Cadernos Nietzsche 27 191 211
Cadernos Nietzsche 27 191 211
Cadernos Nietzsche 27 191 211
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Pesquisador-colaborador do IFCH-UNICAMP.
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Essa influência indireta de Rousseau, se é que realmente ocorreu, seria em todo caso
breve. As oposições entre Nietzsche e Rousseau são bastante conhecidas e encontram-
se claramente expostas em Nietzsche contra Rousseau, de Ansell-Pearson (Cambridge
University Press, 1991).
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Trata-se de Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, um conjunto de cinco
conferências proferidas entre janeiro e março de 1872 na Universidade da Basileia.
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Um fragmento redigido entre 1872 e 1873 deixa claro isso: “Acidentes da cultura
alemã em gestação: Hegel; Heine; a febre política que acentuou o fator nacional;
glória militar” (KSA 7.504, Nachlass/FP 19, [272]).
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A partir dos conhecimentos mais vastos, na melhor instrução das tropas, na concepção
mais científica de estratégia, que todos os julgamentos imparciais, até mesmo dos
franceses, reconheceram a vantagem decisiva dos alemães. Mas, se não se distingue
cultura de instrução, em que sentido a cultura alemã poderia pretender ter vencido?
(DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.162).
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Trata-se de uma das inúmeras cartas dirigidas a Voltaire, onde o Príncipe da Prússia
escreve: “Não se aprende essa língua senão para fazer guerra” (Frederic II, 1805,
XVI, 17 de dezembro de 1777).
contentar com a língua materna. Mas, apesar desse uso, para Mon-
taigne ou mesmo Racine o alemão deve ter soado intoleravelmente
vulgar; e ainda agora, na boca dos viajantes, em meio ao populacho
italiano, continua soando muito cru, silvestre, rouco, como se viesse
de ambientes esfumaçados e regiões impolidas. – Ora, eu observo
que agora novamente cresce, entre os velhos admiradores das chan-
celarias, semelhante tendência à elegância do tom, e que os alemães
começam a ceder a uma bem peculiar “magia do tom”, que a longo
prazo poderia tornar-se um verdadeiro perigo para a língua alemã –
pois em vão se buscará, na Europa, sons mais abomináveis. Algo de
sardônico, de frio, indiferente, negligente: eis agora o que agora soa
“elegante” para os alemães – e eu escuto a boa disposição para a
elegância das vozes de jovens funcionários, professores, mulheres,
comerciantes; até mesmo garotas pequenas já imitam esse alemão de
oficiais. Pois o oficial, o oficial prussiano, é o inventor destes sons; o
mesmo oficial, que como militar e profissional, tem o admirável tato
da modéstia, com o qual todos os alemães teriam o que aprender
(incluindo os catedráticos e musicistas!). Quando ele abre a boca e
se move, no entanto, é a figura mais imodesta e de mau gosto dessa
velha Europa – sem consciência de si, não há dúvida! E também sem
consciência dos caros alemães, que o apreciam como exemplo da
mais alta elegância e de bom grado o deixam “dar o tom”. É exata-
mente o que ele faz! – e primeiro são os sargentos e oficiais inferiores
que imitam grosseiramente o seu tom. Atente-se para os gritos de
comando que literalmente rodeiam as cidades alemãs, agora que se
fazem exercícios às portas de cada uma delas: que arrogância, que
furioso sentimento de autoridade, que sardônica frieza não ressoa em
tal gritaria! Seriam os alemães realmente um povo musical? – É certo
que eles agora militarizam o som da língua; é provável que, treinados
em falar militarmente, também acabem por escrever militarmente
(FW/GC, 104, KSA 3.461-462).
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Ver a esse respeito o parágrafo 5 da primeira dissertação da Genealogia da
moral, onde Nietzsche afirma ser atributo do tipo nobre a veracidade, como
aquilo que o distingue do homem comum mentiroso: “Eles se denominam,
por exemplo, ‘os verazes’: primeiramente a nobreza grega, cujo porta-voz é
o poeta Téognis de Megara. A palavra cunhada para este fim é estlos (bom,
nobre), que significa, segundo sua raiz, alguém que é, que tem realidade,
que é real, verdadeiro; depois, numa mudança subjetiva, significa verdadeiro
enquanto veraz: nesta fase de transformação conceitual ela se torna lema
e distintivo da nobreza e assume inteiramente o sentido de ‘nobre’ para
diferenciação perante o homem comum mentiroso, tal como Téognis o vê
e descreve” (GM/GM, I, 5, KSA 5.263). Essa ideia é retomada na segunda
dissertação para sofrer desdobramentos significativos: o nobre, enquanto
veraz, é o homem confiável, isto é, o homem dotado da firmeza e do poder
necessários ao cumprimento de uma promessa: “os fortes, os confiáveis (os
que podem prometer)” (GM/GM, II, 2, KSA 5.294).
seu quarto, sua casa, a menor caminhada nas ruas de suas cidades, a
menor visita às lojas da moda. Ele deveria ter consciência, do ponto de
vista social, da origem das suas maneiras e dos seus gestos [grifo nosso];
apreciando as alegrias do concerto, do teatro e do museu, entre os
estabelecimentos consagrados à arte, ele deveria ter consciência desta
justaposição e desta acumulação grosseira de todos os estilos possíveis.
O alemão amontoa em torno de si as formas, as cores, os produtos e
as curiosidades de todos os tempos e de todos as regiões, e cria assim
este multicolorido carnavalesco que seus intelectuais são em seguida
encarregados de estudar e de definir como a “essência do moderno”,
enquanto que ele próprio permanece serenamente colocado no meio
desse tumulto de todos os estilos (DS/Co. Ext. I, 1, KSA 1.163).
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“Suponhamos que um pintor pretendesse ligar a uma cabeça um pescoço de cavalo,
ajuntar membros de toda a procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte
que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse em um hediondo peixe preto;
entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso? Creiam-me, Pisões,
nem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem
consistência, quais sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não combi-
nassem num ser uno” Aristóteles, Horácio, Longino. S/data. Poética Clássica. São
Paulo: Editora Cultrix, p. 55).
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Trata-se mais precisamente da oposição dos alemães às regras literárias do Clas-
sicismo, baseadas em larga medida na influência de Horácio sobre a Arte Poética
de Nicolas Boileau, espécie de poema-diretriz dos preceitos clássicos da poesia. É
importante notar que a expressão “unidade de estilo”, assim como a ideia de barbárie
como caos de estilos, parece ser simultaneamente extraída dessas duas obras.
etiqueta francesa, “ele se deixou vagar por onde bem lhe conviesse
por imitar em semi-esquecimento o que imitara anteriormente de
maneira escrupulosa e frequentemente com sucesso” (HL/Co. Ext.
II, 4, KSA 1.275). Portanto, constata Nietzsche, a dívida com os
franceses ainda é grande: “a cultura francesa continua a existir
como ontem e como ontem continuamos a ser tributários dela” (DS/
CO. Ext. I, 1, KSA 1.160). E prossegue: “Tomemos consciência de
que dependemos ainda e sempre de Paris por tudo que toca a forma,
pois não existe, até o presente, cultura alemã original” (DS/CO. Ext.
I, 1, KSA 1.164). “O que são portanto os costumes alemães? Mais
frequentemente, más imitações (grifo nosso) que se arraigaram e
das quais se esqueceu que são imitações” (KSA 7.593, Nachlass/
FP 27 [24]).
Os alemães copiaram as convenções dos franceses, mas per-
deram de vista o que nelas havia de essencial a ser apreendido:
procurou-se apurar a língua, mas ignoraram-se o ritmo e a cadência
inerentes à elegância dos sons; copiaram-se os gestos, as vestes, os
hábitos, mas aboliu-se o que neles havia de excessivo, abundante,
dispendioso, ao submetê-los ao pragmatismo e à pressa universal.
Esqueceu-se, enfim, o impulso original que outrora elevou os hábitos
imitados a um estatuto singular, ao submetê-los a uma forma de vida
orientada pela utilidade e pelo senso de economia que aniquilou
inteiramente o seu sentido ou direção inicial. Mergulhado em sua
própria interioridade e consequentemente deixando-se dirigir pelas
determinações inerentes ao seu próprio ser, o alemão ignorou a exis-
tência de uma exigência superior a ser seguida, também chamada
por Nietzsche de vontade forte e profunda:
ela é, se não detestada, pouco amada entre nós; seria mais exato dizer
que temos um medo terrível da palavra “convenção” e sem dúvida
também da coisa como tal. É este medo que impeliu o alemão a aban-
donar a escola dos franceses: pois ele queria se tornar mais natural,
e portanto mais alemão. Mas ele parece estar enganado quanto a este
“portanto”: fugindo da escola da convenção, ele se deixou vagar por
onde bem lhe conviesse [grifo nosso] por imitar em semi-esquecimento
o que imitara anteriormente de maneira escrupulosa e frequentemente
com sucesso. Em comparação às épocas passadas, também somos
hoje ainda prisioneiros de uma convenção francesa que imitamos de
maneira incorreta e atrapalhada: uma prova disso é a nossa maneira
de andar, de parar, de conversar, de se vestir, de morar. Acreditando
que nos refugiávamos no natural, não escolhemos senão o deixar-se ir,
a comodidade e o menor esforço sobre nós mesmos. Andemos por uma
cidade alemã: em comparação com a originalidade das cidades estran-
geiras possuímos uma convenção negativa, tudo é pálido, gasto, mal
copiado, negligente, cada um age como bem quer, não em conformidade
com uma vontade forte e profunda, mas segundo as leis que prescrevem
primeiro a pressa universal e depois a comodidade [grifo nosso]. Uma
peça de roupa cuja invenção não demanda um grande esforço cerebral,
que não demanda tempo algum para ser vestida, ou seja, uma peça de
roupa tomada de empréstimo do estrangeiro e copiada da maneira mais
descuidada possível, vale para os alemães como uma contribuição à
arte do vestuário nacional. Eles repudiam ironicamente o sentido da
forma: não temos nós o sentido do conteúdo? Não somos nós o célebre
povo da profundidade interior? (HL/Co. Ext. II, 4, KSA 1.275).
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A esse propósito, Norbert Elias dirá a respeito do confronto dos alemães com o forma-
lismo da etiqueta francesa ocorrido na segunda metade do século XVIII: “leviandade,
cerimonial, conversação superficial de um lado; interiorização, profundidade de
sentimento, leitura, formação da personalidade individual do outro (...)”. (ELIAS, N.
La Civilisation des moeurs. Paris: Calmann-Levy, 1973, p. 32).
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Alusão à doutrina econômica do laissez-faire que aos olhos de Nietzsche representa
o estado de indigência e liberdade desenfreada que tomou conta dos alemães (e do
próprio mundo moderno). Essa expressão aparecerá numerosas vezes nos escritos
de Nietzsche.
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É o caso mais especificamente da cultura aristocrática que será citada no texto mais
adiante.
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referências bibliográficas