Cupim - Layla Martínez
Cupim - Layla Martínez
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Sumário
Capa
Folha de rosto
Sumário
1
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10
Agradecimentos
Sobre a autora
Créditos
A José, para que o Diabo abençoe a nossa união
1
Eu já disse a vocês, desta casa ninguém vai embora. Estamos presas aqui,
nós e as sombras. Minha mãe dizia isso. Estamos presas aqui até que nos
levem, me dizia. Até que quem nos leve? Quem quer que saia pelas casas
espantando os mortos para que se vão com os santos.
Minha neta não queria acreditar. Pensava que poderia partir quando
fosse maior de idade, que iria estudar em Madri e não voltaria. Mas acabou
ficando. Aonde poderia ir? Quem iria pagar seus estudos na capital? Isso
apenas os patrões podem fazer. Ela andou tentando ver se lhe davam
alguma ajuda mas logo desistiu. Aqui pra lhe darem algo você já precisa ter
desde antes e depois eles lhe tiram. Se você não tem nada é isso que lhe
dão, nada. Não querem pessoas como nós na capital pra estudar, no
máximo pra servir, mas disso eles também já têm muito. Não é mais como
na sua época, dizia minha neta, mas quem precisou se desiludir foi ela. Nós
gastamos o dia inteiro procurando alguma coisa pra jogar na panela
enquanto eles ficam só se exibindo, e sempre foi assim. Acabou que ela não
foi embora porque aqui pelo menos não iam lhe faltar nem o teto nem a
comida. Família é isso, um lugar onde lhe dão teto e comida em troca de
você ficar presa com um punhado de vivos e outro de mortos. Todas as
famílias têm seus mortos embaixo das camas, só que nós vemos os nossos,
dizia minha mãe.
Mas eu também vejo muitas outras coisas que minha mãe não via.
Quando tinha seis anos a santa apareceu para mim pela primeira vez.
Minha mãe tinha ido cobrar uns pagamentos na casa das Adolfinas, que
eram rápidas em mandar mas lentas em pagar, como todos os patrões
miseráveis que aparentam mais do que têm. Nenhuma das três irmãs se
casara porque se você casasse com uma era como casar com as três e se elas
eram insuportáveis em separado juntas eram um castigo que nenhum
homem ia querer. De modo que as três foram permanecendo solteiras baile
após baile e se algum homem se interessava por uma as outras duas se
encarregavam de espantá-lo. Passavam o dia gastando o que lhes deixara o
pai, d. Adolfo, que enriquecera em Cuba negociando escravos. Mandou as
filhas e a mulher pra cá quando houve a guerra de lá e elas trouxeram a
fortuna e a mania dos escravos, nem mesmo os Jarabo tratavam os
empregados assim, aos tapas. O dinheiro foi acabando e as criadas
contavam por todo o povoado que as irmãs cerziam às escondidas os
buracos feitos pelas traças em suas roupas, embora continuassem vivendo
como abastadas. Até mandaram construir uma piscina com vestiário e
tudo, na época ninguém tinha visto por aqui uma coisa assim. Minha mãe
recebia encomendas de jogos de mesa bordados e lençóis de linho mas
depois precisava insistir durante meses para que pagassem, e com esse fim
tinha ido lá quando a santa me veio. Eu tinha sido deixada em casa pra
cardar lã. Aquilo me dava muito nojo porque ainda menina eu já não
suportava aquele odor de pelo morto, mas pra minha mãe não importava
porque o nojo é algo que nós pobres não podemos nos permitir, como a
compaixão.
Era tarde e o quarto estava ficando às escuras, mas de repente se
iluminou com a claridade mais intensa que eu já tinha visto. Era uma luz
branca, fria como a de uma sala de cirurgia ou um aeroporto, mas naquela
época ninguém neste povoado de desgraçados tinha visto nem uma coisa
nem outra. Quando o filho do padeiro despencou com a carroça pelo
barranco foi levado pra casa e ali mesmo o abriram, em cima da mesa da
cozinha, com as filhas assistindo. Uma delas ficou meio abobada por causa
da repugnância, não voltou a falar mais de três palavras seguidas, mas eu
acho que ela já era assim antes e isso só a fez piorar. A verdadeira desgraça,
comentava minha mãe, era a da padeira, que ficou com uma filha tonta e
um marido que depois daquilo não servia pra mais nada a não ser pra se
cagar todo mas que também não morria. Digo a você que se fosse comigo
era melhor ele ter morrido, dizia minha mãe entre dentes, e depois me
obrigava a fazer o sinal da cruz pra casa não começar a ranger e estalar por
todos os lados.
O fato é que me lembro de ter fechado os olhos por um momento
ofuscada pela luz. Quando os abri de novo, havia uma mulher de pé na
minha frente. Vestia uma túnica negra que a cobria do pescoço até os pés e
seu cabelo estava recolhido em um coque baixo, com a risca no meio.
Tinha as mãos entrelaçadas sobre o peito e a vista dirigida pro alto, como se
rezasse. Fiquei pasmada olhando pra ela e perdi a conta do tempo que
passei assim. Só saí do pasmo quando minha mãe me sacudiu com força
pelos ombros e a santa se desvaneceu. Minha mãe tinha voltado e me
encontrou caída no chão com o olhar perdido no teto. Se você ficar idiota
eu a entrego às freiras, disse minha mãe, estou chamando desde que entrei e
você nem me olhava. Saiba que a paciência da padeira eu não tenho.
As freiras haviam levado várias meninas do povoado desde a guerra.
Algumas eram dadas pelas próprias famílias porque não tinham o que
comer. Outras eram levadas a pedido do vigário porque os pais estavam na
cadeia ou no cemitério, o que no caso não fazia muita diferença. Os tios ou
os vizinhos se cansavam de sustentá-las e pediam que o vigário resolvesse o
assunto. Não voltamos a ver nenhuma delas. Minha mãe dizia que eram
vendidas aos ricos, as bonitas pra serem filhas e as feias pra serem
empregadas.
Depois daquilo eu vi a santa muitas vezes. Ela sempre aparece na mesma
postura, como nas estampas. Com o olhar para o alto e a expressão séria
como se escutasse ordens de Deus e estivesse disposta a fazer qualquer coisa
por ele, o que fosse, inclusive perseguir meninas e perturbá-las. Pra mim ela
nunca olha nem fala diretamente, mas eu escuto sua voz dentro do peito e
sei que tenho que fazer o que ela me disser. Como é que você vai discutir
com um santo, como é que não vai obedecer a tudo o que ele mandar?
Quando contei à minha mãe ela mandou que eu não falasse sobre isso
com mais ninguém. Que aquilo devia ficar entre as paredes da casa, como
os uivos do meu pai. Nunca me perguntou o que a santa me dizia, mas
ficava me olhando sempre que eu voltava do lugar para onde era levada. Eu
via a inveja em seu rosto, ela sentia ciúme porque a santa tinha me
escolhido, ciúme de que para ela só aparecessem aquelas sombras cheias de
desespero. Queria que uma santa falasse com ela dentro do peito, vê-la
rodeada de luz e formosa como um milagre. O que eu havia feito pra
merecer aquilo se nem sequer precisara matar um homem?
À medida que fui crescendo, a inveja da minha mãe aumentou. A santa
não me levava com muita frequência, mas quando vinha me contava coisas
que iam acontecer e coisas que já haviam acontecido mas não eram ditas
em voz alta. Foi assim que eu soube que o moleiro estava numa vala junto
do muro do cemitério, que o filho do prefeito ia morrer de um coice de
cavalo e que eu veria a mais nova das Adolfinas se afogar e não faria nada.
Minha mãe suportava cada vez menos minhas visões e me invejava mais. O
ressentimento a tornou cruel e mesquinha, ou talvez ela sempre tivesse sido
assim e aquilo só revelou. Me obrigava a usar seus vestidos velhos e cortava
o meu cabelo como se me tosquiasse, mais curto num lado do que no outro
e todo repicado. Também me fez sair da escola. A professora disse que eu
era boa aluna e podia estudar em Cuenca, onde as freiras tinham convento
e minha mãe poderia pedir desconto por ser viúva, mas minha mãe se
negou. Nunca pedi e não vou começar agora, disse.
Quando voltamos pra casa depois da conversa com a professora, ela me
fez tomar banho na tina e me mandou ir pedir trabalho na casa dos Jarabo,
que estavam procurando empregada porque uma das de lá ia se casar. Você
sempre disse que não íamos servir aos patrões, que qualquer coisa menos
servir, respondi. Quando souber fazer outra coisa você procura outro
emprego, retrucou minha mãe, porque eu não vou ficar sustentando
ninguém. Aquele era o meu castigo. Servir a quem minha mãe não tinha
querido servir e baixar a cabeça pra quem meu pai não tinha querido
baixar. Arcar com a obediência de toda a família.
Servi naquela casa por nove anos, dos dez aos dezenove. O casal tratava
Carmen e a mim com correção, mas de vez em quando nos deixavam ver o
ódio que escondiam por trás da indiferença. Como quando a patroa
cortava em tiras os agasalhos que não queria mais para que não pudéssemos
aproveitar o pano, ou como quando o patrão nos obrigava a recolher uma a
uma todas as pedras da estrada de terra da propriedade para não furarem os
pneus do carro. Era um ódio antigo que traziam por dentro, tão fundo que
nem precisavam se esforçar para mostrá-lo. Não nos odiavam com raiva,
mas com desdém.
Em contraposição nós tínhamos muita raiva sim. Aquilo nos corria pelo
sangue como uma febre. Não sei se Carmen passou isso pra mim ou eu pra
ela, às vezes acho que foi ela porque estava ali havia mais tempo e era mais
velha, às vezes penso que fui eu porque já vinha com a malquerença da
minha casa. Fosse como fosse, nós alimentávamos o ódio uma da outra. Ela
me contava que as roupas trazidas pelo alfaiate valiam duas vezes nosso
salário, e eu que a patroa tinha esvaziado na pia dois frascos inteiros de
perfume porque só gostava dos que eram feitos em Paris. Mas quem nós
mais odiávamos era o filho mais velho. Estudava direito em Madri, onde
fazia contatos com quem era preciso fazer, com os que falavam de
modernizar a Espanha e quando diziam Espanha a boca deles se enchia de
sangue. Vinha todos os verões porque gostava do monte e da caçada. Nós o
víamos aparecer na porta com perdizes mortas penduradas no cinto e em
Carmen e em mim o ódio crescia nas entranhas como brotoeja. Após
alguns anos ele morreu num acidente de carro e os pais o enterraram no
jazigo da família, que é o maior de todo o cemitério. O filho mais novo
ainda era menino mas já se notava o quanto era malcriado e impertinente.
Às vezes a patroa nos fazia cozinhar as perdizes que o mais velho caçava.
Tínhamos que depenar aqueles animais com as mãos e morríamos de dó e
de nojo. Mas também de rir depois, quando os víamos raspar com pão o
molho no qual tínhamos cuspido. Carmen soltava uns escarros enormes
que ficavam flutuando no óleo e precisávamos dissolver com a colher. A
carne de caça é incomparável, dizia a patroa, e Carmen e eu contínhamos
como podíamos as gargalhadas atrás da porta da cozinha.
Acho que foi aí que Carmen e eu nos tornamos amigas, à base de
cusparadas. Ela tinha sido criada com pobreza mas com carinho e isso se
notava em seu caráter. Não trazia dentro de si o cupim que minha mãe e eu
trazíamos, aquela comichão de desgraçadas que nem dá descanso nem
deixa que você o dê aos outros. Seu pai tinha aprendido a tocar bandurra
de ouvido, de tanto experimentar, e alegrava as romarias e os bailes e quem
quer que virasse a noite em sua casa. A mãe era mais calada, mas sabia
muitas coplas. Se você insistisse, ela acabava recitando-as, primeiro em voz
baixa e com as faces coradas, e em seguida já sem hesitações e sem timidez.
Carmen se criara entre bailes e eu entre maldições, como isso não ia deixar
marcas? Eu já quase nem via minha mãe. Quando chegava em casa depois
de recolher o jantar dos patrões ela já estava dormindo e de manhã mal
trocávamos umas palavras. Ela estava me fazendo pagar o castigo de toda a
família mas a inveja continuava a comê-la por dentro. Então percebi que
ela não ia me perdoar nunca. Ficava possessa só de pensar que a santa falava
comigo e não com ela. Também não suportava constatar que eu sabia
muitas coisas antes que acontecessem. Que não me surpreendi quando o
prefeito enterrou o filho com o fígado arrebentado nem com o fato de
encontrarem afogada na piscina a mais nova das Adolfinas pouco depois de
eu ter voltado da casa dela, aonde havia ido para cumprir uma ordem dos
patrões.
O ressentimento da minha mãe piorou quando eu conheci Pedro. Um
dia ele apareceu à porta dos Jarabo, encharcado de suor e com manchas de
fuligem na camisa. Um depósito que o patrão tinha em Gascueña se
incendiara com tudo o que havia dentro, inclusive uma parte da uva
recém-colhida. Pedro se sentou na cadeira da cozinha pra esperar o patrão,
que devia estar chegando. Deixei a bilha ao seu lado e saí para o pátio. A
mula em que ele viera ofegava, esbaforida. Pedro devia tê-la chicoteado
com vontade pra vir mais depressa. Levei-a para a sombra e deixei junto
um balde de água fresca da cisterna. Não se preocupe que esse animal
aguenta tudo, me disse ele lá da porta. Você não devia tê-la forçado tanto, o
que importa chegar antes ou depois se o depósito já está queimado? Ele se
aproximou da mula e lhe acariciou o lombo. Por mim tudo o que eles têm
pode pegar fogo, disse, mas eu sou o capataz, e se ele souber por outro que
hoje perdeu um milhão vai me desgraçar pra sempre e eu não arranjo mais
trabalho na vida.
Depois daquele dia Pedro voltou em muitos outros. No começo
procurava desculpas pra resolver na casa do patrão os assuntos que sempre
haviam resolvido na adega, mas logo começou a vir me ver sem maiores
explicações. Entrava pela porta da cozinha e se sentava pra me ver
descascando ervilha ou fazendo bolo. Carmen sorria e nos deixava
sozinhos, até que um dia me agarrou pelo braço e disse que Pedro tinha
noiva, que haviam lhe contado que ele ia se casar com uma moça de
Gascueña e que já estava tudo acertado. Eu sabia. A santa tinha me falado,
assim como tinha me falado que com essa moça ele não ia se casar. Que
Pedro ia se casar era comigo.
Ele vinha me ver todos os domingos à tarde, quando a patroa nos dava
folga depois de arrumarmos a cozinha e deixarmos o jantar pronto.
Combinávamos de nos encontrar na beira do caminho, íamos para o
monte e voltávamos com a roupa manchada de terra e de suor. No povoado
começaram a falar como sempre fazem, não iam ficar calados aqueles
desgraçados. Carmem me contou que eu tinha sido vista descendo da serra
com o cabelo desgrenhado e as bochechas acesas, que sabiam que eu
voltava pra minha casa pelo monte e não pelo caminho principal já tarde
da noite. O que se podia esperar da filha de um cafetão? De uma moça que
havia mamado a sem-vergonhice desde pequena, por mais que a mãe agora
bancasse a viúva respeitável, anos enlutada como se sua casa fosse um lugar
decente?
Uma tarde levei Pedro a um charco entre os penhascos e tirei a roupa
dele. Nunca o tinha visto nu, só adivinhado partes de seu corpo enquanto
lhe subia a camisa e lhe descia a calça. Gostei do torso forte e dos ombros
largos, e ele da minha ânsia e minha fome. Me deitei no chão e o deixei
agir, Pedro se agradava de ter meu corpo pra si. Eu já sabia o que ia
acontecer, vi no teto da cozinha. Naquela tarde fiquei grávida.
Pedro não queria se casar comigo, mas nunca falou isso. Assumiu sua
responsabilidade sem queixas nem culpas e de cabeça erguida, como fazia
tudo. Carregou suas tralhas na mula e veio morar na casa com minha mãe e
comigo. Eu parei de trabalhar para os Jarabo antes que a gravidez ficasse
visível pra evitar o escândalo de uma criada deles ter emprenhado. Pedro
continuava sendo o capataz e precisava estar bem com os patrões. Nos
casamos de noite e sem convidados. Não houve convite, não havia nada a
comemorar na desonra. Minha mãe costurou meu vestido, preto pelo luto
e largo pela vergonha.
5
A velha tem razão, nunca acreditei que estava presa nesta casa por mais que
ela me dissesse. Eu achava que algum dia poderia sair, que iria embora
deste povoado de merda como todos haviam feito. Aqui já não restava
ninguém da minha idade porque os que podiam tinham ido para Madri e
os que não podiam para Cuenca, uns para estudar e outros para trabalhar
na Mercadona na Zara onde quer que fosse menos aqui porque aqui só
restavam velhos meio mortos. Eu pensava isso mas vi que não, que a velha
tinha razão e que nós as mulheres desta família só saímos daqui quando nos
levam, eu quando me encarceraram e minha mãe quando sumiram com
ela.
Eu tinha parado naquilo de ter visto minha mãe na porta da casa. Não
falou comigo nem me olhou, era como se em vez de me ver enxergasse
através de mim. Fez menção de entrar e me afastei para o lado. Ela avançou
pela penumbra do saguão. Caminhava devagar, como se não quisesse fazer
ruído ou não quisesse despertar ninguém. Passou do meu lado e foi até a
escada. Quando se virou, uma mecha de seu cabelo comprido e escuro
roçou o meu braço e um calafrio como de aviso ou antes como de
confirmação percorreu a minha espinha. Eu soube que ela era minha mãe
mas também que vinha de um lugar onde isso não importava.
A velha nos olhava do alto da escada. Estava em silêncio, como o resto
da casa. Tive a sensação de que ia se lançar contra mim, de que ia se jogar
lá de cima como uma aranha gigante, mas não. Limitou-se a me encarar
fixamente como sempre fazia, tentando me arrancar as ideias da cabeça
para enfiar outras. Às vezes ela conseguia, eu a escutava cracracracra me
escavando o cérebro e de repente já pensava outras coisas que não pensava
antes. Agora não faz mais isso, desde que tudo aconteceu e que nos
entendemos entre nós ela não faz mais.
Minha mãe chegou ao pé da escada e começou a subir os degraus. A
velha desviou o olhar de mim e o dirigiu a ela mas seu rosto não deixou ver
nenhuma emoção, parecia uma daquelas aranhas enormes e brilhantes que
caçam mosquitos junto da lâmpada do pátio e ficam quietas quietas até que
saltam em cima deles e os engolem. O regresso de minha mãe não a
surpreendera. Talvez ela também a tivesse visto vagar pelo caminho talvez a
santa tivesse lhe contado assim como dissera o nome daquele que levara
minha mãe ou o lugar exato onde o rastro dela se perdera para sempre
naquele mesmo caminho. Talvez a velha já tivesse visto tanta podridão ao
longo da vida que nem a própria filha vinda das sombras a surpreendia.
Quando chegou ao final da escada minha mãe passou pela velha e se
meteu no quarto. Saí do aturdimento e fui atrás dela com toda a rapidez
que consegui. A casa permanecia em silêncio, à espera. A velha tem razão
quando diz que é uma cilada, é como uma daquelas armadilhas que os
caçadores filhos da mãe espalham pelo monte e se esquecem e elas podem
passar anos escondidas no mato esperando o momento de se fechar.
Entrei no quarto e vi minha mãe parada diante do guarda-roupa. A
madeira rangeu e o móvel se deslocou uns centímetros para a frente, ávido.
Ela entrou no guarda-roupa antes que eu pudesse fazer algo e a porta se
fechou com um golpe seco. Abri o móvel mas só encontrei as saias e as
blusas da minha avó impregnadas do cheiro de naftalina. Não se preocupe
que ela não foi a lugar nenhum, disse a velha atrás de mim.
Eu tinha começado a remexer no guarda-roupa mais por frustração do
que por convicção quando escutei outros dois golpes secos no térreo.
Alguém batia à porta. Minhas tripas se encolheram dentro do corpo e meu
coração começou a pular como cavalo desembestado. Era a mesma forma
de bater. Esperei a velha atender, ela tinha descido enquanto eu abria e
fechava gavetas como se imaginasse encontrar o rosto da minha mãe me
olhando do fundo de uma delas, mas a escutei chamando os gatos no pátio
dos fundos, do outro lado da casa, de modo que desci a escada e parei
diante da porta. Antes de abrir eu já sabia que era ela.
Repetiu os mesmos movimentos um por um. Atravessou a porta sem me
olhar, subiu a escada e depois entrou no quarto, abriu o guarda-roupa e
desapareceu lá dentro. Dessa vez não a segui, fiquei ali parada como uma
idiota. Do térreo escutei o estalar da madeira o rangido das dobradiças o
golpe da porta fechando de novo. Minha mãe nunca havia sido mais do
que uma adolescente numa fotografia velha ou uma blasfêmia na boca da
minha avó, nem sequer um vazio porque para isso você precisa ter onde
cavar mas agora voltava como se nunca tivesse desaparecido ou como se
tivesse desaparecido todos os dias e todos os dias tivéssemos tido que sentir
a dilaceração por dentro e aí sim foi que comecei a notar o furinho o
furinho o furinho.
Voltei a mim quando escutei a velha. Ela havia voltado do pátio e eu a
escutava se movendo na cozinha. O silêncio da casa era tamanho que podia
ouvi-la arrastando os pés de um lado para outro e xingando entre dentes
uma das sombras que vivem no armário e que estendera a mão para
arrancar um tufo de cabelo dela. Desgraçada eu a mataria se você já não
estivesse morta, dizia, mas não adiantava muito porque com o que você vai
ameaçar uma sombra que chegou se arrastando até aqui vinda de sabe lá
qual inferno? Pouco depois a velha apareceu no corredor. Passou do meu
lado e cruzou a porta da entrada, que eu tinha deixado aberta porque meu
corpo estava havia um tempinho sem me obedecer, todo encolhido de puro
medo. Puxou um rosário do bolso da saia e o pendurou num ramo da
parreira que subia pela fachada da casa.
A raiva me veio porque percebi que a velha devia saber algo, que estava
silenciando algo e que vinha fazendo isso durante muitos anos. É para
mandá-la embora?, perguntei com todo o veneno que cabia aqui dentro,
desejando que me desse uma razão para agora ser eu a saltar em cima dela,
a me precipitar sobre ela como um inseto gigante. Você sabe que não tem
jeito de expulsá-las, mas assim pelo menos não incomodam, disse a velha, e
entrou na casa e fechou a porta. Agarrei-a pelo braço me sentindo com
tudo mexido por dentro e com o furinho que já se tornara grotão buraco
poço. O que ela faz aqui? Por que veio agora, tanto tempo depois? Não veio
agora, retrucou a velha puxando o braço. Soltei-a e a segui até a cozinha
com a raiva me subindo e me subindo e já me saindo por entre os dentes.
Não veio agora, como assim? A única coisa que me impedia de me lançar
sobre a velha para arranhar aquela sua cara de fuinha era que eu precisava
que ela me respondesse, me dissesse o que estava silenciando. Está aqui há
muito tempo, voltou logo depois que a levaram.
Me sentei à mesa e afastei com um tapa a panela que a velha tinha tirado
do fogo para lavar e fazer um novo ensopado. Parte do caldo que restava se
derramou sobre o encerado numa poça gordurenta que me provocou
engulhos. Por que não a vi até agora?, perguntei à velha com a raiva já
transformada em náusea ou em pena ou em algo que eu não sabia o que era
mas que já não eram impulsos de arranhá-la. Não sei por que vemos o que
vemos, respondeu, nem por que certas vezes as sombras não passam de um
arquejo num canto e outras são bestas raivosas, por que certas vezes são
apenas um calafrio e em outras se metem pelas nossas tripas. A velha sorveu
um bocado da colher de pau e uma gota de caldo deslizou pelos cantos da
sua boca deixando um fio oleoso no queixo e ela já não parecia um inseto
majestoso mas só uma velha como qualquer outra por quem se devia sentir
pena e talvez também um pouco de nojo mas não medo, medo é que não.
Saí da cozinha, subi para o quarto e me joguei na cama. No outro lado
do aposento o guarda-roupa parecia tranquilo, havia parado de cambalear e
ranger. Eu já não via minha mãe mas a sentia ali, como um alento ou uma
exalação que passava várias vezes ao meu lado, atravessava o quarto e
desaparecia dentro do móvel. Se prestasse atenção conseguia ouvir os passos
subindo a escada o chiado da maçaneta girando e o rangido das dobradiças
se abrindo. Fechei os olhos e notei que o ar do quarto ficava mais denso.
Senti uma leve inclinação num canto da cama, como se alguém tivesse se
sentado nela e a afundasse com seu peso. Abri os olhos e me soergui de
repente procurando minha mãe mas tudo o que consegui ver foram uns
cabelos negros deslizando para debaixo da cama.
Quando eu era pequena tinham me enganado muitas vezes com esses
truques. Me atordoavam com suas canções alegres e eu levantava a colcha e
as seguia e voltava algumas horas depois com a pele cheia de arranhões e
com rasgos na roupa e o medo metido lá no fundo mas sem saber o que
havia acontecido porque não me lembrava de nada. Agora eu já sabia que
não era minha mãe quem se sentara na cama e tampouco quem deslizara
para debaixo dela. Minha mãe não tinha voltado para cuidar de mim para
me proteger enquanto eu dormia para me acariciar o cabelo nos sonhos.
Nem mesmo quisera me ter, fora apenas uma adolescente idiota que
engravidou de quem não devia e pariu um bebê que não desejava. Aquilo
que eu vi não era minha mãe, era o que restava dela após o terror que a
fizeram passar quando a levaram.
Quando despertei o quarto estava na penumbra. A velha devia ter
baixado as persianas enquanto eu dormia. Eu não sabia quantas horas
tinham se passado mas sentia o travesseiro encharcado de suor e o
estômago contraído de fome. O ar do quarto continuava denso e pesado
como o de um porão ou como o de um aposento que ficou fechado por
muito tempo e de repente se abre e as coisas continuam no mesmo lugar
mas já não são as coisas e sim a sombra das coisas.
Me levantei e saí para o corredor. No térreo a velha rezava o rosário, ouvi
o murmúrio dos mistérios dolorosos da Terça-Feira Santa. Primeiro a
traição, em seguida a tortura. Depois a coroação, a cruz e a morte. Maria
mãe de graça mãe de misericórdia defende-nos de nossos inimigos. Manda
teus anjos sobre eles, abrasa os campos, faz com que a cevada venha sem
grão e a videira sem uva, não lhes dê descanso nem depois de mortos. Desci
até a cozinha e saí para o pátio dos fundos, não queria estar ali se minha
mãe voltasse a bater à porta. Não queria vê-la repetir aqueles movimentos
uma e outra vez durante anos como estivera fazendo a velha, que não teve
corpo para enterrar mas sim aquela dor aquela tortura passando uma e
outra vez diante dos olhos. Não lhes dê descanso virgenzinha minha
porque nós não o temos.
Desejei que a casa ocultasse minha mãe de mim como fizera todos esses
anos, que aquilo fosse só um reflexo que eu entrevira atrás de uma porta
encostada mas que agora a porta se fechasse e não se abrisse de novo porque
o que havia dentro não era para mim mas sim para a velha. Podia no
máximo me cavucar, aquele buraco não era meu aquele buraco era da velha
que era quem sentia a dor a culpa a tristeza a ferida de se despedaçar se
despedaçar se despedaçar porque o corpo da filha continuava em algum
sarçal em algum barranco em alguma vala e quem havia feito aquilo nunca
precisou pagar.
Então eu percebi na velha o buraco e entendi melhor a crueldade a
mesquinhez o ressentimento a amargura dela. E aquilo deve ter se agarrado
em mim por algum lado e começado a crescer porque quando voltei à casa
dos Jarabo depois da enfermidade as coisas já não eram as mesmas. O
menino se portava do mesmo jeito de sempre a mãe me tratava do mesmo
jeito de sempre mas eu já não conseguia aguentá-los, não conseguia. Vinha-
me ao corpo um negror que ia crescendo a cada dia que passava. E a velha
deve ter percebido porque naquela manhã me disse chegou o momento e
eu soube que era verdade, que havia chegado.
Passei o dia todo com o menino, estava lá desde as nove da manhã e já
era mais de meia-noite. Nenhum dos pais voltara ainda. A mãe telefonou
antes de sair de Madri. Tinha acabado de jantar com as amigas e ia pegar o
carro dali a pouco, em uma hora e meia estaria em casa. Parecia meio
bêbada, sua voz soava mais aguda. Eu odiava aquela voz, aquelas frases
arrastadas de dondoca, aqueles dês forçados no final dos particípios para
não falar como nós, provincianos, que dizemos comío cansao acostao.3
Desejei que o carro se espatifasse que derrapasse numa curva que ela levasse
pelo menos um susto. O pai também não voltara ainda mas não telefonou,
ele nunca fazia isso.
O menino esteve insuportável a tarde inteira. Era uma daquelas crianças
mimadas que fazem birra por qualquer coisa, mas tinha sido um dia
especialmente difícil. Jogou no chão o prato do almoço, atirou um copo na
minha cabeça e destroçou o buquê de rosas que a mãe havia deixado sobre
a mesa da sala de jantar. Eu estava farta dele de aguentá-lo do salário de
merda de ser tratada pelos pais como sua família sempre havia tratado a
minha com aquele desprezo aquela condescendência que os ricos usam para
falar com quem trabalha para eles.
Minha vontade era lhe dar um tapa de quebrar a cara daquele malcriado
e estúpido trancá-lo no banheiro com a luz apagada até que se calasse ou
abrisse a cabeça batendo na pia, mas isso não se diz à polícia. À polícia eu
disse é um menino inquieto sempre quer descobrir tudo por conta própria,
que é o que dizem os pais nos colégios particulares quando o filho é
insuportável e os pais acreditam que isso significa que ele vai revolucionar a
informática a robótica mas na verdade quer dizer apenas que não há quem
o aguente. Eu disse aos policiais que tinha passado mais de uma hora
tentando fazê-lo dormir mas nada havia funcionado. Disse às onze resolvi
sair do quarto para tomar um ar. Estávamos os dois frustrados e cansados,
de modo que pensei em deixá-lo uns minutos com seus brinquedos e tentar
de novo dali a pouco. Desci ao térreo e levei o lixo para fora. Fazia calor, o
ambiente estava pesado e seco e não passava vento algum. Quando voltei
da lixeira, fui à cozinha beber um copo d’água da geladeira.
Disse foi então que devo ter deixado a porta da rua aberta, mas não me
lembro. Fiquei um tempo na cozinha olhando o celular. A mãe do menino
tinha me ligado às dez e meia, então ainda devia faltar uma hora para ela
chegar em casa. Do pai eu continuava sem saber. Conferi as mensagens,
mas ele não tinha escrito. Em todo esse tempo não escutei nenhum ruído
na casa, nada fora do normal. Quando terminei a água subi de novo ao
quarto para fazer o menino dormir. Ele não estava. Chamei-o várias vezes e
procurei no quarto dele e no dos pais. Achei que estava se escondendo, que
estava brincando porque continuava sem sono. Procurei por todo canto.
Eu disse desci ao térreo e olhei na sala de jantar e na cozinha, para o caso
de ele ter descido enquanto eu procurava lá em cima. Não sei quanto
tempo se passou, mas não deve ter sido muito. Achei que fosse uma
brincadeira, que ele ia aparecer a qualquer momento, mas não parei de
procurá-lo hora nenhuma. Ao passar pelo vestíbulo percebi que a porta da
rua estava aberta. Saí e olhei para um lado e para o outro. Por ali passam
poucos carros, mas me preocupava que ele estivesse sozinho fora da casa.
Comecei a chamá-lo aos gritos. Caminhei vários metros para um lado e
para o outro da rua e procurei nos arbustos e nas lixeiras para o caso de ele
ter se escondido ali. Fui ficando cada vez mais nervosa. Ele já tinha se
escondido outras vezes, mas nunca havia saído da casa. Eu disse foi então
que liguei para o serviço de emergência.
Disse tudo isso tranquila, com suas frases curtas e suas vírgulas e seus
pontos, tal como havia escrito para mim naquela manhã. Os policiais me
fizeram repetir várias vezes com perguntas diferentes e eu respondia sempre
o mesmo mas variando alguma palavra algum detalhe para eles não
perceberem que eu dizia aquilo de memória, que havia decorado tudo.
Devo ter disfarçado bem porque me deixaram ir para casa após algumas
horas mas dois dias depois me chamaram de novo para eu ir ao quartel e aí
sim meus nervos se crisparam por dentro porque eu já não me lembrava de
tudo nem sabia se podia repetir igual. Vi pela cara deles que perceberam
algo e dessa vez não me deixaram ir embora. Acho que fizeram isso para me
deixar ainda mais nervosa e ver se assim eu dizia alguma coisa porque não
tinham nada. Mas fiquei na cela o mais tranquila que pude porque eles não
tinham como saber que eu tinha deixado a porta aberta de propósito que
havia enganado o menino para ele sair que a velha estava esperando na rua
para levá-lo.
6
Minha bisavó morreu porque foi comida inteirinha pelo ódio, tal como seu
marido. Ele acabou emparedado na casa que havia construído para encerrá-
la e ela consumida pela inveja que sentia da própria filha. Morreram os dois
de pura repulsa de puro desprezo de pura malquerença. Ela fez bem em
deixá-lo atrás daquela parede até que não passasse de um cracracra com a
colher no tijolo mas esse cracracra lhe entrou na cabeça porque nesta casa
tudo se mete dentro de você e ali escava escava escava.
O resto da família também morreu de ódio mas não do dela, e sim do
dos outros. Meu avô se consumiu na cama um ano depois de viver na casa
porque não aguentou o ressentimento que os tetos lhe gotejavam em cima.
Nós nos criamos aqui, mas meu avô vinha de fora e não estava preparado
para este apodrecedouro. Tudo o que restou dele foi um círculo de suor e
urina nos lençóis e aquela cria raquítica e mirrada que viria a ser minha
mãe e que também morreria de ódios que não eram seus. Disso morreram
todos nesta família, de ódios seus ou dos demais, mas sempre de ódios.
A velha tem razão quando diz que nesta casa a raiva nos come, mas não é
porque nascemos com algo retorcido por dentro. Aquilo vai se retorcendo
depois, pouco a pouco, de tanto apertarmos os dentes. Percebi isso quando
comecei a trabalhar para o filho dos Jarabo, que se instalara no povoado
com a segunda esposa para administrar as adegas depois que o pai e o
irmão morreram. No primeiro dia, assim que a mãe do menino abriu a
porta, já comecei a apertar os dentes. Como não iria me retorcer ali dentro,
como não iria me desatinar, e tome de ranger os molares uns contra os
outros? Assim que a vi ali parada no umbral percebi que não devia ter ido,
mas neste povoado de merda eu iria trabalhar em quê? Aqui não há nada
para fazer além de umas poucas semanas de vindima e algum velho para
você limpar a merda dele até que morra ou que o metam num asilo. Pensei
que era melhor cuidar de um menino do que de um velho, porque uma
moribunda eu já tenho em casa.
María, a filha de Angustias, também se candidatou ao emprego. Sua mãe
estivera doente a vida inteira, ninguém sabia de quê porque os médicos não
conseguiam dizer e ante a insistência de María insinuaram era tudo
invenção, como se ela mesma não tivesse visto que a mãe não podia nem se
mover quando sofria um achaque, que quase nem podia falar de tanta
tristeza que lhe vinha. María ficara cuidando da mãe porque em casa o pai
não servia nem para cozinhar batatas e os irmãos foram estudar fora e não
voltaram. Mas se preocupam muito comigo, dizia a mãe às vizinhas que
iam vê-la quando ela não podia nem se mover, me telefonam toda semana.
E eu não sei se María, enquanto esfregava as manchas do banheiro ou
limpava a cozinha, ficava furiosa quando a ouvia dizer isso, mas era o caso
de se indignar e jogar o balde de água suja em cima da velha e arrastá-la
casa afora pelos cabelos para obrigá-la a conferir se tinham sido os irmãos
que haviam feito as camas ou preparado a comida.
Quando Angustias morreu os irmãos também telefonaram mas para
botar a casa à venda. O pai fora enterrado uns dois anos antes e os irmãos
queriam liquidar o que restava no povoado. Como María não tinha
dinheiro, eles venderam a casa e expulsaram a irmã com cinco mil euros no
bolso. De um dia para o outro María ficou sem moradia sem pensão sem
trabalho e sem irmãos, os quais nunca voltaram a ligar. Viveu por um
tempo numa casa que um vizinho alugou para ela, fez uma ou outra
vindima. Candidatou-se ao emprego que acabaram dando a mim mas a
madame não quis nem recebê-la. Depois não conseguiu pagar o aluguel e a
tiraram dali. Ninguém voltou a vê-la, disseram que foi levada para um asilo
porque perdera o juízo.
Quando ela se apresentou na casa dos Jarabo eu pensei que iam lhe dar
preferência, pois era muito mais velha do que eu e precisava mais do
emprego. Mas quando Angustias morreu María já passara dos sessenta anos
e os patrões não gostam das senhoras metidas em roupas fora de moda e
cabelo cortado na cozinha de casa. Elas servem para a vindima porque isso
é o que fizeram a vida inteira, trabalhar como mulas, mortas de dores pelo
corpo em troca de uma miséria, mas não para tê-las em casa cuidando do
filho deles. Não querem que o filho seja criado por uma pobre desgraçada
com roupas compradas na feira e raízes do cabelo sem tingir, porque o que
essa infeliz vai ensinar se não conseguiu nada, se não fez nada com a
própria vida, como vai ensinar ao menino qual é o lugar dele, como vai
fazê-lo ver que o importante é o sucesso o dinheiro como vai ensiná-lo a
pisar se foi sempre a pisoteada?
A mãe do menino nos olhou de alto a baixo e me contratou porque
percebeu que suas amigas quando viessem da capital se perguntariam
quanto estariam me pagando, quem teria dado minhas referências, em
quantos idiomas eu falaria com o menino. Eu nunca tinha cuidado de uma
criança na vida e só sabia o inglês que me ensinaram na escola mas isso não
importava, o que importava era que eu não parecesse uma caipira uma
pobretona uma ignorante que nunca fizera mais do que faxinar, o que
importava era que suas amigas me vissem e pensassem que eu custava os
olhos da cara. Tudo isso eu soube pelo jeito de ela me olhar, na televisão
disseram que deviam chamar o serviço social porque eu sou retardada mas é
mentira, ao fim e ao cabo cá estou eu em casa, depois de tudo o que
fizemos, e quero ver quem poderia dizer o mesmo.
A velha ficou inteiramente transtornada quando soube que eu ia
trabalhar para os Jarabo. Você acha que a escolheram para exibi-la mas só
fizeram isso para humilhá-la, disse aos gritos, louca de raiva. Não sei o que
respondi mas por dentro sabia que era verdade, que todo mundo ia pensar
que bater na porta deles pedindo trabalho era a demonstração da nossa
derrota, a prova de que o filho enfim havia vencido o desafio que a velha
lançara à mãe e à família inteira quando os insultou diante de todo o
povoado no velório e fez todo mundo acreditar que havia incendiado a casa
deles e quebrado seus ossos com os amarrados.
Como a velha não ia ficar endemoniada se tivera que sofrer o desprezo
dos Jarabo a vida inteira, se desde menina tivera que olhar para os sapatos
deles e não para os rostos, se tivera que ver que davam os pêsames a eles
pela morte de seu marido? Como não ia se envenenar até o fígado ao ver
que depois de tudo isso eu rastejei até a casa deles para pedir trabalho, ao
ver que eu ia cuidar do filho deles e criá-lo para que se transformasse em
outro desgraçado que nos desprezaria, em outro filho da mãe que herdaria
as terras as adegas e o direito a nos submeter a elas em troca de uns
centavos? E, se isso fosse pouco, ainda tivera que ver a sombra da filha na
casa dia após dia durante anos, como uma condenação.
Entendi a velha quando já trabalhava naquela casa que antes tinha sido
do pai e agora era do filho mas na qual nada havia mudado porque aqui
nada nunca mudou e quando alguns fizeram a tentativa foram moídos a
porrete destroçados a pancadas levaram um tiro entre os dentes no meio do
monte. Eu achava que era mais esperta do que ela, que o rancor da velha
eram só bobagens antigas que já ninguém levava em conta, que por fim eu
poderia ter dinheiro para ir embora desta casa e não voltar a pisar aqui. Lá
nos Jarabo vi que fui uma idiota, que era verdade que eles tinham me
contratado em vez da María para fazer figura mas que me odiavam e me
exibiam ao mesmo tempo, como quem mostra às visitas um troféu de caça
ou um animal enjaulado. Gostavam que seus amigos de fora pensassem que
eu custava um dinheirão, mas que no povoado soubessem que eu
trabalhava para eles por uma miséria, porque assim tudo voltava a estar em
ordem todos estávamos outra vez em nosso lugar.
Meu bisavô se negara a servi-los e eles permitiram isso mas só pela
metade e só porque haviam reconhecido nele a mesma disposição que
traziam dentro de si a mesma gana de submeter quem está por baixo.
Sabiam que esses não eram os perigosos porque esses nunca olham para
cima nunca apontam para cima só para baixo. Esses é bom manter por
perto porque às vezes é preciso botar ordem e esses são os que disparam
para onde é preciso disparar os que estão dispostos a qualquer coisa. Mas à
velha não tinham perdoado a audácia diante de todo o povoado nem lhe
haviam perdoado que ela fizesse todo mundo acreditar que com quatro fios
de cabelo e umas rezas prum santo você podia fazer a madame cair escada
abaixo. Isso eles não tinham perdoado mesmo, isso não se podia consentir
porque então todos os infelizes do povoado iriam pensar que podiam fazer
o que quisessem, que podiam ameaçá-los, que se assim desejassem podiam
lhes quebrar uma perna ou um braço com uma invocação.
Agora eu trabalhava lá e eles podiam demonstrar que tudo voltava ao seu
lugar e a velha era apenas uma louca que tinha acreditado em suas próprias
histórias e em suas próprias mentiras. Me ter trabalhando ali era a prova e
eu havia contribuído para isso, eu havia contribuído para que todo o
povoado pensasse que eles tinham vencido que eles sempre venciam que
todos os desprezos e os insultos que a velha aguentara por todos aqueles
anos desde o enterro não tinham adiantado nada porque mais cedo ou mais
tarde tudo voltava ao seu lugar. Pensei em abandonar o emprego, em ir
embora dali para que cada dia não fosse mais um lembrete para a velha,
porque o mal eu já tinha feito mas pelo menos não seria uma chacota. Só
que uma tarde quando eu já estava com as palavras na boca quando estava
prestes a dizer vou embora daqui a patroa me disse que iam vir umas
clientes para ver a casa e que eu ficasse no quarto com o menino e não o
deixasse sair. Os clientes iam quase sempre à adega mas às vezes apareciam
na casa por algum motivo e então ela me pedia que me trancasse com o
menino por medo de alguma birra e de que todo mundo visse como ele
estava malcriado e caprichoso. Se alguém perguntasse ela dizia que o filho
estava na aula de francês ou estudando piano.
Mas naquela tarde foi impossível segurá-lo no quarto, nem por uns
minutos. Ele começou a intuir que a mãe o afastava quando vinham visitas
e isso o deixava ainda mais insuportável. Me xingava puxava o meu cabelo
jogava em mim tudo o que tivesse à mão me dava mordidas e pontapés se
eu tentava segurá-lo. Quando não aguentava mais e sentia impulsos de lhe
dar uma bofetada eu o deixava brincar no celular e isso costumava
funcionar porque a mãe o proibia. Mas naquele dia nem isso adiantou, ele
atirou o aparelho pela janela e saiu correndo do quarto. Alcancei-o já no
salão, onde a mãe estava falando dos quadros que haviam escolhido para
decorar a casa.
Ora, ora, quem temos aqui?, disse uma das clientes naquele tom de voz
idiota que os adultos usam para falar com as crianças, você deve ser
Guillermo. O menino estendeu a mão com um gesto encantador que
imitava os cumprimentos dos adultos e todas riram ao mesmo tempo. Já
acabou sua aula de francês? Não, eu respondi, pegando o menino pela mão
para levá-lo, só viemos buscar um copo d’água. Elas sequer esperaram que
eu saísse não aguardaram nem alguns segundos para que eu não pudesse
ouvi-las. O ruim das professoras que não são nativas é que depois o sotaque
fica muito evidente, disse a mesma de antes. É horrível, respondeu a mãe,
mas acontece até no espanhol porque ele repete o que ouve das
empregadas. Meu marido e eu achávamos boa ideia criá-lo aqui no campo
com os cavalos e os vinhedos antes de escolhermos um bom colégio para
não deixá-lo o dia inteiro diante de uma tela mas um dia destes ele me disse
que já havia comío e juro que estive a ponto de ir embora daqui no mesmo
dia.
Ouvi-as rir durante um bom tempo. Continuei a ouvi-las quando foram
embora, quando botei o menino na cama e voltei para cá ainda sentia as
risadas martelando na minha cabeça. Aquele gorjeio contido e meio
sufocado de quem está rindo de alguém e finge que dissimula e não quer
ser escutado mas na verdade quer, aquele riso como o do marquês que joga
uma moeda no chão como o do granjeiro vendo os porcos comerem.
Foi naquela noite que entendi tudo, ali estendida na cama me veio tudo
à cabeça. A velha sempre acreditara que o ódio dos Jarabo era uma rixa
entre famílias uma rixa daquelas que se encistam e se encistam sem formar
crosta mas não era verdade. Os Jarabo não eram piores do que qualquer um
dos que são como eles e não nos odiavam mais do que odeiam qualquer
um dos que são como nós. Tinham cismado com a velha por causa dos
amarrados, porque graças a isso todo o povoado acreditara que é possível
amaldiçoar gente como eles sem que nada aconteça que podemos nos
esgueirar pelo monte no meio da noite e vir a esta casa no meio do nada no
meio de um ermo para preparar um feitiço contra o patrão o senhor o amo
sem pagar nada. Mas detestam todos nós do mesmo jeito sentem por nós a
mesma repulsa e essa repulsa nos penetra e nos envenena e a carregamos tão
fundo que no final pensamos que é nossa mas não é. E então adormeci e ao
acordar tinha dentro de mim um cupim que não sei se as sombras o
meteram ali entre sussurros no meio da noite ou se me veio por conta
própria à cabeça mas isso não importa porque eu também soube que esse
cupim eu tinha de tirá-lo e que ainda não podia sair do emprego porque
me restava uma coisa a fazer.
8
Claro que não gostei de ela trabalhar pra eles. Como eu ia gostar que ela
fosse criar o menino daqueles malditos que foram a ruína desta família?
Bem que evitou me contar até que começou no emprego. Se eu tivesse
sabido antes, iria agarrá-la pelos cabelos e trancá-la no depósito de lenha
pra não deixar que servisse naquela casa. Preferiria matá-la a vê-la
empregada de lá.
Os Jarabo a contrataram logo, claro. Podiam ter escolhido María, que os
desgraçados dos irmãos deixaram na rua, é preciso ser muito ruim e
miserável pra fazer isso com a própria irmã. Mas não, ficaram com minha
neta. Ela acreditava que era por ser mais jovem e ter uma aparência melhor,
e não digo que não houvesse um pouco disso, aquela metida a besta com
quem o filho casou depois de se divorciar da primeira mulher certamente
pensou que María deslustrava a casa. Deus os cria e eles se juntam e esta era
igual ou pior do que a outra, só que muito mais jovem. Mas com meus
botões eu tinha certeza de que o filho não nos perdoara por fazê-lo
despencar barranco abaixo enquanto caçava. Da porta pra fora os Jarabo
troçavam dos mexericos e diziam que foram apenas acidentes, mas da porta
pra dentro Carmen sabia que eles não eram assim tão soberbos. A mãe
começou a descer a escada se agarrando ao corrimão e o filho depois da
queda trancou a escopeta à chave.
Mas pensando bem não sei se o filho não me perdoou pelo acidente ou
se o que ele não perdoou foi o povoado inteiro acreditar que eu podia
provocar aquilo com umas rezas, como diz minha neta, mas neste caso dá
no mesmo. Eu guardava a bílis dentro de mim e agora sabia como extraí-la.
Minha neta foi lá porque aquele lhe parecia um trabalho como outro
qualquer, tanto faz trabalhar pra uns ou pra outros. Ela só queria juntar uns
trocados e se mudar pra Madri. Mas ali na casa entendeu muitas coisas. Foi
com umas ideias e saiu com outras. Eu me indignava sempre que a via
chegar porque me vinha ao corpo toda a raiva que sentia por pensarem no
povoado que depois de tantos anos tínhamos rastejado pra pedir trabalho a
eles, mas minha neta começou a conversar comigo e a me contar as ideias
que se formavam na sua cabeça quando estava naquela casa. Eu já sabia
muitas das coisas que ela me contava, mas não as tinha visto assim
juntinhas, umas depois das outras. Queria ter visto antes porque as contaria
à minha menina e decerto ela não teria desaparecido. Minha neta diz que
isso não se sabe, que ela talvez desaparecesse do mesmo jeito, que eu não
tinha como evitar. Mas não posso deixar de imaginar que, se tivesse
pensado nisso antes, ela e eu teríamos nos entendido melhor, não teríamos
gritado uma com a outra, ela não teria ido embora batendo a porta.
Minha menina era muito bonita. Não como nós duas, que somos
baixinhas e delgadas como fuinhas. Não temos carnes. Ela era alta e
formosa, elegante como uma corça. Aquele bebê encolhido e amarelento se
transformara numa moça linda, todo o povoado olhava quando ela
caminhava pela rua. Era uma alegria de ver. As mulheres comentavam na
fila da padaria, perguntavam como era possível que de uma casa como a
nossa tivesse saído uma jovem tão meiga e bela. Carmen me contava.
Aquelas desgraçadas enchiam a boca intrigando, mas bem que depois
vinham aqui pra pedir.
De todo modo o pior não era o que as mulheres diziam, mas o que os
homens falavam. Isso Carmen não me contava porque essas coisas eles só
dizem entre si. Isso quem me contava eram os santos. Me diziam que eles
falavam do que fariam com ela, alguns com desejo e outros com aquilo que
muitos homens têm pelas mulheres, eles pensam que é desejo mas é puro
ódio. Os santos me contavam com as palavras exatas, com todos os
detalhes, para que eu memorizasse bem o que cada um dizia. E eu
guardava, metia tudo dentro da cabeça.
Algumas coisas eu contava à minha filha, mas ela não acreditava. Dizia
que eu só queria assustá-la pra que não saísse na rua, pra que ficasse fechada
comigo entre estas quatro paredes. Dizia que as pessoas riam de mim, que
me chamavam de louca, que zombavam às minhas costas. Que sentia
vergonha de ser minha filha. Isso eu também sabia. Sabia que ela ria de
mim com os amigos, que contava ter encontrado rosários embaixo das
camas e bolsas cheias de cabelos entre os lençóis. Que lhes dizia que eu
falava sozinha, que eu acreditava que os santos apareciam para mim sempre
que me dava um desmaio. Zombava mais do que todo mundo pra verem
que ela não era como eu, que não se parecia em nada com a mãe, que ela
não acreditava nessas bobagens de velha.
Isso os santos me diziam, mas não era preciso. Ela mesma cuidava pra
que todo mundo soubesse, inclusive eu. Mas havia outras coisas que ela
não queria que eu soubesse e essas os santos também me contavam quando
me levavam. Diziam que ela ia com os rapazes para as eiras e que ali
bebiam e fumavam e escutavam música num rádio toca-fitas que o filho
dos Jarabo tinha. Nessa época quase todos já haviam saído daqui, alguns
pra estudar e a maioria pra trabalhar, mas voltavam no verão. Depois que
minha filha desapareceu pararam de fazer isso, mas nos dois ou três verões
anteriores voltavam todos assim que entravam de férias. Passavam o dia
dormindo e a noite na farra. Iam às festas dos povoados dos arredores e
voltavam bêbados como gambás, dirigindo por estas estradas perigosas que
existem por aqui, cheias de curvas e buracos. Nenhum se matou num
acidente porque Deus não quis.
Minha filha não quis estudar. Eu não teria podido mandá-la pra
universidade porque sabe lá quem pode pagar isso, mas falei pra fazer um
curso profissionalizante e ela também não quis. Tinha terminado o
fundamental a duras penas, muitas vezes nem aparecia para a aula. Dizia
que não aguentava ficar ali sentada por tantas horas ouvindo bobagens que
não serviam pra nada. Os trabalhos também não duravam. Quando
conseguia um no inverno, às vezes aguentava dois ou três meses, mas
abandonava assim que chegava o verão. Se não tivesse dinheiro pra sair,
encontrava alguém que a convidasse. Sempre tinha um sujeito disposto a
lhe pagar uma taça, muitos esperando conseguir algo em troca, outros
exigindo isso.
Muitas vezes quem a convidava era o filho dos Jarabo. Alguns anos mais
velho do que ela, estudou pra ser advogado como o irmão e arranjou um
emprego num escritório de Madri, mas gostava deste lugar. Aqui ele podia
caçar e sair com os cavalos pelo monte, o desgraçado. Os santos me
disseram que ele olhava muito pra minha filha, e que a olhava com desejo.
Eu ficava louca por saber que aquele filho da mãe estava atrás da minha
filha. Aquela família nunca tinha o suficiente, sempre queria mais. Não
bastava que trabalhássemos pra eles, que o povoado inteiro deixasse o couro
nas suas vinhas, também era preciso agradá-los.
Mas não vou mentir pra vocês, minha filha gostava que ele fosse atrás
dela. Aquela idiota achava que iam ficar noivos. Esses aí só nos querem
para o que nos querem, eu lhe dizia, e ela retrucava que isso eram coisas de
antes. Como se aquele patife não fosse filho do pai. Como se não o
tivessem feito acreditar desde menino que tudo o que há neste povoado é
dele.
Pensei que a estupidez da minha filha ia desaparecer quando o rapaz veio
passar uns dias com a noiva, a que depois se tornou a primeira esposa. Uma
garota de Madri, filha de um dos advogados do escritório onde ele
trabalhava. Bem arrogante e bem magrela, sem nenhuma graça nem
nenhuma carne. Mas ao mesmo tempo bem-vestida e com maneiras de
colégio caro que apareciam até naquele jeito de caminhar como uma
marquesa, como se ela mesma tivesse pagado cada lajota que pisava na rua.
Ele a deixava com a mãe e vinha aqui em casa procurar minha filha, só que
ela não queria vê-lo, se trancava no quarto até que fosse embora pelo
caminho. Nunca se aproximava da porta nem tocava a campainha, mas eu
sabia que ele andava por perto porque a casa inteira estremecia. As paredes
começavam a balançar e o ar ficava tão denso e pesado que eu mal podia
respirar de tanto sufoco.
Ela se aborreceu com ele, e comigo mais ainda. Nesta família viemos
cuspindo o ódio umas contra as outras até que ele nos comeu por dentro.
Na época eu ainda não sabia o que minha neta diria mais tarde, só me dava
raiva que minha filha fosse tão idiota, que não me tivesse dado ouvidos
todas as vezes em que eu lhe disse que essa gente só nos quer pra lhe fazer a
cama ou pra desfazê-la e pra mais nada. Ela odiava que eu tivesse razão, que
aquilo que falava se confirmasse. Sempre que gritávamos uma com a outra
a casa se estreitava sobre nós. As paredes estremeciam e as portas dos
armários se abriam e se fechavam de repente. Os tetos estalavam como se
estivessem prestes a cair, como se o telhado fosse desabar sobre nossas
cabeças de uma hora pra outra. Mas o pior eram as sombras. Nos
agarravam pelos tornozelos para que caíssemos no chão, nos puxavam a
roupa e se penduravam em nossos cabelos, nos atiravam os pratos e os
copos de dentro dos armários. Exasperavam-se com nossas brigas,
transtornavam-se de tanto ouvir os gritos e as pragas e os tomara que você
morra e os quem me dera não ter parido você sua desgraçada.
Duas semanas depois que o Jarabo apareceu no povoado com aquela
empertigada minha filha começou a sair com um moço, um rapaz que
trabalhava como pedreiro num grupo de Huete. Quem me contou foi a
santa numa noite em que veio se deitar comigo na cama, lembro que ela
queimou os lençóis com a auréola e tive que jogar tudo fora. O jovem
parecia muito formal e muito trabalhador, mas na verdade ela não gostava
dele, aquilo era puro despeito e puro ataque de ciúme. Isso não era
necessário que a santinha me dissesse, eu mesma via. O rapaz vinha buscar
minha filha em casa, sentava no poial do pátio e ficava esperando até ela
descer, às vezes quase uma hora. Ela não me deixava convidá-lo pra entrar,
acho que sentia vergonha de mim e da casa, não queria que ele visse os
pisos arranhados e as manchas amarelentas nas paredes, os vestidos velhos
com a cava mal franzida e as mangas desiguais porque eu nunca aprendera
a costurar de tanto rancor contra minha mãe. Quando ela finalmente saía,
ele a olhava deslumbrado. Até ficava de queixo caído, o imbecil.
Ela o deixou logo, vinte dias depois, assim que o filho dos Jarabo voltou
pra Madri, e se aborreceu porque esse outro vivia atrás dela como um
cachorro. O rapaz não gostou. Começou a segui-la pelo povoado, a se
postar diante da casa. Ficava ali parado no portão do pátio, esperando por
ela, tentando vê-la através das cortinas do quarto. Não saía dali nem
quando anoitecia. A casa começou a se inquietar alimentada pela angústia
da minha filha, que aumentava à medida que os dias passavam. Sempre que
olhava lá pra fora ela via o homem parado diante da grade do pátio,
esperando. Ele faltava ao trabalho e mal dormia, a mãe dizia pelo povoado
que nós o tínhamos transtornado, que ele nunca fizera essas coisas até
começar a sair com minha filha. Pedi à minha menina que me deixasse
fazer algo para afastá-lo, mas ela não quis. Nem mesmo um pequeno susto.
Dizia que aquilo eram apenas idiotices, que ele logo se cansaria.
Não se cansou, eles nunca fazem isso. As coisas só pioraram. Uma noite
a santa veio no teto da cozinha quando eu lavava as panelas. Apareceu pra
mim ali, com sua auréola resplandecente no teto amarelado de fumaça e
gordura. Disse que minha filha estava prenha, ia ter uma menina. Não sei
por quanto tempo a santa me levou, mas quando voltei a mim já estava
amanhecendo.
A gravidez foi o mexerico de todo o povoado assim que começaram a
notar a barriga. Os desgraçados não tinham outro assunto. Vinham se
perguntando havia anos como era possível que eu tivesse parido uma jovem
tão bonita e tão meiga, mas agora tudo se encaixava. Ela era uma descarada
como a mãe, nós duas acabamos prenhas de tanto andar por aí com os
rapazes como umas desavergonhadas. E acabavam concluindo que ela se
parecia comigo mesmo.
Aquilo fez com que ela me odiasse ainda mais. Sempre se achara melhor
do que eu, acreditava que se casaria com um rapaz bem colocado e iria
embora daqui, que não precisaria pisar outra vez neste povoado de
miseráveis. Mas no fim das contas tinha feito o mesmo que eu, engravidou
cedo demais. Jogava a culpa sobre si mesma como fazia todo o povoado,
achava que era ela que devia ter parado quando ele insistia. Se odiava por
isso e me odiava porque via seu reflexo. Se via dentro de dez anos encerrada
nesta mesma casa, com a roupa frouxa e uma cria estúpida que não quisera
ter.
Sempre acreditei que ela voltou com ele por isso, para não acabar como
eu. Talvez tenha pensado que por pior que fosse era melhor um homem do
que nenhum, que assim teria uma oportunidade de ir embora. Quanto a
mim, a raiva me comia por dentro, eu não suportava vê-la reatar com
aquele desgraçado que passara dias inteiros diante da casa vigiando-a como
um transtornado. É preciso colocar terra entre você e homens como esse
antes que eles a joguem em cima de você.
Durante algum tempo pareceu que as coisas iam bem. Tinham decidido
não se casar nem viver juntos até que o bebê nascesse, mas passeava de
braço dado com ela por todo o povoado, como se já fosse sua esposa.
Levava-a de carro a Cuenca pra comer em bons restaurantes, comprava
pulseiras e pingentes que deviam custar os olhos da cara e dos quais todo o
povoado falava. E minha filha estava bonita de arrebentar, a gravidez a
deixava ainda mais formosa, dava gosto de ver.
Mas quando a menina nasceu naquela primavera, ela continuou
enrolando. Adiava várias vezes o casamento com uma desculpa qualquer.
Chegou de novo o verão e ela voltou a sair com os rapazes que vinham ao
povoado. Muitas vezes não aparecia em casa durante dias. O noivo vinha
buscá-la louco de ciúme, golpeava a porta como se fosse derrubá-la. A
menina chorava e na casa o ar se tornava denso como azeite.
O filho dos Jarabo também veio. Desta vez não tinha trazido a noiva,
mas sua mãe dizia por todo canto que estavam preparando o casamento pro
verão seguinte. Isso pouco importava a ele, que continuava atrás da minha
filha como sempre havia feito, e ela gostava disso. Com um bebê no berço e
um noivo no altar, a idiota continuava a procurá-lo assim que ele aparecia
no povoado. Eu me consumia por dentro, não sabia dizer por qual dos dois
sentia mais ódio nem qual achava mais perigoso.
Quando ela voltava pra casa nos envenenávamos uma contra a outra
assim que ela passava pela porta. Os gritos deviam ser ouvidos até no
povoado. Eu dizia que ela era uma sem-vergonha por largar a filha pra cair
na farra, ela retrucava que assim eu tinha algo pra me ocupar em vez de me
meter na vida dela. Eu a chamava de mal-agradecida e ela me chamava de
louca, eu dizia que ela ia acabar mal e ela respondia que era impossível
terminar pior do que eu. A menina chorava como uma desvairada e em nós
duas se enraizava forte o ressentimento, que tinha crescido tanto que
inchava as paredes da casa.
No dia em que ela desapareceu também tínhamos discutido e a Virgem
do Monte sabe que isso eu vou levar cravado dentro de mim até morrer.
Foi embora batendo a porta com tanta violência que fez a casa tremer, e
não voltei a vê-la até que sua sombra chamou lá de fora alguns dias mais
tarde, mas já não era ela. Eu nunca soube qual dos dois a levara, os santos
nunca me disseram por mais que suplicasse. Carreguei dentro de mim essa
dor por trinta anos como quem traz um buraco no peito. Mas quando
minha neta me explicou todas essas coisas me dei conta de que os santos
não disseram um nome porque dava no mesmo qual dos dois fez aquilo.
Cada um tinha sua culpa e nenhum dos dois a pagara. Os desgraçados
continuaram com a vida como se minha filha não tivesse existido. Um se
casou com a tal noiva no verão seguinte e o outro com Emilia dois anos
mais tarde. Tiveram filhos como se não me houvessem tirado a minha.
Como se eu não fosse cobrar a dívida.
9
À minha avó materna, por me deixar contar a história de sua casa e de sua
família. Por me explicar as vidas dos santos e me ensinar a ouvi-los. Por me
falar dos mortos que aparecem num canto da alcova. À minha mãe, por
acreditar na vingança. Ao meu pai e ao meu irmão, porque sei que estão
orgulhosos desta história embora não digam. A Sara e a Munir por serem
meus primeiros leitores. A Victoria, minha editora, pelas correções e pela
ajuda, mas sobretudo por acreditar neste romance. A José, porque desde
que lhe contei que havia descoberto que meu bisavô vivia das mulheres ele
fez parte da história que este livro conta e fez parte da minha história.
Notas
1. Termo usado durante a Guerra Civil Espanhola para se referir a episódios de violência política nos
quais, a pretexto de dar um “passeio”, pessoas sem acusação formal eram retiradas de suas casas,
fuziladas e enterradas, sem identificação, em valas comuns. (N. T.)
2. Versos de duas canções de ninar tradicionais espanholas. “Dorme, minha vida, dorme sossegado,
que aos pés do berço tua mãe vigia” e “Dorme, neném do berço, dorme neném de amor, que aos pés
tens a Lua e à cabeceira, o Sol”. (N. T.)
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no
Brasil em 2009.
Título original
Carcoma
Capa
Elisa von Randow
Imagem de capa
Sem título, 2021, de Marcela Novaes. Têmpera guache profissional sobre papel, 21 × 22 cm.
Ilustrações
Victoria Irene Borrás Puche
Preparação
Julia Passos
Revisão
Clara Diament
Gabriele Fernandes
Versão digital
Rafael Alt
isbn 978-85-5652-222-1