001, pp. 91 y 98.
59 V. sentencia, FJ tercero; PASTOR BORGOÑÓN, B., Aspectos procesales de la extradición en derecho español, Tecnos,

Madrid, 1984, pp. 121-130; SEBASTIÁN MONTESINOS, M.A., La extradición pasiva, Comares, Granada, 1997, pp. 162 y
163; y CEZÓN GONZÁLEZ, C., Derecho extradicional, Dykinson, Madrid, 2003, pp. 272-276. BAUTISTA SAMANIEGO
Procedimiento de extradición pasiva, 2020, pp. 90 a 93, añade, acertadamente, que los dos derechos no están en posición de
igualdad porque la garantía del extradendus está supeditada a que no se acceda a una futura ampliación de la extradición por
parte del Estado requerido.
60 Una segunda excepción al principio de especialidad es la contemplada en el artículo 21.2 LEP: «cuando la persona

entregada, habiendo tenido la posibilidad de abandonar el territorio del Estado al que se entregó, permanezca en él más de
cuarenta y cinco días o regrese al mismo después de abandonarlo».
61 V. supra, nota 54.
62 Cursiva añadida. El propio artículo contempla tres excepciones al principio de especialidad, semejantes a las del artículo 21

LEP (v. supra, nota 60): que el extraditado haya abandonado el territorio de la Parte Requirente después de su extradición y
haya vuelto voluntariamente a él; que no lo haya abandonado dentro de los 45 días después de tener libertad para hacerlo; o
que la Parte Requerida hubiera permitido su detención, juicio, condenas o consentido su extradición a un tercer Estado por un
delito distinto de aquél por el cual se concedió la extradición.
63 V. supra, nota 53.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
154 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

cinco sacerdotes jesuitas de origen y nacionalidad españoles»64.


La jurisprudencia se ha decantado a favor de la obligatoriedad para el Estado requirente (España)
de juzgar y, en su caso, condenar por los delitos expresamente autorizados por el Estado requerido, y no
por otros distintos o adicionales. Para el Tribunal Supremo, el principio de especialidad consiste «en
que ninguna persona extraditada podrá ser detenida, procesada o penada en el estado requirente por un
delito cometido con anterioridad a la fecha de la solicitud de su extradición y que sea distinto del propio
delito por el cual se ha concedido la misma»65.
El principio de especialidad en el caso Jesuitas cobra especial relevancia por la actitud de las
autoridades estadounidenses. No es difícil adivinar el rechazo por parte de los EE.UU. a la justicia penal
internacional cuando ésta se ejerce en tribunales penales internacionales y en jurisdicciones nacionales
al amparo del principio de jurisdicción universal. Por ello, en el procedimiento extradicional, se soslayó
por parte de EE.UU. cualquier connotación que supusiera una aceptación expresa o tácita del principio
universal, de crímenes internacionales de primer grado66, y limitó, fiel a sus postulados legales
nacionales, el enjuiciamiento extraterritorial en España exclusivamente a los asesinatos terroristas de las
víctimas españolas.
El iter extradicional demuestra la anterior afirmación. Inicialmente, el 31 de marzo de 2011 se
dictó la correspondiente orden internacional de detención con fines de extradición respecto del coronel
Montano, ex viceministro de seguridad de El Salvador. El 2 de noviembre de 2011, el Juzgado instructor
acordó proponer al gobierno de España demandar extradicionalmente a los EE.UU. su entrega. El 22 de
julio de 2014 se amplió la demanda por parte del órgano instructor. En ese texto, el instructor ya advertía
de que «el juzgado se reserva la jurisdicción sobre Montano y los delitos de los que se le ha acusado —
a pesar de ciertos cambios en la jurisdicción extraterritorial— y que se encuentran en revisión en los
tribunales de apelación españoles»67. Y añadía que España detentaba jurisdicción para investigar y dictar
Sentencia respecto de Montano «debido a la naturaleza de su presunta participación en los crímenes
mencionados y la ciudadanía española de sus presuntas víctimas»68, al menos por los delitos de asesinato
terrorista, apuntillando que la solicitud primigenia de extradición de 2011 no quedaba comprometida, a
pesar de la mutación legislativa69. La extradición activa para España y pasiva para los EE.UU. no fue
un camino procesal fluido, como demuestran las aclaraciones o adiciones que fueron remitidas a las
autoridades estadounidenses., entre ellas, la acreditación de que cinco de los padres jesuitas eran
españoles70.

64 FJ, tercero. En éste, la Sentencia declara que los hechos probados «son legalmente constitutivos de ocho delitos de asesinato
de carácter terrorista», pero, por mor del principio de especialidad, se ve obligado a condenar por los cinco asesinatos de los
sacerdotes españoles.
65 SSTS 10213/2014, de 25 de junio y 3877/1998, de 12 de junio.
66 Sobre los crímenes internacionales de primer y segundo grado v. OLLÉ SESÉ, M., Crimen internacional y jurisdicción penal

nacional, 2019, pp. 151-164.


67 Auto de 22 de julio de 2014. FJ primero.
68 Ibidem.
69 Auto de 22 de julio de 2014. FFJJ segundo y tercero. El Juzgado, con esta ampliación, también remitía un nuevo documento

adicional donde se reflejaban los nuevos elementos probatorios como causa probable de la intervención directa de Montano en
los hechos.
70
Resolución de 16 de junio de 2015. Es significativo, como elemento objetivo que demuestra el celo de EE.UU. para que
España cumpliera con los términos estrictos de la resolución por la que concedía la extradición de Montano, la llamada de
atención con la que este Estado requerido reprochó a España, el 4 de diciembre de 2017, que en el auto de notificación del
procesamiento (de 30 de mayo de 2011) a Montano, constase que el mismo estaba también procesado por otros crímenes distintos
(lesa humanidad) por los que había concedido la extradición (asesinatos terroristas). En el fondo, esta actitud de EE.UU. se
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
155

Este conflicto entre el principio de especialidad extradicional y la tutela de los derechos de


víctimas y victimarios, debe ser resuelto normativamente, para evitar situaciones como la que aquí han
acontecido, sin olvidar que los crímenes internacionales de primer grado, como los de genocidio, lesa
humanidad o de guerra, gozan del carácter de ius cogens y producen, como obligación, la persecución
judicial de sus responsables.
Más allá del cierre jurisdiccional que provocó la decisión norteamericana de extradición, la
mutante situación jurídica, provocada por la reforma del artículo 23.4 LOPJ, que aconteció en el
procedimiento, conduce a reflexionar —dejando al margen el principio de especialidad y el caso
concreto de los Jesuitas— sobre si, una vez que se ha fijado la jurisdicción española bajo el principio de
justicia universal por un delito, ésta se puede extender a otros delitos acogidos por el mismo principio,
pero sobre los que no concurren los nexos de conexión establecidos en el artículo 23.4 LOPJ.
La respuesta es positiva. El objeto de todo proceso está constituido por la materia que se discute,
res de qua agitur, que en el ámbito del proceso penal71, se corresponderá con el hecho punible
investigado. Los hechos son importantes para analizar diferentes cuestiones jurídicas que se puedan
suscitar. Una de ellas, es la atribución de la jurisdicción de los tribunales españoles para el enjuiciamiento
de los concretos hechos. Lo que identifica, en definitiva, al objeto del proceso penal, son los hechos que,
considerados constitutivos de delito, se dirigen contra una persona determinada. La calificación jurídica
en la que se subsuman esos hechos no conforma el objeto del proceso penal. Así lo ha reiterado
pacíficamente la jurisprudencia, subrayando que lo concluyente no es el nomen iuris sino los hechos
delictivos72.
El art. 65.1 LOPJ, después de enumerar el catálogo de los diferentes delitos que conoce la Sala de
lo Penal de la Audiencia Nacional —lo que es aplicable a los órganos instructores de esas causas—
extiende de forma imperativa su competencia «al conocimiento de todos los delitos conexos» con
aquéllos, es decir, con los previstos en las letras a) a d) del art. 65.1 LOPJ). Esto permite que, respecto
de los delitos por los que la Audiencia Nacional ostenta competencia objetiva por razón de la materia,
se puede conformar una relación concursal de delitos, ideal o real, entre éstos y otros conexos porque
esos hechos constituyen dos o más delitos.
Asimismo, la Ley Orgánica del Tribunal del Jurado73 es ilustrativa a estos efectos. Después de
especificar, en el artículo 1, los delitos competencia del Tribunal del Jurado, en el primer apartado del
artículo 5 señala que la competencia se determinará «atendiendo al presunto hecho delictivo», obviando,
por tanto, la calificación jurídica de ese hecho, como criterio de atribución competencial. El mismo
artículo, en su segundo apartado, extiende la competencia del Tribunal del Jurado a los delitos conexos,
estableciendo alguna particularidad; y, en el apartado 3º, declara igualmente la competencia del Tribunal
del Jurado «cuando un solo hecho pueda constituir dos o más delitos […] si alguno de ellos fuere de los
atribuidos a su conocimiento». Se desprende que la voluntad del legislador, en esta ley, es conformar
una suerte de reglas competenciales de atracción, tanto para los casos de conexidad delictiva, como para

enmarcaba en el deber de seguimiento, lo que no es nada frecuente, respecto de la extradición concedida. Sobre este deber, v.
OLLÉ SESÉ, M./GIMBERNAT DÍAZ, E., Orden europea de detención y entrega y tratos inhumanos o degradantes. STJUE de
5 de abril de 2016, asuntos C-404/15 y C-659/15 PPU: Aranyosi y Căldăraru, La Ley Unión Europea, 40, 3 de septiembre de
2016.
71 Sobre el objeto del proceso penal v. BANACLOCHE PALAO, J./ZARZALEJOS NIETO, J. Aspectos fundamentales

de Derecho procesal penal, 4.ª ed., La Ley, Madrid, 2018, pp. 109-140.
72 SSTS 41/98, de 24 de febrero; 655/2010, de 13 de julio; y 94/2010, de 10 de febrero.
73 Ley Orgánica 5/1995, de 22 de mayo, del Tribunal del Jurado.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
156 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

los de concursos delictivos, respecto de delitos que no están incluidos en el catálogo de su competencia,
partiendo siempre de una premisa fáctica —hechos— y no jurídica.
Las dos normas referidas, la LOPJ y la Ley del Jurado, se refieren en su literalidad a la
competencia y no, como es lógico, a la jurisdicción. Con todo, esos criterios competenciales pueden
servir de guía para atribuir la jurisdicción española en supuestos de jurisdicción universal. Una vez fijada
la jurisdicción española bajo el título universal, ésta debe extender su conocimiento al completo hecho,
factum, es decir, para ese delito y para los que puedan surgir de esos mismos hechos. Desde la dimensión
fáctica del objeto del proceso penal, si la jurisdicción la determinan los hechos, la misma comprenderá,
no sólo los delitos conexos, sino cualquier delito que se desprenda de los hechos en la relación concursal
a la que se deban.
En esta línea, en el ámbito del Derecho penal internacional, por ejemplo —y por su cierta
proximidad en algunos aspectos con el caso Jesuitas, que seguidamente reseñaremos—, nos referimos
al Tribunal Penal Internacional para la Ex Yugoslavia. Éste interpretó que el artículo 3 de su Estatuto74
no le otorgaba únicamente competencia respecto del derecho de la guerra relativo a la conducción de las
hostilidades, sino que, también, se extendía a las violaciones del artículo 3 común de los Convenios de
Ginebra de 1949, relativos a la protección de las víctimas de los conflictos: violaciones cometidas en el
contexto de un conflicto armado no internacional. En su fundamentación, el Tribunal ad hoc consideró
que el artículo 3 del Estatuto le permitía atribuirse la competencia para conocer de toda violación al
Derecho internacional humanitario que no estuviese prevista en otra disposición del Estatuto, es decir,
tanto en el llamado Derecho de Ginebra —los cuatro Convenios y los dos Protocolos— como en el
Derecho de La Haya75.
Siguiendo con el ejemplo de los crímenes de guerra, el Tribunal Penal Internacional para Ruanda
también asumió, en el artículo 4 de su Estatuto76, la competencia para enjuiciar a las personas que
cometieran graves violaciones del artículo 3 común y del Protocolo adicional de 1977, relativo a la
protección de las víctimas de conflictos armados no internacionales. Tales violaciones incluyen: actos de
violencia contra la vida, la salud y el bienestar físico o mental de las personas, especialmente homicidio
y trato cruel como tortura, mutilación o cualquier otra forma de castigo corporal; castigos colectivos;
toma de rehenes; actos de terrorismo; ultrajes a la dignidad personal, en particular tratos humillantes o
degradantes, violación, prostitución forzada y cualquier otra forma de agresión indecente; saqueo;
aprobación de sentencias y realización de ejecuciones sin un fallo previo dictado por un tribunal
legítimamente constituido y que ofrezca todas las garantías judiciales consideradas como indispensables
por los pueblos civilizados, y amenazas de perpetración de cualquiera de los actos mencionados77.

74 Referido a la competencia para enjuiciar a las personas que violen las leyes o usos de la guerra. V. Estatuto del Tribunal
Internacional para el Castigo de los Crímenes Internacionales perpetrados en la Antigua Yugoslavia (Resolución 827, 1993, del
Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas, 25 de mayo de 1993).
75 GUTIÉRREZ POSE, H., La contribución de la jurisprudencia de los Tribunales Penales Internacionales a la evolución del

ámbito material del derecho internacional humanitario —los crímenes de guerra, los crímenes de lesa humanidad y el
genocidio— la responsabilidad penal individual, Comité Internacional de la Cruz Roja,
https://www.icrc.org/es/doc/resources/documents /misc/5tdpfn.htm#3
76 Estatuto del Tribunal Internacional para Ruanda (Resolución 995, 1994, Consejo de Seguridad de Naciones Unidas, 8 de

noviembre de 1994).
77 GUTIÉRREZ POSE, H., La contribución de la jurisprudencia de los Tribunales Penales Internacionales a la evolución del

ámbito material del derecho internacional humanitario —los crímenes de guerra, los crímenes de lesa humanidad y el
genocidio— la responsabilidad penal individual, Comité Internacional de la Cruz Roja. Otro precedente relevante, en Tribunales
domésticos en los que, en aplicación del principio universal, se apreció un concurso de delitos de genocidio y de asesinato
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
157

Llegamos a la conclusión de que los Tribunales españoles, una vez asumida la jurisdicción
universal por unos hechos concretos, porque concurren, al menos, para uno de los delitos por los que se
han calificado los mismos, los requisitos de atribución que impone el artículo 23.4 LOPJ, también
tendrán jurisdicción para otros delitos que se deriven de esos hechos, aunque esos delitos no satisfagan
las exigencias normativas del repetido artículo 23.4 LOPJ.
Retomando el caso Jesuitas, ya hemos explicado la limitación del objeto del procedimiento. No
obstante, es relevante destacar, a efectos de la individualización de la pena y, como respuesta reparadora
para las víctimas de los hechos juzgados, que la Sentencia declara probado que, en el momento del
asesinato (1989), El Salvador vivía un conflicto armado de carácter no internacional que duraba más de
10 años. Igualmente describe el contexto de violencia armada entre las fuerzas gubernamentales de ese
país y la guerrilla del Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional78. Esta situación de violencia
armada interna79 entre las dos partes salvadoreñas, es la que sirve como elemento diferenciador para
calificar los hechos como un verdadero conflicto armado80, porque, como se infiere del factum, no fueron
meras situaciones de tensiones internas o de disturbios interiores81.
Este marco contextual de conflicto armado interno obliga a observar los Convenios de Ginebra de
12 de agosto de 194982. El citado artículo 3, común a estos instrumentos, norma indiscutiblemente de
ius cogens, declara que, en caso de conflicto armado no internacional que suceda dentro de las altas
partes contratantes83, cada una de las partes en conflicto estará obligada a tratar con humanidad a las
personas que no participen en las hostilidades. Y añade que respecto de estas personas «se prohíben, en
cualquier tiempo y lugar […] los atentados contra la vida y la integridad corporal, especialmente el
homicidio en todas sus formas». Esta norma de ius cogens y, por tanto, como toda norma investida de
este carácter, es de Derecho internacional —su fuente es el Derecho internacional (costumbre y tratado),
su calidad es de especial importancia y es aceptada por la Comunidad internacional. Al carácter de ius
cogens de esta norma se une, como consecuencia necesaria, las obligaciones que nacen de la misma84.
En este caso, la de impedir las violaciones previstas en el artículo 3 común referido.
Por tanto, su carácter de ius cogens y s u consideración de derecho consuetudinario85 es un

(delitos comunes) es el caso de Nikola Jorgić, juzgado en Alemania, en aplicación del principio de justicia universal. V.
AMNISTÍA INTERNACIONAL, Alemania, la lucha contra la impunidad a través de la jurisdicción universal, índice EUR
23/003/2008, Madrid, 2008, pp. 91-95.
78 Sentencia, HHPP primero y segundo; y FFJJ octavo, noveno y décimo.
79 Sobre los requisitos de los crímenes de guerra y la distinción entre conflictos armados internacionales y no internacionales v.

MARTÍNEZ ALCAÑIZ, A., El principio de justicia universal y los crímenes de guerra, 2015, pp. 286-303.
80 El TPIY, en el conocido caso ICTY, Prosecutor v. Duško Tadić, AC, Decision on the defence motion for interlocutory appeal

on jurisdiction (IT-94-1-T), 2.10.1995, para. 70, declaró que en el conflicto armado de carácter no internacional se recurre a la
violencia prolongada entre las autoridades gubernamentales y grupos armados organizaos o entre estos grupos dentro de un
Estado.
81 El artículo 1.2 del Protocolo II adicional a los Convenios de Ginebra de 1949, relativo a la protección de las víctimas de los

conflictos armados sin carácter internacional, de 1977, descarta que «las situaciones de tensiones internas y de disturbios
interiores, tales como los motines, los actos esporádicos y aislados de violencia y otros actos análogos» sean conflictos armados.
82 I Convenio para aliviar la suerte que corren los heridos y los enfermos de las fuerzas armadas en campaña; II Convenio para

para aliviar la suerte que corren los heridos, los enfermos y los náufragos de las fuerzas armadas en el mar; III Convenio relativo
al trato debido a los prisioneros de guerra: y el IV relativo a la protección debida a las personas civiles en tiempo de guerra.
83 El Salvador es Parte Contratante de los Convenios de Ginebra desde el 17 de junio de 1953; y España desde el 4 de agosto de

1952.
84 V. sobre el concepto de crímenes internacionales de ius cogens y obligaciones erga omnes, OLLÉ SESÉ, M., Crimen

internacional y jurisdicción penal nacional, 2019, pp. 101-140.


85 V. ICJ, Case concerning Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua (Nicaragua v. United States of

America), 27 June 1986, Judgment, para. 218 a 220. El fallo de la Corte Internacional de Justicia declara que el artículo 3
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
158 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

elemento de extraordinaria importancia —independientemente de la efectiva calificación y condena por


asesinatos terroristas— para valorar el reproche de la conducta de Montano al transgredir las más
esenciales normas humanitarias que se cometen en conflictos armados sin carácter internacional, para
la dosimetría punitiva y para ofrecer, de esta forma, una respuesta integral a las víctimas, al establecer
la verdad judicial del contexto (conflicto armado no internacional) en los que se cometieron los crímenes
(asesinatos terroristas) en El Salvador.
Al margen de todo lo expuesto, hay que recordar que las prohibiciones del artículo 3 común
pasaron a ser objeto de sanción en el ámbito del Derecho penal internacional. Así el artículo 8.2.c) del
Estatuto de la Corte Penal Internacional tipifica, como crimen internacional en caso de conflicto armado
no internacional, «las violaciones graves del artículo 3 común a las cuatro Convenciones de Ginebra»
y, en concreto, y entre otros, «los atentados contra la vida y la integridad corporal, especialmente el
homicidio en todas sus formas» cometidos «contra personas que no participen directamente en las
hostilidades»86.
La importancia de la tipificación del conflicto armado no internacional en el Estatuto de Roma,
deriva también por su correspondencia con el principio de complementariedad que rige, como eje
principal, en el Estatuto de la Corte. No es necesario recordar que los hechos ocurrieron en 1989 y, por
tanto, antes de la entrada en vigor del Estatuto de la Corte Penal Internacional (1 de julio de 2002). Pero
sí que El Salvador es parte del Estatuto desde el 3 de marzo de 2016. La ratificación de éste del Estatuto
de Roma supone la asunción de las obligaciones internacionales en la persecución, con carácter
preferente, en su jurisdicción doméstica de, al menos, los crímenes que son competencia de la Corte
Penal Internacional, como es el crimen de guerra.
El hecho cierto de que el Estatuto no estuviera vigente —ni tampoco existiera la Corte Penal
Internacional, en el momento de la comisión delictiva— no significa que El Salvador ignore su
obligación de perseguir judicialmente este crimen internacional, de origen consuetudinario —y, por
tanto, anterior al nacimiento del Estatuto de Roma— respecto de los presuntos coautores mediatos y
ejecutores materiales que no han sido juzgados.
Si El Salvador es parte del Estatuto, es porque asume esas obligaciones en la persecución de los
crímenes internacionales de primer grado87 y, como recuerda el preámbulo del Estatuto de Roma, está
obligado a ejercer su jurisdicción penal contra los responsables de crímenes internacionales. Por ello,
debería proceder al enjuiciamiento, ante sus Tribunales nacionales, de todas las personas que
presuntamente tuvieron intervención en los hechos y que permanecen en la impunidad. Además,
recordemos que El Salvador denegó todas las extraciciones que solicitaron las autoridades españolas88,
por lo que, de acuerdo con el principio aut dedere o aut iudicare, El Salvador tenía y tiene la obligación
de investigar, juzgar y, en su caso, de sancionar a los responsables de estos crímenes que se encuentren
en su territorio y, en caso contrario, conceder su extradición al Estado que está ejerciendo la jurisdicción
por esos hechos.

común de las Convenciones de Ginebra cristalizó como derecho consuetudinario. En el mismo sentido ICTY, Prosecutor v.
Duško Tadić, cit., para. 98.
86 Sobre la regulación de los crímenes de guerra en el Estatuto de la Corte Penal Internacional v. LIÑÁN LAFUENTE, A., Los

crímenes de guerra, en: Gil Gil/Maculan (dirs.), Derecho penal internacional, 2.ª ed., 2019, pp. 443-472.
87 Sobre la persecución universal de las infracciones graves de Derecho internacional humanitario v. MARTÍNEZ ALCAÑIZ,

A., El principio de justicia universal y los crímenes de guerra, 2015, pp. 304-332.
88 Fueron denegadas el 8 de mayo de 2012 y el 6 de febrero de 2016, por la Corte Suprema de Justicia de El Salvador.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
159

5. Coautoría conjunta mediata en aparatos organizados de poder

El caso Jesuitas recuerda, en cuanto a la intervención punible, la vigencia del principio de


responsabilidad penal personal por el hecho propio —como manifestación del principio de
culpabilidad— por el que ninguna persona será condenada por hechos o conductas que no haya realizado
materialmente y en el que no esté vinculado personalmente en forma dolosa o imprudente (nulla poena
sine culpa)89.
Esta garantía se revela especialmente importante en los supuestos de macro criminalidad y de
criminalidad colectiva, con el fin de impedir la transferencia indebida90 a una determinada persona de la
responsabilidad penal de un hecho ajeno. La pertenencia a un colectivo organizado que comete conductas
delictivas, no significa que todos sus miembros sean responsables por los hechos cometidos por algunos
de ellos. Hay que determinar quién es autor y quién es partícipe del injusto penal, de acuerdo con los
artículos 27 y 28 del Código Penal. Por ello, el principio de responsabilidad penal personal obliga a
extremar las precauciones analíticas y de subsunción a la hora de otorgar el título de autor o partícipe a
una persona concreta, en aquellos supuestos en los que interviene una pluralidad de personas, en función
de su personal contribución al hecho. Pero también, con indudable acierto, la doctrina ha advertido del
riesgo contrario, esto es, de que la responsabilidad personal de alguno de los intervinientes se diluya
dentro de una responsabilidad colectiva amplia, cuando en la conducta delictiva común se involucran
numerosas personas91. En estos casos, también existe la contingencia de que se le transfiera
indebidamente una responsabilidad penal ajena a alguno de los intervinientes.
En supuestos de criminalidad estatal —como la del caso Jesuitas—, una modalidad de intervención
punible es a través de estructuras criminales organizadas de poder. Esta singularidad se aleja de los
patrones comunes de delincuencia, porque el delito se idea por los dirigentes, jefes o líderes del aparato
y se materializa o ejecuta por otros miembros subordinados de la estructura criminal, que son los que
finalmente materializan el hecho. Como se ha repetido hasta la saciedad estos últimos son los que se
«manchan las manos». Esta distancia y contribución al hecho entre líderes e inferiores, o entre autores
mediatos e inmediatos, no sólo no disminuye la responsabilidad de los organizadores respecto de los
autores subordinados, sino que la incrementa92, como expondremos seguidamente.
La idiosincrasia de esta criminalidad permite identificar, inicialmente, dos partes diferenciadas
pero comunicadas en materia de autoría y participación. Por un lado, los líderes o cabecillas de esa
estructura o aparato son los que idean, deliberan y deciden de mutuo acuerdo y, por tanto, conjuntamente
la comisión de un crimen (coautoría). Y, por otro lado, transmiten la decisión delictiva final a
otros miembros —que no han intervenido en la primera fase— para que materialmente la ejecuten,
lo que convierte a cada uno de los líderes en coautores mediatos y a los ejecutores en autores.
Nuestro propósito en este trabajo se aleja de ofrecer los diferentes matices y discrepancias que la
doctrina y la jurisprudencia doméstica y la de Tribunales internacionales han elaborado respecto de la

89 V. dos acertados trabajos sobre este principio en: CUERDA RIEZU, A. R. El principio de constitucional de responsabilidad
personal por el hecho propio. Manifestaciones cualitativas, ADPCP, 2009, pp. 157-209; y CUERDA RIEZU, A. R., El principio
de constitucional de responsabilidad personal por el hecho propio. Manifestaciones cuantitativas, ADPCP, 2009, pp. 211-252.
90 CUERDA RIEZU, A. R., ADPCP, 2009, p. 212.
91 MACULAN, E., Las formas de intervención punibles: autoría y participación, en: Gil Gil/Maculan (dirs.), Derecho penal

internacional, 2.ª ed., 2019, p. 234.


92 Ibidem.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
160 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

coautoría mediata. Partimos de que la conducta del coronel Montano, se encuadra en lo que
denominamos coautoría conjunta mediata en aparatos organizados de poder. La Sentencia descarta la
«mera inducción», y la califica de «coautoría, dado el reparto de papeles dentro de una institución
organizada, las Fuerzas Armadas». Y, a renglón seguido, la resolución condenatoria complementa la
afirmación de la coautoría declarando que, «como anteriormente establecimos, nos encontramos ante la
autoría de unos hechos cometidos mediante la utilización de un aparato organizado de poder, que no era
otro que el Alto Mando de la Fuerza Armada, en cuyos puestos de máxima responsabilidad se
encontraban los militares graduados en la llamada Tandona»93.
La Sentencia, por tanto, acoge la figura de la coautoría mediata en aparatos organizados de poder,
como se infiere de la motivación jurídica de la misma, al abordar tanto los requisitos de la autoría
mediata en aparatos organizados de poder, como los de la coautoría94. El juego de los artículos 27 y 28
de nuestro Código Penal permite la construcción de la coautoría mediata porque normativamente son
autores quienes realizan el hecho «conjuntamente o por medio de otro», es decir, son autores los
coautores y los autores mediatos.
A la hora de abordar la teoría de la intervención delictiva, partimos, frente a la teoría objetivo-
formal, de la teoría del dominio del hecho predominante en la doctrina alemana, y acogida por nuestro
Tribunal Supremo y por un amplio sector doctrinal español, y también por la Corte Penal Internacional.
Esta teoría mixta (objetiva y subjetiva) —que considera autor, en los tipos dolosos, a quien detenta el
dominio o control final del hecho típico—, iniciada, entre otros, por WELZEL, y perfeccionada por
ROXIN95, permite mejorar la comprensión de los conceptos de coautoría y autoría mediata. Es objetiva
porque el autor detenta el dominio del hecho; está en sus manos, es el dueño, de la realización,
conducción e interrupción del curso típico96. Y es subjetiva porque domina (voluntad) esa situación
objetiva. En la autoría directa, el autor ostenta el dominio material del hecho: es él quien individualmente
realiza los elementos del tipo. En la mediata, el autor tiene el dominio sobre la voluntad del autor
inmediato, sobre la decisión de la ejecución, porque el mediato no realiza de propia mano los elementos
típicos, no ejecuta la acción típica. Y en la coautoría, será autor el que tiene el dominio funcional del
hecho: quien aporta una parte necesaria o esencial a la ejecución del plan global.
En el caso Jesuitas no existe un solo autor mediato, sino coautores conjuntos mediatos. Los
miembros del Alto Mando Militar —entre los que se encontraba, el coronel condenado— urdieron,
planearon, acordaron y ordenaron97 la ejecución del crimen. De común acuerdo decidieron el asesinato,
y de común acuerdo transmitieron la orden de la ejecución del plan criminal. Es decir, cada uno de los
coautores aportó una parte necesaria o esencial a la ejecución del plan global. La coautoría mediata en
aparatos organizados de poder ha sido desarrollada, aunque con diferentes matices y denominaciones,
principalmente en el ámbito del Derecho penal internacional y de los tribunales penales
internacionales98. Esta forma es la que denominamos coautoría conjunta mediata. Esta modalidad de

93 Fundamento Jurídico (en adelante, FJ) noveno.


94 El Letrado de la acusación popular en el informe final de la vista oral (artículo 734 LECrim) conceptuó la intervención del
coronel y viceministro de seguridad, Montano, como coautoría conjunta en aparatos organizados de poder.
95 V. ROXIN, C., Autoría y dominio del hecho en Derecho penal.
96
BUSTOS RAMÍREZ, J./HORMAZÁBAL MALARÉE, H., Lecciones de Derecho penal, parte general, Trotta, Madrid, 2006,
pp. 398 y 399.
97 Estos cuatro verbos son los utilizados por la Sentencia en el FJ octavo.
98 V. de la Corte Penal Internacional, entre otras: ICC, PTC I, Prosecutor v. Katanga and Ngudjolo Chui, Decision on the

Confirmation of Charges (ICC-01/04-01/07), 30.09.2008, para. 525; y ICC, PTC I, Prosecutor c. Omar Hassan Al Bashir,
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
161

coautoría se construye de forma similar a la autoría mediata, pero se sustituye al autor mediato por los
diferentes coautores que intervengan, de tal forma que son aplicables las reglas de la coautoría. Todos
los intervinientes mediatos son coautores, porque todos, o entre todos, cometen conjuntamente y de
mutuo acuerdo el hecho. La contribución de cada uno de ellos al hecho, el papel concreto que
desempeñan individualmente, es esencial o necesario para la realización del plan común. Todos tienen el
dominio funcional del hecho y a todos, de acuerdo con el principio de imputación recíproca, se les
imputará la conducta del resto de autores y todos conjuntamente responderán por el delito cometido.
La decisión de asesinar a Ellacuría sin dejar testigos se acordó conjuntamente y de mutuo acuerdo
por parte de los miembros del Alto Mando militar. Decisión que se adoptó por consenso, previo debate, y
sin oposición de ninguno de los integrantes de esa organización criminal. Uno de esos coautores, fue el
coronel y viceministro de seguridad Montano. Todos los intervinientes conocieron y aceptaron
expresamente la realización del delito y todos conocieron y aceptaron su propia participación y,
recíprocamente, la del resto de los autores. Esta decisión conjunta se acordó de forma expresa y previa
a la comisión del asesinato, aunque también hubiera sido posible la coautoría sucesiva, si otros
intervinientes hubieran accedido a la realización delictiva ya iniciada de forma (acuerdo) tácita y
coetánea. La contribución de todos los coautores fue esencial, todos ellos integraban el Alto Mando
Militar y todos, con su decisión, facilitaron y posibilitaron la ejecución del hecho, aunque ninguno de
ellos realizara los actos ejecutivos del delito.
Por lo que respecta al ejecutor material del hecho o autor inmediato, este es el «instrumento»
del que se sirve el autor mediato para la realización del hecho. En el Derecho penal doméstico (artículo
28 del Código Penal), es habitual que el autor inmediato que ejecuta materialmente el hecho carezca de
responsabilidad penal, bien porque el autor mediato ha provocado en el inmediato un error o se ha
aprovechado del mismo. Este error puede ser sobre la tipicidad al desconocer el significado de la conducta
o sobre el carácter antijurídico de la conducta. También el sujeto inmediato estará exento de
responsabilidad penal en aquellos casos en los que éste actúa bajo un estado en el que concurre una causa
de coacción y, por tanto, de inexigibilidad de otra conducta diferente a la realizada (por ejemplo, miedo
insuperable), o de inimputabilidad.
Sin embargo, también concurre la autoría mediata en supuestos en los que la responsabilidad penal
es solidaria tanto para el autor mediato, como para el inmediato. Un supuesto es el de los intervinientes
que pertenecen a aparatos u estructuras organizadas de poder. Tanto el mediato como el inmediato, con
independencia de su concreta contribución, son responsables penalmente por el hecho cometido. En los
aparatos organizados de poder el inicial binomio hombre de atrás-autor inmediato (perpetrator behind
the actor), propio de la autoría mediata, se transforma, como ha señalado la doctrina, en «autor

Decision on the Prosecution´s Application for a Warrant of Arrest against Omar Hassan Al Bashir (ICC-02/05-01/09),
04.03.2009, paras. 201 y ss. MACULAN, en: Gil Gil/Maculan (dirs.), Derecho penal internacional, 2.ª ed., 2019, pp. 252-254,
se refiere sintéticamente a la coautoría mediata y, siguiendo a parte de la doctrina alemana, la desdobla en dos categorías: la
coautoría entre autores mediatos y la autoría mediata en coautoría o autoría mediata conjunta. WERLE, G./ JESSBERGER, F.,
Tratado de Derecho penal internacional, 3.ª ed., Tirant lo Blanch, 2017, pp. 367-370, diferencian entre coautoría mediata y
autoría mediata conjunta. Y OLÁSOLO ALONSO, H., Tratado de autoría y participación en Derecho penal internacional, Tirant
lo Blanch, Valencia, 2013, pp. 563-629, sistematiza las diferentes decisiones del Tribunal Penal Internacional para la Ex
Yugoslavia y de la Corte Penal Internacional, para denominarla como «coautoría mediata basada en la aplicación conjunta de
la coautoría por dominio funcional y la autoría mediata por aparatos organizados de poder», distinguiendo dos situaciones: la
de varios dirigentes que comparten el dominio respecto de una concreta estructura de poder, de la que se valen para la comisión
del hecho; y la de varios dirigentes, que cada uno de ellos controla la totalidad o parte de una estructura organizada, cada uno
de ellos dirige su aparato de poder, y todos ellos se coordinan para la ejecución del plan común.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
162 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

detrás del autor» (perpetrator behind the perpetrator)99. El subordinado, en el primer caso, es penalmente
irresponsable, mientras que en el segundo, sí lo es. El Estatuto de la Corte Penal Internacional, por
ejemplo, reconoce expresamente la responsabilidad penal de quien comente un crimen competencia de
la Corte «por conducto de otro, sea éste o no penalmente responsable» (artículo 25.3.a).
El profesor ROXIN fue el precursor en 1963 de la teoría conocida como del dominio de la voluntad
en virtud de maquinarias o estructuras o aparatos organizados de poder100. La tesis de ROXIN nace de la
insuficiencia para poder fundamentar la autoría de dirigentes políticos y comandantes militares que
lideraban aparatos organizados de poder. Los postulados del célebre profesor alemán fueron aplicados
por primera vez en Argentina en 1985, en el conocido como juicio a las Juntas Militares, por la Cámara
Federal Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional de la Capital Buenos Aires, aunque
posteriormente la Sentencia fue revocada por la Corte Suprema de Justicia de la Nación101.
Otros Tribunales nacionales igualmente se hicieron eco de esta propuesta dogmática. Por ejemplo,
fue en el caso conocido como de los disparos del Muro de Berlín (Tribunal Supremo alemán, 1994) en el
que miembros del Consejo de Defensa Nacional de la República Democrática Alemana fueron
condenados por los asesinatos producidos por sus guardias en el muro de Berlín. En Chile, Colombia y
Perú (caso Abimael Guzmán y caso Fujimori) también tuvo acogida la teoría de ROXIN. Asimismo, los
Tribunales penales internacionales ad hoc de Ruanda y de la Ex Yugoslavia, así como como la Corte
Penal Internacional, han justificado el sentido de algunas resoluciones en la teoría de la autoría mediata
en los aparatos organizados de poder, superando de esta forma los postulados de la teoría de la empresa
criminal conjunta102.
ROXIN se basa en tres pilares fundamentales: el poder de mando, el apartamiento del derecho y la
fungibilidad de los ejecutores materiales. Después de la aplicación práctica de su teoría por Tribunales
nacionales e internacionales, el académico alemán justificaba la utilidad de la misma en que «las
democracias reinstauradas, tras la caída de las dictaduras, están tratando cada vez más de superar los
crímenes de los regímenes anteriores mediante procesos respetuosos de los principios del estado de
Derecho, con los cuales se haga responder penalmente a los anteriores detentadores del poder […]
porque pone a la vista de los poderosos, de una manera que ojalá sea suficientemente preventiva, los
riesgos que involucran el abuso de poder»103.
Los elementos fácticos que concurren en el caso Jesuitas confirman que la intervención de
Montano fue de coautoría conjunta mediata. En primer lugar, y como presupuesto general, existió
previamente a la comisión de los hechos una organización estructurada y jerárquica de carácter
criminal. Esta organización era el Alto Mando Militar que actuaba como un aparato organizado de

99 OLÁSOLO ALONSO, H., Tratado de autoría y participación en Derecho penal internacional, 2013, pp. 200 y 201.
100 La reflejó inicialmente en su libro Täterschaft und Tatherrschaft. En España se publicó la traducción de su sexta edición
alemana en 1998: ROXIN, C., Autoría y dominio del hecho en Derecho penal, J. Cuello Contreras y J.L. Serrano González de
Murillo (trads.), Marcial Pons, Madrid, 1998.
101
V. ROXIN, C., Dirección de la organización como autoría mediata, ADPCP, 2009, pp. 51-65. OLÁSOLO ALONSO,
Tratado de autoría y participación en Derecho penal internacional, 2013, pp. 135 a 500 analiza de forma exhaustiva esta teoría
a través de los diferentes casos acontecidos en jurisdicciones nacionales y tribunales penales internacionales. V. también
OLÁSOLO ALONSO, H., Ensayos de Derecho penal y procesal internacional, Tirant lo Blanch, Valencia, 2011, pp. 160-
208; y MACULAN, en: Gil Gil, /Maculan (dirs.), Derecho penal internacional, 2.ª ed., 2019, p. 250. GIL GIL, ADPCP, 2008.
102 Ibidem. También FARALDO CABANA, P., Responsabilidad penal del dirigente en estructuras jerárquicas. La autoría

mediata con aparatos organizados de poder, Tirant lo Blanch, Valencia, 2003, pp. 32-88, analiza algunos supuestos
jurisprudenciales sobre la autoría mediata en aparatos organizados de poder.
103 ROXIN, ADPCP, 2009, pp. 64 y 65.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
163

poder. La estructura jerárquica permitía que todos sus integrantes conocieran las decisiones delictivas
adoptadas y que todos quisieran la ejecución de las mismas.
En segundo lugar, el coronel Montano, como el resto de los coautores pertenecientes a ese aparato,
gozaban de un específico poder de mando, en función del puesto que cada uno ocupada, dentro de la
cadena de mando del Alto Estado mayor. Para Roxin, sólo puede ser autor mediato quien, dentro de una
organización dirigida rigurosamente, tiene poder para impartir órdenes, y utiliza este poder para la
realización del tipo104. Todos tenían facultades y capacidad para adoptar la decisión criminal del
asesinato, y para impartir esas órdenes a los subordinados de la organización militar. Eran conocedores de
que la orden expresa e impuesta de ejecutar materialmente el crimen se cumpliría de forma automática
por los miembros del batallón Atlacatl, precisamente por el funcionamiento de la estructura del aparato
organizado de poder. Este poder se ejercía verticalmente: los coautores mediatos, como parte del nivel
superior, incrustados en la cúspide de la organización criminal, y como dominadores de la totalidad del
aparato estatal, impartieron directamente la orden a l os subordinados que ejecutaron materialmente
el hecho y sabían que esa orden transmitida en el seno del aparato de poder, tendría consecuencias.
Las órdenes que, aunque hubieran sido circuladas por sucesivos niveles o mandos intermedios de
poder de la estructura, no desvirtúan la coautoría mediata, porque «en los diferentes niveles de la
jerarquía de mandos, puede haber muchos autores mediatos unos detrás de otros»105. Precisamente, el
poder de mando se manifiesta en que la orden se imparte dentro del régimen formal y de legitimidad
que preside la estructura del aparato dentro del Alto Mando Militar. Su consecuencia será que la orden
se cumplirá por los subordinados, que actúan, no de forma independiente, sino como parte del aparato,
de tal forma que, mientras el mediato domina el aparato, el inmediato domina la acción.
En cuarto lugar, otro elemento configurador en la proposición de ROXIN, es el apartamiento del
Derecho del aparato organizado de poder106, ab initio o desde un momento determinado107. El aparato,
al ser un crimen de Estado, opera revestido de legitimidad, pero actúa al margen del Derecho nacional e
internacional108, prevaliéndose, además, de todos los medios materiales y personales, que le proporciona
el Estado. Actúan extra muros del Derecho, al que desobedecen, y sabedores de que su conducta criminal
no está limitada por ninguna otra autoridad. El propio ROXIN, después de algunas críticas doctrinales
recibidas, argumentó que el apartamiento del Derecho por parte del aparato no tiene que ser completo,
sino sólo en el marco de los tipos penales que realiza. Y que esta desviación se evaluará en el momento
de su consideración, y no necesariamente conforme a sistemas jurídicos pasados. Por ello, concluye el
jurista teutón respecto de este requisito, que el sistema o «el subsistema de un Estado» tiene que trabajar
delictivamente, «al margen del Derecho», para que las órdenes de los sujetos de atrás se culminen con
éxito109.

104 ROXIN, ADPCP, 2009, p. 59.


105 Ibidem.
106
ROXIN, Autoría y dominio del hecho en Derecho penal, 1998, p. 275 y 276.
107 MACULAN, en: Gil Gil/Maculan (dirs.), Derecho penal internacional, 2.ª ed., 2019, p. 251, advierte que este elemento de

la teoría de Roxin es discutido en la doctrina científica y la Corte Penal Internacional tampoco lo acoge, como se demostró en
la Sentencia dictada contra Katanga.
108 FARALDO CABANA, Responsabilidad penal del dirigente en estructuras jerárquicas, 2003, p. 208, observa que el

apartamiento del Derecho no sólo será del ordenamiento jurídico interno, sino también, y particularmente, del ordenamiento
internacional. Esta autora se refiere a un derecho «suprapositivo» constituido por los principios fundamentales del Derecho
internacional.
109 ROXIN, ADPCP, 2009, p. 60.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
164 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

En quinto lugar, también brota como presupuesto subjetivo y elemento decisivo, en la teoría de
ROXIN, la fungibilidad o sustituibilidad del ejecutor material que completa la realización del tipo110. Los
subordinados o autores inmediatos finales que ejecutan materialmente el hecho, actúan como
«ruedecillas» de una maquinaria, o aparato criminal, perfectamente ensamblado. Es irrelevante quién
ejecutará el hecho, porque el (co)autor mediato sabe que si el inmediato se niega, la organización, de
acuerdo con el engranaje de la máquina, proveerá otro ejecutor material111. Lo fundamental en esta
fungibilidad es que el instrumento no es la persona ejecutora del hecho, sino la organización y la
pertenencia a ella de otros posibles ejecutores garantiza el resultado112. El ejecutor directo es libre y
responsable, «[p]ero estás circunstancias son irrelevantes para el dominio por parte del sujeto de detrás,
porque desde su atalaya el agente no se presenta como persona individual libre y responsable, sino como
figura anónima y sustituible. El ejecutor, si bien no puede ser desbancado de su dominio de la acción,
sin embargo es, al mismo tiempo, un engranaje —sustituible en cualquier momento— en la maquinaria
del poder, y esta doble perspectiva impulsa al sujeto de detrás, junto con él, al centro del acontecer»113.
La Corte Penal Internacional, en la Sentencia de decision on judgment contra Katanga, tildó a esta
fungibilidad como de «automatismo funcional»114. Así, el (co)autor mediato es imprescindible, mientras
que el inmediato es prescindible.
ROXIN, en el año 2007, después de las observaciones de SCHROEDER, añade a su argumentación
que el ejecutor tiene una elevada predisposición a la realización del hecho ilícito. El autor material
demuestra una alta disponibilidad para cometer el delito, lo que repercute favorablemente en el (co)autor
mediato porque se refuerza su dominio del hecho, ya que el hombre de atrás impondrá la orden al
ejecutor con mayor seguridad gracias a la predisposición ejecutiva de éste115.
En el terreno de la imputación subjetiva, el (co)autor mediato actúa con conocimiento y voluntad
de realizar los elementos del tipo. La voluntad del autor mediato —que domina la voluntad de la
organización— se transfiere, a través de la pertinente orden, al inmediato material quien ejecutará el
hecho. Por ello, hay que probar que la voluntad finalmente realizada por el inmediato, es la voluntad
del mediato, porque aquél es parte del aparato en el que se encuentra entroncado.
Como ya hemos apuntado, la responsabilidad del coautor mediato no se diluye por el
distanciamiento respecto del mediato. Roxin ya advirtió sobre este extremo subrayando que la
responsabilidad penal aumenta respecto del autor que más próximo esté a los puestos superiores de la
cadena de mando, porque la pérdida de proximidad al hecho del autor mediato se compensa con el
dominio de la organización que aumenta progresivamente según se asciende en la escala jerárquica del
aparato116. En los supuestos comunes de coautoría, el dominio del hecho se descompone a medida que
el coautor se aleja del resultado delictivo. Cuanto más se acercan los intervinientes a la cúpula directiva
de la estructura, mayor será su responsabilidad, porque mayor será el dominio sobre el aparato. Por ello,

110 ROXIN, Autoría y dominio del hecho en Derecho penal, 1998, p. 270 y 271.
111 Para FARALDO CABANA, Responsabilidad penal del dirigente en estructuras jerárquicas, 2003, p. 89, lo importante es que
existan suficientes personas dentro de la organización para proceder al reemplazo en el momento de dictar la orden, si alguno
de los miembros se niega actuar.
112 ROXIN, ADPCP, 2009, p. 61.
113 ROXIN, Autoría y dominio del hecho en Derecho penal, 1998, p. 271.
114 ICC, Prosecutor v. Germain Katanga, TCII, Judgment pursuant to article 74 of the Statute (ICC- 01/04-01/07), 7.03.2014,

para. 1409. Katanga finalmente no fue condenado como autor mediato del artículo 25.3 a) del Estatuto de la Corte, sino por
contribución de algún modo en la comisión de un crimen (artículo 25. 3 d)).
115 ROXIN, ADPCP, 2009, p. 64.
116 ROXIN, Autoría y dominio del hecho en Derecho penal, 1998, p. 272.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
165

se justifica la mayor responsabilidad en los miembros del aparato que se sitúan en su cúspide en el
dominio absoluto de la estructura criminal.
Esta mayor reprochabilidad punitiva se fundamenta, asimismo, porque, como hemos avanzado,
los coautores mediatos que se asientan en la cúspide del aparato ejecutan sus conductas dentro de un
marco de legitimidad formal, pero perversa, ya que dentro de esa estructura formal (fuerzas armadas y
Alto Mando Militar) componen el aparato criminal desviado, y utilizan su poder legítimo para cometer
y encubrir delitos.
La Sentencia del caso Jesuitas adquiere una especial relevancia en el marco jurisprudencial
español al aplicar nuestros Tribunales, por primera vez en un supuesto de criminalidad estatal, lo que
denominamos la coautoría conjunta mediata en aparatos organizados de poder, con encaje en el artículo
14 del derogado Código Penal de 1973117.

6. Terrorismo desde el Estado

La resolución pronuncia la condena por delitos de terrorismo, concretamente, por cinco


«asesinatos de carácter terrorista». Esta calificación se fundamenta, en esencia, del siguiente modo:

«Nos encontramos, por tanto, ante la existencia de un grupo, estable y permanente


que, desde las más altas estructuras del poder en El Salvador, compuesto por el
propio Presidente de la República, por el Ministro de Defensa , el Viceministro de
Defensa, el Viceministro de Seguridad Pública, cargo éste ocupado por Inocente
Orlando Montano Morales, el Jefe del Estado mayor y el Subjefe de Estado mayor,
que, con la colaboración y apoyo de los oficiales de alto rango que, pertenecientes a
la llamada "Tandona" habían llegado a ocupar cargos de alta responsabilidad en las
Fuerzas Armadas y en los Cuerpos de Seguridad del Estado, y mediante la utilización
de la violencia y la comisión de graves delitos, que causaron la alarma, alteración
grave de la paz y la convivencia ciudadana, cercenando el camino hacía el diálogo y
la paz, con el único fin de perpetuar sus privilegiadas posiciones; cometieron los
asesinatos después de intentar hacer creer a la opinión pública que tanto Ignacio
Ellacuría como el resto de sacerdotes que trabajaban como profesores de la UCA,
especialmente Ignacio Martín Baró y Segundo Montes Mozo, pertenecían al liderazgo
intelectual del Frente para la Liberación Nacional Farabundo Martí [FMLN],
generando la falsa afirmación de la existencia de un enemigo infiltrado en las
estructuras de la sociedad, que actuaban como agentes de una confabulación
socialistacomunista y que tenía como fin terminar con los valores aceptados como
propios y absolutos por quienes detentaban el poder; y, dejando de lado los
procedimientos constitucionales y legalmente establecidos, del debido proceso, para la
determinación de la comisión de un delito, proceder a imponer, clandestinamente,
medidas de sanción prohibidas por el orden jurídico constitucionalmente proclamado,
como la de la ejecución extrajudicial, adopción de medidas de violencia contra
víctimas inocentes que contribuyeron a reforzar la eficacia del terror» (FJ 7º, sin
cursiva en el original).

Para poder someter a análisis y valorar este aspecto de la Sentencia —la defensa puso en cuestión
la calificación como delitos de terrorismo de los hechos enjuiciados—, es necesario, en primer lugar,
esbozar sintéticamente los problemas que presenta la definición general y jurídica del terrorismo, para

117
V. sobre la derogada regulación de la autoría mediata v: GIMBERNAT ORDEIG, E., Autor y cómplice en Derecho penal,
Universidad de Madrid, Madrid, 1966, pp. 215-298.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
166 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

comprobar a continuación si las actividades conocidas como «terrorismo de Estado» o «desde el Estado»
pueden encuadrarse en esa definición, tal y como hace la resolución que aquí se comenta, y verificar,
finalmente, si la subsunción concreta hecha en la Sentencia resulta acertada.

7. La noción y el término «terrorismo»

a) El fenómeno del terrorismo

Resulta difícil aprehender lo que es «terrorismo». Tanto para el discurso jurídico como para otras
disciplinas en las ciencias sociales, es un lugar común subrayar el carácter proteico del fenómeno
terrorista118; puede decirse, incluso, que «…en las ciencias sociales es… uno de los términos más
esquivos»119.
Uno de los elementos que aquí llaman la atención, desde un principio —y resulta de especial
relevancia en relación con la resolución a analizar—, es que la palabra terrorismo presenta en su uso
habitual una acepción muy reducida frente a lo que podría dar a entender su significado como
«dominación por el terror» (la primera acepción que ofrece el diccionario de la RAE): no se incluye, en
principio, en el lenguaje común en el término «terrorismo» la actuación de órganos estatales: la
actividad que denominamos «terrorismo» es la de grupos que se oponen a un Estado (ésta es la tercera
acepción en el diccionario de la RAE: «actuación criminal de bandas organizadas, que, reiteradamente
y por lo común de modo indiscriminado, pretende crear alarma social con fines políticos»)120. A pesar
de esta realidad en el lenguaje, lo cierto es que la utilización de una violencia política que se puede
llamar terrorista (en el sentido de la definición de la primera acepción del término en el diccionario de
la RAE: que persigue la dominación de otras personas mediante el terror), como es sabido, surge
históricamente como mecanismo de dominación desde el proto-Estado121, al estabilizarse con la
agricultura una estructura social estratificada y diferenciándose unos grupos de población que se nutrían
de los excedentes de los productores, obteniéndolos mediante la amenaza y el uso efectivo de formas de
violencia organizada destinada a mantener la situación de sumisión122. En términos históricos, por lo
tanto, puede afirmarse que en el principio fue el terror de Estado, o, al menos, desde el poder123.

118 Además de las dificultades de definición que derivan de la propia materia, de la fenomenología de las diversas
organizaciones y actividades terroristas en distintas épocas y territorios, un factor decisivo en estas dificultades en delimitar el
alcance del concepto es que ya la utilización del término es objeto de confrontación política: una «palabra como un hacha»
(SCHEERER, Die Zukunft des Terrorismus. Drei Szenarien, 2002, p. 19) que se blande como arma propagandística, lejos de
objetivos de mero conocimiento.
119 ROLDÁN BARBERO, Los GRAPO. Un estudio criminológico, 2008, p. 3; cfr., por ejemplo, las referencias en este sentido

recogidas por CAPITA REMEZAL, Análisis de la legislación penal antiterrorista, 2008, pp. 21 y ss.
120
Cfr. sólo CANCIO MELIÁ, Los delitos de terrorismo: estructura típica e injusto, 2010, pp. 62 y ss., con ulteriores
referencias.
121 V. el análisis etnológico del terror como mecanismo de dominación en diversas formas de sociedad realizado por CARO

BAROJA, Terror y terrorismo,1989, pp. 49 y ss.


122 GONZÁLEZ CALLEJA, en: idem (ed.), Políticas del miedo. Un balance del terrorismo en Europa, 2002, p. 36.
123 Con independencia de que se coincida en ubicar el nacimiento del término terrorismo a la política conocida como terreur

durante cierto período inicial de la Revolución francesa bajo liderazgo de Robespierre. Cfr. la exposición DE LA CORTE
IBAÑEZ, La lógica del terrorismo, 2006, pp. 36 y ss., y la variada enumeración de diversas aproximaciones conceptuales en
el campo de las ciencias sociales hecha por GONZÁLEZ CALLEJA, en: idem (ed.), Políticas del miedo, 2002, pp. 42 y ss.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
167

Sin embargo, como se ha indicado, aquí no es de este terrorismo del que se habla, sino que, usando
el término en el sentido habitual en el lenguaje común124 y jurídico- penal, se trata de aquel otro
terrorismo que puede identificarse como «violencia desde abajo»125, «violencia revolucionaria»126,
«insurgente»127, «rebelde»128, o «terrorismo subestatal»129; un fenómeno de aparición histórica mucho
más reciente que la utilización del terror como mecanismo de dominación política, y cuyo nacimiento hay
que ubicar tan tarde como a finales del siglo XIX. En este sentido, es cierto que existe un cierto número
de precedentes del uso sistemático y aleatorio de violencia (no estatal) intensa con fines políticos: en la
Antigüedad, se hace referencia a los zelotas y los sicarios —grupos religiosos fundamentalistas judíos—
; en la Edad Media, se menciona a los Asasinos- asesinos, un grupo sectario chií que practicó el asesinato
político sistemático (no tanto contra los cruzados con los que convivieron, sino contra dirigentes de la
mayoría suní) en Oriente Medio; en tiempos modernos, finalmente, está el grupo religioso de los thugs
en la India, que cometían asesinatos aleatorios mediante estrangulamiento; todos ellos, casos de grupos
de orientación religiosa130. Sin embargo, y a pesar de que en cierto número de estudios, suele comenzarse
la presentación histórica del fenómeno del terrorismo con esta clase de organizaciones históricas
dedicadas al asesinato político, lo cierto es que la aparición del terrorismo moderno —una
intensificación cualitativa y reorientada a la subversión del viejo mecanismo de la intimidación
masiva— está vinculada a la existencia de grandes aglomeraciones urbanas y de medios de comunicación
de masas131, instrumentos esenciales para el funcionamiento de la estrategia terrorista. En consecuencia,
existe cierto consenso respecto de que el terrorismo como fenómeno social tal y como lo conocemos, no
arranca, en realidad, hasta finales del siglo XIX: «Sólo los medios de comunicación de masas de la era
moderna provocan que un atentado violento aislado puede generar una sensación general de inseguridad
e intimidación… Constituyen el mecanismo de traducción…, la cuerda de transmisión entre el hecho
aislado y sus consecuencias socio-psicológicas»132. En plena coherencia con ello, el medio de
comunicación por excelencia del actual terrorismo de alcance planetario surgido en el mundo

124 Señala acertadamente que se ha impuesto la hegemonía de la acepción de «terrorismo» referida sólo al terrorismo no estatal
—hasta el punto de que en este mismo apartado es necesario adjetivarlo— en el discurso político TERRADILLOS BASOCO,
Terrorismo y Derecho. Comentario a las LL.OO. 3 y 4/1988, de reforma del Código Penal y de la Ley de Enjuiciamiento
Criminal, 1988, pp. 20 y s.
125 AULESTIA URRUTIA, Historia general del terrorismo, 2005, p. 12.
126 WALZER, Guerras justas e injustas. Un razonamiento moral con ejemplos históricos, 2001, p. 269.
127 GONZÁLEZ CALLEJA, en: idem (ed.), Políticas del miedo, 2002, p. 65
128 SCHEERER, Zukunft des Terrorismus, 2002, pp. 30 y ss.
129 DE LA CORTE IBAÑEZ, La lógica del terrorismo, 2006, p. 27.
130 V., por ejemplo, las exposiciones en WALDMANN, Terrorismus. Provokation der Macht, 1998, pp. 40 y ss.; SCHEERER,

Zukunft des Terrorismus, 2002, pp. 47 y ss. 50 y ss.; GONZÁLEZ CALLEJA, en: idem (ed.), Políticas del miedo, 2002, pp.
42 y ss.; DE LA CORTE IBAÑEZ, La lógica del terrorismo, 2006, pp. 23 y s., todos con ulteriores referencias.
131 V. sólo DE LA CORTE/DE MIGUEL, en: Cancio Meliá/Pozuelo Pérez (ed.), Política criminal en vanguardia, 2005, pp.

325 y s.; VERES, Los lenguajes del terrorismo. Sobre medios de comunicación y nuevos terrorismos, 2017, pp. 125 y ss.,
ambos con ulteriores referencias.
132 WALDMANN, Terrorismus, 1998, p. 57; v. también las referencias históricas en pp. 56 y ss.; cfr. GONZÁLEZ CALLEJA,

en: idem (ed.), Políticas del miedo, 2002, pp. 52 y ss.; v. También, por ejemplo, el análisis evolutivo de las distintas «oleadas»
de terrorismo insurgente desde aproximadamente 1880 en DE LA CORTE IBÁÑEZ, La lógica del terrorismo, 2006, pp. 27 y
ss., con ulteriores referencias
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
168 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

árabemusulmán y que suele denominarse «yihadista» o «islamista»133, como es sabido, es el medio de


comunicación más amplio, más accesible, más global que nunca ha existido: Internet134.

b) Terrorismo y Derecho Penal: negación y desdibujamiento

En lo que se refiere a la traducción jurídico-penal del fenómeno, esto es, de la definición del
terrorismo en cuanto actividad delictiva, hay que reseñar que existen significativas voces que se
muestran, desde diversas perspectivas, contrarias a la existencia misma de delitos de terrorismo: porque
piensan que bastaría con los delitos comunes, y consideran que la tipificación penal del terrorismo
siempre implica una manipulación ideológica; o porque piensan que el terrorismo debe considerarse un
tertium entre crimen y guerra, un campo a regular de modo separado a través de un «Derecho penal del
enemigo». Sin embargo, estas críticas generales, de principio, a la criminalización específica del
terrorismo —esto es, la propuesta de su abolición— no son, desde luego, lo que determina la agenda
legislativa en la materia, ni pueden estimarse mayoritarias en el análisis jurídico135. La realidad de las
legislaciones penales occidentales en este ámbito está en que se advierte cómo el concepto de terrorismo
no sólo no se abandona en la legislación penal, sino que, al contrario, cada vez se ensancha más el campo
de los delitos de terrorismo, incluyendo nuevas figuras que llevan la anticipación de la intervención
penal antes de la producción de una lesión concreta a fronteras cada vez más alejadas.
Esta evolución de las legislaciones penales es coherente con la evolución de la nueva oleada de
terrorismo: parece que en múltiples aspectos, va perfilándose que se está materializando el adverso
«escenario dos» esbozado por SCHEERER después de los atentados de 2001136: la lógica perversa de
la «guerra» contra el terrorismo ha envenenado la estructura política de los países de Occidente (y con
ello, las bases de los sistemas penales), y el fenómeno del terrorismo se ha convertido en una magnitud
de uso permanente en política, que lastra todo el entramado de las relaciones internacionales — usada
como elemento de nuevas formas de dominación imperial— y pone en tensión los ordenamientos
jurídicos internos. Desde la perspectiva específica de los ordenamientos penales en los países que
pueden ser calificados de Estados de Derecho, la lista de transformaciones negativas es larga: así, por
ejemplo, hay varias jurisdicciones occidentales «normales» —como es el caso de España— que llegan a
nuevas fronteras de la definición de delitos, criminalizando la posesión o lectura de determinados textos,

133 Aunque esta terminología no resulta adecuada para identificar la oleada terrorista de la actualidad, que entra en la conciencia
mundial con los ataques en EE.UU. el día 11.9.2001: «yihad» significa en el marco religioso islámico tanto guerra santa (contra
el infiel) como, sobre todo, el esfuerzo personal de mejora en su fe religiosa del creyente. Una caracterización más exacta
subrayaría que se trata de un terrorismo transnacional de origen árabe-musulmán, en el que juegan un papel decisivo la
humillación histórica del mundo árabe por el dominio colonial directo (sobre todo, Gran Bretaña y Francia) primero, y
postcolonial después, hasta la actualidad, de Occidente (esto es, sobre todo, los EE.UU.), a través de regímenes títere
autoritarios, y el trauma del establecimiento por la fuerza de las armas del Estado de Israel en Palestina (v. sobre todo este proceso
sólo HOURANI, A History of the Arab Peoples , 2013, pp. 315 y ss., 323 y s., 358 y ss.) por un lado, y, por otro, una determinada
interpretación del islam que pretende dotar de unidad cultural al movimiento y «viste el santo», sit venia verbo, del programa
político de control del mundo árabe (y musulmán) por parte de las organizaciones insurgentes, ante todo, Al Qaeda y Daesh
(por ello, tampoco parece correcto hablar de terrorismo «islamista»).
134
V. un supuesto en el que se le reprocha al acusado como actividad típica que debe encuadrarse como de pertenencia a una
organización terrorista precisamente la elaboración de una página web, Sentencia de la Sala de lo Penal de la Audiencia
Nacional, Sección 2ª, de 31 de marzo de 2006, y STS 119/2007, de 16 de febrero.
135 V. sólo CANCIO MELIÁ, en: Alonso Rimo/Cuerda Arnau/Fernández Hernández (ed.), Terrorismo, sistema penal y

derechos fundamentales, 2018, pp. 95 y ss.; idem, en: Petzsche/Metzler/Heger (ed.), Terrorismusbekämpfung in Europa im
Spannungsfeld zwischen Freiheit und Sicherheit — historische Erfahrungen und aktuelle Herausforderungen, 2019, pp. 159 y
ss.; respecto del peculiar caso español en torno a la glorificación del terrorismo, v. IDEM/DÍAZ LÓPEZ, ¿Discurso de odio
y/o discurso terrorista? Música, guiñoles y redes sociales frente al artículo 578 del Código Penal, 2019, passim.
136 SCHEERER, Zukunft des Terrorismus, 2002, pp. 105 y ss.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
169

la mera «difusión de consignas» o la «colaboración imprudente» con una organización o un autor


terroristas137. Aparece en este contexto también en el horizonte la posibilidad de la «invención»138 de un
concepto consuetudinario de terrorismo en el Derecho penal internacional —con los riesgos que
generaría, desde la perspectiva occidental, compartir una definición de terrorismo con países con
sistemas jurídico-constitucionales incompatibles con los criterios de legitimidad básicos en nuestro
ámbito—, mientras en general, la ampliación y pérdida de contornos en los conceptos de terrorismo que
se manejan en los ordenamientos nacionales parece una tendencia común139, en la que hay tanto procesos
de «migración» de diversos modelos de regulación —siempre, los particularmente laxos en definiciones
y duros en las consecuencias sancionatorias— en el plano internacional140 como de «contaminación»
de las normas «ordinarias» de los sistemas penales por la regulación de excepción del Derecho Penal
antiterrorista dentro de cada ordenamiento nacional141.
En suma: puede pensarse que el terrorismo —o más bien: la pérdida de contornos del alcance de
este concepto— está en la vanguardia de una transformación estructural del ordenamiento jurídico-
penal142, en la que definitivamente se pasaría el límite entre el Derecho reactivo y un ordenamiento
orientado exclusivamente a la prevención fáctica143, comportando la criminalización de comportamientos
sin lesividad específica únicamente con base a determinados indicadores relativos al autor de la conducta
(esto es, un Derecho penal de autor).
Esta evolución parece especialmente acentuada en España, pues la reforma del Derecho penal
antiterrorista acordada por los dos grandes partidos estatales en 2015 (en la LO 2/2015) ha desdibujado
los límites del concepto de terrorismo (esto es: el concepto legal-extensivo144 desborda con mucho el
campo de lo que podría calificarse de terrorismo de acuerdo con un análisis empírico del fenómeno). De
hecho, ha habido ya procesos en los que desde un principio parecía muy discutible la calificación inicial

137 Dejando de lado el peculiar modelo «multinivel» (guerra en sentido estricto, jurisdicción penal, mera violencia amparada por
el poder ejecutivo mediante ejecuciones extrajudiciales) de los EE.UU., parece que dentro del grupo de los países occidentales,
Australia, España y el Reino Unido ocupan una posición destacada a la hora de ampliar el alcance de la criminalización a áreas
antes fuera de cualquier tipificación penal; v. por ejemplo, respectivamente, HARDY/WILLIAMS, en: Lennon et al. (ed.),
Counter-Terrorism, Constitutionalism & Miscarriages of Justice, 2018, passim; CANCIO MELIÁ, Derecho Penal
Contemporáneo, 55 (2016), pp. 37 y ss.; WALKER, Terrorism and the Law, 2011, paras 5.10, 5.33, 5.42, 5.87, 5.90; resulta
particularmente llamativa la existencia —tanto en Australia como en el Reino Unido— de medidas de un nuevo género, la
detención u otras medidas coactivas impuestas con carácter puramente preventivo (cfr. respecto del Derecho inglés, y con
carácter general, ASHWORTH/ZEDNER, Preventive Justice, 2014, pp. 74 y ss., 144 y ss.; específicamente respecto del
terrorismo, pp. 181 y ss.; v. respecto de la enmarañada legislación australiana, HARDY/WILLIAMS, en: Lennon, G. et al.
[ed.], Counter-Terrorism, 2018).
138 V. sólo AMBOS/TIMMERMANN, en: Saul (ed.), Research Handbook on International Law and Terrorism, 2014, pp. 20 y

ss.; WESTRA, Faces of State Terrorism, 2012, pp. 5 y ss.


139 Cfr. el intento de sistematización de SAUL, en: Lennon/Walker, Routledge Handbook of Law and Terrorism , 2015, pp. 19

y ss., 32: son muchos los Estados que han utilizado la efervescencia de activismo internacional contra el terrorismo —y, en
particular, ya la Resolución 1373 (2001) del Consejo de Seguridad de Naciones Unidas— «…para definir el terrorismo en
función de sus propios objetivos políticos o camuflar de este modo ataques a los derechos civiles y políticos fundamentales»;
cfr. también PÉREZ CEPEDA, en: Serrano Piedecasas/Demetrio Crespo (dirs.), Terrorismo y Estado de Derecho, 2010, pp. 53
y ss.; GUZMÁN DÁLBORA, en: Ambos et al. (ed.), Terrorismo y Derecho Penal, 2015, pp. 401 y ss., 414 y ss.
140 V. sólo ROACH, en: Lennon/Walker: Routledge Handbook, 2015, pp. 68 y ss.
141
Cfr. por ejemplo CANCIO MELIÁ, New Criminal Law Review 14 (2011), pp. 108 y ss., 122 y ss.
142 CANCIO MELIÁ, en: Jakobs/idem, Derecho penal del enemigo, 2ª ed. 2006, pp. 87 y ss., 88.
143 Cfr. sólo WALKER, Criminal Law Review 2004, p. 311; en general, ASHWORTH/ZEDNER, Preventive Justice, 2014,

passim; recurriendo (de distintas maneras) al concepto de «Derecho penal» del enemigo para «medir» el apartamiento de la
«normalidad» de las normas positivas o su interpretación, v. sólo CANCIO MELIÁ, Jueces para la democracia 44 (2002), pp.
19 y ss.; IDEM, Los delitos de terrorismo, 2010, pp. 24 y ss., 77 y ss.; LLOBET ANGLÍ, M., Derecho Penal del terrorismo.
Límites de su punición en un Estado democrático, 2010, pp. 235 y ss., 261 y ss.; GIL GIL, ADPCP, 2014, pp. 105 y ss., 108 y
ss.; TERRADILLOS BASOCO, J.M., Nuevo Foro Penal 12 (2017), pp. 18 y ss., 30 y ss.
144 Cfr. CANCIO MELIÁ, en: Molina Fernández (coord.), Memento Penal 2021, 6.ª ed., 2020, n.m. 18542 y ss.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
170 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

de los hechos enjuiciados como delitos de terrorismo, y en los cuales, bajo la cobertura de la nueva
definición laxa de terrorismo en el art. 573 CP, se ha mantenido, sin embargo, esa calificación por la
Fiscalía145.

c) Un concepto jurídico de terrorismo

Sin embargo, lo cierto es que el terrorismo es un fenómeno antiguo y bien conocido, y


perfectamente susceptible de ser definido: se trata de la subversión violenta de un orden legítimo
perseguida a través de un determinado mecanismo simbólico: violent language, no senseless violence146,
esto es, el terrorismo es ante todo teatro147. Ha de comprenderse como un peculiar lenguaje violento,
como método que consiste en usar la violencia indiscriminada para intimidar a la ciudadanía y formular
reivindicaciones políticas frente a un Estado al margen del sistema constitucional.
En este sentido, traducido el fenómeno al mundo del delito, el injusto de los delitos de terrorismo
consiste en la arrogación política de un ámbito de organización genuinamente estatal (los elementos
básicos de la toma de decisiones colectivas), es decir, que se trata, por un lado, materialmente de delitos
contra la Constitución. Por otra parte, suponen siempre concretas infracciones que atentan gravemente
contra bienes jurídicos individuales, seleccionados para generar intimidación masiva. En consecuencia,
puede afirmarse que el terrorismo en sentido estricto está esencialmente vinculado a dos factores de
lesividad social: por un lado, a factores colectivos tanto en el lado de la conducta infractora (la especial
peligrosidad que emana de la organización colectiva) como en el lado de los destinatarios (el programa
político que conforma la proyección estratégica del terrorismo). Por otro lado, como es obvio, el

145 Así ha sucedido respecto de determinadas acciones de bloqueo y disturbios menores (cortes de carretera, apertura de
estaciones de pago de peaje) realizadas por parte de los llamados «Comités de Defensa de la República» en Cataluña: la acusación
pretendía que se procesara a una de las líderes de esos colectivos por delito de terrorismo (en la hipótesis del art. 573 bis 4. CP:
incitación a desórdenes públicos graves de los arts. 557 y 557 bis CP). En esta ocasión la autoridad judicial (cfr. el auto del
Juzgado Central de Instrucción número 6 de noviembre de 2018) descartó de plano tal interpretación ya en instrucción,
rechazando su competencia y remitiendo las actuaciones al tribunal ordinario al que le incumbe enjuiciar delitos de desórdenes
públicos (sin necesidad de mucha argumentación, porque como resulta evidente y deriva de la simple lectura del art. 573 bis 4.
CP, los desórdenes públicos [graves, del art. 557 bis CP] sólo pueden entrar en el ámbito de la regulación especial de los delitos
de terrorismo «cuando se cometan por una organización o grupo terrorista o individualmente pero amparados en ellos», y resulta
obvio que no hay organización o grupo terrorista en el momento actual en el contexto del separatismo catalán) ; v . , por
ejemplo, la noticia en https://www.lavanguardia.com/politica/20180412/442484770448/juez-libertad- tamara-carrasco-
cdr.html (último acceso 6.10.2018); finalmente, la acusada ha resultado absuelta en primera instancia del delito de
desórdenes públicos común del que se la acusaba; v. https://www.elperiodico.com/es/politica/20201006/sentencia-
tamara-carrasco-absolucion-8144080 (último acceso 23.10.2020). Tampoco ha merecido la calificación de terrorismo (aunque
sí una severísima condena por lesiones y atentado) —a pesar de que la sostenía, de nuevo, la Fiscalía (cfr. también el auto del
Juzgado Central de Instrucción número 3 de 25 de octubre de 2016 que admitió la competencia de la jurisdicción especial de
la AN, que habla de la llamada «alternativa KAS» —un plan de acción del separatismo vasco nucleado en torno a ETA
y Herri Batasuna—, de los años ochenta del siglo pasado, y de ETA [FJ 1], como si no hubiera pasado nada desde entonces)
— una agresión física a miembros de la Guardia Civil (por el hecho de serlo) ocurrida en Navarra (caso Altsasu/Alsásua;
sentencia de la Sala de lo Penal de la Audiencia Nacional, Sección 1ª 17/2018, de 1 de junio). En todo caso, en este ámbito se
observa con claridad que todo delito de terrorismo, si no queremos alejarnos del sentido común, de la directiva de la Unión
Europea de 2017, de la tradición jurídica española y del significado de las palabras en el lenguaje común, implica la utilización
de violencia gravísima contra personas para generar terror en la ciudadanía. Si no hay hechos violentos contra personas
destinados a generar una intimidación masiva de la población, no puede haber terrorismo en un Estado de Derecho. Son Estados
autoritarios los que extienden la noción de terrorismo para abarcar hechos delictivos comunes o incluso la mera disidencia
política. Lo que procede, por el contrario, es exigir siempre la concurrencia del programa de subversión política y la presencia
de violencia armada contra personas concretas, aparte de la génesis de terror que da nombre al delito.
146 SCHMID/DE GRAAF, Violence as Communication. Insurgent Terrorism and the Western News Media, 1982, p. 1; v. sobre

el lenguaje del terrorismo y lo que implica, por ejemplo, VERES, Los lenguajes del terrorismo, 2017, pp. 90 y ss., 129 y ss.
147 VERES, Los lenguajes del terrorismo, 2017, pp. 129 y ss.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
171

terrorismo siempre implica (debido al uso del instrumento de la intimidación masiva, que requiere de la
violencia contra personas) la lesión de bienes jurídicos individuales de gran relevancia, cuya producción,
además, significa una específica instrumentalización/despersonalización de los titulares.
Sumando y sintetizando estas características, cabe definir el delito de terrorismo, en cuanto
infracción diferenciada de las correspondientes figuras comunes, con ayuda de tres elementos: como
aquella infracción criminal que, cometida en un contexto colectivo, hace uso de violencia grave en una
estrategia de terror indiscriminado para alcanzar un objetivo político.

8. Terrorismo de Estado y terrorismo desde el Estado

a) El uso de la intimidación masiva por y desde el Estado

La utilización del instrumento de la intimidación masiva surge históricamente como elemento de


distintas formas de dominación social; a pesar de ello, el término «terrorismo» queda
habitualmente reservado para los actos llevados a cabo «desde abajo» cuando se define el terrorismo
como actividad delictiva. ¿Qué sucede cuando la técnica de la intimidación masiva parte del propio
Estado? ¿Supone alguna dificultad para la calificación como delitos de terrorismo de los hechos la
circunstancia de que se tratara de personas que actuaron desde dentro del Estado, ocupando posiciones
de máxima relevancia institucional, tanto en el ejército como en el gobierno civil de El Salvador?
Parece razonable distinguir dos hipótesis148: que todo el Estado sea la organización que lleva a
cabo una estrategia de comunicación que cabe calificar de terrorista, esto es, el terrorismo de Estado en
sentido estricto. Se trataría, entonces, de un Estado terrorista como especie del género de un Estado
constituido en «sistema de injusto»149. La utilización del terror por parte del Estado en su conjunto, la
cuestión del Estado terrorista, no se plantea como problema jurídico-penal en un sistema jurídico-
constitucional legítimo, como es obvio —y mucho menos en un Estado autoritario150. Dicho de otro
modo: desde la perspectiva del ordenamiento jurídico del Estado en cuestión no se puede concebir que
su actuación como tal sea terrorista: obviamente, no va a dirigir el hacha del término contra sí mismo.
Jurídicamente, por lo tanto, ha de tenerse en cuenta que hablar de terrorismo de Estado en este sentido no
es una calificación jurídico -penal: si se trata de una actuación del Estado ad extra, en el plano
internacional (por ejemplo: llevando a cabo un ataque armado contra la población civil de otro Estado o
territorio; ejecutando a distancia a determinadas personas ubicadas en otro Estado, sin procedimiento
alguno) que pudiera ser calificada de «terrorista», o, ad intra, de un Estado autoritario que hace uso del
terror como técnica de gobierno (como las dictaduras nazi o estalinista151, no hay más instrumento
externo a ese ordenamiento que los delitos de lesa humanidad y/o cometidos en un conflicto armado152,
pero no cabe la calificación jurídico- penal de terrorismo, ya que éste no existe como tal en el Derecho
Penal internacional. Como antes se ha indicado, no existe ni parámetro jurídico-internacional ni

148 Cfr. ya CANCIO MELIÁ, Los delitos de terrorismo, 2010, pp. 187 y ss.
149 LAMPE, ZStW 106 (1994), pp. 683 y ss., 687 y ss., 693 y ss., 695 y ss.
150 CARNEVALI RODRÍGUEZ, Estudios Constitucionales 13 (2015), pp. 203 y ss., 204.
151 Cfr. sobre esto sólo KERSHAW, To Hell and Back. Europe 1914-1949, 2016, pp. 265 y ss., 270 y ss., 283 y ss., 286 y ss.,

290 y ss.
152 Los problemas concursales que se generan entre estas infracciones en los casos en los que es posible calificar los hechos con

base a ambos grupos de delitos deben quedar aquí fuera de consideración.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
172 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

jurisdicción internacional sobre la definición de terrorismo, puesto que esta noción siempre se halla
estrechamente vinculada a la legitimidad de cada sistema político, de modo que Estados que no
compartan las bases de sus elementos estructurales de constitución política no podrán generar conceptos
de terrorismo compatibles.
Distinta es la cuestión, sin embargo, referida a determinados colectivos que actúen desde el Estado
(constitucional) en el plano interno de un determinado Estado, el terrorismo desde el Estado: ¿son
terroristas en términos jurídicopenales (nacionales153) las actuaciones de determinados grupos dentro
de organismos del Estado que puedan calificarse de terroristas (orientadas a la intimidación masiva de
la ciudadanía), como los elementos que constituyeron las Juntas Militares golpistas en las repúblicas
sudamericanas en el S. XX, o los grupos clandestinos dentro del ejército peruano que se dedicaron a
acciones criminales durante el gobierno de Alberto Fujimori, los GAL, la banda parapolicial que atentó
durante el gobierno de Felipe González, o, en el caso que aquí interesa, la unidad de comando del
batallón Atlacatl que ejecutó la orden impartida por el Alto Mando Militar de asesinar a los jesuitas:
grupos de carácter parapolicial y — militar que actúen de forma organizada desde la propia estructura
estatal154? A diferencia del terrorismo de Estado en sentido estricto al que acaba de hacerse referencia
—en el que es el Estado como tal que despliega la actuación terrorista—, sí entran en la noción típica
de los delitos de terrorismo, como se intentará mostrar a continuación; la subsunción efectuada en la
resolución resulta acertada.
Ello implica —ha de señalarse desde el principio— rechazar una posición que ha sostenido la
jurisprudencia española —si bien antes de la introducción de la definición típica del concepto de
terrorismo en el CP 1995 (subvertir el orden constitucional o alterar gravemente la paz pública)— en
alguna ocasión. De acuerdo con ese entendimiento restrictivo, quedarían excluidas del número que aquí
interesa —aparte de grupos de delincuencia común que cumplan con los demás elementos del
concepto— aquellas organizaciones que desde la misma Administración pública pudieran realizar
actividades propias de una banda armada precisamente para combatir otras organizaciones de índole
terrorista, ya que no se trataría de un terrorismo subversivo, sino de actos de terrorismo sólo aparentes,
ya que no pueden recibir tal calificación jurídico-penal aquellas conductas que pretendan —aunque sea a
través de medios penalmente típicos— «conservar» el sistema jurídico-constitucional. Así, en una
ocasión, la Audiencia Nacional afirmó que una organización de actuación violenta dirigida
predominantemente contra supuestos terroristas de ETA, los autodenominados «GAL»155, no podía ser
terrorista porque su actividad delictiva no estaba dirigida a subvertir, sino a mantener ese orden 156. En
este punto, el Tribunal Supremo en su sentencia referida a la misma organización parapolicial discrepó
de esta posición:

«Hay una clara y manifiesta distinción entre asociación y banda armada en general.
Distinción que ha de girar en torno al contenido, naturaleza, extensión y fines que se

153 Sobre la cuestión de estas conductas como delitos internacionales en cuanto lesivos de los derechos humanos, v.
CARNEVALI RODRÍGUEZ, Estudios Constitucionales 13 (2015), pp. 203 y ss., 209 y ss., 212 y ss.
154
Es decir, lo que muchas veces también suele denominarse «terrorismo de Estado», aunque esta sea una terminología aún
más marcada que la de mero «terrorismo» (insurgente) por la utilización política del concepto; LAMARCA PÉREZ, ADPCP
1993, p. 539. Así, por ejemplo, LAMARCA PÉREZ afirma (ADPCP 1993, pp. 539 y ss., 541) que hablar de «terrorismo de
Estado» en el plano interno no deja de ser una mera imagen metafórica. Esto es correcto, sin duda alguna, si lo que se pretende
afirmar es que el Estado no se podrá calificar a sí mismo, en términos jurídicos, como «terrorista». No implica, por el contrario
—tampoco para la autora en cuestión (v., por ejemplo, loc. cit., p. 542) — que no pueda haber delitos de terrorismo cometidos
desde el Estado.
155 «Grupos Antiterroristas de Liberación».
156 Sentencia de la Sala de lo Penal de la Audiencia Nacional, Sección 3ª, de 20 de septiembre de 1991.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
173

persiguen por medio de tales «agrupaciones delictivas». El legislador ha querido


separar la asociación que se mueve en torno a la delincuencia común, de aquella
agrupación armada que actúa inmersa en el mundo del terrorismo, aunque
expresamente, y desde el punto de vista gramatical, banda armada y organización
terrorista sean conceptos distintos pero parejos. …La banda y la organización tienen
una mayor entidad en tanto que buscan la subversión del orden social establecido o la
derrocación del sistema democrático que como programación política regula el
desenvolvimiento de un Estado, su presente y su futuro, y el ejercicio de los derechos
y obligaciones de la ciudadanía, en cualquier caso por métodos violentos, inhumanos
e insolidarios que en el supuesto de la organización terrorista o rebelde implican la
finalidad expresa de «infundir terror» a todos los niveles.» 157

En todo caso, parece claro que la afirmación de que organizaciones que pretendan defender el
orden constitucional por medios violentos no podrían ser calificadas de terroristas no podrá repetirse;
pues ya el Código de 1995 se refería en los delitos de terrorismo (art. 571 CP) a bandas, organizaciones
o grupos «cuya finalidad sea la de subvertir el orden constitucional o alterar gravemente la paz pública».
Esta definición del legislador de 1995 debía, desde esta perspectiva, afectar a la interpretación del
concepto158, facilitando la inclusión en el concepto de terrorismo de los grupos paraestatales. A día de
hoy, tras la LO 2/2015, con la redacción tan amplia contenida en el tipo mixto alternativo del art. 573
CP que define las finalidades terroristas, hay aún menos problemas de subsunción formal: un grupo de
guerra sucia, puede, desde luego, «desestabilizar gravemente el funcionamiento de las instituciones
políticas o de las estructuras económicas o sociales del Estado», o «provocar terror» en una parte de la
población.
Sin embargo, la conclusión de que este tipo de actuaciones «conservadoras» del sistema jurídico-
constitucional entra de lleno en el ámbito de las infracciones de terrorismo no deriva (sólo) de una mera
interpretación aislada de la noción de «alteración grave de la paz pública» o de los demás términos que
utiliza el Derecho positivo para describir la proyección estratégica propia del terrorismo. Se infiere del
significado político que corresponde a la existencia de grupos de acción violenta dentro de las estructuras
del Estado: es en extremo subversivo que quienes ejercen funciones públicas ejerzan el terror. En
cambio, una organización criminal de corte mafioso —como las que con frecuencia se constituyen para
la distribución internacional de sustancias estupefacientes— puede generar, sobre todo en el contexto de
un conflicto con otro grupo, series de delitos gravísimos que pueden producir un verdadero sobresalto
público, y, sin embargo, no es terrorista. Ello se explica por el contexto de la regulación: ni esa mera
dimensión cuantitativa de las infracciones, ni su gravedad individual, pueden transmutar la organización
en terrorista, y la razón de ello está en que la proyección estratégica política de la organización
debe concebirse en un sentido político.
Sin embargo, parece claro que, por ejemplo, los grupos de guerra sucia que puedan surgir de la
propia estructura del Estado —normalmente, de las organizaciones armadas del mismo—, precisamente
por su pertenencia a la estructura del Estado, sí expresan una finalidad política: la de cambiar una piedra
angular de la estructura del Estado, la neutralidad de la Administración pública, para combatir con los
medios violentos propios de las infracciones de terrorismo a determinados grupos, sean políticos,

157 STS de 12 de marzo de 1992, sin subrayado en el original; v. sobre este supuesto en particular — caso Amedo y
Domínguez— sólo el análisis crítico de LAMARCA PÉREZ, ADPCP 1993, pp. 535 y ss., 547 y ss.; la sigue CAPITA
REMEZAL, Análisis, 2008, pp. 47 y s.; la STS 785/2000, de 30 de abril ha apreciado en esa organización posteriormente la
condición de «banda armada».
158 Cfr. esta argumentación ya en CANCIO MELIÁ, en: Rodríguez Mourullo/Jorge Barreiro (dir.), Comentarios al Código

Penal, 1997, p. 1287.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
174 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

insurgentes o terroristas. Este factor —el aprovechamiento de las estructuras personales y materiales del
Estado— domina de modo tan intenso sobre los demás aspectos de la configuración de los grupos en
cuestión que incluso puede afirmarse la concurrencia de los elementos de proyección estratégica típicos
en bandas parapoliciales que se dedican —como sucede, por ejemplo, con especial intensidad en algunas
grandes ciudades de Brasil— a campañas de exterminio de «delincuentes» comunes, y sólo a eso. Una
organización armada de servidores públicos siempre es una organización política en el sentido de los
delitos de terrorismo. Dicho de otro modo: una banda parapolicial no pretende «conservar» el orden
constitucional actualmente establecido, sino que siempre lo subvierte. La argumentación contraria
contenida en la resolución de la Audiencia Nacional antes mencionada —la idea de que se «defiende» el
orden constitucional de un Estado como el español también en las cloacas, también con sangre en las
manos— es completamente intolerable en un orden constitucional legítimo. Es evidente, entonces, en el
plano de la exégesis de los términos definitorios de la proyección estratégica de los grupos y
organizaciones definidos, que este concepto jurídico-penal de terrorismo engloba los grupos que actúan
desde el mismo Estado159.

b) Subsunción

Desde esta perspectiva, la resolución aquí comentada, como se ha dicho, acierta al afirmar la
condición terrorista de los asesinatos enjuiciados. En todos los sistemas de incriminación relevantes —
las normas vigentes en España y en El Salvador en 1989, y las actualmente en vigor en España—, cabe
interpretar que los delitos de terrorismo en sentido estricto exigen que concurran los tres elementos que
antes se mencionaban: en primer lugar, la existencia de una organización que vehicule, lidere u organice
la actividad delictiva; en segundo lugar, que se haga uso del terror en sentido estricto (intimidación
masiva), esto es, que se ataque violentamente a determinadas personas por el hecho de formar parte de
una categoría de sujetos definidos como enemigos, esto es, una violencia simbólica para generar terror en
la ciudadanía; finalmente, en tercer lugar, que la actividad terrorista persiga un fin de índole político (sobre
todo: subvertir el orden constitucional).
Como va indicando el Tribunal, no hay dudas de que estos tres elementos concurren.
En primer lugar, se trata de un colectivo el que organiza la actividad: no exactamente las
instituciones civiles y militares de gobierno de las fuerzas armadas de El Salvador —ni el Alto Mando
del que partió la orden de matar a Ellacuría—, sino, como ya se ha señalado, un grupo, un colectivo bien
definido de corte mafioso —la promoción de oficiales de las Fuerzas Armadas de El Salvador conocida
como La Tandona—, representado por distintas personas en los órganos del Estado. Entre estas personas

159 También incluyen expresamente, con base en diversas argumentaciones, los grupos dedicados al terrorismo de Estado en las
organizaciones típicas de la regulación española, por ejemplo, FEIJOO SÁNCHEZ, La Ley 1998-6, p. 2274; DE PRADA
SOLAESA, JpD 1996, pp. 73, 74, aunque parece pensar —en contra de lo acabado de exponer— que la definición de la
proyección estratégica del CP 1995 dificulta la inclusión en el ámbito del terrorismo estas conductas; MUÑOZ CONDE, en:
Losano/Muñoz Conde, El Derecho ante la globalización y el terrorismo, 2004, p. 166; REBOLLO VARGAS, en: Córdoba
Roda/García Arán, Comentarios al Código Penal, Parte Especial, II, 2001, p. 2448; CARBONELL MATEU, en: Gómez
Colomer/González Cussac, Terrorismo y proceso penal acusatorio, 2006, p. 50 (denominándolo «terrorismo de
poder»); GRUPO DE ESTUDIOS DE POLÍTICA CRIMINAL, Una alternativa a la actual política criminal sobre terrorismo,
2008, p. 25; CARNEVALI RODRÍGUEZ, Estudios Constitucionales 13 (2015), pp. 203 y ss.; es discutible, al menos, la
afirmación de que sería opinión dominante la posición contraria a la inclusión de las actividades provenientes del Estado en la
noción de terrorismo (así GONZÁLEZ CUSSAC, en: Gómez Colomer/González Cussac: Terrorismo, p. 75). V. también,
respecto de los sucesos en torno a la organización parapolicial denominada GAL PORTILLA CONTRERAS, LH Barbero
Santos, 2001, pp. 500 y ss.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
175

se contaba, de modo destacado, el acusado, como uno de los sujetos que integraba (al margen y más allá
de su rango oficial como viceministro de seguridad pública y de su pertenencia al Alto Mando de las
Fuerzas Armadas) el nivel de decisión (un grupo llamado los compadres) del grupo infiltrado en esos
organismos (FJ 1, 3, 7)160. El colectivo presenta una acusada diferenciación funcional, con tareas y
competencias delimitadas y una jerarquía claramente definida: el instrumento concreto usado para
ejecutar los hechos por los sujetos de ese nivel de mando del grupo La Tandona fue una unidad de
combate irregular, los comandos del Batallón de Respuesta Rápida especial Atlacatl, esto es, una unidad
militar sometida a la cadena de mando, atribuyéndose el mando ad hoc para los asesinatos en la UCA
al entonces Director de la Escuela Militar161. Más allá de que — como se ha indicado ya en el texto162
— esta estructura es la que da lugar a que el tribunal haga uso de la noción de coautoría mediata a través
de un aparato organizado de poder para fundar la condena, su existencia además muestra bien a las claras
que concurre el elemento organizativo-colectivo propio del terrorismo.
En segundo lugar, es evidente que los asesinatos puestos en marcha por el colectivo infiltrado en el
ejército de El Salvador perseguían en un primer plano un efecto de intimidación colectiva. Se trataba de
hacer ver a aquellas personas que —como promovía de modo muy destacado, desde su posición
académica, Ignacio Ellacuría— defendían la conveniencia de iniciar un proceso de diálogo para acabar
con la guerra civil que pasaban a ser objetivo a eliminar por parte de las Fuerzas Armadas. Como señala
la sentencia163 los asesinatos formaban parte, en este sentido, de una campaña de comunicación —la
emisora del ejército había señalado a Ellacuría días antes como miembro o encubridor intelectual del
FMLN— de las Fuerzas Armadas —decidida por la cúpula de La Tandona— para evitar un cese de la
actividad armada y promover una opción por la continuación de las hostilidades que convenía a sus
intereses corporativos.
Finalmente, en tercer lugar, como es obvio, la finalidad de los integrantes de La Tandona, entre
ellos, el acusado, de pretender tomar las decisiones sobre la conducción de la guerra civil en El Salvador
a la que acaba de aludirse, al margen de todo procedimiento constitucional, mediante el asesinato,
supone una finalidad política de carácter subversivo en el sentido que antes se ha expuesto: se trataba de
sustituir las leyes de la República por el gobierno violento de un grupo mafioso.

Recebido: 25/07/2023
Aprovado: 17/09/2023

160 Cfr. el análisis de lo sucedido también en el informe elaborado por AGUDELO MANCERA/GARCÍA
BARRIGA/MARTÍNEZ ABREU/POZA MIGUEL/PENA GONZÁLEZ/TORRES, Revista Penal 42 (2018), pp. 288 y ss.
161 Sentencia HP, primero a tercero.
162 V. supra, 5.
163 HP tercero y FJ cuarto.
177
O judiciário e as instituições
de repressão frente ao discurso
midiático de tolerância zero

The judiciary and the institutions of repression


facing the zero tolerance media discourse

Doacir Gonçalves de Quadros


Doutor em Sociologia (Universidade Federal do Paraná – UFPR). Professor de Ciência
Política e do Programa de Mestrado Acadêmico em Direito (Uninter). Coordenador do
Grupo de Pesquisa “Justiça e poder político: a relação entre o campo jurídico e o campo
político e a apropriação do direito como recurso de luta política” (Uninter), Curitiba,
Paraná, Brasil.

Ezequiel Schukes Quister


Advogado pós-graduado em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Jornalista
diplomado. Possui graduação em Direito e Comunicação Social, ambos pelo Centro
Universitário Internacional

Resumo: O objetivo do artigo é refletir sobre o discurso midiático de “tolerância zero” e o seu
impacto sobre a atuação do poder Judiciário e das instituições de repressão estatal. Estimativas
do Departamento de Polícia Penal (Depen) mostram que no Brasil, até 2025, a população
carcerária chegará a 1,5 milhão de pessoas, justificando-se o debate pelo aumento do
encarceramento prisional no país. Neste artigo, a partir do método analítico-dedutivo aplicado à
reflexão teórica sobre a literatura especializada do Direito Penal e da Criminologia, discute-se a
disseminação do discurso de “tolerância zero” como modus operandi das autoridades estatais.
Esse discurso é fruto da apologia da cobertura sensacionalista adotada pelos meios de
comunicação que abordam os crimes; além disso, esse discurso influencia o comportamento de
juízes, tribunais, cortes e das próprias instituições de repressão estatal, às vezes em detrimento da
proteção dos direitos constitucionais.

Palavras-chave: política de tolerância zero; criminalização; encarceramento; repressão; discurso


midiático.

Abstract: The objective of this article is to reflect on the media discourse of “zero tolerance” and
its impact on the performance of the Judiciary and institutions of state repression. Estimates from
the Brazilian Criminal Police Department (Depen) show that the imprisoned population in Brazil
will reach 1.5 million people in 2025, justifying the debate in view of the increase incarceration
in the country. In this article, based on the analytical-deductive method applied to the theoretical
reflection on the literature referring to Criminal Law and Criminology, it is argued about the
dissemination of the discourse of “zero tolerance” is the modus operandi of state authorities,
which is praised and propagated by the sensationalist media and influencing the behavior of
judges, courts, courts and the very institutions of state repression to the detriment, sometimes, of
the protection of constitutional rights.

Keywords: zero tolerance policy; criminalization; incarceration; repression; media discourse.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
178 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

1. Introdução

O objetivo deste artigo é refletir sobre o discurso midiático de “tolerância zero” e a sua
repercussão sobre a atuação do poder Judiciário e das instituições de repressão estatal1.
A referida expressão “tolerância zero” tornou-se um mantra aliado à ideologia do sistema, no
sentido de reprimir como meio de coibir a criminalidade. Esse plano de segurança adotado em Nova
York entre 1980 e 1990 consiste em um modelo de repreensão e encarceramento por meio de normas
de conduta. O plano de segurança “tolerância zero” como discurso também está presente nas práticas
jornalísticas que se dedicam exclusivamente à cobertura da violência e dos casos penais. De acordo com
John Pratt, o crime faz parte da agenda midiática porque desperta o interesse da opinião pública2. Esse
autor sustenta que a divulgação midiática sobre crimes chocam, assustam, excitam e causam o
entretenimento no público, impulsionando o consumo de jornais e programas de televisão.
É possível indagar o porquê de tais temas serem tão atraentes para os mais variados públicos, da
televisão à internet. No Brasil a televisão é o meio de comunicação que está presente em 95% dos
domicílios, conforme os dados divulgados em 2019 pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD)3. Em consequência, isso se reflete na maneira como o brasileiro compreende e expressa-se em
relação à violência, em especial em relação aos crimes de homicídio. O Instituto de Pesquisa Datafolha4
mostrou que 87% dos brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal e presume-se que esse
comportamento é resultado da sensação de insegurança que o brasileiro sente em virtude do aumento da
violência no país. Televisão, rádios e jornais impressos, ao fazerem suas coberturas sobre crimes,
utilizam-se do sensacionalismo em suas chamadas para atrair o seu público alvo. Além disso, esses
meios de comunicação repetem que para combater o crime é necessário o recrudescimento penal, isto é,
a adoção da política de “tolerância zero”.
O crime, portanto, torna-se um produto, cujo interesse midiático sobre ele mostra-se intenso.
Todavia, deveria ser claro que esse tema não deveria ser tratado em torno do espetacular e do
sensacionalismo, na medida em que se trata, segundo Howard Becker, de um problema inerente à
sociedade5. Consequentemente, esse viés da cobertura midiática sobre crimes de homicídios em torno
do discurso de “tolerância zero” acarreta por vezes estigmatização das pessoas e o recrudescimento das
instituições penais. Arthur Souza observa que esse viés da cobertura midiática incita o desejo de a
opinião pública tornar-se juiz e substituir os magistrados nos julgamentos penais6; em outras palavras,
cria-se o “tribunal da opinião pública”. O discurso de “tolerância zero” disseminado pela cobertura da
mídia sobre a violência pressiona as instituições repressivas estatais de modo a ocorrer o

1 Os autores declaram que o presente artigo é o resultado de uma pesquisa autônoma, tendo sido escrito sem qualquer tipo de
financiamento, fomento ou benefício, público ou privado. Além disso, os autores declaram que eles não têm qualquer tipo de
conflito de interesses que possam comprometer a cientificidade do presente artigo.
2
PRATT, John. Penal Populism: Key Ideas In Criminology. London: Routledge, 2007. p. 68.
3 BRASIL. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Acesso à internet e à televisão e posse de

telefone móvel celular para uso pessoal 2019. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2021. p. 2.
Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101794_informativo.pdf. Acesso em 19 jul. 2021.
4 DATAFOLHA. Maioridade penal. São Paulo: Instituto de Pesquisa Datafolha, 2015. Disponível em:
http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2015/04/24/maioridade-penal.pdf. Acesso em 20 jul. 2021.
5 Segundo Howard S. Becker, o crime (ou o desvio) é criado pela sociedade. (Cf. BECKER, Howard. Outsiders: estudos de

sociologia do desvio. Trad. Maria Luiza X. Borges; rev. técnica Karina Kuschnir. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. p. 21.)
6 SOUZA, Artur César de. A decisão do juiz e a influência da mídia. Curitiba: Revista dos Tribunais, 2010. p. 29.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
179

recrudescimento penal com o aumento do encarceramento, sobretudo de negros e pobres7.


Neste artigo, por meio do método analítico-dedutivo, realizado a partir da reflexão teórica sobre
a literatura especializada do Direito Penal e da Criminologia, argumenta-se que o apelo midiático
sensacionalista para conter o crime corrobora a resposta ostensiva das instituições repressivas e judiciais
do Estado. Em torno do discurso midiático de “tolerância zero” observa-se o protagonismo do poder
Judiciário incitado pela necessária resposta urgente que deve ser dada ao tribunal da opinião pública
criado pela cobertura sensacionalista da mídia. Neste artigo dar-se-á destaque para o sistema penal do
Brasil, que tende a adotar uma técnica de neutralização seletiva e preventiva.
Para atingir o objetivo proposto iniciamos refletindo sobre o retrato da população carcerária do
Brasil; em seguida abordamos a cobertura midiática dos crimes de homicídio; passamos então para o
protagonismo do poder Judiciário e o recrudescimento penal na matéria; por fim, faremos algumas
considerações a título de conclusão do artigo.

2. O retrato da população carcerária no Brasil e o plano de segurança “tolerância zero”

No início da década de 1990 a população carcerária do Brasil era de 126.000 presos. Desse total,
cerca de 95% não tinha dinheiro para pagar custas advocatícias para a própria defesa8. Conforme os
dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), no final de 2019 a população carcerária total,
considerando homens e mulheres, era de 748.009 pessoas9: em outras palavras, passadas três décadas,
houve o aumento de 493% da população carcerária.
Ao verificarmos a questão da cor da pele, as estatísticas apontam que 67% da população carcerária
é composta por pessoas negras, conforme ilustra o Quadro 1, abaixo.

Quadro 1 – Etnografia da cor da pele da população carcerária

Fonte: Perfil das pessoas presas no Brasil10

7 Tendo em vista que os estereótipos constituem um mecanismo de seleção formal, é isso que explica porque a clientela da
prisão é uniforme. (Cf. BUDÓ, Marília de Nardim. Mídia e controle social: da construção da criminalidade dos movimentos
sociais à reprodução da violência estrutural. Rio de Janeiro: Revan, 2013. p. 37.)
8 LEITE, Paulo Moreira. A outra história do mensalão: as contradições de um julgamento político. São Paulo: Geração, 2013.

p. 17.
9 BRASIL. Ministério da Justiça. Depen lança Infopen com dados de dezembro de 2019. Brasília: Ministério da Justiça,

2020. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/noticias/depen-lanca-infopen-com-dados-de-dezembro-de-


2019. Acesso em 29 dez. 2020.
10 Perfil das pessoas presas no Brasil. Em Discussão, Brasília, n. 29, p. 22, 2016. Disponível em:

https://www12.senado.leg.br/noticias/acervo-historico/em-discussao/arquivos/29/@@download. Acesso em 29 dez. 2020.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
180 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

O Quadro 2, abaixo, contém o perfil socioeconômico dos presos no Brasil, indicando que 53% da
população carcerária no país não concluiu o Ensino Médio; além disso, menos de 1% dos presos possui
graduação, o que é um indicador de baixa renda, segundo a fonte.

Quadro 2 – Formação educacional da população carcerária

Fonte: Brasil. Câmara dos deputados11

O Quadro 3, abaixo, elaborado pelo Depen, apresenta os tipos de crimes que resultaram em
condenação e suas respectivas proporções, distribuídas por sexo. Nesse quadro, as faixas em azul escuro
indicam os crimes patrimoniais (roubo, furto), as faixas em azul claro indicam crime de tráfico de drogas
e, por fim, os crimes contra a vida são representados pelas faixas laranjas.

11 BRASIL. Câmara dos Deputados. Sistema carcerário brasileiro: negros e pobres na prisão. Brasília: Câmara dos
Deputados, 2018. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/
noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao. Acesso em 29 dez. 2020.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
181

Quadro 3 – Tipos de crimes (em %)

Fonte: Brasil. Ministério da Justiça12.

Vale destacar que parte significativa dessa população carcerária é resultado do funcionamento do
sistema econômico13, isto é, o número de encarcerados é reflexo das crises econômicas que afetam a
população por meio do excesso de mão de obra, da falta de emprego, falta de mão de obra qualificada
para a inserção no mercado de trabalho etc. Segundo estimativa do Depen14, se mantido esse ritmo, a
população carcerária brasileira chegará em 2025 a 1,5 milhão de pessoas, o que nos condiz diretamente
ao debate sobre as funções do cárcere e sua utilidade em nosso país.
Os dados acima ilustram o fenômeno econômico delineado por Gilberto Dupas15 como o impacto
de uma nova ordem mundial de um mercado comum neoliberalista e a interferência dos atores do capital
sobre as decisões dos governos nos países na América do Sul. Para Dupas os atores do capital mundial
passam a pressionar os governos dos países sul-americanos a aderirem aos seus interesses econômicos
neoliberais, rompendo os limites ou as barreiras nacionais que impediam a entrada e o avanço do capital
mundial. Como consequência ocorre à inoperância dos poderes públicos no atendimento das demandas
sociais básicas na habitação, escola, saúde e trabalho que garantem a sobrevivência dos cidadãos. Um

12 BRASIL. Ministério da Justiça. Quantidade de incidências por tipo penal. Período de julho a dezembro de 2019. Brasília:
Ministério da Justiça, 2020. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYWY5NjFmZjctOTJmNi00MmY3LT
hlMTEtNWYwOTlmODFjYWQ5IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9 .
Acesso em 11 dez. 2020.
13 Para um estudo detalhado sobre a evolução da prisão a partir do sistema capitalista, cf. MELOSSI, Dário; PAVARINI,

Mássimo. Cárcere e fábrica. As origens do sistema penitenciário. Séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
14 VASCONCELOS, Caê. Com 812 mil pessoas presas, Brasil mantém a terceira maior população carcerária do mundo. Ponte,

São Paulo, 19 jul. 2019. Disponível em: https://ponte.org/com-812-mil-pessoas-presas-brasil-mantem-a-terceira-maior-


populacao-carceraria-do-mundo/. Acesso em 18 jun. 2020.
15 DUPAS, Gilberto. Atores e poderes na nova ordem global: assimetrias, instabilidades e imperativos de legitimação.

São Paulo: UNESP, 2005.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
182 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Estado administrado por um governo ineficiente em ditar o crescimento econômico autossustentado. Por
um lado, a o contraste da redução de postos de trabalho e o avanço da informalidade no mercado de
trabalho com a não observância dos direitos fundamentais trabalhistas. Segundo Luís Antônio Francisco
de Souza nos países da América Latina os direitos políticos e sociais estão legitimados
constitucionalmente, porém não são implementados levando ao aumento da pobreza e da violência16.
Em resposta para a contenção da violência oriunda da pobreza, foi nos idos de 1990, nos Estados
Unidos, que a expressão “tolerância zero” ganhou sua conotação mais expressiva. Naquela década os
altos índices de criminalidade e a escalada da violência levaram o então Prefeito de Nova York, Rudolph
Giuliani, a executar um plano de segurança com repressão maciça da delinquência, sem se importar com
as ações discricionárias da polícia. Os menores delitos eram punidos com o máximo rigor17. A
criminalidade no centro de Nova York forçou a reconfiguração dos espaços públicos; até mesmo a
limpeza geral das ruas era questão de ordem e visava a reprimir a ação de delinquentes com fundamento
na ideia de que criminalidade surgia do centro para a periferia da cidade18.
Assim, a expressão “tolerância zero” tornou-se um mantra aliado à ideologia que consiste em
reprimir a população como meio de coibir o crime. Isso não era essencialmente algo novo, pois se sabe
que tal conceito já vinha de longa data, desde a década de 1970, quando da instituição da política da Lei
e Ordem19.
Esse plano de segurança em Nova York foi baseado em uma teoria conhecida como “Broken
Windows” (teoria das janelas quebradas), elaborada na Universidade de Chicago por James Q. Wilson
e George Kelling20. Como sugere Alessandro Baratta, essa teoria não levava em consideração que a
criminalidade em Nova York estava “ligada a fatores pessoais e sociais correlacionados com
pobreza”21. O crime é reflexo de problemas sociais como da desigualdade de classes; do
aprofundamento da miséria; da ausência do Estado; da falta de emprego; das más condições de moradia
e saúde da população. Por isso, como bem cita Juarez Cirino dos Santos, “a pesquisa histórica mostra
que a aplicação das normas criminais depende da posição de classe do acusado”22.

16 SOUZA, LAF., org. Políticas de segurança pública no estado de São Paulo: situações e perspectivas a partir das
pesquisas do Observatório de Segurança Pública da UNESP [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2009. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/7yddh/pdf/souza-9788579830198.pdf
17 ARAGÃO. Ivo Rezende. Movimento da Lei e Ordem: sua relação com a lei dos crimes hediondos. Âmbito Jurídico, n. 77,

1º jun. 2010. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/movimento-da-lei-e-ordem-sua-relacao-


com-a-lei-dos-crimes-hediondos/. Acesso em 10 nov. 2020.
18 Criminalidade estruturada de maneira concêntrica, ou seja, do centro para a periferia. Assim, verifica-se que os primeiros

estudos da Escola de Chicago de Criminologia (a Primeira Escola vai de 1915 a 1940, enquanto a segunda escola vai de 1945
a 1960) indicavam uma relação direta entre organização do espaço urbano e criminalidade. (Cf. BANDEIRA, Thais;
PORTUGAL, Daniela. Criminologia. Salvador: UFBA, 2017. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream
/capes/174993/4/eBook_Criminologia-Tecnologia_em_Seguranca_Publica_UFBA.pdf. Acesso em 29 jun. 2020.)
19 Um dos princípios do Movimento de Lei e Ordem separa a sociedade em dois grupos: o primeiro, composto de pessoas de

bem, merecedoras de proteção legal; o segundo, de homens maus, os delinquentes, aos quais se endereça toda a rudeza e
severidade da lei penal. (Cf. ARAGÃO, op. cit, 2010.)
20
Segundo essa teoria, metaforicamente falando, edifícios ou residências abandonados, que apresentem janelas quebrada que
não sejam reparadas rapidamente, têm grande probabilidade de sofrerem uma escalada na depredação, que se torna
generalizada, da parte de vândalos, desocupados e delinqüentes. É assim que essa teoria afirma que a desordem gera desordem.
(Cf. VERGAL, Sandro. A desordem e a teoria das janelas quebradas. Jusbrasil, São Paulo, 2012. Disponível em:
https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/121937294/a-desordem-e-a-teoria-das-janelas-quebradas. Acesso em 20 de
maio de 2020.)
21 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed.

Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 102.
22 SANTOS, op.cit., 2006, p. 28.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
183

Juarez Cirino dos Santos argumenta que, ao levar-se em conta os problemas sociais, “a lei se
destina à proteção dos interesses dos poderosos, enquanto a polícia e a prisão são garantias violentas de
uma ordem social injusta”, destinadas aos pobres23. A doutrina da Criminologia Radical24 vê no
contexto repressivo penal uma forma de manutenção do status quo das elites. Pode-se presumir, de
acordo com essa abordagem crítica, que a violência estrutural – que decorre das condições de
manutenção do capitalismo – quase nunca é pensada como “violência”. Os aspectos decorrentes da
concorrência desleal, da atuação dos oligopólios, da redução de direitos trabalhistas e de outros direitos
raramente são entendidos como violências, o que, segundo Pedro Hughes, é reflexo de um Estado
autoritário25. Isso torna evidente o modelo repressivo de Justiça Penal que criminaliza os
comportamentos da classe mais pobre e imuniza as elites.

Um simples exame empírico mostra a natureza classista da definição legal de crime e


da atividade dos aparelhos de controle e repressão social, como a polícia, a justiça e a
prisão, concentradas sobre os pobres, os membros de classes e categorias sociais
marginalizadas e miserabilizadas pelo capitalismo26.

Criminalidade e pobreza estão, por isso, sempre em evidência. Loïq Wacquant, em artigo
publicado em 2002 na revista Le Monde Diplomatique Brasil, argumentava que “o noticiário de TV
transformou-se em crônica de ocorrências policiais: um professor pedófilo; uma criança assassinada;
um ônibus apedrejado”27. Ou seja, não é porque tais crimes são mais recorrentes que são noticiados, mas
porque são crimes que chamam a atenção porque cometidos por gente pobre.
Vimos que o discurso da tolerância zero reveste-se de um modelo destinado à sujeição de
indivíduos pobres, por meio de normas de conduta, repressão de comportamentos e, em casos não raros,
encarceramento28; essas práticas seguem a lógica segundo a qual “[...] a aplicação das normas criminais
depende da posição de classe do acusado [...]; grupos marginalizados [...] têm maior probabilidade de
criminalização”29. Essa segregação do sistema criminal que se direciona contra as classes mais pobres
aponta um novo rumo do Direito Penal moderno: a proteção de funções dentro de um sistema
capitalista30.
De acordo com Helena Schiessl, Leandro Nunes e Luana Gusso, o que se verifica como função
primordial do Direito Penal burguês é que ele vai além dos aspectos de punir o delinquente, mas, cada
vez mais, transparece o seu caráter de protetor de funções (protege as funções econômicas, ambientais

23 SANTOS, op.cit., 2006, p. 45.


24 SANTOS, op.cit., 2006, p. 13.
25 Assim como ocorrido em Nova York, no Brasil as características mais presentes nos sistemas de controle social, oriundas de

programas e políticas de segurança, têm como foco: (1) a repressão policial, ensejando a morte cada vez mais numerosa de
civis por policiais; (2) o desaparelhamento do poder Judiciário, cuja ineficácia endossa a ação cada vez mais violenta da polícia
que age em nome do Estado; (3) por fim, a ausência, nas periferias, do poder estatal, permitindo que grupos criminosos façam
as leis. (Cf. HUGHES, Pedro Javier Aguerre. Segregação socioespacial e violência na cidade de São Paulo: referências para a
formulação de políticas públicas. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 4, out.-dez. 2004. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/spp/a/nFtYhwnhjzcTVXMzv7NWs5F/?lang=pt. Acesso em 20 maio 2020.)
26
SANTOS, op.cit., 2006, p. 11-12.
27 WACQUANT, Loïc. Dissecando a “tolerância zero”. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 1º jun. 2002. Disponível

em: https://diplomatique.org.br/dissecando-a-tolerancia-zero/. Acesso em 20 de maio de 2020.


28 SANTOS, op.cit., 2006, p. 45.
29 SANTOS, op.cit., 2006, p. 45-46.
30 A complementaridade das funções exercidas pelo sistema escolar e pelo penal responde à exigência de reproduzir e de

assegurar as relações sociais existentes, isto é, de conservar a realidade social. Essa realidade manifesta-se com uma desigual
distribuição dos recursos e dos benefícios, correspondentemente a uma estratificação em cujo fundo a sociedade capitalista
desenvolve zonas consistentes de subdesenvolvimento e de marginalização. (Cf. BARATTA, op cit., 2020, p.171).
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
184 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

e políticas, por exemplo) inerentes ao capitalismo. Essa expansão do Direito Penal, que busca alcançar
muitos mais dos bens jurídicos já tutelados, mostra uma tendência que aponta para outros domínios que
não o do Direito Penal, já que visa a proteger bens jurídicos não penais. É uma tendência forte com o
intuito de garantir a manutenção do sistema econômico, principalmente nos moldes do que Foucault
chamava de “inflação legal”, já que o Direito Penal expande-se junto com o mercado econômico31.
Nessa toada, é fácil perceber que, se o sistema penal serve ao capitalismo, o cárcere tem função
econômica: separar os inaptos, aqueles que não têm função produtiva no sistema capitalista e os pobres.
Percebe-se que “a modificação dos valores culturais da sociedade e a crise econômica propiciaram a
instauração de uma verdadeira guerra contra a pobreza, para a qual a instituição da prisão assumiu nova
função”32: a de separar os que não são úteis à economia. Os argumentos aqui trazidos apontam
tendências que se assemelham ao sistema repressivo baseado no discurso da tolerância zero, tratado nos
parágrafos anteriores; além disso, como vimos anteriormente, os números do encarceramento no país
confirmam isso e muito mais, ao indicarem quem são, quantos são e como chegaram à prisão aqueles
que lotam o sistema carcerário no Brasil.
O discurso de tolerância zero também está presente na divulgação dos “crimes de sangue” pelos
meios de comunicação. Uma consequência natural dessa divulgação é o aumento do medo e da
insegurança na sociedade, de modo que a corriqueira divulgação do crime sujeita os indivíduos a uma
tensão constante, colocando no imaginário coletivo que a possibilidade de sermos vítimas da violência
é apenas uma questão de tempo. No mesmo sentido, a mídia com frequência pressiona o Estado para
tomar ações ostensivas que resultam na manutenção da ordem e na prisão de criminosos com apelo
midiático-sensacionalista; assim, a condenação é medida que “se impõe”. Nesses termos, segundo
Juarez dos Santos, o criminoso é o inimigo social33.

3. O poder Judiciário e as instituições de repressão

No tribunal da opinião pública promovido pela cobertura da mídia sobre os crimes de homicídio
predomina um cenário de emoções irrefletidas, julgamentos prévios ou mesmo de conhecimento
limitado sobre determinado assunto (já que as reportagens são, no geral, um recorte limitado da
realidade). É comum o público julgar as situações pelos filtros da mídia, os quais não atendem aos
mesmos critérios técnicos e processuais jurídicos, sobretudo os critérios para a apuração da verdade
processual. Para Artur Cesar de Souza, a cobertura midiática sobre crimes de homicídio

[...] não se limita a um conteúdo meramente informativo, mas está sobrecarregada por
uma dramatização crítica, ideológica, valorativa e sugestionável, chegando a ponto de
hostilizar toda e qualquer decisão judicial que não esteja de acordo com o julgamento
prévio e paralelo realizado pelos mass media34.

31 CARDOSO, Helena Schiessl; NUNES, Leandro Gornicki; GUSSO, Luana de Carvalho. Criminologia contemporânea:
crítica às estratégias de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 55-56.
32 SILVA, Silvia Carolina Pamplona e. O discurso da política penal de tolerância zero. Curitiba. Monografia (Graduação

em Direito). Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em:
https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/30772. Acesso em 15 dez. 2020. p. 1.
33 SANTOS, op.cit., 2006, p. 76.
34 SOUZA, op. cit., 2010, p. 93.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
185

Notoriamente aqueles veículos de comunicação midiática que produzem programas


sensacionalistas, os quais veiculam crimes a todo instante, são os que mais fomentam toda espécie de
irreflexão no público35. Tais veículos exercem o julgamento prévio e, a partir disso, fomentam a atuação
mais dura da polícia, o cárcere mais rigoroso e fortalecem o ideal de correção do indivíduo pela prisão36.
Além disso, esses veículos criticam esforços os do poder Judiciário para aplicar medidas sócio-corretivas
ou medidas diferentes do encarceramento como, por exemplo, o uso de tornozeleiras eletrônicas e a
conversão de penas restritivas de liberdade em multa, entre outras medidas37.
No que concerne aos casos penais, a mídia sensacionalista tende a clamar respostas penais
imediatas. Consequentemente a situação sobre quando aplicar o Direito ou a Justiça fica turva e
imediatista. Para o pensamento comum do público, a justiça merecida para aquele que comete um crime
é a cadeia ou o cemitério. Nesse sentido, é importante refletir sobre a atuação judicial frente ao tribunal
da opinião pública criado pela cobertura sensacionalista da mídia sobre os crimes de homicídios e os
processos penais.
Os juízes, os tribunais e as cortes não se podem deixar levar pelo seu suposto protagonismo social
alardeado pelo “tribunal da opinião pública” e pelos meios de comunicação. O saudável protagonismo
é aquele em que o poder Judiciário busca medidas de justiça. Isso porque a complexidade do sistema
jurídico do Brasil e as constantes tendências políticas que por ele transpassam produzem efeitos
conflitantes. É nesse sentido que Luís Antônio Francisco de Souza e Gabriel de Souza Romero avençam
que “a situação da segurança pública no Brasil revela um paradoxo: o modelo que preza pela manutenção
da ordem democrática é operado através de um regime de exceção”38.
O argumento de Souza e Romero consiste em que esse “regime de exceção” remete ao exercício
do poder mediante intimidação, com o uso da violência estatal. Isto é, solapa-se o Estado de Direito, em
que se interpreta a lei, em benefício de um Estado de polícia, em que prevalece a razão das autoridades
na penalização com cárcere e na tipificação de condutas. É contra o Estado policial que o poder
Judiciário deve ser protagonista, ao restaurar a interpretação e a aplicação das normas e da justiça,
levando-se em conta os fundamentos do Estado de Direito e do bem-estar social, a fim de restabelecer
o equilíbrio e a paz social.
Retornando à abordagem sobre a atuação do poder Judiciário em face do “tribunal da opinião
pública” criado pelo apelo da mídia, é salutar que juízes, tribunais, e cortes tenham ciência que39

A desneutralização política do juiz, ao expor o Judiciário à crítica pública, sobretudo


e especialmente através dos meios de comunicação de massa, cria uma série de tensões
entre sua responsabilidade e sua independência, cuja expressão mais contundente está
na tese do controle externo do judiciário40.

35 Os meios de comunicação em massa, ao massificar a informação pelo discurso linguístico comunicacional, procura delimitar
o campo hermenêutico da interpretação do fato e do Direito, o que significa um implicador negativo na aferição da verdade
processual (SOUZA, op. cit., 2010, p. 53).
36 “A prisão produz e reproduz os fenômenos que, segundo o discurso ideológico, objetiva controlar ou reduzir” (SANTOS,

op. cit., 2006, p. 83).


37 MÜLLER, Vera Regina. “No Brasil, pensamos que só a cadeia resolve”. Carta Capital, São Paulo, 2 jan. 2012. Disponível

em: https://www.cartacapital.com.br/politica/no-brasil-pensamos-que-so-a-cadeia-resolve/. Acesso em 15 dez. 2020.


38 CARDOSO; NUNES; GUSSO, op. cit., 2018, p. 121.
39 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência? Revista da

Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 21, p. 12-21, 1994. p. 19.


40 FERRAZ JÚNIOR, op. cit., 1994, p. 19-20.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
186 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

No Brasil o não reconhecimento desse perigo tem levado juízes, tribunais e cortes a usarem
recursos judiciais e a extrapolar as funções investigativas da polícia e do Ministério Público, como no
exemplo do Habeas Corpus nº 95009-SP41, que foi concedido ao paciente diante de flagrantes
ilegalidades cometidas pelo magistrado no curso processual. Nesse exemplo, o juiz fez o papel de
inquisidor e determinou diligências a fim de encontrar provas que subsidiassem a prisão do réu e a
manutenção da medida. São notórios os riscos legais de parcialidade em um processo quando o juiz
ocupa ao mesmo tempo os papeis de investigador e de julgador42:

Ao permitir que o juiz se envolva pessoalmente na realização de diligências e [na]


formação de provas que possam posteriormente servir de base para o seu próprio
julgamento, tal dispositivo compromete a imparcialidade do juiz e consequentemente
o princípio do devido processo legal [...]43.

No Brasil o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido objeto de críticas de juristas acerca de
possíveis ações que extrapolam a sua competência constitucional. Um caso emblemático refere-se à
ausência do Ministério Público Federal no processo que apura a existência de um possível grupo
criminoso que divulga informações falsas pelas redes sociais e que tem como alvo o STF e as instituições
democráticas – é o denominado “Inquérito das Fake News”44.
A mesma defesa pelos fundamentos do Estado de Direito também deve estar presente nas
instituições penais ou repressivas do Estado. As investigações por parte da polícia operativa têm tomado
novas formas; prevendo a suposta especialização das quadrilhas, grupos e organizações criminosas,
consideram justas também novas formas de persecução penal.
Na verdade, o histórico das investigações policiais no Brasil aponta para uma tendência que
“baseou-se fundamentalmente na entrevista de suspeitos e testemunhas para produção de evidências
jurídicas que pudessem resultar em denúncias criminais”45. As ações de inteligência revestem-se de um
caráter operativo a fim de “prever, prevenir, neutralizar e reprimir criminosos”46; contudo, tais práticas
podem afrontar princípios constitucionais como o da ampla defesa, da inviolabilidade da casa e do

41 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Conversão de habeas corpus preventivo em habeas corpus liberatório. Habeas
Corpus n. 95.009-4. Relator: Min. Eros Grau. 6 nov. 2011. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=570249. Acesso em 20 jun. 2020.
42 GOMES, Luiz Flávio. Juiz que investiga não pode julgar (STJ suspende a ação penal no caso Castelo de Areia). Jusbrasil,

São Paulo, 2010. Disponível em: https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2087508/juiz-que-investiga-nao-pode-julgar-stj-


suspende-a-acao-penal-no-caso-castelo-de-areia. Acesso em 20 dez. 2020.
43 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.570. Diário da Justiça, Brasília, 22 out.

2004. Disponível em: http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfJurisprudencia


_pt_br&idConteudo=185076&modo=cms. Acesso em 20 jun. 2020.
44 PASSARINHO, Natália. Vítima, investigador e juiz em um só: inquérito de Toffoli deixa fraturas na relação do STF com os

outros poderes. BBC News Brasil, São Paulo, 20 abr. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47992337.
Acesso em 27 jun. 2020.
45 COSTA, Arthur Trindade Maranhão; OLIVEIRA JÚNIOR, Almir de. Novos padrões de investigação policial no Brasil.

Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 147-164, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=


S010269922016000100147&script=sci_arttext. Acesso em 12 set. 2020.
46 LEAL, Evandro Ornelas. Técnicas operacionais de inteligência e ações de busca na produção de provas em investigação

e processo criminal – admissibilidade e limites. São Paulo. Monografia (Especialização em Direito em Inteligência de Estado
e Inteligência de Segurança Pública). Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, 2016. Disponível em:
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/BibliotecaDi
gital/Publicacoes_MP/Todas_publicacoes/Evandro-Ornelas-Leal-TCC.pdf. Acesso em 12 set. 2020. p. 13.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
187

contraditório, entre outros47. Os exemplos dessas violações são inúmeros e vão desde o abuso de poder
até mesmo a agressão, a humilhação e homicídios perpetrados por agentes públicos no exercício de suas
funções48.
Para a polícia operativa, novas necessidades e comportamentos são necessários a fim de
acompanhar a evolução da criminalidade. É assim que escutas telefônicas, prisões e custódias
temporárias são justificadas. Contudo, isso demonstra um grande retrocesso ao limitar e desconsiderar
as garantias constitucionais como os princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla
defesa e da presunção de inocência, principalmente quando as ações e prisão não encontram
motivação49.
A “polícia operativa” corresponde às polícias judiciária, militar, federal, as quais, às vezes,
buscam fazer parte não apenas do processo acusatório de colher provas e/ou conter a violência, mas
também usam de sua função para a realização de julgamentos antecipados, extrapolando suas funções
de investigação e repressão. Nesse sentido, atualmente elas visam a conter a violência por meio da
eliminação dos autores de crimes50, sem que haja um justo julgamento dos casos.
Quando o Estado de Direito não se faz presente, os anseios da sociedade voltam-se para o Estado
de polícia; é evidente que em muitas situações essa condição encontra guarida na opinião pública e no
apelo midiático. O medo generalizado e difundido pelas mídias reforça a ideia do crime constante e da
vitimização iminente; logo, o cidadão acredita que os meios utilizados pela polícia justificam seus fins.

A super-representação da violência nos meios de comunicação, reflexo de um sistema


comercial da mídia, que impõe a primazia do sensacional por força da ditadura do
índice de audiência – também gera uma falsa ideia no imaginário social sobre a
ocorrência real dos crimes violentos na sociedade. Dessa maneira, sem nenhum
respaldo científico, a exploração econômica de situações de “negatividade social” por
meio do serviço noticioso instala e reforça um clima de insegurança pública na
sociedade51.

É um sistema que se retroalimenta: quando divulga constantemente certos crimes, a mídia fomenta
um comportamento contraproducente da polícia que, por sua vez, em virtude da opinião pública atiçada

47 LEAL, op. cit., 2016. Em um trecho do texto o autor cita que considera um “abuso de defesa” a questão do advogado requer
ao juízo a identificação do agente que plantou uma escuta telefônica, ainda que autorizada. Diz ele (LEAL, op. cit., 2016, p.
16):
A nosso ver, constitui verdadeiro abuso do direito de defesa a pretensão de identificar o agente que implantou o aparelho de
escuta, mormente porque isso em nada afastará a veracidade do fato objeto de prova, tão pouco a validade desta, como ainda
causará grave prejuízo a uma atividade legítima do Estado e que tem como um de seus pressupostos a proteção da identidade
do agente de inteligência.
Ora, falar em “abuso de defesa” é cerceamento desta. Imaginemos uma situação em que um indivíduos vê-se confrontado com
a questão do poderio estatal para apuração e produção de prova: como alegar que ele está utilizando “excesso de defesa”? Essa
consideração não existe e é uma afronta ao princípio da ampla defesa e contraditório.
48 ADORNO, Luís. Entre as polícias de SP, 84% das denúncias sobre abuso de poder incluem PMs. UOL Notícias – Segurança

Pública, São Paulo, 19 fev. 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/02/19/entre-as-


policias-84-das-denuncias-sobre-abuso-de-autoridade-envolvem-pms.htm. Acesso em 20 dez. 2020.
49 SOUZA NETTO, José Laurindo de. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2014. p. 160.
50 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Carandirú, polícia operativa (justiceira) e a guerra de todos contra todos.

Jusbrasil, São Paulo, 2013. Disponível em: https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/121814374/carandiru-policia-


operativa-justiceira-e-a-guerra-de-todos-contra-todos?ref=serp. Acesso em 29 jun. 2020.
51 CARDOSO, Helena Schiessl. O discurso criminológico da mídia na sociedade capitalista: necessidade de desconstrução

e reconstrução da imagem do criminoso e da criminalidade no espaço público. Curitiba. Dissertação (Mestrado em Direito do
Estado). Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. Disponível em:
https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/25722. Acesso em 15 dez. 2020. p. 109.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
188 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

pela mídia, precisa de respostas efetivas, ainda que os meios para obter essas respostas não sejam os
mais ortodoxos. Ou seja, a resposta da polícia e do poder Judiciário corre o risco de ser enviesada pela
cobertura sensacionalista da mídia sobre os crimes e processos penais. Dessa forma, ocorre a mistura de
diversas de situações de espetáculo midiático que, direta ou indiretamente, fomentam comportamentos
por parte do Estado que, como resposta, coloca em marcha seus agentes públicos, interessados mais na
resposta ao “tribunal da opinião pública” do que na resolução do problema.

4. Considerações finais

O apelo midiático gerado a partir da divulgação de casos penais, a exacerbação da violência – ou


do discurso de violência propagado pela mídia – justificariam medidas extremas como o encarceramento
em massa? Cremos que não, pois, em geral, é verdadeiramente uma resposta às inclinações sociais
fomentadas pela mídia. O encarceramento não é, e nunca será, uma resposta satisfatória a problemas
estruturais como a desigualdade social e o desemprego.
O sistema penal tem reflexo no sistema econômico e não se pode negar que o recrudescimento
penal está associado principalmente às questões macroeconômicas e na segregação entre pobres e ricos,
conforme apontam os estudos criminológicos. As informações apresentadas de maneira alarmista e
seguidas de análise rasas culminam em um produto final que em nada ajuda a sociedade no processo de
ressignificação do crime, mas reforça os estigmas sobre a população pobre, que é a mais afetada por tais
questões.
O discurso da tolerância zero, portanto, direta ou indiretamente, fomenta o recrudescimento penal,
enfraquecendo o Estado de Direito constitucional.

Referências bibliográficas

ADORNO, Luís. Entre as polícias de SP, 84% das denúncias sobre abuso de poder incluem PMs. UOL Notícias
– Segurança Pública, São Paulo, 19 fev. 2019. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/02/19/entre-as-policias-84-das-
denuncias-sobre-abuso-de-autoridade-envolvem-pms.htm. Acesso em 20 dez. 2020.
ARAGÃO. Ivo Rezende. Movimento da Lei e Ordem: sua relação com a lei dos crimes hediondos. Âmbito
Jurídico, n. 77, 1º jun. 2010. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-
penal/movimento-da-lei-e-ordem-sua-relacao-com-a-lei-dos-crimes-hediondos/. Acesso em 10 nov.
2020.
BANDEIRA, Thais; PORTUGAL, Daniela. Criminologia. Salvador: UFBA, 2017. Disponível em:
https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/174993/4/eBook_Criminologia-
Tecnologia_em_Seguranca_Publica_UFBA.pdf. Acesso em 29 jun. 2020.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito
Penal. 3. ed. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Trad. Maria Luiza X. Borges; rev. técnica
Karina Kuschnir. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Sistema carcerário brasileiro: negros e pobres na prisão. Brasília: Câmara
dos Deputados, 2018. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-
e-pobres-na-prisao. Acesso em 29 dez. 2020.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
189

BRASIL. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Acesso à internet e à televisão e
posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2019. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 2021. p. 2. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101794_informativo.pdf. Acesso em 19 jul. 2021.
BRASIL. Ministério da Justiça. Depen lança Infopen com dados de dezembro de 2019. Brasília: Ministério da
Justiça, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/noticias/depen-lanca-infopen-
com-dados-de-dezembro-de-2019. Acesso em 29 dez. 2020.
BRASIL. Ministério da Justiça. Quantidade de incidências por tipo penal. Período de julho a dezembro de
2019. Brasília: Ministério da Justiça, 2020. Disponível em:
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYWY5NjFmZjctOTJmNi00MmY3LThlMTEtNWYwOTl
mODFjYWQ5IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThl
MSJ9 . Acesso em 11 dez. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.570. Diário da Justiça, Brasília,
22 out. 2004. Disponível em:
http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfJurisprudencia_
pt_br&idConteudo=185076&modo=cms. Acesso em 20 jun. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Conversão de habeas corpus preventivo em habeas corpus liberatório.
Habeas Corpus n. 95.009-4. Relator: Min. Eros Grau. 6 nov. 2011. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=570249. Acesso em 20 jun.
2020.
BUDÓ, Marília de Nardim. Mídia e controle social: da construção da criminalidade dos movimentos sociais à
reprodução da violência estrutural. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
CARDOSO, Helena Schiessl. O discurso criminológico da mídia na sociedade capitalista: necessidade de
desconstrução e reconstrução da imagem do criminoso e da criminalidade no espaço público. Curitiba.
Dissertação (Mestrado em Direito do Estado). Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2011. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/25722. Acesso em 15 dez. 2020.
CARDOSO, Helena Schiessl; NUNES, Leandro Gornicki; GUSSO, Luana de Carvalho. Criminologia
contemporânea: crítica às estratégias de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
COSTA, Arthur Trindade Maranhão; OLIVEIRA JÚNIOR, Almir de. Novos padrões de investigação policial no
Brasil. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 147-164, 2016. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010269922016000100147&script=sci_arttext. Acesso em 12
set. 2020.
DATAFOLHA. Maioridade penal. São Paulo: Instituto de Pesquisa Datafolha, 2015. Disponível em:
http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2015/04/24/maioridade-penal.pdf. Acesso em 20 jul. 2021.
DUPAS, Gilberto. Atores e poderes na nova ordem global: assimetrias, instabilidades e imperativos de
legitimação. São Paulo: UNESP, 2005.
JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência? Revista da
Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 21, p. 12-21, 1994. p. 19.
GOMES, Luiz Flávio. Juiz que investiga não pode julgar (STJ suspende a ação penal no caso Castelo de Areia).
Jusbrasil, São Paulo, 2010. Disponível em: https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2087508/juiz-que-
investiga-nao-pode-julgar-stj-suspende-a-acao-penal-no-caso-castelo-de-areia. Acesso em 20 dez.
2020.
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Carandirú, polícia operativa (justiceira) e a guerra de todos contra
todos. Jusbrasil, São Paulo, 2013. Disponível em:
https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/121814374/carandiru-policia-operativa-justiceira-e-
a-guerra-de-todos-contra-todos?ref=serp. Acesso em 29 jun. 2020.
HUGHES, Pedro Javier Aguerre. Segregação socioespacial e violência na cidade de São Paulo: referências
para a formulação de políticas públicas. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 4, out.-
dez. 2004. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/spp/a/nFtYhwnhjzcTVXMzv7NWs5F/?lang=pt. Acesso em 20 maio
2020.
LEAL, Evandro Ornelas. Técnicas operacionais de inteligência e ações de busca na produção de provas em
investigação e processo criminal – admissibilidade e limites. São Paulo. Monografia (Especialização em
Direito em Inteligência de Estado e Inteligência de Segurança Pública). Centro Universitário Newton Paiva,
Belo Horizonte, 2016. Disponível em:
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
190 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servi
cos_produtos/BibliotecaDigital/Publicacoes_MP/Todas_publicacoes/Evandro-Ornelas-Leal-
TCC.pdf. Acesso em 12 set. 2020.
LEITE, Paulo Moreira. A outra história do mensalão: as contradições de um julgamento político. São Paulo:
Geração, 2013.
MELOSSI, Dário; PAVARINI, Mássimo. Cárcere e fábrica. As origens do sistema penitenciário. Séculos XVI-
XIX. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
MÜLLER, Vera Regina. “No Brasil, pensamos que só a cadeia resolve”. Carta Capital, São Paulo, 2 jan. 2012.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/no-brasil-pensamos-que-so-a-cadeia-
resolve/. Acesso em 15 dez. 2020.
PASSARINHO, Natália. Vítima, investigador e juiz em um só: inquérito de Toffoli deixa fraturas na relação do
STF com os outros poderes. BBC News Brasil, São Paulo, 20 abr. 2019. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47992337. Acesso em 27 jun. 2020.
Perfil das pessoas presas no Brasil. Em Discussão, Brasília, n. 29, p. 22, 2016. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/acervo-historico/em-discussao/arquivos/29/@@download.
Acesso em 29 dez. 2020.
PRATT, John. Penal Populism: Key Ideas In Criminology. London: Routledge, 2007.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Curitiba: Lumen Juris, 2006.
SILVA, Silvia Carolina Pamplona e. O discurso da política penal de tolerância zero. Curitiba. Monografia
(Graduação em Direito). Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006.
Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/30772. Acesso em 15 dez. 2020.
SOUZA, LAF., org. Políticas de segurança pública no estado de São Paulo: situações e perspectivas a partir
das pesquisas do Observatório de Segurança Pública da UNESP [online]. São Paulo: Editora UNESP;
São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. Disponível em:
https://static.scielo.org/scielobooks/7yddh/pdf/souza-9788579830198.pdf
SOUZA NETTO, José Laurindo de. Processo penal: sistemas e princípios. Curitiba: Juruá, 2014. p. 160.
SOUZA, Artur César de. A decisão do juiz e a influência da mídia. Curitiba: Revista dos Tribunais, 2010.
VASCONCELOS, Caê. Com 812 mil pessoas presas, Brasil mantém a terceira maior população carcerária do
mundo. Ponte, São Paulo, 19 jul. 2019. Disponível em: https://ponte.org/com-812-mil-pessoas-presas-
brasil-mantem-a-terceira-maior-populacao-carceraria-do-mundo/. Acesso em 18 jun. 2020.
VERGAL, Sandro. A desordem e a teoria das janelas quebradas. Jusbrasil, São Paulo, 2012. Disponível em:
https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/121937294/a-desordem-e-a-teoria-das-janelas-
quebradas. Acesso em 20 de maio de 2020.
WACQUANT, Loïc. Dissecando a “tolerância zero”. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 1º jun. 2002.
Disponível em: https://diplomatique.org.br/dissecando-a-tolerancia-zero/. Acesso em 20 de maio de
2020.

Recebido: 04/07/2022
Aprovado: 10/06/2023
191
O suicídio na Polícia Militar no Estado
de São Paulo: análise e compreensão
da sua incidência

Suicide in the Military Police in the


State of São Paulo: analysis and understanding of its incidence

Luiz Sérgio Mussolini Filho


Pós-Doutor em Psicologia da Educação, pela Universidade Estadual Paulista
"Júlio de Mesquite" - UNESP, Campus de Araraquara/SP. Mestre e Doutor
em Ciências Policiais e de Segurança Pública pelo Centro de Altos Estudos
em Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Mestre em
Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (2007)e em
Ciências Policiais e de Segurança Pública pelo Centro de Altos Estudos
Superiores da Polícia Militar do Estado de são Paulo (2013) . Pós-Graduado
em direito Tributário pelo Universidade COC/Estácio. Graduado em
Administração de Empresas. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais.

Andreza Marques de Castro Leão


Professora Associada do Departamento de Psicologia da Educação e dos
Programas de Pós-graduação em Educação Sexual e Educação Escolar.
Supervisora da Unidade Auxiliar Cenpe- Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara-Unesp.

Resumo: O suicídio é um evento social complexo e que teve um crescimento significativo


nos últimos anos. Considerando que é um assunto delicado e muito importante de ser
compreendido, visando sua erradicação, o presente trabalho tem por objetivo analisar a
incidência do fenômeno do suicídio na Polícia Militar do Estado de São Paulo, uma vez
que as estatísticas apontam sua ocorrência de maneira considerável nesta Instituição. Os
achados obtidos no presente estudo desvendam que uma série de fatores contribuem para
sua incidência, entre estes podemos citar: acesso fácil às armas de fogo; stress do
profissional; salários incompatíveis com a função exercida; turnos de trabalhos
irregulares; rígida formação do Policial que se volta a atender a população,
negligenciando a importância do cuidado de si, entre outros aspectos. À vista disso,
aponta-se a necessidade da criação de um quadro fixo de psicólogos na Instituição da
Polícia Militar, de forma a atender estes profissionais, tendo-se campanhas profiláticas
voltadas a este tema, bem como melhorias nas condições de trabalho, incluindo melhores
salários e otimização dos horários dos turnos de serviço.

Palavras-chave: Suicídio. Mitigação de casos. Fator Social. Polícia militar.

Abstract: Suicide is a complex social event that has grown significantly in recent years.
Considering that it is a delicate and very important subject to be understood, aiming at its
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
192 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

eradication, the present work aims to analyze the incidence of the phenomenon of suicide
in the Military Police of the State of São Paulo, since the statistics indicate its occurrence
in a considerable way. in this Institution. The findings obtained in the present study reveal
that a series of factors contribute to its incidence, among which we can mention: easy
access to firearms; professional stress; wages incompatible with the function performed;
irregular work shifts; rigid formation of the Police that returns to assist the population,
neglecting the importance of self-care, among other aspects. In view of this, there is a
need to create a fixed staff of psychologists in the Institution of the Military Police, in
order to serve these professionals, with prophylactic campaigns focused on this topic, as
well as improvements in working conditions, including better salaries and optimization
of work shift schedules.

Keywords: Suicide. Case mitigation. Social Factor. Military police.

1. Introdução

Inúmeros fatores dão causa às mais variadas formas pelas quais os Policiais Militares vêm à óbito,
entre elas podemos elencar os confrontos com marginais, acidentes de trânsito com viaturas, ocorrências
em salvamentos dos mais variados tipos, mas nenhuma delas causa mais impacto na tropa do que a
morte perpetrada através de suicídio, aquela em que o agente de segurança do Estado ceifa a própria
vida pelos mais variados motivos.
O tema do suicídio ocasiona preocupação, orbita junto a todos os Comandos e Comandantes na
busca pela mitigação deste fenômeno, em todos os níveis hierárquicos da Polícia Militar do Estado de
São Paulo, e tal fato é corroborado pelas inúmeras normas vigentes na Instituição ligadas a tal tema, as
quais buscam a melhoria da saúde mental do Policial Militar. Entre estas leis tem-se a Lei n. 13.819 de
26 de abril de 2019 (BRASIL, 2019) que instituiu a Política Nacional de Prevenção a Automutilação e
do Suicídio, que possui em seu bojo os objetivos de: I - Promover a saúde mental; II - Prevenir a
violência autoprovocada; III - Controlar os fatores determinantes e condicionantes da saúde mental; IV
- Garantir o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico,
especialmente daquelas com histórico de ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio; V -
Abordar adequadamente os familiares e as pessoas próximas das vítimas de suicídio e garantir-lhes
assistência psicossocial; VI - Informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das
lesões autoprovocadas como problemas de saúde pública passíveis de prevenção; VII - promover a
articulação intersetorial para a prevenção do suicídio, envolvendo entidades de saúde, educação,
comunicação, imprensa, polícia, entre outras; VIII - Promover a notificação de eventos, o
desenvolvimento e o aprimoramento de métodos de coleta e análise de dados sobre automutilações,
tentativas de suicídio e suicídios consumados, envolvendo a União, os Estados, o Distrito Federal, os
Municípios e os estabelecimentos de saúde e de medicina legal, para subsidiar a formulação de políticas
e tomadas de decisão; assim como, IX - Promover a educação permanente de gestores e de profissionais
de saúde em todos os níveis de atenção quanto ao sofrimento psíquico e às lesões autoprovocadas.
Tem-se, também, a Lei n. 9.628 de 06 de maio de 1997, que instituiu o Sistema de Saúde Mental
da Polícia Militar que tem como objetivo principal o bem-estar biopsicossocial dos Policiais Militares,
bem como assistir aos acometidos de transtorno mental (BRASIL, 1997).
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
193

Ademais, cabe trazer o decreto nº 46.039 de 23 de agosto de 2001 (BRASIL, 2001) que
regulamentou o Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar do Estado de São Paulo, assim como o
Regimento Interno do Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar, bem como a Súmula de Instrução
Continuada de Comando n. 256 (PMESP, 2019), contendo orientações para prevenção do suicídio de
Policiais Militares.
Tal arcabouço de normas vai diretamente de encontro à preocupação que a Instituição tem em
relação a tal fato social, propondo alterações legislativas para que o agente de segurança possa gozar de
boa saúde mental, propiciando à sociedade melhores resultados nos serviços prestados.
Considerando que o tema do suicídio é complexo e muito importante de ser compreendido,
visando sua erradicação, o presente trabalho tem por objetivo analisar a incidência do fenômeno do
suicídio na Polícia Militar do Estado de São Paulo, uma vez que as estatísticas apontam sua ocorrência
de maneira considerável nesta Instituição. Ademais, busca delinear algumas possíveis estratégias,
pensando em contribuir para a mitigação de sua incidência.

2 Desenvolvimento

O fato social denominado suicídio pode ser definido como um ato deliberado executado pelo
próprio indivíduo, cuja intenção é a morte, de forma consciente e intencional, mesmo que ambivalente,
usando um meio que ele acredita ser letal. Também faz parte do que habitualmente se intitula
comportamento suicida os pensamentos, os planos e a tentativa do suicídio (ABP, 2021).
O suicídio não é considerado crime, haja vista que as consequências de tal ato recaem sobre a
própria pessoa que ceifou sua vida, sendo um fato social de difícil enfrentamento requerendo, para tanto,
um conhecimento apropriado deste fenômeno, de forma a se ter ciência dos aspectos desencadeadores
do mesmo, bem como, ações que podem ser acionadas, pensando em sua prevenção.
Na Polícia Militar, segundo estudos do Fórum Brasileiro de Segurança1, entre os anos de 2017-
2020, 226 policiais militares se suicidaram em todo o país, números esses bastante expressivos quando
fazemos uma comparação com os Estados Unidos da América, através da Ruderman Family
Foundation2, que traz que neste mesmo período ocorreram, neste país, 140 suicídios praticados por
policiais americanos. De fato, em todos os países do mundo as policias, sejam elas militares ou civis, se
deparam com tais problemas internos, que ocorrem pelas mais diversas situações, entre elas podemos
citar: problemas conjugais e de relacionamentos, problemas financeiros, excesso de jornada de trabalho
corroborada pelo complemento financeiro oriundo da prestação de serviços de segurança em outros
locais de trabalho, denominados vulgarmente de “bicos”, ocorrências atendidas que envolvem grande
gama de sentimento emocional e, que invariavelmente, repercutem no psique do agente de segurança,
causando traumas, falta de reconhecimento pelos serviços prestados, regime de trabalho irregular e
sujeito a acionamentos a qualquer horário, entre outras.
Miranda (2016, p.19), ao se ater a discutir este assunto, refere que

1 14º Anuário do Fórum de Brasileiro de Segurança. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-14. Acesso em: 10
de fevereiro de 2022.
2 Disponível em: https://rudermanfoundation.org. Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
194 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

O sofrimento psíquico de policiais brasileiros tem ocupado cada vez mais espaço no
debate público e na mídia. Todavia, a saúde mental dos agentes de segurança
permanece invisível aos olhos dos gestores. No Rio de Janeiro, o descaso em relação
ao sofrimento emocional desses profissionais é condizente com o caráter tradicional
das políticas de segurança pública. Por décadas, executivos estaduais priorizaram
investimentos materiais em detrimento de políticas de valorização de recursos
humanos. A prevenção de doenças mentais e emocionais de policiais civis, militares e
bombeiros nunca fez parte da agenda de políticas de segurança pública do Estado do
Rio de Janeiro.

Em todas as Polícias Militares do Brasil tem-se a incidência deste fenômeno que ocorre em
algumas situações com maior intensidade, denotando-se a necessidade de se evitar o suicídio por meio
do conhecimento do comportamento suicida, de forma que a partir do conhecimento dos fatores que
levam a tal risco, torna-se mais factível uma intervenção prévia, amenizando problemas dessa natureza.
A Organização Mundial da Saúde (WHO, 1998), após a organização de um Simpósio
Internacional em 1998, e com base na contribuição de pesquisadores, profissionais da saúde geral e da
psicologia, assim como sobreviventes de suicídio e líderes comunitários, elaborou um modelo de
referência para se pensar a saúde pública com recomendações que orientaram países e comunidades a
estruturar ações preventivas para o suicídio. As recomendações apresentadas estão agrupadas em três
aspectos fundamentais: a) ampliação da conscientização da comunidade acerca do suicídio e seus fatores
de risco; b) intensificação de programas e serviços de conscientização e de assistência; e c) incremento
e aprimoramento da ciência sobre o tema, de forma a aumentar os recursos de prevenção e de ação sobre
o suicídio.
A pessoa que pode estar passando pelo processo de tentativa de autoextermínio pode apresentar
alguns sintomas aparentes, tais como: olhar cabisbaixo; pensamento distante; ombros caídos; falta de
envolvimento religioso; ansiedade; depressão; desesperança; fatores socioeconômicos desfavoráveis;
alcoolismo; perdas recentes; inanição; acesso fácil a meios letais, entre outros (WHO, 2003;
SUOMINEN et tal., 2004).
Assim sendo, inúmeros fatores insurgem em relação ao comportamento suicida, tendo-se elevadas
taxas de tentativas e consumações em todo o mundo, sendo um problema sério de saúde pública. Quando
uma pessoa ceifa sua própria vida inúmeras consequências são levadas a efeito após tal ato, entre elas
podemos citar as previdenciárias, as familiares e as de saúde pública, levando em consideração que o
sistema de saúde é acionado para lidar com tal fato.
Dessa forma, torna-se evidente a relevância de estudos sobre este tema, pois como salientam
Werlang, Macedo e Kruger (2004), o comportamento suicida contempla, independente do ponto de vista
pelo qual é analisado, uma dimensão cerne relacionada ao sofrimento. O sofrimento que leva o indivíduo
a querer ceifar a sua vida, tendo-se, ainda, o sofrimento da família frente ao suicídio de um de seus
membros.
Sgobin (2013, p. 21) problematiza que

O comportamento suicida é então definido como a ação por meio da qual o indivíduo
provoca uma autolesão, a despeito do grau da intenção de morte e do reconhecimento
da verdadeira razão para este ato. Este conceito permite conceber este comportamento
ao longo de um contínuo: começando com pensamentos de autodestruição,
progredindo para ameaças de autoagressão, planejamento suicida, tentativas de
suicídio e finalmente o suicídio, não havendo necessariamente tal progressão linear.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
195

Nessa mesma direção, o Informe Mundial sobre a Violência e a Saúde, publicado pela
Organização Panamericana da Saúde (OPS), alerta para o fato de que cada pessoa que tenta efetivamente
se suicidar “deixa atrás de si muitas outras – familiares e amigos – cujas vidas resultam profundamente
afetadas desde o ponto de vista emocional, social e econômico” (DE LEO; BERTOLOTE; LESTER,
2003, p. 201).
Vale explicitar que o comportamento suicida comporta três fases: 1ª fase a da ideação suicida; a
2ª fase – tentativa propriamente dita, e, por fim, a 3ª fase, em que ocorre a sua consumação3. Na primeira
fase, ou seja, a de “estar pensando” em ceifar a própria vida, o indivíduo formula estas ideias, as formas
pelas quais irá perpetrar seu intento, isto é, como irá concluir e finalizar seu planejamento, tendo, assim,
sua morte.
Mais adiante, já na fase da tentativa, o indivíduo busca a utilização de meios para findar com sua
vida, um exemplo que ocorre muito nesta fase em que ele passa um fio ou uma corda em seu pescoço e
vai abaixando bem lentamente apenas para ver como acontece. Em determinado momento, na certeza
de que pode regredir em seu intento, perde os sentidos, o cérebro deixa de ser oxigenado e o mesmo
vem a óbito, isso quando, devido ao peso do corpo, o pescoço se rompe causando morte instantânea. A
fase da consumação é onde o indivíduo consegue com sucesso ceifar sua própria vida, sendo uma
tentativa devidamente consumada, em que se deve verificar a intenção do agente, a forma pela qual
perpetrou sua morte, o método e o meio empregado.
O suicídio pode incidir nas mais variadas formas, entre elas, ingestão de remédios, enforcamento,
salto de grandes altitudes (edifícios), ou mesmo o emprego de arma de fogo que segundo estudiosos do
assunto, entre eles, Deyse Miranda (MIRANDA, 2016) e Emily Durkheim (DURKHEIM, 2004),
quando o disparo é efetuado na região da têmpora ou do ouvido, o indivíduo sequer ouve o ruído do
disparo, pois a velocidade do projétil é tão rápida que antes mesmo de ouvir, vem a óbito, fato esse
desmistificado através de estudos realizados no Departamento de Física da Universidade Federal de São
Carlos - UFSCar4.
O suicídio deve ser tratado como problema de saúde pública, tal como a cólera, a dengue e
atualmente o COVID-19. A experiência internacional apresenta que a melhor forma de fazer isso é a
partir de políticas públicas ancoradas em evidências, isso posto, acreditamos que a partir de tais
premissas, há a necessidade da busca de soluções, a curto prazo, na tentativa de se evitar que as previsões
se cumpram.
Nesse diapasão, uma das dificuldades a serem enfrentadas é o fato temporal, ou seja, de quando
e onde tal fato social irá acontecer, e se for perpetrado no interior de uma residência ou no quintal da
mesma, a dificuldade se intensifica, pois é muito mais complexo tentar coibir tal prática.
A extensão territorial brasileira, aliada a uma gama indefinível de problemas que assola o país
como um todo, dificulta ainda mais que o foco de atenção seja voltado para tal ocorrência. Logo,
podemos denotar que as pessoas que ceifam a própria vida o fazem devido aos mais variados tipos de
problemas que não conseguem enfrentar, o que desvela a escassez de políticas públicas no país voltadas
a mitigar a incidência deste fenômeno, assim como campanhas preventivas.

3 Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%BArbios-de-sa%C3%BAde-mental/comportamento-


suicida-e-automutila%C3%A7%C3%A3o/comportamento-suicida. Acesso em: 10 fev. 2022.
4 Segundo aponta o Dr. Fernando M. Araújo Moreira. Professor Titular do Departamento de Física da Universidade Federal de

São Carlos em estudo realizado a pedido do autor.


REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
196 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

No Estado de São Paulo a Segurança Pública é realizada por três órgãos, devidamente
subordinados à Secretaria de Segurança Pública do Estado, sendo eles a Polícia Civil, a Polícia Militar
e o Instituto de Criminalística. Neste artigo nos debruçaremos sobre aos casos de ideação, tentativa e
consumação de suicídios apenas na Polícia Militar.
Na Polícia Militar do Estado de São Paulo, o tema em discussão é muito debatido em todos os
níveis hierárquicos, haja vista o enorme impacto que tal fato gera “interna corporis”, gerando comoção
e ao mesmo tempo, indignação dos seus integrantes. Para se ter uma ideia da gravidade deste problema,
discriminamos na tabela 3, apresentada a seguir, os casos ocorridos entre os anos de 2015 até o início
de 2021. Podemos observar nesta tabela, o alto índice desse tipo de ocorrência, tanto em relação aos
policiais que estavam de folga, quanto os veteranos e, principalmente os agentes que estavam em serviço
no momento do fato.
Tabela 1 - Agentes Públicos que cometeram suicídio (2015-2021)
ANO FOLGA VETERANOS SERVIÇO TOTAL
2015 14 08 00 22
2016 09 07 02 18
2017 14 04 01 19
2018 19 16 01 36
2019 12 08 03 23
2020 19 03 00 13
2021 01 02 01 04
TOTAL 78 46 07 131
Fonte: Acervo pessoal.

No serviço policial o agente está constantemente submetido a inúmeros tipos de pressão que
partem de todos os lados, entre elas podemos citar a pressão exercida pelos seus superiores, na medida
em que durante a atividade de policiamento ostensivo apresentam metas a serem cumpridas, na
diminuição dos índices criminais, devidamente designados pela Secretaria de Segurança Pública. Isso
atrelado ao recebimento de um “bônus”, caso cumpram as metas que nem sempre são muito generosas
e, em alguns casos, praticamente impossíveis de serem alcançadas, onde podemos citar a meta de
redução de homicídios, haja vista que entre as ocorrências desse tipo, boa parte delas ocorre no interior
das residências, perpetradas pelo marido, acompanhante, namorado em um local onde o policial não tem
acesso, o chamado feminicídio5.
Outros tipos de pressão partem de parcela da imprensa que cobra da polícia uma solução para
praticamente todas as omissões de outros setores do serviço público, seja federal, estadual ou mesmo
municipal, recaindo sobre o agente de segurança uma espécie de “faz tudo”. Obviamente a própria
sociedade cobra das Instituições Policiais soluções que não caberiam a ela resolver, basta observar que
na Polícia Militar do Estado de São Paulo das 95% das chamadas junto ao telefone de emergência 190

5Feminicídio é o homicídio doloso praticado contra a mulher por “razões da condição de sexo feminino”, ou seja, desprezando,
menosprezando, desconsiderando a dignidade da vítima enquanto mulher, como se as pessoas do sexo feminino tivessem menos
direitos do que as do sexo masculino. (art. 121, § 2º, VI, do Código Penal)
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
197

são de cunho social, somente 5% para o atendimento de ocorrências policiais propriamente ditas,
segundo dados obtidos junto ao Centro de operações da Polícia Militar – COPOM.
Essas pressões levam o agente policial ao estresse, que segundo a psicóloga Marilda Novaes Lipp,
do Centro Psicológico de Controle do Stress (LIPP, 1986, p. 23), é definido como sendo:

Uma reação emocional, com componentes físicos e psicológicos, que se manifesta e,


situações de transformações abruptas. E quanto mais o profissional supervaloriza a
sua função, mais sujeito estará ao estresse.

A natureza do trabalho policial é reconhecidamente estressante, além de ser sedentária e ter uma
cobrança considerável em termos de postura inabalável, forte diante de todo tipo de situação, e entre
elas podemos citar o atendimento de ocorrências que envolvem óbitos de crianças, mais comuns em
acidentes automobilísticos.
As taxas de suicídio entre agentes de segurança pública, quando comparado a outras profissões,
tem um índice considerado acima da média. Aliado a isso, grande parte dos policiais da ativa já se
depararam com experiências e situações difíceis e muito complexas, desenvolvendo, a partir disso,
insônia, quadros de ansiedade, necessidade de isolamento social, culpa, remorso, depressão, entre outros
(Miranda 2016, p. 18-19).
Assim sendo, podemos destacar que a não aceitação desse quadro, junto ao alto nível de pressão
que este profissional sofre, em conjunto com outros fatores, no qual elencamos, problemas com
superiores e outras autoridades, insegurança, problemas sexuais, entre outros, levam o agente a uma
busca incessante para os debelar e um dos caminhos, nesta busca, pode ocorrer o suicídio.
Nos escritos de Violanti (1993, p. 19)

Na PMESP, estudos demonstram que o índice de suicídios corresponde ao sêxtuplo


do índice da população em geral, o que indica a gravidade da situação vivida pelos
Policiais Militares com a tensão constante e o ritmo de trabalho muito alto e próximo
da suportabilidade de pressões. Com o aumento do nível de pressão surgem alterações
no padrão de pensamento e, entre outras coisas, o raciocínio pode se tornar confuso e
ilógico e, como as mudanças são lentas, às vezes passam desapercebidas, mesmo para
os mais próximos, e quando alguém fala alguma coisa, o problema não é admitido
com facilidade e o Policial Militar só procura ajuda quando o problema já tomou
grandes proporções, caso não morra antes.

A Polícia Militar do Estado de São Paulo possui um Centro de Assistência Psicossocial, atrelado
à Diretoria de Pessoal da Instituição e ao seu lado o Presídio Militar “Romão Gomes”, conforme
expomos no organograma 1.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
198 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Organograma 1 - Órgãos integrantes da Diretoria de Pessoal da PMESP

Fonte: Intranet da Polícia Militar do Estado de São Paulo

Tal órgão interno segue à risca a legislação que norteia tal assunto, quais sejam a Lei Federal nº
13.819, de 26 de abril de 2019 (BRASIL, 2019); Lei Estadual nº 9.628, de 06 de maio de 1997, que
institui o Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar (BRASIL, 1997); Decreto nº 46.039, de 23 de
agosto de 2001, que criou e regulamentou o Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar do Estado de
São Paulo (BRASIL, 2001), e o Regimento Interno do Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar -
SisMEn (BRASIL, 2001).
Nesses arcabouços jurídicos encontramos uma série de providências a serem tomadas pelos
órgãos envolvidos, entre eles podemos explicitar a Lei 13.819/19 (BRASIL, 2019), que instituiu a
Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio e que traz, em seu artigo 3º, que os
objetivos da referida política pública são: promover a saúde mental; prevenir a violência autoprovocada;
controlar os fatores determinantes e condicionantes da saúde mental; garantir o acesso à atenção
psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, especialmente daquelas com
histórico de ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio; abordar adequadamente os
familiares e as pessoas próximas das vítimas de suicídio e garantir-lhes assistência psicossocial;
informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das lesões autoprovocadas como
problemas de saúde pública passíveis de prevenção; promover a articulação intersetorial para a
prevenção do suicídio, envolvendo entidades de saúde, educação, comunicação, imprensa, polícia, entre
outras; promover a notificação de eventos, o desenvolvimento e o aprimoramento de métodos de coleta
e análise de dados sobre automutilações, tentativas de suicídio e suicídios consumados, envolvendo a
União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e os estabelecimentos de saúde e de medicina legal,
para subsidiar a formulação de políticas e tomadas de decisão; promover a educação permanente de
gestores e de profissionais de saúde em todos os níveis de atenção quanto ao sofrimento psíquico e às
lesões autoprovocadas.
A referida legislação em seu artigo 6º apresenta que os casos suspeitos ou confirmados de
violência autoprovocada são de notificação compulsória pelos estabelecimentos de saúde e privados às
autoridades sanitárias, bem como os estabelecimentos de ensino público e privados ao Conselho Tutelar
e em seu parágrafo 1º definiu, para os efeitos desta lei, o que se entende por violência autoprovocada,
quais sejam: o suicídio consumado; a tentativa de suicídio e o ato de automutilação, com ou sem ideação
suicida. No final da referida lei o artigo 7º coloca que os casos que envolverem investigação de suspeita
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
199

de suicídio, a autoridade competente deverá comunicar à autoridade sanitária a conclusão do inquérito


policial que apurou as circunstâncias da morte.
A nível estadual temos a Lei nº 9.628, de 06 de maio de 1997 (SÃO PAULO 1997), que institui
o Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar. Por esta Lei foi criado o sistema de Saúde Mental da
Polícia Militar do Estado de São Paulo e delegou à Diretoria de Saúde da Instituição, que possui uma
equipe multidisciplinar do Quadro de Oficiais de Saúde (QOS), a função de cuidar do bem-estar
biopsicossocial dos Policiais Miliares, bem como assistir aos acometidos de transtorno mental. Esta lei
incumbiu o Sistema de Saúde mental de planejar, executar, controlar, fiscalizar e avaliar todas as
atividades relacionadas à saúde mental do Policial Militar visando seu pleno gozo e seu potencial físico
e mental, assegurando o reconhecimento e a valorização de práticas multiprofissionais no tratamento de
saúde mental de seus componentes.
Inúmeras diretrizes norteiam tal sistema, entre elas podemos elencar: universalizar o acesso dos
policiais militares às ações e aos serviços em todos os níveis de atenção à saúde mental; integralidade
de atendimento pleno aos policiais militares, objetivando a proteção e o desenvolvimento do seu
potencial biológico e psicossocial; resolubilidade dos serviços e ações de saúde mental dos policiais
militares em todos os níveis de assistência; racionalidade da organização dos serviços do Sistema de
Saúde Mental, visando à otimização dos meios disponíveis e melhor relação custo benefício,
suprimindo-se a duplicação dos recursos para fins idênticos ou equivalentes; planejamento das ações e
serviços, visando a satisfazer as necessidades de saúde mental dos policiais militares, regionalizando e
hierarquizando o atendimento preventivo; incentivo ao trabalho integrado e harmonioso dos
profissionais que atuam no Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar, promovendo o reconhecimento
e a valorização humana, social e profissional, em favor da qualidade total e da resolubilidade dos
serviços e das ações de saúde mental, da experiência e da capacidade técnica e científica demonstrada
pelo profissional; o Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar desenvolverá ações predominantemente
extra-hospitalares, na forma de programas de apoio à desospitalização, enfatizando a organização e
manutenção de redes de serviços e cuidados assistenciais, visando a recuperação da saúde do policial
militar acometido de transtorno mental e sua reinserção na família, no trabalho e na sociedade; a saúde
mental dos policiais militares deve receber especial atenção no âmbito da sua comunidade, mediante
assistência ambulatorial, assistência domiciliar e internação hospitalar minimizada, preferencialmente
de tempo parcial (SÃO PAULO, 1997).
Com a finalidade de regulamentar a legislação explicitada, o então Governador do Estado,
Geraldo Alckmin, editou em agosto de 2001 o Decreto nº 46.039 que, entre outras proposituras elenca
a composição dos órgãos centrais e técnicos-executivos, descritos, em seu artigo 2.º - O SISMEN será
composto por Órgãos Centrais e Órgãos Técnicos-Executivos. § 1.º - São Órgãos Centrais: 1. Diretoria
de Pessoal (DP), órgão responsável pela direção geral; 2. Diretoria de Saúde (DS), órgão responsável
pela direção técnica; § 2.º - São Órgãos Técnicos-Executivos: 1. Centro de Assistência Social e Jurídica
- CASJ; 2. Centro Médico (C Med); 3. Centro de Seleção, Alistamento e Estudos de Pessoal (CSAEP).
Podemos observar a preocupação com os problemas relativos à profissão, aliado a tudo o que foi
citado, e a própria Polícia Militar, em ato administrativo, editou o Regimento Interno do Sistema de
Saúde Metal da Polícia Militar – SisMEn, no ano de 2002 e insculpiu nele uma série de providências
internas, objetivando estabelecer normas que visam das cumprimento aos diplomas elencados e
concretizar a implementação do SIsMEN em toda a Instituição, e para isso, estabeleceu normas internas
para seu cumprimento (SÃO PAULO, 2001).
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
200 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

Em seu conteúdo podemos descrever que dentre suas finalidades está a prevenção, o tratamento
e o restabelecimento da saúde mental do Policial Militar, destacando a preocupação do Comando Geral
da Instituição publicando tal ato administrativo sob a forma de Regimento Interno.
Um pouco mais à frente do referida norma encontramos as formas de credenciamento dos
profissionais que podem atuar no SisMen, sua organização e os parâmetros das avaliações psicológicas
que devem ser definidas pelo Centro de Atendimento, apresentando laudos circunstanciados definidos
no Código Internacional de Doenças – CID.
O SisMen fornece competência ao Centro Médico para realizar as avaliações psiquiátricas,
quando o caso requerer, bem como a assistência aos Policiais Militares que porventura virem a ser
diagnosticados com o acometimento de quadros psiquiátricos, desequilíbrio emocional, transtornos ou
patologias mentais. Define que os superiores hierárquicos dos Policiais que apresentarem tais problemas
devem elaborar o pedido para o atendimento desses policiais, devidamente fundamentado e classificar
tal documentação como confidencial, a fim de preservá-los, de forma a permitir que seus problemas não
se tornem de conhecimento público, o que de certa forma lhe traria ainda mais problemas em seu
ambiente de trabalho.
Todos esses procedimentos visam a melhoria da qualidade de vida do agente público, seu pronto
restabelecimento para as atividades de segurança pública e para seu convívio familiar, demonstrando a
preocupação da Instituição com a saúde mental de seus integrantes.
A edição da Legislação Estadual de nº 9.628, de 06 de maio de 1997 (São Paulo, 1997), instituiu
o Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar - SisMen, delineando em seu bojo inúmeros protocolos a
fim de que a Polícia Militar desse atenção a tal situação “interna corporis”, entre os objetivos de tal
legislação, destacamos a busca pelo bem-estar psicossocial e a assistência aos acometidos de transtorno
mental, deixando a subordinação técnica do SIsMen a cargo da Diretoria de Saúde, unidade que possui
ambiente multiprofissional, técnico, cuja racionalização dos recursos tem a finalidade precípua de zelar
pela saúde mental dos integrantes, buscando a qualidade dos serviços prestados ao agente de segurança
pública do Estado.
Cabe a este sistema o planejamento, a execução, o controle, a fiscalização e a avaliação de todas
as atividades relacionadas à saúde mental de seus integrantes, visando o pleno gozo de seu potencial
físico e mental, assegurando o reconhecimento e a valorização de práticas multiprofissionais no
tratamento dos policiais militares acometidos de transtornos mentais. Outrossim, é norteado pelas
seguintes diretrizes e princípios: universalizar o acesso dos policiais militares às ações e aos serviços
em todos os níveis de atenção à saúde mental; integralidade de atendimento pleno aos policiais militares,
objetivando a proteção e o desenvolvimento do seu potencial biológico e psicossocial; resolubilidade
dos serviços e ações de saúde mental dos policiais militares em todos os níveis de assistência;
racionalidade da organização dos serviços do Sistema de Saúde Mental, visando à otimização dos meios
disponíveis e melhor relação custo-benefício, suprimindo-se a duplicação dos recursos para fins
idênticos ou equivalentes; planejamento das ações e serviços, visando satisfazer as necessidades de
saúde mental dos policiais militares, regionalizando e hierarquizando o atendimento preventivo; os
policiais militares acometidos de transtorno mental terão direito a tratamento em ambiente o menos
restritivo possível, levando-se em conta o exercício da sua cidadania; devem ser assegurados os direitos
indisponíveis dos policiais militares acometidos do transtorno mental, especialmente durante a
internação psiquiátrica involuntária (São Paulo, 1997).
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
201

Passados quatro anos após o sancionamento de tal lei pelo Governador do Estado, editou-se o
Decreto Estadual nº 46.039, de 23 de maio de 2001 (São Paulo, 2001), que regulamentou a legislação
citada, descrevendo, em seu interior, a composição e as atribuições dos órgãos do SIsMen, atribuindo
ao Centro de Atendimento Psicossocial – CAPS, as seguintes incumbências: coordenar o trabalho a ser
executado pelos estabelecimentos de ensino que atuarão em parceria com a Polícia Militar, definindo os
parâmetros de avaliação para uniformidade de conduta; assistir os policiais militares nos casos de
desequilíbrio emocional, desenvolver as atividades relacionadas com o acompanhamento de policiais
militares envolvidos em ocorrências de alto risco e desenvolver programas de prevenção para os
componentes da Polícia Militar, no campo da saúde mental, em conjunto com o Centro Médico - CMed.
Foi prescrito no próprio bojo do citado decreto o prazo de 90 (noventa) dias, para que o
Comandante Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo baixasse o Regimento Interno do Sistema
de Saúde Mental – RISISMEN (PMESP, 2002) da Instituição, detalhando todo o funcionamento de tal
sistema. Passado o prazo estabelecido pelo Regimento Interno, foi publicado em Boletim Geral o
RISISMEN, dando cumprimento efetivo à determinação recebida, contendo em seu bojo inúmeros
requisitos para sua fiel execução e, entre elas, podemos elencar que o presente regulamento tem por
objetivo estabelecer normas que visem o cumprimento do decreto e sua completa implementação.
Os parâmetros da avaliação psicológica a que serão submetidos os profissionais, se aterão as
técnicas e métodos consagrados pela Ciência, utilizando o Código Internacional de Doenças – CID, para
classificar os desequilíbrios emocionais, os transtornos e/ou patologias mentais específicas,
devidamente reconhecidas e autorizadas pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria de Saúde Estadual.
A forma pela qual o ciclo de assistência Psicológica e Psiquiátrica se inicia é por meio de
requerimento do policial militar interessado, por convocação do Centro de Apoio Social e Jurídico
(CASJ) ou dos núcleos regionais, por iniciativa do seu comandante ou excepcionalmente, por decisão
judicial. (SÃO PAULO, 2002)
Dessa forma, no deslinde do que foi explicitado, na busca de uma melhor qualidade de vida para
os profissionais da área da Segurança Pública, ainda podemos elencar que mesmo diante de todo esse
arcabouço, a Instituição ainda desenvolveu uma forma de contactar todos os seus agentes de forma mais
próxima e eficaz, através da edição de uma Instrução Continuada de Comando – ICC, instrução essa que
tem o condão de se fazer chegar até o Policial da linha de frente, nos locais mais distantes de nosso
Estado, as orientações e explicações sobre os mais variados temas, entre os quais se inclui o suicídio
(PMESP, 2019).
Na Instrução Continuada de Comando, de número 256 (PMESP, 2019), editada na data de 10 de
setembro de 2019, pela Diretoria de Ensino e Cultura – DEC, tendo como título “As Orientações Para
Prevenção de Suicídios de Policiais Militares”, descreve de forma suscinta que o atendimento deve
ocorrer por solicitação da Diretoria de Pessoal; ou excepcionalmente, por decisão judicial.
Além disso, recentemente a Instituição lançou no mês de Abril de 2021 uma cartilha para o
público interno denominada: “Prevenção às Manifestações Suicidas: Orientações aos Policiais
Militares” (PMESP, 2021), e em seu conteúdo podemos verificar uma preocupação diferenciada da
Polícia Militar com a saúde mental de seus integrantes, propiciando, nessa direção, uma busca incessante
e incansável pela promoção da qualidade de vida quanto à saúde mental, dispondo de importantes
esclarecimentos nesse campo.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
202 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

A cartilha inicia trazendo uma contextualização histórica das raízes históricas da preocupação
com a higidez mental, e relata que na década de 40 a Instituição ofertava a assistência, nesse campo, aos
seus integrantes, através da Capelania Militar da então Força Pública do Estado de São Paulo, e, que,
atualmente é desenvolvida pelos profissionais do Sistema de Saúde Mental da PMESP.
Vale ressaltar o marcante pioneirismo no campo da psicologia, haja vista que com o passar do
tempo as práticas profissionais foram se aperfeiçoando, tendo-se na Instituição um consistente Sistema
de Saúde Mental, composto por uma série de programas e serviços postos à disposição de todos os
integrantes da Polícia Militar.
O Programa de Prevenção às Manifestações Suicidas – PPMS, teve início no ano de 2003, com o
intuito de diminuir, o quanto possível, os casos de suicídios, de tentativas e de ideações suicidas por
integrantes da tropa.
A seguir será apresentada a Tabela 2, que traz o atendimento de Policiais no PPMS, desde sua
implementação, dados fornecidos pela Seção de Apoio Psicológico do Centro de Atendimento
Psicossocial da Instituição, referentes à quantidade de Policiais Militares que passarem por atendimento
psicológico desde o ano de 2003 até o mês de junho de 2021.

Tabela 2 - Total de PMs que idearam, tentaram e consumaram o suicídio (2003-2021)


IDEAÇÃO TENTATIVA CONSUMADO
2003 * 12 33
2004 * 44 16
2005 48 109 19
2006 160 114 28
2007 60 76 14
2008 29 54 22
2009 35 57 29
2010 27 41 16
2011 41 49 24
2012 30 44 25
2013 43 42 26
2014 23 10 27
2015 15 17 22
2016 13 10 18
2017 17 15 20
2018 14 14 36
2019 19 29 23
2020 20 16 30
2021 11 04 13
TOTAL 613 757 441
Fonte: Seção de Apoio Psicológico (SAP) – CAPS (Dados computados até junho de 2021)

Observando mais atentamente tais dados, denotamos que nesses 18 anos em que tais dados
passaram a ser compilados, com relação à ideação suicida, à tentativa de suicídio e o suicídio
consumado, que tais números são expressivos, sobretudo se comparados com o efetivo atual de Polícia
Militar do Estado de São Paulo, que orbita em torno de 84.000 homens. Nesses anos somente o número
de Policiais Militares que foram atendidos por tal Seção, em termos de ideação suicida, gerou um total
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
203

de 613 atendimentos, já em termos de tentativa de suicídio, temos o número de 757 casos e o suicídio
consumado, gerou o número de 441 casos em todo o Estado de São Paulo6.
Esclarecemos que a tentativa de suicídio não foi consumada por situações alheias à vontade do
agente, ou seja, o agente experimentou, testou, ensaiou, porém não atingiu seu intento de ceifar a própria
vida. A tentativa frustrada, através de um ato de autoagressão cuja intenção é a morte, que acaba não
ocorrendo, pode resultar em lesão.
Ainda em relação a tabela 2, podemos destacar que a totalidade dos números, nas três situações,
superam o quantitativo do efetivo de várias Unidades da Instituição, se levarmos em consideração que
um Batalhão, que apresenta uma pequena área territorial sob sua responsabilidade, possui em seu efetivo
fixado pouco mais de 400 homens e mulheres. Um Batalhão cuja extensão territorial é mais extensa,
comporta mais de 600 Policiais em seu efetivo. Para corroborar com tal fato podemos elencar como
exemplo o Batalhão sediado na cidade de Araraquara/SP, que possui sob sua responsabilidade territorial
19 municípios e 5 Distritos e apresenta em seu efetivo fixado quase 700 homens.
É válido destacar que todo o efetivo da Polícia Militar do Estado de São Paulo foi orientado a
respeito dos meios disponíveis para tratamento de questões de saúde mental, ficando a cargo de cada
integrante a busca por ajuda.
Em dados obtidos junto ao Centro de Apoio Psicossocial – CAPs, pode-se verificar o alto número
de casos de ideação, de tentativa e consumação do fato social suicídio, contudo há que se deixar
consignado que apesar de todo o arcabouço jurídico e o conjunto de normas referentes ao assunto estar
em pleno vigor, há a necessidade de se buscar uma maior divulgação de tais ferramentas, de forma que
contribua para a diminuição da incidência deste fenômeno, visando preservar a vida dos profissionais
da polícia, profissionais estes que dedicam suas vidas em prol de garantir a segurança da sociedade.

3 Considerações finais

O presente trabalho procurou demonstrar a preocupação da Instituição Policial Militar com seu
integrante, como age no intuito de mitigar a ocorrência do fenômeno suicídio. Nesse diapasão, foram
apresentados todos os mecanismos legais com o fito de incutir em cada Policial Militar, que tivesse
ideação suicida, de demover tal intento.
Obviamente este assunto é de alta complexidade, de difícil elucidação por completo, haja vista as
inúmeras nuances, entre elas podemos citar a dificuldade em se conseguir dados fidedignos para a
realização da pesquisa, bem como da dificuldade em se dialogar a respeito de tal tema com pessoas que
tentaram o suicídio e com os familiares das vítimas que concluíram seu intento, entre outros.
Buscamos aqui deixar evidente o alto índice de suicídio na Polícia Militar do Estado de São Paulo,
porém com ênfase na busca de soluções, visto a preocupação dos Comandantes em todos os níveis e do
próprio Estado no desenvolvimento de normas voltadas a mitigar tal problema.
O tema é de extrema relevância, haja vista a busca pela redução de tal evento, e, consequentemente
o salvamento de vidas, uma vez que tais profissionais foram formados para proteger e servir os cidadãos,

6 Tabela 02
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
204 VOL. 11, N.º 1/2, 2023

e não para ceifarem suas próprias vidas, na maioria das vezes com o próprio armamento que o Estado
lhe fornece como ferramenta de trabalho.
Outro ponto importante a ser citado é que as relações interpessoais dentro das carreiras militares
são predominantemente pautadas pela hierarquia e disciplina, ou seja, dentro de parâmetros rígidos e de
alto índice de rigor. Sendo assim, o acatamento à hierarquia, consubstanciado na sequência dos graus
hierárquicos e ao acatamento integral às normas vigentes, além da cobrança velada, perpetrada pela
sociedade que ainda cobra uma postura firme e exemplar, gera desgastes emocionais e físicos
incalculáveis, levando, eventualmente, ao desenvolvimento de doenças de fundo emocional.
Os regimes de trabalho, norteados pelos horários operacionais descritos em escala de serviço,
mais comumente apresentados na forma de 12x36 ou 12x24 e 12x48, ou seja, a cada 12 horas
trabalhadas, o agente tem 36 horas de descanso, ou no outro modelo em um dia trabalho durante o dia e
no outro durante a noite, também contribuem para o encaminhamento de um risco ocupacional da
profissão bastante alto. Além do mais, os militares aposentam-se com idade relativamente baixa em
relação a outros profissionais, haja vista a complexidade de suas ações durante o tempo em que estão na
ativa. Cabe citar que a própria submissão a horários irregulares e em condições de salubridade
questionáveis, levam o militar da reserva a uma perda da sensação de autoridade, sendo que as mudanças
drásticas na profissão alteram suas condições mentais, podendo atuar enquanto gatilhos para a ideação
suicida.
Por fim, entendemos como primordial que seja dada atenção diferenciada a um agente policial
que tentou se autoexterminar, como medida profilática para a própria Instituição, estratégia essa
indispensável para se prevenir futuras situações similares que chocam, de forma tão aviltante o público
externo, como o público interno.
Enfim, à vista do exposto, podemos enfatizar a necessidade de que o Estado e a Polícia Militar de
fato unam forças de maneira a implementar programas que se voltem à relevância social, necessitando
ter sua saúde mental levada em consideração, sendo o suicídio um problema grave de saúde pública,
cono foi mencionado. Portanto, precisamos discorrer sobre o suicídio, e mais do que isso, otimizar ações
para sua erradicação, sendo que o profissional que atua na área da segurança pública está muito
suscetível, em virtude de seu labor, devendo ser devidamente assistido pelo Estado e pelas instituições
sociais.

4 Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Suicídio: informando para prevenir. Brasília, 2014.


Disponível em: https://www.passeidireto.com/arquivo/ 93843824/suicidio-informado-para-
prevenir-abp-2014. Acesso em: 20 ago. 2021.
RASIL, Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 10 fev. 2022.
BRASIL. Lei n.13.819, de 26 de abril de 2019. Institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e
do Suicídio, a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios; e altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Disponível em:
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n%C2%BA-13.819-de-26-de-abril-de-2019-
85673796. Acesso em: 10 fev. 2022.
REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO PENAL E POLÍTICA CRIMINAL - REDPPC
VOL. 11, N.º 1/2, 2023
205

DE LEO, D.; BERTOLOTE, J., & LESTER, D. L. A violência autoinfligida. In: E. G. Krug, L. L. Dahlberg, J.
A. Mercy, A. B. Zuvi, & R. Lozano. Informe mundial sobre la violencia y la salud. Washington:
Organización Panamericama de la Salud, p. 201-231, 2003.
DURKHEIM, É. O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
DURKHEIM, É. Suicídio: estudo de sociologia. Tradução Monica Stabel. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MIRANDA, D. (Org.). Por que os policiais se matam? Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2016.
MIRANDA, Dayse; GUIMARÃES, Tatiana. O suicídio policial: o que sabemos? Dilemas, v. 9, p. 1-18. Rio de
Janeiro, RJ, 2016.
MIRANDA, D. Diagnóstico e Prevenção do Comportamento Suicida na Polícia Militar do Estado do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2016.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção do suicídio, um recurso para conselheiros.
Departamento de Saúde Mental e de Abuso de Substâncias. Gestão de Perturbações Mentais e de
Doenças do Sistema Nervoso. Genebra, 2002.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. “Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da saúde
em atenção primária”. Genebra: OMS, 2000. Disponível
em:<https://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/en/suicideprev_phc_port.pdf>. Acesso em: 21
out. 2019.
PMESP, RISISMEM. Regulamento Interno do Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar do Estado de
São Paulo. São Paulo, 2002.
PMESP, Cartilha de Prevenção às Manifestações Suicidas: Orientações aos Policial Militares. São Paulo,
2021.
PMESP, Instruções Continuadas do Comando n. 256. Orientações para prevenção de suicídios de Policiais
Militares. São Paulo. 2019
LIPP, M.N. Como enfrentar o stress. Ed. Ícone, 1986. p. 23.
SÃO PAULO, Lei n. 9.628, de 06 de maio de 1997. Institui o Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar.
Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/ lei/1997/lei-9628-
06.05.1997.html. Acesso em: 10 fev. 2022.
SÃO PAULO, Decreto n. 46.039, de 23 de agosto de 2001. Cria e regulamenta o Sistema de Saúde Mental da
Polícia Militar do Estado de São Paulo. Disponível em:
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2001/decreto-46039-23.08.2001.html. Acesso em: 10
fev. 2022.
SÃO PAULO, Decreto n. 46.039, de 23 de agosto de 2001. Cria e regulamenta o Sistema de Saúde Mental da
Polícia Militar do Estado de São Paulo. Disponível em:
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2001/decreto-46039-23.08.2001.html. Acesso em: 10
fev. 2022.
SGOBIN, Sara Maria Teixeira. Custos diretos e indiretos de tentativas de suicídio de alta letalidade
internadas em hospital geral. Campinas, SP: [s.n.], 2013.vi
VIOLANTI, John M. Padrões de Estresse no Trabalho Policial. O Estresse Policial. Revista especial
publicada pela PM do RJ. Rio de Janeiro: Brasil. pp. 19. jan./1993.
WHO - World Health Organization. Mental health policy, plans and programmes. Singapur: World Health
Organization, 2012.

Recebido: 11/05/2022
Aprovado: 10/07/2023

Você também pode gostar