Cadernos-20-VICTOR - Indd - Cadernos - de - Estudos - Desenvolvimento Social em Debatses
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C
Ó
Brasília, 2014
Presidenta da República Federativa do Brasil
Dilma Rousseff
Secretário Executivo
Marcelo Cardona Rocha
Este número, apresenta os principais resultados da pesquisa de “Avaliação da situação de segurança alimentar e nutricional
em comunidades quilombolas tituladas”.
ISSN 1808-0758
CDD 330.981
CDU 304(81)
Novembro de 2014
Essa é uma das premissas que têm orientado as avaliações diagnósticas que a
Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) do Ministério de Desen-
volvimento Social e Combate à Fome (MDS) vem realizando nesses dez anos de
atividades. Os diferentes públicos-alvo das políticas propostas e operadas pelo
Ministério – famílias do semiárido, beneficiários do Programa Bolsa Família,
usuários dos serviços socioassistenciais, indígenas, população em situação de
rua, para citar alguns – têm sido objeto de investigação em diversas estratégias
quantitativas e qualitativas de pesquisa. Por meio desses estudos têm-se produzido
diagnósticos que, sem se pretenderem exaustivos, compilam um conjunto mul-
tifacetado de evidências que tem contribuído para o desenho e aprimoramento
das ações do Ministério.
Boa leitura!
Paulo Jannuzzi
Secretário de Avaliação e Gestão da Informação
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Pçã
A publicação que o leitor tem em mãos contém os principais resultados da pesquisa
de Avaliação da situação de segurança alimentar e nutricional em comunidades quilombolas
tituladas. Trata-se de um estudo quantitativo, de caráter censitário, realizado pela
Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI), do Ministério do Desenvol-
vimento Social e Combate à Fome (MDS), em parceria com a Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Ministério da Saúde, Fundação Cultural
Palmares e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA/MDA). O
trabalho de campo foi executado, em 2011, pelo Núcleo de Pesquisas, Informações
e Políticas Públicas da Universidade Federal Fluminense – DataUFF, contratado
mediante edital público, no âmbito do Projeto de Cooperação Técnica BRA/04/046
– “Fortalecimento Institucional para a Avaliação e Gestão da Informação” firmado
entre o MDS e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Desde 2010, o Estado procura chegar a esses grupos por meio do Plano Brasil Sem Miséria,
que tinha como objetivo retirar da extrema pobreza cerca de 16 milhões de brasileiros, 47%
dos quais vivem no campo, justamente onde se localiza a grande maioria das comunidades
quilombolas aqui investigadas. Os avanços obtidos no campo legal, contudo, não têm se
refletido na efetivação de políticas públicas promotoras da segurança alimentar e do bem
estar. Em parte, isso ocorre devido à carência de informações sobre a realidade vivenciada
pelas famílias e comunidades quilombolas. Como parceiro estratégico da SEPPIR, cabe
ao MDS assegurar às comunidades quilombolas o direito à segurança alimentar, assim
como formular e implementar, junto a essas comunidades, medidas de superação da
pobreza. Alinhada com o PBQ, a presente pesquisa vem preencher lacunas a partir do
levantamento, sistematização e consolidação de dados que aportam conhecimentos sobre
um número significativo de pessoas que vivem em territórios quilombolas titulados.
Optamos por dividir este Caderno de Estudos em duas partes: a Parte I concentra os
artigos que traçam um diagnóstico das comunidades pesquisadas, enquanto a Parte II
traz dois textos que apresentam balanços de ações dos últimos anos do Plano Brasil
Sem Miséria e do Programa Brasil Quilombola.
Daniela Frozi realiza, no quarto capítulo, uma leitura sobre a relação do fenômeno
da pobreza entre os quilombolas que vivem em territórios titulados e sua condição
de segurança alimentar e nutricional. Para isso, a autora busca o enfoque da mul-
tidimensionalidade da pobreza, perspectiva considerada adequada para esclarecer
questões referentes à compreensão de como é gerada a situação de pobreza extrema,
alvo do Plano Brasil Sem Miséria. Assim, Frozi apresenta as seguintes dimensões de
análise: 1) pobreza extrema, variável construída a partir do dado da renda per capita
mensal; 2) qualidade de vida e bem-estar, composta por um conjunto de indicadores
de acesso a bens e serviços; 3) segurança alimentar e nutricional, produzida a partir da
disponibilidade de alimentos; e, finalmente 4) Acesso às políticas públicas e programas
federais. Os dados são, então, estatisticamente analisados pela autora, que apresenta
sua interpretação e suas considerações sobre esses grupos.
A Parte II traz um texto de Luana Lazzeri Arantes, Fernanda Ayala Martins e Renato
Flit, que integram a equipe da Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais
da SEPPIR. Os autores versam sobre como a instituição do Programa Brasil Qui-
lombola (PBQ), em 2004, e da Agenda Social Quilombola (ASQ), três anos depois,
foi planejada para a melhoria das condições de vida e ampliação do acesso a bens e
serviços públicos pelas comunidades quilombolas, compreendendo ações voltadas
para o acesso à terra, à infraestrutura, à qualidade de vida, à inclusão produtiva, ao
desenvolvimento local e à cidadania. Nesse sentido, os autores trazem um balanço
sobre os desdobramentos que essas políticas têm gerado, bem como os desafios atu-
ais para sua implementação, e utilizam dos dados da pesquisa aqui apresentada para
subsidiar a análise.
Além disso, em 2002 o governo brasileiro ratificou a Convenção 169 sobre Povos
Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Tra-
balho (OIT), que trata fundamentalmente de direitos territoriais e das condições de
trabalho, saúde e educação desses povos. As principais inovações dessa convenção
dizem respeito à garantia da sua autoidentidade, instituída como “critério subjetivo,
mas fundamental, para a definição dos povos sujeitos da Convenção, isto é, nenhum
Estado ou grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou
5
ABA, 1994. tribal que como tal ele próprio se reconheça”.7 Além disso, o documento também
6
Idem. possui como conceitos norteadores “a consulta e a participação dos povos interessados
7
OIT, 2011. e o direito desses povos de definir suas próprias prioridades de desenvolvimento na
Baseando-se nos preceitos legais assinalados, foi criado, em março de 2004, o Progra-
ma Brasil Quilombola (PBQ), reunindo as ações do Governo Federal direcionadas
às comunidades quilombolas e cuja coordenação está a cargo da SEPPIR. As metas
e recursos do PBQ envolvem 23 ministérios e órgãos federais, entre eles o MDS, e
têm como principais objetivos a garantia do acesso à terra; ações de saúde e educação;
construção de moradias, eletrificação; recuperação ambiental; incentivo ao desenvol-
vimento local; pleno atendimento das famílias quilombolas pelos programas sociais,
como o Bolsa Família; e medidas de preservação e promoção das manifestações cul-
turais quilombolas11. Como parceiro estratégico da SEPPIR, cabe ao MDS assegurar
às comunidades quilombolas o direito à segurança alimentar, assim como formular
e implementar, junto a essas comunidades, medidas de superação da pobreza.
Parte de um amplo esforço governamental e não-governamental destinado ao levan- Sobre o PBQ, recomenda-se a leitura
11
Período
nstituição
Pesquisa Descrição de
executora
realização
Mapeamento das comunidades
quilombolas contempladas com
Pesquisa de Avaliação
as ações estruturantes do Governo
das Ações Estruturantes Julho a
Federal e avaliação dos processos FEC /
das Comunidades novembro
de implementação dessas ações DATAUFF
Quilombolas – primeira de 2006
estabelecidas pelo Convênio n°
avaliação
006/2003, firmado entre o MDS e a
Fundação Cultural Palmares.
Realização de estimativa de
Chamada Nutricional de prevalência da desnutrição proteico- Janeiro
Crianças Quilombolas energética, de sobrepeso e do baixo de 2006 a
FAP
Menores de Cinco Anos peso ao nascer e identificação do março de
de Idade recebimento de benefícios sociais 2007
pelas famílias quilombolas.
Pesquisa de Avaliação Avaliação complementar das ações
das Ações Estruturantes estruturantes. Realizada nas 85 Julho a
FEC/
das Comunidades comunidades quilombolas que não outubro
DATAUFF
Quilombolas – segunda participaram da primeira avaliação. de 2008
avaliação
Avaliação, mapeamento e
georreferenciamento dos
equipamentos de assistência social
Avaliação Diagnóstica: Fevereiro
básica e os serviços assistenciais
acesso das comunidades de 2008 a FEC/
ofertados pelos diferentes níveis
quilombolas aos março de DATAUFF
de governo, ONGs e outras
programas do MDS 2009
instituições, além de verificar o
acesso das comunidades quilombolas
aos programas do MDS.
Fonte: SAGI/MDS.
Fçõ ÓC
O universo de estudo
Nesta seção, pretendemos apresentar as razões que nos levaram a optar por uma pes-
quisa junto às comunidades quilombolas tituladas. Para fins de esclarecimento, cabe
explicar brevemente o que significa ser uma “comunidade titulada” e quais os passos
para que isso ocorra13. O primeiro passo para o reconhecimento das comunidades
quilombolas é sua certificação junto à Fundação Cultural Palmares, que ocorre após
a criação de uma associação comunitária. Posteriormente, é aberto um processo pelo
INCRA ou pelos institutos estaduais de regularização fundiária que realizam estudos
da área requerida, visando à elaboração de um Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID). Quando finalizado e publicado o relatório, dá-se início a diversas
etapas que incluem período de recursos e publicação de portarias, finalizando com a
desintrusão e emissão de título de propriedade coletiva da terra. Esses processos são
bastante longos e poucos foram concluídos positivamente. Exemplo disso é o fato
de que existem, atualmente, mais de 1.500 comunidades certificadas no Brasil (de
acordo com dados da Fundação Cultural Palmares14), mas apenas pouco mais de 200
com título de posse coletiva da terra.
Considerando o número reduzido em comparação à quantidade total de comunida- Informação disponível no sítio eletrô-
`14
des existentes no país, foi possível realizar uma pesquisa censitária e não amostral. A nico da FCP, < http://www.palmares.
gov.br/?page_id=88>. Acesso em 15 de
possibilidade de conhecer a fundo cada uma das comunidades quilombolas tituladas setembro de 2014.
foi considerado um grande avanço para a efetivação de políticas públicas direcionadas 15
SANTOS, L. M P. et al., 2008.
Como parte desse questionário, foi preenchida uma ficha de equipamentos públicos,
utilizada para catalogar escolas, postos de saúde, sede de cooperativas, dentre outras
existentes nas comunidades, e contemplou as seguintes variáveis: tipo de equipamento
e condições, disponibilidade de uso e número de atendimento.
A mobilização dos atores pertinentes iniciou-se ainda em 2009 e envolveu três movi-
mentos: (i) articulação interna com as demais secretarias do MDS, (ii) envolvimento
de parceiros governamentais e (iii) não governamentais. Inicialmente, foi formado um
grupo de trabalho interno ao MDS com a participação de representantes de todas as
secretarias que compõem o Ministério (Secretaria Executiva, Secretaria Nacional de
Renda de Cidadania, Secretaria Nacional de Assistência Social e Secretaria Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional). A formação desse grupo visava coletar sub-
sídios e elencar os interesses das secretarias para construção da primeira versão do
instrumento de coleta de dados.
Finalizada essa primeira versão, a discussão foi ampliada, incluindo outros parceiros
governamentais potencialmente interessados na pesquisa, a saber: SEPPIR, MS,
INCRA e Fundação Cultural Palmares. A participação dos movimentos sociais re-
presentativos das comunidades foi realizada por duas grandes vias: discussão com a
diretiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (CONAQ) e realização de oficinas regionais. Na reunião realizada com
a CONAQ em janeiro de 2010 foi feita uma apresentação da metodologia e logística
e também dos instrumentos de coleta de dados. As sugestões e críticas feitas foram,
na medida do possível, incorporadas à pesquisa. Um maior detalhamento das oficinas
será apresentado na seção seguinte.
Ainda a fim de garantir a eficácia de um esforço de pesquisa tão grande e com intuito
de fomentar o protagonismo social das comunidades quilombolas, a SAGI, em parceria
com a SEPPIR, organizou oficinas técnicas regionais de apresentação da pesquisa,
com vistas à mobilização dos atores envolvidos com a pesquisa. Além disso, ao longo
da pesquisa, foram elaborados informes periódicos mensais indicando as atividades
realizadas naquele período. Tais informes circularam entre as equipes dos ministérios
envolvidos na pesquisa e também entre a coordenação da CONAQ.
As atividades das oficinas foram divididas em dois momentos: pela manhã, após a
mesa de abertura, foi feita, por algum representante do MDS, uma apresentação
geral da pesquisa, abrindo-se espaço para realização de debate e questionamentos
pelos participantes. Na parte da tarde, um representante da instituição contratada
para realizar a pesquisa (FEC/DataUFF) descreveu em detalhes a metodologia da
pesquisa, explicando como seria feita a abordagem das famílias e a coleta de dados
antropométricos. A exceção foi a oficina de Brasília, que ocorreu antes mesmo da
Diversos pontos foram levantados pelos participantes das oficinas, dentre eles, uma
preocupação generalizada quanto ao retorno das informações produzidas pela pesquisa.
Muitas lideranças relataram já terem participado de pesquisas anteriormente, cujos
resultados nunca lhes foram apresentados. Além disso, indicaram uma preocupação
no sentido de garantir que a pesquisa obedecesse às dinâmicas próprias de cada comu-
nidade, especialmente relacionadas ao calendário de colheitas, ao calendário escolar
e/ou festas tradicionais. Outra sugestão que surgiu nas oficinas, por parte de diversas
lideranças provenientes de comunidades que não possuem o título de posse coletiva
da terra e que participaram das oficinas foi a realização dessa mesma pesquisa nas
comunidades não tituladas.
Cçõ F
Certamente, a base de dados da própria pesquisa aqui tratada poderia também prover
referência empírica para outras tipologias de interesse analítico, para pesquisas de
natureza mais acadêmica – grau de vulnerabilidade das comunidades, por exemplo
– ou com foco mais aplicado para desenho de políticas e programas – agrupamento
segundo tempo de titulação, existência de ações estaduais e municipais para a popu-
lação quilombola, para citar alguns dos eixos possíveis.
Na região do Baixo Amazonas observa-se uma grande difusão das comunidades. Existe
apenas uma rodovia federal ao longo de todo o território e verifica-se também o afas-
tamento dos centros urbanos, sendo um território de grande isolamento geopolítico.
Cabe ressaltar que a qualidade das variáveis apresentadas a seguir deve passar por um
escrutínio mais acurado em relação às especificidades culturais das comunidades, de
modo a evitar uma descontextualização por meio de análises precipitadas sobre os
modos de vida dessas populações.
A água encanada alcança 44,2% dos domicílios quilombolas. Ressalta-se o baixo ín-
dice no Norte Maranhense (18,8%) e no Norte Semiárido (36,2%). Cabe notar que,
apesar desse baixo indicador, a região do semiárido está amplamente amparada pelas
cisternas do programa Água para Todos.
O acesso à rede pública coletora de esgoto ainda é muito precário entre as comuni-
dades quilombolas, encontrando-se somente em 0,8% das residências pesquisadas.
Mesmo na região Centro Sul, cujas comunidades encontram-se mais próximas às
regiões metropolitanas, a rede pública de esgoto atende somente a 8,1% dos domicílios.
Ainda há uma média elevada no uso da vala e escoamento em céu aberto (42,4%) e
de fossas rudimentares (40,2%), em especial na região do Baixo Amazonas, onde as
fossas são utilizadas por 87,9% das residências.
REGES
ARES Baixo Nordeste Norte Centro
Norte Maranhense Semiárido Total
Amazonas Paraense Semiárido Sul
Material utilizado no piso da casa
Terra batida 21,4% 11,6% 52,7% 15,4% 33,0% 21,7% 22,5%
Madeira aparelhada 39,9% 43,3% 0,7% - 0,1% 2,0% 23,1%
Madeira aproveitada 2,2% 3,4% 0,2% - 0,1% 1,2% 1,8%
Cimentou ou concreto 30,8% 31,3% 44,8% 80,8% 51,8% 53,2% 42,7%
Cerâmica, lajota ou ardósia 5,7% 10,2% 1,5% 3,8% 15,0% 21,4% 9,7%
Carpete - 0,1% - - 0,1% 0,2% 0,0%
Outro material - 0,2% 0,1% 0,1% 0,1% 0,3% 0,1%
Possui água encanada
Sim 46,1% 40,9% 18,8% 36,2% 61,3% 66,8% 44,2%
Rede de esgoto
Rede pública coletora de esgoto ou pluvial 0,3% 0,3% 0,1% 0,2% 0,3% 8,1% 0,8%
Fossa séptica ligada à rede coletora de esgoto ou
0,3% 1,1% 0,9% 0,6% 4,3% 5,1% 1,8%
pluvial
Fossa séptica não ligada à rede coletora de esgoto
1,8% 6,4% 7,1% 22,9% 24,6% 26,6% 12,2%
41
Óleo, querosene ou gás de botijão 27,6% 13,0% 2,9% 4,0% 21,0% 4,8% 13,7%
Outra 2,3% 1,5% 0,9% 3,3% 0,8% 1,4% 1,6%
Não tem 1,1% 1,7% 0,9% 4,8% 6,8% 4,1% 2,9%
O lixo da casa é:
Coletado diretamente 0,3% 6,1% 0,2% 27,5% 20,7% 38,8% 11,7%
Coletado indiretamente 3,5% 0,8% 0,7% 1,5% 0,5% 3,5% 1,3%
Queimado ou enterrado na propriedade 93,9% 88,6% 55,7% 34,8% 74,0% 52,8% 75,2%
Jogado em terreno baldio ou logradouro 1,2% 3,9% 42,7% 35,9% 4,3% 3,5% 11,1%
Jogado em rio, lago ou mar 1,1% 0,6% 0,8% 0,4% 0,4% 1,4% 0,7%
Em relação à escolaridade, há um alto índice de incompletude do ensino fundamental
do chefe de família, com uma média uniforme entre as regiões de 84,3%. No Norte
Semiárido e no Centro Sul encontram-se os maiores percentuais de chefes de família
com o ensino médio completo (11,4% e 13,4%).
Escolaridade REGES
do Baixo Nordeste Norte Norte Centro
entrevistado Semiárido Total
Amazonas Paraense Maranhense Semiárido Sul
Fundamental
(1º grau) 85,5% 84,1% 88,8% 79,4% 87,3% 75,1% 84,3%
incompleto
Fundamental
(1º grau) 4,6% 3,3% 4,5% 3,3% 3,7% 6,2% 3,9%
completo
Ensino médio
(2º grau) 4,8% 4,6% 2,8% 5,8% 2,6% 5,3% 4,2%
incompleto
Ensino médio
ou (2º grau) 5,1% 8,0% 3,8% 11,4% 6,4% 13,4% 7,6%
completo
REGES
Está
trabalhando? Baixo Nordeste Norte Norte Centro
Semiárido Total
Amazonas Paraense Maranhense Semiárido Sul
Sim 81,1% 38,0% 67,7% 65,5% 17,8% 57,5% 47,0%
Não, estou
2,1% 5,3% 2,7% 3,3% 11,0% 4,9% 5,4%
procurando
Inativo puro 8,5% 39,1% 12,2% 16,8% 58,8% 20,4% 32,4%
Inativo
7,9% 16,8% 17,0% 13,2% 11,9% 16,4% 14,4%
aposentado
NS/NR 0,4% 0,8% 0,5% 1,2% 0,6% 0,8% 0,7%
REGES (% sim)
ARES Baixo Nordeste Norte Norte Centro
Semiárido Total
Amazonas Paraense Maranhense Semiárido Sul
Aconteceu de
algum adulto
da casa ficar o
dia inteiro sem
86,3% 62,7% 58,9% 34,9% 33,8% 24,2% 55,6%
comer só uma
vez no dia porque
não tinha comida
em casa
Aconteceu de
as crianças ou
adolescentes
ficarem o dia
inteiro sem 79,1% 43,0% 45,7% 31,7% 15,9% 18,0% 41,1%
comer ou comer
só uma vez
porque não tinha
comida em casa
Os refrigerantes, que possuem um alto índice de açúcar e não são recomendados para
ingestão, principalmente do público de crianças e jovens, estão muito presentes nas
REGES (% sim)
ARES Baixo Nordeste Norte Norte Centro
Semiárido Total
Amazonas Paraense Maranhense Semiárido Sul
Na última semana
havia disponível
para consumo na 88,7% 83,9% 95,4% 97,2% 96,7% 99,1% 90,5%
casa arroz / farinha
de arroz
Na última semana
havia disponível
para consumo na
casa carne de vaca, 60,5% 72,3% 81,0% 74,9% 64,7% 90,6% 72,0%
bode, cabra, porco,
frango, galinha,
pato ou peru
Na última semana
havia disponível
para consumo
na casa verduras 40,5% 33,1% 57,2% 39,4% 27,6% 60,4% 38,3%
(alface, couve,
rúcula, almeirão,
etc.)
Na última semana
havia disponível
para consumo
na casa legumes 25,9% 35,5% 41,3% 36,2% 32,5% 56,9% 36,0%
(vagem, cenoura,
beterraba, rabanete,
berinjela, etc.)
Na última semana
havia disponível
para consumo na 38,0% 41,1% 60,8% 44,2% 43,2% 55,5% 44,6%
casa refrigerantes
ou suco em pó
Estado
nutricional da REGES
criança baseado
no MC para Baixo Nordeste Norte Norte Centro
Semiárido Total
idade Amazonas Paraense Maranhense Semiárido Sul
Déficit estatural
1,0% 2,9% 1,2% 5,9% 2,2% 1,3% 2,4%
(< -2)
Eutrofia
74,3% 72,7% 79,9% 72,4% 78,2% 66,0% 74,4%
(-2 a +1)
Sobrepeso
23,5% 22,9% 18,7% 20,9% 18,8% 28,8% 21,9%
(+1 a +3)
Obesidade
1,2% 1,6% 0,2% 0,9% 0,8% 3,9% 1,3%
(> =3)
Estado REGES
nutricional
da mãe Baixo Nordeste Norte Norte Centro
baseado no Amazonas Paraense Semiárido Total
Maranhense Semiárido Sul
MC
Baixo peso 1,9% 3,4% 7,3% 3,4% 5,4% 6,3% 3,9%
Eutrófico 63,6% 58,7% 59,7% 55,0% 53,0% 38,4% 57,6%
Sobrepeso 25,9% 26,8% 19,8% 24,1% 28,0% 31,4% 26,2%
Obesidade 8,5% 11,0% 13,2% 17,5% 13,7% 23,9% 12,3%
O baixo peso ao nascer – BPN (abaixo de 2.500 gramas) é um indicador que reflete
a morbidade materna desfavorável durante o desenvolvimento do feto, podendo
refletir sua baixa condição socioeconômica e a falta de acesso a bens e serviços. Uma
melhor nutrição materna é um dos fatores que pode prevenir o baixo peso da criança
em seu nascimento. O baixo peso no nascimento aumenta a chance de desfechos
desfavoráveis na saúde do recém-nascido.
No presente estudo foi encontrada uma média de 9,8% de BPN nas comunidades
estudadas, chegando a 13,3% no Norte Maranhense. O Brasil apresentou 8,5% de
BPN no ano de 2011. (tabela 10).
Peso ao
REGIÕES
Nascer
Baixo Nordeste Maranhense Norte Semiárido Centro Total
Amazonas Paraense Semiárido Sul
Baixo 7,9% 9,0% 13,3% 8,2% 12,1% 8,3% 9,8%
Peso ao
Nascer
(< 2,4Kg)
Normal 92,1% 91,0% 86,7% 91,8% 87,9% 91,7% 90,2%
(>2,5Kg)
O aleitamento materno exclusivo até os seis meses de vida está associado às boas
condições gerais de saúde e nutrição das crianças e potencial resistência a infecções
ao longo da vida. A frequência encontrada para a média dos grupos não chegou à
metade das crianças aleitadas exclusivamente ao peito (48,5%). A menor frequência
foi encontrada no Semiárido (38,6%) e a maior no Centro Sul (55,6%), região que
pode ser considerada a de maior acesso à informação por meio dos serviços de saúde
por estar menos isolada geograficamente (tabela 11).
REGIÕES
VARIÁVEIS Baixo Nordeste Norte Norte Centro
Semiárido Total
Amazonas Paraense Maranhense Semiárido Sul
Aleitamento
materno 40,5% 53,8% 51,2% 52,0% 38,6% 55,6% 48,5%
exclusivo
Aleitamento
materno
indepen-
dentemente
97,3% 98,1% 97,6% 96,0% 94,7% 88,9% 96,8%
de qualquer
outro
alimento
ou líquido
O Programa Bolsa Família é recebido por grande parte das famílias quilombolas
avaliadas, com média em torno de 60%. No entanto, o Norte Semiárido possui co-
bertura muito abaixo dos demais grupos, no qual somente 39,4% das famílias têm
acesso ao benefício.
REGES (% sim)
ARES Baixo Nordeste Norte Norte
Semiárido Centro Sul Total
Amazonas Paraense Maranhense Semiárido
A família recebe a visita frequente do agente comunitário
75,2% 69,8% 66,3% 81,2% 87,0% 75,0% 74,6%
de saúde
Um maior acesso destas comunidades a estes programas, que aumentam e/ou viabi-
lizam a produção agrícola, pode vir a fortalecer a agricultura familiar destes grupos,
resultando na melhora da renda e da alimentação das famílias.
REGIÕES (% sim)
VARIÁVEIS Baixo Nordeste Norte Norte Centro
Semiárido Total
Amazonas Paraense Maranhense Semiárido Sul
Algum morador
da casa recebe: 5,4% 4,6% 5,2% 5,7% 7,5% 10,2% 5,8%
PRONAF
Algum morador
da casa recebe: 0,1% 0,4% 0,7% 27,8% 6,1% 0,5% 4,0%
Garantia-safra
Algum morador da
casa recebe Segura
0,2% 0,2% 0,3% 0,7% 0,8% 0,2% 0,4%
da Agricultura
Familiar
Algum morador
da casa recebe:
apoio da Assistência 0,8% 0,8% 1,0% 1,7% 2,2% 2,7% 1,3%
Técnica e Extensão
Rural - ATER
Algum morador
da casa vende: leite 0,2% 0,0% 0,2% 0,2% 0,7% 0,2% 0,2%
para o PAA-Leite
çã 1
Mestre em Antropologia pela Univer-
sidade Federal de Pernambuco (UFPE),
coordenadora de pesquisas no DataUFF
A descrição que se segue é baseada nos depoimentos dos pesquisadores e membros e coordenadora do trabalho de campo
das comunidades quilombolas registrados nos diários de campo dos coordenadores da nos estado do Pará (Óbidos e Oriximiná)
e Pernambuco.
pesquisa, num vídeo-documentário do trabalho de campo produzido pelos membros 2
Sociólogo e advogado, coordenador
da equipe que atuou em Obidos e Oriximiná (PA). E, ainda, em dados levantados de pesquisas, advogado do DataUFF e
por meio de um grupo focal realizado com pesquisadores que atuaram nas regiões coordenador responsável pelo trabalho
de campo nos estados do Maranhão,
Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste e Norte. Mato Grosso e no município de Paraty
- Rio de Janeiro.
O grupo focal foi realizado no município de Moju, estado do Pará, no dia 06 de agosto 3
Nutricionista. Mestranda em Política So-
de 2011 e contou com a participação de oito pesquisadores: uma antropometrista, cial da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Antropometrista da pesquisa nos
que atuou nos estados da Bahia, Sergipe e Pará, dois pesquisadores que atuaram no estados da Bahia, Sergipe e Pará.
Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do 4
Doutora em Avaliação de Política Social
Sul e Pará, dois pesquisadores que atuaram na Bahia e no Pará, dois pesquisadores pela UFF. Coordenadora do DataUFF e
coordenadora do trabalho de campo nos
que atuaram no Rio de Janeiro e no Pará (municípios de Obidos e Oriximiná) e uma estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe,
coordenadora de campo que atuou no Pará (Obidos e Oriximiná) e Pernambuco, que Goiás, Mato Grosso do Sul e Pará (muni-
cípios de Abaetetuba, Moju, Mocajuba,
acompanhou o primeiro trabalho de campo, realizado no Rio de Janeiro. A reunião Baião, Bagre, Oieras do Pará e Cametá) e
deste grupo diversificado possibilitou identificar um conjunto de situações distintas no município de Quatis – Rio de Janeiro.
Metodologia da pesquisa
Cçã PêC
Após o manuseio prático dos equipamentos que seriam usados na pesquisa, os mul-
tiplicadores participaram de uma atividade prática, numa creche de Niterói, para
realizar a avaliação antropométrica de crianças na faixa etária da pesquisa e em mu-
lheres adultas5. Essa atividade foi conduzida por uma das professoras que realizava a
avaliação das duas antropometristas que iriam participar imediatamente da coleta de
dados em Quatis e em São Paulo e foi acompanhada pelos multiplicadores.
Depois da visita à creche, foi realizada uma avaliação geral do treinamento no Da-
taUFF. Nela, a última atividade consistiu na discussão das modificações a serem
implementadas no Manual do Entrevistador. Isso foi feito na presença de todos os
pesquisadores, coordenadores da pesquisa e coordenadores de equipes. As modifica-
ções foram aprovadas pela representante da SAGI/MDS, constituindo, desta forma,
o Manual do Entrevistador a ser usado ao longo da pesquisa.
Abordar a logística de campo numa pesquisa com essa amplitude é um desafio tanto
pela dificuldade de acesso às comunidades, como pela localização dos domicílios.
No caso das comunidades ribeirinhas do Pará, por causa do excesso de chuvas du-
rante parte do trabalho de campo, ficava comprometido o acesso às casas localizadas
em regiões com acidentes geográficos ou bastante distantes de suas sedes (no meio
da mata fechada, por exemplo). Nesse sentido, só foi possível chegar até essas casas
por meios alternativos, como os barcos (ou rabetas, como são denominadas pelos
ribeirinhos), que levavam os pesquisadores até um trecho da comunidade e o restante
do caminho era feito a pé.
5
O mesmo procedimento foi adotado
para o treinamento dos demais antro-
pometristas, que atuaram em outros Podemos citar como exemplo algumas localidades situadas entre o Rio Tocantins
estados. e a Rodovia Transcametá, no Pará. À primeira vista, o acesso às comunidades de
No Maranhão, essa situação também foi enfrentada com bastante frequência. Isso
obrigava os pesquisadores a percorrer muitos quilômetros a pé na lama, o que era muito
complicado por causa do volume de materiais – estadiômetro, régua antropométrica,
balança – e instrumentos utilizados para coleta das medidas peso e altura – ques-
tionários, GPS e outros acessórios necessários à execução do trabalho. Em situação
extrema, na qual a equipe não conseguiu chegar nem a pé, foi necessário retornar ao
local em momento posterior, ao final do período de chuvas na região e também da
data prevista para o término da coleta dos dados.
Para cobrir essa região, o planejamento das ações de infraestrutura necessária à exe-
cução da coleta de dados teve de ser feito com muita precisão, tais como: provisão
de alimentos, combustível, água, medicamentos etc., visto que não seria possível
retornar à terra antes do término do trabalho. Todo esse aparato foi fundamental para
a conclusão dos serviços a serem executados.
Onde se pôde contar com o deslocamento terrestre, cabe ressaltar que as estradas
estavam em péssimas condições (falta de asfalto, sinalização e muitos buracos). Per-
As comunidades de Pau d’Arco, Parateca e Rio das Rãs, na Bahia, são exemplos de
tal situação. A estrada que liga as comunidades ao município de Bom Jesus da Lapa
é conhecida como “asfalto novo”, no entanto pouco asfalto tem. Seria impossível
trafegar nessa estrada se não fosse por um veículo com tração ou que seja preparado
para estradas muito acidentadas. O trabalho de campo, nessas comunidades, se es-
tendeu por mais de um mês. Devido às condições de acomodação muito precárias, a
coordenação fez um revezamento na equipe, ou seja, em dias alternados levava uma
parte da equipe para dormir e tirar folga no município para que pudessem se alimentar
de acordo com seus costumes e dormir em hotéis.
De forma geral, o trabalho dentro das comunidades se deu da seguinte forma: as li-
deranças foram convidadas para participar de oficinas realizadas previamente, com a
participação de todos os órgãos envolvidos nesse processo de contratação e execução
da pesquisa.
Antes de a equipe partir para a comunidade, era feito o agendamento telefônico por
um profissional da contratada que comunicava à liderança a data do início do trabalho,
consultando a disponibilidade em receber os pesquisadores em datas definidas nos
cronogramas apresentados previamente à contratante. Nesse sentido, ao chegar à
comunidade, as famílias já estavam previamente avisadas.
Contudo a estrutura das casas não preenchia tais requisitos. A maioria era feita de adobe
ou taipa e os terrenos eram de terra batida, o que dificultava até mesmo a fixação dos
instrumentos. Desse modo, em algumas situações foi improvisada uma estrutura de
madeira para planificar o terreno e as paredes das casas. Cabe salientar que nas áreas
de difícil acesso, em que os antropometristas percorriam por horas dentro da mata,
em locais com lama ou de terrenos acidentados, a inclusão de mais um instrumento
para transportar gerava muito desconforto e desgaste físico, considerando que já se
deslocavam carregando a balança e o infantômetro de madeira.
Nas casas onde havia banheiro construído por programas sociais, o trabalho tornou-
-se mais fácil à medida que eram de alvenaria, portanto planos. Como já ressaltado
anteriormente, a logística de acesso aos domicílios e aos entrevistados foi mediada
pelos líderes comunitários e ACS. Eles atuaram como “facilitadores” no trabalho de
campo, sem o apoio dos quais sua conclusão seria impossível, principalmente por
tratar-se de um censo.
Os territórios são muito diversificados e contam com áreas gigantescas. Por exemplo,
o Sítio Histórico Kalunga é um território tão amplo e diversificado que a própria
comunidade desconhece o acesso a determinadas áreas. Isso muitas vezes custou dias
de trabalho a mais, além do desgaste físico dos pesquisadores, que ficaram expostos a
situações de risco iminente por estar trafegando em estradas constituídas em penhascos
sem asfalto (estradas de chão). Em outros casos, os pesquisadores percorriam matas
densas ou ficavam horas expostos ao sol para localizar apenas um ou dois domicílios.
Somente com a ajuda dos moradores foi possível identificar todas as casas. Sendo
assim, muitas vezes a liderança percorria o território junto da equipe, ou, quando
não podia, indicava a pessoa que considerava ser mais adequada. O trabalho dos ACS
foi muito importante para tranquilizar as famílias em relação ao procedimento de
coleta das medidas antropométricas, já que ocorriam casos de pessoas ficarem apre-
ensivas em participar da pesquisa. Esses profissionais foram envolvidos no trabalho
justamente para ajudar a estabelecer o contato inicial com as famílias e, além disso,
auxiliar o antropometrista, principalmente com bebês, que demandavam tratamento
diferenciado para que fosse possível executar esta etapa do trabalho.
Esse aspecto foi muito relevante na medida em que alguns territórios, nos quais havia
conflitos internos entre grupos sociais, muitas famílias poderiam não ser incluídas ou
identificadas, já que não era de interesse dos grupos dominantes nas comunidades.
Como exemplo, destaca-se o caso de uma comunidade no Pará onde a religião era
um elemento de tensão que dividia a população em dois grupos, como narrado no
seguinte relato do líder da comunidade:
Estes crentes queimaram nossa igreja, nós fomos lá e construímos outra e eles quei-
maram de novo, depois que veio a política para quilombolas e eles querem que a gente
reconheça que eles fazem parte da nossa gente, mas mesmo a gente convidando para
discutir com a gente os problemas da comunidade, eles estão sempre lutando contra
nosso povo, como é que eu vou dizer que a área deles é quilombola também?
(Líder comunitário)
Em outros locais a disputa pelo poder entre as lideranças trouxe muita dificuldade.
Devido a essa tensão, uma das lideranças (muitas vezes líder do que eles chamam de
“associação mãe”) não permitia a execução da pesquisa em áreas de influência de outras
lideranças, com o objetivo de omitir, assim, a existência de moradores em determina-
das localidades. Isso ocorre pelo temor às críticas que poderiam surgir nos relatos dos
moradores para os pesquisadores. Nesse caso, foi necessário recorrer às informações
dadas pelos próprios moradores, assim como pelos agentes comunitários sobre todas
as casas que estariam dentro da comunidade. Desse modo, os pesquisadores puderam
visitar todos os domicílios e fazer as perguntas sobre o autorreconhecimento de ser
quilombola, assim como a casa está localizada no território titulado.
Ninguém queria ser preto, mas agora que vê que as coisas estão melhorando querem
fingir que aceitam e voltam a morar na comunidade. Se depender de mim eu não aceito
isso. Eles podem até morar aí, mas eu não reconheço como quilombola porque nós
lutamos para conseguir o que temos.
(Liderança quilombola)
Este último comentário se deu após a pergunta sobre o número de famílias existentes
no território. A resposta buscou evidenciar que muitos querem ir morar na comu-
nidade depois que perceberam as conquistas adquiridas pelos quilombolas, mesmo
que no início desse processo negassem sua origem por não aceitar serem vinculados
à história da escravatura no Brasil.
Neste tópico chamamos a atenção para o ponto mais alto do grupo focal realizado
com os pesquisadores. Todas as situações de enfrentamento para acesso ao território
e domicílios perpassam as discussões já feitas neste relato de experiência. No entanto,
o elemento mais importante foi o legado que trabalhos assim oferecem a quem atua
como pesquisador de campo.
A vivência dos pesquisadores se tornou mais rica quando, em territórios cujo acesso
era mais complexo, havia a necessidade de permanecer nas comunidades. Nesses
casos, pesquisadores e coordenadores de equipe dormiam nas casas, se alimentavam
e compartilhavam momentos de intimidade com as famílias que os recebiam. Desse
modo, a convivência com os quilombolas permitiu aos pesquisadores se aproximar
e compreender um pouco da cultura desse povo, considerando ainda as diferenças
entre as comunidades dos estados estudados.
Para os coordenadores de equipe isso foi muito importante para observar situações
vivenciadas pelas comunidades. Em pesquisas quantitativas, não são apreendidas pelos
instrumentos de coleta, embora forneçam elementos muito importantes para a discussão
de políticas públicas direcionadas às comunidades tradicionais. Os relatos feitos pelos
pesquisadores trazem uma riqueza muito grande de informações, sobretudo dentro do
campo da segurança alimentar, foco desta pesquisa. Em um dos relatos foi possível iden-
tificar a necessidade de desenhos qualitativos-quantitativos para se acercar do fenômeno.
Antigamente era tanta qualidade de peixe neste rio, dona, e hoje depois da construção
desta usina hidrelétrica, nós estamos cada vez mais sem ter esta variedade. Aqui a gente
dava peixe para quem viesse, agora tem que cobrar por um peixinho magro que a gente
consegue, porque é o que a gente tem para oferecer e também é oportunidade de ganhar
um dinheirinho.
(Fala de morador da comunidade localizada no município de Baião)
A questão das condições de higiene das famílias e a utilização de água não tratada para
o preparo dos alimentos ou mesmo para o próprio consumo, tão comentado pelos
pesquisadores, revelam dimensões vivenciadas em campo e que devem ser tratadas
de forma diferenciada dentro da discussão sobre segurança alimentar e nutricional.
Eles lavam os alimentos na água do rio, onde os bichos e eles mesmos nadam e fazem suas
necessidades. É difícil para a gente trabalhar neste sol quente e na hora de se alimentar
não ter apetite pela falta de higiene com que a comida foi preparada. Mais difícil ainda
a gente saber que para eles isto não é uma preocupação, eles nem entendem o quanto
isto pode prejudicar a saúde, principalmente das crianças que ficam ali nuas na beirada
do rio brincando com os bichos e nadando naquela água.
(Pesquisador que atuou no Pará)
Por fim, ao questionar os participantes do grupo focal sobre qual a percepção deles
acerca do trabalho, foi possível identificar alguns elementos importantes. Inicialmente,
a dimensão humana foi muito valorizada como traço presente no diálogo com a cultura
quilombola, o que, segundo os pesquisadores, serviu como ponto de reflexão sobre
suas vidas e o aprendizado sobre outras realidades presentes no território nacional,
sendo estas inimagináveis. De modo que, para quem nunca pisou nos territórios de
comunidades tradicionais, este foi o elemento mais marcante.
Eles são muito humildes e esta gente emociona pela forma como nos recebem, isto fez
com que eu pensasse como a vida na cidade é dura. A gente não pode contar com as
pessoas como eles contam com as pessoas da própria comunidade.
(Pesquisador)
Para mim foi um momento de muita reflexão e vivência de experiências que eu jamais
imaginei. Os lugares são muito bonitos e selvagens e isto faz a gente experimentar sen-
sações das mais variadas, que vai desde o medo de contrair uma doença, ser atacado por
um bicho, e até a emoção de ver a simplicidade, alegria e a cultura que eles têm, que
permite que mesmo com muito pouco estudo passar outros ensinamentos para nós que
viemos de um mundo tão diferente.
(Pesquisador)
Cada membro das famílias foi classificado de acordo com sua condição de pobreza
extrema. Criaram-se as variáveis categóricas como desfecho principal para a análise
estatística: extrema pobreza e fora da extrema pobreza.
Extrema pobreza: essa variável foi construída a partir do dado da renda per capita
mensal (renda domiciliar mensal total, considerando inclusive a renda oriunda do
Programa Bolsa Família, dividida pelo número de moradores). Quando essa renda
per capita foi menor do que o valor de 70 reais, os quilombolas foram categorizados
na condição da extrema pobreza.
Fora da extrema pobreza: essa categoria foi formulada para aqueles que tiveram renda
per capita mensal superior a 70 reais.
Análise estatística
Para avaliar a associação entre as variáveis consideradas foi aplicado o teste do qui-
-quadrado, considerando significativo quando p < 0,05.
Cã
A renda tem sido usada como um marcador importante nas políticas públicas bra-
sileiras para definir o estado de pobreza e da pobreza extrema. No entanto, sabe-se
que, para além da renda, a questão da pobreza e das desigualdades passa por resolução
multidimensional que resulte em um cenário de maior possibilidade de se redistribuir
serviços de infraestrutura (esgotamento sanitário, acesso à água, pavimentação de vias
públicas entre outros) e outros serviços (transporte coletivo, segurança pública e ou-
tros) e melhores acessos aos direitos sociais como o da educação, saúde e alimentação.6 6
SEN, 2000.
De uma forma geral, o PBF vem contribuindo para a elevação da renda da maioria
da população mais pobre.10 Conforme pode ser observado na Tabela 2, entre os qui-
lombolas que vivem em terras tituladas no Brasil, a transferência de renda do PBF
foi capaz de aumentar em aproximadamente 100% a renda média per capita dos
indivíduos considerados em extrema pobreza. No entanto, essa renda média com
o Programa Bolsa Família atingiu o patamar dos R$ 33,00, ou seja, quase a metade
inferior à linha de pobreza extrema.
9
NÓVOA, 2012; BURLANDY, 2011. níveis de vida e de seu funcionamento. Nesta concepção, a dimensão das capacidades
10
SENNA et al., 2007. individuais pressupõe condição adicional ao combate à escassez de renda para o alcance
11
SEN, 2000. do desenvolvimento humano, que possam proporcionar autonomia e protagonismo
Cerca de 22% dos indivíduos em extrema pobreza vivem em domicílios sem ilumi-
nação elétrica ou são iluminados por outras fontes (ex. óleo, querosene). Esse percen-
tual é significativamente maior (p=0,01) do que o relativo aos que vivem fora dessa
condição de pobreza. Ainda, 89% de indivíduos na extrema pobreza vivem em casas
que utilizam madeira, óleo ou outros combustíveis para cozinhar, fator limitante da
liberdade individual e da qualidade de vida, principalmente das mulheres quilombolas.
Outro dado bem preocupante em relação aos quilombolas brasileiros e com terras
tituladas é a precária situação do tratamento de água. Quase a totalidade da população 15
ZAGATT, 2011.
em extrema pobreza e fora dela vive em domicílios não vinculados a sistema público de 16
SEN, 2000.
Ainda encontramos 70% (<0,01) dos domicílios extremamente pobres com presença
de mais de cinco moradores, o que representa uma situação de maior agravo relacio-
nado à distribuição dos itens necessários para a sobrevivência, bem-estar e qualidade
de vida. O maior número de moradores nesses domicílios pode trazer uma provável
diluição da disponibilidade dos alimentos e, portanto, maior vulnerabilidade quanto
ao acesso e consumo dos mesmos para garantir uma condição plena de Segurança
Alimentar e Nutricional.
ficiente devendo ser realizado com base em um sistema alimentar que respeite o meio 18
LOSAN, 2006.
dutivo para a superação da condição da pobreza por essas populações. Sabe-se ainda 26
FROZI, 2010
Fora de pobreza
Pobreza extrema Valor
extrema
Acesso a programas de governo federal n =13405 de p
n = 15886
% %
Programa Saúde da Família com visita do
74 72 <0,01
agente comunitário
Programa Saúde da Família com visita da
29 27 <0,01
equipe de saúde
Cadastro Único do Governo Federal 70 87 0,00
Cisterna com captação da água da chuva
5 6 <0,01
pelo telhado
Cestas de Alimentos (não integrada ao
30 30 0,84
salário)
Leite Fome Zero – PAA Leite 4,8 5,4 0,01
Programas ou serviços do Centro de
10 10 0,76
Referência de Assistência Social (CRAS)
Programa Minha Casa Minha Vida ou
16 16 0,83
outros programas habitacionais
Programa Bolsa Família 63 82 0,00
Distância entre o lugar onde mora até
o local que costuma fazer o saque do 0,00
Programa Bolsa Família
Até 10 km 7 6
De 10,1 até 20 km 15 13
De 20,1 até 50 km 26 24
De 50,1 a 100 km 25 25
Acima de 100 km 3 3
Quanto ao Programa Bolsa Família, 82% dos extremamente pobres recebem o be-
nefício. Contudo precisam se deslocar uma grande distância para sacá-lo, chegando
a um percentual de 25% dos extremamente pobres que chegam a percorrer uma
distância de 50 a 100 km e cerca de 24%, entre 20 a 50 km para receber seu benefício.
A longa distância pode ser um dos fatores que agrava a precariedade de qualidade
de vida e de insegurança alimentar, pois pode custar caro e representar processos de
endividamento temporário que comprometem parte da renda com o deslocamento
até os locais de saque do benefício do Programa Bolsa Família.
Cçõ F
Ainda foi verificado que a condição da pobreza extrema esteve associada à baixa qua-
lidade dos alimentos disponíveis nos domicílios e, ao mesmo tempo, ao quadro de
maior agravo de insegurança alimentar grave. Ainda assim, as famílias extremamente
pobres têm uma produção de alimentos que favorece a disponibilidade de alguns dos
alimentos básicos.
O redesenho das polícias deve se dar com o protagonismo dessa população, por apre-
sentar uma história social de resistência até os dias atuais, apesar da condição dada
pelos rendimentos exíguos que a colocam, hoje, em situação de extrema pobreza.
Ao mesmo tempo, o Estado precisa valer de suas atribuições e garantir vida digna e
plena para todos os quilombolas, a saber, com maior qualidade de vida e bem-estar
físico, assim como melhores condições de acesso e qualidade dos serviços de saúde,
educação e alimentação adequada às tradições culturais e às necessidades nutricionais.
Distribuição de renda e de bens e serviços públicos para as comunidades quilombo-
las imprime a necessidade de se inovar os formatos e desenhos das atuais políticas
vigentes no campo da Segurança Alimentar e Nutricional e também das relacionadas
ao enfrentamento da pobreza extrema.
CHILTON, M, BOOTH, S. Hunger of the body and hunger of the mind: African
American women’s perceptions of food insecurity, health and violence. Journal of
utritional Education Behaviorism, v. 39, n. 3, p.116-25, 2007.
DREWNOWSKI, A, Specter SE. Poverty and obesity: the role of energy density and
energy costs. Am J Clin utr, n. 79, p. 6-16, 2004.
Este artigo propõe uma análise sob a perspectiva de gênero dos resultados da pesquisa
de Avaliação da situação de segurança alimentar e nutricional em comunidades quilombolas ti-
tuladas. O objetivo é fazer uma leitura focada em aspectos significativos da pesquisa:
(1) perfil sociodemográfico dos moradores; (2) acesso a políticas e programas sociais;
(3) trabalho e rendimento dos moradores; e (4) perfil das lideranças. O texto articula
a dimensão quantitativa e qualitativa dos novos dados proporcionados pela pesquisa,
contextualizando-os no quadro mais amplo da realidade das comunidades quilom-
bolas e do marco teórico dos estudos de gênero atuais. Presta-se especial atenção aos
aspectos discursivos que tanto os próprios questionários quanto as respostas permitem
analisar. Em conclusão, os resultados obtidos na pesquisa, à luz do olhar de gênero,
são extremamente úteis para o aprimoramento da intersetorialidade e integralidade
das atuais políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional2.
çã
de raça, sem esquecer a geração,9 a partir da leitura e interpretação dos dados gerados 7
VEJA, ano 43, nº 18, de 05/05/2010.
pela pesquisa e sua relação com o tema central da segurança alimentar e nutricional. 8
SBPC, 2010. Ver: <http://www.jornal-
Neste aspecto, é preciso detalhar a importância da ligação entre a situação das mulheres daciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=70790>
e também Dossiê Imprensa Antiquilom-
quilombolas e a segurança alimentar e nutricional. Este ponto será problematizado bola, http://www.koinonia.org.br/oq/
quanto à discussão sobre o tratamento das mulheres em si mesmas ou como “ins- dossie_antiquilombola.asp
trumentos para”, isto é, em função dos filhos, da família, da comunidade etc., o que 9
É importante ter presente na análise o
conceito de intersecionalidade, denido
tem tido seu reflexo nas políticas públicas para as mulheres.10 As atuais propostas de como “conceituação do problema que
políticas públicas para mulheres situam-se na superação dessa situação em favor da busca capturar as consequências estru-
sua autonomia e do desenvolvimento das suas capacidades.11 turais e dinâmicas das interações entre
dois ou mais eixos de subordinação”
(CREENSHAW, 2002, p.176), no sentido
É importante levar em consideração que esta não é uma pesquisa de gênero, no de que para compreender a problemática
das mulheres quilombolas devem ser
sentido de que não é esse o foco, nem de uma estatística de gênero, como sintetiza considerados todos aqueles fatores que
claramente Perucci: podem atuar para manter situações de
desigualdade, como são as múltiplas
formas de descriminação pelo fato de se-
“A transversalização da perspectiva de gênero nas estatísticas envolve a inclusão dos rem mulheres, negras e jovens ou idosas.
temas e problemas de gênero em toda a produção das estatísticas oficiais. Isto implica 10
NUSSBAUM, 2002, p.28.
11
IPEA, 2012, p.398 e ss.
Nesse sentido, é importante salientar que esta pesquisa não é um caso isolado, mas
forma parte da realidade do campo das estatísticas não apenas no Brasil, onde, todavia,
são significativos os esforços realizados e avanços alcançados em relação aos indicadores
de gênero,13 como vem ocorrendo no âmbito global, de acordo com a própria Perucci:
2008.
16
Outros temas, como direitos sexuais
e reprodutivos ou a violência contra as
mulheres, ficarão de fora do escopo O referencial teórico compreende fundamentalmente um ponto de partida afim às
deste trabalho porque as perguntas dos
questionários nas diferentes áreas temá-
linhas de pesquisa introduzidas pelo feminismo radical,17 que incorporam em seus
ticas não permitem a devida abordagem trabalhos a importância do discurso, como também as introduzidas pelas pesquisa-
analítica.
doras do pós-estruturalismo, especificamente desde a arqueologia do gênero.18 Isto
SARDEMBERG, 2004; FLAX, 1991. numa perspectiva híbrida, matizada e acrescida pelo interesse, análise e observação
17
18
MANSILLA, 2009. do gênero na prática. As práticas no sentido do habitus de Bourdieu,19 no âmbito es-
19
BOURDIEU, 1991. pecífico do gênero em desenvolvimento.20 Trata-se do processo pelo qual o papel das
20
MANSILLA, 2005; PAVÓN, 2012. mulheres nas políticas, programas e projetos de cooperação para o desenvolvimento
“[...] a análise de conteúdo pode ter tanto um fim descritivo quanto inferencial
(dedutivo) e pode utilizar tanto técnicas de análise quantitativa como de análise
qualitativa; há acordo também em que a análise não está limitada ao conteúdo ma-
nifesto das mensagens, mas que pode se estender ao seu conteúdo latente, e em que
as análises realizadas devem ser submetidas, como toda analise, a provas de validade
e de fiabilidade.”24
A pesquisa gerou três bases de dados diferenciadas a partir dos questionários aplica-
dos, relativas (1) aos moradores, (2) aos equipamentos públicos e (3) às lideranças
comunitárias. Nas páginas a seguir, o foco da atenção será sobre a base relativa aos
moradores, ainda que sejam considerados alguns aspectos tratados nas outras duas. OSORIO HERNÁNDEZ, s/d, p.4-5.
21
que algumas das questões analisadas estão presentes nas três. Nesse sentido, embo- 23
CABO, HENAR e CABO, 2009.
ra a base de dados relativa aos moradores seja quantitativamente mais significativa 24
LÓPEZ ARANGUREN, 2000, p.555.
No que diz respeito aos equipamentos públicos, considerei uma única área temática
que inclui as perguntas relativas aos equipamentos existentes no território titulado, ao
25
Este é um aspecto importante identi-
cado entre os aspectos problemáticos
funcionamento dos mesmos, as pessoas que neles trabalham e à qualidade dos servi-
apontados nos resultados da Pesquisa de ços. Quanto às lideranças, defini seis áreas temáticas: (1) Demografia; (2) Educação;
avaliação do Programa de Ações Estrutu-
rantes nas Comunidades Remanescentes
(3) Território; (4) Equipamentos; (5) Acesso a programas sociais; e (6) Organização
de Quilombos, realizada pelo MDS no e mobilização. No que se refere aos moradores, considerei cinco áreas: (1) Demo-
ano de 2008 (BRASIL, 2008). Constatou-
-se, à época, que solicitações por certos
grafia; (2) Educação; (3) Acesso a programas sociais; (4) Consumo domiciliar; e (5)
bens ou projetos não correspondiam às Trabalho e rendimentos.
demandas da comunidade devido à falta
de vinculação real entre as lideranças e
a comunidade, representando um ponto Em relação à base de dados de moradores, foi feita uma desagregação regional, le-
de vista particular e não geral. vando em consideração, como já foi indicado anteriormente, a grande diferença na
26
O critério para estabelecer o corte representatividade das regiões brasileiras. Assim mesmo, considerei unicamente as
nessa idade partiu do foco do texto:
conhecer a situação das mulheres qui-
respostas relativas às pessoas com idade acima de 10 anos, pois os aspectos a analisar
lombolas, especialmente alguns aspectos não seriam aplicáveis nos demais casos.26 (Ver Gráfico 1).
centrais relacionados com as atividades
que desempenham em seu cotidiano.
Por isso, o interesse se xa tanto nas
gráFico 1: recorte da amostra - 10 anos e acima (números absolu-
mulheres adultas, quanto nas jovens tos de moradores conForme o sexo)
e mesmo nas crianças maiores de 10
anos. Considerei adequado incluí-las 10000
porque algumas atividades são também 9038
9000 8152
desenvolvidas por elas, especialmente
no contexto doméstico, em que pese 8000
a curta idade. Entraria aqui a discussão 7000
sobre o que é considerado trabalho e o
6000
que não. Trata-se, antes de tudo, de um
recorte que tenta responder ao critério 5000 42954357
da observação das práticas mais do que 4000
a consideração do marco jurídico stricto
sensu. No Art. 2º, Lei nº 8069, de 13
3000
de julho de 1990, Estatuto da Criança 2000 1442 1518
e do Adolescente, considera-se “crian- 1000 492 521 48
ça, para os efeitos desta Lei, a pessoa 27
até doze anos de idade incompletos e 0
adolescente aquela entre doze e dezoito Centro-oeste Nordeste Norte Sudeste Sul
anos de idade”. Assim mesmo, serviram
de referência para estabelecer o recorte Feminino Masculino
nessa idade as pesquisas desenvolvidas
pelo IBGE (FONTOURA et al., 2010), pois Sob o ponto de vista qualitativo, parte-se da proposta metodológica de análise de esta-
mesmo sendo crianças já desempenham
atividades associadas aos cuidados e
tísticas sob a perspectiva de gênero de Cabo, Henar e Cabo,27 que leva em consideração
trabalhos de reprodução social e mesmo os seguintes elementos básicos: (1) o quadro contextual, apresentando a realidade
econômica da família. social e potenciais desigualdades entre homens e mulheres em um âmbito específi-
27
CABO, HENAR e CABO, 2009. co (educação, trabalho etc.). Neste caso, a Avaliação diagnóstica: acesso das comunidades
28
MDS, 2009. quilombolas aos programas do MDS28 oferece um quadro contextual adequado, que a
Cã
Demografia
MANN, 2008.
3. A metade dos domicílios pesquisados possui até quatro pessoas residindo, 31
As opções de resposta oferecidas con-
incluindo o chefe. Em termos gerais, os domicílios estão formados pelo chefe, templavam a pessoa de referência na casa
e, em relação a esta categoria, cônjuge/
pelo cônjuge e por mais um ou dois filhos/agregados. companheiro/a, lho/a, enteado/a, pai
ou mãe, sogro(a), bisneto(a), irmão/
irmã, irmão/irmã do companheiro(a)
4. A pesquisa detectou que seis em cada dez domicílios quilombolas são che- ou cônjuge, sobrinho(a), outro parente,
fiados por homens. Em todas as regiões, é maior a proporção de domicílios agregado, pensionista, empregado(a)
doméstico, parente do(a) empregado(a)
chefiados por homens, exceto no Sul: 62% dos domicílios são chefiados por doméstico(a), NS/NR (não sabe/não
mulheres em face de 38% chefiados por homens. Importante salientar que respondeu).
No que diz respeito à educação, as diferenças por sexos não são muito amplas. De
modo geral, em torno de 60% dos quilombolas acima de 10 anos de idade cursaram
até o ensino fundamental e 24% são analfabetos. Destaca-se que, na região Centro-
-Oeste, 35% das mulheres quilombolas são analfabetas. O padrão de baixa escolaridade
está presente entre as lideranças comunitárias, que não possuem níveis de formação
mais elevados do que o conjunto dos moradores.
Consumo domiciliar
Todos estes pontos são importantes pois estão estreitamente relacionados com as
mudanças culturais, muitas vezes forçadas, no sentido de as comunidades se verem
obrigadas a mudar suas pautas de consumo tradicionais. Deixando de terem acesso
a produtos antes abundantes e ter que acessar outros, diferentes, nem sempre pró-
prios da sua cultura alimentar, devido às mudanças no entorno ou aos deslocamentos
forçados, como no caso das comunidades remanejadas de Alcântara, estudadas por
Andrade.37 Assim, mostram a insuficiência da produção própria para o consumo, o
que, unido às escassas venda e troca, cria uma forte dependência dos ingressos, que
são limitados, para o acesso aos alimentos, o que gera uma situação de insegurança
alimentar grave, por estarem no limite da autossuficiência. É importante levar isto
em consideração tanto em relação à proposta de projetos de desenvolvimento, para
que tenham em conta estes aspectos, reflexos das mudanças nos modos de vida tradi-
cionais, quanto na educação sobre o que se refere à segurança alimentar, para que se
considere a necessidade de avaliar todos os fatores interagindo nesta situação: acesso
à terra, sua qualidade, dificuldades na comercialização, papel dos atravessadores,
dificuldades nas comunicações etc.38
Trabalho e rendimentos
torno de 10%. Mais uma vez, os quilombolas que vivem na região metropo- 38
ANJOS, 2003.
Carrasco43 faz referência ao aspecto fundamental dos trabalhos de cuidado, apontando ÁS, PICAZO GURINA, 2007, p.16.
como, sob a perspectiva feminista sobre os padrões de vida, esses trabalhos desempe- 42
TUBALDINI, 2010.
nham um papel central no desenvolvimento humano, que vai além da igualdade de 43
CARRASCO, 2007, p.11-12.
Na pesquisa cujos dados foram aqui analisados, e cujo objetivo, como já indicado
anteriormente, não era analisar as questões de gênero (o que explica algumas de suas
limitações), as atividades não remuneradas não estão representadas. Quando na au-
sência de outros instrumentos, programas sociais, equipamentos, essas funções estão
sendo desenvolvidas necessariamente por alguém, provavelmente mulheres. Portanto,
o trabalho doméstico e familiar é excluído de forma dupla, de uma parte como ati-
vidade economicamente significativa e, de outra, como trabalho propriamente dito.
Observa-se que: (a) o desinteresse pelo trabalho não remunerado não é apenas um
problema de análise, mas um problema na prática porquanto os dados utilizados estão
servindo de base para a elaboração e implementação de políticas e programas sociais.
Desse modo resultaram inadequados para o objetivo de corrigir as desigualdades
sociais entre homens e mulheres; (b) os instrumentos estatísticos e de análise são os
mesmos para homens e mulheres, desconsiderando as diferenças, especialmente as
atividades femininas significativas que ficam invisíveis. Universaliza-se o masculino
que parece ser o único que existe, sendo considerado o padrão ideal. De modo que
a participação feminina deve se parecer e chegar a esse padrão.
Concordo com a avaliação que Carrasco faz, oferecendo uma alternativa de enfoque
sob o ponto de vista de uma política das mulheres:
45
NUSSBAUM, 2002. basta olhar o eixo da (des)igualdade entre mulheres e homens, trata-se também de
46
CARRASCO, 2010. mover-se entorno ao eixo da diferença e do bem-estar humano”.46
Assim, mesmo as perguntas relativas a trabalho e rendimentos são muito focadas nos
valores econômicos. Como dito acima, ficaram de fora algumas práticas e atividades
não remuneradas que podem ser mais representativas da realidade das comunidades
quilombolas. Nesse sentido, mesmo que se mencionem as trocas locais, pouco rele-
vantes nas respostas, a prática das doações está, de fato, presente entre as diferentes
opções de resposta que se oferecem para conhecer qual é a procedência dos alimentos
de consumo disponíveis, no questionário de moradores: “se sim [havia disponível
para consumo na casa], de onde veio o alimento?”. E sobre esta prática, que poderia
estar associada à recepção das mesmas, talvez em troca de prestações de serviços não
remunerados, favores etc.,49 não temos suficiente informação.
des culturais que seriam fundamentais para compreender as práticas nos diferentes 48
Idem, ibidem.
âmbitos, de trabalho, consumo, educação etc., e como afetam as mulheres das comu- 49
ANJOS, 2003, p.209; SANTOS, 2010.
Entre os aspectos a levar em consideração para identificar as fontes dos vieses de gênero
na estatística, segundo Cabo, Henar e Cabo,50 cabe apontar os seguintes:
Conceitos e suas limitações, pois muitos foram desenhados e pensados para outros
contextos socioculturais e temporais. No caso que nos ocupa, até que ponto ficam
invisibilizadas as especificidades das mulheres quilombolas frente a perguntas talvez
mais adequadas para um contexto urbano ou rural, mas não representativo da agricul-
tura familiar51. Assim, nas perguntas relativas aos alimentos, não se incide no detalhe
da variedade de alimentos mais comuns nas diferentes comunidades quilombolas;
CCã
55
BRASIL, 2009.
E finalmente a necessidade de enfatizar a dimensão de gênero, isto é, a identificação
e visibilização do que é especificamente relevante para as mulheres, valorizando
56
Os próprios autores são conscientes
das diculdades de generalizar sobre as e promovendo aqueles aspectos que se situam na linha da autonomia pessoal e
situações especícas objeto de estudo. econômica, mas desde a complementariedade. Retomando as palavras de Carras-
57
BASTOS, 2010, p.5. co de incorporação da “igualdade na diferença ou de recuperação da experiência
58
CARRASCO, 2007, p.10. feminina”.58
ANJOS, J.C. de. Raça e pobreza no Brasil meridional: a comunidade de São Miguel
dos Pretos: um estudo de caso. Teoria e Pesquisa, São Carlos, n. 42-43, p. 199-220,
Jan.-jul. 2003. Disponível em: <http://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/
article/viewfile/61/51>. Acesso em: 12 dez. 2012.
ARRUTI, J.M. Políticas públicas para quilombos: terra, saúde e educação. In: PAULA,
M. de; HERINGER, R. (orgs.). Caminhos convergentes. Estado e sociedade
na superação das desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Heinrich Böll
Sitftung Actionaid, 2009. Cap. 2, p. 75-110. Disponível em: <http://br.boell.org/
downloads/caminhos_convergentes.pdf>. Acesso em: 10 out. 2012.
TUBALDINI, M.A. dos S., DINIZ, R.F. Gênero, agricultura familiar e (re)organi-
zação do espaço rural em comunidades quilombolas de Minas Novas e Chapada do
Norte- Vale do Jequitinhonha/MG/Brasil. Revista Geográfica de América Cen-
tral, Costa Rica, n.e. EGAL, pp. 1-18, II semestre, 2011. Disponível em: <http://www.
revistas.una.ac.cr/index.php/geografica/article/view/2321>. Acesso em: 11 nov. 2012.
A fim de contornar a histórica exclusão socioeconômica das comunidades negras rurais
do Brasil, nascidas no seio da escravidão ou ao longo de trajetórias de resistência e luta
diante das sequelas por ela deixadas, políticas públicas são elaboradas e/ou ampliadas
no sentido de contribuir para a melhoria de sua qualidade de vida. Assim, foi realizada
uma avaliação do potencial produtivo e do desenvolvimento local de comunidades
quilombolas que habitam territórios titulados com vistas ao aprimoramento das ações
previstas no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria. As análises se baseiam em infor-
mações obtidas nos bancos de dados produzidos pela pesquisa de Avaliação da situação
de segurança alimentar e nutricional em comunidades quilombolas tituladas, cujo trabalho de
campo foi realizado em 2011. Foram feitas análises descritivas e exploratórias das
informações disponibilizadas, a partir das quais se constatou a situação de exclusão
dessas comunidades no que se refere ao acesso às políticas públicas específicas ou
não para o meio rural. Os dados apontam para a necessária ampliação da cobertura
dessas políticas, associando-as com ações que promovam a efetividade da inclusão
produtiva, a valorização da cultura local e o etnodesenvolvimento.
1
Bióloga pela Universidade Estadual de
Feira de Santana (UEFS), especialista em
çã Gerenciamento Ambiental pela Univer-
sidade Católica do Salvador (UCSal),
mestre em Educação pela Universidade
A ressemantização do termo “quilombo” na contemporaneidade decorre do artigo do Estado da Bahia (UNEB) e colabora-
nº. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que unificou dora do Instituto Natureza Gente e Arte
(INAGEA). Consultora do Departamento
a questão das comunidades negras existentes no meio rural as definindo de forma de Avaliação – SAGI/MDS.
homogênea enquanto “comunidades remanescentes de quilombos”.3 Na esteira da 2
Agrônoma pela Universidade de Brasília
Constituição Federal, o Decreto nº. 4.887, de 20 de novembro de 2003, define tais (UnB), mestre e doutora em Ecologia
comunidades como “grupos étnico-raciais segundo critérios de autoatribuição, com pela Universidade de São Paulo (USP),
professora da Universidade Estadual de
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presun- Feira de Santana (UEFS) e técnica em De-
ção de ancestralidade negra relacionada à resistência a opressão histórica sofrida”. É senvolvimento Rural da Empresa Baiana
de Desenvolvimento Agrícola (EBDA).
com esta definição que o presente artigo vai operar, ressalvando que as comunidades 3
O texto constitucional do ADCT no. 68
negras no país podem apresentar configurações sociais, culturais e políticas diversas. estabelece que: “Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a
É importante não perder de vista que a população negra estabelecida no meio rural propriedade denitiva, devendo o Estado
inclui não apenas as comunidades remanescentes de quilombos (foco principal desta emitir-lhes os títulos respectivos”.
Este artigo tem como objetivos identificar: o perfil socioeconômico dos moradores
e das lideranças nas comunidades quilombolas que habitam territórios titulados; as
principais atividades produtivas desenvolvidas; os equipamentos públicos instalados
nas comunidades; e o acesso às políticas públicas. Associado a isso, identificar as
possibilidades de etnodesenvolvimento no contexto das ações governamentais dis-
ponibilizadas às comunidades, bem como os processos relacionados à conservação
da socioagrobiodiversidade e às organizações sociopolíticas existentes.
Além disso, pretende estimar alguns efeitos das ações governamentais para melhoria
da qualidade de vida destas populações e, quando possível, sugerir inovações e am-
pliações nas políticas públicas relacionadas à inclusão produtiva e desenvolvimento
local sustentável para as comunidades quilombolas.
O presente estudo, portanto, teve por objetivo geral avaliar o potencial produtivo das
comunidades quilombolas que vivem em terras tituladas, com a intenção de sugerir
alternativas de inclusão produtiva, fornecendo subsídios para o aprimoramento de
políticas e programas voltados para os quilombolas tendo em vista as metas do PBSM
no que se refere à inclusão produtiva e ao desenvolvimento local dessas comunidades.
Os dados aqui avaliados foram coletados por meio da aplicação de dois questioná-
rios estruturados, um junto aos responsáveis pelos domicílios e outro, diferenciado,
junto às lideranças comunitárias; bem como pelo preenchimento de uma ficha para
o levantamento de equipamentos públicos nas 169 comunidades quilombolas pelas
mesmas lideranças. Desse modo, foram construídos três bancos de dados: “domicí-
lios”, “comunidades” e “equipamentos públicos”. No que se refere ao questionário do
primeiro, o respondente poderia ser a pessoa de referência da casa ou outro morador
maior de 18 anos de idade. Os bancos de dados mostram um total de 40.555 mora-
dores (distribuídos em 9.191 domicílios) e 162 lideranças comunitárias entrevistadas.
Com base nos arquivos supracitados, no intuito de atingir os objetivos propostos, foram
realizadas análises descritivas e exploratórias dos dados no software SPSS versão 20, ob-
tendo: medidas de tendência central (média, mediana, moda, mínimo, máximo), medidas
de dispersão (desvio padrão) e frequências simples, bem como percentuais de variáveis
selecionadas. Utilizou-se o Excel 2010 para fazer a representação gráfica das estatísticas.
Antes de explorar os dados apurados pela pesquisa, o artigo principia por uma dis-
cussão conceitual acerca do etnodesenvolvimento para pavimentar o caminho que
conduz à discussão do potencial de inclusão produtiva e desenvolvimento local nas
comunidades quilombolas.
Reconhecimento étnico
“Ter uma identidade é ter uma memória própria. Por isso, a recuperação da própria
história é um direito fundamental das sociedades. É também, pela atual Constitui-
ção, o fundamento dos direitos territoriais indígenas, e particularmente da garantia
de suas terras”.13 Estabelecendo o mesmo discurso quando se trata de comunidades
quilombolas, a identidade e o reconhecimento desse segmento social é um dos fun-
damentos para o seu direito territorial e, assim, uma das garantias para a posse jurídica
do mesmo. Para receber a titularidade coletiva de suas terras, tais comunidades devem
atestar sua ancestralidade, ou seja, sua memória histórica e consequentemente sua
identidade quilombola. Esta é uma exigência da política de regularização fundiária
dos territórios quilombolas, tal como previsto no já mencionado Decreto no 4.887,
de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por re-
manescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias.
Cã
Regularização fundiária
No que tange à posse das terras pelas comunidades quilombolas no país, estabeleceu-
-se uma ampla discussão sobre quais categorias estariam envolvidas no processo, visto
que, de acordo com o art. 68 do ADCT, apenas aquelas comunidades remanescentes
de quilombos teriam tal benefício. No entanto, compreendendo o posicionamento
político-ideológico do termo quilombo na contemporaneidade, assume-se detentora
14
COSTA FILHO, 2009. de direitos a regularização fundiária “qualquer comunidade negra rural de afrodes-
15
FIABANI, 2005, p. 422. cendentes com manifestações culturais ligadas ao passado”.15
Neste decreto, as bases pelas quais se sustenta tal direito estão relacionadas aos seguin-
tes critérios: ser um grupo étnico negro; ter trajetória histórica e relações territoriais
próprias; ter presunção de ancestralidade negra relacionada à luta contra a opressão;
e ter prevalência da autoatribuição ou autodefinição da própria comunidade. As ins-
tituições governamentais mais diretamente envolvidas em aspectos do processo são
a Fundação Cultural Palmares (FCP) e o INCRA, além dos órgãos de regularização
fundiária estaduais. À FCP cabe o registro das comunidades quilombolas com base
na emissão de uma certidão de autodeclaração. Por meio desse documento a Fun-
dação certifica que coletivamente a comunidade decidiu se autorreconhecer como
quilombola. Segundo dados da FCP, na certificação de comunidades quilombolas no
período entre 2004 e 2011 emitiu-se um total de 1.820 certidões (Figura 2).
Figura 2 - certiFicação de comunidades quilombolas no Período
entre 2004 e 2011
417
340
252
226
198
159
129
99
Pode-se inferir, a partir dos dados apresentados na figura acima, que os anos de 2005
e 2006 apresentaram seus maiores índices de certificação de comunidades quilom-
bolas, provavelmente devido ao início do Programa Brasil Quilombola (PBQ) que,
por meio do INCRA, promoveu o incremento da política fundiária no Brasil. Houve
uma queda nos anos subsequentes (2007 a 2009) e o novo aumento no número de
certificações a partir de 2010.
A análise dos dados mostrou que há uma proporção equilibrada entre homens e
mulheres (51,6% / 48,4%) que residem nos domicílios quilombolas pesquisados.
Quanto à condição da pessoa no domicílio, são três as situações mais frequentes:
filha/o da pessoa de referência da casa (47,6%), pessoa de referência da casa (22,7%)
e cônjuge ou companheira/o da pessoa de referência na casa (16,9%). A maioria dos
moradores é composta por jovens em idade ativa, além de crianças e adolescentes. A
maioria é solteira ou vive em união estável, sendo que a grande maioria se considera
de cor preta ou parda.
2,5%
4,9%
8%
10,5%
42%
32,1%
8%
23%
15%
15%
23%
16%
Secretário Tesoureiro
Conselheiro Coordenador de Projetos
Representante da comunidade Apoio comunitário
A maioria das lideranças está na faixa etária entre 31 e 50 anos (Figura 5) e a maior
parte se considera de cor preta (Figura 6).
27,2%
25,9%
20,4%
16,1%
10,5%
0,6%
1,2% 13%
22,8%
62,4%
Escolaridade
Com relação à escolaridade, 23,8% dos chefes dos domicílios quilombolas são
analfabetos (nunca estudaram) e 64,5% cursaram até o ensino fundamental. O grau
superior completo e a pós-graduação foram cursados por uma pequena parcela dos
entrevistados: 1,5% e 0,3% respectivamente. Quando se trata da escolaridade das
lideranças, apenas 4,9% destes nunca estudaram, sendo maior o percentual dos
que cursaram ensino médio e superior em relação aos chefes dos domicílios. No
caso das lideranças, 2,5% têm graduação completa e 0,6% concluíram cursos de
pós-graduação.
De acordo com a análise dos dados provenientes da base “domicílios”, 98,9% dos
chefes de domicílios entrevistados garantem que a casa está situada dentro do terri-
tório titulado e que em 92% dos casos eles têm a propriedade definitiva da mesma,
ou seja, habitam casas próprias, já quitadas. Isso garante, no momento, para a maioria
da população, o local de abrigo e a dispensa de gastos financeiros para este fim, tais
como aluguel e prestações de financiamento imobiliário. Outros 6,5% afirmaram
residir em casas cedidas.
No que se refere à estrutura das casas, os moradores entrevistados destacam que 83,6%
dessas são cobertas por telha, 41% possuem parede de alvenaria e 42,7% têm o piso
de cimento ou concreto. A maioria das residências (63,6%) possui quatro cômodos,
sendo que uma média de quatro pessoas compõe a unidade domiciliar.
A energia elétrica, seja proveniente de rede, gerador ou solar, está presente em 81,8%
das residências. A utilização de óleo, querosene ou gás de botijão são encontradas
em 13,7% das residências das comunidades analisadas (na região Centro-Oeste, este
percentual chega a 33,5% dos domicílios).
É possível observar, segundo 30,5% das respostas das lideranças, que nenhum dos
equipamentos públicos encontra-se instalado ou não estão instalados de forma efetiva
nas comunidades. Dentre os equipamentos instalados, os mais representativos são
os espaços para cultos religiosos (23,3%), escolas primárias (17%) e sede de associa-
ção, cooperativa ou colônia (8,5%). Os demais equipamentos, tais como unidades
de saúde, casas de farinha, casa de mel, cisternas, dentre outros, estão fracamente
presentes, não estabelecendo no diagnóstico realizado uma porcentagem superior
a 4% das respostas obtidas junto às lideranças comunitárias para cada equipamento.
Foi apontada a existência de um único Centro de Referência da Assistência Social
(CRAS) nos territórios quilombolas titulados.
Com a posse das terras, a instalação de equipamentos públicos, meios para acessar
direitos de cidadãos, disponibilizados pelo poder público, é a via principal para a
inclusão produtiva. No entanto, estes devem estar em acordo com os modos de
fazer desses povos, que possuem uma diferenciação étnica e cultural dos demais
segmentos sociais existentes no Brasil. A instalação e adequação desses meios aos
repertórios culturais dessas comunidades podem promover o etnodesenvolvimento.
Quando se trata dos equipamentos públicos disponibilizados pelo governo para estas
comunidades, diagnosticadas em 2011, as lideranças locais apontam sua adequação
às especificidades socioculturais em 62% dos casos; sendo que 38% não consideram
os conteúdos adequados e 5,4% não souberam ou não puderam responder. Há que
se atentar para o fato de que aproximadamente 50% das lideranças não consideram
culturalmente adequados os conteúdos tratados nas escolas primárias situadas nos
territórios quilombolas e 40% têm a mesma opinião em relação às escolas de nível
médio.
83,3%
71,1%
61,5% 60%
54%
50% 50%
45,5% 46,7%
16,7%
Casa de kit de Cultivador Trator / Batedeira Barco Engenho Viveiro de Casa de Máquina
farinha irrigação arado de cereais / de moer mudas mel de costura
máquina de cana
benefício
de arroz
Constata-se também por meio dos dados da pesquisa de avaliação que 36,1% das casas
de farinha foram adquiridas com recursos próprios das comunidades, 41,7% dos kits
de irrigação através do governo estadual, 50% dos cultivadores por meio de recursos
próprios, os tratores/arados por meio do governo federal (33,3%) e governo estadual
(33,3%), as batedeiras de cereais/máquinas de beneficiamento de arroz por meio do
governo federal (23,1%), governo estadual (23,1%) e iniciativa própria (23,1%), o
barco por meio da prefeitura (36,1%), governo estadual (30,6%) e iniciativa própria
(22,2%), engenho de moer cana por meio de recursos próprios (62,5%), casa de mel
por meio do governo estadual (50%), agroindústria pelo governo estadual (50%) e
organismos internacionais (50%), máquina de costura por meio de ações estruturantes
do governo federal (33,3%) e iniciativa própria (26,7%) e a cisterna calçadão por meio
do governo estadual (50%) e prefeitura (50%).
É importante dizer que uma parte significativa dos equipamentos para produção
foi adquirida com recursos pessoais de indivíduos da própria comunidade, estando
ausentes os governos das três esferas como responsáveis pela maioria de tais equipa-
mentos presentes nas comunidades quilombolas.
Fundamentalmente, a economia nos antigos quilombos era baseada no uso dos re-
cursos naturais disponíveis (animais silvestres, plantas medicinais, ouro, diamantes
etc.), associada a uma agricultura de subsistência, sendo a mandioca, abóbora, algodão,
amendoim, arroz, banana, batata doce, cana de açúcar, feijão, fumo e milho alguns
de seus principais produtos, que variavam também de uma localidade para outra.
A utilização de arado e tração animal era inexistente, assim como também o era no
continente africano. Em alguns casos era possível identificar a criação de galinhas20
e de gado.21
Com base nos dados recentes por meio do diagnóstico avaliado, é possível identificar
algumas das atividades que já eram desenvolvidas nos antigos quilombos. Esses dados
mostram que as múltiplas atividades produtivas desenvolvidas pelas comunidades
quilombolas no meio rural estão basicamente associadas à produção e coleta de ali-
mentos, criação de animais, caça e pesca para fins de consumo próprio, de troca por
outros produtos e venda do pouco excedente.
4,7%
17,1%
78,3%
30,4%
65,7%
Com relação à atividade agrícola coletiva, foi registrada a existência dessa forma de
produção em apenas 14,8% das comunidades. A principal causa desse baixo número
de plantações coletivas é, segundo 41,3% das lideranças, a falta de recursos financei-
ros e infraestrutura, seguida da falta de interesse da comunidade (29,7%). As poucas
áreas cultivadas coletivamente compreendem uma extensão de até 25.000m2 (em
45,8% dos casos citados), sendo que cerca de 60% das lideranças consideram esta área
insuficiente. No que se refere à criação de animais, 93,8% não a realizam coletiva-
mente, sendo apontada como a principal causa a ausência de recursos financeiros e/
ou infraestrutura disponível (49,3% das lideranças), seguida da falta de interesse da
comunidade (27%). O tamanho das áreas para esta atividade destinada não ultrapassa
50.000m2 em 50% dos casos citados.
Há grande demanda de apoio para outras atividades coletivas. De acordo com 79,6%
das lideranças, há alternativas de produção em suas comunidades que, todavia, não
estão sendo aproveitadas. Entre as mais citadas estão a agricultura (27,4% das lideran-
ças), criação de animais (16,5%), piscicultura (10,4%) e artesanato (10%).
No que tange ao acesso a trabalho formal, apenas 47% dos chefes dos domicílios qui-
lombolas estavam trabalhando e 14,4% eram aposentados. Daqueles que trabalhavam,
somente 4,6% exerciam atividades com carteira assinada. A venda do cultivo ou da
criação de animais nos últimos 12 meses representa uma das formas de obtenção de
recursos financeiros para 21,3% dos domicílios.
Dentro das áreas de produção coletiva os principais alimentos cultivados são mandioca/
macaxeira/aipim, frutas e milho (Figura 10). As poucas comunidades que realizam 22
SILVA, 2005.
70,9%
41,7%
29,1% 25%
25% 25%
16,7%
12,5%
Arroz Feijão / fava Milho Mandioca / Cará, inhame, Frutas Verduras Outros
macaxeira / mandioquinha /
aipim batatas
1,9%
0,6%
5% 10%
5%
30%
10%
15%
25%
5% 10%
5%
30%
10%
15%
25%
Apesar de não ter sido investigada em 2011, a questão da mão de obra utilizada para
as atividades produtivas nas comunidades quilombolas costuma ter caráter familiar,
tal como ocorre com os demais agricultores de economia familiar, que não consti-
tuem objeto desta análise. Como é de conhecimento nas áreas rurais do Brasil, o
trabalho realizado pelas mulheres reflete-se em todo o processo produtivo, desde a
preparação da terra e cultivo, até a colheita, beneficiamento, comercialização, dentre
outras. Outro aspecto evidente do trabalho das mulheres no meio rural relaciona-se
aos serviços na residência e nos quintais. Neste local é possível não apenas a plantação
de hortas e outros produtos da economia familiar, como também a criação de animais
domésticos, tais como galinha e porco, e de animais silvestres, como as abelhas sem
ferrão (Meliponini).
Conservação da socioagrobiodiversidade
63%
15,4%
8%
3,7% 3,7% 4,9%
1,2%
Eletricidade
Querosene
67,6%
Outro tipo
O efeito causado pelas ações de seres humanos em áreas de mata, usando-a e mane-
jando-a, pode certamente, dentro do limite da capacidade suporte de cada ecossistema,
promover um maior enriquecimento da diversidade dos ecossistemas associados.
Desta forma, ao invés de uma utilização degradante, verifica-se um uso sustentável.
As comunidades extraem recursos do meio para sua reprodução sociocultural e
ainda para o plantio de espécies nativas a partir da coleta de suas sementes no meio
ambiente. Apesar dos dados coletados no diagnóstico das comunidades apresentarem
inexistência de banco de sementes, as comunidades tradicionais, de uma forma geral,
produzem sementes crioulas que são utilizadas na própria unidade de produção.
Estas carregam por gerações a adaptação das mesmas ao local de cultivo, o que lhes
confere condição especial. Dessa forma conduz a conservação da biodiversidade local
por meio dessas ações. Fica aqui sugerido incremento dos bancos de sementes nas
CASTRO et al., 2012. comunidades quilombolas.
27
Organização sociopolítica
As organizações sociais existentes nas comunidades envolvem 85% das 162 lideranças
entrevistadas. As principais organizações comunitárias identificadas pelas lideranças
são associações, grupos ou cooperativas (Tabela 1).
A organização em cooperativa parece ser uma categoria pouco usada pelas comunidades
para gerenciamento da produção. Associação de moradores é a categoria mais utiliza-
da. Dentre as organizações citadas, a mais apontada é a Associação das Comunidades 28
FERRAZ, 1997.
Cçõ PPC
No meio rural os quintais produtivos são tradicionais em todos os grupos sociais.31 Neles,
o agente principal de manejo e modificação é a mulher. É onde se cultivam hortaliças,
plantas medicinais, se faz a criação de animais domésticos, tais como aves e porco, e
também onde se estabelecem as relações entre as pessoas, incluindo aí a transmissão dos
conhecimentos tradicionais entre os mais velhos e os jovens e as conversas informais 30
Esta demanda foi feita pelo FBAF à
EBDA, que atendeu o pleito pela realiza-
entre os vizinhos e componentes de uma mesma unidade doméstica. É uma importante ção de ocinas para a construção coletiva
unidade de produção de alimentos (não apenas do plantio e cultivo, como também do deste programa juntamente com técnicos
de organizações não governamentais,
beneficiamento e transformação dos mesmos – doces, bebidas etc). Neste sentido deve- do Estado e pesquisadores da área de
-se investir em ações relacionadas tanto às atividades nos quintais das residências como educação da UNEB.
também nas que viabilizem a inclusão das mulheres na liderança de organizações sociais. 31
PACTO, 2012.
A valorização da cultura local promove o interesse dos mais jovens nestas atividades,
seja por se reconhecer na localidade (diferente do que é vislumbrado nos meios
de comunicação), seja por enxergar um futuro promissor dentro deste processo. A
qualificação dos jovens das localidades, principalmente em atividades relacionadas
aos modos de fazer tradicionais, é essencial neste sentido; associado a isso, o acesso
a uma educação diferenciada e contextualizada na realidade não apenas ambiental,
mas também do segmento social quilombola e suas prerrogativas. Neste sentido, a
ampliação do acesso dos jovens das comunidades quilombolas ao ensino formal, as-
sociado aos conhecimentos tradicionais, a exemplo de como se estruturam as Escolas
Família Agrícola (EFAs) é um dos possíveis caminhos a seguir.
As EFAs têm seu embrião na França (Maisons Familiales Rurales) no início do século
XX e neste século se expandiu internacionalmente. Tem como proposta pedagógi-
ca e metodológica a pedagogia da alternância,32 promovendo assim um período de
aprendizado, intercalado com práticas específicas nas residências dos estudantes. Este
método induz a articulação entre os conhecimentos teóricos adquiridos em sala e a
prática dos mesmos in loci, mantendo a força de trabalho dos jovens na família. Diante
dos dados anteriormente expostos, a faixa de idade mais jovem compõe a maior parte
das populações avaliadas, sendo, portanto, urgente à adequação de políticas públicas
direcionadas a ela, configurando as EFAs uma das possíveis alternativas para a per-
manência do jovem no campo, com qualidade de vida.
Nos bancos de dados utilizados para este trabalho não existem informações relacio-
nadas ao acesso das comunidades quilombolas ao Programa Bolsa Verde, visto que o
lançamento desta política se deu no último trimestre de 2011 (Lei nº. 12.512, de 14
de outubro de 2011), com ampliação para além da Amazônia Legal em 2012. Por-
tanto, quando foi a campo ainda não existia tal programa. Contudo faz-se necessária
a ampliação deste benefício a comunidades que se encaixam nas especificidades assi-
naladas por esta política pública no que se refere à conservação ambiental, visto que
34
SANTILLI, 2009. territórios ocupados por ribeirinhos, extrativistas, populações indígenas, quilombolas
A via principal para reverter a exclusão das comunidades quilombolas está na asso-
ciação de políticas emergenciais com o acesso à educação (de qualidade e adequada
à realidade sociocultural) e também às políticas estruturantes que supõem a oferta
de equipamentos em condições de funcionamento nas localidades onde estão essas
comunidades.
O presente artigo visa analisar o quadro situacional relativo às temáticas do racismo
ambiental e conflitos territoriais em comunidades quilombolas que vivem em terri-
tórios titulados, a partir do banco de dados de entrevistas com lideranças comunitá-
rias proveniente da pesquisa Avaliação da situação de segurança alimentar e nutricional em
comunidades quilombolas tituladas,2 tendo como casos exemplares a região amazônica
brasileira, além das comunidades Chácara das Rosas/RS e Porto Coris/MG. Os resul-
tados indicam que as comunidades que vivem em territórios titulados ficam menos
expostas a situações conflituosas, por meio da efetividade das políticas públicas a
elas voltadas. No entanto, conclui-se ser necessária a continuidade de mecanismos
de apoio pós-titulação que garantam os direitos territoriais conquistados e inibam a
instauração ou agravamento de conflitos.
Para isso, situamo-nos no continente africano do século XVI, período anterior à domi- 1
Doutora em Antropologia Social pelo
nação e exploração territorial (colonialismo) e ao sequestro, tráfico e comercialização Programa de Pós-Graduação da Univer-
sidade de São Paulo.
dos povos autóctones (escravismo). Nesse contexto, Munanga3 e Lopes4 nos ajudam a
entender que “quilombos” eram diferentes modelos de organização social africanos, 2
MDS, 2011.
Na época colonial era comum a associação entre o termo “escravos fugidos” para
identificar os sujeitos e “quilombos” (ou denominação correlata) como locais de
fugitivos do sistema escravocrata. Assim foi, por exemplo, na América espanhola e
portuguesa, em diferentes expressões linguísticas: quilombos e/ou mocambos (Bra-
sil), palenqueros, Palenques, Cimarron e Cumbes (Colômbia, Cuba e Venezuela) e
ainda Maroons e Noirs Marrons (Haiti, Jamaica, outras ilhas caribenhas, Guyane e
Surinam). Parte do legado dessa dinâmica são os personagens e locais históricos que
estamos (re)descobrindo contemporaneamente: Zumbi dos Palmares e o quilombo
homônimo no Brasil; Benkos Biohó e o Palenque de San Basílio (Colômbia); Boni-
fácio Pinedo na região de Yunga, na Bolívia, dentre outros casos.
Outra parte desse legado é, no caso brasileiro, a denominação oficial cunhada pelo
Conselho Ultramarino português em 1740. Esse órgão da administração colonial, aten-
to aos focos quilombolas existentes, especialmente Palmares, procurou enquadrá-los
em uma definição que permitisse sua identificação e consequentes ações repressivas.
Assim, para o Conselho, quilombos seriam: “[...] toda habitação de negros fugidos,
que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados
e nem se achem pilões neles.”.7
Nessa definição é possível atentar para alguns elementos básicos que constituíam a
ideia de quilombo: a) fuga; b) quantidade mínima de fugidos; e c) isolamento geo-
5
MUNANGA, 1995/96, p. 59. gráfico. O conjunto desses elementos foi considerado por séculos as características
6
MOURA, 1993, p.87. definidoras de quilombo. Porém, cem anos depois da abolição da escravidão, a história
7
ALMEIDA, 2000, p. 165. quilombola foi reescrita e, dessa vez, por seus protagonistas.
Isso tudo ocorreu em meio aos primeiros estudos antropológicos sobre as chamadas
“comunidades negras rurais” que marcaram a década de 1980.8 Esses trabalhos levaram
à elaboração de uma categoria que abarcasse o conjunto das experiências em foco.
A categoria proposta – a de “comunidades negras incrustadas”, surgida na transição
das décadas de 1970 e 1980 – era alternativa às noções de isolamento geográfico e
quilombo, porém mantinha a noção de reminiscência histórica, conforme aponta
Arruti.9 Essa reminiscência será incorporada por militantes e legisladores por ocasião
da redação do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias nº 68 da Constituição
Federal, o qual trata do reconhecimento dos direitos territoriais dos “remanescentes”
de quilombos, mais tarde alterado para “comunidades remanescentes de quilombos”:
“Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes o respectivo
título.”.10
Esse conjunto de órgãos, legislação e políticas públicas tem sido acionado para o
desafio do enfrentamento aos interesses contrários aos direitos quilombolas, espe-
cialmente no tocante ao racismo ambiental que impacta de forma ampla e negativa
os territórios das comunidades.
O conceito de racismo ambiental tem suas origens na década de 1980 nos Estados
Unidos da América. Em 1983, um grupo de moradores negros da Carolina do Norte
descobriu que um aterro tóxico seria implantado na vizinhança. O fato gerou, além de
13
Por movimento negro, rero-me às protestos, um estudo que demonstrou a confluência entre distribuição espacial de lixo
diversas gerações de militantes e orga-
nizações negras que compuseram um tóxico e presença de população negra. Segundo Paes e Silva,15 a partir dos desdobra-
mosaico de bandeiras de luta e formas mentos deste caso foi cunhado o termo “racismo ambiental” para designar “a imposição
de mobilização e ação, mas mantendo o
o condutor da luta antirracista. desproporcional – intencional ou não – de rejeitos perigosos às comunidades de cor”.
14
ABA, Grupo de Trabalho sobre Comu-
nidades Negras Rurais, 1994. Ainda de acordo com a autora, na década de 1990, o movimento ambientalista norte-
15
PAES & SILVA, 2011. -americano agregou as noções de justiça ambiental (Environmental Justice Move-
[...] conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos, que aceitam a degra-
dação ambiental e humana, com a justificativa da busca do desenvolvimento e com a
naturalização implícita da inferioridade de determinados segmentos da população afetados
– negros, índios, migrantes, extrativistas, pescadores, trabalhadores pobres, que sofrem
os impactos negativos do crescimento econômico e a quem é imputado o sacrifício em
prol de um benefício para os demais.18
Esses e outros impactos serão analisados a seguir com base nas entrevistas com lide-
ranças das comunidades quilombolas realizadas na pesquisa Avaliação da situação de
segurança alimentar e nutricional em comunidades quilombolas tituladas – MDS, 2011, tendo
como casos exemplares as comunidades Chácara das Rosas (RS), Porto Coris (MG),
bem como casos na região amazônica.
O Brasil apresenta hoje o seguinte quadro em relação à questão territorial das comu-
nidades quilombolas:
O grau de importância da titulação territorial pode ser avaliado tanto pelos entraves à
sua efetivação quanto pela ótica do seu significado para as comunidades quilombolas.
O território é fundamental para a reprodução física, social e cultural das comunidades.
Nesse sentido, vai além da dimensão da terra como espaço físico e geográfico, mas
consiste na base mantenedora da historicidade, coesão e existência das gerações atuais
e futuras. A problemática não se encerra na regularização fundiária, mas também é
perceptível em relação ao racismo ambiental.
Isso é o que nos indicam de forma complementar os dados do Mapa de conflitos en-
volvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil,21 publicados em 2010, sobre populações e
áreas atingidas por projetos e políticas, bem como a pesquisa Avaliação da situação de
segurança alimentar e nutricional em comunidades quilombolas tituladas, especialmente voltada
para a situação territorial pós-titulação de comunidades quilombolas. Inicialmente,
vejamos os dados do Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil, de-
senvolvido por pesquisadores da Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ) em parceria
com a Federação de rgãos para Assistência Social e Educacional (FASE).
Observa-se que as comunidades quilombolas estão entre os três grupos mais atingidos
pelo impacto do racismo ambiental em seus territórios, tanto se considerarmos áreas
urbanas ou rurais. No cruzamento desses dados vão surgir, de forma mais detalhada
na tabela abaixo, os tipos de impactos e danos ambientais sofridos por povos indígenas,
agricultores familiares, pescadores artesanais, populações ribeirinhas e comunidades
21
Para maiores dados, ver: http://www.
conitoambiental.icict.ocruz.br. quilombolas:
O conjunto dos dados acima nos convida a dirigir nosso olhar mais detidamente para
as comunidades quilombolas, a fim de percebermos como esses impactos e confli-
tos lhes atingem, bem como quais são os fatores que podem atenuar esse quadro
situacional ou agravá-lo. Vamos nos ater aos dados da pesquisa Avaliação da situação
de segurança alimentar e nutricional em comunidades quilombolas tituladas sobre como a
titulação territorial impactou, em diferentes aspectos, as comunidades pesquisadas:
Nos demais casos não houve menção a restrições no acesso ao território para 40 co-
munidades. Para 120 comunidades essa era uma questão que não se aplicava e 34 delas
não souberam ou não responderam. Algo que podemos inferir desses dados finais é
a possibilidade de que os casos de conflito vinculados ao acesso pleno ao território
ocorram em maior número com as comunidades em processo de titulação, já que
estas, por ainda não contarem com o título (mecanismo de reconhecimento oficial
de seus direitos), encontram-se em situação de maior vulnerabilidade e mais expostas
a situações conflituosas. Depois de obtermos um panorama do quadro situacional
Para maiores detalhes ver http://www.
quilombola, cabe atentar para as nuances regionais desveladas na pesquisa promovida
22
cpisp.org.br/comunidades/html/brasil/rj/
pelo MDS em 2011. rj_conitos.html.
O conjunto dessas problemáticas tem sido monitorado por instituições não gover-
namentais24 e núcleos de pesquisa acadêmicos. Esse é o caso do Núcleo de Cultura
e Sociedades Amazônico (NCSA) ligado à Universidade do Estado do Amazonas
(UEAM). A produção desse conhecimento vem ocorrendo com as próprias comunidades
produzindo mapas com elementos de autodefinição e identidade coletiva. Essa metodologia também
orienta o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), que desenvolve
23
Fonte: CPISP – Comissão Pro-Índio de
São Paulo/ Projeto “Terras Quilombolas atividades em parceria com membros das comunidades locais e movimentos sociais,
em Oriximiná: pressões e ameaças”, objetivando o reforço dos direitos territoriais de povos e comunidades.
2011.
24
São exemplos o Observatório Quilom-
bola Koinonia (RJ) e a Comissão Pró-Indio
Nessa perspectiva, as vivências das comunidades quilombolas traduzidas nos mapas
de São Paulo. por elas produzidos possuem uma autoria que ajuda na mobilização social, afirmação
Essas questões se tornam mais evidentes quando atentamos para casos específicos,
também trazidos na pesquisa MDS-2011, a partir do banco de dados “Lideranças”,
sobre as comunidades Chácara das Rosas na região Sul e Porto Coris no Sudeste do
Brasil.
Esse quadro situacional, apesar de configurar-se como “normal” para famílias negras
e pobres, possuía um agravante: os efeitos sociais do racismo. A comunidade vinha
sofrendo um processo de estigmatização racial por meio da atribuição externa pela
qual eram, em grande medida, reconhecidos no bairro e mesmo na cidade: “Planeta
dos Macacos”. Esse foi o processo que encapsulou os moradores da Chácara como
“macacos” e moradores de um “planeta”, o que em nada correspondia à representação
identitária que os mesmos faziam de si ou da sua trajetória social naquele território.
A categoria “macacos” trazia em si um princípio básico da ideologia racista que é
negar a humanidade do outro, ou seja, eles não são humanos, logo não pertencem à
sociedade ou são portadores de direitos sociais. A vinculação com a ideia de “planeta”
conjugava-se com uma visão exotizada de “quilombo”, pois ambos são vistos como
equivalentes ao distante, desconhecido, inacessível e perigoso.
Essas questões orientam e complexificam análises futuras que ainda terão o desafio
de desvelar a realidade social de um país que busca convergir políticas de equidade
social com o atendimento de demandas cujos tons de especificidade, como é o caso
das comunidades quilombolas, apresentam-se como desafios instigantes para pesquisa-
dores, gestores públicos e todos os envolvidos com a busca por resolução de conflitos
como os gestados pelo racismo ambiental e pela construção da igualdade sociorracial.
çã
Em um país com mais de 300 anos de legado escravocrata, uma das dimensões da
relação entre o Estado e o movimento quilombola para a qual se deve atentar são as
disputas em torno do próprio conceito de quilombo, que deve ser compreendido
como construção histórica, apropriado e resignificado por sujeitos históricos em
determinadas condições sociais, espaciais e temporais. Construído em princípio com 1
Luana Lazzeri Arantes é mestre em an-
conotação negativa e colonialista, o conceito demorou mais de 100 anos entre a Abo- tropologia pela Universidade de Brasília
e Diretora de Programas da Secretaria de
lição e a Constituição de 1988 para ser reinserido ao ordenamento jurídico brasileiro, Políticas para Comunidades Tradicionais
ainda que como uma reminiscência. É a partir das lutas do movimento quilombola SECOMT/SEPPIR.
que passam a predominar as interpretações que consideram a ressemantização da 2
Fernanda Ayala Martins é mestre
palavra “quilombo”. em História pela Universidade Federal
Fluminense e servidora da carreira de
Analista Técnica de Política Social da
Segundo Oliveira,4 as mobilizações quilombolas se aprofundaram nas décadas de SECOMT/SEPPIR.
5
O Comitê é composto pelas seguintes
Neste sentido, como parte da estratégia para fomentar a execução de ações integradas
entidades, a saber: SEPPIR; Casa Civil da de políticas públicas para as comunidades nas Unidades da Federação, entre 2012 e
Presidência da República; Ministério do 2014, foram realizados dezenas de Seminários de Ações Integradas do PBQ e Ofici-
Desenvolvimento Agrário (MDA); Minis-
tério da Cultura (MinC); Ministério do De- nas de Trabalho Intermunicipais sobre Políticas Públicas para Povos e Comunidades
senvolvimento Social e Combate à Fome Tradicionais. Como resultado dos Seminários foram criados 14 Grupos Intersetoriais
(MDS); Ministério de Minas e Energia
(MME); Ministério da Saúde (MS); Minis- Estaduais e pactuados Planos de Ações Integradas, documentos nos quais constam
tério da Educação (MEC); Ministério da metas físicas e financeiras, cronograma de aplicação, definição de responsabilidades
Integração Nacional (MI); Ministério dos
Transportes; e Ministério das Cidades. e prazo de execução das ações. A consolidação dos Planos implica em assinatura
6
São eles: Alagoas, Amapá, Maranhão,
de Acordos de Cooperação com os Governos Estaduais e, até o momento, foram
Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro e Bahia. celebrados Acordos de Cooperação com sete Estados.6 A SEPPIR também tem es-
11
Somando-se todas as comunidades
certicadas e tituladas no país temos um
total de 2.457 comunidades reconheci-
das pelo Estado brasileiro, já que, além
das 2.409 comunidades certificadas,
há 48 comunidades já tituladas sem a
devida certicação. Isto porque os Insti-
tutos de Terra Estaduais também titulam
quilombos (apenas em terras devolutas
estaduais) e não necessariamente têm
como pré-requisito a certicação da FCP
para abertura do processo de regulariza-
ção fundiária.
12
Fonte: Pesquisa de Avaliação da situa-
ção de segurança alimentar e nutricional
em comunidades quilombolas tituladas,
INCRA e FCP. Fonte: SECOMT/SEPPIR/PR, julho de 2014
Como parte do Plano Brasil Sem Miséria, o Governo Federal, por meio da estratégia
da Busca Ativa, busca universalizar o registro das famílias quilombolas com este perfil
no Cadastro. Como indicativo do sucesso dessa estratégia, apenas em 2013 o número
de quilombolas inscritos cresceu 28%. Tal processo é importante não só para que as
famílias acessem os programas do Governo Federal, mas também porque a partir das
informações do banco de dados do CadÚnico é possível auferir melhor as condições
de vida dos quilombolas.
13
SENARC/MDS, outubro de 2014. Para
O estudo realizado por Cristiane Moura sobre os dados de quilombolas disponíveis análise dos dados do Cadunico de Outu-
na base do Cad nos possibilita sugerir algumas reflexões.14 De acordo com o referido bro de 2014, considerou-se os seguintes
valores como referência de extrema
estudo, até janeiro de 2014, o CadÚnico registrou 113 mil famílias quilombolas, o pobreza e pobreza respectivamente:
que totalizava cerca de 437 mil quilombolas, das quais 69% estão localizadas na re- renda mensal familiar por pessoa de
gião Nordeste e 12% na região Norte, com expressiva concentração nos estados da até R$ 77,01 e R$ 154. Já para os dados
referentes a janeiro de 2014, os valores
Bahia (mais de 30 mil famílias) e Maranhão (quase 25 mil famílias). Os estados do da renda mensal familiar por pessoa
Pará, Minas Gerais e Pernambuco também apresentam concentração de quilombolas considerados como extrema pobreza
e pobreza são respectivamente de até
bastante significativa, conforme mostra o Gráfico 1. R$70,00 e de até R$ 140,00.
14
Os dados do CadÚnico para famílias
Dentre os dez municípios com maior concentração de famílias quilombolas no quilombolas apresentados neste artigo
têm como principais fontes o estudo
CadÚnico, cinco estão localizados no Maranhão (Alcântara, Itapecuru Mirim, da Cristiane Moura e o Sistema de Mo-
São Vicente Ferrer, São Luís Gonzaga do Maranhão e São Bento), quatro na Bahia nitoramento de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial. Cristiane Moura é
(Campo Formoso, Senhor do Bonfim, Bonito e Vitória da Conquista) e um no consultora em geoprocessamento da
Pará (Abaetetuba). SECOMT/SEPPIR/PR.
O MEC aponta que em 2013 houve avanço significativo nos programas de forma-
ção de professores no âmbito da educação quilombola. Vinte e oito instituições de
ensino superior, de quinze Unidades da Federação, ofertaram vagas em cursos de
Especialização e Aperfeiçoamento para professores em Educação para as Relações
Étnico-Raciais ou Educação Quilombola.
Segundo os dados do último Censo Escolar, existem 2.238 escolas quilombolas ativas
no Brasil.20 Destas, apenas 73 ofertam Ensino Médio e 2.031 ofertam o Ensino Fun-
damental. Localizadas majoritariamente na zona rural, tais escolas contam com um
total de 227.430 matrículas e 13.757 professores. Porém, nota-se que entre os anos
de 2012 e 2013 ocorreu uma pequena ampliação do número de escolas quilombolas
e uma preocupante queda no número total de matrículas. Ocorre que, apesar dos
esforços do Governo Federal para implementar as referidas diretrizes, no ano de
2013 foram fechadas muitas escolas no campo, responsabilidade compartilhada com
estados e municípios, o que afetou diretamente as escolas localizadas nos territórios
quilombolas.21
Desta forma, ao fim e ao cabo, tanto os dados disponíveis no CadÚnico como aqueles
revelados pela Pesquisa evidenciam a urgência da necessidade de superação do hiato
entre as necessidades históricas desta parcela da população brasileira e o ritmo das
políticas públicas empreendidas.
Avanços e Desafios
Uma década após sua criação, o Programa Brasil Quilombola está em processo de
institucionalização. Hoje em condições efetivas de ter um Comitê de Gestão estável
e empoderado, delimitar melhor o arcabouço das políticas públicas inseridas no
Programa e seu respectivo orçamento, formalizar rotinas e fluxos de abastecimento
de seu recém-criado Sistema de Monitoramento. O Programa vem amadurecendo
também o diálogo direto com as lideranças, com os municípios e com órgãos oficiais
de promoção de igualdade racial.
Ademais, é crucial, desde já, garantir que os dados necessários para o planejamento
e a tomada de decisões estejam disponíveis e, para isso, é necessário consolidar e
fortalecer o SMPPIR, junto aos órgãos que compõem o CGASQ, como ferramenta
que possibilita o monitoramento e a avaliação das políticas públicas para comunidades
quilombolas de forma integrada e transparente. Fica evidente a estratégia da Seppir de
investir fortemente na qualificação da informação disponível com a criação de uma
área destinada a Gestão da Informação. A intenção é criar uma área de manipulação
de mapas e dados internalizada na organização, de modo a produzir e dispor de in-
formações úteis e adequadas de forma ágil.
Por isso, a “decretação modular” deve ser ressaltada como solução viável de gestão:
a Portaria reconhece todo o território tradicional, mas a decretação por partes, em
conformidade com a realidade fundiária e o orçamento da Autarquia, permite que a
comunidade não fique a mercê da desintrusão completa da área e já possa ter o título
parcial definitivo do território. Assim se resguarda o território tradicional ao mesmo
tempo em que se reconhece presença ancestral e se delimita para fins de regularização
22
LEITE, 2000: pp.5-6.
a área que concilie os interesses públicos.
23
Diversos trâmites burocráticos previstos
na IN e em NE fazem com que o processo
(ou partes dele) percorra várias vezes o Vale mencionar os extenuantes prazos legais em todas as fases do processo e que es-
caminho SR-SEDE-SR.
tes embargos judiciais protelatórios em todas as fases do processo são especialmente
24
Houve ampliação do orçamento e importantes para demonstrar que parte do adiamento das titulações independe do
da execução orçamentária em 2012 e
2013 para pagamento de indenização. Poder Executivo. O mesmo se pode dizer para a não imissão na posse de determinados
Nesses dois anos empenhou-se cerca de territórios, rito supostamente sumário, em que param vários processos. Nos casos de
42 milhões de indenizações de imóveis.
territórios com imissão na posse sem sentença homologatória, o INCRA viabilizou a
25
Cada processo foi revisado por uma
equipe composta por SEPPIR, INCRA,
possibilidade da expedição de CDRU (concessão de direito real de uso), garantindo
com auxílio do IBGE, da FCP e do ITERPA, um primeiro instrumento formal de acesso à terra às comunidades quilombolas. Tal
para que se dirimissem todas as dúvidas
pendentes de dados geoespaciais das
medida tem impacto potencial de cerca de 55 mil hectares.
comunidades quilombolas. Estes dados
constam no Sistema de Monitoramento Neste mesmo sentido da desburocratização sem perda de direitos, é de suma im-
da SEPPIR em monitoramento seppir.
gov.br. portância a publicação da Portaria Interministerial nº 210, de 13 de junho de 2014,
Cçõ F
É provável que, com as estratégias para o combate à extrema pobreza do atual Go-
verno, muitos dos índices de vulnerabilidade demonstrados pela Pesquisa já tenham
sido superados. De todo modo, cabe ao Poder Público se debruçar sobre o panorama
socioeconômico desvelado pela Pesquisa e fortalecer o Programa Brasil Quilombola
para garantir os direitos e promover a cidadania para as comunidades quilombolas.
2064 Promoção e defesa dos 20ZN Promoção e Defesa dos Direitos Humanos
SDH
direitos humanos
2066 Reforma agrária 0061 Concessão de Crédito para Aquisição de Imóveis Rurais e
MDA
Investimentos Básicos - Fundo de Terras
2068 Saneamento Básico 7656 Implantação, Ampliação ou Melhoria de Ações e Serviços
Funasa Sustentáveis de Saneamento Básico em Comunidades
Rurais, Tradicionais e Especiais
116F Abastecimento Público de Água em Comunidades
MI/Codevasf
Ribeirinhas do Rio São Francisco - Água para Todos
2069 Segurança Alimentar 11V1 Acesso à Água para o Consumo Humano na Zona Rural
8948 Acesso à Água para a Produção de Alimentos
8457 Apoio a Projetos de Segurança Alimentar e Nutricional
para Povos Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais
MDS
2798 Aquisição de Alimentos Provenientes da Agricultura
Familiar
20GD Fomento às Atividades Produtivas Rurais
Ações voltadas para melhoria de vias de acesso – a SEPPIR tem procurado qua-
lificar o atendimento das ações de infraestrutura em vias de acesso, dada a recorrência
de demandas que apontam para a acessibilidade e a mobilidade dos quilombolas como
um entrave para a viabilização da política pública, circunstância decorrente do difícil
acesso a seus territórios.
Este artigo propõe uma análise das vicissitudes da inclusão da população quilombola 1
Janine Mello é cientista política e dou-
na agenda do Plano Brasil Sem Miséria (BSM). Para elucidar a elevada exposição tora em Sociologia pela Universidade de
das comunidades quilombolas a situações de vulnerabilidade social, delineiam-se os Brasília, servidora da carreira de Espe-
cialista em Políticas Públicas e Gestão
esforços envidados por órgãos e entidades envolvidos na agenda de inclusão das co- Governamental e Diretora de Gestão e
munidades quilombolas, no intuito de identificar seu perfil socioeconômico por meio Acompanhamento do Plano Brasil Sem
Miséria no Ministério do Desenvolvimen-
de diversas pesquisas censitárias. Em seguida articulam-se as informações advindas to Social e Combate à Fome.
tanto do Cadastro Único, quanto dos resultados da Pesquisa de Avaliação da situação de 2
Guilherme Silva é geógrafo, mestre em
segurança alimentar e nutricional em comunidades quilombolas tituladas, para delinear diag- Geograa pela Universidade de Brasília e
Assessor Técnico na Diretoria de Gestão
nósticos capazes de orientar a elaboração de estratégias e ações específicas voltadas e Acompanhamento do Plano Brasil Sem
para essa população nos três eixos do BSM: Garantia de Renda; Inclusão Produtiva; Miséria no Ministério do Desenvolvimen-
e Acesso a Serviços. Por fim, ponderam-se os desafios para o aprofundamento da to Social e Combate à Fome.
O BSM foi criado com o objetivo de retirar da pobreza as famílias com renda abaixo 5
Katia Favilla é graduada em Antropo-
logia pela Universidade de Brasília, espe-
da linha de R$ 77,00 reais per capita6, identificadas como extremamente pobres. Para cialista em Educação e Gestão Ambiental
isso, o BSM centrou suas ações em três eixos: Garantia de Renda; Inclusão Produ- pela Universidade de Brasília, especialista
em Direito Ambiental pela Universidade
tiva: urbana e rural; e Acesso a Serviços. Neles foram distribuídas mais de 100 ações Federal do Pará e mestranda em Resolu-
executadas por 13 ministérios do Governo Federal, e mais de R$ 100 bilhões de reais ção de Conitos e Mediação.
foram executados entre os anos de 2011 e 2014. 6
Na época R$ 70,00 reais per capita.
Com base nos dados disponíveis, sabia-se que, das famílias identificadas como qui-
lombolas no Cadastro Único, mais de 70% delas se encontrava em situação de extrema
pobreza, o que demonstrava uma alta incidência de pobreza e extrema pobreza entre
os quilombolas. Nesse sentido, era essencial que o BSM tivesse entre suas políticas
ações específicas voltadas para os quilombolas de modo a contribuir para a melhoria
das condições de vida dessa população.
Do mesmo modo, é difícil identificar com maior precisão qual o atual quadro po-
pulacional de quilombolas no Brasil. A estimativa trabalhada pela SEPPIR é de que
existem hoje no Brasil 214 mil famílias e 1,17 milhão de quilombolas. No entanto, o
Cadastro Único para Programas Sociais que possui, desde 2010, um campo específico
para marcação da família cadastrada como quilombola, tem atualmente cerca de 124
mil famílias identificadas como quilombolas, o que representa um total de 496 mil
pessoas. Destas, 77% são beneficiárias do Programa Bolsa Famílias e 72% estão em
situação de extrema pobreza.
Cabe registrar que os esforços para qualificar os dados relativos às famílias quilombolas
no Cadastro Único tiveram especial avanço com a inclusão de quesitos que identificam
a família e a comunidade quilombola no Formulário Principal de cadastramento, em
2010. O novo olhar do Cadastro Único para a temática quilombola foi acompanhado
Até o ano de 2010, a identificação das famílias quilombolas não se dava em campo
obrigatório do formulário, permitindo que as famílias quilombolas fossem cadastradas
sem o registro desta identidade. Apesar dos esforços para qualificar a identificação das
famílias quilombolas, que se refletem na significativa ampliação na cobertura cadastral
destas nos últimos anos, a subnotificação dessa população no Cadastro Único ainda
faz com que os agentes governamentais trabalhem com dados subestimados em re-
lação ao universo quilombola. Esta última ponderação não tem o intuito de minorar
os ganhos alcançados, mas sim de reconhecer a importância do trabalho realizado
e alertar para preponderância de sua continuidade no contexto da qualificação e da
focalização da ação governamental para a população quilombola.
Um dos esforços para saber mais sobre os quilombolas foi a Pesquisa de Avaliação da
situação de segurança alimentar e nutricional em comunidades quilombolas tituladas, realizada
pelo Ministério do Desenvolvimento Social em parceria com a Universidade Federal
Fluminense8, que apresentou resultados que ampliam a compreensão a respeito das
condições sob as quais vive esse público. Embora a pesquisa tenha ocorrido apenas
em comunidades tituladas – 169 comunidades –, ela ocorreu de modo censitário,
7
Dentre os materiais utilizados na for-
permitindo, assim, uma possibilidade de maior captação de variáveis socioeconômicas mação de entrevistadores, destaca-se
de quilombolas. o Guia de Cadastramento de Famílias
Quilombolas, que aborda questões con-
ceituais acerca das famílias e comunida-
O resultado mais premente da situação socioeconômica da população quilombola des quilombolas e apresenta orientações
analisada é a verificação da vulnerabilidade social que a caracteriza. A pesquisa de- para sua inclusão no Cadastro Único para
Programas Sociais.
monstrou, por exemplo, que a cobertura de serviços básicos para os quilombolas é 8
Para maiores detalhes sobre a pesquisa
baixa. No quesito saúde, a universalização do atendimento não pôde ser observada, ver o artigo “Análise das condições de
15% da população pesquisada não possuía sequer atendimento de agentes de saúde, vida, segurança alimentar e nutricional
e acesso a programas sociais em comu-
71,4% não contava com ações de equipes de saúde da família e 85% estavam situadas nidades quilombolas tituladas” neste
em comunidades sem unidade básica de saúde. Para a área de educação: 20% das Caderno de Estudos.
No que se refere à renda dessas populações, 45% dos domicílios pesquisados eram
compostos por famílias que possuíam menos de R$ 70,00 per capita, incluídas as
transferências oriundas do Programa Bolsa Família (PBF) que atinge 61% dos domi-
cílios quilombolas pesquisados. Ainda assim, 26% dos domicílios que não possuíam
qualquer rendimento, seja ele oriundo de atividades laborais, aposentadoria ou outras
fontes de renda, não faziam parte do PBF, o que indicava uma dificuldade entre as
famílias realmente mais pobres em acessar programas sociais.
Em termos de renda mensal média per capita dos domicílios das comunidades qui-
lombolas pesquisadas, o valor era de R$ 160,73, variando de acordo com a região e
com o grau de instrução materno, sendo para este último caso, maior a renda quan-
to maior o grau de instrução das mães quilombolas. Nos domicílios pesquisados,
verificou-se, ainda, que 31,4% deles faziam parte do programa de distribuição de
cestas de alimentos e que 13,4% do total de domicílios participavam do Programa
Minha Casa Minha Vida.
No mesmo sentido se dá o acesso a sistemas de coleta de lixo: apenas 9,9% das co-
munidades eram atendidas por esse serviço, com um nível de satisfação em torno de
25%. Entre as ações de infraestrutura foi possível identificar a presença de energia
elétrica em 87,6% das comunidades pesquisas e uma satisfação com o serviço na
ordem de 49%. O cenário de acesso à comunicação é, também, de baixa cobertura:
33,5% das comunidades tinham telefone público e apenas 5,5% eram comunidades
com presença de telecentros com acesso à internet.
Tal fato denota a necessidade de uma ação estruturada de apoio à produção rural, afinal,
a maior parte das comunidades quilombolas está inserida em um contexto rural e é
herdeira de uma tradição agrícola que só não se perdeu ainda devido ao fato de que
essas comunidades preservam modos de produção voltados para o autoconsumo,
como atestam os 20,8% que afirmaram consumir a maior parte do que produzem e
os 29,9% que dizem vender toda a produção para a própria comunidade. Ainda nesse
sentido, a pesquisa demonstrou que apenas 5% das comunidades possuíam algum
tipo de atividade vinculada ao universo da produção coletiva de animais.
Em muitos casos, a baixa produção rural foi atribuída à falta de recursos e de estrutura
produtiva adequada às realidades das comunidades. Existia uma percepção clara por
parte das lideranças que foram entrevistadas de que alternativas produtivas podem
ser implantadas, mas não estão sendo empreendidas. Tal fato leva a uma necessidade
premente de ampliação de ações governamentais nessas áreas que sejam capazes de
suprir tais comunidades com recursos financeiros, materiais, estruturais e logísticos
para garantir a produção para o autoconsumo e para a comercialização de parte dessa
produção. Apenas 21,1% das comunidades avaliadas possuíam algum tipo de projeto
sendo executado para otimizar seus processos produtivos, o que demonstra nesse
caso que a ATER poderia ser elemento fundamental para a reversão desse quadro.
No que diz respeito ao eixo de garantia de renda do Plano Brasil Sem Miséria, o
número de famílias quilombolas que acessou o Programa Bolsa Família (PBF) foi de
46.871 para 93.791 entre junho de 2011 e julho de 2014, representando um aumento
de mais de 100% dos beneficiários. O PBF é hoje o programa com maior cobertura
nas famílias quilombolas, tanto em números absolutos, quanto em relação ao número
de famílias inscritas no Cadastro Único, sendo 77% destas.
O Brasil Sem Miséria conta com ações importantes através de parceria com o Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) no âmbito do Programa
do Microempreendedor Individual (MEI), por meio da expansão das ações de apoio
aos empreendimentos de economia popular e solidária já realizadas pela Secretaria
Nacional de Economia Solidária no âmbito do Ministério do Trabalho, ou ainda por
meio da ampliação do percentual dos mais pobres com acesso ao crédito por meio
do Programa de Microcrédito Crescer.
Pensando nisso, foi estabelecida uma rota de inclusão produtiva para as famílias do
meio rural, concebida de forma a ser implementada como uma ‘esteira’ em que os
pequenos produtores fossem atendidos com várias políticas de apoio à produção.
Para melhorar a produção, além de ações de infraestrutura de acesso à agua e energia
através dos programas Água e Luz para Todos, foi criada uma ação específica mais
adequada à realidade das famílias de agricultores familiares mais pobres. Tais famílias
são, em sua maioria, caracterizadas por produzirem em pequenas propriedades, por
terem baixo aporte tecnológico na produção e pouco acesso aos programas de crédito,
necessitando de uma combinação de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) e
recursos de fomento para investir na melhoria da produção familiar.
Para a execução dos serviços de ATER foram lançadas Chamadas Públicas por parte
do Ministério do Desenvolvimento Agrário, parceiro fundamental para a execução
do programa. Até o momento foram lançadas duas Chamadas para contratação de
serviços de ATER para famílias quilombolas. A primeira Chamada lançada ainda em
2011 previa atender 5.520 famílias quilombolas distribuídas nos estados de Minas
Gerais, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará12. Em 2012, foi publicada
a segunda Chamada13 para mais 4.500 famílias quilombolas nos estados de Alagoas,
Goiás, Maranhão, Pará e Piauí. Até outubro de 2014, 3.583 famílias quilombolas
receberam os recursos não reembolsáveis do Programa de Fomento.
9
As chamadas de ATER feitas no âmbito
do Brasil sem Miséria se caracterizaram
por uma metodologia diferenciada que
É preciso pontuar que o início das atividades prestadas pelas entidades de ATER pioneiras
previa acompanhamento individualizado no atendimento a famílias quilombolas no modelo proposto pelo Plano Brasil Sem Mi-
das famílias em situação de extrema
pobreza; atividades coletivas periódicas;
séria encontrou algumas dificuldades que tiveram que ser superadas para que a ação fosse
contratação de técnicos da região; forma- bem sucedida entre os quilombolas. A mobilização das famílias quilombolas em campo
ção especíca para os técnicos de ATER revelou a enorme necessidade de ações de Busca Ativa tanto para inclusão no Cadastro
contratados; e elaboração de projetos
produtivos familiares que preveem as ati- Único quanto para a emissão da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), registros admi-
vidades nas quais os recursos do fomento nistrativos indispensáveis ao Programa de Fomento. Tal situação fez com que o MDS e
deveriam ser investidos.
o MDA se aproximassem das entidades e gestões municipais com o objetivo de orientar
10
A adoção de recursos a fundo perdido
e não a via tradicional de acesso ao
a condução das estratégias de campo, seja em relação a mutirões de emissão de DAP ou
crédito justicou-se pela defesa de que do encaminhamento para ações de cadastramento e atualização cadastral do CadÚnico.
os recursos do fomento seriam uma
primeira tentativa de colocar as famílias
em uma rota de produção sistemática e O atendimento das famílias quilombolas no Programa de Fomento ocorre em ativida-
continuada antes da tomada de crédito
nas linhas já disponíveis nos bancos. A
des individuais e coletivas, nas quais é estimulada a participação de mulheres e jovens.
ideia foi de que, após a primeira fase de Além disso, nesse processo de atendimento das famílias quilombolas a orientação é de
investimento dos recursos do fomento, as
famílias estariam em melhores condições
que os conhecimentos tradicionais sejam valorizados e somados aos conhecimentos
de entrar em programas de crédito, dimi- que os técnicos levam a campo.
nuindo a possibilidade de inadimplência.
11
O Programa de Fomento às Atividades É fundamental incluir as famílias de povos e comunidades tradicionais de forma
Produtivas Rurais foi instituído pela Lei
nº 12.512/2011, regulamentado pelo ampliada em ações que fortaleçam suas capacidades produtivas, como o Programa de
Decreto nº 7.644/2011 e parcialmente Fomento, a fim de consolidar as estratégias de sustentabilidade econômica e socio-
alterado pelo Decreto 8.026/2013.
ambiental que resultem em efetiva inclusão produtiva, de modo a retirar da extrema
Chamada Pública DPMRQ/MDA
pobreza esses segmentos populacionais, potencializando os resultados da transferência
12
nº003/2011.
de renda proporcionada pelo Programa Bolsa Família, reduzindo, inclusive, a neces-
13
Chamada Pública DPMRQ/MDA
nº009/2012. sidade da distribuição emergencial de alimentos.
No âmbito do crédito rural, foram contabilizadas 7,7 mil operações realizadas por
famílias quilombolas no Agroamigo, programa de microcrédito rural do Banco do
Nordeste (BNB). Ainda é possível observar o atendimento através do Programa
Bolsa Verde (PBV) de mais de mil famílias quilombolas que vivem em unidades de
conservação, assentamentos diferenciados ou territórios ribeirinhos. Ao ingressar
no Programa, as famílias assumem o compromisso de desenvolver atividades de
conservação e uso sustentável dos ativos ambientais que manejam a acessam, como
contrapartida pelo recebimento da transferência de recursos do Programa, equivalente
a R$ 300,00 pagos a cada três meses.
E, por último, o eixo de acesso a serviços públicos constitui-se por ações que visavam
alcançar como objetivo mais geral a ampliação do acesso aos serviços de saúde, edu-
cação e assistência social, por meio de atuação em duas frentes. Na primeira delas,
era necessário garantir o aumento da oferta de serviços para os extremamente pobres
por meio da expansão ou redirecionamento dos serviços e equipamentos existentes.
Em segundo lugar, era importante também colocar em andamento e fortalecer ações
de sensibilização, mobilização e qualificação dos servidores, garantindo um atendi-
mento adequado à população em situação de extrema pobreza que, com frequência,
vê-se submetida a um tratamento desrespeitoso e carregado de preconceitos por
parte de servidores de diferentes áreas e órgãos públicos, devido a múltiplas formas
de discriminação e preconceito.
14
As equipes volantes fazem parte dos
A expansão e o redirecionamento dos serviços basearam-se na alteração de critérios Centros de Referência de Assistência
Social (CRAS) e são responsáveis por
de alocação de novos equipamentos, priorizando os municípios e localidades com realizar a busca ativa destas famílias,
alta concentração de extremamente pobres. Alguns exemplos foram a alteração do por desenvolver o Serviço de Proteção e
Atendimento Integral às Famílias (Paif) e
Piso de Atenção Básica da saúde para os municípios mais pobres, a ampliação do demais serviços de Proteção Básica. Além
Programa Mais Educação para as crianças beneficiárias do Bolsa Família e a criação de disso, a equipe volante é responsável por
incluir as famílias no Cadastro Único,
novas modalidades de serviços de proteção básica da assistência social, voltados para realizar encaminhamentos necessários
localidades dispersas e rurais, como as equipes volantes14 e as lanchas para garantir o para acesso à renda, para serviços da
atendimento na região amazônica. Proteção Especial, entre outros.
Outra inovação da assistência social no BSM foi a entrega de lanchas na região Norte
do país, visando diminuir as dificuldades de deslocamento das equipes da assistência
social em regiões de transporte fluvial. Ao todo, em municípios com certidões ex-
pedidas às comunidades remanescentes de quilombos, foram entregues 33 lanchas
entre 2012 e julho de 2014.
No ano de 2013, 39.696 famílias quilombolas foram atendidas pelas cestas de alimen-
tos, em 5,5 remessas. Cabe observar que a indicação do público quilombola para rece-
bimento de cestas é feita pela Fundação Cultural Palmares e recepcionada pelo MDS.
Como parte das ações desenvolvidas pelo Ministério do Desenvolvimento Social, vale
ressaltar ainda o Comitê Técnico Povos e Comunidades Tradicionais (CTPCT). Uma
iniciativa que objetiva articular e apoiar ações de segurança alimentar e nutricional
para povos e comunidades tradicionais. Esse Comitê começou a se reunir em setem-
bro de 201215 e, a partir de 2013, focalizou seus trabalhos nas temáticas quilombola e
indígena. A prioridade do CTPCT é articular o atendimento de água para consumo
humano, Fomento/ATER, PNAE, PAA para os Povos e Comunidades Tradicionais,
15
Apesar de o Comitê manter rotina de
reuniões durante todo o ano de 2013 prioritariamente quilombolas e indígenas.
e 2014, somente em 01 de outubro de
2014 foi publicada a Resolução nº 06 da
Câmara Interministerial de Segurança As discussões e articulações do CTPCT para as famílias quilombolas já apresentam
Alimentar e Nutricional com instituição avanços e resultados nas ações de água, em que 10.813 novas famílias quilombolas
formal do CTPCT.
A forma de operacionalização das ações do Brasil Sem Miséria contribuiu para for-
talecer a importância de bases nominais do público do Plano de modo a garantir a
chegada das políticas para quem mais precisa delas. Nesse sentido, além de propiciar
um diagnóstico mais preciso sobre a realidade dessas famílias, suas potencialidades
e vulnerabilidades, as bases nominais contribuem para uma melhor formulação de
estratégias, implementação mais acertada e alinhada com a realidade local e monito-
ramento mais preciso da chegada de ações voltadas para estas comunidades.
Ainda que essas preocupações sejam compartilhadas por todos os órgãos e entidades
envolvidos na agenda quilombola, uma das maiores dificuldades é encontrar o equilí-
brio entre ações com escala adequada e a customização de soluções para comunidades
específicas que experienciam situações muito particulares, em alguns casos.