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Segredo Da Livraria de Paris, O - Lily Graham
Segredo Da Livraria de Paris, O - Lily Graham
Segredo Da Livraria de Paris, O - Lily Graham
Publicado originalmente na Grã -Bretanha em 2018 pela Story ire Ltd. (Bookouture).
Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicaçã o poderá
ser reproduzida, seja por meios mecâ nicos, eletrô nicos, seja via có pia xerográ ica, sem a
autorizaçã o pré via da Editora.
capa Diogo Droschi (sobre imagem de ©Drunaa / Trevillion Images) diagramação Larissa
Carvalho Mazzoni
O segredo da livraria de Paris / Lily Graham ; traduçã o Elisa Nazarian. -- 1. ed. -- Belo Horizonte
: Editora Gutenberg, 2020.
ISBN 978-85-8235-633-3
1. Ficçã o inglesa 2. Paris (França) - Ficçã o 3. Guerra Mundial, 1939-1945 - Paris (França) I.
Tı́tulo.
20-32678 CDD-823
Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I 23º andar . Conj. 2310-2312. Cerqueira Cé sar .
01311-940 Sã o Paulo. SP
Belo Horizonte
A velha senhora no trem nã o parecia ser o tipo de pessoa que carregava
um segredo sombrio ardendo no fundo do peito. Um segredo daqueles
que se contorcem em volta do coraçã o, apertando, pronto para explodir.
Mas ela carregava.
Um segredo que, caso ousasse dizê -lo em voz alta, faria com que
muitos dos desconhecidos à sua volta icassem sem fô lego, mesmo
agora, depois de todos esses anos.
Aqueles desconhecidos jamais poderiam imaginar uma coisa assim
escondida por detrá s do rosto cansado da mulher sentada junto à janela
fustigada pela chuva, ajustando irme no pescoço um xale de caxemira
vinho, com os dedos avermelhados, retorcidos e doloridos pela sú bita
onda de frio.
Os jovens nã o pensam nos velhos desse jeito. Nã o veem as cicatrizes
deixadas pelo tempo, os sofrimentos, as alegrias. Veem apenas o rosto
inexpressivo da velhice.
Com certeza a moça de cabelos escuros, olhos cansados e uma
maleta de notebook abarrotada balançando junto ao quadril, que se
ofereceu para ajudar a acomodar a mala da senhora no maleiro no alto,
nã o parou para pensar nela dessa forma. Se ao menos chegou a pensar
nela, foi apenas como uma pessoa precisando de ajuda, ou algué m que
provavelmente nã o se incomodaria se ela pegasse o lugar disponı́vel ao
seu lado, onde planejava dar uma olhada, em relativa paz, nas
anotaçõ es para a palestra que daria no dia seguinte, jurando, como fazia
semanalmente, que estava na hora de procurar um trabalho diferente.
A mala da velha senhora era azul cobalto, antiquada, coberta por
adesivos de lugares distantes. A moça jogou o cabelo sedoso sobre o
ombro, concentrada, enquanto erguia a mala para o lugar disponı́vel
sobre suas cabeças, usando um cotovelo para empurrá -la quando
começou a escorregar. Quase se arrependeu da sua oferta de ajuda
quando, por pouco, a mala nã o desabou sobre sua cabeça. Murmurou
um palavrã o, depois limpou a garganta quando viu que a senhora a
olhava com o cenho franzido, fazendo uma tentativa desajeitada de se
levantar para ajudar. “Já peguei, nã o se preocupe”, disse, forçando um
sorriso.
Por im, ergueu a mala, en iando-a entre uma grande lata de
chocolates e uma bolsa de viagem cinza, e sentou-se, in lando as
bochechas rosadas pelo esforço e soltando o ar. “Era mais pesada do
que parecia. Nã o vá me dizer que a senhora está fugindo com as ú ltimas
joias dos Romanov?”
Os olhos verdes da mulher brilharam. “Sã o só as minhas memó rias.
Quanto mais velha a pessoa, mais pesadas elas icam. Especialmente
quando estã o emolduradas.”
A moça riu, exibindo dentes muito brancos e perfeitos.
Ao redor delas, as pessoas ainda embarcavam no trem de Moscou, os
ó culos embaçados pelo sú bito calor de dentro do vagã o, puxando malas
de rodinhas, os rostos acusando o misto de excitaçã o e resignaçã o que
marcava a maioria dos viajantes que tinham pela frente uma longa
viagem com destino a Paris.
Pelo alto-falante, uma gravaçã o anunciou que o trem partiria nos
pró ximos minutos.
A moça se acomodou em seu assento e esfregou o pescoço, vı́tima
dos travesseiros duros como tijolos do hotel sem charme onde a haviam
colocado, perto do escritó rio de Moscou. Abriu o notebook e pegou os
fones de ouvido, que planejava usar para afastar qualquer distraçã o
enquanto se concentrava em seu trabalho. Mas icou intrigada, curiosa,
apesar de suas melhores intençõ es, ao re letir sobre as palavras da
mulher.
Virou-se para ela e perguntou: “A senhora viaja com suas
fotogra ias?”.
A velha concordou com a cabeça, a mã o levemente trê mula
prendendo atrá s da orelha uma mecha solta de cabelo branco e macio
que havia escapado do coque na nuca. Suas unhas, lixadas e
arredondadas, eram cor de pé rola. Havia no ar um leve toque de
perfume loral, agradá vel e caro.
“Gosto de manter as pessoas que amei por perto, onde quer que eu
vá .”
Qualquer observaçã o super icial que passara pela cabeça da moça –
assim como a sugestã o de que a velha considerasse digitalizá -las no
futuro – morreu antes de sair de sua boca. Aquelas palavras haviam
tocado algo em seu ı́ntimo: a dor esté ril de sentir saudade de algué m
que talvez você nunca mais veja, real demais desde a morte da mã e,
dois anos antes.
Mordeu o lá bio inferior, como que para acomodar a emoçã o de volta,
e disse: “Consigo entender isso, ‘o lar onde quer que a gente vá ’, é ...
lindo”.
A velha senhora balançou a cabeça. “Mas nã o é como se fosse a coisa
em si. Acho que é por isso que estou voltando a Paris agora, depois de
todos esses anos. Nem eu mesma consigo acreditar nisso.”
A moça percebeu certo sotaque inglê s misturado com algum outro,
possivelmente francê s. “A senhora é de Paris?”, perguntou. “A propó sito,
me chamo Annie.”
“Valerie”, disse a mulher, seu rosto se transformando por um tipo de
sorriso que mostrava a jovem escondida sob a passagem do tempo.
Entã o, respondeu à pergunta de Annie. “Sou, acho que Paris é o meu
lugar, embora tenha passado a maior parte da vida longe de lá . Andei
viajando nos ú ltimos anos, desde a morte do meu marido. Sempre quis
conhecer a Rú ssia, e pensei “bom, por que nã o agora?”. Mas já fui para
tudo quanto é canto: Praga, Istambul, Marrocos... Ainda assim, sempre
que penso nisso, percebo que Paris é meu lugar. Curioso, nã o é ?”
Annie deu de ombros. “Nunca morei em nenhum outro lugar, entã o,
para mim, lar é sempre uma casinha no interior de Kent. Quando isso é
tudo o que você conhece, acho que ica mais fá cil. Nem consigo me
imaginar vivendo de fato em Paris: parece algo incrı́vel. Baguetes
sempre que você quiser, croissants, café s espalhados por ruas calçadas
com pedras, a moda...” Ela suspirou, os olhos brilhando ao imaginar o
romantismo de viver na Cidade Luz, o amor. “Sempre quis ter coragem
de me mudar para lá . Talvez, um dia...”
A mulher entendeu. “Eu també m nã o conseguia me imaginar vivendo
ali quando tinha a sua idade, mas foi quando me mudei sozinha para lá .
Fiquei apavorada, na verdade, e nã o achava que algum dia me
acostumaria. Eu nã o era exatamente uma pessoa elegante, era
bibliotecá ria-assistente... Inclusive de corpo e alma, de pesados sapatos
oxford e veludo cotelê , na maioria das vezes.”
Annie sorriu. “Hoje em dia isso é moda – nerd chique?”
Valerie soltou uma risadinha gutural que desmentia sua idade.
“Entã o, o que fez a senhora decidir se mudar para Paris?”, perguntou
Annie.
Os dedos da mulher brincaram com um anel de sinete na mã o
esquerda.
“Eu precisava desesperadamente saber quem era minha famı́lia, e
isso acabou sendo mais forte do que o medo.”
O trem começou a se mover e a estaçã o passou zunindo num borrã o
cinza e azul de homens e mulheres apressados para o choque sú bito do
verde e dourado do campo. Pelo alto-falante, veio o aviso de que havia
lanches e bebidas no vagã o do meio, com um cardá pio de refeiçõ es
quentes e frias.
Annie estava morrendo de vontade de continuar ouvindo, mas viu
Valerie olhar para trá s e ofereceu: “Café ? Posso trazer para nó s duas”.
“Ah, seria ó timo”, disse Valerie, abrindo a bolsa e estendendo uma
nota.
“Puro, por favor. Por minha conta.”
“Muito obrigada”, agradeceu.
Enquanto Annie abria caminho por entre cotovelos e joelhos, louca
por uma dose de cafeı́na, Valerie pensava em seu passado. Como
poderia evitar se, a inal de contas, era disso que se tratava a sua
viagem?
Finalmente, depois de todos aqueles anos, voltaria para onde tudo
havia começado, onde toda a sua vida havia mudado.
Em parte, nã o conseguia conter sua agitaçã o, a mesma de mais de
quarenta anos atrá s, quando fez uma viagem parecida com aquela pela
primeira vez. Rodou o anel novamente, uma peça extravagante feita de
latã o e mau gosto, há bito nervoso que nã o conseguia evitar.
Annie voltou estendendo-lhe um copo de isopor cheio de café puro
fumegante, exatamente como pedira; em seguida olhou para o anel de
Valerie, mas nã o comentou nada.
Vendo onde o olhar de Annie havia pousado, Valerie levantou os
ombros de leve, com ironia. “Pertenceu ao meu avô . E horroroso, mas
gosto mesmo assim, porque foi dele”, disse com uma risadinha sem
graça, tomando um gole de café .
Annie fechou o notebook e també m bebericou seu café . Estava
curiosa em relaçã o à quela mulher ao seu lado, apesar das boas
intençõ es de revisar seu trabalho. Estava se distraindo, para dizer o
mı́nimo. Sempre tivera fascinaçã o por pessoas e suas histó rias; à s
vezes, era impossı́vel se segurar, como agora.
“A senhora disse que o motivo de ter ido a Paris era conhecer sua
famı́lia? Eles eram franceses?”
Valerie acenou a irmativamente. “Fomos separados pela Segunda
Guerra Mundial quando eu era bem criança. Me levaram para viver com
uma parente distante, na Inglaterra. Disseram que era para a minha
segurança. Nã o me juntei mais à minha verdadeira famı́lia, pelo menos
nã o antes de me tornar adulta.”
“Sinto muito”, disse Annie, que nã o conseguia imaginar como aquilo
deveria ter sido terrı́vel.
Valerie encolheu os ombros. “Apenas mais uma vı́tima da guerra,
imagino. O que muitos homens nã o perceberam depois de travar todas
essas guerras é que, no im, nã o existem vencedores de verdade, nã o
mesmo: existem apenas vı́timas, e elas continuam aparecendo muito
tempo depois da guerra. Eu tinha por volta de 20 anos quando descobri
que minha famı́lia ainda estava viva. Bom, um membro estava, seja
como for.”
“A senhora nã o sabia?”, surpreendeu-se Annie.
“Nã o fazia ideia. Tinham me dito que estavam mortos. Fui criada pela
prima da minha mã e. Para evitar confusã o, me disseram para chamá -la
de ‘tia Amé lie’. Ela havia se casado com um inglê s, durante a guerra,
meu tio John, e fui viver com eles. Depois da morte da minha mã e, me
disseram que nã o havia mais ningué m vivo, só Amé lie. Quando iz 20
anos, ela achou que eu merecia saber a verdade. Só agora, depois de
velha, é que talvez eu esteja começando a entender por que eles izeram
o que izeram.
Como pensaram que a mentira me pouparia da dor.”
Valerie suspirou com tristeza.
“Para alguns, a verdade é um fardo, algo que nunca pode ser
restaurado depois de solto – uma caixa de Pandora –, mas para mim foi
o oposto. Foi uma â ncora no passado que me deu uma sensaçã o de
pertencimento, mesmo que fosse um pertencimento doloroso de
suportar.”
Annie abaixou os fones de ouvido, deixando-os de lado. Teve a
sensaçã o de que nã o os pegaria de volta pelo resto da viagem.
“Entã o a senhora resolveu ir a Paris encontrar sua famı́lia? Descobrir
por que tinham mantido em segredo que ainda estavam vivos?”
Valerie con irmou. “Era 1962, e embora já tenham se passado muitos
anos, ainda consigo me lembrar de onde estava sentada quando
embarquei no trem de Calais. Nã o peguei o assento da janela, na é poca”,
disse, com uma risadinha. “Havia neve no ar, e eu só conseguia ouvir as
palavras de Amé lie passando pela minha cabeça. Não faça isso, Valerie.
Não faça isso, por favor. Mas eu precisava fazer.”
“Ela nã o queria que a senhora fosse encontrá -los, mesmo depois de
ter contado sobre eles?”, perguntou Annie, franzindo a testa. “Por quê ?”
Valerie girou o anel. “Era mais porque ela nã o queria que eu me
decepcionasse. A inal de contas, eu tinha sido abandonada. Ela nã o
queria que eu esperasse um encontro de contos de fadas. Nã o queria
que eu abrisse uma ferida que talvez jamais se fechasse. Mas eu nã o
estava atrá s de um conto de fadas. Só da verdade. Tinha que descobrir
por que izeram o que izeram. Por que me mandaram para um paı́s
estranho, para ser criada por outra pessoa, uma estranha, na verdade,
mesmo que fô ssemos parentes distantes.”
O trem acelerou, e Annie foi levada junto com ele pelas palavras da
velha senhora, atravé s da paisagem cá qui e dourada do campo, a
caminho do passado.
CAPÍTULO DOIS
Paris, 1962
Paris
Havia apenas uma ú nica luz, sustentada por um io, sobre as pilhas
de livros espalhadas no chã o empoeirado, alguns ainda em caixas,
precisando ser postos nas prateleiras. Debaixo dessas pilhas havia o
mesmo assoalho de madeira em espinha de peixe, igual ao do
apartamento no andar de cima, embora coberto de arranhõ es. Vincent
Dupont nã o via a poeira nem as caixas, muito menos as prateleiras
transbordando. Nã o mais. Se visse, teria percebido o quanto precisava
da garota que desfazia as malas lá em cima.
Sendo assim, estava decidindo se a perturbaçã o valia ou nã o a pena.
Havia algo no sorriso da menina, uma espé cie de inocê ncia, que
cutucava uma coisa que ele supunha estar enterrada havia muito
tempo, bem no fundo, algo que ele podia evitar naquele momento.
Resmungou e pô s-se a trabalhar sem entusiasmo, desempacotando
uma das caixas grandes no chã o, sua lombar latejando em protesto. Em
questã o de minutos, Vincent Dupont conseguia localizar qualquer um
entre os milhares de romances que guardava em sua loja. Ou, pelo
menos, era assim que costumava ser. Agora, as coisas levavam mais
tempo. A poeira começava a se acumular, e à s vezes chegava uma nova
encomenda que nunca mais seria encontrada.
O sino tilintou e ele levantou os olhos, franzindo o cenho. Soltou uma
leve exclamaçã o de impaciê ncia e revirou os olhos, buscando um
cigarro enquanto Madame Joubert entrava. Era uma mulher bonita, alta,
de ombros largos, que parecia imponente com seus cachos vermelhos
balançando e uma lufada glamorosa de perfume. Dupont se preparou
para o que ela iria dizer.
“E?”, ela perguntou, balançando-se em seus pé s tamanho 42, os quais,
como de costume, apesar da sua considerá vel altura, estavam
acomodados em saltos altos.
“E o que?”, ele rosnou. “Posso ajudá -la? A senhora realmente vai
comprar um livro desta vez, madame?”
Madame Joubert riu com impaciê ncia. “Dupont, nã o seja ranzinza.
Ela está aqui?”
“Quem?”, ele perguntou, embora, logicamente, soubesse muito bem a
quem Madame Joubert se referia.
“Sua nova funcioná ria. Onde ela está ?”
Ele deu de ombros, apontando na direçã o da escada com o cigarro.
“Uma jovem inglesa com um espantoso senso de estilo está lá em
cima, neste momento, desempacotando o que provavelmente deveria
ser jogado no Sena. Se for a ela que você se refere.”
“Dupont, seja gentil. Ela disse que era estudante. E vem da
Inglaterra.”
Como se isso fosse uma desculpa. Madame Joubert era o tipo de
pessoa que tinha dó de qualquer um que nã o tivesse o benefı́cio de
crescer em Paris.
Era ela quem dirigia a conhecida loricultura ao lado, e també m
quem havia sugerido que estava na hora de Monsieur Dupont contratar
algué m para ajudá -lo. Ela o encontrara inconsciente no chã o da loja
certa vez, desmaio atribuı́do à baixa taxa de açú car no sangue. O mé dico
chamado ao local alertou que Monsieur Dupont precisava parar de
fumar e procurar alguma ajuda na loja. O problema foi ter dito isso em
frente a Madame Joubert, que parecia um cachorro com um osso. Por
im, Dupont concordou com apenas uma das duas coisas. Pararia de
fumar depois de morto.
Madame Joubert o ajudou a colocar o anú ncio para atendente de
livraria no Le Monde. Depois de ele ter enxotado vá rias candidatas
francesas, mostrando, mais tarde (com uma risada mordaz), a carta
escrita por uma inglesa chamada Isabelle Henry, foi ela també m quem o
convenceu a arriscar. Algué m que conseguisse, intencionalmente, irritar
um francê s como aquele, com certeza – na opiniã o de Madame Joubert
– tinha nervos de aço, e talvez nã o se assustasse com tanta facilidade
quanto as outras.
Uma qualidade essencial, ela pensou.
Madame Joubert tinha lido a carta da inglesa, escrita num perfeito
francê s escolar, e decidiu que algué m diplomado em biblioteconomia
parecia um sinal dos cé us. Ignorando os protestos de Dupont, disse-lhe
que escrevesse de volta e concordasse com os termos dela.
“Vou ter que ouvir a voz dela, o que seria doloroso demais.”
“Nã o seja ridı́culo”, ela respondeu.
“Ela se ofereceu para cozinhar”, disse ele, mostrando a carta e
espetando as palavras da menina com um dedo nodoso. “De todas as
mulheres em Paris que poderiam cuidar de mim, você quer que uma
inglesa faça a minha comida?”
Madame Joubert caçoou. “Qual o problema, Dupont? Por acaso você
janta todas as noites em restaurantes cinco estrelas? Nã o inja, meu
querido, ser algum gourmand, quando todos os dias é uma baguete com
o mesmo fromage e jambon, ou um croissant como café da manhã !
Tenho certeza de que ela pode viver de acordo com esses padrõ es
exigentes.”
Ele resmungou, mas Madame Joubert saiu ganhando, é claro.
Naquela noite ele escreveu para a menina inglesa, mas estabeleceu um
limite quanto a cozinhar para ele.
Agora, é ó bvio, arrependia-se de ter cedido. Ela tinha chegado,
cativante e loira, os enormes olhos verdes parecendo que se encheriam
de lá grimas ao mais leve palavrã o. Como ele deveria lidar com isso?
Alé m do mais, nã o podia olhar para ela. Lembrava-lhe demais sua ilha
Mireille, e isso bastava para fazê -lo querer caminhar até o Sena e se
jogar lá dentro, embora jamais fosse contar isso a Madame Joubert, é
claro.
Valerie nã o demorou muito para desarrumar a mala. Dois vestidos e
outro par de oxford pretos. Algumas roupas de baixo, dois cardigã s, trê s
blusas, uma saia de veludo cotelê , um par de chinelos, trê s pares de
meias compridas e duas camisolas. Era esse todo o seu guarda-roupa no
momento, e cabia facilmente nas duas primeiras gavetas da cô moda,
sobrando bastante espaço. Guardou a mala debaixo da cama, depois se
sentou no banquinho, colocando a pequena chaleira no chã o, e olhou
para o pá tio lá fora. Alé m dele, podia ver o alto do telhado da
construçã o vizinha.
Até os telhados de Paris contavam uma histó ria, pensou.
Valerie endireitou os ombros, jogou um pouco de á gua no rosto e
desceu ao encontro do avô . Em vez dele, poré m, encontrou o vultuoso
corpo de Madame Joubert.
Clotilde Joubert ergueu as sobrancelhas arqueadas e acenou a mã o
com unhas esmaltadas de vermelho. “Ah, a moça inglesa”, disse, abrindo
bem os braços. “Bem-vinda.”
Valerie sorriu enquanto a mulher se apresentava: “Meu nome é
Clotilde Joubert. Tomo conta da loricultura ao lado. Soube que você era
a nova vı́tima e pensei em vir me apresentar, para o caso de você
precisar de uma testemunha con iá vel para a acusaçã o”.
Houve uma fungada insatisfeita vinda de Monsieur Dupont, que
voltara a se sentar na cadeira atrá s da escrivaninha e en iava uma folha
de papel em uma má quina de escrever azul-marinho, um cigarro
pendurado nos lá bios.
“Ignore-a. Todos nó s ignoramos.”
Madame Joubert deu de ombros. Valerie sentiu o aroma de lores e se
perguntou se seria o perfume dela ou se o cheiro simplesmente
irradiava dos seus poros. De qualquer maneira, era convidativo, e
imediatamente gostou da mulher.
“Sou a Isabelle”, disse Valerie. “Isabelle Henry.”
“Nome francê s?”
Valerie hesitou; deveria contar a verdade, que tinha nascido na
França?
Antes que pudesse decidir, Madame Joubert olhou sobre o ombro e
viu a ila que se formava em frente a sua lojinha. “Me desculpe, preciso
voltar.
Só queria vir te cumprimentar. Venha a qualquer hora, quando
precisar restaurar sua fé de que existe algo de bom neste mundo...”
Valerie conteve uma risada.
Houve mais um resmungo vindo do fundo da loja. “Essa aı́ passa
tempo demais cheirando rosas, apodreceu seu cé rebro.”
Valerie sorriu. Dava para perceber que, apesar do que diziam, os dois
eram amigos de verdade, ou o mais pró ximo possı́vel disso.
Monsieur Dupont resmungou para ela começar a esvaziar algumas
caixas e usar o selo com um grande G, de Gribouiller, no interior da
capa.
“O senhor nã o usa adesivos?”, Valerie perguntou.
O olhar que ele lançou era pá reo para o da Medusa. Ela tomou isso
como um nã o e se pô s a trabalhar. Temeu, embora já fosse quase noite,
que aquele fosse um longo dia.
CAPÍTULO CINCO
O gato era uma coisa sarnenta, só pele, ossos e tendõ es, partes
despeladas onde antes havia uma sedosa pelagem branca e preta, sem
rabo, perdido cerca de sete anos antes em uma vigorosa luta contra um
gato de rua laranja. Pertencia, se é que pertencesse a algum lugar, à
livraria Gribouiller, na Rue des Oiseaux, e a Monsieur Dupont, embora
ele negasse tal coisa, mais bien sûr.
“Pff, aquele saco de ossos velhos? Para que vou querer ele aqui, hein?
Pulgas?!”
Mesmo assim, todas as manhã s havia leite fresco para o gato, e,
quando ele pensava que Valerie nã o estava olhando, ela o lagrava
alimentando-o com a mã o.
Quando ele percebia que ela o tinha visto, fungava, dizendo que nã o
queria ter o trabalho de jogar fora o corpo do animal caso ele morresse.
O gato da livraria nã o tinha um nome o icial. Se tivesse, era Le chat de
Monsieur Dupont, e mais tarde apenas Dupont. Assim, à s vezes nã o dava
para ter certeza se os vizinhos falavam sobre o gato ou sobre o homem.
No entanto, logo Valerie aprendeu que, se fosse com algum grau de
afeto, era quase certo que se referiam ao gato.
Agora, o gato rodeava uma nova entrega de livros, rapidamente
deixada no canto, esfregando seu traseiro sem rabo na beirada da caixa.
“E é tã o doce”, disse Madame Hever, uma das ené rgicas e destemidas
clientes de Dupont – que nã o se importava em ser chamada de ilistina
por ler de tudo, menos Dickens –, e começou a acariciar o gato debaixo
do queixo. Na mesma hora ele se pô s a ronronar.
“Non, ele é uma peste”, disse Dupont negando, mas conseguindo
reconhecer sua virtude ao acrescentar “mas pelo menos manté m os
ratos longe”.
Isso era mentira, e Valerie sabia, mas poupou o gato (e o homem) da
vergonha de revelá -la e voltou a contar o estoque.
Ela saiu para levar a caixa vazia, e foi entã o que viu o buraco na
parede.
Quase parecia um buraco de bala. Seus dedos tocaram-no, fazendo
cair pequenos confetes de reboco no assoalho de madeira.
“Precisa mesmo de uma pintura”, fungou Dupont, chegando perto,
“mas pelo menos tente nã o deixar pior”.
“Parece um buraco de bala”, disse Valerie, endireitando-se com o
rosto intrigado.
Ele deu de ombros. “E é .”
Ela arregalou os olhos. “O que? Como?”
Dupont olhou para ela como se fosse estú pida. “Estamos no centro
de Paris; houve uma guerra; as pessoas usavam balas.”
“Aqui dentro?”
Ele voltou a dar de ombros. “Oui.”
Ao ver seu olhar de surpresa, ele suspirou, explicando: “Isso, chérie,
foi obra de um nazista especı́ ico, que achava que a melhor maneira de
lidar com um livro de Balzac era atravessando-o com uma bala.
Charmant.”
***
Foi Madame Joubert quem forneceu mais informaçõ es sobre o
buraco de bala. Ela havia entrado com outra caixa, entregue na
loricultura por engano, e Valerie lhe contou o que Dupont havia dito.
Madame Joubert acenou com a cabeça, a boca travada em desgosto.
“Ah, oui, me lembro daquele dia, como poderia esquecer?”, ela disse,
os olhos contornados de kajal excepcionalmente sombrios, enquanto
Valerie se adiantava com rapidez para pegar a caixa. Colocou-a no canto
da loja, ao lado do pequeno conjunto vermelho de bistrô que tinha
transformado em sua pró pria escrivaninha completa, com um lugar
para o gato e para o telefone.
“Foi naquela primeira semana, logo depois da queda de Paris,
quando os nazistas estavam pegando pesado para a irmar sua
autoridade. O que fez isso”, ela disse, apontando para a parede, “era um
rapaz, com uma sombra de bigode, como se tivesse sido feito a lá pis.
Devia ter deixado as calças curtas havia pouco tempo. Eu tinha vindo à
loja para ajudar Mireille, a ilha de Dupont...”. Seus olhos icaram tristes,
ela fez uma pausa e tocou no peito, justo quando o coraçã o da pró pria
Valerie começava a bater forte à mençã o do nome da mã e.
“E aı́ entraram esses rapazes vestidos de marrom, dizendo a Dupont
quais livros podiam ou nã o ser vendidos agora. O que decorreu tã o bem
quanto você imagina... Quando Dupont protestou pelo banimento de um
dos autores – esqueci qual...”
“Balzac, foi o que Vincent disse”, adiantou Valerie.
“Oui”, disse Madame Joubert. “Balzac. Bang, ele deu um tiro na capa.
Nã o há muito o que discutir com um menino e uma arma.”
“Por que monsieur nã o fechou a loja?”, perguntou Valerie.
“Ele era teimoso. Teimoso na é poca, teimoso agora. Alé m disso, nã o
acho que houvesse algum lugar aonde ele pudesse ir. O pai tinha
morrido havia muito tempo, e a mã e, no ano anterior. Havia uma
espé cie de prima, mas acredito que ela já tivesse ido para a Inglaterra...
Nã o tenho certeza.”
O coraçã o de Valerie retumbou quando ela percebeu que Madame
Joubert deveria, é claro, estar se referindo a Amé lie.
“Assim, eles estavam presos aqui em Paris, e Mireille nã o deixaria o
pai, mesmo com ele querendo mandá -la para o campo, que foi para
onde a maioria das pessoas com condiçõ es fugiu. Mas, no im, lá nã o foi
tã o melhor.”
Valerie sacudiu a cabeça. “Deve ter sido apavorante ver os nazistas
atacarem Paris desse jeito.”
“Foi. Nunca vou esquecer. Acreditá vamos, assim como vá rios
franceses, que a Linha Maginot os impediria. Entã o, de repente, o
governo disse que tı́nhamos sorte, que eles haviam feito um armistı́cio,
um cessar-fogo, mas é claro que todos nó s sabı́amos o que de fato tinha
acontecido: a rendição.
Escutamos no rá dio eles nos dizerem que, agora, deverı́amos baixar
nossas armas e parar de lutar. Nã o houve uma alma viva em Paris que
acreditou que aquilo fosse outra coisa senã o derrota.”
Dupont entrou, seguido pelo gatinho sarnento, seu rosto contorcido
de raiva, mesmo agora. “Nã o, foi traição. Eles nã o izeram nada mais do
que nos deixar como cordeiros para os lobos.”
Madame Joubert concordou. “Isso també m.”
CAPÍTULO SETE
1940
1962
1940
Mireille detestou ter que admitir, mas seu pai estava certo: Clotilde se
tornara imprudente. Até ela podia ver isso, agora. Nas ú ltimas semanas,
sua amiga tinha passado de rabiscar mensagens de resistê ncia nos
muros da cidade a entregar mensagens, correspondê ncias secretas da
rede dos mais altos escalõ es da resistê ncia. Mensagens que ajudavam a
espalhar notı́cias de ataques planejados contra o iciais, que ajudavam
soldados capturados a escapar, forjando documentos. Se fossem
encontradas, seria morta. Nã o havia dú vida quanto a isso.
Mireille se preocupava com ela, pois tinha começado a se arriscar
demais. Antes, sempre tinha algué m de vigia, algué m a postos que as
avisava, que as ajudava a icar fora da vista para nã o serem pegas. No
inı́cio, Clotilde icava fora uma ou duas noites por semana, quando
Mireille juntava-se a ela, mas agora era a noite toda, o dia todo. Quanto
tempo levaria até ser capturada?
“Agora, isso é mais do que rabiscos nas paredes”, Clotilde havia
explicado uma noite, quando a chuva batia nos telhados, abafando sua
voz, depois de Mireille ter esperado na escada, até depois da meia-
noite, a amiga voltar para casa. Um eco do aviso que tinha recebido do
pai algumas semanas antes.
Os olhos escuros de Clotilde brilharam quando ela entrou na loja e
viu Mireille esperando. Já nã o havia nenhuma Estrela de Davi pregada
em sua lapela. Se os nazistas vissem isso, ela certamente seria mandada
para a prisã o.
“Clotilde, estou preocupada. E demais. Você precisa ir mais devagar.
Por favor.”
A amiga sacudiu os cachos ruivos e endireitou os ombros largos.
“Tem mais gente entrando. Tem esse homem, De Gaulle, que manda
transmissõ es radiofô nicas secretas. Era isso que eu estava fazendo essa
noite. Apenas escutando. Escutando tudo que eles planejaram – é assim
que vamos recuperar nosso paı́s, de dentro para fora. Estamos muito
perto agora, Mireille. Vamos nos livrar deles se trabalharmos em
conjunto. Mas, primeiro, precisamos combater esse medo que eles nos
izeram sentir. Eles estã o nos levando a pensar que somos mais fracos,
com esses estú pidos toques de recolher... Porque sabem que é quando
vamos revidar, e vamos mesmo”, ela disse, batendo seu grande punho
na palma da mã o. “Você vai ver. Con ie em mim.”
Mireille concordou. Era o que queria, acima de tudo. Todos os dias,
os nazistas levavam um pouco da dignidade de todos, impondo toques
de recolher, racionamentos e regras – regras que agora signi icavam
que sua melhor amiga já nã o era “aceitá vel”. Era impensá vel; Clotilde
era a pessoa mais corajosa que ela conhecia.
Mireille acordou cansada na manhã seguinte, com o estô mago
roncando de fome. Era uma situaçã o nova. O racionamento que os
nazistas haviam imposto a eles fazia com que, em alguns dias, nã o
houvesse o su iciente para suprir a ela, seu pai e Clotilde – que, como
judia, recebia ainda menos. Juntamente com o estresse de ter os
nazistas constantemente dentro da loja, sua fome levava-a, agora, a
estar sempre estressada, no limite, e isso transparecia.
***
O mé dico do exé rcito, Mattaus Fredericks, voltou à Gribouiller seis
semanas apó s ter encomendado seu dicioná rio mé dico. Com o passar
do tempo, percebeu que o livro que havia pedido já nã o era tã o
necessá rio; nos ú ltimos meses, se viu obrigado a aprender,
rapidamente, os termos mé dicos em francê s. A inal de contas, a dor
falava apenas uma lı́ngua.
Mesmo assim, quando a jovem Mademoiselle Mireille, da livraria,
telefonou-lhe para dizer que o livro tinha chegado, decidiu ir buscá -lo,
em grande parte para rever seu rosto. Nã o havia muito para animar
seus dias no hospital, e estava mais ansioso para ver a linda e jovem
livreira do que gostaria de admitir.
Ao entrar, seus olhos deram com ela sentada atrá s de uma grande
escrivaninha, lidando com uma papelada. Limpou a garganta para
chamar sua atençã o. Ela ergueu os olhos com o ar cansado, e ele icou
chocado ao ver a mudança que sofrera desde que se viram pela
primeira vez. Seus grandes olhos azuis tinham perdido a vivacidade, e o
brilho prateado já nã o era tã o evidente em seu cabelo loiro, cortado na
altura dos ombros.
Sua pele estava quase cinza. Continuava linda, mas tinha uma
aparê ncia ligeiramente desbotada, como uma pintura em aquarela.
“Ah, Herr Doktor”, disse, levantando-se para buscar o dicioná rio que
havia colocado em uma prateleira pró xima, juntamente com as outras
encomendas. Ele era memorá vel, com seus olhos verdes vivos, seu
cabelo loiro escuro e seu porte grande e musculoso.
Ele olhou para ela. Parecia mais magra. “Você está bem,
mademoiselle?
Parece um pouco pá lida, triste.”
Ela endireitou o corpo e sua boca abriu-se ligeiramente, como se nã o
acreditasse no que estava ouvindo. Seus olhos azuis foram tomados de
um furor sú bito. Aproximou-se com raiva, a mã o fechada em punho.
“Triste? Você realmente está me perguntando por que eu pareço
triste?”
O olhar dela passou dele para o outro lado da loja, onde o bando de
soldados nazistas se entretinha com a prensa num canto.
Ele inspirou entredentes. Ela havia falado baixo, apenas ele pô de
escutar, mas sua resposta tinha sido gé lida. Na mesma hora ele se
arrependeu da pergunta.
Mireille bufou. “As vezes você s, alemã es, perguntam um pouco
demais.
Já nã o basta estarem aqui? Com certeza sabem que é impossı́vel
estarmos felizes com isso.” Ela fez um pequeno som de deboche, depois
continuou, procurando se recompor: “O fato de eu ser educada basta? E
tudo o que tenho, e isso també m já está se esgotando agora. Pouca
comida tende a surtir esse efeito”.
Ela jogou o livro para ele e forçou um sorriso falso. “Tenha um bom
dia”, disse, dispensando-o.
Ele nã o fez mençã o de ir embora. Pegando sua carteira, disse: “Ainda
nã o paguei”.
Um mú sculo contraiu-se no maxilar de Mireille, e ela disse:
“Esqueça”.
“Eu insisto”, ele respondeu, pondo o dinheiro na mesa.
Mesmo assim, nã o foi embora.
Mireille rangeu os dentes e ele icou olhando ixamente para ela,
observando-a com algo mais do que certa preocupaçã o.
“Posso ser ú til em mais alguma coisa?”, ela perguntou, mal
conseguindo se controlar. Apesar de todos os sermõ es que fazia para
seu querido pai, a verdade é que tinha herdado ao menos um pouco do
seu temperamento.
“Você tem comida su iciente?”, ele perguntou. “Sã o comuns as
de iciê ncias em ferro nas mulheres, principalmente quando existe
racionamento de comida. Escolha bem e certi ique-se de comer vegetais
verdes, carne, e de descansar o su iciente.”
Ela arregalou os olhos. “Descansar? Como é que eu posso descansar,
monsieur, quando seus homens estã o sempre aqui, sempre?”
Como se a cena tivesse sido ensaiada, e talvez para defender o que
considerava seu territó rio, Valter Kroeling entrou na loja, que estivera
relativamente em paz naquela manhã , com o militar fora do caminho.
Viu Mireille e o mé dico e o cumprimentou com uma saudaçã o: “Herr
Stabsarzt Fredericks”, embora seus olhos claros e aguados parecessem
transparecer certa suspeita.
“Kroeling.”
“Mademoiselle”, Kroeling disse embolado, virando-se para ela e
revelando seus dentes pontudos num sorriso que lembrava um rato, e
que sempre gelava o coraçã o de Mireille. “Temos que rever a nova
encomenda.
Tê m alguns livros nela que agora foram banidos.” Ele dirigiu ao
mé dico um sorriso contido. “Eu nã o gostaria que a jovem senhorita e
seu pai tivessem qualquer problema”, explicou a Fredericks, que, para
seu evidente desgosto, ainda nã o tinha ido embora.
“Entã o você instalou a prensa aqui”, disse Fredericks, virando-se para
Kroeling com a sobrancelha levantada. Kroeling con irmou em silê ncio.
“Achei que estivesse decidido que este lugar era pequeno demais.”
“Para nó s, funciona muito bem”, disse Kroeling, fechando a cara.
“Alé m disso, o local é perfeito para a distribuiçã o dos nossos pan letos.”
Como um o icial mé dico veterano, Fredericks tinha o direito de
interrogar e sugerir melhorias, particularmente se fosse algo que
impactasse a saú de e a segurança do exé rcito. E sugestõ es desse teor
nã o podiam ser ignoradas, sobretudo sendo do interesse do Reich.
Fredericks olhou os homens amontoados na outra metade da loja,
compartilhando uma grande mesa coberta com pilhas de revistas e
jornais.
A pequena prensa ocupava a maior parte do espaço, juntamente com
as má quinas de escrever e todo o resto. Parecia entulhado e barulhento.
“Está provocando certo estresse na famı́lia. Eu recomendaria que
fossem consideradas outras instalaçõ es. Parece... entulhado.
Ine iciente...”
Os olhos de Kroeling faiscaram diante daquela afronta, mas ele se
conteve.
“Talvez, entã o, possamos conseguir mais espaço assumindo toda a
loja.
Pensamos que seria uma gentileza deixar o negó cio com a famı́lia.
Com certeza nenhum outro negó cio poderia ser mais estressante.”
O rosto de Fredericks icou impassı́vel. “E, você s poderiam fazer isso,
mas mesmo assim o espaço seria pequeno demais. E é uma livraria
muito boa, no centro de Paris, que atende a uma porçã o de gente. Eu
nã o gostaria de preencher um relató rio sobre o fato de essa atividade
parecer menos do que e iciente, até mesmo aleató ria.”
Talvez essa palavra tenha sido o fator decisivo.
“Pode ser que o mais fá cil seja mudar as instalaçõ es, mas guardar
alguns pan letos aqui para facilitar a distribuiçã o, considerando sua boa
localizaçã o, como você diz. Isso poderia ser um acerto justo.”
Kroeling parecia estar lutando contra sentimentos homicidas, mas se
limitou a inclinar a cabeça. A palavra “aleató ria” em relaçã o a seu
trabalho teria sido fatal, e ele sabia disso.
“Faremos como o senhor sugere, mas, como gerente da livraria,
indicado por Herr Brassling” – Brassling era capitã o de um grupo e
superior a Fredericks – “farei questã o de realizar visitas regulares”,
garantiu a Mireille, os olhos escuros culpando-a por isso. Sua expressã o
deixou claro que ele sentia que ela havia dito algo sobre a situaçã o ao
mé dico, ou ele jamais teria interferido. “Particularmente, porque parece
que foram encomendados alguns livros que nã o sã o permitidos.”
Fredericks concordou: “Isso parece razoá vel”.
Ele olhou para Mireille, que o encarou de volta, surpresa. Será que
aquele homem que ela tinha acabado de insultar conseguira, de algum
modo, realizar seu sonho de passar menos tempo com os nazistas e
suas revistas, principalmente com Valter Kroeling?
Ela nã o era boba de agradecer, mas foi dele o primeiro sorriso
sincero que dirigiu a algué m depois de um bom tempo, especialmente
quando Kroeling começou a gritar ordens para seus comandados
levarem as coisas para o quartel-general alemã o, a quase dez
quilô metros de distâ ncia.
CAPÍTULO QUATORZE
1962
1940
1962
1940
1941
Era primavera quando seu pai en im foi solto, voltando para casa
fraco e mal nutrido, apesar da comida que ela tinha conseguido in iltrar.
Havia dado a maior parte dela para outro prisioneiro, que tinha
começado a tossir sangue. Estava ainda mais furioso, resultado do seu
tempo na cadeia, e seu ressentimento em relaçã o aos alemã es era uma
ferida supurada que nã o sarava.
Apesar de ter pedido a Mattaus que icasse com sua ilha, nã o gostou
nem um pouco disso, e ferveu com uma raiva contida com o fato de o
mé dico nã o ter se mudado, agora que ele estava de volta. Queria sua
casa, sua privacidade, um refú gio longe deles, mas parecia condenado a
nunca conseguir.
Mireille cuidou do pai o melhor que pô de, tentando controlar sua
raiva e fazê -lo comer, mas seu estô mago estava fraco e só conseguia
aceitar um pouco apó s tantos meses sendo mal alimentado.
Ao chegar o verã o de 1941, o racionamento tornou-se ainda mais
pesado. Os nabos passaram a ser um alimento bá sico em sua dieta
diá ria, apesar dos pequenos extras que o mé dico trazia para casa, cada
vez mais reduzidos, uma vez que a cidade precisava de mais e as
fazendas tinham parado de produzir. Toda comida era necessá ria para
os soldados.
“Agora estou em casa. Por que ele nã o vai embora?”, reclamou
Vincent pela terceira vez naquela semana, escutando os movimentos no
andar de baixo, quando o mé dico se preparava para dormir.
“Você sabe o motivo, Papa”, Mireille disse. “Enquanto ele estiver aqui,
Valter Kroeling nã o estará .”
O pai concordou e acendeu um dos cigarros provenientes do estoque
do mé dico. “Imagino que devamos ser gratos.”
“E.”
Ele esfregou os olhos. Só se sentiria grato quando aquilo acabasse,
quando eles deixassem a cidade e sua casa.
Mireille esperou o pai dormir antes de escapar para o andar de baixo
e se esgueirar no depó sito, onde Mattaus continuava dormindo. Ele se
recusava a invadir ainda mais o apartamento deles. Mireille havia
esvaziado o lugar o má ximo possı́vel, entã o pelo menos estava mais
confortá vel.
Mattaus abriu os olhos ao som do ranger da porta, depois, ao ver que
era Mireille, sentou-se rapidamente. Vestia apenas uma cueca branca.
Mireille fechou a porta e encostou-se nela. Vestia sua melhor
camisola, anterior à guerra. Era a ú nica que tinha, agora.
Ele engoliu com di iculdade, sua respiraçã o tornando-se mais rá pida.
“Mireille?”
Ela olhou ixo para ele, para seu corpo. Era um homem grande, alto,
torneado e musculoso. A pele em seus braços, no pescoço e no rosto
estava bronzeada.
Subitamente, icou muito nervosa. Tudo isso tinha parecido uma boa
ideia até chegar realmente a hora. Nã o conseguia dormir, e quanto mais
Papa reclamava de Mattaus, mais ela percebia como ia icando brava
com o que ele dizia, e como tinha passado a se importar com aquele
homem que arriscara tudo por ela, inclusive ajudando sua amiga a
escapar do paı́s.
Seus dentes eram perfeitos e brancos. Sentiu o estô mago revirar ao
ver como era bonito, especialmente quando sorria.
“Oi”, ele disse com suavidade. “Andei pensando em coisas.”
“Que coisas?”, ela perguntou, dando um passo à frente com seus pé s
descalços. Sentou-se na beirada do velho sofá , consciente do quanto sua
camisola era ina, do quanto de si mesma estava exposto. O espaço era
muito restrito; em grande parte, tomado por ele. As pernas dele
estavam quentes junto à s dela.
Ele olhou para ela e sacudiu a cabeça, seus olhos verdes se
iluminando com um sorriso, quando ele disse, simplesmente, “Você ”.
Ela mordeu o lá bio. “E no que você pensa quando pensa em mim?”
“Em tudo.”
Ele a puxou e a beijou. Logo ela estava sob ele, as mã os e lá bios de
Mattaus indo por toda parte, percorrendo com beijos seu pescoço, seus
ombros, seus seios. Ela precisou morder o lá bio para se impedir de
gemer em voz alta, até que os lá bios dele foram ainda mais longe,
abrindo suas coxas. Seu toque provocava arrepios enquanto ele
segredava em seu ouvido: “Tem certeza de que quer fazer isso?”.
Ela con irmou com a cabeça. Naquele momento, ele era a ú nica coisa
em sua vida da qual tinha certeza.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Ela descobriu que estava grá vida oito semanas depois, quando já nã o
cabia em seus vestidos, apesar de todos na casa estarem sobrevivendo à
base de nabos e de ocasional naco de carne.
Mattaus a examinou e, con irmada a suspeita, ela passou o resto do
dia aos prantos.
Mulheres como Mireille eram chamadas de traidoras e putas. Eles
cuspiam nas que tinham ilhos com o iciais alemã es, chutavam,
beliscavam e prometiam que, quando a guerra inalmente acabasse,
seriam as primeiras a morrer.
Nã o importava que ela tivesse se apaixonado por Mattaus, que ele
fosse diferente, que nã o tivesse sido a favor daquela guerra; ningué m
jamais acreditaria nela. Mas o que aconteceria com o bebê ? Como ele
seria tratado? Como um pá ria? Educado para se odiar, embora nã o
tivesse feito nada de errado? Ela tinha visto como as mulheres na rua
olhavam os bebê s de soldados nazistas, como se fossem atirá -los
debaixo de um ô nibus.
Mattaus a embalou junto ao peito, com sons tranquilizantes. Para ele,
essa era a melhor coisa que lhe acontecia desde a primeira vez em que
Mireille estivera em sua cama. Ia ser pai e, caso ela deixasse, um
marido.
Para ela, poré m, esse era mais um exemplo de como algo que deveria
ser um momento feliz, quase cotidiano, tinha sido contaminado e
remodelado graças à quela guerra infernal.
***
Casaram-se em segredo em uma igrejinha, com um padre pago em
comida. O religioso nã o escondeu seu desprezo, mas, para Mattaus e
Mireille, sua opiniã o nã o interessava. Os dois sabiam o que havia entre
eles, mas ela estava apavorada com o momento de contar a seu pai.
Mattaus sugeriu darem a notı́cia naquela noite, no que ela
concordou.
O pai despencou na poltrona quando soube, seu rosto parecendo ter
envelhecido em minutos. Pareceu cansado, magro e velho. Justo um dia
antes, tinha perdido vá rios dentes, apodrecidos no tempo em que
esteve preso. Mesmo assim, aquela parecia a notı́cia mais difı́cil de
suportar. Seus olhos revelavam o choque. “Grá vida de um nazista!”
Mireille fechou os olhos. “Papa, me desculpe.”
Dupont sacudiu a cabeça. “Nã o, nã o.” Estava zangado, o rosto
contraı́do de dor. Ela nunca o vira tã o derrotado, tã o alquebrado. Sentiu
um nó no estô mago. Odiou estar causando aquilo.
Lá grimas escorreram pelo seu rosto. “Eu tentei nã o me apaixonar
por ele”, ela disse baixinho.
O pai fechou os olhos. Depois de um tempo, sacudiu a cabeça e disse:
“A culpa foi minha. Eu disse para ele icar. Você foi deixada sozinha
com ele. O que mais eu achava que fosse acontecer?”.
“Nã o, Papa, foi uma boa decisã o, ele é um homem bom.”
Dupont resmungou.
Mattaus icou em silê ncio, nã o fez qualquer gesto quando Dupont o
insultou.
“Prometo que vou cuidar da sua ilha. Amo Mireille.”
Dupont nã o disse nada. Só icou ali sentado, sacudindo a cabeça, o
rosto tomado de dor, enquanto repetia: “Grá vida”.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
1962
“Entã o foi por isso que ele me mandou embora”, disse Valerie,
baixinho. O café tinha silenciado, só restavam as duas, mas mesmo
assim icaram e beberam enquanto Madame Joubert, a amiga mais
antiga e mais querida da sua mã e, contava-lhe tudo que o avô tinha
tentado, desesperadamente, para impedir que ela soubesse. Devia isso
à amiga, ao amor que havia salvado sua pró pria vida.
“Foi.”
“Dupont se culpou?”
“Sim. Acho que ele queria gostar de Mattaus, e antes de ir para a
prisã o, pode ser que gostasse, mas depois de passar vá rios meses em
um presı́dio administrado por nazistas, saiu odiando todos, mais ainda
do que antes.
Mas nã o estava só . Um monte deles sentia isso. Era compreensı́vel,
acredite; como judia, sou a primeira a proclamar meu ó dio aos nazistas,
mas alguns foram longe demais, principalmente em relaçã o à s crianças
com pais alemã es. Eram vistas como se merecessem sofrer tanto
quanto eles tinham sofrido. Essas crianças foram ridicularizadas,
estigmatizadas e excluı́das, e o sã o até hoje. Algumas delas nunca foram
aceitas pelo restante da famı́lia, e o resultado foi que cresceram com
profundos danos psicoló gicos. Dupont é uma porçã o de coisas, mas
amava a ilha e amava você . Quando ela morreu, ele tomou a decisã o,
por mais difı́cil que deva ter sido, de te mandar embora, assim você nã o
teria que enfrentar o preconceito. Acho que é o que ele gostaria de ter
tido a coragem de fazer com Mireille: mandá -la para o campo quando
os alemã es invadiram.
Acredito que ele pensou que com você teria uma segunda chance de
fazer a coisa certa, mesmo icando de coraçã o partido.”
***
Naquela noite, quando Valerie foi para casa, pensou em tudo que
Madame Joubert havia lhe contado. Tentou tirar algum sentido dos seus
pró prios preconceitos, das suas pró prias crenças, e compará -los, de
algum modo, com os da sua mã e e até mesmo do seu pai. Poderia
entender como uma mulher na situaçã o da sua mã e teria se apaixonado
por um homem como Mattaus Fredericks? A resposta sincera foi sim.
Assim como para sua mã e, a lealdade era uma parte importante do
coraçã o de Valerie, da sua formaçã o, e ela compreendia muito bem que,
se um homem arriscasse a pró pria vida para salvar a de sua amiga, ela
també m poderia ter se apaixonado por ele. A revelaçã o trouxe algo
novo para a descoberta de quem era seu pai; amenizou o manancial de
vergonha que havia se enrodilhado com força em seu peito ao descobrir
que ele tinha sido um soldado nazista. Mas ela sabia que nã o poderia
descobrir tudo o que havia no coraçã o do pai. Nã o poderia ter certeza
de que ele fosse um homem bom em todos os sentidos, já que Madame
Joubert havia lhe contado que em certa é poca ele acreditara no que o
partido defendia. Mas supô s que o que mais importava era a pessoa que
resultou no inal, o tipo de pessoa que fazia o que era certo, sem medir
as consequê ncias, mesmo que isso signi icasse tornar-se um traidor da
sua pá tria e de suas regras. Sob muitos aspectos, ela percebeu que era
ele a pessoa que ela mais precisava entender.
A chuva batia na janela quando ela entrou debaixo das cobertas. Mais
uma vez, demoraria muito tempo para o sono chegar naquela noite.
***
Pela manhã , descobriu que Dupont havia lhe preparado outra xı́cara
de chá , e sorriu ao olhar para ela. Em algum momento, pensou, vou
mesmo ter que ensiná-lo a fazer isso do jeito certo.
Dupont a pegou olhando para ele algumas vezes naquela manhã ; ela
pensava nele e em sua decisã o de mandá -la embora. Percebeu que
começava a entender o motivo de ele ter acreditado que tomara a
melhor decisã o. Parte dela sentiu algo que nã o esperava sentir por ele
há alguns meses, ao chegar pela primeira vez à livraria. Era pena.
Poré m, uma parte dela ainda nã o conseguia acreditar no que
Madame Joubert havia dito: que ele a amava. Talvez tivesse amado à sua
pró pria maneira, mas també m nã o seria prová vel que ele quisesse
mandá -la para longe para se poupar da dor de olhar para ela, de
sempre ser lembrado de onde ela tinha vindo?
Quando ela e Madame Joubert saı́ram do Les Deux Magots na noite
anterior, as duas caminharam ao longo do Sena, nenhuma delas
disposta a ir embora ainda, e por motivos diferentes. Já era noite e
podiam escutar o delicado chamado dos pá ssaros e o dedilhar de uma
guitarra vindo de um dos barcos luviais.
A luz ao longo das margens do rio lançava faixas douradas na á gua,
re letindo nos olhos verdes de Valerie quando ela se virou para
Madame Joubert, o olhar intrigado. Conversavam sobre o dia em que
Valerie havia sido levada de Paris, e Madame Joubert sacudia a cabeça,
seus cachos ruivos reluzindo no ar noturno.
“Foi logo depois do im da guerra”, insistiu a mulher, enquanto
Valerie protestava:
“Mas me lembro disso durante a guerra. Tenho certeza. O modo como
corremos... o gosto do nosso medo. Amé lie me pegou, e em uma das
ruas havia um montã o daqueles soldados. Amé lie icou com medo
deles. Deu para perceber. Tinha que ser ainda durante a guerra, quando
ela veio me levar com ela”.
Madame Joubert aconchegou-se em seu grosso cachecol de lã e
suspirou: “Nã o. Foi depois da guerra. Os soldados que você viu eram os
nossos. Ela teve medo deles por sua causa. Era uma é poca de pâ nico, e
nã o estava claro o que iria acontecer com os ilhos das pessoas que eles
tinham reunido para o que era chamado de ‘o expurgo’. A cidade queria
se livrar de qualquer resquı́cio que lembrasse a Ocupaçã o, punir todos
que tivessem colaborado com os alemã es, desde as mulheres que
tinham dormido com eles aos homens que tinham negociado com eles.
A sede de retaliaçã o contra essas pessoas, nos coraçõ es e mentes de
muitos dos parisienses que tiveram que sofrer enquanto alguns dos
seus compatriotas pareciam se bene iciar, era grande. Dupont teve
medo de que isso pudesse incluir você .
Será que essas crianças seriam reunidas e levadas para algum campo
de concentraçã o? Mesmo que você nã o fosse levada, a outra realidade
que, sem dú vida, recairia sobre você se crescesse aqui, era que jamais
seria vista como uma de nó s, sempre seria tratada como intrusa...”.
Madame Joubert contou-lhe, entã o, a histó ria que ouvira sobre um
menino que tinha se matado aos 13 anos. Seu pai era alemã o, e ele era
provocado impiedosamente todos os dias, até nã o aguentar mais e se
jogar de uma ponte. Outro rapaz foi procurar sua famı́lia alemã depois
do tratamento sofrido como ilho de um desses casais infelizes.
“Nã o sei como funcionou do outro lado, se os ilhos de aliados foram
tratados melhor na Alemanha. Mas, se aprendi alguma coisa sobre a
natureza humana durante esse perı́odo, suspeito que nã o. Posso dizer,
no entanto, que seu avô acreditava que a guerra que você teria que
enfrentar começaria depois da Ocupaçã o e nas ruas de Paris, quando
tentasse, sem sucesso, justi icar sua existê ncia a pessoas
profundamente feridas e revoltadas com o fato de que um dia tal coisa
tivesse tido a permissã o de acontecer. Foi por isso que ele mandou você
ir viver com Amé lie. Quis te poupar da dor de um dia sentir que nã o
pertencia...”
“Só que, de qualquer modo, houve é pocas em que me senti assim.
Sempre soube que nã o fazia parte, que alguma coisa nã o batia.”
“Eu sei.”
Valerie olhou para Madame Joubert e sacudiu a cabeça. “Mas é
verdade, fui poupada dessa raiva, desse sofrimento. As vezes, me sentia
como uma excluı́da, mas nã o era por causa da maldade de algué m.
Minha vida é boa, cheia de amor, bondade, amigos.”
Os ombros de Madame Joubert começaram a sacudir, e Valerie
percebeu que Dupont nã o era o ú nico que buscava absolviçã o pela
decisã o de mandá -la para ser criada por Amé lie. Ela tocou no ombro da
mulher.
“Posso perceber que eu nã o teria tido isso aqui; haveria um
obstá culo entre o mundo e eu.”
Amé lie tinha sido uma tia e uma mã e para ela. Tinha recebido amor e
carinho. Nunca fora levada a se sentir da maneira como algumas
crianças como ela tinham, sem dú vida, se sentido.
Valerie descon iava que a decisã o do avô em dá -la, e as razõ es por
detrá s disso, levariam toda uma vida para serem processadas. Era fá cil
dizer o que poderia ter sido feito agora, quando ningué m estava em
guerra, nem sujeito ao poder dela, testando as pessoas em todos os
nı́veis, colocando o desejo de sobrevivê ncia acima dos seus ideais.
Elas chegaram ao quarteirã o de apartamentos na Rue des Oiseaux
depois da meia-noite. O braço de Madame Joubert estava ao redor dos
ombros de Valerie, e, quando se despediram, Valerie sentiu, só por um
instante, que podia ver aquela moça, a mulher que izera parte da
resistê ncia, aguerrida e leal ao extremo, uma jovem Clotilde, subindo a
escada para seu apartamento, à direita.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
1963
Valerie encontrou o diá rio por acaso, no começo do novo ano. Tinha
andado manuseando a coleçã o, de certo modo grudenta, dos livros de
receitas que Dupont guardava na prateleira da cozinha. Foi quando viu
uma pontinha de couro surgindo entre um livro sobre jantares
provençais e outro sobre pratos clá ssicos franceses. Puxou-a,
percebendo que estava no lugar errado, e se surpreendeu ao abri-lo e
ver a letra inclinada e caprichosa de sua mã e. O ar icou preso em sua
garganta. Ali, registrados por sua pró pria mã e, estavam seus primeiros
momentos neste mundo.
Dia em que ela chegou: 12 de março de 1942. Peso: 3,5 kg.
Mas foi a primeira linha que saltou aos seus olhos, fazendo-a fechar o
livro com o coraçã o disparado.
Valerie Fredericks.
Levou a mã o ao peito, sem fô lego com a descoberta: seu sobrenome
era alemão.
***
Naquela tarde, enquanto arrumava as prateleiras, sua mente sacudia
com a nova descoberta, como um disco de vinil que ica pulando.
Fredericks.
Meu sobrenome é Fredericks. Seus dedos tremiam e ela ansiou pela
sensaçã o de um cigarro entre eles, pela sensaçã o de relaxamento que
aquilo proporcionava quando tragava as toxinas para dentro dos
pulmõ es, afogando o peso de todos seus pensamentos.
Por que a descoberta a desestabilizara? Sabia que a mã e tinha se
casado com ele; nã o fazia sentindo ter seu sobrenome? Fazia, mas
mesmo assim aquilo era um choque para ela, mais uma coisa que
desconhecia sobre sua identidade. Por que sua tia e seu tio, ou Dupont,
nã o haviam lhe contado quando era pequena? Mesmo podendo
entender a decisã o de ser criada em outro lugar, por que tanto do seu
passado precisou ser mantido em segredo?
***
Mais tarde naquela noite, Valerie foi ao apartamento de Madame
Joubert. A senhora abriu a porta trajando um quimono azul estampado,
seus cachos ruivos e sedosos ressoando no tecido, uma pequena ruga
entre os olhos por receber uma visita à quela hora. Mas descontraiu-se
ao ver que era Valerie. “Chérie?”
Valerie mostrou-lhe o diá rio. “Encontrei isto, era da minha mã e.
Posso entrar?”
Madame Joubert arregalou os olhos. “Claro, chérie. Você está bem?”
“Nã o tenho certeza”, respondeu Valerie, com sinceridade.
A luz vinha de um pequeno abajur no canto da sala de visitas. Valerie
foi levada a se sentar no sofá de veludo verde, onde a mulher lhe
ofereceu uma bebida.
“Vinho, por favor.”
Madame Joubert serviu-lhe uma taça e sentou-se ao lado dela.
“Posso?”, disse, indicando o livro.
Valerie permitiu e a observou abri-lo, seus dedos parando ao tocar as
pá ginas. Levou a mã o ao coraçã o. “E sobre você !”, disse baixinho.
Valerie assentiu. Seus olhos marejaram enquanto ela limpava a
garganta, tentando livrar-se da sú bita onda de emoçã o.
“Só queria mostrar para algué m, algué m que entendesse.”
Madame Joubert entendeu. Folheou as pá ginas enquanto Valerie
olhava.
Nã o tinha conseguido continuar por sua pró pria conta. Prendeu a
respiraçã o ao ver a letra confusa de outra pessoa, de um homem –
deduziu
–, e percebeu, com um susto, que devia ser do seu pai.
“E como um pequeno diá rio”, segredou. “Com pequenas inserçõ es e
retratos da vida deles. Escrito, sem dú vida, quando Mireille nem
imaginava que um dia seria descoberto assim.”
Juntas, elas leram uma passagem que trouxe lá grimas instantâ neas
aos olhos de ambas:
Identi iquei cinco choros até agora. A parteira, Lisette, disse que um
dia eu conheceria todos. Mas tem um que é só para mim, para a mamãe. É
quando eu saio do quarto, e é o que mais me dói no coração.
Valerie tomou um gole de vinho, enxugando com o dedo a insistente
umidade em seus olhos. Percebeu o que mais a vinha perturbando na
descoberta do á lbum do bebê , mais ainda do que o nome Fredericks; era
a histó ria da sua mã e em suas pró prias palavras. Fazia aquilo ser real,
mais real do que qualquer coisa que já ouvira.
Madame Joubert leu em voz alta outra passagem, sorrindo atravé s de
seus pró prios olhos enevoados:
Fui abençoada com um bebê calmo. Embora não tenha outra
referência para julgar, sei, tenho certeza de que nisso tive mais sorte do
que a maioria. Valerie dorme a noite toda. Tenho que confessar que, às
vezes, eu a acordo só por sentir falta dela. M não concorda.
Madame Joubert recarregou as taças. Depois, disse: “Tenho uma
coisa que també m quero compartilhar com você ”.
Atravessou a sala até uma bela escrivaninha antiga, com pé s em
garras, a madeira encerada e brilhando à fraca luz â mbar. Destrancou o
mó vel com uma chave que, com o tempo, icara esverdeada. Dentro,
havia uma pilha de cartas.
“Sua mã e me escreveu enquanto eu estava na Espanha. Nã o podia
enviá -las, é claro, mas mesmo assim escreveu.”
Ela fungou, o nariz estava vermelho. “Achamos mais tarde, debaixo
do colchã o do quarto dela, depois...” Soltou um breve suspiro.
Depois que ela morreu, Valerie compreendeu. Seus dedos tremeram
ao receber a pequena pilha de Madame Joubert. Estavam amarradas
num maço, com um barbante de lorista.
Madame Joubert hesitou. “Eu... estou feliz que você tenha primeiro
encontrado o á lbum”, disse, indicando o diá rio encadernado em couro.
“Mostra que houve um momento, antes do medo e da preocupaçã o,
em que eles foram felizes e quase iguais a qualquer casal de pais. Estas
mostram”, ela pigarreou, limpando a garganta, “algumas das primeiras
tensõ es.
Passei a semana toda pensando se deveria mostrá -las a você , com
medo de que causassem a ideia errada, de que você a julgasse, talvez,
com excessiva dureza... No começo, ela icou muito preocupada com a
gravidez. E isso deixou as coisas em casa muito tensas”.
Valerie franziu a testa ao olhar para a pilha de cartas, uma pequena
onda de ansiedade invadindo seu coraçã o.
***
Mais tarde naquela noite, tendo ao fundo o som dos roncos de
Dupont, abriu a primeira das cartas. Notou a gra ia da mã e, como a mã o
inclinada e caprichosa parecia correr, como as letras disparavam,
algumas incompletas, sinal dos seus medos e dú vidas, percebeu Valerie.
Minha queridíssima Clotilde, O bebê começa a crescer. Mattaus diz que
é saudável, apesar da nossa dieta limitada. Cresce forte, mesmo assim. Eu
deveria estar feliz, mas não estou. Só sinto medo. Isso me consome dia e
noite.
Duas semanas atrás, uma grávida que, segundo os rumores, dividiu a
cama com um o icial alemão, foi empurrada para a rua por uma
multidão furiosa, depois de estourar a notícia daqueles estudantes presos
por participarem de uma marcha de protesto. Ela caiu e alguém a chutou.
O bebê nasceu morto. Papa disse que foi uma bênção disfarçada para a
criança. Não pude acreditar que ele pensasse isso, menos ainda que
dissesse isso. Fiquei muito brava com ele. Mas tenho que confessar que
seria mais fácil se eu não tivesse engravidado. O que mais me preocupa é
a criança... O que acontecerá depois que ela nascer? E se não estivermos
aqui para protegê-la, e uma multidão enfurecida virar-se contra ela? Não
consigo dormir à noite com esses pensamentos passando pela minha
cabeça.
Papa sugeriu que eu vá para o campo para dar à luz, para um
convento em Haute-Provence. Mas a verdade é: por que elas ajudariam a
esposa de um nazista? Além disso, Mattaus icaria arrasado. Ele tem um
sonho de vivermos uma vida normal, e eu me esforço muito para
acreditar que poderia ser possível, que essa guerra horrorosa poderia
terminar logo...
Talvez termine. Às vezes, quando não consigo dormir, penso em você,
na Espanha, e isso me conforta. Imagino-a no campo, em algum lugar
quente, provando azeitonas, e que eu dia também irei encontrá-la. Espero
que você esteja bem e que tenha recuperado um pouco dos quilos
perdidos. Penso em você com muita frequência. Gostaria que houvesse
uma maneira de realmente mandar esta carta para você, de escutar sua
voz. Sinto sua falta todos os dias. Noutro dia, percebi que estava olhando
demais para uma mulher ruiva, de lábios vermelhos.
Não soube nem explicar por que eu estava chorando, mas ela foi
delicada do mesmo jeito, oferecendo-me um lenço. Me pergunto se ela
seria tão gentil se conhecesse o meu segredo... e quando eu começar a
mostrá-lo.
M.
Apesar do choque com as palavras da mã e, Valerie continuou lendo,
descobrindo que, sob certos aspectos, os medos da mã e revelaram-se
verdadeiros. Com o passar do tempo, segundo uma carta, quando
Mireille começou a mostrar barriga, alguns dos seus clientes
costumeiros pararam de ir à livraria. O pior foi como Dupont icou
amargo com todo o contexto.
Ele simplesmente não consegue aceitar. Posso vê-lo tentando gostar de
M todos os dias, tentando colocar suas dúvidas de lado, mas todas as
noites elas voltam, como um peso que ele carrega, como um Atlas. Ele me
disse que já era bastante ruim eu ter dormido com M, mas casar-me com
ele era algo que não podia entender... Eu disse a ele que M não queria que
seu ilho crescesse como bastardo, e ele disse: “Já não é ruim o su iciente
que o pai seja um nazista?”.
Chorei a noite toda, Clotilde. M não é isso... não mesmo...
Valerie fechou os olhos. Os medos do avô eram exatamente os que ela
havia sentido quando descobriu sua histó ria. Sentiu por sua mã e,
esforçando-se tanto para convencer o pai de que Mattaus era um
homem bom, de que nã o era como os outros.
Se ao menos ele chegasse a conhecê-lo, acho que entenderia, que veria.
Valerie se perguntou se Mireille teria escrito a Clotilde por saber que
a amiga entenderia, pois, entre todos eles, Mattaus tinha arriscado tudo,
virado um traidor, por ela. Pelo menos por isso ele merecia seu amor,
sua con iança.
Quando o sol despontou no horizonte, Valerie já tinha lido metade
das cartas. Ela descobriu que, conforme o tempo passava, os medos da
mã e começaram a se dissipar, de certo modo, quando o entusiasmo dela
e de Mattaus por ter um bebê começou a incar raı́zes.
Hoje, M trouxe para casa uma abóbora grande, de casca verde-escura,
comprada no mercado. Havia semanas que não tínhamos nada tão
exótico. Normalmente temos nabo no jantar, e, quando temos sorte, uma
ou outra batata. M diz que o bebê está do tamanho dela, agora. Pagou um
preço ridículo pelo vegetal. Durante três dias não deixei que ninguém
comesse aquilo, icava olhando para ela feito uma idiota, e ela começou a
enrugar. Como você teria rido de mim, me vendo chorar quando eles a
cozinharam para o jantar!
Valerie descobriu que foi por volta dessa é poca que Mireille arrumou
o livro do bebê .
Quero fazer um registro de tudo. Os homens não se lembram desse tipo
de coisa, e Maman não fez um diário, então não sei como ela se sentiu ao
se tornar mãe pela primeira vez. Gostaria que ela estivesse aqui, agora...
Ela saberia o que dizer... M tem sido maravilhoso o tempo todo, fazendo
com que eu deixe meus medos de lado. Tem muito encantamento nos
olhos deles, com a ideia de ser pai. Fica trazendo coisinhas para casa.
Coisas cor-de-rosa. Dá para ver que quer uma menina. Espero que não
ique triste se for um menino...
Era como voltar no tempo e vivenciar aquilo com ela. Quando
Mireille escreveu sobre o racionamento de roupas novas, Valerie sentiu
que poderia imaginar sua frustraçã o por nã o ter nada que lhe servisse
na gravidez avançada.
Tive que fazer aquelas batas de maternidade disformes. Parecem
aquelas colchas de retalhos – você sabe como sou um fracasso
costurando. Não tenho suas habilidades. Posso imaginar você, Clotilde,
com um cigarro entre os lábios, criando algum modelo que poderia
concorrer com os de Madame Chanel. Eu, por outro lado, criei duas
tendas tortas com meus velhos vestidos, e alterno essas duas peças tristes
dia sim, dia não, porque quando já não estiver grávida, é isso, não vou
poder comprar mais roupas. Mas está tudo funcionando, de fato, menos
os sapatos... Meus tornozelos estão do tamanho de melões, e a única coisa
que serve é um par de chinelos.
Você não imaginaria que eu icaria tão grande com uma dieta tão
limitada... mas é isso aí. O bebê, agora, está do tamanho de uma abóbora-
espaguete. Infelizmente M não conseguiu arrumar uma para o nosso
jantar...
Pela manhã , com os olhos turvos pela falta de sono, Valerie preparou
uma xı́cara de café forte para si mesma e leu a ú ltima carta.
O lı́quido escuro nã o chegou a alcançar seus lá bios quando ela leu
sobre o primeiro confronto que a mã e teve com Valter Kroeling.
Levantou-se rapidamente para pegar um pano de prato, limpando o
papel onde o lı́quido â mbar tinha deixado sua mancha, como que para
ressaltar a amargura que havia ali.
Eu estava no mercado quando dei com Kroeling. Tenho ido a um em
Montmartre... Confesso que vou lá porque ninguém sabe quem sou, então
tem menos chance de algum conhecido vir até mim perguntar sobre o
bebê... e o pai. Eu tinha comprado os mantimentos da semana – agora
tem muito pouco, com o racionamento, di icilmente uma carne. Comemos
nosso peso em nabos. De todo modo, quando me virei para ir embora com
minha sacola de compras, vi Kroeling do outro lado da rua. Minhas
pernas começaram a tremer e iquei zonza, virando-me rapidamente,
desejando sair rápido, antes que ele me visse, mas era tarde demais. Antes
que eu me desse conta, aquele sujeito repugnante estava na minha frente,
me girando, olhando meu vestido solto sem acreditar, os olhos tomados
pelo ódio. “Você está grávida.”
Tentei desvencilhar meu braço do dele, mas ele era forte e o torcia,
gostando da minha dor enquanto eu pedia para ele me soltar. Tinha a
mesma expressão no rosto da vez em que veio me procurar... e senti muito
medo, mas, dessa vez, ele usou palavras em vez de me bater.
Seu rosto se contorceu numa mistura de luxúria e puro ódio enquanto
seu olhar me percorria. “Não demorou muito, demorou?” Seus olhos
estavam nos meus seios, que, nas últimas semanas, passaram por uma
espécie de explosão. “Ficam bem em você. Acho que vou te levar a algum
lugar para ver o quanto.” Gritei para ele me soltar e ele só riu de mim. “Ou
o quê? Você vai acionar seu namorado médico contra mim?”
Eu disse que sim, que M faria questão de que seus superiores
soubessem que ele estava me atormentando.
Foi aí que ele riu mais ainda e mostrou uma nova insígnia em sua
camisa. “Superiores? Está vendo isto? Signi ica que agora sou major.”
“E?”, perguntei.
Seus olhos faiscaram. “Signi ica que o velho e querido Herr Fredericks
agora precisa se reportar a mim...”
Senti-me empalidecer. Ao chegar em casa, contei a M. Mas ele não icou
preocupado com a promoção de Kroeling, só com meu bate-boca com ele.
Contou-me que a impressora que eles costumavam operar na livraria
icou maior, portanto não fazia sentido trazê-la de volta para cá. Além
disso, as obrigações superiores de Kroeling signi icam que agora ele está
mais envolvido, por exemplo, na veri icação de fronteiras, na resolução de
outros assuntos. Um deles, detesto dizer, tem a ver com os judeus.
Soubemos que eles começaram a reuni-los e levá-los para campos de
concentração. Papa me contou que uma das pessoas levadas foi nossa
velha professora de piano, Madame Avril. Como chorei quando soube!
Implorei a M que izesse alguma coisa, mas o que um só homem poderia
fazer? É a coisa mais terrível, mais odiosa. Desprezo-me por estar tão
pateticamente agradecida que você esteja salva – ou, pelo menos, espero
que esteja – quando sei que eles não estão. Odeio essa guerra e esses
nazistas... e o que izeram para todos nós.
M icou doente quando soube o que eles tinham feito. Acontece que o
avô dele era judeu. Pude ouvi-lo vomitando à noite. Sei que ele sabe mais
do que me conta. Me pergunto se ele se sente tão mal por se preocupar
que descubram sobre o avô ou porque as pessoas com as quais cresceu
sejam capazes de coisas tão monstruosas. Talvez sejam as duas coisas...
Valerie pousou a pilha de cartas sob um amontoado de papé is na sua
mesa de bistrô quando Dupont entrou na livraria.
Olhou para o velho. Havia inú meras perguntas a serem feitas a ele.
Inú meras coisas que ela queria, precisava entender. Abriu a boca com
o coraçã o disparado, preparando-se para dizer as palavras que tinha
escondido dele por tanto tempo. O segredo que precisava desabafar.
Limpou a garganta, e ele a olhou com a testa franzida. “Você tomou
banho com o seu café hoje?”, perguntou, achando graça.
Ela abaixou os olhos e viu que havia gotas de café sobre toda a
superfı́cie branca da sua camiseta. Quando olhou para ele novamente, o
momento tinha passado, e tudo o que sentiu ao subir para se trocar,
com as cartas presas debaixo do braço, foi um imenso cansaço.
CAPÍTULO VINTE E SETE
1942
1963
“Ela foi traı́da”, disse Valerie, inalmente. Eles estavam sentados em
um banco, haviam feito uma parada ao longo da Rue des Oiseaux. Ela
tinha desabado ali quando Dupont começou a lhe contar sobre o dia da
morte dos pais. Houve um momento em que nã o quis ouvir mais nada,
quis que ele parasse, mas uma parte dela precisava saber, precisava
entender o que tinha acontecido.
“Ela morreu por nada”, disse, olhando para o chã o. “Arriscou tudo... e
era só uma armaçã o.”
Quis explodir de raiva, gritar, achar os restos mortais de Valter
Kroeling e esfacelá -los.
Dupont agarrou sua mã o e a apertou. “Nã o, nã o foi por nada. Ela foi
enganada sim, mas, se fosse verdade, poderia ter mudado o destino da
guerra. Quando nos arriscamos, quando decidimos fazer a coisa certa,
nã o sabemos se vai funcionar ou nã o; simplesmente temos que seguir
em frente, fazer o que nos pedem. Ela foi corajosa, e isso jamais lhe
poderá ser negado. No im, foi assim que vencemos a guerra: correndo
esses riscos. Como seu pai fez quando salvou Clotilde. Ele poderia ter
sido morto se descobrissem.”
Ela concordou e enxugou as lá grimas dos olhos. Imaginou que ele
tivesse pensado nisso por um bom tempo. Ela també m sabia que sua
mã e icaria satisfeita em saber que, tantos anos depois da morte do
marido, seu pai realmente achava que Mattaus era corajoso e bom...
Tinha pelo menos este desejo realizado no inal.
Os dois caminharam juntos de volta para a livraria, de volta para
casa.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
Atualmente