Raiva e Ruina - Jennifer L. Armentrout
Raiva e Ruina - Jennifer L. Armentrout
Raiva e Ruina - Jennifer L. Armentrout
Roth.
Também conhecido como Astaroth, que por acaso era o Príncipe
da Coroa do Inferno.
— Ele sabe onde você mora? — perguntei.
— Aparentemente — Zayne resmungou. — Esse bairro agora já
era.
Eu segurei a risada enquanto Zayne atravessava o apartamento e
colocava o celular na ilha da cozinha. Eu não estava tão preocupada
assim com Roth soubendo onde Zayne morava ou que ele estivesse
aqui. Sim, Roth era um demônio — um demônio de Status Superior
muito poderoso —, mas não era o inimigo.
Pelo menos, não o nosso.
Zayne e Roth tinham uma relação estranha.
Muito disso tinha a ver com o fato de que Guardiões e demônios
sendo remotamente amigáveis um com o outro era algo inédito,
porque, bem, por razões óbvias. Um representava o Céu. O outro
representava o Inferno. Guardiões caçavam demônios. Demônios
caçavam Guardiões. Esse era o ciclo da vida em si, e era
perfeitamente compreensível que fossem inimigos natos.
Só que não era o caso.
Zayne foi o primeiro Guardião que eu conhecera que não via todo
tipo de demônio como se fossem o mal encarnado. Como todos os
Guardiões, fui criada para acreditar que não havia dúvida quando se
tratava da maldade deles, mas, por causa de Zayne, eu estava
aprendendo que os demônios eram... complexos, e alguns pareciam
ser capazes de exercer o livre-arbítrio, assim como os humanos e os
Guardiões.
Nem todos os demônios eram irracionalmente maus. No entanto,
eu não tinha certeza se ser racionalmente mau era melhor, mas eu
estava aprendendo que o bem e o mal não eram definitivos. Que
ninguém, nem mesmo Guardiões ou demônios, nasceu de uma
maneira e ficou estagnado em suas escolhas e ações. Os demônios
eram capazes de grande bondade, e os Guardiões podiam causar
grande mal.
Por exemplo... Misha. Embora os Guardiões nascessem com almas
puras — e se houvesse uma lista de tudo o que há de bom e puro
no mundo, eles estariam muito perto do topo —, Misha tinha feito
coisas horríveis. Ele tinha sido maligno. Não havia como negar isso.
Mas não era apenas o que Zayne e Roth eram que tornava
estranho que eles fossem meio que amigáveis um com o outro. Era
o que eles tinham em comum.
Layla.
Enfim, eu achava que Zayne e Roth eram uma espécie de
animigos — amigos que são inimigos.
Roth havia ajudado a mim e Zayne a nos encontrarmos com o
coven de bruxas responsável por colocar um encantamento em
humanos, e isso era algo que ele não precisava ter feito. Outra coisa
estranhamente nada demoníaca que ele fizera foi quando tínhamos
sido emboscados por demônios de Status Superior e quase
morremos na casa do senador Fisher. Roth voltara para ajudar Zayne
depois que ele tinha deixado Layla em um lugar seguro. Talvez ele
tivesse feito isso por causa da história complicada de Layla com
Zayne, mas ele tinha voltado, e isso significava algo.
— Espere — eu falei. — Você disse que ele tá trazendo amigos?
Ele assentiu com a cabeça.
— Isso.
Todos os músculos do meu corpo retesaram quando Zayne foi até
o console ao lado da porta e apertou um botão bem quando um
zumbido veio do interfone.
— Subam — ele disse no alto-falante, com a voz cheia de
exasperação.
Quando Roth disse amigos, ele quis dizer Layla? Será que ele
realmente a traria aqui, sabendo tudo o que havia acontecido entre
ela e Zayne? Foi o demônio que me contara sobre a história confusa
de Zayne e Layla. Eu não fazia ideia daquilo até Roth ter me
contado.
Contudo, se ele a tivesse trazido, eu não tinha problema com
Layla estar aqui. Ela não tinha sido nada além de gentil comigo —
bem, ela não tinha exatamente me recebido de braços abertos
quando a conheci. Eu ainda achava que havia uma boa chance de
ela querer me devorar, mas ela parecia legal e era evidente que
estava profundamente apaixonada por Roth.
Talvez Roth estivesse trazendo Cayman, um corretor demoníaco
que permutava almas e outros bens valiosos por uma série de coisas
que os humanos estavam dispostos a dar. Ele até fazia acordos com
outros demônios, então ele era um jogador justo. Eu esperava que
fosse Cayman, porque eu sabia que estava suada, bagunçada e que
o meu cabelo estava um ninho de...
Senti a súbita pressão quente ao longo da nuca e, em um piscar
de olhos, a porta se abriu. A primeira pessoa que vi foi o príncipe
demônio.
Roth era a morte e o pecado embrulhados em beleza. Cabelo
escuro e espetado. Maçãs do rosto altas e angulares. Boca
exuberante. Só o rosto dele já seria capaz de vender milhares de
capas de revistas e provavelmente de iniciar algumas guerras.
— Você parece tão feliz em me ver — disse Roth, com seu tom
leve e aqueles lábios curvados em meio sorriso enquanto olhava
para Zayne. O demônio era um pouco mais alto que o Guardião, mas
não tão largo.
— Tô simplesmente animadíssimo. Mal consigo me conter. —
Zayne permaneceu perto da porta, seu tom seco como um pedaço
de pão queimado. — Não tinha ideia de que você sabia onde eu
morava.
— Eu sempre soube — respondeu o demônio.
— Bem, isso é... ótimo.
— Eu não sabia. — Uma voz familiar falou por trás de Roth. — Ele
nunca me disse que sabia onde você morava.
Meu olhar se concentrou no vão do elevador. Roth não estava
sozinho, e ele definitivamente não tinha trazido Cayman.
Quem falou foi ela. Layla. E, meu Deus, ao vê-la era fácil entender
por que Zayne tinha se apaixonado tanto por ela. O motivo pelo qual
até um demônio como Roth se apaixonaria. Ela era um paradoxo.
Com cabelos loiros brancos, olhos grandes e uma boca arqueada, ela
tinha uma mistura surpreendente de inocência de boneca e de
sedução crua esculpidas em cada traço do rosto. Ela era a
personificação do bem e do mal, filha de um Guardião e de um dos
demônios mais poderosos do mundo, a qual felizmente estava
enjaulada no Inferno.
Eu sabia que havia mais nela do que o fato de que era
interessante de se olhar. Tinha de haver para Zayne tê-la amado. Ele
era muito menos superficial do que eu.
— Meio surpreendente que ele manteve esse segredo — Zayne
disse, claramente entretido e talvez até um pouco feliz. — Vejo que
alguém veio com vocês.
— Não conseguimos nos livrar dela. — Roth se virava para mim
quando outra pessoa saiu do elevador e praticamente se lançou
sobre Zayne.
Com facilidade, ele segurou a garota alta e magra, vestindo calça
jeans escura e uma regata azul-violeta. Os braços dela envolveram
os ombros de Zayne, e os dele contornaram a cintura estreita dela.
Quem, em nome de Deus, era aquela?
Minhas entranhas pareciam estranhas, geladas até os ossos,
enquanto eu observava Zayne abaixar a cabeça e dizer algo para a
garota, o que lhe rendeu uma risada abafada dela. O que é que ele
tinha dito? Melhor ainda, por que ele ainda a segurava como se
fossem velhos melhores amigos que não se importavam que um
deles estivesse super suado?
— Olá.
Levei um segundo para perceber que Roth estava falando comigo.
Olhei de relance para o demônio e depois voltei a encarar Zayne e a
garota.
— Oi.
Roth se aproximou de onde eu estava sentada.
— Layla tava preocupada com Zayne e queria...
— ...Ver por mim mesma que ele realmente tava bem. — Layla
entrou na conversa. — Roth iria me dizer que Zayne tá bem, mesmo
que não estivesse, só pra que eu não ficasse chateada.
— É verdade — Roth concordou, e não havia nem um pingo de
vergonha ali.
— E essa é uma das razões pelas quais estamos aqui — Layla
finalizou. A voz dela estava baixa e tão cheia de alívio que tive de
desviar o olhar de Zayne e a garota, que ainda brincavam de polvo.
Layla estava olhando para mim, seus olhos azuis quase do mesmo
tom que os de Zayne, o que era estranho. — Ele realmente tá bem,
né? Ele parece bem.
Piscando como se estivesse saindo de um transe, acenei com a
cabeça.
— Ele... ele tá perfeito.
A cabeça de Layla se inclinou ligeiramente enquanto um par de
sobrancelhas castanhas claras se uniam.
Percebi o que eu tinha dito.
— Quero dizer, ele tá totalmente bem. Em perfeita saúde e tal.
Muito bem.
Roth riu enquanto Layla assentia lentamente com a cabeça.
Finalmente, depois de cerca de vinte anos, o feliz reencontro à
porta se desfez. Eu sabia que Zayne estava sorrindo, embora eu não
pudesse ver seu rosto com nitidez.
Eu sabia disto porque conseguia sentir o sorriso através do calor
no meu peito. Felicidade. Era como deitar-se sob o sol, e eu com
certeza não estava sentindo isso no momento.
Zayne estava genuinamente feliz em ver esta garota, ainda mais
do que ele estava em ver Layla.
— Essa é Stacey. — Layla me informou. — Ela é uma amiga
nossa, e eles se conhecem há... Deus, há anos.
Stacey.
Eu conhecia aquele nome.
Esta era Stacey — a garota de quem Roth havia me contado a
respeito na mesma noite em que tinha lançado a bomba sobre Layla.
Eu não conhecia tudo sobre ela, mas conhecia o bastante para saber
que ela apoiara Zayne depois que ele perdera o pai e Layla, e ele a
apoiara depois que ela também perdera alguém.
Eles tinham sido amigos... mas mais do que isso. Essa foi a
impressão que Roth tinha me passado, e Zayne também. Com base
naquele reencontro, eles poderiam ainda ser mais.
Uma sensação desconfortável se agitou através de mim, e eu
tentei desesperadamente fazê-la desaparecer enquanto plantava um
sorriso no meu rosto e torcia que ele não parecesse tão bizarro
quanto eu o sentia. Meu estômago estava dando cambalhotas por
todo o lado. Talvez os ovos não estivessem bons, porque achei que
poderia vomitar.
A cabeça de Zayne girou em minha direção, e eu enrijeci,
percebendo que ele estava captando as minhas emoções através do
vínculo.
Mas que Inferno.
Comecei a pensar em... lhamas e alpacas, como eram tão
parecidas, como se fossem um cruzamento entre ovelhas e pôneis.
Alpacas eram como gatos e lhamas eram como cachorros, isso era...
— Quando soube que você tava ferido, tive de vir vê-lo. — Stacey
recuou, mas depois bateu no braço de Zayne com o soco mais fraco
que eu já tinha visto. Parei de pensar em lhamas e alpacas. —
Especialmente porque não sei de você tem uma era. Tipo uma era
mesmo.
— Sinto muito por isso. — Ele se voltou para ela. — Ando super
cheio de coisas pra fazer ultimamente.
Stacey inclinou a cabeça.
— Ninguém neste mundo tá tão ocupado que não tenha cinco
segundos pra enviar uma mensagem dizendo oi, ainda tô vivo.
Ela podia ter um soco fraco, mas também tinha razão, e isso me
fez pensar em Jada. Que desculpa eu daria por não ter retornado as
ligações dela?
— Tem razão. — Zayne levou Stacey até o resto de nós. — Essa é
uma desculpa esfarrapada. Não vou mais usa-la.
— É bom mesmo. — Stacey chegou à ponta da ilha da cozinha, e
agora ela estava perto o suficiente para que eu pudesse ver suas
feições. Cabelos castanhos na altura do queixo emolduravam um
rosto bonito, e então ela estava olhando para mim da maneira que
eu imaginava estar olhando para ela. Não com hostilidade imediata,
mas definitivamente com uma parcela saudável de suspeita. —
Então, esta é ela.
Eu me sobressaltei, e a minha língua se descolou do céu da minha
boca.
— Depende de quem você acha que ela é.
— Sim, esta é Trinity. — Layla interveio. — Ela é a garota de quem
falamos. Ela morava em uma das maiores comunidades de
Guardiões da Virgínia Ocidental e veio aqui pra procurar por um
amigo dela.
Voltei meu olhar para Roth enquanto eu me perguntava o que
mais eles tinham dito à Stacey. Tipo, o que eu era. Se fosse o caso,
nós estávamos prestes a ter um problemão. Talvez eu tivesse de
silenciar Stacey. Comecei a sorrir.
Roth piscou um olho âmbar para mim.
Meu sorriso se transformou em uma carranca. Olhei de volta para
Stacey.
— É, essa sou eu.
— Sinto muito pelo seu amigo — Stacey disse depois de alguns
segundos, e havia verdade em seu tom. — Isso é uma merda.
Desconfortável, pois eu recém estava planejando a morte dela e
sorrindo por isso, murmurei:
— Obrigada.
— Eles me disseram que você é treinada pra lutar como esse
grandalhão. — Ela levantou um cotovelo em Zayne. — Isso é bem
legal. Não sabia que os Guardiões treinavam seres humanos.
— Ou que os criavam — Roth acrescentou —, como animais de
estimação.
Meu olhar estreitado pousou no demônio.
— Eu não fui criada como um animal de estimação, seu idiota.
Ele sorriu.
— E os Guardiões não costumam treinar humanos. — Meu olhar
se voltou para o de Zayne. Ele abaixou o queixo, e parecia que ele
também estava segurando o riso. Tirando o fato de Roth ter me
comparado a um animal de estimação, esta era uma boa notícia.
Roth e Layla não tinham dito tudo. Respirei fundo.
— Eu sou uma... casualidade.
— Casualidade — Roth repetiu baixinho enquanto olhava para
mim. — Isso você é, mesmo.
Eu estava a quinze segundos de mostrar a ele exatamente o que
eu tinha sido treinada para fazer.
— Muitas casualidades rolando ultimamente.
O sorriso de Roth aumentou um pouco.
— Então, quando você vai voltar pra casa? — Stacey perguntou.
Aquilo não era tanto uma pergunta, mas mais como se ela
estivesse me dispensando. Tipo, prazer em te conhecer, mas é hora
de você ir embora.
Quanta grosseria.
— Ela não vai — Zayne respondeu, encostando-se no balcão. —
Ela vai ficar comigo por tempo indeterminado.
A sala ficou tão silenciosa que poderia se ter ouvido o espirro de
um grilo. Se grilos de fato espirrassem. Eu não fazia ideia se eles
tinham vias nasais ou problemas respiratórios.
— Ah — Stacey respondeu. Sua expressão não murchou em
decepção ou ficou vermelha de raiva. Ela não mostrou qualquer
emoção, e normalmente eu era boa em ler as pessoas.
Comecei a desviar o olhar dela, mas algo estranho chamou a
minha atenção. Havia uma... sombra atrás de Stacey, na forma de
uma... pessoa? Da mesma altura que ela, talvez um pouco mais alta
e um pouco mais larga. Apertei os olhos enquanto eu me
concentrava nela e vi... nada. Nenhuma sombra.
Stacey estava começando a franzir a testa...
...porque eu a estava encarando.
Um rubor penetrou nas minhas bochechas enquanto eu me
ocupava em olhar para a minha lata de refrigerante vazia, deixando
a sombra estranha de lado. Às vezes os meus olhos faziam isso —
faziam-me pensar que eu via coisas quando não havia nada lá.
— Bem, já que isso tá resolvido, vocês realmente vieram aqui só
pra ter certeza de que tô vivo? — Zayne quebrou o silêncio
constrangedor. — Não que eu não esteja feliz em ver vocês...
— Você deveria estar emocionado em nos ver — Roth o
interrompeu.
— A gente sabe que você não tá feliz em ver ele. — Os lábios de
Stacey se abriram em um sorriso.
— Mas é bom você estar feliz em me ver, sim — Roth disse.
— É claro que tô feliz em te ver — ele disse, e assim o fez com um
sorriso. — Mas, como vocês podem ver, eu tô bem. Não precisavam
se preocupar.
— Eu só precisava ver com os meus próprios olhos. Nós
precisávamos ver. — Layla estava ao lado de Roth, de braço dado
com o demônio enquanto ela se inclinava para ele. Roth vestido todo
de preto e Layla com aquele cabelo loiro-branco e um lindo vestido
maxi rosa-claro-e-azul eram um belo contraste de luz e trevas. —
Espero que não esteja zangado por termos vindo.
Esperei com a respiração presa pela resposta de Zayne, porque eu
honestamente não estava captando muito através do vínculo, exceto
por aquela fagulha momentânea de felicidade quando ele abraçara
Stacey. Eu não sabia se isso significava que ele não estava sentindo
algo poderoso o suficiente para eu sentir, ou se ele era melhor do
que eu em controlar as próprias emoções. Esse devia ser o caso,
mas eu sabia que quando Zayne e Layla tinham conversado,
enquanto Roth e eu estávamos nos encontrando com as bruxas, ele
não parecera tão aliviado com a conversa. Na verdade, ele tinha
ficado taciturno e…confuso naquela noite.
Zayne olhou para Layla, e eu pensei que aquela devia ser a
primeira vez que ele tinha realmente olhado diretamente para ela
desde que eles tinham chegado.
— Não, não tô zangado — ele disse, e acreditei nele. — Apenas
surpreso. Só isso.
Layla não conseguiu esconder sua surpresa, e eu me perguntei se
ela tinha esperado que Zayne dissesse o contrário. Uma parte
minúscula e honesta de mim realmente se sentiu mal por ela
enquanto um sorrisinho hesitante começava a se abrir.
— Que bom — ela sussurrou, piscando rapidamente.
Roth abaixou a cabeça, pressionando os lábios contra a têmpora
dela, e o meu olhar disparou para Zayne. Não houve reação.
Nenhuma explosão de ciúme ou inveja através do vínculo ou no
rosto dele.
Zayne apenas sorriu fracamente e perguntou:
— Como você tá se sentindo?
— Bem. — Ela limpou a garganta enquanto dava tapinhas no
abdômen. — Só um pouco dolorida. Acho que aquele Rastejador
Noturno maldito tava tentando me estripar.
O rosnado baixo que veio de Roth era surpreendentemente
semelhante ao som que Zayne havia feito.
— Acho que tô feliz por nunca ter visto um Rastejador Noturno. —
Stacey ponderou com os lábios franzidos. — O nome por si só não
remete a nada agradável.
— Havia uma horda inteira deles incubando nos vestiários antigos
da escola — Layla comentou, casual, como se não fosse grande
coisa. — Foi um tempo atrás, e Roth e eu matamos todos eles, mas,
cara, aquelas coisas são horríveis.
Eu tinha tantas perguntas sobre por que uma horda de
Rastejadores Noturnos incubando estaria nos vestiários de uma
escola humana.
— Eu realmente não precisava saber disso — Stacey estremeceu.
— Nem um pouquinho.
— Ei, você só tem mais algumas semanas de escola de verão, e
daí você vai receber o seu diploma. — Layla sorriu para a amiga. —
Aí você não vai ter que se preocupar com a nossa pequena versão
de Buffy da Boca do Inferno.
— Acho que temos mais atividades demoníacas naquela escola do
que Buffy teve em todas as temporadas juntas — Stacey comentou.
Eu tive de me perguntar quantos outros demônios além de Roth e
talvez Cayman ela tinha visto. Apenas humanos que foram
acidentalmente introduzidos ao mundo dos terrores noturnos, e que
de alguma forma sobreviveram, e aqueles que foram confiados de
manter a verdade em sigilo sabiam sobre os demônios.
Stacey provavelmente achava que eu era uma dessas exceções.
— Escola de verão? — Eu não tinha ideia se isso era normal no
mundo humano, e também não tinha muita certeza se eu sabia o
que isso significava.
— Acabei perdendo muitas aulas no início do ano. — Stacey
afastou uma mecha curta de cabelo para trás da orelha e cruzou o
outro braço sobre a barriga. — Muitas aulas pra eu repor, então tô
presa na escola pelas próximas semanas.
— Mas eles a deixaram desfilar com a turma durante a formatura
— Layla me disse. — Essas aulas são mais como uma tecnicalidade.
— Uma tecnicalidade? — Stacey riu suavemente. — Quem me
dera. Parece mais uma espécie de castigo cósmico. Por acaso você
sabe o cheiro que fica naquela escola durante o verão?
— Isso eu não sei — Roth respondeu. — Mas tô morrendo de
vontade de saber.
Stacey o atingiu com um olhar.
— Cheiro de desesperança, injustiça e um par de tênis velhos e
úmidos que foram usados pra cruzar todos os becos da cidade
enquanto a pessoa não usava meias.
Eca.
— Sabe, eu costumava pensar que tava perdendo toda a coisa de
frequentar uma escola pública, mas me enganei. — Zayne fechou os
olhos brevemente. — Bastante.
— Eu meio que sinto falta daquele cheiro — Layla murmurou, e
todos a lançaram um olhar duvidoso. Ela deu de ombros.
— Bem, ninguém mais vai conhecer aquele cheiro e gostar dele
como você — Stacey sorriu.
— Ah, é. A escola vai ser reformada ou algo assim no outono. Já
era hora. Tenho quase certeza de que os armários e o sistema de ar-
condicionado já são peças de museu.
— Assim como a comida — Roth disse.
Confusão passou por mim.
— Como você sabe como era a comida?
O sorriso de Roth era como fumaça.
— Eu recebi educação pública por um período muito curto de
tempo.
Eu quase ri do absurdo que era o Príncipe da Coroa do Inferno
frequentar a escola pública.
— Enfim... — Layla se virou para mim. — Você salvou a minha
vida algumas noites atrás. Duas vezes.
Enrijeci.
— Não exatamente. Quer dizer, eu só tava fazendo o que eu...
precisava fazer.
Seu olhar pálido se manteve sobre o meu.
— Você sabe que não foi nada. Foi algo importante, e as coisas
poderiam ter ficado ainda pior do que já estavam.
Isso era verdade. Eu tinha me cortado intencionalmente para
atrair os demônios que cercavam Roth e Layla. No momento em que
sentiram o cheiro do meu sangue, toda a massa deles tinha se
apressado em me cercar como se eu fosse um buffet livre para
demônios, permitindo que Roth tirasse Layla de lá.
— Eu te agradeço — ela concluiu.
Quis começar a discutir, mas percebi que não fazia sentido, por
isso apenas assenti com a cabeça.
— Essas são as plantas baixas que encontramos na casa do
senador? — Layla mudou de assunto, escapando de Roth e
chegando à ilha da cozinha para olhar o papel.
— Isso — Zayne respondeu.
Enquanto ele contava aos outros sobre o que sabíamos, o que não
era muito, sentei-me e escutei. Bem, fingi escutar enquanto olhava
furtivamente para Zayne... e para Stacey.
Eles acabaram lado a lado quando Zayne começou a mostrar para
todos os artigos que tinha encontrado sobre o senador Fisher. Ela fez
muitas perguntas, como se discutir senadores poderosos que
estavam envolvidos com demônios fosse uma conversa que ela tinha
uma vez por semana. E isso não foi tudo o que ela fez.
Stacey gostava de encostar.
Muito mesmo.
Parecia despretensioso. Um soquinho provocador ou um tapinha
no braço, como se fosse algo que ela fazia com bastante frequência.
Uma jogada de quadril contra quadril interrompia os soquinhos de
vez em quando, e Zayne reagia com um sorrisinho rápido ou um
balanço da cabeça. Mesmo se eu não soubesse que eles tinham sido
íntimos antes, e, mesmo com a minha experiência em
relacionamento sendo praticamente limitada a ficar na plateia, ainda
assim eu teria percebido. Havia tranquilidade entre eles, uma
naturalidade que dizia que se conheciam muito bem.
A queimação amarga na minha garganta tinha muito gosto de
inveja, então abri a gaveta identificada como zayne e joguei esse
sentimento lá dentro, depois a fechei com força.
Ela permaneceu aberta, apenas uma lasca.
Descansando meu cotovelo no balcão e meu queixo na mão, vi os
quatro se amontoarem em torno das plantas da construção. Agora
eu sabia como Minduim se sentia em uma sala cheia de gente com
ninguém prestando atenção nele. Ele também mergulhava em
autopiedade como eu estava fazendo? Provavelmente.
Eu arrastei meu olhar para longe do grupo e encarei o chão de
cimento cinza. Zayne estava falando sobre os demônios da noite
passada, mas deixando de fora certos detalhes, talvez para que
Stacey não fizesse perguntas.
Os meus óculos escorregaram pelo meu nariz e apertei os olhos.
Havia uma pequena rachadura no cimento, e me perguntei se tinha
sido feita de propósito. Perfeição em excesso era considerada uma
coisa ruim hoje em dia, um defeito em si. Quão irônico era isso?
Por que diabos eu estava pensando em rachaduras no chão? A
minha mente era normalmente um pensamento sem sentido
contínuo após o outro, mas isto era ridículo. Ainda assim, era melhor
do que...
— Ei. — A voz de Zayne foi seguida pelo peso de sua mão no meu
ombro.
Levantei a cabeça tão depressa que os meus óculos começaram a
levantar voo. O reflexo de Zayne estava em dia. Ele os apanhou
antes que deixassem o meu rosto por completo, endireitando-os.
— Você tá bem? — ele perguntou, a voz baixa.
— Sim. Super. — Sorri quando percebi que tínhamos uma
audiência. — Só viajei um pouco. Perdi alguma coisa?
Seu olhar procurou o meu enquanto um leve vinco aparecia entre
suas sobrancelhas.
— Eles estão se preparando pra ir embora.
Por quanto tempo eu ficara olhando para aquela rachadura? Meu
Deus.
— Mas antes você vai me levar pra um tour pelo seu apartamento
— Layla disse.
Zayne levantou um ombro.
— Bem, não tem muito mais do que o que você tá vendo agora.
Layla se virou para as portas fechadas.
— Tem de haver mais. — Ela começou a caminhar em direção às
portas. — Me mostra.
Zayne não teve muita escolha. Ele alcançou Layla assim que ela
abriu a porta do roupeiro. Roth estava apenas alguns passos atrás
deles, e isso significava...
Olhei para a direita e encontrei Stacey sorrindo para mim.
— Oi — eu disse, porque não tinha ideia do que mais dizer. —
Você não vai se juntar a eles no tour?
Ela balançou a cabeça.
— Não. Já estive aqui antes.
Manter meu rosto sem expressão foi um esforço digno de um
Oscar.
— E você não contou pra Layla?
— Não. Zayne não queria que ela soubesse, e, sim, achei isso
ridículo, mas aprendi há muito tempo a não ficar entre eles e a sua
disfunção funcional. — Inclinando o corpo na minha direção, ela
apoiou o quadril contra a ilha da cozinha. — Você sabe que eu sei.
— Sabe o quê? — Eu olhei de relance e vi Zayne e a dupla
desaparecendo para dentro do quarto.
— Que tem só um quarto aqui.
Voltei-me para ela.
— Tem razão.
Seus olhos castanhos encaravam os meus.
— Zayne é um cara muito legal.
Um calor irritadiço invadiu minha pele.
— Ele é um cara incrível.
— E eu não sei o que tá acontecendo aqui de verdade, mas tenho
a sensação de que Layla e Roth não estão sendo completamente
honestos sobre você.
— O que quer que esteja acontecendo aqui não é da sua conta —
eu disse a ela, minha voz baixa.
— Vamos ter que discordar sobre isso, porque Zayne é meu amigo
e eu me preocupo muito com ele, então é da minha conta, sim.
— Tem razão. Vamos ter que discordar sobre isso.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Só saiba que se você machucá-lo, de qualquer forma, vai ter
que lidar comigo.
Eu teria rido na cara dela, mas na verdade respeitei essa ameaça.
Respeitei, mesmo. Fiquei contente por Zayne ter uma amiga assim.
Um pouco irritada, também, mas principalmente contente.
Então, eu disse:
— Você não tem com o que se preocupar, Stacey. Sério.
— Vamos ver. — Seu olhar se afastou de mim enquanto ela se
distanciava do balcão. — Como foi o tour?
— Curto — Roth disse. — Muito curto.
— É. — Layla parecia um pouco preocupada. — É um lugar
bacana. O banheiro é incrível.
Eu me perguntei se ela estava pensando a mesma coisa que
Stacey sobre o quarto. Nenhuma das duas precisava mais perder
tempo com a ideia de algo de interessante acontecendo naquela
cama.
Infelizmente.
Houve uma rápida sucessão de despedidas, e eu saltei da
banqueta, minha pobre bunda formigando.
Zayne seguiu as garotas até a porta do elevador, mas Roth ficou
para trás. Eu não percebi que ele estava tão perto de mim até que
ele entrou na minha visão central. Aqueles olhos alaranjados
sinistros se encontraram com os meus, e quando ele falou as suas
palavras foram proferidas apenas para os meus ouvidos.
— Voltarei a te ver, em breve.
Capítulo 7
O Augúrio.
Faye confirmou o que eu suspeitara. O coven sabia sobre o
Augúrio e deviam ter ajudado a criatura de maneira consciente,
direta ou indiretamente.
— Você conheceu o Augúrio? Você o viu? — perguntei, porque se
ela pudesse me dar alguma descrição, ajudaria.
Faye balançou a cabeça.
— Não. Nós nem sequer sabemos o que ele é, mas quando Baal
chegou depois de vocês irem embora, eu sabia que alguém estava
nos vigiando. Sabiam que vocês estiveram aqui.
Roth deu de ombros.
— Mas eles não sabiam o que você nos disse. Você contou pra
eles, e poderia ter mentido. Isso tá começando a me aborrecer,
Faye.
— Baal sabia que estávamos planejando ir embora. Ele... sabia
que tínhamos sentido essa... essa grande perturbação. Um
desequilíbrio que nenhum de nós tinha sentido antes. — Ela abaixou
o olhar enquanto seus dedos ficavam imóveis sobre o guardanapo.
— Quando Baal veio, ele nos disse que não tínhamos feito um
acordo apenas com o senador, mas com aquilo, esta coisa que ele
chamou de Augúrio. Não sabíamos até então que era ele o que
estávamos sentindo.
— Você nos traiu porque ele lhe disse o nome de alguma coisa
sobre a qual você não sabia nada? — Roth deu uma risada seca. —
Que escolha ruim, bruxa.
— Sabíamos o suficiente. — Inclinando-se para a frente, ela
manteve a voz baixa. — Ele nos mostrou do que o Augúrio é capaz.
Um dos membros do nosso coven, que estava em casa, tinha sido
morto. Baal tinha fotos — Sua pele enrugou-se em torno de seus
lábios, empalidecendo. — Paul. Paul foi assassinado.
Eu não fazia ideia de quem era Paul.
Aparentemente Roth sabia e não se importou.
— E?
Faye recuou, os ombros alinhando-se. Demorou um instante para
ela falar.
— Eu nunca... eu nunca tinha visto nada assim. Os olhos dele
estavam abertos na foto, queimados. As órbitas vazias. Ele não tinha
mais a língua, e as orelhas... parecia que alguém tinha enfiado
picadores de gelo nele, mas ele estava... ele estava sorrindo. O olhar
no rosto dele era pacífico, como se ele estivesse feliz. Como é que
isso poderia ser possível? A morte dele foi brutal. Como ele poderia
estar sorrindo?
Bem, isso com certeza parecia horrível.
— Por que você acha que isso não é algo de que Baal seria capaz
de fazer? Imagino que queimar os globos oculares não seja
exatamente difícil, e também não seria difícil convencer alguém de
que todo o processo foi bom enquanto estava sendo feito. — Roth
tirou o braço do encosto do sofá. — Os demônios podem não ser
capazes de persuadir grandes grupos de humanos a fazer ou a sentir
coisas, mas um só? Mel na chupeta.
— Estamos protegidos contra a persuasão demoníaca — ela
insistiu. — Nenhum demônio pode quebrar esse feitiço.
Roth parecia querer tentar, mas o método daquela morte não nos
dizia qualquer coisa sobre o Augúrio.
A bruxa se concentrou em Roth mais uma vez.
— Lamento que Layla tenha sido colocada em uma situação de
perigo. Sinto muito mesmo, mas fizemos um acordo com o senador,
e vocês... interferiram neste acordo e...
— Ah, sim. A coisa do Legítimo — Roth a cortou. — Foi-lhe
prometido um Legítimo em troca da ajuda do seu coven.
— Partes de um — lembrei-lhe. — Partes de um Legítimo.
— Sim. Foi isso que nos foi prometido. Ainda está prometido —
acrescentou.
Minhas sobrancelhas se levantaram enquanto a raiva fervia até o
ponto de ebulição dentro de mim.
— Você ainda acha que eles vão cumprir o acordo?
— Por que não cumpririam? — Ela pegou o copo. — Mantivemos
nossa parte do acordo e não ouvi nenhum de vocês dizer que
mataram alguém além de Aim.
Eu podia sentir Roth começar a se mover, mas fui mais rápida
quando me inclinei para a bruxa.
— Posso te garantir com cem por cento de certeza que eles não
vão conseguir manter a parte deles no acordo.
Seu olhar desdenhoso, quase desagradável, voltou-se sobre mim,
e percebi que, embora ela fosse majoritariamente humana, ela não
gostava de humanos. Ela não se considerava um deles.
Considerando que eu continuava a me referir aos humanos como
eles talvez eu também não me considerasse.
— E como você saberia disso? — ela perguntou, a voz sarcástica.
Era errado. Era extremamente perigoso e provavelmente mais do
que um pouco estúpido, mas ela estar tão totalmente desavisada do
quão perto estava de ser chutada para a próxima encarnação era
mais forte do que eu.
E eu sabia o que significaria o que eu faria a seguir.
Eu podia não ter vindo aqui querendo matar uma bruxa, mas é o
que acabaria fazendo. No momento em que lhe mostrasse o que eu
era, ela seria um problema — um problema irritante. Ela já tinha nos
traído antes, e uma vez que soubesse o que eu era, definitivamente
usaria essa informação a seu favor.
Talvez me sentiria mal sobre isto mais tarde. Talvez a culpa se
espalhasse e apodrecesse dentro de mim, porque certamente
poderia haver uma maneira não violenta de lidar com isso.
Mas no momento... não me importei.
Permiti que a minha graça fluísse para a superfície da minha pele.
Os cantos da minha visão ficaram brancos e dourados.
— Porque eu sou a Legítima que foi prometida a vocês.
Faye se engasgou com a água, os olhos esbugalhados enquanto
ela se jogava para trás contra o estofado do assento. O copo
escorregou de seus dedos e se espatifou na mesa e, imaginei que
com a ajuda de Roth, tombou em direção à bruxa. A água espirrou e
derramou em seu colo, mas ela não pareceu notar enquanto me
encarava.
— Pois é. — Eu deixei que ela absorvesse minha admissão antes
de retrair a minha graça. Guardá-la foi mais difícil do que deveria ter
sido. — Nunca vai acontecer.
— Meu Deus do Céu — ela sussurrou.
— Praticamente isso. — Descansei os cotovelos sobre a mesa e
coloquei o queixo nas mãos. — Você não traiu apenas Roth, o
Príncipe da Coroa do Inferno. Também me traiu e, por isso, alguém
muito importante pra mim ficou gravemente ferido. Por causa disso,
eu tive que... — eu me interrompi, sabendo que o que tinha
acontecido com Misha teria acontecido com ou sem a interferência
do coven. — Você fez merda. E das grandes.
— Você tá com medo dela. — A voz de Roth era suave.
— Aterrorizada — a bruxa admitiu.
Aquilo provavelmente fazia de mim uma má Legítima, mas os
cantos dos meus lábios se curvaram para cima em um sorriso.
O olhar de Faye disparou para o lado, e então seus lábios se
abriram como se ela estivesse prestes a falar.
— Nem pense nisso — Roth advertiu.
Eu olhei para ele, minhas sobrancelhas arqueadas.
— Ela estava prestes a lançar um feitiço — ele esclareceu. — Não
ia? Provavelmente algo ruim que ela acha que vai nos paralisar ou
nos fazer guinchar como galinhas. O que ela tá esquecendo é que
esses feitiços não funcionam em mim, e eles com certeza não vão
funcionar em um ser de sangue angelical.
Os lábios da mulher afinaram enquanto seu peito subia e descia.
Passou-se um longo tempo.
— Há mais de vinte bruxas aqui, cada uma delas poderosa por si
só. Os feitiços não são as nossas únicas armas.
— Isso é uma ameaça? — Roth indagou.
— Se for, você tá completamente sem juízo — eu disse. — Talvez
não tenha nenhum, mesmo. Então, eis o que vai acontecer. Você vai
libertar Bambi e Roth do acordo que ele fez com você.
— O quê? — Faye ofegou, seu olhar esbugalhado oscilando em
direção ao demônio. — Fizemos um acordo para salvar a vida de
Layla. Se voltar atrás, o seu demônio pagará o preço.
— Ele não tá pedindo pra ser liberado do acordo — eu disse, e
não precisei olhar para Roth para saber que ele estava sorrindo. —
Eu que tô te mandando. Você vai oferecer Bambi de volta pra ele. A
escolha será sua, por isso, obrigada. O acordo será anulado.
— Isso são aspectos técnicos — ela cuspiu, um rubor invadindo
suas bochechas mais uma vez. — Ele pediu pra você fazer isso.
— Mas não sou eu pedindo pra ser libertado do acordo. — A
presunção escorria da voz de Roth. — E você sabe que essa é a
única coisa que importa.
Faye começou a tremer de raiva, ou medo, ou possivelmente
ambos.
— E se eu recusar? Você vai me matar? Vai matar todo mundo
que está aqui? Porque é isso que vai acontecer. Se me atacarem,
eles vão me defender. — Ela abaixou o queixo, e uma rajada de ar
quente virou um guardanapo e mexeu os cachos de cabelo ao redor
do meu rosto. — Eu vou me defender.
— Você acabou de fazer isso? Fez uma brisa voar sobre a mesa?
— Arregalei os olhos. — Assustador. Realmente muito assustador, na
verdade agora tô tremendo de medo aqui.
Roth bufou.
— E quando foi que eu disse que permitiria que você vivesse
depois de entregar Bambi? — continuei, o meu queixo ainda
descansando nas minhas mãos. — Isso é muito presunçoso da sua
parte.
Faye inspirou bruscamente.
— Afinal, você quer que eu morra. Você realmente precisa que eu
morra pra fazer uso de todas as minhas partes gloriosas, que eu
duvido que serão usadas para o bem de qualquer pessoa além de
você ou seu coven — eu disse a ela. — Como diabos você poderia
pensar que sairia desta viva?
— Essa é uma pergunta muito boa — Roth disse. — E você
deveria ouvi-la e facilitar as coisas. Liberte Bambi e anule o acordo.
Sabe o que precisa ser dito. “Eu concluo este acordo negociado pelo
demônio Cayman e libero este familiar.” Isso é tudo. Diga.
— Eu... — Faye balançou a cabeça e depois estremeceu. Sua mão
flutuou até o braço, onde Bambi repousava. Ela ia liberar a familiar,
embora fosse muito...
Ela levantou as mãos.
A mesa entre nós nos acertou, prendendo-nos na cabine estofada.
A dor me atravessou o estômago enquanto Roth xingava.
Certo. Isso definitivamente não foi uma brisa.
Eu mexi meus dedos entre a mesa e minha barriga enquanto Faye
se levantava de seu assento, seu cabelo preto erguendo-se de seu
rosto enquanto seus dedos se estendiam. Sua pele enrubesceu e
seus olhos escuros brilharam em um marrom canela. Desci meu
olhar. Sim. Seus saltos pretos e discretos estavam a vários
centímetros do chão.
Ela estava levitando.
Eu queria poder levitar.
— Isso é o melhor que você consegue? — Roth riu, e eu
realmente queria que ele calasse a boca, porque a mesa agora
estava afundando nas palmas das minhas mãos e estava começando
a doer. — Você precisa de algo maior.
— Eu nem comecei a mostrar o que posso fazer. — A voz de Faye
era espessa como lama.
— E você também não viu do que eu sou capaz. — Roth colocou
as palmas das mãos na mesa.
O cheiro de enxofre atingiu o ar, e a mesa virou pó em um
nanossegundo. Tudo o que tinha estado sobre a mesa — o copo, a
velinha envolta em alumínio, os guardanapos — desapareceu. Até o
caderno que Faye tinha.
Certo. Isso sim era legal.
Enquanto eu me apressava para ficar em pé, a raiva da bruxa
pulsou como uma onda de choque, ondulando através do
restaurante, e minha graça respondeu, acendendo sobre a minha
pele.
— Lide com ela. — Roth girou em direção ao salão de jantar. — Eu
vou lidar com eles.
Eles eram as outras vinte ou mais bruxas que também levitavam.
Faye levantou a mão, e o ar parecia vibrar acima de sua palma.
Seus lábios se moveram em um cântico baixo e rápido que eu não
conseguia entender. Uma bola de fogo apareceu.
Eu desviei para o lado quando a esfera de chamas do tamanho de
uma bola de softbol atingiu a cabine em que eu estivera sentada. A
madeira pegou fogo, engolindo todo o assento muito rápido,
lembrando-me do fogo que o demônio Aim havia empunhado.
— Isso não foi legal! — Voltei-me para a bruxa.
O instinto entrou em ação, e eu podia sentir a graça comandando
meu braço, exigindo ser usada. Não podia. Não ainda. Não com
Bambi ainda na bruxa. Se eu a matasse, mataria a familiar.
Outra esfera de chamas se formou acima da mão dela enquanto
um grito de dor e uma explosão de calor vieram da direção de Roth.
O olhar de Faye disparou para a nossa direita.
Eu a ataquei, acertando-a no estômago com meu ombro. Ela
gritou enquanto eu a levava para o chão. A bola de chamas
esmaeceu quando seu corpo ricocheteou na madeira. Caí com ela,
enfiando o joelho no estômago da mulher. Ela grunhiu enquanto
balançava a mão em minha direção.
— Ah, não mesmo. — Agarrei-lhe um pulso e depois o outro. —
Sem mais truques de fogo. Liberte Bambi.
Faye tentou me afastar, contorcendo-se, mas ela não era treinada
para lutar, pelo menos não fisicamente. Eu a contive com facilidade,
prendendo os braços dela na altura da cabeça.
— Me larga! — ela gritou.
— Não vai rolar. — Outra explosão de ar quente subiu, desta vez
de Faye, e o ar ao seu redor começou a distorcer. A pele dela
esquentou debaixo das minhas mãos e, cacete, ela estava prestes a
se acender como o Tocha Humana das histórias em quadrinhos.
Ah, de jeito maneira.
Agarrei-a pela garganta, cortando-lhe o ar antes mesmo de ela
perceber que tinha dado o seu último suspiro.
— Nem pense nisso.
Com sua concentração quebrada, o calor evaporou de seu corpo.
Seus lábios se afastaram, mas nenhum ar estava entrando ou
saindo. Não com os meus dedos cravados em sua traqueia.
Precisava me acalmar, ou ela iria asfixiar, mas a minha mão
permaneceu ali. A raiva me consumia, fazendo com que os pelos
finos do meu corpo se eriçassem. Era como a noite com os
demônios Torturadores. A necessidade de rasgar pele e tecido foi
substituída pelo desejo de esmagar os ossos frágeis da garganta. Eu
podia fazer aquilo. Facilmente.
Os olhos de Faye se arregalaram, sua pele ficou com um tom
violento de vermelho quando ela abriu a boca, ofegando por ar que
não entrava.
Pare, eu disse a mim mesma. Você precisa parar ou Bambi vai
morrer.
Forcei os meus dedos a afrouxarem e a observei puxar o ar para
os pulmões. Um tremor passou por mim. Praguejando baixinho,
olhei para Roth e o vi segurando um homem a vários metros do
chão. Não havia mais ninguém. Nada além de montes de cinzas e
de…
Caramba.
Com o estômago dando cambalhotas, olhei rapidamente para
Faye. O meu olhar encontrou com o dela e, tão perto quanto
estávamos, vi o pânico por trás do enxofre. O sentimento fazia com
que os seus olhos parecessem esferas frágeis de vidro.
Meus dedos se contraíram, afrouxando ainda mais. Faye tinha
traído a nós, traído a mim. Ela precisava que eu morresse para
poder usar partes de mim para feitiços ou qualquer outra coisa
assim. Ela tinha acabado de tentar me transformar em uma grande
bola de fogo. Eu soube que ela tinha de morrer no instante em que
lhe mostrei o que eu era. Talvez eu já soubesse disso quando Roth
veio cobrar o seu favor. Inferno, eu já deveria saber disso lá no
fundo, quando percebemos que ela tinha nos traído.
Mas ela estava com medo.
Podia vê-lo nos olhos dela. Medo e pânico. Será que os olhos de
Ryker ficaram assim? Tudo tinha acontecido tão depressa naquele
momento, mas, mesmo que eu tivesse visto o medo nos olhos dele,
isso não teria me impedido. Não depois de ele ter matado a minha
mãe.
O choque que eu tinha visto nos olhos de Misha também não me
impedira.
Não iria me impedir agora.
Faye se ergueu, libertando-se do meu aperto. Ela me golpeou, seu
punho acertando-me na mandíbula. Foi um soco fraco, mas chamou
a minha atenção.
Agarrando os braços, dela que se agitavam com uma das mãos,
voltei a prendê-la como antes, com os membros imobilizados e a
minha mão em volta da sua garganta.
— Solte Bambi agora — eu mandei, apertando meus dedos em
sua garganta, colocando a quantidade certa de pressão em sua
traqueia. — Diga as palavras. Vamos.
Faye engasgou enquanto seus olhos se esbugalhavam.
— Se eu fizer isso, você vai me matar. Mas se ela estiver em mim,
estou segura.
Aparecendo ao meu lado, Roth se ajoelhou.
— Só pra você saber? Se Bambi morrer por causa das suas ações,
vou alongar a sua morte até que me implore pra acabar com você. E
quando implorar? Vou caçar todos os membros da sua família e eles
vão pagar pelas suas transgressões. Então, e só então, depois de
você ver todas as pessoas que conhece e ama morrerem por sua
causa, vou acabar com a sua vida.
— Sério? — eu disse a ele.
Ele não me respondeu, ainda focado em Faye.
— Você tá me entendendo?
A bruxa gritou enquanto eu relaxava meu aperto em sua
garganta.
— Eu vou morrer, então por que eu me importaria?
— Sério? — repeti, olhando para ela.
Faye respirou fundo e depois parou de lutar contra mim. Seu
corpo ficou mole contra o chão.
— Vá em frente. Me mate. Mas eu nunca vou liberar a familiar.
— Por quê? — eu exigi.
— Se eu não posso tê-la, ninguém a terá.
— Você tá falando sério? — Furiosa, golpeei meus dedos na lateral
dela, quebrando pelo menos duas costelas. Ela gritou. — Desculpa.
Os meus dedos escorregaram.
— Será que escorregaram mesmo? — Uma voz desconhecida
reclamou.
Olhando para cima, eu quase engasguei com a minha própria
respiração. Uma velhinha estava entre duas mesas quebradas, a
apenas meio metro de nós. E ela não era apenas velha. Ela parecia
ter bem mais de cento e tantos anos de idade. Tufos de cabelo
branco como a neve emolduravam um rosto de pele escura. Ela
estava perto o suficiente para eu ver como suas bochechas e testa
eram enrugadas e cheias de vincos. Em sua camisa rosa pálido
estava escrito a melhor vovó do mundo e combinava com um par de
calças curtas de linho rosa que cobriam seu corpo frágil. Os tênis
brancos de sola grossa completavam o visual. Ela estava ladeada por
um homem e uma mulher que eu reconheci como Rowena, a
recepcionista. Eu não tinha ideia de como ela estava em pé por
conta própria e não morta e enterrada, mas aqueles olhos eram tão
afiados quanto uma lâmina e sua voz soava tão forte quanto a de
qualquer um de nós.
— A Anciã — Roth explicou em um murmúrio, com todo o seu
corpo ficando tenso ao meu lado. — Isto vai terminar muito mal ou
não tão mal assim.
Ah, excelente.
Isso parecia realmente excelente.
— Veja o que eles fizeram! — Faye guinchou, lutando contra o
meu aperto, mas eu não a soltei. — Veja o que eles fizeram ao
coven.
— O que eles fizeram? — a Anciã respondeu, e sobrancelhas
brancas semelhantes a lagartas subiram em seu rosto. — Não foi
você quem os conduziu até aqui? Não foi você quem negociou um
acordo com um demônio, para começo de conversa?
— Q-Quê? — Faye gaguejou, confusão iluminando seu rosto, e eu
estava acompanhando seu sentimento.
A Anciã deu um passo à frente com pernas finas.
— Quando você ofereceu o elixir em troca da vida da filha de
Lilith, você o fez fora dos limites deste clã. Avisei-lhe, então, que
cada ato, cada palavra destinada a beneficiar uma pessoa volta três
vezes mais forte.
Olhei para Roth. Ele estava observando a Anciã com olhos
âmbares. Estava ficando mais claro a cada segundo que Faye e
alguns membros do coven haviam agido pelas costas da Anciã.
— Mas era a filha de Lilith e...
— E você queria um familiar poderoso, pelo qual não trabalhaste
nem o ganhaste por seu próprio mérito — a Anciã a interrompeu. —
Nós não interferimos na natureza, e se a natureza exigiu a vida da
filha de Lilith, então que assim fosse.
Sabiamente, e um pouco surpreendentemente, Roth manteve a
boca fechada.
— Mas você foi gananciosa, e essa ganância levou a outro acordo
com outro demônio, e agora você trouxera algo muito pior para as
portas do nosso coven.
Debaixo de mim, Faye parou de lutar novamente.
— Você acha que eu não sabia sobre o encantamento humano? O
acordo que você fez? — A gargalhada da Anciã eriçou os pelos por
todo o meu corpo. — Parece que você conseguiu o que queria, mas
não da maneira que esperava.
Ela sabia.
A Anciã sabia o que eu era.
— E parece que aqueles que a seguiram também receberam três
vezes as suas bençãos. — A Anciã moveu milimetricamente a
cabeça. — Eu sabia que iria vê-lo novamente, jovem príncipe.
Roth baixou a cabeça.
— Mais uma vez, é uma honra.
Ela riu como se estivesse se divertindo.
— Você sempre traz criações tão... interessantes com você. Nunca
pensei que veria um Príncipe da Coroa ou a filha de Lilith, mas vi por
sua causa, e agora a filha de um anjo está diante de mim. — Ela
sorriu, revelando dentes amarelados e opacos. — Que amizades
estranhas você cultiva.
— Torna a vida interessante — ele respondeu, levantando o
queixo, e então se levantou lentamente.
Fiquei onde estava.
— Tenho certeza de que sim. — O olhar de aço da velha
encontrou o meu, e o silêncio se estendeu. Um arrepio dançou ao
longo da minha pele. Ela olhava para mim como se pudesse me ver
por dentro. — Você não é como eles. Você não vê em preto e
branco. Vês o cinza e tudo o que existe no meio, e não sei se isso é
uma habilidade ou uma fraqueza.
Sem ideia de como responder a nada daquilo, decidi ficar calada.
— Liberte a familiar, Faye. — A voz da Anciã endureceu,
parecendo ser feita de aço. — Agora.
Faye fechou os olhos, sua resistência se fora. Não havia mais o
que implorar. Não havia negociação.
— Eu concluo este acordo negociado pelo demônio Cayman e
libero este familiar.
O ar se deformou atrás da cabeça de Faye, e por um momento eu
pensei que era minha visão esquisita, mas então Cayman apareceu
ali.
Seus longos cabelos escuros estavam presos, deixando seu rosto
bonito à mostra. Hoje ele não usava macaquinho. Em vez disso, ele
estava usando um macacão de veludo roxo que parecia vintage. Na
mão direita, ele segurava o que parecia ser um... contrato.
Cayman sorriu para a bruxa no chão.
— O acordo negociado está anulado. — As chamas lamberam a
espessa folha de papel, deixando apenas cinzas para trás. — Bendita
seja, vaca.
O demônio corretor fez dois joinhas para mim e Roth e depois
desapareceu em uma ondulação do ar.
E então aconteceu.
Uma sombra descascou do braço de Faye, expandindo-se
rapidamente e engrossando até que pude ver milhares de pequenas
bolinhas. Elas giraram como um minitornado e caíram no chão,
tomando forma e contorno. Bambi apareceu como uma cobra do
tamanho do Monstro do Lago Ness — um monstro bebê.
A familiar disparou em direção a Roth, sua cauda sacudindo como
a de um filhote quando vê seu dono após um longo período de
ausência.
— Minha garota. — Tudo no rosto do príncipe demônio suavizou
quando ele colocou a mão na cabeça oval da cobra. A língua
bifurcada de Bambi saiu em resposta. — Layla vai ficar muito feliz
em te ver.
Bambi se remexeu com alegria.
Os dois eram estranhamente adoráveis...
Mãos bateram nos meus quadris, atirando-me para trás. Eu caí de
cima de Faye enquanto ela se levantava, respirando rápido. Seus
olhos estavam selvagens enquanto ela se dirigia para a Anciã. O par
silencioso que ladeava a idosa se moveu para bloquear Faye. Ela deu
um passo para trás enquanto eu me levantava. A bruxa girou
novamente, segurando algo na mão.
A minha adaga — ela roubara uma das minhas adagas. Preparei-
me para o ataque, mas ela não veio atrás de mim e, assim que
percebi o que ela estava prestes a fazer, uma fúria explodiu dentro
de mim.
Faye se jogou em Bambi, seu braço arqueado alto, o punhal
prestes a afundar nas costas grossas da familiar. Era de ferro, mortal
para os demônios, e eu não parei para pensar.
Deixando a graça finalmente vir à tona, saudei a explosão de força
enquanto avançava e agarrava um chumaço de cabelo de Faye. Eu a
arranquei para longe de Bambi e Roth, jogando-a no chão enquanto
chamas brancas e douradas explodiam ao longo do meu braço
direito. Minha mão se fechou em torno do cabo aquecido que se
formava contra a palma da minha mão. O peso da espada era
acolhedor enquanto o fogo cuspia e sibilava dos fios afiados da
espada.
— Você sabe o que precisa fazer, Legítima. — A Anciã falou com a
voz alta. — É para isso que você nasceu.
As palavras me acertaram como um soco. Para isso que nasci.
Uma arma desde o nascimento. Eu não era filha do meu pai. Eu era
a Espada de Miguel.
Ergui a espada e a balancei para baixo, acertando Faye na altura
dos ombros. Era como uma faca cortando o ar. A espada não
encontrou resistência, queimando através de ossos e sangue antes
mesmo que pudesse se derramar no ar. Levou segundos.
E Faye já não existia.
A graça recuou, flutuando de volta para dentro de mim enquanto
as chamas ao redor da espada tremeluziam e então se apagavam.
Fiapos de fumaça e poeira dourada e reluzente dançavam no ar
enquanto a luz penetrava de volta na minha pele.
Cambaleei para trás, respirando pesadamente enquanto olhava
para a minha adaga, a centímetros de uma pilha de cinzas marrom
ferroso. Havia silêncio. Nada fora ou dentro da minha cabeça.
Apenas um vasto vazio neste momento de quietude, e tudo o que eu
sentia era...
Raiva.
A raiva ainda estava lá, abafada e um pouco mais oca, mas
presente.
— Obrigado — Roth falou, quebrando o silêncio. Lentamente, olhei
para ele. — Obrigado.
— Tinha... Tinha que ser feito — eu disse, minha voz soando
fraca.
Olhos âmbar encontraram os meus.
— Tinha.
— Era inevitável — a Anciã afirmou. — Nós não escolhemos lados,
e as ações recorrentes de Faye poderiam ser percebidas como tal.
Embora a ajuda dela tenha favorecido você no passado, os atos
egoístas disfarçados de presentes sempre se voltam contra nós.
Sempre há um preço a ser pago — ela disse a Roth. Então, para
mim, ela disse: — Você sabe o que ela poderia ter feito com apenas
um quarto de sangue de uma Legítima?
Neguei com a cabeça.
— Ela teria sido capaz de me depor e adquirir outro item desejado
sem fazer por merecer. A ganância pelo poder é uma das coisas mais
perigosas do mundo, tão volátil quanto a perda da fé. — A Anciã
levantou o queixo afiado. — Você não tem nada a temer do coven. A
sua identidade está segura.
Eu acenei com a cabeça meu agradecimento enquanto meu olhar
se voltava, furtivo, para restos mortais de Faye. Abaixei-me, peguei
minha adaga e a embainhei enquanto me aprumava, pensando nas
palavras da Anciã sobre o que Faye tinha acarretado ao seu clã. Algo
pior do que demônios.
— Posso fazer uma pergunta? — indaguei.
Os olhos da Anciã eram astutos.
— Apenas uma.
Será que ela queria dizer isso literalmente? Eu não quis perguntar,
caso fosse isso mesmo.
— Você sabe quem ou o que o Augúrio é?
Aqueles olhos antigos se fixaram em mim e depois se voltaram
para Roth.
— O que eu lhe disse da última vez em que esteve aqui, Príncipe?
Que aquilo que procuras está bem diante dos seus próprios olhos.
Roth endureceu, mas não respondeu, e eu não tinha ideia do que
isso poderia significar, já que o Augúrio não estava bem na nossa
frente. Não tive oportunidade de perguntar-lhe mais nada.
— Vocês dois precisam ir embora. — Ela se virou para ir, mas
parou. Ela olhou por cima do ombro, seu olhar encontrando o meu.
— Tenho a sensação de que voltarei a vê-la, mas não acompanhada
pelo príncipe. Vai trazer-me algo que nunca vi antes. Um verdadeiro
prêmio.
Hã.
Eu não tinha palavras. Nem umazinha, enquanto observava uma
das bruxas levá-la para fora do restaurante. Apenas Rowena
permaneceu, e ela estava olhando para a bagunça de uma forma
que me dizia ter acabado de descobrir que era ela quem teria de
limpar tudo isto. Meu olhar encontrou o caminho de volta para as
cinzas.
— Um verdadeiro prêmio? — Roth disse. — Tô meio ofendido por
ela não me considerar um verdadeiro prêmio.
— Bem, ela também não me considerou um, e eu sou parte anjo,
então... — Eu realmente precisava parar de olhar para as cinzas de
Faye. — O que a Anciã quis dizer quando respondeu à minha
pergunta?
Roth não respondeu de imediato.
— Não tenho certeza. Da última vez que ela disse isso, pensei que
tava falando de Layla, mas se fosse o caso, ela estaria errada.
— A Anciã nunca está errada — Rowena retorquiu, e quando eu
olhei para cima, ela estava empunhando um aspirador de pó
potente.
Ela ia aspirar o que restava do seu clã.
Isso era…
Eu não tinha palavras.
— Não sei o que ela quis dizer — Roth acrescentou. — Mas tenho
certeza de que um dia, quando for tarde demais, será terrivelmente
óbvio.
Um toque no meu ombro chamou a minha atenção. Virei-me e
engoli um grito de surpresa.
A cabeça em forma de diamante de Bambi estava a poucos
centímetros da minha. Sua língua bifurcada vermelho-rubi surgiu
quando ela abriu a boca.
E sorriu para mim.
Capítulo 16
Uma onda de arrepios varreu a minha pele. Eu não esperava que ele
dissesse algo tão intenso.
— O que isso quer dizer?
— Significa que eu preciso enviar uma mensagem pra eles antes
que seja tarde demais.
— Tarde demais pra quê?
— Vamos — ele disse em vez de responder, sua mandíbula se
apertando de impaciência. — Estamos quase lá.
Inalando o cheiro oleoso de fritura das redondezas, afastei-me da
parede e segui Sam. Percebi que ele tinha dito eles em vez de ela,
mas ele estava deslizando em uma velocidade acelerada, e era uma
luta acompanhá-lo com todas as pessoas que se aglomeravam na
calçada.
Outro quarteirão, e então Sam parou do lado de fora de uma
sorveteria, um lugar super fofo pelo que pude ver ao olhar pela
grande janela. Pisos em xadrez preto e branco. Cabines estofadas e
bancos vermelhos, e uma fila que quase chegava na porta.
Eu não era muito fã de sorvete, mas quando a porta se abriu e eu
senti o cheiro de calda quente e cones de biscoito saborosos, estava
de repente desejando uma clássica tigelona de sorvete de chocolate
afogado em calda.
— Ela tá aqui. — Sam atravessou a parede, deixando-me do lado
de fora.
Tentando afastar a sensação de mal-estar, eu usei a porta como
uma pessoa normal e viva e entrei na sorveteria, envolvida pelo
cheiro de calda quente e baunilha. Subi os óculos de sol e olhei em
volta. Havia cabines alinhadas às paredes e quadros emoldurados
pendurados em todos os lugares. Eu não conseguia entender os
detalhes, mas pareciam versões pop art de alguns dos monumentos
da cidade.
Eu fiquei perto da porta, já que o lugar estava tão cheio. Meu
coração começou a bater forte. Havia tantas pessoas, algumas
esperando na fila, outras andando pelas mesas, atacando seus
sorvetes, e enquanto eu examinava os rostos, havia algumas que eu
não tinha certeza se estavam vivas. As luzes da loja dificultavam que
eu focasse por qualquer período de tempo.
Por alguns segundos, perdi Sam de vista enquanto brincava com o
fio do meu fone de ouvido, mas então ele reapareceu ao meu lado,
parado na frente da porta.
— Ela tá aqui? — perguntei.
— Ela tá ali. — Sam apontou para a área à esquerda do
mostruário de sorvetes. — Naquela mesa.
Seguindo com o olhar para onde ele apontou, vi uma garota com
cabelo castanho na altura do queixo sentada de frente para a
entrada. Algo sobre ela era familiar. Aproximei-me, piscando
rapidamente como se isso fosse suavizar o brilho das luzes
fluorescentes cintilantes de alguma forma. Dei mais um passo, e as
feições borradas da garota ficaram claras para mim. Reconheci seu
rosto bonito e a franja pesada.
— Caramba — eu sussurrei. — É Stacey. Eu a conheço... bem, eu
a conheci. — Fui inundada pelo entendimento. — Foi isso que você
quis dizer quando disse que não tava me seguindo. Você tava
seguindo Stacey.
Sam era o que eu tinha visto quando Stacey foi até o apartamento
com Roth e Layla. Ele era aquela sombra estranha que eu tinha visto
atrás dela, e isso significava...
— Você conhece Zayne? — perguntei.
— Sim, mas isso não importa. Você precisa falar com ela.
— Não importa? Totalmente importa. — Um pai e a filha passaram
por nós, entrando na fila enquanto eu continuava fingindo que
estava falando ao celular. — Por que você não me disse isso?
— Porque eu não sabia quem você era. — Ele ainda estava
olhando para Stacey. — Ou por que você estava no apartamento
dele. Quando percebi que podia me ver, não sabia se poderia confiar
em você, não até eu ver que você ia me ajudar.
Eu olhei para ele, estupefata. Sua aparição repentina não foi
coincidência. Ele conhecia Zayne e era amigo de Stacey. Ele era...
De repente, lembrei-me do que Zayne tinha dito sobre Stacey.
Que ela tinha perdido alguém, assim como ele. Eles tinham ficado
próximos por causa disso, e agora eu sabia sem sombra de dúvida
que este espírito, Sam, era a pessoa que Stacey perdera. Eu não
fazia ideia do que tinha acontecido com ele, mas com base nas
informações mínimas que ele tinha compartilhado, eu tinha a
sensação de que não foi uma morte natural.
Ah, cara, tudo isto tinha péssima ideia gritando para todos os
lados. Se ele tivesse me dito quem ele era — quem ele era para
Stacey e que conhecia Zayne, eu teria exigido saber exatamente
qual era a mensagem antes de concordar em ajudar. Eu teria, com
toda a certeza, contatado Zayne primeiro, não só para dizer a ele
que o espírito de Sam estava por perto, mas também para descobrir
o que havia acontecido com Sam.
Pensando bem, por que Sam não perguntou por que eu estava
morando com Zayne? Ele não tinha feito uma única pergunta sobre
quem eu era ou como estava envolvida nisso.
— Cara... — eu disse.
— Tá tudo bem. — O olhar de Sam se voltou para o meu. — De
verdade. Vamos falar com ela.
— Você precisa me dizer o que tá acontecendo.
Sam se virou para mim.
— Isto não pode esperar. Você não entende. Tô ficando sem
tempo.
Eu o encarei.
— Você não tá nem um pouco curioso sobre quem eu sou? —
sussurrei. — O que eu sou?
— Eu pensei que, já que você tá com Zayne, você é gente boa. —
Seu olhar saltou para onde Stacey estava sentada. — Eu sei o que
ele é.
— Mas você disse que não me contou quem ela era porque você
não me conhecia. Você não confiou em mim...
— Eu menti. Tá bom? — Ele ergueu os braços, um deles
atravessando o peito de um homem que passou por nós. O homem
parou, franzindo a testa, e depois saiu, balançando a cabeça. — Eu
sei o que você é. No instante em que percebi que você conseguia
me ver, eu soube o que você era, e soube que se você estava com
Zayne, tinha de significar alguma coisa, mas não sabia se você era...
se você era um dos bons.
— O quê? — Eu o encarei, boquiaberta. — Tá bem. Você precisa
me dizer tudo, e você precisa arrumar tempo...
— Trinity?
A minha cabeça se ergueu de supetão ao som da voz de Stacey.
Ela estava olhando na minha direção, começando a se levantar.
Saco.
— Olha. — Sam agarrou meu braço, mas sua mão passou por
mim. — Ela te viu.
Todos os meus instintos me diziam que isto ia acabar mal, mas era
tarde demais para fugir. Xingando mentalmente a mim e a Sam,
caminhei até a mesa. À medida em que me aproximava, vi os dedos
de Stacey sobre a tela do celular. Respirei fundo enquanto olhava
sobre a mesa...
Aquilo era um... pacote de Twizzlers ao lado do sorvete em frente
a Stacey?
Era mesmo.
Ah, meu Deus, quem comia Twizzlers com sorvete? Essa era a
coisa mais nojenta que eu já vi na vida.
— Eu não esperava te ver aqui. — Uma franja espessa caiu sobre
sua testa quando ela largou o telefone e olhou ao redor da
sorveteria.
— Eu também — murmurei, e as sobrancelhas de Stacey
desapareceram sob sua franja, arqueadas.
Soltando o ar audivelmente, olhei para Sam, que estava sentado
ao lado de Stacey.
— Isto vai soar realmente aleatório, mas...
— Tô acostumada com coisas aleatórias. Você... você tá bem?
Parece um pouco pálida... — Ela parou de falar, franzindo a testa
enquanto olhava para onde Sam estava sentado.
Os rostos deles estavam a centímetros de distância, a coxa dele
pressionada contra a dela, mas ela não podia vê-lo e isso... acabava
com ele. Por mais irritada que estivesse com o espírito, eu podia ver
a dor lancinante enquanto ele olhava para ela.
— Ela me sentiu, não sentiu? — O vinco na testa diminuiu no
rosto de Sam. — Uau. Ela me sentiu.
Não pude respondê-lo.
—Você tá bem?
— Sim. — A testa de Stacey se suavizou enquanto ela esfregava
as mãos sobre os braços. — Só... não sei. Desculpa. Você tava
dizendo alguma coisa sobre isto ser aleatório?
— Tudo bem. — Eu forcei um sorriso fácil que eu esperava que
não saísse tão estranho quanto eu o sentia. Comecei a falar... e senti
o calor no meu peito.
Zayne.
Ele estava por perto. Mas que Inferno. Se eu o senti, então ele
estava me sentindo e provavelmente se perguntando o que diabos
eu estava fazendo fora de casa. Apesar da forma como as coisas
estavam entre nós agora, eu mal podia esperar para contar a ele
sobre esta história. Só esperava que ele não surtasse.
— Trinity? — As sobrancelhas de Stacey se ergueram quando me
concentrei nela.
Respirei fundo.
— Tenho algo pra te dizer. Vai soar realmente doideira, e você
provavelmente não vai acreditar em mim.
Um meio sorriso apareceu.
— Certo.
— Eu... — Esta sempre era a parte mais estranha. — Eu vejo...
espíritos.
A boca de Stacey se abriu, mas ela não disse nada, o que fez Sam
sorrir.
— Essa é a cara que ela faz quando não sabe como reagir.
Conheço muito bem essa cara.
— Sim, eu percebi isso — murmurei, e o nariz de Stacey se
mexeu. — Eu sei que isto soa completamente bizarro, mas tem
alguém aqui que quer falar com você. Aparentemente, ele tem
andado por perto, tentando chamar a sua atenção.
Ela olhou para mim e, em seguida, em volta, como se estivesse
esperando que alguém interviesse, o que era uma reação comum e
que também significava que era hora de falar a real.
— É... é Sam — eu disse a ela. — E ele quer falar com você.
O sangue desapareceu tão rapidamente do rosto dela que fiquei
com medo que ela desmaiasse. Tudo o que ela fez foi olhar para
mim.
— Você... você conhece um Sam, certo? — perguntei, assustada
quando senti a vibração no meu peito se intensificar.
— Sim. Eu conhecia um Sam. Zayne te falou dele?
— Não, não falou. — Olhei para o espírito. — Ele tá sentado do
seu lado.
A cabeça de Stacey girou para a esquerda tão abruptamente que
me perguntei se ela acabou dando um mal jeito no pescoço.
— Eu tô bem aqui — Sam disse, e eu repeti o que ele disse.
Stacey não respondeu. Ela olhou para onde Sam estava sentado
por tanto tempo que comecei a realmente me preocupar que ela
tivesse desmaiado sentada e com os olhos abertos.
Isso era possível?
Adicionando isso à minha lista de coisas para pesquisar no Google
mais tarde.
As bochechas de Stacey ficaram vermelhas e o meu estômago
despencou. O olhar dela se ergueu para mim.
— Isto é algum tipo de piada?
— Diga a ela que não é uma piada — Sam disse
desnecessariamente.
— Não é uma piada. Eu sei que parece ser, mas Sam está aqui. Na
verdade, ele tem estado por perto há algum tempo — repeti. — E
ele quer que eu te diga uma coisa. Parece ser realmente
importante...
— Por Deus. — A mandíbula de Stacey se moveu enquanto ela se
inclinava sobre a mesa, na minha direção. — O que tem de errado
com você pra você fazer uma coisa assim? É por causa de Zayne?
— O quê? — Eu me sobressaltei. — Isto não tem nada a ver com
ele...
— Por que ficamos juntos por um tempo? E você tá zangada com
isso?
— Meu Deus, não. Sério. Não tem nada de errado comigo. Juro.
Pode perguntar a Zayne. Ou mesmo Layla. Eles sabem que eu
consigo ver gente morta. Não tô inventando isto. — Sentindo o calor
no meu rosto aumentar, virei-me para Sam. — Acho que é hora de
você me dizer sua mensagem.
— Eu sei que tem um monte de coisas estranhas à solta por aí
que eu não entendo, mas eu não sou idiota. Você precisa ir embora
agora — Stacey disse, sua voz baixa. — Tipo agora mesmo.
Sam praguejou.
— Diga a ela que ela não pode voltar para aquela escola.
A confusão trovejou através de mim.
— Que tipo de mensagem é essa?
— Você tá fingindo que tá falando com ele? — A voz de Stacey se
ergueu quando ela colocou as mãos sobre a mesa. Eu não precisava
olhar em volta para saber que as pessoas provavelmente estavam
começando a olhar. — Cacete, você tá falando sério?
— Sim. — A minha atenção voltou para ela. — Sam tá aqui, e eu
não tenho ideia de por que ele tá dizendo que você não pode voltar
pra escola, mas é isso que ele tá dizendo.
Stacey riu, e a risada soou áspera e perturbadora.
— Você realmente acha que eu vou acreditar em você? Se fosse
verdade, por que ninguém mencionou o seu pequeno talento?
— Porque não é da sua conta — retruquei.
— Como é? — Seus olhos se arregalaram.
— Olha, eu não tô inventando isto. Ele... — Eu segurei o ar
rapidamente enquanto o calor no meu peito queimava intensamente.
Ah, não.
Ah, não, não.
Nem pensar.
— Zayne! — Stacey gritou, ficando de pé abruptamente. — Você
precisa vir buscar sua garota.
Meu estômago despencou até os dedos dos meus pés. Respirei
fundo, mas o ar ficou preso na minha exponencial descrença e
confusão.
Sam estava dizendo alguma coisa, mas eu não conseguia ouvi-lo
por causa das batidas do meu coração. Stacey estava olhando para
trás de mim, com os olhos castanhos arregalados, e ela estava
dizendo algo também, mas nenhuma de suas palavras estavam
fazendo sentido.
O meu olhar se deslocou para a mesa — a mesa que era para
mais de uma pessoa — e eu pensei sobre o que Sam tinha dito,
referindo-se a eles em vez de ela. A minha respiração ficou esquisita
no meu peito quando as coisas começaram a se encaixar. Zayne não
tinha me dito o que ia fazer hoje. Só disse que tinha coisas para
fazer.
Assim como tinha tido coisas para fazer da última vez em que
fizera planos e, para além de se encontrar com o administrador do
apartamento, não tinha me dito que coisas eram essas.
Lentamente, virei-me.
Na confusão de rostos e corpos embaçados, eu o vi com a camisa
azul clara que ele estava usando quando saíra do apartamento,
abrindo caminho pela multidão como uma espécie de Moisés
gostosão.
Dei um passo para trás, olhando ao redor desta sorveteria
bonitinha, e percebi que conhecia este lugar. Esta era a sorveteria
que o pai o levava, uma tradição que Zayne mantivera com Layla à
medida que cresciam. Este lugar era importante para Zayne.
E ele nunca tinha me trazido aqui.
Esta sorveteria era importante, e no entanto ele nunca o tinha
partilhado comigo. Mas ele ficara com raiva porque eu disse que um
beijo significava algo mais? Um beijo poderia ser qualquer coisa ou
nada, mas compartilhar um pedaço do seu passado com alguém
significava muito.
Ainda que uma parte racional da minha mente reconhecesse que
ele não tinha de me levar a lugar algum e nem de me dizer
absolutamente nada, a dor dilacerante no meu peito parecia muito
real. Eu me sentia… traída. Uma queimação cresceu no fundo da
minha garganta e rastejou para cima, fazendo meus olhos arderem.
A urgência de largar tudo e correr me atingiu com força, e os
meus músculos ficaram tensos, prontos para fazer exatamente isso.
Eu queria espaço — eu precisava de distância para controlar o que
eu estava sentindo enquanto observava os passos de Zayne ficarem
mais lentos. Não era difícil de identificar seu olhar de surpresa, e era
como se ele tivesse me sentido e não pudesse acreditar que eu
estava aqui.
Eu estava me intrometendo.
O calor varreu as minhas bochechas enquanto o meu estômago se
revirava. Cara, em que exatamente eu estava me intrometendo?
Zayne alegou que ele e Stacey eram apenas amigos, e amigos se
encontravam para tomar sorvete o tempo todo, mas amigos não
escondiam isso.
A minha cabeça estava em curto-circuito, como se houvesse um
fio solto em algum lugar entre as minhas sinapses. Sob uma camada
imensa de constrangimento havia... decepção.
Não ciúmes.
Não inveja.
Decepção.
Zayne puxou o ar e algo passou pelo seu rosto.
— O que você tá fazendo aqui?
As minhas emoções estavam uma bagunça muito grande para que
eu captasse qualquer coisa a partir do vínculo, mas a maneira como
ele tinha falado as palavras me disse tudo o que eu precisava saber.
Ele não estava feliz em me ver aqui.
— Ela acabou de aparecer, e eu pensei que ela tava com você,
mas ela disse... — A voz de Stacey, espessa e áspera, atraiu meu
olhar. — Ela disse que Sam tá aqui.
Suas palavras me arrancaram da espiral de emoção.
— Sam? — Zayne se mexeu para ficar na minha linha de visão. —
O que tá acontecendo, Trinity?
— Eu tô aqui — o espírito em questão disse, de onde ainda estava
sentado ao lado de Stacey. — Diga a eles que eu tô aqui.
O meu coração estava batendo forte e os meus músculos ainda
estavam tensos, prontos para correr, mas eu me mantive parada. Eu
não tinha feito nada de errado. Bem, eu provavelmente deveria ter
pedido mais informações para Sam antes de concordar em ajudar,
mas eu estava fazendo o que devia fazer. Não era minha culpa que
isso tenha me levado ao encontrinho de Zayne.
— Trinity — Sam suplicou, e eu olhei para ele. O brilho dourado
em torno dele estava desaparecendo. — Não tenho muito mais
tempo. Consigo sentir. Tô sendo puxado de volta.
Recomponha-se.
Este é o seu dever.
Eu empurrei tudo o que estava sentindo para o lado. O meu rosto
ainda ardia, assim como a minha garganta e os meus olhos, mas
ignorei tudo isso. Eu tinha um trabalho a fazer. Eu tinha um dever.
Eu me recompus.
— Sam tá aqui. — Eu odiei o quão rouca a minha voz soou. — Eu
o vi no apartamento uma vez antes — continuei falando, sem olhar
para Zayne ou Stacey —, mas ele desapareceu antes que pudesse
me dizer quem ele era. Ele seguiu Stacey quando ela veio com Roth
e Layla, mas eu não percebi que ele tava com ela na hora.
— Eu tava. — Sam acenou com a cabeça.
— Ele acabou de confirmar isso — eu disse.
Stacey parecia estar perto de desmaiar ou de ter um colapso
absoluto enquanto olhava para nós.
— Zayne...?
— É verdade? — Zayne perguntou, tocando meu braço. — Sam tá
mesmo aqui?
Atordoada por ele estar me questionando, afastei o meu braço
com agressividade enquanto uma nova onda de mágoa pulsava
dentro de mim.
— Por que eu mentiria sobre isso, Zayne?
Ele piscou.
— Você não mentiria.
— Não diga — cuspi, mágoa dando lugar à raiva. Eu queria pegar
o sorvete de Stacey e atirá-lo na cara dele. Em vez disso, gesticulei
para a mesa. — Sente-se.
Zayne hesitou como se não fosse me obedecer, e eu me virei para
ele, arregalando os olhos. Seus lábios afinaram, mas ele caiu no
assento e deslizou pela cabine, deixando espaço livre. Sentar-me ao
lado dele era a última coisa que eu queria fazer, mas já estávamos
chamando atenção o suficiente para durar uma vida inteira e Sam
estava ficando sem tempo.
Tirando os fones do ouvido, enfiei-os no bolso e depois me sentei,
minhas costas rígidas.
— Até chegarmos aqui, eu não tinha ideia de que Sam tava me
trazendo pra Stacey. Ele convenientemente omitiu essa informação.
Sam teve a decência de parecer envergonhado.
— E como Zayne pode confirmar — eu disse a Stacey —, eu não
sabia quem era Sam. Ninguém me falou dele. Se alguém tivesse me
falado, eu poderia ter percebido logo de cara quem ele era.
Ela olhou para mim.
— Isto é real? — Seus olhos arregalados dispararam para Zayne.
— Ela pode vê-lo?
— Ela consegue ver fantasmas e espíritos. — Zayne deixou cair o
braço sobre a mesa, ao lado do pacote de Twizzlers. — Se ela diz
que Sam tá aqui, então é verdade.
— Eu não consigo... — Ela olhou para onde Sam estava sentado,
balançando a cabeça. — Me diz como ele é.
Eu fiz exatamente isso, e Stacey pressionou a palma da mão
contra a boca.
— Mas você poderia ter visto uma foto dele online — ela
raciocinou. — Isso não significa nada.
— Ela tá dizendo a verdade. — Zayne insistiu, seu tom baixo,
evitando que eu tivesse de perguntar por que diabos eu estaria
procurando por uma foto de Sam.
Stacey disse alguma coisa, mas sua voz estava abafada demais
para eu entender. Ela abaixou a mão, os dedos se fechando em uma
bola apertada sobre o coração.
— Sam?
— Eu tô aqui — o espírito disse, levantando uma mão para ela,
mas parando. — Eu sempre estive aqui. Sempre.
Repeti o que ele disse e o rosto de Stacey se contorceu.
— Sinto muito. Não sei o que tá acontecendo comigo. Desculpa.
Diga a ele que eu tô...
— Ele pode ouvir você — eu disse.
— Ele consegue me ouvir? Certo. Acho que faz sentido. —
Lágrimas percorriam suas bochechas enquanto ela olhava para mim
e depois para Sam. — Sinto sua falta — ela sussurrou, levantando a
mão do peito até o queixo.
— Eu também sinto sua falta — Sam disse, e eu repeti.
— Meu Deus. — Os ombros magros de Stacey tremeram. — Sinto
muito. Eu...
Zayne fez um som de angústia, estendendo o braço sobre a mesa.
Ele colocou sua mão larga sobre a dela.
— Tá tudo bem — ele disse. — Tá tudo bem.
Mas realmente não estava.
Normalmente, eu teria sido mais atenciosa com as emoções que
este tipo de situação causa, mas eu não estava nem aí no momento
e não tínhamos muito tempo.
— Ele tem algo que precisa dizer...
— Diga a eles — Sam corrigiu, e meus olhos se estreitaram no
espírito — que eu sabia que eles iam se encontrar hoje.
Um espírito soube e eu não.
— Eles costumavam vir aqui uma vez por semana depois... bem,
depois de tudo — acrescentou.
Bacana.
Isso era simplesmente fantástico.
Com as mãos abrindo e fechando, eu mantive meus olhos em
Sam.
— Ele tem uma mensagem para os dois. Alguma coisa a ver com
uma escola?
Sam acenou com a cabeça e depois se virou em direção a Stacey.
— Ela não pode voltar pra aquela escola.Tem alguma coisa
acontecendo lá. Não é seguro.
— Você vai precisar me dar mais detalhes, Sam. Preciso saber por
que não é seguro.
— Ele tá dizendo que a escola não é segura? — Zayne questionou.
— Tem muitas... almas lá. Almas demais. É como se elas
estivessem se reunindo pra alguma coisa — Sam explicou, com sua
forma oscilando mais rapidamente agora. — Eu tenho checado o
lugar desde... bem, desde que pude, e nem sempre foi assim.
— O que você quer dizer com almas se reunindo lá? — perguntei,
e Zayne se inclinou para a frente.
— Almas. Pessoas mortas que não atravessaram...
— Fantasmas? — eu sugeri, e quando ele assentiu com a cabeça,
olhei para Stacey, que estava olhando para Sam, mas não o vendo.
— Tem muitos fantasmas lá? Quantos?
Os olhos de Stacey se arregalaram ainda mais.
— Na escola?
O espírito assentiu.
— Mais de cem. Tentei contar um dia, mas eles desaparecem e
estão confusos. Meio que correndo de um lado pro outro, caótico. É
como se estivessem presos.
— Os fantasmas estão presos na escola — repeti. — Mais de cem.
— Como isso pode acontecer? — Zayne perguntou.
— Espíritos e fantasmas podem ser invocados pra um lugar —
expliquei.
— Tipo através de um tabuleiro Ouija? — Stacey soltou uma
risada nervosa e carregada.
— Sim, na verdade, esse jogo pode funcionar nas circunstâncias
certas — eu disse. — Mas quase nunca as pessoas conseguem se
comunicar com quem elas acham que estão se comunicando. A não
ser que a pessoa saiba como... canalizar um certo espírito, e nem eu
consigo fazer isso.
Stacey olhou para mim.
— Esses tabuleiros são vendidos em lojas de brinquedos.
Ao lado dela, Sam riu.
— Deus, eu senti falta dessa expressão no rosto dela. — Um
sorriso apareceu. — Você sabia que o publicitário de tabuleiros Ouija
morreu numa queda enquanto supervisionava a construção de uma
fábrica de Ouija?
Franzi a testa para ele.
Ele deu de ombros.
— Meio estranho se você pensar bem.
— Como os fantasmas podem ficar presos? — Zayne perguntou.
— Não sei. Tenho certeza de que há feitiços que podem fazer isso,
mas não sei por que alguém iria querer isso. Um fantasma ou
mesmo um espírito preso pode se transformar num espectro. Pode
levar meses ou anos, mas ficar preso os corrompe — eu disse,
horrorizada com a possibilidade de algo assim acontecer. — Como
isto poderia acontecer numa escola?
— É uma Boca do Inferno — Stacey murmurou. — Layla e eu não
estávamos brincando quando dissemos isso.
Eu a ignorei.
— Os fantasmas estão colocando as pessoas em perigo?
— Uma pessoa caiu da escada há uma semana. Ela foi empurrada
por um dos fantasmas — Sam disse.
Quando eu repeti isso, Stacey se empertigou contra o assento.
— Um cara caiu da escada. Terça-feira passada. Não sei os
detalhes, mas fiquei sabendo que aconteceu.
— Ouvi sussurros — Sam continuou, e então ele sumiu e
reapareceu em uma forma mais transparente. — E sim, tô sendo
literal. Ouço sussurros quando tô aqui, sobre não faltar muito tempo
e que algo tá por vir. Tentei encontrar a fonte, mas quando os vi,
soube que não conseguiria chegar mais perto. Não posso continuar
indo pra lá. Eu quero ir, quero mantê-la segura, mas tô com medo
de que, se continuar indo, eles me vejam e saibam que não sou
como os outros.
Um arrepio me varreu a espinha.
— O que ele tá dizendo? — Zayne perguntou, afastando a mão de
Stacey. — Trin?
— Quem são eles? — Engoli em seco. — Você sabe quem tá
sussurrando?
A forma nebulosa de Sam se virou para mim.
— Pessoas das Sombras.
Capítulo 27
Língua angelical.
Eu acertei!
A minha presunção por ter estado certa durou pouco tempo
quando percebi que a confirmação também significava que o
Augúrio estava em posse de armas angélicas.
— Espere um segundo. — Layla cruzou os braços. — O Augúrio
simplesmente deixou essas estacas pra trás?
— Parece que sim — Zayne respondeu enquanto examinava a
escrita na parede.
— Isso não faz sentido. — Roth se virou para nós. — Lâminas de
anjo não são simplesmente largadas por aí. Esses espetinhos podem
matar praticamente qualquer coisa. Na verdade, não apenas
praticamente. Podem totalmente matar qualquer coisa, incluindo
outro anjo. Se este Legítimo deixou aquelas lâminas pra trás, ou é
extremamente descuidado ou teve um motivo.
— Ele não parece ser do tipo descuidado — murmurei, olhando
para as marcas fracas nas paredes do túnel.
— Se essas lâminas não foram encontradas, como é que um
Legítimo as tirou de um anjo? — Layla perguntou. — Eu sei que um
Legítimo é forte pra caramba e que os anjos não são exatamente
invencíveis, mas desarmar ou mesmo matar um anjo?
— Não é um anjo qualquer, Baixinha. — Roth inclinou a cabeça. —
Apenas arcanjos carregam lâminas de anjo, e duvido que algum
fosse entregá-las às suas crias meio angélicas.
— Ninguém realmente sabe do que os Legítimos são ou não são
capazes — Zayne disse. — Já se passaram muitos anos desde que
eram qualquer coisa além de um mito.
— Eu nem sei se partilho das mesmas habilidades com este
Legítimo, além de ele ser capaz de ver espíritos e fantasmas. Isso é
uma coisa de anjo, mas isso não é algo que a gente pode pesquisar
no Google ou ler em um livro. — Pensei no que Thierry tinha
partilhado comigo naquela manhã. — Acho que a nossa história foi
propositadamente esquecida. Apagada.
— Não seria a primeira vez. — Roth olhou para Zayne.
Ele encontrou o olhar de Roth, a expressão dura. Eu não fazia
ideia do que isso se tratava, nem era importante neste momento.
— Você consegue ler? — perguntei a Roth.
— Não sou exatamente um especialista em língua angelical.
Poderia se pensar que você seria mais apta nessa área. É parecido
com o aramaico.
Pelo menos Gideon estivera no caminho certo.
— Reconheço algumas palavras. — Caminhando alguns metros
para frente, Roth parou. — Eu acho que isto é algum tipo de feitiço.
Não o tipo de feitiço de bruxaria, mas mais de uma proteção
angelical.
— Que tipo de proteção? — Zayne segurou a tocha perto da
parede.
— Uma armadilha — ele disse, recuando. — Eu acho que é uma
proteção pra afastar almas, impedindo-as de entrar nestes túneis.
Agora tô me perguntando se algo desse tipo tá escrito dentro da
escola.
Pelos se eriçaram por todo o meu corpo.
— Se for o caso, impediria as almas de deixarem a escola.
— Deus — Layla murmurou. — Nada de bom pode vir disto.
— Não, mesmo — Roth concordou.
Layla descruzou os braços.
— Stacey ainda tem mais ou menos duas semanas de escola de
verão.
— Ela voltou? — perguntei, surpresa.
— Ela precisa, ou não vai conseguir o diploma de ensino médio —
Layla explicou. — E eu disse que ela poderia simplesmente pegar um
certificado de supletivo, mas ela não quer fazer isso. Ela tá na aula
agora. Sam disse se Stacey tava diretamente em perigo? Que os
fantasmas a tinham como alvo ou algo assim?
Neguei com a cabeça.
— Não. Só que empurraram um garoto escada abaixo e que estão
ficando mais raivosos. Quanto mais tempo ficarem presos, pior eles
vão se tornar.
— Existem feitiços que podem tirá-los da escola. — Layla olhou
para Zayne. — Nós já fizemos isso antes com espectros.
Basicamente um exorcismo.
Ele assentiu com a cabeça.
— Existem. Quando formos à escola no sábado à noite, podemos
forçá-los a sair.
Levantei a mão.
— Tenho um pequeno problema com isso. Sabe o que acontece
quando se exorciza um espírito? Você não tá só o forçando a sair de
uma residência ou de um prédio. Você os envia para o oblívio. Eles
não conseguem atravessar. Com um espectro, isso é compreensível.
São uma causa perdida. Mas pode haver espíritos e fantasmas lá
dentro que são bons, e eles não merecem isso.
— Assumimos esse risco? Não tem Pessoas das Sombras lá
também? — Layla argumentou.
— Sim, e o exorcismo os mandaria de volta pro Inferno, mas você
não pode simplesmente escolher quem vai ser exorcizado. Vai pegar
todos os espíritos ou fantasmas lá dentro. — Eu girei em direção a
Zayne. — Não podemos simplesmente fazer um exorcismo. A gente
precisa pensar num plano diferente.
Zayne ficou em silêncio por um momento.
— Vocês duas estão certas. Não seria justo com os fantasmas
presos, mas também é um risco.
Eu olhei para ele.
— Essa declaração não ajudou.
— Eu não pensei que fosse ajudar, mas não tenho certeza do que
você quer que eu diga. Podemos não ter escolha.
A raiva passou por mim enquanto eu desviava o olhar de Zayne.
Recusava-me a acreditar que essa era a nossa única opção. Era
errado.
— Apesar de adorar a ideia de ficar aqui ouvindor vocês
discutirem, acho que vocês três estão esquecendo uma peça muito
importante — Roth disse. — Estes túneis estão protegidos, e aposto
que toda a escola também. O exorcismo não vai funcionar.
Ele tinha razão.
Layla xingou baixinho, afastando-se.
— Então, o que a gente faz? Porque eu acho que isso também
significa que Trinity não pode ir lá e pra fazê-los atravessar.
— Isso nos deixa com apenas uma opção — Zayne disse. —
Temos que derrubar as proteções.
Àquela altura, decidimos em conjunto que já tínhamos visto o
suficiente. Peguei carona com Zayne para sair, ficando feliz com o ar
livre, mesmo que cheirasse levemente a escapamento de carro.
Atravessando o gramado em direção à calçada, fiquei grata por
estar sob a luz do sol brilhante e quente. A minha pele e os meus
ossos estavam gelados como se eu tivesse passado horas em uma
câmara frigorífica.
Derrubar as proteções angélicas parecia um ótimo plano, mas
nenhum de nós sabia como realizá-lo. Nem mesmo Roth, que
alguém poderia pensar que sabia algo sobre como contornar esse
tipo de coisa. A única pessoa em quem eu conseguia pensar era o
meu pai.
Arrancar essa informação dele era quase tão provável quanto eu
me abster de fritura e refrigerante.
— Vou falar com Gideon — Zayne dizia enquanto chegávamos às
árvores que se alinhavam pela calçada. — Ver se ele sabe como
fazer isso.
— Vou perguntar por aí também. — Roth deixou cair um braço
sobre os ombros de Layla. — Com cuidado e silenciosamente. — Ele
olhou para a rua. — E só pra vocês saberem, tenho pessoas de olho
em Baal. Ainda não foi avistado.
— Nem o senador Fisher — Zayne respondeu.
Um caminhão branco passou, indo em direção à escola. Era como
um dos veículos que eu tinha visto estacionados do lado de fora na
noite anterior.
— Ei. — Virei-me para Zayne. — Aquele caminhão. Qual é o nome
na lateral?
Zayne olhou, cabeça inclinada.
— Tá escrito “Gui Auro e Filhos Construção”. Esse é o nome da
empresa de construção que trabalha na escola. Não tinha visto isso
ontem à noite.
— Eu vi e esqueci — disse. — Precisamos ver se conseguimos
encontrar alguma coisa sobre eles.
Zayne já tinha o celular em mãos, ligando para Gideon. O
Guardião atendeu rapidamente, e, enquanto Zayne contava a ele
sobre o túnel, a escola e a empresa de construção, eu subi na
calçada e olhei para a escola.
— Uma Boca do Inferno — eu disse. — Não é assim que você e
Stacey a chamaram?
— Sim — Layla disse. — E estávamos apenas meio brincando.
Mesmo enquanto a minha pele estava descongelando sob o sol
quente, um arrepio passou pelas minhas costas.
— Talvez vocês estivessem certas. Não como a Boca do Inferno de
Buffy, mas algo assim.
— Gideon tá investigando isso agora. Ele tá impressionado com
toda a coisa da língua angélica. Acho que ele libertou o nerd interior
no momento em que percebeu que tinha armas de anjo de verdade
com ele. — Zayne sorriu. — Ele quer que a gente vá até o complexo
pra falar com ele sobre as plantas baixas que encontramos na casa
do senador. Ele acha que pode estar perto de descobrir algo.
— São boas notícias — eu disse. Precisávamos mesmo de boas
notícias.
— Mantenha-nos informados — Roth disse quando começamos a
caminhar de volta em direção ao cruzamento. — Especialmente se
essas malditas lâminas desaparecerem. Quando os outros
perceberem o que têm em posse, quero saber caso apareça um
Guardião decidindo que consegue usá-las.
Zayne acenou positivamente com a cabeça.
— Você pode me fazer um favor? — Layla perguntou a Zayne
quando chegamos a uma esquina.
— Claro — ele respondeu.
Não pude deixar de notar o quanto os dois haviam evoluído desde
a primeira vez que eu os vira juntos. Isso era bom, pensei, sorrindo.
— Quando você ver Stacey mais tarde, você pode tentar
convencê-la a ficar fora da escola? — ela perguntou, e o sorriso
congelou no meu rosto. — Talvez ela te ouça.
Zayne olhou para mim antes de responder.
— Sim, vou falar com ela.
Desejei que Zayne tivesse vindo de moto, porque ao menos eu
poderia fingir que não conseguia ouvi-lo. Infelizmente, estávamos no
seu Impala, e eu tinha problemas com a minha visão, não com a
audição.
— Eu ia contar sobre Stacey — ele disse, a meio caminho do
complexo.
Olhando pela janela, mordisquei a minha unha do polegar.
— Você não tem que me contar nada.
— Eu sei que não — ele respondeu, e fiz uma careta para a
janela, sem saber por que ele pensou que confirmar isso ajudava. —
Eu ia te contar porque queria.
— Ah — murmurei, concentrando-me nos edifícios e nas pessoas,
tudo embaçado lá fora. — Legal.
Ele obviamente não acreditava que eu achava legal.
— Ela e eu realmente não conseguimos conversar ontem.
— Compreensível. — Fiquei meio surpresa com o fato de que o
encontro na sorveteria tinha sido ontem. Sentia como se uma
semana tivesse passado. — Eu meio que estraguei tudo aquilo.
— Não é isso que eu tô dizendo — ele me corrigiu. — É só que
com tudo o que aconteceu com Sam e...
— Você não precisa se explicar. Tenho certeza de que isso já foi
estabelecido — eu disse com a boca em torno do meu polegar. —
Funciona pra mim, de qualquer forma, porque eu preciso fazer as
malas.
— Não tô tentando me explicar. Só acabei me esquecendo, por
conta de tudo o que aconteceu entre a sorveteria e agora quando
Layla falou disso. — Ele parou, e então eu senti seus dedos no meu
pulso, enviando um choque de consciência através de mim. Ele
puxou a mão da minha boca. — Eu não tava tentando esconder de
você.
Olhei para baixo quando ele abaixou a minha mão sobre a minha
perna. Seus dedos permaneceram logo abaixo dos hematomas que
já estavam desaparecendo.
— Eu juro — ele acrescentou. — Eu não tava tentando esconder.
O meu olhar se dirigiu para Zayne. Ele estava focado na estrada, e
eu não sabia se acreditava nele ou não. Eu pensava e sentia que
Zayne distorcia os meus instintos quando se tratava dele. Eu queria
acreditar nele, mas saber que ele iria se encontrar com ela de novo
também fez o meu peito ficar oco, e o meu estômago, pesado.
Sentir ciúme era um saco.
— Eu acredito em você. — Afastei a mão quando voltei a olhar
pela janela. Os edifícios tinham dado lugar às árvores, e eu sabia
que não estávamos longe do complexo. — Espero que Gideon tenha
encontrado alguma coisa.
— Sim — ele respondeu depois de alguns segundos. — Eu
também.
Não falamos depois disso e chegamos ao complexo em cerca de
dez minutos. Gideon nos encontrou na porta e nos conduziu até o
escritório de Nicolai.
O líder do clã não estava lá, mas Danika estava de pé atrás da
mesa, com as palmas das mãos apoiadas na madeira brilhante cor
de cerejeira. À sua frente estavam duas folhas de papel grandes e
quase transparentes, e, apoiados ao longo da mesa, estavam mais
dois papéis enrolados.
Danika sorriu para nós, e eu retribuí o gesto com um aceno de
mão.
Porque eu era uma pateta.
— Pessoal, tenho algo interessante pra vocês. — Gideon
atravessou a sala enquanto Zayne fechava a porta atrás de nós. —
Algo que eu gostaria que tivéssemos conhecimento antes. Sabe
aquela escola que Layla frequentou? Heights on the Hill? É a peça
que faltava.
— O que você encontrou? — Zayne perguntou quando chegamos
à mesa. Olhei para baixo, incapaz de enxergar o que estava olhando.
— O que o nosso senador tem feito. — Gideon inclinou-se sobre a
mesa. — Mas, primeiro, estou procurando maneiras de quebrar uma
proteção angelical. — Ele deu uma risada. — Isso vai levar algum
tempo, e não tenho certeza se é possível. — O olhar de Gideon
encontrou o meu e então ele olhou para Danika. — Nunca vi escrita
angelical antes, então isso é legal. O que não é legal é este Augúrio
ter lâminas de anjo e ser capaz de lançar uma proteção angelical. Os
únicos seres por aí que eu naturalmente presumiria serem capazes
de fazer isso são um anjo ou alguém com muito sangue de anjo
correndo nas veias.
Mantendo minha melhor cara de paisagem, olhei para os papéis.
Eu não tinha ideia de como ler escrita angélica, mas este outro
Legítimo — o Augúrio — sabia, e eu só podia supor que isso
significava que seu pai angélico tinha sido muito mais presente do
que o meu.
— O que é tudo isto? — Zayne fez um gesto para os papéis,
mudando de assunto com naturalidade.
— A camada de cima são as plantas de construção de Fisher, que
você encontrou, e por baixo disso temos a escola, que é a planta
baixa antiga que encontrei nos registros públicos. Como podem ver,
os planos dele se enquadram no layout da escola.
— Tô vendo. — Zayne moveu o dedo sobre os desenhos. — As
mesmas linhas.
— Mas isso não é tudo. — Danika pegou o papel enrolado mais
próximo dela. — Gideon conseguiu as plantas da reforma da escola.
— Foi o nome da empresa de construção — ele explicou,
levantando a folha de cima e puxando a de baixo. — Eu consegui
invadir os servidores deles em tipo dez segundos batidos, e isto é o
que eu encontrei. — Ele sorriu para Danika. — Quer fazer as honras?
Ela desenrolou o papel, espalhando-o sobre as plantas baixas do
senador para a escola misteriosa. Vi o nome da empresa rabiscado
no topo.
— Diga-me a primeira coisa que você perceber.
Apertei os olhos, tentando me concentrar nos quadrados e linhas
borrados.
— São as mesmas malditas plantas — Zayne disse. — Olha aqui,
Trin. — Ele deslizou o dedo ao longo de uma forma retangular. —
Esse é o refeitório e essas são as salas de aula. — Ele continuou a
apontar as áreas. — É a antiga escola de Layla.
— Isso não é tudo — Danika disse, levantando as sobrancelhas
para Gideon.
— Então, quando procurei pela primeira vez a empresa Gui Auro e
Filhos, não consegui encontrar muito sobre ela, apenas um site
barato com um portfólio bastante questionável e informações de
contato. Nada on-line sobre os proprietários, mas fiz algumas
pesquisas rápidas e encontrei o nome sob o qual a empresa está
registrada.
— Natashya Fisher. — Danika se afastou da mesa. — Tipo, a
falecida esposa do senador Fisher.
— Obviamente, descobrir que estas plantas baixas da reforma
correspondem às do senador nos diz que ele está ligado à escola,
mas isso é mais uma confirmação.
Olhei fixamente para o nome da empresa e não sei por que isso
se destacou naquele momento ou o que me fez ver, mas foi como se
as palavras se mexessem na minha frente e eu visse aquilo.
— Caramba. O nome da empresa. Gui Auro. Talvez eu esteja
vendo coisas, mas essas letras também não soletram Augúrio?
— O quê? — Danika olhou para baixo e então ela se sobressaltou.
— Inferno... — Pegando um pedaço de papel e lápis da mesa, ela
anotou o nome da empresa e depois Augúrio embaixo e
rapidamente conectou as letras. — Você tem razão.
— É um anagrama. — Zayne deu uma risada. — Boa, Trin.
Sentindo minhas bochechas corarem, eu encolhi os ombros.
— Quer dizer, a gente já sabe que eles estão conectados, então
não é grande coisa.
— É grande coisa, sim. É mais uma prova de que estamos no
caminho certo — Zayne disse.
— Ele tem razão — Gideon concordou. — Eu deveria ter visto isso.
É meio óbvio depois uma vez que tenha visto.
— Você nem sempre pode ser o mais nerd da turma — Danika
comentou.
— Discordo. — Gideon pegou o outro rolo de papel e o desenrolou
sobre as plantas. — Esta coisa toda me fez pensar: o que diabos
está acontecendo com essa escola? Antes disto, a gente via muita
atividade demoníaca lá. É o mesmo lugar onde o Lilin foi criado.
Agora, o senador vai “renovar” o lugar, e está cheio de fantasmas e
espíritos presos, além de túneis que passam perto dela ou por baixo
com proteções angélicas. Não tem como tudo isso ser uma mera
coincidência.
— Tem que ser a Boca do Inferno — murmurei, olhando para o
papel que ele havia esticado. Tudo o que via eram centenas de
linhas, algumas mais grossas do que outras.
— Não é uma Boca do Inferno, mas é definitivamente alguma
coisa. — Gideon deu a volta na mesa, ficando ao lado de Danika. —
O que vocês estão vendo é um mapa das Linhas de Ley, linhas
intangíveis de energia. Elas estão alinhadas por todo o mundo, com
marcos significativos ou locais religiosos. Os humanos acham que é
uma pseudociência, mas é real. Estas linhas são pontos de
navegação diretos que conectam áreas em todo o mundo.
— Já ouvi falar disso. — Zayne enrugou a testa. — Em uma série
de tv em que as pessoas investigam assombrações falsas.
— Ei. — Lancei um olhar enviesado para ele. — Como você sabe
que são assombrações falsas?
Zayne sorriu.
— Muitas coisas estranhas ocorrem ao longo das Linhas de Ley.
Grandes eventos históricos no mundo humano, lugares onde as
pessoas afirmam sentir maior atividade espiritual — Danika disse. —
Áreas onde os Guardiões frequentemente iriam encontrar
populações de demônios maiores do que o normal.
— Muitas vezes, encantamentos ou feitiços são mais poderosos e,
portanto, mais bem-sucedidos ao longo das Linhas de Ley. Elas
indicam áreas poderosas e carregadas — Gideon continuou. — E
esta aqui? — Ele deslizou o dedo sobre uma linha vermelha mais
grossa e depois parou sobre um ponto vermelho. — Esta é a mesma
Linha de Ley que vem desde Stonehenge até à Ilha de Páscoa... E
este ponto? — Ele bateu com o dedo. — Este é um núcleo, e não é
apenas em torno de Washington, dc, mas quase em cima da área
onde Heights on the Hill está localizada.
Caramba.
— Pode ser por isso que o Augúrio tá interessado nesta escola —
Zayne disse, olhando para mim. — Não é um local aleatório.
— Faria sentido se o que ele tá planejando exigisse uma
quantidade gigantesca de energia do tipo celestial e espiritual. Esse
tipo de poder, exercido por alguém que sabe controlá-lo, poderia
transformar um pedaço de papel amassado em uma bomba atômica,
e isso torna praticamente qualquer coisa possível.
Capítulo 32
Gabriel veio para mim, o braço estendido enquanto uma luz dourada
ofuscante descia por ele. Uma espada com uma lâmina semicircular
foi formada.
Era muito, muito maior do que a minha.
Não tive tempo para pensar no fato de eu estar prestes a batalhar
contra um arcanjo. Tudo o que eu podia fazer era lutar e esperar
que Roth e Cayman ficassem quietos.
Bloqueei o golpe de Gabriel, abalada pelo impacto e despreparada
para a sua força. Aquele único golpe quase me derrubou. Eu ergui a
minha espada em direção ao peito dele. Ele a bloqueou com um
golpe, forçando--me a recuar um passo. Ataquei, mirando nas
pernas, mas ele antecipou o movimento. Girei, mas ele foi mais
rápido. Nossas espadas se conectaram, cuspindo faíscas e
assobiando. Eu empurrei e então tropecei para a frente quando o
arcanjo desapareceu e reapareceu alguns metros à minha frente.
— Isso não é justo — eu disse.
— A vida nunca é.
Ataquei-o e ele enfrentou o meu ataque, atirando-me para trás
como se eu não passasse de um saco de papel. Continuamos a
circular e a atacar. Ele segurou cada golpe meu com sua força
destruidora e se deslocava mais rápido do que eu. Cada vez que o
bloqueava, sentia o golpe em cada átomo do meu corpo.
Mesmo com o vínculo, a exaustão estava começando a me
esmigalhar, fazendo os meus braços parecerem mais pesados e
meus golpes com a espada, mais lentos. As faíscas das espadas que
se batiam cuspiam pelo ar enquanto o impacto repetido abalava os
meus ossos. O suor escorria pelas minhas têmporas enquanto eu
driblava para a direita, erguendo a espada. Gabriel me golpeou com
a dele, jogando-me para trás.
— Pare — ele insistiu, não sem fôlego. Nem sequer remotamente
cansado. — Você nunca treinara para isto. O seu pai lhe falhou.
Ele estava certo, e a verdade enviou a raiva pulsando pelas
minhas veias. Eu tinha treinado com adagas e em combate corpo a
corpo. Mas, quando se tratava de luta de espadas, tudo o que eu
tinha era o instinto.
— Não é suficiente — ele disse, e o meu olhar assustado se fixou
no dele. — Você é inteligente o suficiente para chegar a essa
conclusão. — Bloqueei o seu próximo golpe brutal, mas isso quase
fez minha espada desaparecer. — Você foi treinada para negar a sua
natureza. Eu treinei o meu filho para abraçar a dele.
— Parece que isso funcionou bem. — Cerrei os dentes enquanto
corria para a esquerda e chutava, acertando Gabriel na perna. Foi
tão útil quanto chutar uma parede, com base na forma como ele
arqueou a sobrancelha.
— Considerando que você está a poucos minutos de perder o
controle da sua graça enquanto ele está ali lendo um livro ilustrado,
eu diria que funcionou muito bem para ele.
Eu vacilei.
— Livro ilustrado?
— Instagram — Almoado corrigiu. — É o Instagram, Pai.
Pisquei.
— Seja o que for — Gabriel murmurou, seu pé descalço
acertando-me no tronco, arrancando o ar dos meus pulmões.
— Você... você nem sabe o que é Instagram? — Arquejei com a
dor. — E você acha que vai acabar com o mundo?
Seus lábios se abriram em um sorriso de escárnio.
Os meus braços tremiam enquanto eu nivelava a espada à minha
frente, tentando manter distância entre nós.
— Aposto que você acha que o Snapchat se chama Imagem
Falante.
Almoado bufou.
— Na verdade, ele achava que o Snapchat queria dizer estalar os
dedos quando falava.
— Sério? — Lancei um breve olhar ao Legítimo.
— Sim. — Almoado colocou o telefone no bolso. — Mas você ainda
tá levando uma surra.
— Pelo menos eu não chamo Instagram de livro ilustrado —
retruquei.
Os olhos brancos de Gabriel pulsaram.
— Estou entediado com isto. Você não pode ganhar. Nunca será
capaz. Renda-se.
— Ah, bem, quando você pede assim com tanta gentileza, é um
saco ter que dizer não.
— Que assim seja.
Bloqueei o golpe dele, mas o arcanjo se deslocou para o meu lado
antes que eu pudesse desvendar o que ele estava fazendo. Seu
cotovelo acertou o meu queixo, arremessando a minha cabeça para
trás. Tropecei, recuperei-me e golpeei com a espada, com os braços
tremendo quando a lâmina de Gabriel encostou na minha. Ele voltou
à minha visão periférica, mas desta vez eu esperava o ataque.
Saltando para trás, virei-me...
Seu punho acertou a lateral do meu rosto, e dor explodiu ao longo
das minhas costelas quando ele desferiu outro golpe. As minhas
pernas se dobraram antes que eu pudesse detê-las. Perdi o controle
sobre a minha graça quando me segurei antes que a minha cabeça
acertasse a terra. O pânico desabrochou na boca do meu estômago
enquanto eu lutava para me sentar. Empurrei o sentimento para o
fundo, sabendo que não podia ceder a ele.
— Você não é nada além de uma humana inútil e egoísta quando
perde o controle de sua graça. — Gabriel estava acima de mim. —
Você é fraca. Corrompida. Profanada. Você é nada.
A pequena esfera de calor dentro de mim pulsou, e eu xinguei
mentalmente, sabendo que Zayne devia ter sentido a explosão de
pânico. Ele não podia vir aqui. Ele não podia. Eu precisava controlar
a situação.
Urgentemente.
— Você não é digna do que Deus lhe concedeu. Assim como o
resto dos seres humanos — Gabriel continuou enquanto eu deslizava
uma mão para o quadril, meus dedos soltando a adaga embainhada
ali. — Você tomou a pureza de uma alma e a honra do livre-arbítrio
e os jogou fora.
Levantei-me, ficando de joelhos, erguendo a cabeça enquanto
sentia o sangue escorrer pelo canto da minha boca.
— Não joguei nada fora.
— Você está errada. Nenhuma alma humana, nem mesmo a do
meu filho, é limpa ou digna de ser salva.
— Uau. — Meus dedos apertaram o punho da adaga. — É o pai do
ano.
— Pelo menos estarei presente quando ele morrer — ele disse. —
Miguel será capaz de dizer o mesmo?
— Provavelmente não — admiti. — Mas eu não me importo.
A surpresa se espalhou pelo rosto de Gabriel, e vi a minha janela
de oportunidade. A minha chance de ganhar vantagem e sair daqui,
com Roth e Cayman, de alguma forma.
Ficando de pé rapidamente, enfiei a adaga no peito do arcanjo. Eu
sabia que não o mataria, mas tinha de doer. Tinha que...
O arcanjo olhou para o peito.
— Isso doeu.
Puxei a adaga para fora, os meus olhos arregalando em descrença
quando não vi sangue...
Não vi o golpe chegando.
Gabriel me estapeou, atirando-me para o chão. Estrelas brilharam
na minha visão. Os meus ouvidos apitavam. Ele agarrou o meu
pulso, arrancando a adaga da minha mão.
— Isso foi constrangedor — ele disse, jogando-a no chão. — Você
não passa de um desperdício de graça, Trinity. Desista. Posso tornar
as próximas semanas tranquilas para você, ou posso torná-las um
pesadelo ininterrupto. A escolha é sua.
Quando ele soltou a minha mão, caí para trás. A minha visão se
apagou por um instante.
Levante-se.
— No final, você não passa de nada além de carne e osso — ele
disse. — Morrendo desde o dia em que nasceu.
Levante-se.
— É deveras revoltante como a raça humana auxilia sua própria
decadência.
Levante-se.
— Sua raiva. Seu egoísmo. Suas emoções humanas primitivas.
Tudo isso corrompe o que nunca deveria ter sido concedido aos
seres humanos.
O vínculo no meu peito queimava e eu sabia que Zayne estava
chegando. Ele estava perto. Muito perto.
Levante-se.
Levante-se antes que ele chegue.
— Tem razão. Eu sou de carne. Tenho falhas. Sou egoísta, mas
também sou graça. — Cuspi um bocado de sangue e, da raiva e da
ruína, eu me ergui. — Tenho fogo celestial nas minhas veias. Eu
tenho uma alma humana, e isso é algo que você nunca vai ter.
O arcanjo recuou.
— É isso, não é? Este é o motivo pelo qual você odeia a Deus. É
por isso que você quer destruir tudo. Não é pra melhorar. Não é pra
acabar com o sofrimento, seu lunático. Tudo isto é porque você não
tem alma. — Eu ri, cambaleando para trás, invocando a minha
graça. Ela oscilou e então chegou, o cabo quase pesado demais para
eu segurar. — Você é um clichê ambulante e se atreve a insultar as
aspirações dos seres humanos?
— Você não sabe de nada. — Ele marchou para a frente, e vi Roth
se sentar em sua forma humana. Almoado se afastou da parede em
que se apoiava.
— Você esqueceu de acrescentar “Jon Snow” no final dessa frase.
Ele parou, com a cabeça inclinada.
— O quê?
Eu desferi o golpe, mirando no centro dele. A minha graça poderia
e iria matá-lo. Eu acabaria com isto, porque era meu dever.
Gabriel agarrou o meu braço direito logo acima do cotovelo e o
torceu. O som de ossos quebrando foi tão repentino, tão chocante,
que houve um breve segundo em que senti nada. E depois gritei. O
choque ardente da dor fritou os meus sentidos. Perdi a minha graça.
A espada se desfez no ar enquanto eu tentava respirar através da
dor.
O pé dele acertou a minha canela, quebrando o osso, e eu não
conseguia nem gritar quando caí no chão com um joelho, não
conseguia nem respirar através do fogo que parecia envolver toda a
minha perna. Ele me agarrou pela nuca e me levantou. Agarrei-lhe o
braço com a mão boa e chutei quando vi Almoado agarrar Roth.
Aconteceu em um piscar de olhos. Questão de segundos.
Segundos brutais e intermináveis quando percebi que não poderia
derrotar um arcanjo. Esta nunca foi uma batalha que eu poderia
vencer, e, na parte distante da minha mente que funcionava através
da dor, eu me perguntava se meu pai sabia disso e me enviou para o
abate.
Roth morreria.
Cayman também.
Eu seria levada, e o mundo como o conhecíamos acabaria, e
talvez meu pai e Deus não se importassem com o que aconteceria.
Suas tentativas de salvar a humanidade eram muito malfeitas se eles
achavam que eu poderia fazer isto, e talvez... talvez Deus tivesse
lavado Suas mãos metafóricas de toda a confusão.
Se não, como achavam que eu poderia derrotar um arcanjo?
Gabriel me atirou no chão com a força de uma queda de um
edifício.
Ossos estalaram por toda parte.
Pernas.
Braços.
Costelas.
Eu vi algo branco projetando-se de uma das minhas pernas
enquanto a minha visão oscilava. A dor veio em um lampejo de luz
ofuscante. Mil nervos tentaram disparar de uma só vez, tentando
enviar respostas do meu cérebro para os meus braços e pernas,
para a minha pélvis, costelas e coluna vertebral. O meu corpo
sobressaltou quando alguma coisa se soltou dentro de mim. Eu não
conseguia mexer as pernas. O terror que me atravessou encheu as
minhas veias de lama gelada. Eu lutava para puxar ar até os meus
pulmões, mas tinha alguma coisa errada com eles, como se não
pudessem inflar.
— Eu preciso de você viva, pelo menos por mais algum tempo —
ele disse.
Com certeza não parecia que ele precisava disso.
— É porque você me acha... cativante e adorável? —Soltei as
palavras que soavam estranhas, como se eu não conseguisse
pronunciar metade das letras.
Gabriel ajoelhou-se ao meu lado, o seu rosto cruelmente belo
entrando e saindo de foco.
— Está mais para porque preciso de seu sangue quente quando
ele for derramado. Disse-lhe que eu poderia tornar isto fácil e
pacífico. Teria deixado que realizasses o desejo do seu coração.
Terias aproveitado do tempo que lhe restava, mas você escolheu
este destino. Sofrer. Tão estupidamente humano.
O sangue jorrava da minha boca enquanto eu tossia e a minha
respiração ofegava.
— Você... fala muito.
— Eu era a voz de Deus. — A mão de Gabriel se fechou sobre a
minha garganta. O ar foi imediatamente cortado. Ele me ergueu, os
meus pés balançando vários metros acima do solo e o meu corpo
frouxo como uma pilha de trapos. — O mensageiro de Sua fé e
glória, mas agora eu sou o Augúrio e inaugurarei uma nova era. A
retribuição será dor com o poder purificador do sangue e, à medida
em que o Céu desmoronar, aqueles que permanecerem terão um
novo Deus.
— Ela tem razão. Você realmente fala demais.
Gabriel se voltou para a direção da voz. Eu consegui virar a
cabeça apenas alguns centímetros, se tanto, mas o suficiente para
que eu pudesse ver Roth.
— E sabe o que mais? — Roth disse, sem Almoado. Seu braço
pendia em um ângulo estranho, mas ele estava de pé. — Você fala
de um jeito muito parecido com o de alguém que eu conheço. Isso
soa familiar? “Subirei ao Céu, exaltarei o meu trono acima das
estrelas de Deus; assentar-me-ei também sobre o monte da
congregação, nas margens do Norte; ascenderei acima das alturas
das nuvens; serei como o Altíssimo.”
— Não me compare com ele — Gabriel rosnou.
— Não pensaria nisso — Roth respondeu —, seria um insulto ao
Brilhante.
Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Gabriel soltou um
rugido que abalou o mundo quando ele jogou o braço para a frente.
Algo deve ter deixado sua mão, porque ouvi Roth grunhir e cair no
chão, rindo — ele estava rindo. O escárnio de Gabriel desapareceu.
— Idiota — Roth se engasgou. — Idiota egocêntrico. Espero que
te acalme saber que tinha razão.
— Você estará aqui para ver a morte do seu filho.
O meu arquejo ao som da voz de Zayne foi engolido pelo grito de
Gabriel enquanto ele se virava novamente.
Zayne estava atrás do arcanjo, com o braço em volta do pescoço
de Almoado enquanto o Legítimo lutava, sua graça queimando de
seu braço direito, formando uma lança que poderia matar Zayne
ainda que ele não tivesse sido enfraquecido. Um tipo diferente de
medo me encheu o peito.
Mas Zayne foi rápido, tão incrivelmente rápido quando agarrou a
lateral da cabeça do Legítimo e torceu.
Gabriel gritou, sua raiva trovejando pela caverna como um
terremoto enquanto Zayne largava o Legítimo e depois disparava
para a frente, acertando o Arcanjo, soltando o aperto de Gabriel na
minha garganta. Comecei a cair, mas Zayne me pegou. A explosão
de dor por conta do seu abraço ameaçou me deixar inconsciente, e
eu devo ter desmaiado, porque, quando dei por mim, estava deitada
de costas e Zayne estava se levantando na minha frente, suas asas
esticadas em ambos os lados dele.
E eu o vi.
Numerosos cortes e sulcos marcavam as costas dele, e suas asas
não pareciam certas. Uma delas pendia em um ângulo estranho e,
abaixo da asa esquerda, havia um corte profundo, expondo ossos e
tecidos. Aquela ferida era…
Meu Deus.
Como é que isso tinha acontecido com ele? Como ele tinha sido
ferido? Ele tinha acabado de chegar. Ele tinha acabado…
Invocando toda a força que me restava, consegui ficar de lado.
Sentei-me, mas a dor gritava pelo meu corpo. A lateral do meu rosto
bateu no chão. Consegui levantar o queixo, procurando Roth. Ele
precisava tirar Zayne daqui. Precisava afastá-lo de Gabriel. Eu gritei
pelo príncipe demônio, mas só um grasnado saiu de mim. Tinha algo
errado com a minha garganta.
— Você não viverá para arrepender-se disso — Gabriel advertiu.
— Eu vou te rasgar membro por membro — Zayne rosnou —, e
então eu vou queimar o seu corpo ao lado do dele.
— Eu estava esperando por este momento. — O tom de Gabriel
era presunçoso. Presunçoso demais. Fiquei alarmada. — Eu sabia
que você viria.
Houve um som ofegante, e Zayne deu um passo para trás, suas
asas se levantando e depois caindo. Roth gritou.
— Você sabe agora por que os Legítimos e seus Protetores são
proibidos de ficarem juntos? — A voz de Gabriel era um sussurro
carregando o vento que começava a surgir dentro da câmara. — O
amor obscurece o julgamento. É uma fraqueza que pode ser
explorada.
Tentei ver o que estava acontecendo, mas eu já não conseguia
levantar a cabeça.
— A amargura e o ódio apodrecerão e se espalharão dentro dela,
assim como aconteceu com Almoado e com aqueles que vieram
antes dela. De bom grado ela derramará o próprio sangue contra um
Deus capaz de ser tão cruel. — A voz de Gabriel estava por toda a
parte, por dentro e por fora, vibrando em minhas costelas
quebradas. — Levaste o meu filho, mas me dera uma filha em troca.
Houve uma onda de luz dourada e calorosa e depois, silêncio.
— Zayne — Roth chamou. — Meu amigo...
Vi as pernas de Zayne falharem e se dobrarem. Ele caiu de
joelhos, de costas para mim. Tentei dizer o nome dele. Sua mão se
mexeu para a frente, para o peito. Ele grunhiu enquanto seu corpo
tremia.
Uma adaga caiu no chão.
A minha adaga.
Então ele também caiu.
Zayne pousou ao meu lado, de costas e com a asa quebrada. Por
que é que ele cairia assim? Eu não entendi o que estava
acontecendo, por que Roth estava de repente ao lado de Zayne. O
demônio estava gritando por alguém — por Cayman e depois por
Layla, tentando segurar Zayne, mas o Guardião o empurrou e rolou
para ficar de lado, de frente para mim.
Eu vi o peito dele — vi a ferida no seu coração e o sangue que
jorrava a cada batimento cardíaco.
— Não — eu sussurrei, um grande horror cravando suas garras
em mim. — Zayne...
— Tá tudo bem — ele disse, e o sangue escorreu do canto de sua
boca.
Tentei levantar o braço, e tudo o que consegui foi uma contração
que me fez sentir como se tivesse sido atropelada por um caminhão
de lixo. O pânico aumentou como um ciclone enquanto eu tentava
lançá-lo novamente. De repente, Roth estava atrás de mim. Ele me
pegou e me deitou, e então eu estava bem ao lado de Zayne.
— Você não pode. Não. Por favor, meu Deus, não. Zayne, por
favor…
Roth pegou a minha mão com cuidado, colocando-a no rosto de
Zayne. O movimento doeu, mas não me importei. Sua pele de
granito estava fria demais. Não era para ser assim. Os meus dedos
se moveram, tentando esfregar o calor de volta para a sua pele.
Aqueles olhos pálidos de lobo estavam abertos, mas eles... não
havia luz neles. O peito não se mexia. Estava imóvel. Ele estava
imóvel. Eu não entendia, não queria entender. Esfreguei a pele dele,
continuei esfregando, mesmo quando sua textura deixou de parecer
de verdade.
— Trinity — Roth começou, sua voz toda estranha. Ele balançou
para trás, as mãos caindo aos joelhos, e então ele desviou o olhar,
levantando-se. Ele deu um passo cambaleante, erguendo as mãos
para o cabelo enquanto se inclinava —, ele tá...
— Não. Não. — Observei o rosto de Zayne. — Zayne?
A única resposta foi o vínculo que se rasgava profundamente
dentro de mim, como se fosse um cordão esticado até seu limite.
Arrebentou-se quando um lamento agudo rasgou o ar, arrancado da
minha própria alma. Eu já não sentia o vínculo.
E então eu não sentia mais nada.
Capítulo 42