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emergências do presente

em design, arte e
arquitetura

ARCOS DESIGN . 2024 . Volume 17 . Número 1


arcos design
editorial

Editorial, v.17, n.1 - janeiro 2024

O objetivo geral desta edição da Revista Arcos Design é situar a ideia de


design no debate contemporâneo das emergências do presente e de suas re-
lações com arte, arquitetura e urbanismo, a partir de reflexões sobre: cida-
de, política, história, coautoria, lugar, práticas populares, alteridade, evento,
entre outras. Para isso, os artigos selecionados para esta edição da revista
são elaborados, a partir de análises temáticas, projetos e conceitos que se
desenvolvem coadunados com tais reflexões.
A hipótese central da chamada para este número consistiu em compreen-
der que a condição do design contemporâneo e das emergências do presen-
te desafia os profissionais e teóricos na criação de reflexões e projetos que
produzam deslocamentos de suas próprias “identidades fixas” na constru-
ção de uma “desidentificação aditiva”, onde as intervenções e a cultura ma-
terial possam estar atravessadas por múltiplas facetas, por exemplo, entre
design, arte, arquitetura e cultura, expandindo fronteiras de construções
socialmente justificáveis.
Os artigos recebidos para chamada temática: “Emergências do presente
em design, arte e arquitetura” foram organizados, nesta edição, a partir de
três grupos identificados por aproximações dos temas abordados. Assim,
nos primeiros três artigos, destacam-se os debates tendo a cidade como
tema central; já no segundo grupo, dois artigos refletem abordagens políti-
cas que tratam das emergências do presente na reflexão sobre gênero e na
militância de design nas plataformas virtuais; no terceiro grupo, os debates
e reflexões são marcados no campo da história.
Além da seção temática acima citada, nesta edição, contamos ainda com
a publicação de quatro artigos em ampla temática.

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 2-3. ISSN: 1984-5596 v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign 2

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arcos design
Fechamos mais uma edição reafirmando o compromisso da revista Arcos
Design de se manter atenta às produções significativas no campo do Design
ampliado e atravessado por outras áreas e saberes, refletindo o que nomea-
mos aqui como “emergências do presente”.

Desejamos uma boa leitura!

André Carvalho, Esdi/UERJ


Barbara Necyk, Esdi/UERJ
Carolina Noury, Esdi/UERJ
Ricardo Artur P. Carvalho, Esdi/UERJ

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 2-3. ISSN: 1984-5596
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arcos design
expediente

Volume 17, nº 1, Janeiro de 2024

ARCOS Design é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação


em Design da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Endereço
Rua do Passeio nº 80, Centro, CEP 20021-290. Rio de Janeiro, RJ
arcos-design@esdi.uerj.br

Conselho Editorial capa


Alexandre Farbiarz, UFF Projeto: Daniela Souto, ESDI/UERJ
André Monat, ESDI/UERJ dir. de arte: Raiane Cardoso,
Carla Galvão Spinillo, UFPR ESDI/UERJ
Jackeline Lima Farbiarz, PUC-RIO Foto: Mukund Nair na Unsplash
Lucy Niemeyer, ESDI/UERJ
Marcos da Costa Braga, USP diagramação
Rafael Cardoso, UERJ/FU-BERLIN Camila Niemeyer, ESDI/UERJ
Carlos Alberto Fernandes ESDI/UERJ
Editores ChefeS Gabriela Dionizio ESDI/UERJ
André Carvalho, ESDI/UERJ Raiane Cardoso, ESDI/UERJ
Barbara Necyk, ESDI/UERJ Renan Bentes, ESDI/UERJ
Carolina Noury, ESDI/UERJ
Ricardo Artur P. Carvalho, ESDI/UERJ

Editor Executivo
Tarcísio Martins Filho, ESDI/UERJ

bolsistas
Camila Niemeyer, ESDI/UERJ
Carlos Alberto Fernandes, ESDI/UERJ
Gabriela Dionizio, ESDI/UERJ
Raiane Cardoso, ESDI/UERJ
Renan Bentes, ESDI/UERJ

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 4-7. ISSN: 1984-5596
v. 17, n. 1, Janeiro 2024
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arcos design
Avaliadores
Alexandre Farbiarz, UFF Luiz Saboya, ESDI/UERJ
Almir Mirabeau, ESDI/UERJ Maíra Lacerda, UFF
Ana Maynardes, UNB Márcia Bergmann, PUC-RIO
André Monat, ESDI/UERJ Márcio Guimarães, UFMA
Anelise de Carli, APPH Marco André Mazzarotto, UTFPR
Bruno Sergio Oliveira, ESDI/UERJ Marina Sirito, ESDI/UERJ
Camila Assis, UFRJ Marisa Maass, U.PORTO
Carina Martins, ESDI/UERJ Noni Geiger, ESDI/UERJ
Caroline Muller, UFPR Paula Camargo, ESDI/UERJ
Cristine Nogueira, PUC-Rio Priscila Andrade, PUC-RIO
Daniel Portugal, ESDI/UERJ Raquel Ponte, UFRJ
Denise Portinari, PUC-RIO Roberta Portas, PUC-RIO
Fabiana Heinrich, EBA/UFRJ Romulo Guina, UVA/RJ
Flavio Sabrá, IFRJ Rosana Alexandre, PUC-RIO
Guilherme Altmayer, ESDI/UERJ Tiago Silva, UNB
Guilherme Xavier, PUC-RIO Wagner Rufino, ESDI/UERJ
Gabriel Schvarsberg, ESDI/UERJ
Glaucineide Coelho, ESDI/UERJ
Humberto Costa, PUCPR
India Mara Martins, CONCORDIA
Joaquim Redig, UERJ
Jofre Silva, UFRJ
Júlia Rabetti, UFF
Julieta Sobral, PUC-RIO
Lindsay Cresto, UTFPR
Lucy Niemeyer, UFRJ
Luiz Agner, PUC-RIO

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 4-7. ISSN: 1984-5596
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arcos design
Sumário

2 Editorial

artigos temáticos

8 Design, cidade e a leitura do sensível:


premissas epistemológicas para práticas
do design em ambiências urbanas
Isabella Pontello Bahia (UFMG, Brasil)
Edson Carpintero Rezende (UFMG, Brasil)

27 Mobiliário urbano e arte pública em tempos


de ressignificação do espaço público
Josielle Cíntia de Souza Rocha (UFJF, Brasil)
Fernando Araújo Costa (UFRJ, Brasil)
Antonio Ferreira Colchete Filho (UFJF, Brasil)

43 A estética do não lugar: a paisagem urbana como


imagem efêmera e a partilha do sensívela
Mariana dos Santos Couto (PPGD/UFRJ)
Fernanda de Abreu Cardoso (PPDG/UFRJ)

60 Queer Designers: Experimentações não-conformativas


na geração de uma rede dissidente
Aura Celeste Santana Cunha (UFC, Brasil)
Lucas Mota Borges (UFC, Brasil)

79 Militância e Design na era das plataformas virtuais: uma


análise semiótica da “memeficação” do engajamento político
Vinicius Cabral Ribeiro (UEMG, Brasil)
Juliana Rocha Franco (UEMG, Brasil)

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Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 4-7. ISSN: 1984-5596
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arcos design
102 Fazer coisas é contar histórias: mapeamento
sistemático sobre o conceito de narrativa na
dimensão do design e dos saberes artesanais
Luiza Gomes Duarte de Farias (UFMA, Brasil)
Raquel Gomes Noronha (UFMA, Brasil)

123 Projetando para emoções e relações: um novo


paradigma no design contemporâneo
Renata de Assunção Neves (PUCRIO, Brasil)
Vera Maria Damazio (PUCRIO, Brasil)

artigos de fluxo contínuo

143 Tomando um lado: formação crítica e prática extensionista


no Laboratório de Design contra Opressões
Christiano Hagemann Pozzer (UFRGS, Brasil)
Vinicius Gadis Ribeiro (UFRGS, Brasil)

176 Um livro é um livro; no entanto, se move


Amanda Monteiro Gonçalves (UEMG, Brasil)
Sérgio Antônio Silva (UEMG, Brasil)

190 Prospectando qualidades relacionais na educação


em Design através da quilt-terapia
Cayley Guimarães (UTFPR, Brasil)
Frederick Marinus Constant Van Amstel (UTFPR, Brasil)

212 Como o design estratégico pode aumentar a


assertividade de uma empresa calçadista
Thomás Czrnhak (FEEVALE, Brasil)
Juan Felipe Almada (FEEVALE, Brasil)
Cristiano Max Pereira Pinheiro (FEEVALE, Brasil)
Monique Dilkins (FEEVALE, Brasil)

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 4-7. ISSN: 1984-5596
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arcos design

Design, cidade e a leitura do sensível:


premissas epistemológicas para práticas
do design em ambiências urbanas

Isabella Pontello Bahia (ufmg, Brasil)


isabellapont.bahia@gmail.com

Edson Carpintero Rezende (ufmg, Brasil)


edson.carpintero@gmail.com

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 8-26. ISSN: 1984-5596
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8
Design, cidade e a leitura do sensível:
premissas epistemológicas para práticas
do design em ambiências urbanas

Resumo: O presente artigo almeja apresentar os fundamentos do design que


orientam as práticas de projeto enquanto imersas nas ambiências urbanas.
Para tal, perpassa por reflexões no que tange a interface design e cidade de
modo a elucidar o conceito de ambiências urbanas e, assim, evidenciar as
bases epistemológicas desse design para ambiências. A pesquisa empreende
uma investigação qualitativa, na qual a metodologia adotada foi a revisão de
literatura. Espera-se construir um diálogo no qual tendo o designer como
interlocutor seja possível se pensar e projetar na cidade a partir de uma lei-
tura sensível das ambiências urbanas. Vislumbra, portanto, um espaço para
o designer ao se (re)pensar as cidades.
Palavras-chave: Design, Cidade, Ambiências Urbanas, Episteme.

Design, city and the reading of the sensitive: epistemological


premises for design practices in urban atmospheres

Abstract: This article aims to present the fundamentals of design that guide
design practices while immersed in urban atmospheres. To this, it goes through
reflections regarding the design and city interface in order to elucidate the
concept of urban atmospheres and, thus, highlight the epistemological bases of
this design for ambiences. The research undertakes a qualitative investigation,
in which the methodology adopted was the literature review. It is expected to
build a dialogue in which, having the designer as an interlocutor, it is possible
to think and design in the city from a sensitive reading of urban atmospheres.
It envisions, therefore, a space for the designer when (re)thinking cities.
Keywords: Design, City, Urban Atmosphere, Episteme.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 8-26. 9


1. Introdução
O design tem uma estreita ligação com a vida humana. Apesar de orien-
tado à produção industrial outrora, hoje é possível compreender que suas
oportunidades e espaços de ação estão relacionados majoritariamente às
demandas do ser humano. Para tal, o escopo de sua atividade sofreu, e so-
fre, alterações, o que além de possibilitar mais visibilidade e permeabilidade
perante os movimentos da cultura, responde também a um maior impacto
social do design (BECCARI, 2017; FLUSSER, 2013; ROSSI; MOON, 2021). Nota-
se que essa prática está presente nos diversos objetos, utensílios, ambientes
e vestimentas, mas também, na criação de linguagens, no desenvolvimento
e orientação de serviços em diálogo com as mais diversas áreas (BEZERRA,
2011; CARDOSO, 2012). Dessa forma, se faz cada vez mais necessário o esta-
belecimento de um design consciente que apresente projetos concretos que
contribuam para a solução de problemas sociais e ambientais e que se pau-
tem em leituras sensíveis das subjetividades da realidade humana.
Esse pensamento do design para a sociedade nos permite o exercício do
olhar para as realidades sociais e as teias de sociabilidade que existem e/ou
deixam de existir de modo a investigar e problematizar as suas motivações.
Nesse sentido, evidenciam-se os espaços urbanos como recortes potentes
que abrigam e concomitantemente são cenários de diversas vidas humanas.
À vista disso, quando se pensa no design para ambientes, vislumbram-se
oportunidades de enriquecimento teórico e ampliação do escopo da atua-
ção a partir da partilha do sensível para as ambiências urbanas (RANCIÈRE,
2009; THIBAUD, 2010), visto que ainda há na atualidade um modelo exclu-
dente de pesquisa e produção desses espaços, pautado pela negligência com
a população mais pobre e com os limites da natureza, pois, parafraseando
Sérgio Buarque de Holanda (1975), o espaço público no Brasil sempre foi
um lamentável mal entendido.
Seja um reflexo da modernidade líquida apontada por Bauman (2001),
ou os próprios desafios e estranhamentos com os quais nos deparamos na
atualidade a partir de uma situação de retomada de uso dos ambientes co-
letivos e, principalmente públicos, pós pandemia e distanciamento social,
nossa relação com os espaços mudou e tende a mudar (ANDRÉS, 2020).
Assim, é necessário que se pense em novas abordagens e que se aproxime
novos campos do conhecimento sensíveis e includentes ao design de am-
bientes (BARBOSA, 2020). Tem-se, portanto, a possiblidade de imersão no
estudo das ambiências e, o desenho de diálogos enriquecedores para as in-
vestigações que tem o ambiente como meio e fim.
À vista disso, o artigo em questão parte da necessidade de aproximar
os conceitos de ambiências urbanas à partilha do sensível por meio do

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 8-26. 10


entendimento de bases constitutivas desse design que é, em sua essência,
destinado às pessoas e suas particularidades. Objetiva, portanto, apresentar
os fundamentos do design que orientam as práticas nas ambiências urbanas.
De modo específico irá apresentar reflexões acerca da interface design e cida-
de, o conceito de ambiências, bem como, evidenciar os princípios epistemo-
lógicos do design que permitem uma prática sensível nos espaços urbanos.
Dessa forma, a estrutura metodológica proposta define-se como quali-
tativa e de natureza teórica (STAKE, 2011; VAN DER LINDEN, 2010). No que
tange os métodos de abordagem, que proporcionam as bases lógicas da in-
vestigação, a proposta enquadra-se no método dialético, de forma a permitir
a inserção no contexto pesquisado e a construção de diálogos no tocante à
sociedade (GIL, 2019; LAKATOS; MARCONI, 2017). Sobre as técnicas de pes-
quisa a serem aplicadas, pauta-se na revisão de literatura.

2. Reflexões sobre design e cidade


A conexão do design com o ambiente urbano mostra-se de maneira direta
e projetual a partir do momento em que se iniciam reflexões acerca da ne-
cessidade de se projetar cidades para as pessoas (LYNCH, 2011). De acordo
com Gehl (2015) trata-se de uma realidade pós modernista pois, tal esti-
lo prezava pelo distanciamento das habitações dos centros urbanos o que
resultou em situações nas quais há pouca conexão entre a forma física da
cidade e o comportamento humano. Para Santos (2014), a desumanização
das cidades é ainda mais problemática a partir da inserção de outras variá-
veis que se relativizaram na modernidade tais como o tempo e a cidadania,
o que faz necessário visualizar o espaço a partir das atividades humanas,
pois, sempre que a sociedade sofre uma mudança, as formas assumem no-
vas funções (SANTOS, 2012; SUDJIC, 2019).
Apesar das cidades não serem o campo privilegiado de atuação dos de-
signers (SZANIECKI; COSTARD, 2019) e os papéis da criação estarem parcial-
mente (e legalmente) definidos, a interpretação e a confecção de diálogos
posteriores à produção do espaço, que analisam os impactos e novas pro-
posições, costumam ocorrer de maneira oblíqua (LEFEBVRE, 2001; LYNCH,
2011; SOUZA, 2016). Em vista disso, a produção do espaço não deve ser ana-
lisada a partir de apenas um campo do conhecimento estanque. E, é neste
interlúdio que se têm colaborações das mais diversas áreas que permitem
melhor compreender o ser humano e, no caso do design, as interfaces en-
tre pessoas e o espaço.
Para Vassão (2016), ainda que o design se relacione com os produtos e
com a forma visual das cidades, é possível realizar um olhar ampliado so-
bre este campo que para ele, denomina-se nova urbanidade. Em outras

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 8-26. 11


palavras, a conexão do design com o ambiente urbano na atualidade deve
ser direcionada também aos serviços e às relações humanas que nele se dão.
Nesse sentido, de acordo com Gehl (2015), as cidades são como livros, que
podem ser lidos, em uma análise pós construção. Nesta mesma perspecti-
va, e com a inserção do design, é possível destinar além do leitor, um coau-
tor para essa obra que, pelo princípio de ser para muitas pessoas, deve ser
escrita por várias mãos. Corroborando com este pensamento, Montaner e
Muxí (2014) apresentam novas epistemologias para o urbanismo contem-
porâneo que partem dos seguintes preceitos: a igualdade; a igualdade de
gêneros; a diversidade; a participação e a sustentabilidade. Na proposta de
“ensaios para mundos alternativos” observa-se, portanto, como o diálogo
com o design se faz necessário.
Para Lynch (2011, p.17) é possível se pensar em princípios básicos de
design urbano e, este design seria responsável por dar forma visual às ci-
dades; “a análise da forma existente e de seus efeitos sobre o cidadão é uma
das pedras angulares do design das cidades”. O autor reforça a importância
da criação ou mesmo da identificação de uma imaginabilidade da cidade.
Para Lynch (2011) este elemento garante a transformação do tecido urbano
em lugares. Nesse sentido, Szaniecki e Costard (2019) vislumbram o design
como uma alternativa para a crise de um projeto de cidade, principalmente
por crerem que a abordagem processual em design permite práticas cola-
borativas, bem como, promotoras do dissenso, portanto, mais pluriversais.

Este emaranhado produtivo, político e afetivo cotidiano requer um olhar


mais atento aos detalhes e uma atitude cautelosa com os processos. É com
essa postura que o design pode atuar e assim contribuir para a construção
coletiva de um espaço urbano mais democrático (SZANIECKI; COSTARD,
2019, p.2).

Em vista disso é importante elucidar a reflexão de Bezerra (2011) sobre


a responsabilidade dos designers sobre suas criações. A ética da atividade
profissional precisa repercutir nas ações sociais de modo que já é sabido do
impacto dos produtos do design na vida humana, portanto, precisam ser
desenvolvidos para este mundo real, e não mais, apenas para “o mundo ar-
tificial ao nosso redor” (BEZERRA, 2011, p. 12). Soma-se ao bônus da criati-
vidade e da cocriação o ônus da exequibilidade que garanta bem-estar so-
cial. Flusser (2013) evidencia que a dicotomia da responsabilidade versus
criatividade no processo de criação dos designers tem como crivo a leitura
da sociedade. Neste sentido, uma proposição de design para muitas pessoas
compreende uma solução responsável, na qual, muitas vezes a liberdade

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 8-26. 12


individual do designer precisa ser tolhida em função das necessidades co-
letivas da cidadania (BEZERRA, 2011; FLUSSER, 2013).
Esta reflexão se faz pertinente pois os princípios do processo de criação
em design vão, em sua maioria, orientar a criatividade e o crivo da toma-
da de decisão ao projetista. Entretanto, a realidade para a qual se debruça,
demanda sensibilidade de modo a proporcionar a inclusão e a democracia
de uso, afinal “não podemos fazer nada quanto ao passado, mas certamen-
te podemos planejar melhor o futuro. E aqui é onde a ética de nossos pro-
cessos de criação entra em questão” (BEZERRA, 2011, p.62). Faz-se, portan-
to, necessário compreender o processo criativo em design e seus pontos de
contato com as pessoas.
Um projeto de design compreende propor a alteração de uma situação
indesejada para a situação mais desejada possível (SIMON, 1970). Portanto,
parte de uma investigação que objetiva identificar o problema a ser sanado.
As soluções de design além de serem de naturezas diversas (produto, ser-
viço, identidade, organizações) podem se inserir nas mais dessemelhantes
realidades em que se observa a vida humana. Assim sendo, a investigação
que precede a ação de design se insere de maneira transversal nos campos
do conhecimento (CARDOSO, 2012; MANZINI, 2017; MARGOLIN, 2014). Uma
questão, entretanto, se faz presente em todas as proposições de design: a re-
lação com as pessoas. Pode-se dizer que o designer é alguém que questiona
as interfaces que permeiam a vida humana e, à vista disso, tem o seu pro-
jetar centrado no usuário. Assim, para Manzini (2017, p.68) “na transição
para uma sociedade em rede e sustentável, todo design é uma atividade de
pesquisa em design e deveria promover experimentos sociotécnicos”.
Entendidas as realidades em que se assimilam as investigações em design
entram em cena as premissas e requisitos de projeto em soma à processos
criativos. Nesta etapa é presente a dualidade da técnica com a abstração, e é
a leveza em transitar nestes opostos que permite a inovação. Durante o pro-
cesso criativo em design são frequentes metodologias coletivas, participa-
ção popular além do uso de recursos para a experimentação das propostas
a partir de modelagens das mais diversas naturezas. Essa experimentação
permite uma validação antes do desenho final, bem como, colhe percepções
enquanto o projeto ainda se encontra no plano das ideias. A melhor pro-
posição toma forma e só então é implementada, momento no qual a aná-
lise dos resultados se faz essencial em virtude das complexidades oriundas
do problema de design (BOMFIM, 1999; CARDOSO, 2012; MARGOLIN, 2014).
Desde o início das teorizações acerca da crise da cidade, que ocorreram
em meados de 1960, vem surgindo propostas urbanistas com o intuito de
repensar o planejamento urbano e reverter os não-lugares das cidades do

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 8-26. 13


mundo. Aqui destacam-se as propostas de Gehl (2015), Lynch (2011), e
Szaniecki e Costard (2019) nas quais emerge a figura do designer como um
dos atores desta mudança tal qual é evidenciada a participação popular, a
necessidade de criação de uma linguagem e imagem da cidade e o projeto
de cidade ao nível dos olhos, elementos muito específicos do processo cria-
tivo de soluções em design. À vista disso, para Gehl e Svarre (2018, p. 3)
tem-se que “a grande questão é fazer com que um grande volume de vida
afetiva funcione nos espaços públicos, de forma a permitir que a vida diá-
ria ocorra em condições decentes e seja parceira de uma estrutura física e
não sua adversária”. Apesar de evidentes os diálogos (e espaços de ação) do
design nas cidades, propõe-se aqui um entendimento mais adequado para
a leitura dessa urbanidade sensível: as ambiências urbanas compartilhadas.

3. Um olhar para ambiências urbanas compartilhadas


A partir do entendimento da cidade como um campo de investigação que
permite a figura do designer como agente e interlocutor, entende-se que
além da compreensão dos elementos que compõem este espaço social de-
ve-se ilustrar procedimentos que podem orientar essa investigação. Nesse
sentido, emerge o conceito de ambiência, o qual não se resume na tangibi-
lidade apesar de descrevê-la, pois também caracteriza as relações, de modo
que possibilita equações nas quais há em projeção a pessoa, a percepção e o
ambiente (DUARTE, 2013; SILVA; DUARTE, 2020; THIBAUD, 2000).
Ambiência é um termo que aborda o ambiente, mas, não se limita a ele.
Assim como a ambiência diz da qualidade do que é ambiente, do meio físico
e material, mas não se resume a eles em sua materialidade. Thibaud (2020)
esclarece a questão das ambiências como uma abordagem sócio estética que
se apoia no estudo da experiência no ambiente urbano. O que se conecta
com a leitura de Duarte (2013, p.1) de que “ambiência é um conceito fácil
de sentir e difícil de explicar”.
Isso ocorre visto ao fato de que “as pessoas não reagem passivamente ao
ambiente. Atuam sobre ele, configuram-no e dão significado a ele” (THIBAUD,
2005, p.209). Dessa maneira, para Thibaud (2005) as investigações acerca
dos ambientes devem partir de estímulos, ou seja, acredita-se que os estudos
nos espaços possibilitem não somente uma leitura da natureza física daquela
realidade, mas também, a identificação de novas possibilidades de uso hu-
mano, além de empreender facilidades para suprir as necessidades básicas
da vida em sociedade. Assim, investigações efetivas no ambiente só existi-
rão quando, de fato, a inteligibilidade deste for tratada em comunhão com
as subjetividades das pessoas (DUARTE, 2013; RODRIGUEZ-ALCALÁ, 2020).

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 8-26. 14


À vista disso, a dimensão física do ambiente deixa de ser superestimada
e passa-se a levantar, na mesma proporção, o ambiente baseado nas expe-
riências que com ele e nele se tem. E é a partir desta reflexão que se men-
ciona o termo ambiance urbaine en partage, traduzido como ambiência
urbana, ou ambiência urbana compartilhada, esquematizado na Figura 1,
cunhado por Jean-Paul Thibaud (2000), sociólogo, pesquisador que anali-
sa o ambiente urbano.

figura 1. Caracterização das ambiências urbanas. Fonte: Thibaud (2000, p.105) tradução da autora.

Duarte (2013), no prefácio da obra “Ambiances urbaines en partage: pour


une écologie sociale de la ville sensible” de Thibaud (2013), define ambiên-
cias como a ciência do olhar sensível no espaço, bem como, evidencia que
o termo emerge a partir das limitações existentes na pesquisa em arquite-
tura e urbanismo, pois, “não eram mais capazes de dar conta de uma visão
mais ampla do ambiente das cidades” (DUARTE, 2013, p.1). As ambiances en
partage são, portanto, ambiências compartilhadas e seu campo de estudo
apresenta-se como as experiências sensíveis das cidades. Ou, como anun-
ciado por Thibaud (2010, p.9): “em suma, ambiência é definida como o es-
paço-tempo experimentado pelos sentidos”.
O entendimento sobre as experiências sensíveis da cidade apresentado por
Thibaud (2010) parte dos escritos de Rancière (2009), que elucida a partilha
do sensível como uma ação necessária na contemporaneidade. Para o autor
a modernização e a globalização têm contribuído para uma ampla crise es-
tética. Crise esta, que se molda em função de uma padronização, da utiliza-
ção de denominadores comuns para discursos díspares que formatam uma
leitura equivocada, mesclada e de reprodução para as artes do cotidiano, tal
como apresentadas por Certeau (2008). Dessa forma, Thibaud (2010) vê a
leitura do sensível de Rancière (2009) como uma alternativa para a crise es-
tética e crise das cidades, que permitirá, então, a construção de cidades sen-
síveis. Lugares nos quais haverá espaço e visibilidade para as formas de lazer,

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 8-26. 15


para a vida e experiência, proporcionando a “efetividade do pensamento”,
ou como apresentado por Rancière (2009, p. 15) “uma partilha do sensível
fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas”.
Em complemento a isto, a tradução do conceito ambience en partage para
a língua inglesa é atmosphere e é evidenciada por Thibaud (2010, p.9) como
“a atmosfera moral e material que circunda um lugar ou uma pessoa”. À vis-
ta disso, Duarte (2013) caracteriza a intangibilidade do termo, bem como,
a sua fácil percepção pelas pessoas, que muitas vezes a abordam como o
“clima indescritível” de determinado lugar. Ainda de acordo com a autora:

Já que uma ambiência nos leva a refletir sobre tipos de experiência, per-
cepção e ação em determinados e específicos contextos, podemos dizer
que sua definição está muito mais próxima do campo empírico do que
teórico. Por isso, ultrapassar as amarras que tornam as ambiências ob-
jetos explicitados simplesmente pela junção de descobertas e conceitos
definidores tem sido, há algumas décadas, um mote (DUARTE, 2013, p.1)

Em trabalho realizado pelo laboratório de pesquisa Arquitetura,


Subjetividade e Cultura (LASC) da UFRJ, Duarte (2013) investigou como as
pessoas compreendiam o conceito de ambiência aplicada a uma cidade bra-
sileira. A autora constatou que, as pessoas ao serem questionadas, relacio-
navam a ambiência ao somatório das sensações com os atributos físicos do
lugar, de modo inseparável. Também foi observado que ao sugerir aos en-
trevistados que relatassem sobre ambiências em locais aleatórios da cidade,
a identificação destes se pautava na “capacidade desses locais de permitirem
o encontro, o evento, o compartilhamento, a fricção, a presença conjunta em
torno de experiências sensíveis diferenciadas” (DUARTE, 2013, p.3). À vista
disso, percebe-se a relevância da alteridade no estudo das ambiências, bem
como, a presença do corpo de um eu e de outros corpos que sentem, per-
cebem, se movimentam e interagem (DUARTE, 2013; RODRIGUEZ-ALCALÁ,
2020; THIBAUD, 2010).

Podemos dizer, então, que a Ambiência evoca nossa interpretação sub-


jetiva da experiência coletiva, da consciência de fazer parte de um lugar
urbano cujas sensações possuem significados compartilhados pelos seus
usuários. Evidencia-se, assim, uma clara “encarnação” da subjetividade, o
que faz emergir a ideia de que uma ambiência se faz reconhecer na coleti-
vidade, apesar de se representar na individualidade (DUARTE, 2013, p.3).

É importante destacar que, as ambiências não são projetadas, assim como


também não são percebidas. A ambiência não pode ser descrita a não ser
por meio da experiência. Nesse sentido, não se percebe a ambiência, mas,

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se percebe de acordo com a ambiência. Não se cria a ambiência, mas cria-se
e descrevem-se realidades na ambiência, que também passa a (re)existir e
pode ser reformulada a partir destas modificações. Trata-se de um conceito
que parte de uma dimensão sensível, de constituição (e/ou reconhecimen-
to) de identidades de modo a permitir a apropriação por meio de experiên-
cias espaciais (DUARTE, 2013; RODRIGUEZ-ALCALÁ, 2020; THIBAUD, 2010).
A estética da ambiência é, portanto, importante no auxílio à criação de es-
paços urbanos pois evidencia as maneiras de habitar e criar em coletividade
na atualidade. Para Thibaud (2010, p.10) “a ambiência convoca, ao mesmo
tempo, uma poiesis e uma estética dos ambientes construídos. O desafio é
ajustar essas duas dimensões e relacioná-las às atuais mutações da urbe”. À
vista disso, tem-se que:

as primeiras três pistas que tentam esclarecer a ambiência (quais são seus
usos?), avaliar as consequências práticas desse conceito (quais são seus
efeitos?) e revisar os contextos de pensamento nos quais ela está basea-
da (quais são os desdobramentos?), abrem caminho para uma ecologia
pragmática da cidade sensível. Assim, a questão não é tanto perguntar, de
uma vez por todas, o que é uma ambiência, mas sim refletir sobre o que
ela faz e em que ela se torna, e o que ela provavelmente afetará e trans-
formará quando for experimentada e testada concretamente em situa-
ções atuais (THIBAUD, 2010, p.14).

Dessa maneira, o conceito de ambiência nos permite compreender que


os problemas nas interfaces com os ambientes não podem ser resolvidos
apenas a partir da regulação dos inputs (da inserção de elementos físicos
e simbólicos) no ambiente. Ao compreender uma ambiência são descorti-
nados inúmeros fatores os quais devem ser matéria prima para a proposi-
ção de abordagens mais sensíveis, ou abordagens que evidenciam os movi-
mentos do cotidiano. Há, portanto, a necessidade de se pensar em políticas
ambientais a partir das ambiências (THIBAUD, 2005). Estas políticas podem
apresentar várias escalas de aplicação (internacionais, nacionais, regionais
e locais) imbuídas em abordagens perceptíveis e sensíveis. E é por esse mo-
tivo que se pretende compreender como o design interage nesse contexto e
suas bases que permitam uma prática para os sentidos.

4. Design para os sentidos: acerca das bases


sensíveis do design para ambiências
Pensar em design para ambiências urbanas nos aproxima de um entendi-
mento acerca do ambiente subjetivo dos espaços habitados. Questão que
para Thibaud (2010, p. 4) “nos parece evidente que a percepção sensível seja

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o caminho não só possível, mas, de fato, inevitável para os pesquisadores
que buscam captar e restituir a concretude da experiência urbana”. Dessa
forma, o que se pretende responder é, como o design pode interagir com
essa realidade? Quais são as bases que orientam essa coleta sensível, capaz
de conduzir uma leitura e proposição de atmosferas condizentes com as ne-
cessidades humanas?
Faz-se necessário, portanto, compreender os preceitos considerados nessa
gênese do design e como estes já ultrapassavam os anseios materiais do de-
senho industrial. A partir de Bomfim (2014) tem-se que apesar de o design
estar ligado a um ideal moderno de materialidade, não é possível a criação
de qualquer objeto sem sujeito, pois “as características de um objeto são,
na verdade, as interpretações subjetivas que dele fazemos” (BOMFIM, 2014,
p.44). E, por isto “as práticas de design passam pela encarnação de um ma-
terial simbólico que se encontra suspenso na ordem social” (NOGUEIRA,
2018, p.12). A prática do design diz de uma habilidade de leitura e propo-
sição de símbolos capazes de imprimir sentido para os sujeitos, ou seja, de
enternecer suas sensibilidades. E talvez, esta produção de sentido ultrapas-
se em relevância a materialização de produtos. Por isso, tem-se que foi “no
âmbito da crescente importância da estética, isto é, da dimensão sensível,
que o design surge como disciplina” (NOGUEIRA; PORTINARI, 2019, p.166).

Assim, a ação do designer vem numa ação de mediação, de diplomacia,


não apenas como ato de projetar, mas também de projetar-se, de lançar
uma autorreflexão à frente para antecipar condutas. O objeto é o enten-
dimento de si para com outrem – lançar uma autorreferenciação à fren-
te e para fora do si mesmo. É nessa condição de interdependência entre
o si e o outrem, que se instaura a empatia – o ato de se projetar no outro
(SILVA E STREH, 2019, p. 12).

Para compreender como isto é feito, principalmente no que tange as fer-


ramentas que esse design possui para interpretar e lidar com a subjetividade,
Szaniecki e Costard (2019) evidenciam uma certa postura antropológica e
relacional, que se abre para os mais diversos modos de vida. Tem-se a orien-
tação para uma prática em design na qual são frequentemente propostos

experimentos que questionem as próprias perguntas e possibilitem a


criação de novas perguntas, colocando em risco seu modo hegemônico
de pensamento; propõe uma prática situada que convide à participação,
buscando criar pontes e tecer relações entre diferentes modos heterogê-
neos de vida, sem privilégios e passíveis de outras conexões (SZANIECKI;
COSTARD; 2019, p.6).

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Isso posto, a atividade projetiva que responde anseios do ser humano
parte do entendimento de suas necessidades imbrincadas em contextos so-
ciais. O fazer do design se pauta em uma experiência de compreensão do
outro e tem-se nessa superfície do design, tal como proposto por Rancière
(2012), um desdobramento formal aplicado à disciplina projetual que se
consolida como ação a partir da partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009). Em
outros termos, essa superfície do design diz da utilização de recursos nos
quais empreende-se a capacidade de experenciar a vivência do outro em
suas situações familiares e assim, projetar algo que seja também familiar ao
sujeito em questão.
Para o filósofo francês, a existência humana intrinsicamente empreende
a imersão em uma experiência sensível (RANCIÈRE, 2009; 2012). Esta ação,
entretanto, não é perene e não pode ser lida como um dado formal e está-
tico, mas, como o resultado de uma soma de processos, de conflitos que se
constituem das realidades sócio-históricas testemunhadas a partir da escu-
ta, das sensações percebidas e do pensamento analítico. Nogueira (2018,
p.7) explicita que “este sensível não é um dado imutável, mas fruto de uma
partilha em disputa, atravessada por uma série de vetores eminentemente
históricos e sociais que definem os regimes daquilo que é visível e não vi-
sível”. E é a partir da imersão nessas experiências que pode-se consolidar o
entendimento de estética. Apresentada por Nogueira (2018, p.7) como “a
matéria constitutiva daquilo que se nos apresenta como experiência sensí-
vel”. Vislumbram-se, portanto, algumas imbricações entre design, as mate-
rialidades oriundas da prática da estética e a produção de subjetividades.
Apesar do sensível ser o fruto de uma partilha em disputa (RANCIÈRE, 2009)
ele se dá como o motor, parte do processo e produto das ações de design
mediadas pela estética, que também pode ser entendida como:

O sistema de formas ‘a priori’ determinando o que se dá a sentir. É um


recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e
do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na
política como forma de experiência (RANCIÈRE, 2009, p.16).

Dessa forma, a partir de Nogueira (2018) entende-se que esse design para
as subjetividades pode firmar-se como uma polícia ou uma política, sendo
a última um meio coerente de se produzir rupturas na ordem sensível e por
isto, inovação e impacto social. O autor postula que o design enquanto ar-
ticulador das subjetividades como política orienta “a produção de pequenas
fissuras na ordem do sensível, que desloquem os sujeitos de sua identida-
de e daquilo que os fixa a si próprios, abrindo potência para a emergência
contingencial de singularidades” (NOGUEIRA, 2018, p.8). Enquanto polícia,

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o design se apresenta como um consenso, uma prática de repetição que pre-
tende ser lida como um dispositivo cultural. Há, portanto, um entendimento
que pauta-se pela sensibilidade, entretanto, objetiva apresentar uma resposta
única para questões diversas, não respeitando as particularidades das pes-
soas. Pode-se entender, inclusive, que essa polícia do design pode ser lida
como uma imposição; uma estética única para as mais diversas situações.
Por outro lado, o design como política tem como objetivo perturbar a
suposta ordem imposta pela polícia e, portanto, caracteriza-se pelo dissen-
so. O emprego da partilha do sensível como política diz da diversificação
de pontos de vista, nos quais o que prevalece é a sensibilidade do indivíduo
obstante a uma ideia de uniformidade. O design como política proporciona
espaço estético para a diversidade e inclusão (NAJAR, 2019; NOGUEIRA, 2018).
Seria, portanto, o trabalho com a estética uma das bases sensíveis do de-
sign para a proposição de experiências urbanas complexas e completas. Ao
imergir em uma realidade a partir da diversidade, o design transita entre
os signos com fluidez e, apresenta um olhar holístico para a identificação
de um problema e, consequentemente de uma solução. Questão que dialo-
ga com o entendimento de Thibaud (2010, p. 6) de que os “métodos de ex-
posição com maior sintonia com a própria estrutura da experiência urbana
tomam o lugar do discurso linear e monológico”. Se a crise de um projeto
de cidade perpassa por incontáveis variáveis, sua resposta deve considerar
as subjetividades dos vários sujeitos. Nesse sentido, uma abordagem a par-
tir do design performa suas articulações simbólicas e materiais e, portanto,
perpassa por uma política estética (NOGUEIRA, 2018). Assim, tem-se que:

a abordagem das ambiências busca se livrar das perspectivas normativas;


distingue-se das abordagens excessivamente positivistas e de uma orien-
tação estritamente psicofísica; ela enfatiza a atividade de percepção dos
sujeitos e o papel das práticas sociais na concepção sensível do ambiente
construído permitindo, dessa forma, que se preste maior atenção às to-
nalidades afetivas da vida urbana (THIBAUD, 2010, p.9).

Para Nogueira (2018, p.12) “o problema da política tem que passar pela
estética, e é através dela que o design performa suas articulações simbóli-
cas e materiais”. Impasse que orienta uma resposta efetiva para a leitura das
ambiências, que para Thibaud (2010, p. 10) “restitui o lugar dos sentidos
na experiência dos espaços vividos; permite caracterizar nossas formas de
experienciar a vida urbana; ela auxilia também a imaginar e criar espaços
urbanos e arquitetônicos”.
À vista disso é relevante a consolidação de um delineamento ontológico
desse design para ambiências urbanas, de modo a orientar uma atividade

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projetiva embasada na partilha do sensível e que, de fato, responda ao que
se propõe e às mudanças observadas na atualidade. Questão também defen-
dida por Moraes (2020), ao alegar que o design dos dias de hoje precisa ser
compreendido não somente como o processo de desenvolvimento de pro-
dutos e ambientes, mas também, como um fenômeno cultural que é agen-
te, ator e ativo de uma sociedade complexa. Nesse sentido, vislumbra-se a
aproximação do conceito de ambiências como uma leitura ampla e sensível
do objeto de projeto do designer orientado por e para a estética. É necessá-
rio, portanto, evidenciar suas convergências e listar novos caminhos teóri-
cos a serem trilhados, visto que “ainda que a intimidade das relações entre
design e estética constitua um consenso, poucas vezes é clara a compreen-
são que de nela pode residir uma potência política” (NOGUEIRA, 2018, p.7).

Considerações Finais
Considerando a abrangência dos conceitos empreendidos e os visíveis gan-
hos para a realidade da prática e da pesquisa em design espera-se aprimo-
rar as aproximações já realizadas de modo a estreitar e consolidar o diálogo
acadêmico de um design sensível para ambiências urbanas. Vislumbra-se,
portanto, um amplo espaço para o designer ao se pensar e repensar as ci-
dades no que tange as leituras estético-simbólicas inerentes à práxis do de-
signer. Crê-se que a orientação ao ser humano empreende ao design uma
série de responsabilidades que, se bem aplicadas, são capazes de promover
leituras sensíveis e respostas eficientes ao espaço urbano, o que ocasionará
ambiências adequadas, pertencimento e uma série de ganhos para a vida
nas cidades.
É necessário, portanto, debruçar sobre os pontos de contato da pesquisa
e do projeto em design de ambientes a partir do entendimento de ambiên-
cias e dos impactos dos ambientes nas pessoas, assim como são estudados
os impactos das pessoas nos ambientes. Há, pois, a necessidade de se pensar
em políticas de design a partir das ambiências e o primeiro ponto para tal,
empreende a sistematização e o desenho de ferramentas e orientações para
as investigações que têm como finalidade as bases sensíveis para este design.

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Como referenciar

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do sensível: premissas epistemológicas para práticas do design em
ambiências urbanas. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp.
8-26, jan./2024. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/
index.php/arcosdesign.

———

DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.78892

———

A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


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Não Adaptada.

Recebido em 31/08/2023 | Aceito em 09/11/2023

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arcos design

Mobiliário urbano e arte pública em tempos


de ressignificação do espaço público

Josielle Cíntia de Souza Rocha (ufjf, Brasil)


josiellecintia@yahoo.com.br

Fernando Araújo Costa (ufrj, Brasil)


fernando.costa@fau.ufrj.br

Antonio Ferreira Colchete Filho (ufjf, Brasil)


antonio.filho@ufjf.br

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024,, pp. 27-42. ISSN: 1984-5596
v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign

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Mobiliário urbano e arte pública em tempos
de ressignificação do espaço público

Resumo: O ano de 2020 marcou o início da circulação da doença Covid-19


e uma nova forma de significarmos a vida nas cidades através de um es-
vaziamento emergencial e estratégico do espaço público. O objetivo desse
artigo é analisar como o mobiliário urbano e a arte pública se notabilizam
nesses tempos de pandemia como evidências materiais e simbólicas para se
pensar em novas e antigas questões sobre a importância do espaço público
para a constituição da esfera pública. Através de revisão de literatura, seleção
de notícias nas mídias e na observação sistemática da vivência nos espaços,
verifica-se que o mobiliário urbano e a arte pública se tornam peças-chave
em ações recentes que se dão nos espaços públicos de várias cidades mundo
afora, seja com a criação de novos elementos para suprir demandas por hi-
gienização, abrigo às intempéries e, sobretudo, para reivindicar a dimensão
subjetiva como no caso da retirada de monumentos e esculturas de persona-
lidades históricas controversas. Conclui-se que esse conjunto diversificado
de elementos urbanos reivindica ao espaço público sua condição de arena
para discussão de questões sociais que nele ampliam o status democrático.
Palavras-chave: Mobiliário Urbano; Arte Pública; Esfera Pública; Cidade
Contemporânea.

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Urban furniture and public art in times
of redefinition of public space

Abstract: The year 2020 marked the beginning of the circulation of the Cov-
id-19 disease and a new way of meaning life in cities through an emergency
and strategic emptying of public space. The aim of this article is to analyze how
urban furniture and public art stand out in these times of pandemic as ma-
terial and symbolic evidence to think about new and old questions about the
importance of public space for the constitution of the public sphere. Through
literature review, selection of news in the media and systematic observation
of living in the spaces, it is verified that urban furniture and public art have
become key pieces in recent actions that take place in public spaces of sever-
al cities around the world, as the creation of new elements to meet demands
for hygiene, shelter from bad weather and, above all, to claim the subjective
dimension, as in the case of the removal of monuments and sculptures of con-
troversial historical personalities. It is concluded that this diverse set of urban
elements claims to the public space its condition of arena for discussion of so-
cial issues that enlarge the democratic status.
Keywords: Urban furniture; Public Art; Public Sphere; Contemporary City.

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1.Introdução
Nas últimas décadas, tem-se observado um quadro de debate acerca da ci-
dade contemporânea, principalmente após uma série de experiências que
vinculavam o desenvolvimento urbano às atividades econômicas voltadas ao
turismo, tais como serviços de viagens, hospedagem, alimentação, transporte
por aplicativo, agendas de entretenimento cultural e de lazer. Efetivamente,
tais práticas contribuíram para estabelecer um cenário de competitividade
entre as cidades, que se configurou como característica do processo de glo-
balização contemporâneo (SASSEN, 1998; CASTELLS, 1999; ARANTES et al.,
2000; SÁNCHEZ, 2014). Entretanto, surgiram muitos questionamentos sobre
a relação entre os efeitos do desenvolvimento urbano atrelado ao sistema
econômico capitalista e competitivo, em grande parte, devido a elitização de
áreas que foram objeto de intervenções durante esse processo. Observou-se
outros efeitos negativos associados a esse, tais como a valorização da me-
mória coletiva, mas com objetivo único de comercialização da imagem das
cidades, transformação do espaço público como demanda externa e não
mais como lugar da vida cotidiana e o agravamento da segregação socioes-
pacial. Em resposta a essa dinâmica, surgem novos debates sobre a cidade
contemporânea, porém pautados nas demandas da população local, tais
como mais eficiência na mobilidade urbana, melhores espaços públicos e
melhoria na qualidade de vida. Identificou-se uma série de intervenções ur-
banas baseadas na ideia de que as cidades precisam ser pensadas para seus
cidadãos com projetos de espaços públicos mais flexíveis quanto ao uso e
frequência e até a mudanças de demandas (CARMONA, 2018).
Esse cenário ilustrava muito bem o momento acelerado de transforma-
ções que as cidades passavam, reverberando no mundo como um todo.
Entretanto, em março de 2020, o mundo fica paralisado com a rápida dis-
seminação do vírus SARS-CoV-2 (Coronavírus), responsável pela doença
Covid-19, totalmente desconhecida pela comunidade científica naquela
altura. Exatamente devido ao desconhecimento do vírus, em um primeiro
momento, as autoridades sanitárias orientaram o imediato isolamento so-
cial e os espaços públicos urbanos foram rapidamente esvaziados. À me-
dida que os cientistas iniciaram pesquisas sobre o coronavírus, foi possível
entender a dimensão e velocidade de disseminação do vírus, de forma que
as ações das autoridades sanitárias passaram a orientar sobre a importância
e eficácia das medidas de higiene, uso de máscaras de proteção e distâncias
seguras. Com efeito, essas orientações determinaram novas formas de com-
portamento no ambiente privado e no espaço público, alterando a vida coti-
diana de toda a população, mas, que merece mais atenção nos espaços onde
a vida coletiva acontece. É importante destacar que, àquela altura, mais de

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95% dos casos registrados de Covid-19 se concentravam em áreas urbanas,
onde, naturalmente, um número maior de pessoas circulam e socializam,
contribuindo para relações coletivas mais intensas (UN-Habitat, 2020). Esse
dado indica que se tratou de uma pandemia de caráter urbano, implicando
na necessidade de se pensar estratégias de combate e controle do contágio
principalmente nos espaços públicos das cidades, portanto, uma nova rea-
lidade está em debate.
Além de questões referentes ao uso mais seguro dos espaços públicos,
observa-se, especialmente, as novas formas de compreensão da mobilida-
de urbana, cujo enfoque, momentaneamente, voltou-se ao transporte indi-
vidual – mesmo que distintamente de meados do século passado, marcado
pelas diretrizes do urbanismo modernista. No debate atual, os deslocamen-
tos por meio de veículos motorizados individuais não se apresentam mais
como o grande motor do desenvolvimento das cidades, e sim como alterna-
tiva à situação precária dos transportes coletivos públicos, principalmente
nos países mais pobres. Destaca-se, ainda, a problemática daquelas cidades
com maior concentração de grupos em situação de vulnerabilidade social,
cujos meios de transporte público coletivo encontram-se sucateados e se-
quer dispõem da opção de transporte particular para médias e longas dis-
tâncias à serviço da grande maioria de sua população.
Assim, com o agravamento da vulnerabilidade de diversos grupos sociais
urbanos durante a pandemia decorrente, principalmente, da perda de mui-
tos postos formais de trabalho, um número progressivo de pessoas passou
a circular em busca de qualquer tipo de ocupação para suprir as necessi-
dades mínimas de suas famílias, apesar das restrições sanitárias estabeleci-
das (UN-Habitat, 2020). De fato, essa situação merece uma atenção maior
do que a recebida até o momento, pois pouco observou-se de efetiva ação
sobre as populações mais vulneráveis, com exceção de gestos pontuais de
instituições da sociedade civil, grupos religiosos e organizações humanitá-
rias. Essas questões referentes à vulnerabilidade econômica e social e que
refletem diretamente na desigualdade e desinformação já estavam presentes,
apenas se mostraram mais latentes com a pandemia (Krieger et al., 2020).
Os desafios impostos pela pandemia foram grandes, desde a imunização
completa da população mundial, o combate a desigualdades econômicas e
sociais, e a melhoria da qualidade de vida nas cidades. Entretanto, na con-
tramão da tendência de esvaziamento dos espaços públicos, sequela do iso-
lamento e distanciamento social, bem como das incertezas impostas por essa
nova realidade, verifica-se o surgimento de novos cenários, que são oportu-
nidades de apropriações físicas e simbólicas onde o sentimento de pertenci-
mento, agora, encontram seu lugar nos elementos urbanos. Nesse sentido,

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propõe-se no presente trabalho algumas reflexões sobre como a presença de
mobiliários urbanos e a arte pública assumem, no imaginário popular, um
protagonismo referencial-simbólico para além de suas características físi-
cas marcadas por certa funcionalidade, alcançando sentidos anteriormente
desconhecidos, como a conscientização e a sensibilização para a vida nos
tempos de pandemia. Para alcançar o objetivo proposto, a metodologia em-
pregada envolve a revisão de literatura, a seleção de notícias publicadas em
mídias diversas, desde 2020, bem como pesquisa empírica, com a observa-
ção sistemática e vivência (cautelosa) em espaços públicos. A metodologia
norteou a estruturação deste artigo em duas partes: o destaque para o espaço
público, abordado no contexto da pandemia e, em um segundo momento,
o destaque para o espaço público como lugar de abrigo e trânsito simbólico
de uma população excluída e vulnerável, lugar da discussão da esfera pú-
blica. Em ambas abordagens, há a evidência do mobiliário urbano, da arte
pública e do espaço público como temas de reflexão.

2.O espaço público na pandemia


Diante do espanto de uma crise histórica mundial sem precedentes recentes,
o espaço público se tornou um lugar perigoso. Em contrapartida, em paí-
ses mais pobres clivados pelo déficit habitacional, ficar em casa mostrou-se
um luxo. De fato, esse cenário provocado pela pandemia da Covid-19 ser-
viu para expor a desigualdade social, a exemplo do Brasil, onde, de acor-
do com pesquisa da Fundação João Pinheiro (2021), em 2019, tal carência
atingiu 5.876.699 moradias, cerca de 8% do total de domicílios particulares
permanentes. É importante ressaltar que o déficit habitacional é composto
por 3 índices: (a) habitação precária; (b) coabitação; e, (c) ônus excessivo
com aluguel. Destaca-se a participação dos índices habitação precária e coa-
bitação, por se tratar de situações relativas às condições de habitabilidade e
por representarem quase 50% da composição de tal déficit. Nesse cenário,
25,2% se referem à habitação precária, considerada rústica ou improvisada,
ou seja, com deficiências nas condições de habitabilidade, em grande par-
te, decorrente de suas condições insalubres. O índice coabitação, que repre-
senta 23,1%, se refere a moradias em cômodos, tais como cortiços ou casas
de cômodos e por unidades que surgem a partir de habitação estendidas e
compostas por familiares com parentesco descendente do responsável pelo
domicílio. De fato, essa composição se refere a situações inadequadas de mo-
radia, seja pelas condições ambientais como infraestrutura deficiente ou ine-
xistente ou pelas características construtivas como materiais improvisados,
seja pelo quantitativo excessivo de pessoas habitando um mesmo cômodo.
Essa situação reflete na necessidade de uso do espaço público, como uma

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alternativa às más condições do ambiente privado, suprindo, de alguma for-
ma, aquilo que é ausente ou deficiente na moradia. Nesse sentido, parques
públicos e praças tornaram-se uma espécie de extensão da casa, bastante
necessária a uma população que vive em situação precária, seja em relação
às condições de moradia, quanto ao conjunto edificado das comunidades
sem infraestrutura urbana, ventilação e insolação adequadas.
Diante daquele cenário pandêmico, uma das principais medidas para con-
ter a proliferação do coronavírus foi o distanciamento e o isolamento social,
ou seja, uma indicação para as pessoas ficarem em casa e evitarem aglome-
rações nos espaços coletivos privados ou públicos. Com efeito, o quadro
provocado pela pandemia Covid-19 colocou em xeque, dentre muitas ques-
tões, a situação de moradia nos países mais pobres, onde o espaço público
era visto como uma espécie de alento para as famílias precárias. Entretanto,
em tempos de isolamento social, a falta que o espaço público faz não ficou
restrito aos países mais carentes, provocando uma série de discussões entre
os arquitetos e urbanistas. A crise sanitária se apresentou como mais uma
oportunidade para estes profissionais pensarem nos espaços públicos urba-
nos projetando alternativas para uso coletivo das cidades (Honey-Roses et
al., 2020). Ao debaterem sobre os efeitos da pandemia, apresentam a neces-
sidade de um refinamento de nossas práticas, mas sem uma transformação
profunda, além de se criar um vocabulário ou tipologia, que incorpore di-
mensões como “densidade social, distâncias, aglomeração ou riscos à saúde
pública” às representações de lugares (HONEY-ROSES et al., 2020). Carmona
(2018) corrobora com essa noção de adaptabilidade nas práticas urbanas ao
apresentar a emergência de projetos que sejam capazes de adaptar às mu-
danças, inclusive àquelas ainda desconhecidas, de demandas da sociedade.
Entretanto, Gehl Architects (2020), ao publicarem uma pesquisa realizada
em 68 países entre os meses de março e abril de 2020, apontaram a necessi-
dade de os projetistas observarem as diversas circunstâncias e perspectivas
principalmente quanto ao acesso aos espaços livres de qualidade em todas
as escalas da cidade. De fato, observa-se, nos últimos dois anos, uma série
de propostas de adequação do espaço público ao novo cenário imposto pela
pandemia, norteadas por estratégias de distanciamento social.
As adequações de caráter emergencial utilizadas como estratégias para
viabilizar as atividades ao ar livre durante o período pandêmico passaram
a ser colocadas em prática em diversas cidades. Observou-se uma série de
iniciativas em parques em cidades como Nova Iorque, Milão, Lisboa e Bristol
utilizando-se demarcações no chão para o uso e permanência de pequenos
grupos. Essas demarcações ao obedecerem às distâncias recomendadas pelas
autoridades sanitárias criavam uma espécie de “bolhas sociais”, a exemplo

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de parques também no Brasil. No início do mês de julho de 2020, os par-
ques do Carmo, do Povo, do Burle Marx e Ibirapuera, situados na cidade
de São Paulo, reabriram com demarcações de “bolhas sociais” no gramado
para evitar as aglomerações e com outras medidas sanitárias como interdi-
ção de parquinhos infantis e bebedouros, proibição de eventos coletivos e
uso obrigatório de máscara (MENGUE, 2020). Destaca-se, também, a pro-
posta de adaptação dos espaços públicos para o uso mais seguro do Plano
Integral e Gradual de abertura do município de Buenos Aires, Argentina.
Em setembro de 2020, uma nova etapa do plano foi publicada no formato
de um guia para uso de áreas como extensões de estabelecimentos de ativi-
dades gastronômicas. Esse guia teve como objetivo orientar o retorno mais
seguro das atividades de bares, cafés, lanchonetes e restaurantes por meio
de uma série de opções de arranjos de mesas e cadeiras no espaço público
como forma de ampliar a área de atendimento obedecendo o distanciamen-
to social. Dessa forma, os estabelecimentos comerciais gastronômicos po-
diam ampliar suas áreas de atendimento ao público em sua calçada, na via
em sua frente, em praças secas e esplanadas, nas áreas centrais em avenidas
ou em calçadas de praças e parques (NUEVOS, 2020).
Em 2020, à medida que o vírus atingia a escala global, outras ações sa-
nitárias foram tomadas para promover o uso mais seguro dos espaços pú-
blicos, como a desinfecção das ruas e de mobiliários urbanos. Observou-se
que essa demanda foi respondida prontamente por empresas especializadas
de higienização existentes, ofertando serviços de desinfecção por processos
variados como pulverização, aspersão e bio-limpeza. Assim como foi neces-
sário adequar e melhorar as condições de uso dos ambientes e elementos ur-
banos, surgiram propostas de criação de novos mobiliários para contribuir
no combate ao avanço da pandemia. A exemplo dos mobiliários de desin-
fecção, uma empresa situada na cidade de Curitiba, Brasil, em parceria com
o arquiteto e urbanista Felipe Guerra, desenvolveu o projeto de cabines de
desinfecção que, por meio de sensores de presença, acionavam uma série de
aspersores que lançam em seu interior o desinfetante concentrado “Indagerm
5G” (Mobiliário, 2020). Destaca-se, ainda, o projeto do arquiteto brasileiro
Leonardo Dias, que venceu o concurso de projeto de produtos e equipamen-
tos “Coronavirus Design Competition”, em 2020, na categoria voto popular.
O projeto é de um equipamento que desempenha três funções: (a) higieni-
zação das mãos e medição da temperatura corporal; (b) totem informativo
com publicação de medidas preventivas; e, (c) memorial homenageando as
vítimas da covid-19 (ELEITO,2020). O equipamento projetado pelo arquite-
to Leonardo Dias foi batizado de “Totens Urbanos-Memorial Pró-Saúde” e
foi instalado em 17 pontos na cidade de São Paulo, em 2020, como medida

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de combate à pandemia (Equipe, 2020). Notam-se iniciativas similares de-
senvolvidas por todas as partes do globo, na tentativa comum de viabilizar
a circulação nos espaços públicos de maneira mais segura.
As ações implementadas como resposta às novas circunstâncias des-
dobradas pela pandemia foram além da adequação e melhoria dos espa-
ços públicos no sentido de torná-los mais seguros, identificou-se algumas
práticas que demonstram intenções de ressignificá-los. Nota-se que essas
ações não consistem em ressignificar o espaço público em seu sentido ple-
no, ou seja, dar novo significado àquilo que se perdeu, mas com a intenção
de contextualizá-lo diante daquela pandemia. Tal contextualização, recor-
rentemente, materializou-se por meio de ações efêmeras como a confec-
ção de painéis artísticos com mensagens relativas ao momento, a exemplo
do mural “Faces of COVID-19” em espaços públicos de regiões carentes de
Quito, Equador (HARROUK, 2021). Em 2020, a prefeitura de São Paulo tam-
bém havia colocado em prática ações relacionadas às medidas de prevenção
agregando máscaras a alguns monumentos. Foram escolhidos importantes
monumentos espalhados pela cidade tais como Monumento às Bandeiras,
estátua da Praça IV Centenário, estátua de Pedro Álvares Cabral, estátua de
Faria Lima, estátua de Nicolau Scarpa, estátua de Mário de Andrade, está-
tua do Borba Gato, Monumento Francisco de Miranda, busto de Mário de
Andrade, Monumento Anhanguera, estátua de Luiz Gama, estátua de Luiz
Lázaro, estátua do Índio Caçador, estátua de Adoniran Barbosa e estátua
de Baden Powell (Monumentos, 2020). Essas ações tiveram a função de in-
centivar a reflexão e a conscientização dos transeuntes sobre a importância
das medidas de prevenção no combate à pandemia. Destaca-se, ainda, ou-
tra forma de ressignificação do espaço público, por meio de esculturas que
representam a união apesar das circunstâncias difíceis impostas pelo mo-
mento. Em fevereiro de 2021, a cidade do Rio de Janeiro recebeu as instala-
ções artísticas que fazem parte do projeto itinerante “Rio de Mãos Dadas”
em dois momentos: (i) exposição de 10 esculturas compostas por um par de
mãos separadas, que, (ii) em uma segunda etapa da mostra, se unem para
simbolizar a esperança por meio do retorno de contatos e reencontros após
um ano de isolamento e distanciamento social. Essa exposição itinerante
esteve em 20 lugares diferentes da capital fluminense durante os meses de
fevereiro e março de 2021, e, posteriormente, passaram a circular pelas ci-
dades do estado do Rio de Janeiro (RIO, 2021).
Percebe-se que essa maneira de contextualizar o momento pandêmico
através do estímulo à percepção, no compartilhamento de informações e
homenagens no espaço público tem a capacidade de criar processos que
reverberam nos observadores estimulando discussões sociais. Com efeito,

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esses elementos urbanos, mesmo as experiências efêmeras, promovem re-
lações afetivas e contribuem para a construção simbólica do espaço públi-
co como forma de fortalecer a identificação com os lugares na cidade. Esse
processo identitário está relacionado à noção coletiva de imagem, ou ima-
ginária urbana, que articula espacial e temporalmente os conteúdos sociais
(KNAUSS, 1998; COLCHETE FILHO, 2003). A partir dessa perspectiva, obser-
va-se que, mesmo ao atribuir outras informações ou mensagens a esses ele-
mentos urbanos, não há uma mudança no papel simbólico desempenhado
por esses, mas uma ressignificação da noção de representação e símbolo ali
existente. Assim, observa-se que as ações pautadas nos elementos urbanos
se mostraram relevantes não apenas para conscientização da população no
cenário pandêmico, mas pela possibilidade de ressignificação, ao introduzir
outras funções como higienização, desinfecção, que discutem os tempos de
isolamento, distanciamento e acesso à informação. Assim, há a ampliação
das interações sociais nos espaços públicos.

3.Espaço público como abrigo


Desde o início da pandemia no Brasil, pôde-se observar uma grande pre-
carização da qualidade de vida urbana e o agravamento dos níveis de desi-
gualdade social. Insegurança alimentar, redução da mobilidade e a falta de
artigos básicos de higiene, por exemplo, configuraram algumas das muitas
dificuldades enfrentadas pelas populações mais vulneráveis, em especial,
habitantes das zonas menos infraestruturadas da metrópole. À medida que
a pandemia da Covid-19 se espalhou pelas favelas, ocupações irregulares,
periferias e áreas interioranas do país, “escancarou a perversa desigualdade
social e econômica entre as classes sociais, naturalizada e aceita por gran-
de parte da sociedade e das instituições do Estado, o que representa uma
barreira às recomendações de higiene básica, distanciamento físico e per-
manência em casa” (INFORME ENSP, 2020). Além disso, cabe ressaltar o in-
grediente perverso que soma-se à problemática da crise climática global.
Ondas de calor excessivo em zonas temperadas do hemisfério norte, inver-
nos rigorosos no hemisfério sul, períodos prolongados de seca e o fogo que
arrasa extensas porções de florestas e bosques, chegando inclusive em áreas
urbanas, expuseram, consideravelmente, os mais vulneráveis a condições
extremas. Neste cenário, é patente a falta de infraestruturas básicas como
sistemas de calefação e refrigeração, além da precária condição de pessoas
em situação de rua.
Logo, o espaço público emerge como provisor de uma série de condições
básicas à contenção da pandemia de Covid-19, ressaltando-se, aqui, o pa-
pel operante dos mobiliários urbanos tanto na contenção e manutenção do

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distanciamento social quanto no oferecimento de recursos como água, ál-
cool em gel e informações (ROCHA; COSTA; COLCHETE FILHO ,2021; JESUS;
MENDES; COLCHETE FILHO, 2020). Como estratégias, o poder público, enti-
dades da sociedade civil e ONGs conceberam novos mobiliários bem como
adaptaram aqueles existentes. O primeiro grupo compreende propostas ad-
vindas de concursos de ideias vinculadas ao design, isto é, o desenho de no-
vas tipologias para o mobiliário urbano que dêem conta de fornecer aquilo
de mais básico para o enfrentamento da pandemia, os insumos de higiene
pessoal que os mais vulneráveis não têm condições de adquirir, como ál-
cool e máscaras. No segundo grupo, destacam-se medidas paliativas e im-
provisadas como o cercamento ou interdição de espaços públicos e de seus
mobiliários, dessa maneira, evita-se a formação de aglomerações, uma vez
que os transeuntes ficam impossibilitados de usufruir plenamente do con-
junto de mobiliários existente.
Do olhar sobre o espaço público como abrigo às necessidades de uma
população carente de serviços, emerge, pois, um questionamento acerca da
reivindicação de seus próprios direitos. Além de buscar infraestruturas bá-
sicas para concepção de um espaço público igualitário, pensa-se a liberda-
de integral de compor os espaços públicos como palco para diálogos e dis-
cussões onde todos possam sentir-se representados. Como reflete o zeitgeist
dessa era pandêmica, ademais da necessidade de ocupar os espaços públicos
com uma diversidade de corpos e origens, é necessário ajustá-los à cons-
trução de novas narrativas que excluam processos históricos de supressão
de liberdades individuais, pavimentando as bases para a difusão de novas
perspectivas que acolham os processos de conformação histórica e cultural
de uma determinada sociedade. A partir desse entendimento de que é ne-
cessária uma construção coletiva de cidade, identificou-se alguns exemplos
de práticas voltadas para unir temáticas diversas em busca de uma mudan-
ça social, como a campanha “Bosques da Memória”. O objetivo do projeto é
incentivar o plantio de árvores recuperando áreas urbanas degradadas, ho-
menagear os profissionais da saúde à frente no combate à Covid-19 e lem-
brar de suas vítimas fatais. Destaca-se, aqui, a ação que aconteceu nos dias
12 e 13 de junho de 2021, na Alameda Sandra Alvim da cidade do Rio de
Janeiro, que é uma área de recuperação ambiental adotada pela sociedade
civil. Após um processo de transformação que completa três anos, a antiga
área suja, escura e degradada do Recreio dos Bandeirantes, hoje é um par-
que urbano de preservação de restinga (MUTIRÃO, 2021).
Em meio a pandemia, diversos movimentos preencheram os espaços
públicos com suas reivindicações centradas na ruptura de narrativas he-
gemônicas e excludentes. Grupos organizados antirracismo promoveram

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protestos, inicialmente nos Estados Unidos, e que se espalharam pelo mun-
do, alcançando resultados interessantes como a deposição de monumentos,
bem como a ressignificação de tantos outros. No Brasil, na Avenida Paulista
próximo ao Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, inscreveu-se
o chamado “Vidas Pretas Importam”, em protesto contra a morte de João
Alberto Silveira Freitas em um hipermercado em Porto Alegre, RS.
Outro grupo que ganhou voz nos espaços públicos intermediado por
produções artísticas foi o das vítimas da Covid-19. De caráter efêmero ou
permanente, pôde-se observar em diversas cidades brasileiras iniciativas de
rememoração daqueles que perderam suas vidas devido à inépcia do poder
público e pelo bombardeamento de informações descruzadas e falsas. O nú-
mero desalentador e desumanizante registrado pelo Brasil foi explorado em
projeções, performances e mesmo materializados em contra monumentos.
Portanto, o espaço público, protagonista inequívoco da vida urbana, teve
algumas de suas competências ressaltadas ao longo do período pandêmico.
Além de prover “abrigos” ou “zonas de proteção mínima” aos mais vulnerá-
veis, seguem como plataforma aos questionamentos de uma sociedade em
constante transformação e agravamento progressivo da desigualdade social.

4.Considerações finais
A pesquisa hemerográfica e empírica revelou múltiplas facetas dos espaços
públicos em diversas cidades em tempos de pandemia. Algumas iniciati-
vas se destacaram pela presença de elementos urbanos e artísticos que têm
conseguido agregar pessoas e valores pautados em ações em prol da vida.
A apropriação dos espaços públicos se apresenta como a melhor estratégia
na busca pela qualidade de vida nas cidades e a sua ressignificação se mos-
tra como o caminho para essa conquista. De fato, as experiências apresen-
tadas se mostram como referências positivas e possibilidades viáveis e reais
no processo de construção de cidades com espaços públicos ressignificados.
E mais, as crises, sejam sanitárias, ambientais, políticas, econômicas ou de
segurança se apresentam como uma convocação para que se reexamine a
maneira como agimos e vivemos. Para os planejadores urbanos, gestores,
arquitetos e urbanistas o momento atual é uma oportunidade para rediscu-
tir e repensar as cidades em prol de novas diretrizes para transformação do
ambiente urbano e melhoria da qualidade de vida de sua população, vul-
nerável, sobretudo.
Nos espaços públicos ocupados pelos sujeitos, à arte pública e ao mobiliá-
rio urbano somam-se camadas de subjetividade capazes de provocar tanto
estreitamentos quanto distanciamentos. Uma leitura individualizada desses
espaços revela angústias, temores, esperança, desejos, e um sem-número de

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imagens mentais. Neste período pandêmico, o indivíduo apartado de seus
espaços de convivência e lazer na cidade foi chamado a refletir e questionar
o quão democráticos estes podem ser. O isolamento geral e irrestrito expõe
a todos, as dificuldades de grupos que vivem às margens da urbe e, geral-
mente, não desfrutam plenamente dessa infraestrutura. No entanto, cabe
ressaltar que a exclusão de histórias, narrativas e corpos nos espaços pú-
blicos não está apenas relacionada à barreira física, da matéria, indo além,
tangenciando a seara da psicologia ambiental. Dessa maneira, as manifes-
tações artísticas e as intervenções ocorridas em monumentos e mobiliários
urbanos revelam o desejo pela coletivização plena dos espaços públicos e da
segurança sanitária de todos os indivíduos que circulam pela cidade, ressig-
nificando esses elementos urbanos e atrelando aos espaços públicos, mesmo
que paradoxalmente, a noção de abrigo.

5.Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq, Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

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Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 27-42. 41


Como referenciar

ROCHA, Josielle Cíntia de Souza. COSTA, Fernando Araújo.


COLCHETE FILHO, Antonio Ferreira. Mobiliário urbano e arte
pública em tempos de ressignificação do espaço público. Arcos
Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp. 27-42, jan./2024. Disponível
em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign.

———

DOI: https://doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.78876

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Não Adaptada.

Recebido em 24/06/2022 | Aceito em 04/08/2022

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 27-42. 42


arcos design

A estética do não lugar: a paisagem


urbana como imagem efêmera
e a partilha do sensível

Paula Jurgielewicz (puc, Brasil)


p.jurgi@gmail.com

Denise Berruezo Portinari (puc, Brasil)


denisep@puc-rio.br

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 43-59. ISSN: 1984-5596
v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign

43
A estética do não lugar: a paisagem urbana como
imagem efêmera e a partilha do sensível

Resumo: Por meio de revisão bibliográfica das teorias de não lugar de Marc
Augé, dos conceitos de estética dos filósofos Terry Eagleton e Jacques Ran-
cière, dos pensamentos sobre cidade de David Harvey, Lucrécia Ferrara,
Otília Arantes, Rem Khoolhaas, e os estudos sobre imagens e artes de Didi-
-Huberman e de Merleau-Ponty, o artigo é construído, partindo da concei-
tualização dos lugares de passagem contemporâneos (“não lugares” de Marc
Augé), e se desenvolve expondo reflexões teóricas, articuladas às demais
fontes que ajudam a fundamentar os paralelos traçados entre os “não luga-
res”, com centro comerciais de rua, o modus operandi da publicidade gráfica
efêmera contida nesses locais, e o crescimento urbano neoliberal contempo-
râneo. Por alto, aqui, pensamos a paisagem urbana como imagem efêmera
partilhando mensagens e experiências sensíveis lacunares, mas ao mesmo
tempo, quase que comuns às sociedades de cultura ocidental do mundo glo-
balizado e das “altas” tecnologias. Percebemos a mimetização da linguagem
do poder hegemônicos no aparato visual dos centros comerciais urbanos e
buscamos fazer emergir questionamentos econômicos, políticos e sociais.
Palavras-chave: Não lugar; Estética; Paisagem urbana; Urbanismo; Lin-
guagem visual

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The aesthetics of non-place: the urban landscape as an
ephemeral picture and the distribuition of the sensible

Abstract: Through a bibliographical review of Marc Augé’s theories of


non-places, the concepts of aesthetics by philosophers Terry Eagleton and
Jacques Rancière, the thoughts about cities by David Harvey, Lucrécia Ferr-
ara, Otília Arantes, Rem Khoolhaas, and the studies on pictures and the arts
by Didi-Huberman and Merleau-Ponty, the article is constructed, starting
from the conceptualization of contemporary places of passage (Marc Augé’s
non-places), and develops by exposing theoretical reflections, articulated with
other sources that help to support the parallels drawn between non-places, with
urban commercial centers, the modus operandi of ephemeral graphic adver-
tising contained in these places, and contemporary neoliberal urban growth.
In essence, here we think about the urban landscape as an ephemeral picture
sharing messages and sensitive experiences that are lacunar, but at the same
time, almost common to Western cultural societies in the globalized, “high-
tech” world. We noticed the mimesis of the hegemonic language of power in
the visual apparatus of urban commercial centers and seek to raise economic,
political and social questions.
Keywords: Non-places, Aesthetics, Urban landscape, Urbanism, Visual
language.

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1. Introdução
Este artigo pretende promover o diálogo entre campos do saber e, por meio
dessa encruzilhada, traçar reflexões acerca dos temas de linguagem visual e
cultura contemporânea. A construção teórica foi fundamentada com base
na revisão bibliográfica de alguns dos teóricos da Antropologia, da Filosofia,
do Design, da Arquitetura e do Urbanismo.
Em comum, esses intelectuais escolhidos para revisão de literatura, e to-
mamos aqui emprestado o pensamento de Bertold Brecht para esclarecer as
nossas motivações, não são autores que apresentam seus conceitos teóricos
somente em discursos ideológicos sem conceitos estéticos. Para Brecht, con-
ceitos estéticos ditam os prazeres e ritmos dos textos (apud Didi-Huberman,
2017, p. 199).
Além das preocupações quer sociais ou urbanas, os questionamentos so-
bre o domínio do capital na sociedade em que vivemos e suas consequên-
cias, ou o desenvolvimento teórico sobre estética amplamente discutido no
material dos pensadores abordados, nos levaram a escolhê-los. Esse con-
junto teórico foi o instrumento que nos levou a refletir acerca dos discursos
visuais contidos na própria cidade, mais precisamente na parte da cidade
que abriga centros comerciais de rua (neste artigo entendido também como
“não lugar” pela perspectiva teórica de Marc Augé).
A maneira como esses locais se consolidam no espaço urbanos, o desen-
rolar de sua vida útil e a capacidade de afetação sensível em seus usuários
podem se assemelhar ao modus operandi das imagens publicitárias efême-
ras que servem ao mercado do consumo. Em comum, esse conjunto, em
um recorte temporal atual, talvez, responda exclusivamente às exigências
das classes dominantes.
O que pretendemos fazer neste artigo é refletir sobre a classe detentora
dos bens de produção como produtora de algumas das subjetividades ex-
perienciadas nas sociedades ocidentais por meio desses locais (“não lugares”
comerciais), pois exerce o controle da organização espacial urbana, do que
é visível e dizível nessas regiões das cidades “empreendidas” por ela.
Para encontrar o vértice interseccional que liga o Design, a Arquitetura
e o Urbanismo em um modus operandi cuja semelhança se dá via centra-
lidade do capital, não só a revisão literária foi necessária como também a
articulação das ideias dos pensadores das ciências sociais há pouco men-
cionados, por meio de aproximação desses saberes: leitura, confrontação e
comparação (Didi-Huberman, 2017).
Assim sendo, na primeira parte deste artigo serão apresentados o con-
ceito e as especificidades que conformam os centros comerciais ocidentais
globalizados onde fazemos uma associação com a teoria de “não lugar” do

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antropólogo e etnólogo Marc Augé. Essa revisão bibliográfica acaba toman-
do um lugar central neste artigo, e é por meio dela que se torna possível o
desdobramento das reflexões apresentadas a seguir dessa contextualização.
Primeiro, apresentaremos a reflexão sobre a lógica de implementação desses
locais comerciais nas cidades contemporâneas. Em seguida, desenvolvemos
algumas reflexões sobre as “estratégias” ou a maneira regente do crescimen-
to das cidades também dentro desse recorte temporal contemporâneo. Por
fim, abordaremos a partilha de experiências estéticas desses locais comer-
ciais com o público que neles deambula.

2. As especificidades do não lugar de Marc Augé


Há várias camadas subjacentes conformando o conceito de “não lu-
gares” criado por Marc Augé (1992). Para o autor, esses são lu-
gares possíveis, na contemporaneidade ou “supermodernidade”
, derivados de espaços urbanos e edificações de semelhanças universais (oci-
dentais), isto é, são lugares de déjà-vu. “De um lado ao outro do planeta, os
aeroportos, os aviões, as cadeias hoteleiras colocam sob o signo do idêntico
e do comparável a diversidade geográfica e cultural” (Augé, 2003, p. 53 apud
Sá, 2013, p. 216). Assim, os espaços urbanos contemporâneos perdem espe-
cificidades locais que são substituídas por especificidades globais marcando
“a paisagem com o cunho de uma incrível monotonia, desqualificando-a no
sentido estrito do termo” (Ibid., p.223).
Para Tosi (2015), “não lugar” é o termo para designar um espaço de pas-
sagem com grande fluxo de bens e pessoas com tendência a exercer uma
espécie de efeito dissolvente sobre a maneira pela qual se dão as relações ou
se pensa a identidade e a sua representação.
Esses lugares de aparência homogênea contendo variados serviços e co-
mércios (multifuncionais) para o sujeito resolver todos os seus assuntos no
mesmo local e no menor tempo possível devido à racionalidade de organi-
zação desses espaços, em um primeiro momento, podem parecer necessá-
rios ao estilo de vida contemporâneo, além de virem envoltos do discurso
de desenvolvimento econômico do local, de ser mais um atrativo turísti-
co e/ou de lazer para a família etc., mas acabam servindo como um meca-
nismo para pensar as transformações que esses locais podem provocar na
sociedade; além das perdas culturais e arquitetônicas, pode-se pensar nas
perdas como grupo (e sociedade) e a prevalência da figura de um indiví-
duo solitário (Sá, 2013).
O filósofo Terry Eagleton (1993, p.24) acredita que as condições sociais
da hegemonia burguesa impossibilitam a formação de vínculos sociais po-
sitivos no nível da produção material. O autor afirma que essas condições

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sociais são consequências históricas do Iluminismo advindas da burguesia e
que se introjetaram na sociedade do consumo. Ele diz que o sujeito do con-
sumo se “fecha” em um espaço privado e se enforma em um individualismo
possessivo no qual acaba por dissolver vínculos positivos entre indivíduos
e os colocam na posição de antagonismo mútuo e competição.
Os “não lugares” não são construídos com pretensões de serem ícones
simbólicos culturais ou sociais, não pretendem ser ícones identitários, nem
afetivos para seus usuários e não partilham bens comuns, o que não signi-
fica que eles não assumam a forma visual da arquitetura do espetáculo e da
grandeza: eles pretendem, antes de tudo, facilitar a circulação e/ou o con-
sumo (Koolhaas, 2014). São “não lugares”

[…] tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e


bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios
meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os cam-
pos de trânsito prolongado onde são alojados os refugiados do planeta”
(Augé, 2012, p.36).

O que se pretende nesses locais ou o que está em causa, como mencio-


nado, é o objetivo que se quer atingir: fazer o deslocamento de um local a
outro; ir para um lugar e pagar uma conta, comprar o próprio jantar e o do
animal de estimação e ir embora. A praticidade e rapidez que os “não luga-
res” possibilitam para que isso aconteça permitem ainda que seus usuários
se mantenham conectados e atentos ao alto fluxo de informações derivan-
tes do mundo contemporâneo. Assim como os incentivos imagéticos advin-
dos da paisagem dos “não lugares” podem, também, facilmente, nos levar
para um “mundo virtual”/ficcional. Não que outros espaços não façam o
mesmo, mas os “não lugares”, devido a sua excessiva codificação, oferecem
mais meios para que essa ação ocorra e, muitas vezes, o incentivo é para
que surjam mais necessidades de consumo conspícuo para o interlocutor.
Por consequência, essa presença física e alienação do sujeito interfere na
sua relação com os espaços físicos que ocupa e com as pessoas com quem
os compartilham.

[…] os espaços físicos transformam-se em meios que possibilitam a inte-


ração no espaço virtual: nunca estamos onde estamos fisicamente — con-
tatos, informações, publicidade (celulares, computadores, cartazes, mo-
nitores, alto-falantes) — tudo isso nos transporta para outras realidades,
problemas, alegrias, desejos, nos faz sonhar sem o sonho, e criar “novas
necessidades” (publicidade, informação). (Sá, 2013, p. 212).

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Fica claro, por meio do pensamento exposto, que essa alienação pode
ocorrer em qualquer ambiente, mas há alguns em que existem mais incen-
tivos para que isso ocorra. A autora nos leva a pensar na maneira como o
sujeito se relaciona com o espaço de uma área urbana residencial, por exem-
plo, versus o shopping mall. Não pretendemos abordar essa questão — que,
aliás, não é algo que se menospreze — o que importa aqui é que para Augé
(2012) e outros autores, como David Harvey (2005) e Rem Koolhaas (2014),
a comunicação visual é parte conformante do “não lugar” e esse conjunto
afeta sensivelmente seus usuários, pois:

[…] nossa relação com as coisas não é uma relação distante, cada uma
fala ao nosso corpo e à nossa vida, elas estão revestidas de característi-
cas humanas (dóceis, hostis, resistentes...) e, inversamente, vivem em
nós como tantos emblemas das condutas que amamos ou detestamos.
O homem está investido nas coisas, e as coisas investidas nele (Merleau-
Ponty, 1948, p. 24).

O filósofo e fenomenólogo Merleau-Ponty, afirma que as imagens ou qual-


quer objeto desenvolvido pelo designer, artista ou arquiteto (como o pró-
prio “não lugar”), “não são, portanto, simples objetos neutros que contem-
plaríamos diante de nós” (Ibid., p. 23), eles despertam sentimentos e reações,
ocasionam condutas distintas a cada um de seus espectadores, positivas ou
negativas. Os objetos são, portanto, “não [só] uma imitação do mundo, mas
um mundo em si mesmo” (Ibid., p. 58). Para David Harvey (2005),

[…] A consciência dos moradores urbanos influencia-se pelo ambiente da


experiência, do qual nascem as percepções, as [decodificações] simbóli-
cas e as aspirações. Em todos esses aspectos, há uma tensão permanente
entre forma e processo, entre objeto e sujeito, entre atividade e coisa. É
tão insensato negar o papel e o poder das objetivações, da capacidade das
coisas que criamos de retornar como formas de dominação (Ibid., p.170).

Assim sendo, o “não lugar” também é local de afetações sensíveis além de


informação, publicidade e espetáculo: “um grande aeroporto é também um
hipermercado, um lugar de informação”, de alimentação, transações finan-
ceiras etc. (Augé, 2012, p. 129). Então, por ser um espaço de uso econômi-
co, Sá (2013) traz à luz a compreensão de que as imagens que lá estão, assim
como o próprio espaço, dificilmente possuem cunho político ou social, são
de cunho midiático, muitas vezes são invasivas e opressivas, promovem dis-
putas sociais e produzem necessidades. Possuem potente visibilidade física e
um enunciador. Assim como pessoas e bens, há também um grande e rápi-
do fluxo, em um único espaço, dessas imagens midiáticas, sempre em busca

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de “inovações”, o que reforça a teoria do indivíduo solitário, pois pode fazer
prevalecer “relações a partir das imagens”, incentivando, talvez, uma socie-
dade de sujeitos espectadores (individuais), mais do que a interação entre
indivíduos, ou seja, enforma a sociedade como receptor passivo de men-
sagens pré-estabelecidas, em vez de sujeitos protagonistas e enunciadores.
Portanto, as lembranças dos lugares (“não lugares”) passam a não ser mais
a partir das relações que tecemos com as pessoas, nem com a arquitetura
(de cunho menos mercadológico). Dificilmente lembramos de centros co-
merciais por causa das amizades que fizemos neles, de momentos marcan-
tes vividos no local ou, ainda, por causa de artefatos artísticos e/ou arqui-
tetônicos que vimos nesses espaços. A memória se desdobra por meio de
imagens efêmeras que acabam conformando memórias efêmeras. Fica di-
fícil lembrar o lugar, a cidade ou a data quando se consolidam espaços ho-
mogêneos e de elevado fluxo informacional.
Dessa forma, o excesso e o individualismo passam a fazer parte da socia-
bilização de maneira central na vida dos usuários desses locais, o que pode
implicar na “perda da categoria do outro” (Sá, 2013, p.211).

3. Adendo 1 – Sobre os centros comerciais urbanos


contem-porâneos (e a lógica de implantação)
Por meio da teoria de Marc Augé (1994), passamos a entender os centros co-
merciais como um “não lugar”, podendo ser do tipo shopping malls, galerias
comerciais, ou centros comerciais urbanos, entre outros. Entendemos que
o conceito teórico não se modificaria por causa da tipologia construtiva de
cada um dos espaços mencionados, afinal de contas eles acolhem os mes-
mos propósitos de uso e contêm semelhanças para além de algumas especi-
ficidades arquitetônicas que diferenciariam um centro comercial do outro.
Em comum, esses locais são ligados às novas tecnologias de informação
e à globalização (Augé, 2012); neles, há a pretensão de que o usuário perca
a noção do tempo que passou ali; há poucos locais de convívio e descanso
sem incentivo ao consumo; o caminho para o deambular já está dado pela
arquitetura e há a tendência em se passar mais tempo em lugares construí-
dos e herméticos do que em locais públicos e abertos como praças, parques,
etc. ou próximos a natureza como praias, lagos e rios.
É possível perceber também uma homogeneidade identitária nos usuários
desses locais que pode ser diferenciada conforme a ação que o sujeito de-
sempenha. Sendo assim, há um grupo homogêneo de frequentadores, outro
grupo homogêneo dos que trabalham nesses lugares, outro que é compos-
to de pessoas em situação de rua (considerando os centros comerciais ur-
banos) e um grupo homogêneo nas representações das imagens midiáticas

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e pró-consumo presentes nesses locais. Então, o “não lugar” de conglome-
rado comercial, espaço que ao mesmo tempo pode impedir interações so-
ciais entre os diferentes grupos mencionados, pode promover a interação
entre os semelhantes.
Esta lógica espacial não é a única, mas tem a probabilidade cada vez maior
de ser reproduzida nas cidades contemporâneas, uma vez que “corresponde
aos interesses representados pela elite empresarial tecnocrática e financei-
ra que tem exigências espaciais específicas” (Castells, 2002 apud Sá, 2013,
p. 221). Entendemos essas exigências espaciais como a possibilidade de o
grupo escolher lugares na cidade que sejam do interesse dele para implan-
tação de seus empreendimentos, os quais raramente são destinados a suprir
necessidades de moradias sociais ou de espaços de convívio e lazer que não
induzam seus usuários ao consumo conspícuo, ou de saúde e educação, es-
paços de uso comum, ou seja, comunitários e/ou destinados aos mais pobres.
Esse grupo e o Estado exercem o controle do uso e ocupação do solo das
cidades e/ou a possibilidade de assumir reformas urbanas que geralmente
aumentam os valores dos territórios e afastam para outros bairros os mo-
radores locais, ou os negócios locais consolidados, o que, por fim, propor-
ciona espaços para empreendimentos da burguesia. O grupo hegemônico
também acaba tomando as decisões sobre a linguagem arquitetônica e da
comunicação social que irá compor o espaço.
Atualmente fica, portanto, no encargo desse pequeno grupo de poder eco-
nômico abastado a consolidação de alguns dos espaços de “sociabilização”
dentro das cidades que atendem a seus ideais estéticos, políticos, econômi-
cos, culturais e sociais. Manuel Castells (2002) diz que isso “mostra como
as elites [econômicas] estão relacionadas com a apropriação e o controle do
espaço onde se instalam, constituindo comunidades simbólica e espacial-
mente segregadas” (apud Sá, 2013, p. 221). Eles constroem seus próprios
espaços sociais, com sua própria codificação “ligada ao poder e à riqueza”.
(Sá, 2013, p.222).

4. Adendo 2 – A “ordem” do crescimento


“estratégico” urba-no contemporâneo
Apesar de podermos pensar a cidade como um ambiente de poucas mu-
danças, por ser constituído de edificações “fixas” — fundadas e estrutura-
das no solo, concretas, pesadas e com um ciclo de vida extenso —, é pos-
sível perceber que ela está sendo constantemente alterada. Essa alteração
advém não somente da sociabilização que acontece no ambiente construído
em que a vivência humana se apropria, e dá significados afetivos, modifica
e têm suas vidas modificadas pelos espaços construídos, como também, a

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cultura consumista que rege as sociedades ocidentais contemporâneas con-
tribui, talvez, como a principal responsável pelas constantes modificações
que ocorrem no espaço urbano.
O solo possui cunho mercadológico então, insere-se status e valor econô-
mico ao território urbano (e rural). O capital seria a lógica que rege o cresci-
mento e as reformas urbanas atualmente e, na maioria das vezes, elas visam
somente à ampliação de seu acúmulo. Portanto, inflige-se uma formatação
de vida na qual o território urbano e o aparato que o compõe (considera-se
aqui tudo que está inserido nele, inclusive a comunicação pública) servem
como meio de acumulação de bens e de distinções sociais.
Com esse cenário, fica “pré-estabelecido” que uma pequena parcela da
população poderá ficar no “encargo” de exercer a ação de consolidar espaços
nas cidades: o grupo social com poder aquisitivo dominante é quem pode
participar e viabilizar os espaços das e nas cidades. Ao consolidar esses es-
paços, mimetizam uma codificação que diz respeito a sua própria classe so-
cial. Esse grupo de poder hegemônico e detentor dos meios de produção não
detém somente o poder da linguagem na publicidade, até certo ponto, onde
esbarra com o Estado e as leis (ou não), detém, também, o poder de decisão
e o controle da linguagem arquitetônica, do solo, de seu uso e sua ocupação.

[…] O urbanismo é um produto derivado do excedente, controlado por


um pequeno e seleto grupo de pessoas. Como ele está constituído agora,
está extremamente confinado, restrito, na maioria dos casos, à pequena
elite política e econômica, que está em posição de moldar as cidades cada
vez mais ao seu gosto. [...] O neoliberalismo criou, também, um novo sis-
tema de governança que integra o Estado e os interesses corporativos e,
através do poder monetário, ele assegurou que a disposição do exceden-
te através do aparato estatal favorecesse o capital corporativo e as classes
superiores na moldagem dos processos urbanos. [...] Progressivamente
vemos o direito à cidade cair em mãos privadas ou interesses quase pri-
vados (Harvey, 2012, p. 86).

Decorrem disso não só as disputas de classes e territórios; é possível no-


tar a imposição de uma espécie de censura para determinada parte da so-
ciedade que não se vê ou raramente são vistos seus códigos culturais como
linguagem em voga na sociedade.

[…] o lugar que ocupam as pessoas invisibilizadas na sociedade na or-


ganização dominante do visível e do invisível. [...] é, de fato, a primeira
injustiça que rege o mundo da desigualdade, aquela que afeta a própria
participação em um mundo sensível comum: há um pequeno número

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de pessoas que vemos e ouvimos e existe uma massa indistinta dos que
não vemos e não ouvimos” (Rancière, 2021, p. 8).

Esses “não lugares”, constantemente alterados (imageticamente) por cau-


sa da cultura do consumo e consolidados, geralmente, por quem tem os
meios de produção, tornam-se imageticamente análogos a outros espaços
urbanos (outros “não lugares”) do mundo globalizado de cultura ocidental
(contemporâneo), pois são codificados e consolidados por outros grupos
hegemônicos, que apesar das diferentes regiões geográficas, acabam tendo
semelhantes construções sociais ligadas à “burguesia”.
O que se tem como resultado é um constante processo transitório ima-
gético da paisagem urbana em busca de inovações e aplicação de novas tec-
nologias; contudo, ao mesmo tempo, esses locais são sempre parecidos uns
com os outros em qualquer parte do mundo ocidental contemporâneo por
causa de uma lógica mercadológica que impera como um regime. As ci-
dades e/ou o solo urbano, de acordo com Otília Arantes (2000), são vistos
como mercadorias à venda num mercado (outras cidades igualmente são
vendidas), “a cidade é uma empresa, e, como tal, resume-se a uma unida-
de de gestão e de negócios; a cidade, enfim, é uma pátria, entendamos uma
marca com a qual devem se identificar seus usuários” (Ibid., p.8).
O mercado é território de oscilações e funciona com altas e baixas de di-
fícil previsão, implicando em um comércio, da mesma forma, instável, que
abre e fecha as portas incessantemente devido a seus fracassos e sucessos
(operação inerente ao capitalismo), fato que assegura a volatilidade na ima-
gem da paisagem urbana, principalmente, nesses locais.
Dessa forma, além das mudanças comentadas, decorrentes da sociabili-
zação no espaço comum, ou seja, de objetos (de diversas escalas) que têm
uma finalidade original, mas funcionam de outra maneira devido ao uso
que a sociedade dá a eles, as outras modificações visuais na paisagem ur-
bana se dão via os seguintes instrumentos: (i) arquitetônicas: demolições,
construções e reformas — o sistema urbano e suas edificações que se mo-
dificam imageticamente no que diz respeito à arquitetura; (ii) modificações
da comunicação visual urbana — sinalização, acessibilidade, comunicação
social, publicidade, campanhas periódicas do comércio (datas comemora-
tivas, estações do ano, períodos de promoção etc.), identidade visual dos
empreendimentos, entre outros.
Por isso, este artigo convida o leitor a pensar a paisagem urbana como uma
imagem efêmera. Essa sugestão parece facilitar o entendimento de que esses
lugares têm a capacidade estética de imprimir na sociedade as necessidades,

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os anseios e os valores do poder hegemônico vigente: dos que exercem as
modificações urbanas.
Para tanto, é necessário incluir nessa visualidade imagética (paisagem)
todo o seguinte conjunto: tempo, espaço, contexto, racionalidade espacial,
arquitetura, mobiliário urbano e comunicação visual (todo o aparato per-
tencente ao cenário em questão). Parte desse conjunto ou desse dispositivo,
lembramos, é concebido e administrado pela associação público-privada.
Então, convidamos a reflexão de que parte do dispositivo presente no plano
imagético da paisagem urbana foi arranjado e consequentemente pensado
para operar seguindo funções previamente estabelecidas, por mais que ori-
ginalmente algumas dessas estratégias tenham surgido espontaneamente,
contemporaneamente, funcionam com funções estabelecidas previamente.

5. Parte Final 1 – Reflexões – a cidade


como sistema comuni-cacional
Com o que foi exposto até então, é possível entender a cidade como uma
rica fonte de discursos. Dela, podemos decodificar hierarquias, ideologias,
cultura, valores sociais, políticos etc.
Para Lucrécia Ferrara (2008), a lógica construtiva de uma cidade é su-
porte que se disponibiliza à comunicação de uma ideologia, de uma utopia.
Isto é, ela representa desejos e valores imaginários de identidades indivi-
dual e/ou coletiva, ela representa a apropriação e o domínio do homem so-
bre o espaço social.
Da mesma forma, ocorre com o dispositivo que compõe o espaço urbano.
O material de construção, as técnicas construtivas utilizadas, a escolha do
local de implantação, a escala, “a maestria imaginativa, a condição técnica
e tecnológica” (Ibid., p.42), e a imagética final da obra são fontes de infor-
mações de valores e escala social de quem as solicitou, projetou e concebeu.
Não à toa, os historiadores buscam informações nos modos de constru-
ção do urbano, na arquitetura e nos artefatos/nos objetos de uma dada so-
ciedade quando querem estudá-la. Sabemos que os objetos construídos pe-
los humanos, de acordo com os estudos de cultura material, carregam em
si, algumas informações das sociedades que os conceberam.
Com isso, é possível perceber, com ajuda de Ferrara (2008), que a ci-
dade não é só suporte para exposição da comunicação social e midiática
e, consequente, disputa por espaços reconhecidos socialmente como “eli-
tizados” na cidade para dispô-las. Tampouco as cidades se limitam aos
estereótipos classificatórios que exercem efeitos dominantes sobre elas
como por exemplo: “cidade maravilhosa”, “cidade imperial”, “cidade luz”,
entre outros.

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Esses estereótipos encapsulam uma imagem positiva da cidade e escamo-
teiam alguns de seus problemas sociais, possibilitando a proliferação de tais
discursos que visam implementar os empreendimentos ou as reformas ur-
banas com finalidades mais turísticas, midiáticas e consumistas do que so-
ciais. Por consequência, esses estereótipos invisibilizam e postergam ações
diretas e indiretas nesses problemas sociais e/ou urbanos que essas cidades
comportam. O que se percebe ainda, é que esses estereótipos midiáticos
podem acabar disciplinando o olhar da sociedade para as cidades de uma
maneira também hierárquica e manipuladora.
Por isso, entendemos que perceber a cidade e sua imagética efêmera, por-
ventura, nos leva a observá-la com maior acuidade, como se estivéssemos
vendo algo novo; com o cuidado de quem vê uma fotografia, uma obra de
arte, uma ilustração e não como vemos algo da ordem do comum, do cita-
dino, do que estamos habituados a ver.
Perceber a cidade como uma fonte de imagens efêmeras, pode nos reavi-
var o desejo de questioná-las como propõe Didi-Huberman (2017). Ele su-
gere duvidar dos discursos presentes em um primeiro plano das imagens e
percebê-las como lacunares. Assim podemos questioná-las, sua visualidade,
seus códigos, questionar mimetizações, singularidades... Questionar quem
as fez, quem são, em que posições ideológicas e políticas se localizam etc.
Pensar a cidade como uma fonte de imagens com discursos ruidosos,
conflituosos, lacunares e cada vez mais voláteis nos leva a pensar que sua
visualidade partilha experiências sensíveis polissêmicas e que deste lugar é
de onde se vislumbra uma brecha de possibilidade de subversão da norma
instaurada.

6. Parte Final 2 – Reflexões Gerais


Propomos compreender a paisagem urbana como uma imagem efêmera
que está sempre se modificando devido ao sentido empresarial-mercado-
lógico que rege o crescimento das cidades — desde, aproximadamente, os
anos de 1970, no caso, por exemplo, do Brasil (não que a lógica de cresci-
mento urbano anterior fosse completamente diferente da contemporânea,
de acordo com Arantes, 2000). Como consequência, essa “constante altera-
ção da linguagem, no nível da construção desses espaços, implica também
uma alteração da linguagem social daqueles que vão ocupá-los. A relação
não é determinista [...], mas ela existe” (Sá, 2013, p.210).
Seria possível, então, pensar os “excessos” — de consumo, lojas, pessoas,
imagens, constantes modificações na paisagem — para além de excesso de
informação que atinge a sociedade, mas como questões sociais e políticas
ou, como sugere Rancière (2011), como um programa de transformação da

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vida cotidiana a que ele chama de “educação estética”, pois independente da
percepção e da maneira como cada indivíduo interpreta a experiência sen-
sível partilhada pelos centros comerciais de rua, há uma espécie de forma-
tação universal de vida ou programação de vida.
A classe detentora dos meios de produção consolida espaços de consumo
que servem às suas necessidades econômicas e identitárias. Ela codifica os
espaços do seu modo e constrói pequenas comunidades para reafirmar sua
identidade de classe e sociabilizar com semelhantes, o já conhecido “clubis-
mo”. Isso não quer dizer que pessoas de outras classes sociais não possam ou
não se identifiquem com os locais comerciais, que não os frequentem, que
evitem frequentá-los ou sejam proibidos de “entrar” como acontece em al-
guns clubes. No entanto, mesmo com a circulação de qualquer classe social,
esses espaços e sua visualidade alimentam disputas e segregações sociais.
Rancière (2011) explica que as experiências subjetivas podem ser parti-
lhadas por todos; cada ser humano será atingido diferentemente, mas são
proporcionadas a toda a sociedade sem que haja qualquer tipo de exclusão,
a isso ele chama de “partilha do sensível”: “a capacidade estética enforma um
mundo de experiências possível que transcende a distribuição policial dos
corpos, das formas de ver, sentir e pensar tidas como apropriadas à condi-
ção de cada um” (Rancière, 2011 p.9). O que o autor sugere é que não pen-
semos a experiência estética sendo absorvida ou entendida somente pela
classe social de intelectualidade elevada, as afetações sensíveis atravessam
todos, independentemente de sua cultura, daí a capacidade de subverter o
poder instalado.
Entendemos que a classe social de poder econômico abastado tem a ne-
cessidade de se colocar dentro de um padrão de aparências, gostos e hábitos
que os identifiquem como pertencentes a essa classe e consequentemente os
diferencie das demais. O filósofo Terry Eagleton (1993) fala que a “burgue-
sia vem tentando, historicamente, definir-se como sujeito universal” (Ibid.,
p.26) mesmo sendo “uma comunidade de sujeitos abstratamente simétricos,
[...] com dificuldade em prover experiências rica de consenso” (Ibid., p.24).
Essa necessidade que a burguesia construiu de ser sempre reconhecida
como pertencente a essa classe social, em qualquer lugar do mundo ociden-
tal globalizado, contribuiu para que tecesse seus próprios códigos, que são
dissipados em uma linguagem própria mimetizada na arquitetura, na publi-
cidade, na comunicação social, no audiovisual etc. Como possui o poder de
decisão do visível e do dizível dentro desses espaços em que ela empreende,
coloca em voga a sua própria produção impregnada dessa linguagem (re-
pleta de signos que dizem respeito a essa classe). Essa operação, que colo-
ca seus produtos em lugares privilegiados dentro do que é visível, faz com

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que esses códigos passem a atuar como agência. Dentro de uma sociedade
capitalista, regida pelo mito da meritocracia, essa linguagem visual passa
de um ícone identitário de certo grupo para produtor de necessidades em
outras classes sociais que poderão assimilar esses discursos como imposi-
ção de algo que devem conquistar ou como o ideal de vida a ser atingido.
O grupo social empreendedor, portanto, universaliza o seu próprio este-
reótipo e o seu modo de vida, com isso alimenta um estado de devir na so-
ciedade do consumo como um todo, além de estimular disputas sociais que
— inerentes à existência do capitalismo — estimulam ainda mais o consumo
e perpetuam o cenário apresentado.
Por fim, a respeito da homogeneidade sobre os grupos que frequentam
o “não lugar” comercial: nota-se uma semelhança entre o grupo empreen-
dedor, certo grupo de frequentadores (talvez os mais assíduos e com maior
poder de consumo) e os corpos humanos representados nas imagens da
comunicação visual. Isso, possivelmente, decorre da dual tentativa desse
grupo social de elevado poder econômico universalizar a sua imagética e
seu modo de vida e da necessidade social de se fazer parecer pertencente
ao grupo “dominante”.

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Como referenciar

JURGIELEWICZ, Paula; PORTINARI, Denise. A estética do não


lugar: a paisagem urbana como imagem efêmera e a partilha do
sensível. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp. 43-59, jan./2024.
Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/
arcosdesign.

———

DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.78832

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A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


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Não Adaptada.

Recebido em 31/08/2023 | Aceito em 23/11/2023

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arcos design

Queer Designers: Experimentações


não-conformativas na geração
de uma rede dissidente

Aura Celeste Santana Cunha (ufc, Brasil)


aura@daud.ufc.br

Lucas Mota Borges (ufc, Brasil)


lucasmbvv@gmail.com

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 60-78. ISSN: 1984-5596
v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign

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Queer designers: Experimentações não-
conformativas na geração de uma rede dissidente

Resumo: Este estudo apresenta o processo de formação de uma rede de


designers dissidentes em gênero e sexualidade, a fim de experimentar e de-
linear práticas contra-normativas no design. Foram realizadas oficinas com
grupo focal em que discursos e saberes de sujeitos dissidentes em gênero e
sexualidade apoiassem o projeto. Enquanto escrita, a argumentação crítica
de teoria queer e história do design foram somadas a outras reflexões evoca-
das pelos participantes do grupo formado, o que apoia este texto enquanto
um fluxo de pensamento coletivo de caráter político e de descrição de um
processo experimental. Sobretudo, foram apontadas formas de provocar de-
bates e instigar produção subjetiva no campo do design, levando em consi-
deração as questões que envolvem corpos não-conformativos. Busca-se, até
o momento de publicação deste trabalho, uma continuidade das estratégias
experimentadas para apoiar um processo aberto e não estático de pensar e
fazer design voltado para o queer.
Palavras-chave: Design queer, Design antropológico, Oficinas de design

Queer designers: A non-conforming approach


to generate a design network

Abstract: This study aims to create a network of queer designers with the
purpose of experimenting methods set out to challenge normative design bi-
ases about gender and sexuality. Queer-only design workshops were conduct-
ed with the goal of bringing together designers to discuss alternative strategies
to strengthen the knowledge base within the gender non-conforming creative
community. The research method sought to establish strategies that could ac-
count for queering design practices plus proposing non-binary ways to confront
power/knowledge design structures. The results include an in-depth critical
essay based on queer theory and design history and other thoughts evoked by
the group members. The aim is to continue the counter-normative strategies
experimented with, in order to support an open and dynamic process of de-
signing thinking. In conclusion, this study points out ways to provoke debates
and stimulate subjective production in the design field by LGBTQIA+ non-nor-
mative bodies.
Keywords: Queer designers, Design Anthropology, Design workshops.

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1. Introdução
Este artigo emerge de uma série de inquietações e experimentos realizados
por alunes dissidentes em gênero e sexualidade durante a graduação em
Design na Universidade Federal do Ceará. Em específico, apoiam-se aqui,
como uma forma própria de fazer pesquisa, uma exploração de meios teó-
ricos e práticos, para além de relatos individuais e coletivos de vivências em
oficinas destinadas a designers LGBTQIA+. Os encontros, que tiveram o ob-
jetivo de constituir um espaço seguro para a partilha, surgiram do interesse
de unir corpos para potencializar a criatividade e do objetivo principal de
germinar uma rede de criativos não conformativos.
O termo queer tem origem na língua inglesa e abrange os significados
de estranho, desviado, anormal ou esquisito para designar indivíduos de
gêneros e sexualidades consideradas como desviantes em relação à norma
cisheterossexual. Queer, nesse sentido, pode ser compreendido como um ter-
mo “guarda chuva” para os indivíduos que se percebem na sigla LGBTQIA+.
Entretanto, nesta pesquisa, o termo “corpo queer” irá se referir diretamente
a sujeitos trans, não bináries, travestis, bichas e sapatões, ao passo que essas
denominações, como indica Guilherme Altmayer (2021), configura um po-
sicionamento engajado para confrontar o insulto, sob uma significação po-
lítica e histórica. O pensamento de Guacira Lopes Louro, em seu livro Um
corpo Estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, publicado origi-
nalmente em 2004, sugere que o queer é o sujeito da sexualidade desviante
que não deseja ser integrado para além de que é “um jeito de pensar e de ser
que não aspira o centro e nem o quer como referência” (LOURO, 2004 p. 7).
Tendo isso em vista, nessa escrita, pretende-se compreender como de-
sign e teoria queer podem conversar para buscar práticas e estratégias con-
tra-normativas. Esse interesse se dá, essencialmente, a partir de um enten-
dimento que o design, ao longo de sua história moderna, constituiu modos
para tangibilizar códigos de acordo com os interesses de grupos dominantes
(FORTY, 2007). Compreende-se, entretanto, que esses modos normatizan-
tes se sedimentaram enquanto bases “essenciais” para o ensino de design,
ou seja, nesse sentido, merecem ser problematizadas as estruturas de saber/
fazer por uma perspectiva alinhada ao queer (PORTINARI, 2017). É a partir
dessa linha de pensamento que são buscadas formas de queerizar o design
(PORTINARI, 2017), ao passo que tal conduta se configura como uma prá-
tica que problematiza a normatividade; para além de potencializar os mo-
dos de vida de sujeitos que escapam e, consequentemente, buscam sobrevi-
ver frente às amarras do poder em gênero e sexualidade (FOUCAULT, 1976).
Portanto, é necessário, para atingir tal conduta, se distanciar de uma prática
projetual de design que prioriza determinados aspectos modernos, para se

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aproximar de outras possíveis práticas que sensibilizem o fazer do design
pela valorização das subjetividades de sujeitos dissidentes. Tendo em vis-
ta que o design ainda opera de acordo com os interesses relativos ao poder
(FORTY, 2007), pretende-se explicitar que não existem modos “neutros” de
se fazer design, pois, como indicado, o campo ainda funciona aos moldes
do que se constitui como uma forma de poder essencialmente “moderna”.
Almejamos, portanto, confrontar as bases do design ao instigar o olhar para
corpos historicamente ignorados ao longo da evolução do campo. Em outras
palavras, o que implica (re)pensar a prática do design a partir de saberes e
proposições que partem de corpos dissidentes?
Apoiam a argumentação desta escrita as percepções individuais e coletivas
que confrontam as limitações práticas do design para a solução de proble-
mas em um mundo normatizado. Pretende-se, a partir de uma perspectiva
teórico-crítica, lançar um olhar para mecanismos velados que motivam o
design a reproduzir implicitamente separações, exclusões e marginalizações
de corpos pressionados pela opressão cisheteronormativa posta. Há tam-
bém um interesse, sobretudo, em explorar pontos que potencializam uma
prática do design ligada ao queer, isto é, meios de corromper ou depravar
- em um sentido de ressignificar a censura - o fazer do design a partir da
troca de saberes com corpos dissidentes posicionados em vivências especí-
ficas no contexto da cidade.

2. Metodologia
Para fundamentar métodos que possam dar conta de uma queerização da
prática de design é preciso agir de forma contra-normativa às suas estruturas
de saber/fazer. Design Anthropology foi pensado como o meio que possibilita
uma interdisciplinaridade da pesquisa em design ao instigar o olhar para a
antropologia. Nessa perspectiva, é possível, enquanto abordagem metodo-
lógica, tirar de foco um design de processos normatizantes e direcionar o
olhar para um design voltado à pluralidade. Zoy Anastassakis (2013) bus-
ca expandir essa concepção ao indicar que o design pode estabelecer uma
sinergia de saberes com a antropologia, fortalecendo modos de produção
do conhecimento voltados para a vida, agregando as pessoas e formulan-
do meios sustentáveis voltados para os desejos e aspirações humanas. “Para
isso, uma tal antropologia, operacionalizada através de processos de design,
deve ser, sobretudo, experimental e improvisatória.” (ANASTASSAKIS, p. 182)
Ao instigar o olhar para a vida e, consequentemente, para os desejos do
corpo, tal concepção de design se aproxima do propósito desestabilizador
em práticas e pensamentos queer. As bases do Design Anthropology trazem
à tona a subjetividade dos indivíduos que compõem o estudo, para além de

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possibilitar uma interdisciplinarização da pesquisa. Expandir o pensamento
e práticas queer é ter, enquanto possibilidade política de produção de pen-
samento, a não-normatização e o fluxo livre de contestações em relação aos
saberes que ocupam um lugar sólido.
A forma de pesquisar é precisamente exploratória, pois se engaja com o
lugar de interdisciplinaridade, além de extrapolar os limites e os modos es-
pecíficos de trabalho e produção de conhecimento contemporâneo no de-
sign. A pretensão, enquanto pensamento queer, é de desestruturar e corrom-
per ambientes consolidados e a forma como são percebidos. Paralelamente,
sensibilizar o campo e suas práticas às questões queer envolve também, se-
gundo Buchmüller (2016, apud DE OLIVEIRA; DE MEDEIROS), assimilar como
potência processual modelos de trabalho mais participativos.
Em vista disso, se confronta os dispositivos de saber/poder em relação
às suas práticas, métodos, materializações e discursos normativos, na me-
dida em que algumas estratégias metodológicas se mesclam enquanto for-
ma de produção científica. Para além da convencional revisão de literatura,
é a partir de transcrições de relatos das rodas de conversa, fragmentos de
pensamento anotados no diário do pesquisador e registros fotográficos dos
exercícios e atividades criativas coletivas que essa forma de escrita possi-
bilita um caminho próprio de fazer pesquisa, de alcançar práticas contra-
-normativas coletivamente e de potencializar o design como área do saber
provocadora de debates e de produção subjetiva.

“Assim, a aproximação interdisciplinar cria um campo híbrido de produ-


ção de conhecimento que pretende desconstruir formas de fazer consoli-
dadas, através de um engajamento exploratório para o desenvolvimento
de novas estratégias e práticas que respondam aos desafios sociais con-
temporâneos.” (COSTARD; IBARRA; ANASTASSAKIS, 2016, p. 78)

A partir desse panorama metodológico, essa investigação é de abordagem


qualitativa, pois relaciona as temáticas de diferentes áreas do conhecimen-
to que se constroem ao longo de seu desenvolvimento com a participação
coletiva de vários sujeitos, inclusive a do pesquisador. Por meio das oficinas
de discussão e experimentação de práticas, são contempladas diversas for-
mas de subjetivação, valorizando e sensibilizando o processo de pesquisa.

3. Queerizando o design
Em um primeiro momento, para tecer essa complexa discussão que en-
volve design e questões queer, invoco nos dois seguintes tópicos uma forte
influência bibliográfica que acompanhou os estudos de um de seus pesquisa-
dores ao longo de um projeto de TCC. Posteriormente, no último subtópico,

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se tornam mais presentes outras fontes que complementam os argumentos
que constituem este artigo - em especial, de pessoas que integraram os ex-
perimentos em oficinas - o que reforça a condição antropológica deste es-
tudo em design.

3.1. A abordagem queer a partir da antropologia


O pensamento que estrutura a conotação queer é composto por diversos
pontos de vista e por diferentes estudiosos acadêmicos em assuntos de gê-
nero e sexualidade. A teoria queer, tendo isso em vista, é um campo no qual
não se busca por verdades absolutas em relação aos assuntos abordados. As
perspectivas vão envolver, quase na maior parte das vezes, um caráter inter-
seccional que abrange recortes de raça, classes, culturas e localizações. O que
há de comum, entretanto, é a problematização sistematizada daquilo que é
posto como norma e poder em relação a dominância cisheterossexual dos
modos de vida. Invoco, nesse sentido, Judith Butler (2010), Guacira Lopes
Louro (2004) e Richard Miskolci (2012) para compor essa discussão e faci-
litar um entendimento do que essa teoria propõe.
Entender o que rege o pensamento e, consequentemente, as práticas queer
exige, antes de qualquer coisa, reconhecer que tais propostas surgem daquilo
que Miskolci (2012) vai colocar como um impulso crítico frente a uma or-
dem sexual, muito motivada por uma contracultura. Em outras palavras, a
abordagem queer vai se configurar muito mais radical em relação à norma
e ao poder do que o discurso que advoga pelas “minorias” sexuais, como
nos movimentos homossexuais e lésbicos. Segundo Guacira Lopes Louro
(2004), a visibilidade de “minorias”, no que se refere a noção de sexo e gê-
nero, tem efeitos contraditórios nas sociedades, pois, ao passo que alguns
grupos recebem positivamente a pluralidade sexual, os outros intensificam
seus processos de violência invocando uma ordem “tradicional” e “familiar”.
Nesse sentido, segundo a autora (2004), esse embate se intensifica à medi-
da que as noções sobre sexo, gênero e sexualidade se multiplicam no globo
pois, de um modo ou de outro, ainda existirão sujeitos os quais as noções
de conformidade com as categorias não se darão encerradas ou fixas. Butler
(2010), nesse sentido, vai problematizar diretamente as noções que delimi-
tam um sujeito ser “homem” ou “mulher”, pois indica que tais categorias de
gênero são “performativas” à medida em que são um conjunto de práticas
de comportamento que refletem em uma identidade. Ou seja, Butler (2010),
nessa primeira linha de pensamento, se aproxima e amplia o pensamento
feminista na medida em que indica que gênero e sexo não são só descola-
dos um do outro, mas que ambas categorias são frutos de “verdades” cons-
truídas discursivamente.

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A teoria queer constitui-se menos numa questão de explicar a repressão
ou a expressão de uma minoria homossexual do que numa análise da fi-
gura hetero/homossexuaI como um regime de poder/saber que molda
a ordenação dos desejos, dos comportamentos e das instituições sociais,
das relações sociais - numa palavra, a constituição do self e da sociedade.
(LOURO, 2004, p. 46, apud SEIDMAN, 1995, p. 128).

Pensamentos como esses são marcadores que indicam pontos importan-


tes de uma problematização que eventualmente vai delimitar as noções de
uma “heterossexualidade compulsória” a partir da reflexão de Butler (2010)
sobre os sujeitos das discussões feministas serem “as mulheres”. Tais pres-
sionamentos são pontos que Butler (2010) irá discorrer para “desnaturali-
zar” o olhar de que o sujeito “mulher” pode ser compreendido em termos
estáticos e essenciais, ou que sexo, gênero e sexualidade devem ser assimila-
dos de forma coerente. É a partir dessa abordagem que as potencializações
discursivas e analíticas da teoria queer tomam maior força pois, em linhas
gerais, as discussões vão culminar em um pensamento mais radical fren-
te o entendimento que as divisões categóricas sobre identidades de gênero
são, em essência, construções sociais. Michel Foucault (1976) toma prota-
gonismo ao expor as estruturas e os instrumentos sociais que legitimam a
estreita relação da heterossexualidade, em contraposição a rejeição de ou-
tras sexualidades, como a instância de poder que irá determinar a norma.

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repeti-


dos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se
cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma
classe natural de ser (BUTLER, 2010, p. 59).

O pensamento queer, portanto, irá, tendo em vista esse aprofundamento


reflexivo, tomar um rumo mais radical e propriamente contra-normativo.
Irá se voltar, nesse sentido, para uma disseminação de práticas de desordem
do gênero, além de indicar uma posição contestatória e não conformada
em relação às normas, de qualquer ordem (BUTLER, 2010). Entende-se, en-
tretanto, que determinados pressupostos da norma germinam a partir de
uma visão patriarcal, heterossexual e monogâmica disfarçada de “natural”.
Essa teoria instigada pelo modo queer, portanto, aprofunda e problematiza
o processo de constituição do poder por meio das normas de performativi-
dade. A relação dessa teoria com o design se dá, como um primeiro ponto
de contato, a partir das problematizações sobre as estruturas modernas de
poder, materializadas por meio de práticas, olhares e discursos na produção

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dos objetos postos como “extensão do corpo humano”, lema bastante repro-
duzido no campo do design.

3.2. A normatividade historiada no design


É a partir de uma revisão reflexiva do que fundamenta a história do design
que se torna possível entender como a maior parte de suas práticas e dis-
cursos estão imbricados em uma lógica normativa da gestão dos saberes.
Essa lógica é a mesma que dita os sistemas de vida, as classificações socio-
lógicas e as respectivas normas de comportamentos que dominam os cor-
pos (BUTLER, 2010 apud FOUCAULT, 1976). Tendo isso em vista, é a partir de
pensadores que tensionam as epistemologias do design que se torna possível
vislumbrar o panorama necessário para assimilar os pontos de ruptura que
esta escrita propõe. Entretanto, antes de tal abordagem, é importante esta-
belecer uma revisão histórica e crítica de como o design se legitimou como
campo alinhado à modernidade.
Segundo Adrian Forty (2007), o design nasceu em uma linha histórica
capitalista e, consequentemente, foi protagonista em gerar riquezas na mo-
dernidade. Rafael Cardoso (2013, p. 16) complementa essa visão ao indicar
que o “design nasceu com o firme propósito de pôr ordem na bagunça do
mundo industrial”. Forty (2007) indica que o design já diferenciava produtos
por categorias binárias de gênero desde o século XIX e a forma pela qual os
produtos se divergiam materialmente já indicava como o design dava fortes
formas do que era para “homem” e para “mulher”. A noção de “inovação em
design” era percebida à medida em que as diferenciações entre os produtos
eram uma possibilidade de ampliar as vendas, visando diferentes público-
-alvos. Esse cenário é relevante para colocar em evidência o que Cardoso
(2013, p. 16) vai dizer que é uma “infância da sociedade de consumo”. É nesse
contexto que os produtores, alinhados a outros profissionais criativos, irão
moldar o gosto da população por meio dos mais diversos aparatos institu-
cionais, como museus e escolas de ofícios específicos.
Segundo Cardoso (2013, p. 16), o ato de projetar e fabricar migraram
para o centro de debates sociais. Os designers desse período seguiam uma
espécie de lema de “adequação dos objetos ao seu propósito”, pouco tempo
depois, em torno de 1930, já no período da Bauhaus, a frase popularizou-
-se como “a forma segue a função”. O campo do design, a partir desse ce-
nário, tomava um rumo mais distante das práticas que exigiam um maior
contato manual e artesanal, muito estimulado pela então necessidade de
pensar atributos racionalizados para o fazer do campo (CARDOSO, 2008).
Ao modo que é percebido hoje, o design é uma disciplina teórico-prática
difundida mundialmente à medida que o processo de expansão do campo

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o atribui como “universal”. Entretanto, existe um ponto de questionamen-
to para o qual se indaga como um processo que tomou forma a partir do
contexto de revolução industrial europeu, em uma vivência tão localizada,
pode, nesse sentido, passar a fazer parte, em um modo único, de um mundo
heterogêneo. É nesse sentido que se pergunta em até que nível essa noção
burguesa, masculina, europeia e normatizante pode ter afetado, impedido
e exterminado outras manifestações criativas que existiam para diferentes
lugares e grupos. Percebe-se um desejo de problematizar o design à medi-
da que ele é ensinado como um campo de métodos e atributos determina-
dos (CARDOSO, 2008)
Paralelamente à essa linha de pensamento, o surgimento da atividade
profissional de designer é um debate acalorado. A humanidade, em seus
diferentes povos, sempre desenvolveu artefatos com funções. Sustenta-se,
entretanto, que a profissão designer só passa a existir em um período espe-
cífico, na expansão da modernidade, no momento em que a divisão do tra-
balho, em uma linha produtiva, passou a ser tomada como modelo (FORTY,
2007). Nesse sentido, Latour (2008) indica que o termo design vem ganhan-
do novas atribuições e que a fixação do fazer não deve mais ser uma reali-
dade imutável. Latour (2008, p. 7) pressiona a “velha dicotomia entre fun-
ção e forma” a qual pode funcionar para pensar um martelo, mas no caso
de um smartphone “onde seria traçada a linha entre a forma e a função?”.
Estendo esse pensamento para tensionar as possíveis implicações criativas
ao repensar o design a partir do queer - que é o jeito de agir e de ser que se
faz presente em termos políticos e confrontativos à epistemologia moder-
na, modernizante e normativa do design - “O design pode ser queerizado –
sempre no varejo, pontualmente, fragmentariamente e capilarmente - mas
sempre na medida em que também pode queerizar.” (PORTINARI, 2017, p.4)

3.3. Resultados da formação da rede de designers dissidentes


Redirecionando o olhar para a concepção de uma rede de designers dissiden-
tes, o desejo de expandir o contato com outros sujeitos é o que fomentou a
concepção das oficinas. Com base nisso, o propósito de vincular a potência
coletiva queer a um “laboratório” toma forma à medida que é compreendi-
do o sentido experimental e improvisatório das práticas que se constituirão
neste lugar. Portanto, para essa pesquisa, é relevante especificar que o ter-
mo “laboratório” se aproxima, enquanto sentido, de um local que possibi-
lita a experimentação guiada de fazeres e trocas entre sujeitos dissidentes.
Pensar nos integrantes desse grupo enquanto agentes também fortalece o
caráter de organismo coletivo engajado. É a partir dessa visão, tendo enfatiza-
do o lugar político e crítico, que é possível perceber os integrantes do grupo

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enquanto agentes queer que potencializam formas de subjetivação contra-nor-
mativas. À vista disso, esta prática de pesquisa é tramada conjuntamente de
outres, “compreendendo que o aspecto político não deve ser visto apenas como
bandeira, tema ou impacto social direto das práticas de design, mas interferir
nas vísceras dos seus processos internos” (PORTINARI; NOGUEIRA, 2016, p. 33).
São, dessa maneira, nessas “vísceras de processo” que nós agimos, gerando
tentativas de transformação, de problematização da normatividade e, sobretu-
do, de transbordar vida por meio da subjetivação. Esta tentativa de formar uma
rede de designers dissidentes, nessa linha de pensamento, pode ser compreen-
dida enquanto movimento coletivo que impulsiona modos de fazer alinhados
à uma máxima subjetivação entre nossos corpos dissidentes com o intuito de
se contrapor a uma estabilização no design. Por esse ângulo, as práticas insti-
gadas atentam para a condição de gerar identificação, de fortalecer nossas co-
nexões e de nos agenciar enquanto potência queer conjunta.
Como forma de estruturar o fazer foi pensado, inicialmente, em 3 momen-
tos de encontro: “Aproximações”, “Proposições” e “Intervenção’’. Os dois pri-
meiros encontros foram voltados para reuniões internas entre os participantes
e o terceiro como uma ação conjunta no espaço comum. Condicionamos es-
sas etapas pensando (1) o momento inicial para primeiras impressões, trocas
e conexões; (2) mapeamento de saberes, discussão e estruturação de ideias e
(3) açção para
p tangibilizar
g os interesses.

figura 1. A partir da definição dos encontros, foram pensadas estratégias de comunicação para convidar
as pessoas. Cartazes com composição gráfica experimental e impressos em papéis coloridos foram
colados por paredes e muros como uma prática interventiva própria. (fonte: dos autores)

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Esse fazer interventivo distante das “boas práticas” e do bom design con-
fronta o lugar da opressão e do insulto, pois reivindica identidades perse-
guidas, afinal, são convocadas identidades bicha, sapatão, travesti, trans e
não-bináries. A distribuição desses cartazes se institui não só como dispo-
sitivo de caráter potencializador de discurso, mas também de chamada para
a coletividade. Continham nesses impressos códigos QR que encaminharam
para o grupo de Whatsapp no qual ingressaram 31 participantes. Tendo em
vista a incipiência desse assunto nos espaços institucionais de design, as es-
tratégias de comunicação adotadas foram um passo crucial para o início do
desenho da rede.
A descrição desses processos se dá em forma de um texto de caráter fluído
composto por diversas vivências, inclusive as dos pesquisadores que partici-
pavam das atividades. Dada a complexidade desses dados e o caráter aberto
do projeto, a organização adotada foi de compartilhar e editar as percep-
ções dos pesquisadores em campo, compondo um “diário de pesquisador”.
As imagens e legendas contidas no memorial descritivo são dispositivos de
apoio visual que materializam tanto diagramas relevantes quanto fotogra-
fias de atividades.

3.3.1 Aproximações
No primeiro encontro do Laboratório de Design Queer, a reunião de nossos
corpos realizou-se em uma sala de aula desocupada no prédio que abriga o
curso de Design da Universidade Federal do Ceará (UFC). Enquanto cada
corpo presente se apresentava, era reforçado o interesse de fazer parte de
um circuito direcionado a corpos invisibilizados em uma estrutura norma-
tizante de design. Enquanto pesquisadores acadêmicos, entendemos que a
junção de sujeitos dissidentes em gênero e sexualidade em um espaço públi-
co abre margem para retaliações, em específico, por um reflexo próprio da
cisheteronormatividade sedimentada nas estruturas sociais em que estamos
envolvidos. Entretanto, naquele momento, a potência de nossa união nos
direcionava para uma trilha de prosperidade e de intensificação de nossas
conexões. Não estávamos mais sozinhes.
Ao todo, foram reunidos 15 participantes para uma roda de conversa e
atividade de colagem. A discussão toma forma à medida que é compreen-
dido que as contribuições de criativos dissidentes sofrem apagamentos sis-
tematizados pela própria história moderna do design. Essa linha de pensa-
mento se soma à concepção de que o design caminhou, por muito tempo,
para uma neutralidade em seu fazer, se distanciando de processos de sub-
jetivação. Os sujeitos engajados na discussão, portanto, pontuaram o seu
sentimento de não pertencimento.

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figura 2. Quadro com transcrições relevantes durante o momento de oficina. A partir de perguntas
norteadoras: “Como estamos nos sentido?”; “Enquanto ensino de design, quais são as nossas percepções?”
as discussões da roda de conversa iam tomando forma e os participantes se apresentavam favoráveis para
compartilhar seus relatos de vivências enquanto designers lgbtqia+ (fonte: dos autores)

A partir dos discursos potencializadores relatados pelos participantes do gru-


po, foi possível estabelecer uma ponte com o pensamento de Costanza-Chock
(2020) para problematizar a prática de “tokenizar” narrativas de vidas e corpos
não-conformativos. Premissas que reforçam o lugar estigmatizado da vida a fim
de gerar superficialmente uma identificação com mulheres, corpos não-bran-
cos e pessoas dissidentes, potencializando a lucratividade. Enquanto grupo que
prioriza instituir as condições necessárias para favorecer bem-estar e manifesta-
ção de vida, nosso objetivo é se distanciar das práticas normatizantes e estimu-
lar a sustentabilidade pela troca e afeto. Sentimos conjuntamente que vivemos
um processo que busca denunciar, por meio de expansivas formas, as estrutu-
ras normatizantes que perseguem e marcam negativamente nossas identidades.
Redirecionando o foco para a oficina, logo adiante, uma participante toma a
liberdade para destacar uma citação de Jota Mombaça, a partir de seu livro Não
Vão nos Matar Agora (2021):

Então se pensada como estilhaçamento, como é possível insinuar na que-


bra um qualquer modo de estar junto? Se a quebra rompe com um sentido
de integridade, como então pode precipitar a reunião de forças, entidades e
existências? Se ela é o evento do desmantelamento, após o qual um corpo já
não pode ser lido como um corpo próprio, que política da afinidade pode
ser engendrada aí, apesar e através da quebra? (Ibidem, p.18)

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Em um segundo momento da oficina, cada criativo pôde desenvolver, de
forma livre e colaborativa, uma colagem-narrativa a partir de imagens impres-
sas. A prática buscou possibilitar um processo de subjetivação a partir da inter-
pretação, organização e composição imagética. Jake Minden em Cutting Out:
Queer Assemblages for Alternative Design Futures (2021) ressalta a importância
de queerizar métodos de colagem e passa a perceber a “colagem” enquanto ver-
bo, enquanto ferramenta ativa de problematização e desconstrução. De também
assimilar a colagem alinhada a uma prática queer através de composição onde
uma dicotomia de geração-desconstrução reside. Restabelecendo o olhar para a
prática do grupo, foram constituídas estratégias para possibilitar uma produção
visual, buscando encontrar um lugar de não-normalização. Expandimos a con-
cepção de uma oficina de colagem para também, buscando uma máxima subje-
tiva, agregar a esse fazer os processos de discussão, debate e geração de sentido.

figura 3. Resultados visuais do experimento de colagem-narrativa. Como parte do exercício, foi solicitado que
as imagens construídas fossem narradas a partir de termos. Os meios apontados para compor as narrativas
foram variados, porém se destacam aqui: impacto e desconforto; ambientes higienizados em contraposição
a elementos que incomodam; destruição ao corpo, destruição de memória; narrativa auto-identitária; não
pertencimento; hostilidade; estilhaçamento de corpos; observação de corpos; segregação; corpos que não
fazem parte. (fonte: dos autores)

É possível perceber de forma evidente o exercício de colagem e construção de


narrativa se relacionando com a discussão da roda de conversa. Visualizamos,
a partir dessas tentativas de transviar práticas em design, a subjetivação sendo
potencializada. É comum aos participantes as tentativas de comunicar, de for-
ma expandida, esse processo que nos atravessa enquanto sujeitos e identidades
dissidentes. Por fim, enxergamos que as práticas instigadas e os saberes sensibi-
lizados foram substancialmente importantes para nos reconhecermos enquanto

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grupo e força criativa compartilhada. A intenção do pesquisador foi de cons-
tituir esse lugar favorável para a troca entre os sujeitos, fomentar a experiência
coletiva enquanto forma de subjetivação e agenciamento queer.

3.3.2 Proposições e tentativas de intervenção


O intuito do encontro foi de revelar as potencialidades criativas do grupo e re-
conhecer coletivamente o fazer político queer. A intenção, primordialmente, foi
conversar abertamente com os participantes sobre a possibilidade de intervir
no espaço e de como isso se configura como uma prática contra-normativa. O
encontro teve como objetivo pensar e criar as condições necessárias para rea-
lizar uma intervenção no espaço comum. No primeiro momento, houve uma
sessão de projeções de vídeos e imagens para instigar a visualidade entre práti-
cas queer e design. Foram apresentadas imagens que tecem pontes entre a arte
e o pensamento político, que envolvem a experimentação e demais registros de
performance.
Como primeira ação de projeção, foi exibido a produção audiovisual Pegadas
Invisíveis de um corpo pesado de Luan Okun (2020). Esse registro foi selecio-
nado pois o olhar do artista potencializa o corpo e a vivência enquanto fazer ar-
tístico. A forma de experimentar visualidade com registros do corpo em vídeo,
modelagem 3D de figuras não-humanas e produção de ruído sonoro, combina-
dos, conduzem para esse entre-lugar político, sensível e experimental que parte
do corpo dissidente. Posteriormente foi projetado Cadelinha Soviética Narra
Viagem Espacial de Travesti Brasileira de Isadora Ravena (2020). O olhar da
artista instiga a noção de corpo e performance na cidade, estabelecendo uma
relação entre o registro, por meio de vídeo, de um fazer artístico interventivo,
pois, nesta performance as duas protagonistas da narrativa desbravam o cam-
po - nas ruas da cidade - enquanto “criaturas” que habitam a paisagem urbana.
Dentro desse pensamento que envolve corpo, intervenção e cidade, por último,
foi apresentado o trabalho de Me vejam de longe - Outdoor travesti de Sy Gomes
(2020). O projeto se sustenta em 5 outdoors posicionados de forma estratégi-
ca na cidade de Fortaleza, os quais buscam alertar para o número de pessoas
trans assassinadas anualmente no Brasil. Reconhecemos essas obras expostas
enquanto formas de atravessar o olhar do grupo. Tentativas de interdisciplinar
a concepção de queer pela projeção de imagem e som que se relacionam com
a poesia, intervenção e performance. Os 9 participantes daquele dia assistiram
as projeções com a atenção focada, atravessados por esse fazer queer da arte.
Dando prosseguimento à oficina, após as projeções, pensamos em investigar
os saberes do grupo por meio de um mapeamento coletivo. Essa prática é perce-
bida enquanto fortalecedora da rede justamente pela possibilidade de fazer com
que os integrantes se aproximem e conheçam os fazeres criativos uns dos outros.

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figura 4. A partir da pergunta geradora “Qual teu corre?”, solicitamos que cada integrante - inclusive
nós, pesquisadores - escrevesse em três papéis presentes na mesa, três práticas criativas as quais tinham
conhecimento. Não foram especificados níveis de técnica ou domínio sobre o fazer, a estratégia foi sobretudo
abrir um primeiro leque de possibilidades criativas que circulam dentro da rede. (fonte: dos autores)

As pessoas revelavam os processos de vida que constituíam suas preferências


criativas: processos de escrita para lidar com a dor, processos de desenho para
fabular outras realidades, crochê e amarrações que se relacionam com práticas
ensinadas por gerações familiares passadas. Mencionam também a presença
de processos, instigados pela criatividade, para “fugir” do peso do curso de de-
sign. Percebemos esses muitos fazeres sendo pontuados enquanto possibilida-
de de escape.
p

figura 5. Síntese, em forma de diagrama, dessa nuvem de saberes e fazeres comuns ao grupo, com
o objetivo de constituir uma primeira visualização de possibilidades criativas dentro desse sistema
coletivo. (fonte: dos autores)

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Observamos esse mapeamento como um norte, lançando o olhar para
possíveis desdobramentos de práticas, nas quais futuramente o grupo possa
intensificar a partir de suas trocas. Essa oficina se enquadra enquanto mo-
mento inicial de uma organização e discussão de possibilidades sobre os
nossos fazeres, visando uma ação mais concreta no futuro. A intenção foi
potencializar, por meio da experiência coletiva, a percepção de pluralidade
que envolve as habilidades dos corpos ali presentes.
Tendo em vista a pretensão de um terceiro momento ainda não realizado,
com foco em experimentação interventiva, o grupo se encontra em estado
de germinação. A busca por formas de tangibilizar agenciamento queer para
atravessar outros corpos, nesse sentido, ainda é aberta e desejada. Tendo isso
em vista, a sensação que permanece é de que ainda vemos um caminho a
ser perseguido para pensar uma ação coletiva e interventiva. Reforçamos
a importância da intervenção, sobretudo, como uma forma potente de ex-
pandir os processos pensados pelo grupo, buscando alcançar, nesse senti-
do, um patamar de ação queer que dissemina não só ideias de confrontação
à norma em espaços institucionalizados de design, mas que também gera,
por meio do design, dispositivos que permitem a expansão e consolidação
de uma rede de designers queer.

4. Conclusão
A discussão e as oficinas descritas não são uma conclusão concreta da
tentativa de formar uma rede-design-dissidência, busca-se encerrar esta
escrita em um desejo de expansão das estratégias contra-normativas ex-
perimentadas. Este processo aberto - não estático - possibilitou um mer-
gulho para as questões que envolvem um design possivelmente queeriza-
do. Paralelamente, a partir do referencial teórico abordado, as oficinas para
queer designers tiveram o papel de buscar formas de tangibilizar e se somar
às discussões críticas instigadas.
Buscou-se nas reflexões geradas pelo relato das oficinas, cumprir com os
objetivos de gerar identificação, fortalecer conexões entre designers dissi-
dentes, elaborar vivências colaborativas a fim de contribuir com uma crítica
ao design e a normatividade e, sobretudo, fortalecer um olhar queer a par-
tir do design. Este processo também teceu argumentos críticos às questões
de binarismos de gênero no design, à conformação do campo ao impulso
industrial, à relação entre o design da “forma e função” e o design univer-
sal e, consequentemente, às questões de poder que envolvem este campo.
O desenrolar da escrita também objetivou compreender sobre a politiza-
ção do campo, da sensibilização por meio da subjetivação, da construção de
processos horizontais e colaborativos, do estímulo a uma pluriversalidade

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no design e, consequentemente, da aproximação entre design e pensamen-
to queer. Para além disso, enquanto tentativa de delimitar práticas queer e
contra-normativas, a escrita empenhou-se em tensionar o campo, por meio
do pensamento metodológico instigado pelo Design Anthropology, a alcan-
çar um patamar prático interdisciplinar e desestabilizante em seu processo.
Assim, esperamos possibilitar, nesse sentido, um entendimento próprio sobre
o campo a partir de uma máxima subjetiva que se origina na experiência e
vivência coletiva entre designers não conformativos em gênero e sexualidade.
Por fim, tendo em vista as fissuras causadas pelas tentativas de ações crí-
ticas ao design, se intencionou germinar, a partir das aberturas expostas,
potencialidades de inventar processos próprios. Buscou-se, pela abordagem
intensa da subjetivação, fortalecer a conexão entre sujeitos que alinham seu
fazer pelo caráter dissidente, problematizador e político de suas práticas.

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Como referenciar

CUNHA, Aura Celeste Santana. BORGES, Lucas Mota. Queer


Designers: Experimentações não-conformativas na geração de uma
rede dissidente. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp. 60-78,
jan./2024. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.
php/arcosdesign.

———

DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.78885

———

A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


Commons Atribuição – Não Comercial – Compartilha Igual 3.0
Não Adaptada.

Recebido em 31/08/2023 | Aceito em 16/11/2023

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arcos design

Militância e Design na era das plataformas


virtuais: uma análise semiótica da
"memeficação" do engajamento político

Vinicius Cabral Ribeiro (uemg, Brasil)


viniciuscabralribeiro@gmail.com

Juliana Rocha Franco (uemg, Brasil)


julianarochafranco@gmail.com

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 79-101. ISSN: 1984-5596
v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign

79
Militância e design na era das plataformas
virtuais: uma análise semiótica da
“memeficação” do engajamento político

Resumo: O artigo investiga, a partir da semiótica peirceana, a produção de


sentidos de imagens que possuem um propósito político ou social explíci-
to, que representam a base de um certo engajamento político virtual. Tais
imagens são reproduzidas em larga escala nas atuais redes sociais, a partir
de perfis institucionais ou individuais, e atingem métricas de engajamento
consideráveis. Parte-se da hipótese de que os efeitos desta militância virtual
tornam as imagens de engajamento dependentes dos mesmos dispositivos
semióticos que caracterizam, por exemplo, os memes. O design das plata-
formas digitais, intensamente dependente de uma estrutura comunicacional
baseada no feedback e na assim chamada “economia da atenção”, é analisado
na demonstração de como as interações virtuais operam em uma lógica de
reforço de ideias. Para atingir tal reflexão, o estudo analisa um post militan-
te que se manifesta como um meme. Como conclusão, o trabalho pretende
avaliar como a assim chamada viralização de causas políticas e sociais sofre
um processo de “memeficação”, encontrando limitações em um processo
retroalimentado de disputas virtuais supostamente polarizadas, ao mesmo
tempo em que, engrossando o coro de um descontentamento com os siste-
mas hegemônicos de poder, podem produzir estratégias de desidentificação
e resistência política.
Palavras-chave: Design Gráfico, Semiótica, Política, Meme, Redes sociais.

Militancy and Design in the social platforms era: a semiotic


analysis of the “memefication” of political engagement

Abstract: The article investigates, from Peirce’s semiotics, the production of


meanings of images that have an explicit political or social purpose, which
represent the basis of a certain virtual political engagement. Such images are
reproduced on a large scale in current social networks, from institutional or
individual profiles, and reach considerable engagement metrics. It starts with
the hypothesis that the effects of this virtual militancy make engagement im-
ages dependent on the same semiotic devices that characterize, for example,
memes. The design of digital platforms, heavily dependent on a communica-
tional structure based on feedback and on the so-called “attention economy”,

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 79-101. 80


is analyzed in the demonstration of how virtual interactions operate in a logic
of reinforcing ideas. To obtain such reflection, the study analyzes a political
social media post that manifests itself as a meme. In conclusion, the work in-
tends to evaluate how the so-called viralization of political and social causes
suffers a process of “memefication”, finding limitations in a feedback process
of supposedly polarized virtual disputes, at the same time that, swelling the
chorus of discontent with hegemonic systems of power, can produce strategies
of disidentification and political resistance.
Keywords: Graphic Design, Semiotics, Politics, Digital Culture.

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1. Introdução
No cenário contemporâneo, onde as redes sociais e a mídia moldam nos-
sa compreensão do mundo, surgem fenômenos complexos que demandam
uma análise cuidadosa a qual as lentes do design tem muito a contribuir.
A utilização de memes como uma lente para examinar as emergências do
presente proporciona uma compreensão vívida e acessível e torna possível
desvendar camadas de significado, explorar a interação entre diferentes dis-
cursos e entender não só como as ideias são disseminadas e transformadas
na era digital, mas também os processos de construções e deslocamentos
de produção de subjetividades, que são ora forjados por “identidades fixas”,
ora possibilitam experimentações que abrem possibilidades na construção
de uma “desidentificação aditiva”.
Dois conceitos importantes nesse contexto são “Selfie Politics” e “desiden-
tificação”. O primeiro se refere à mercantilização das identidades individuais
e políticas nas plataformas digitais, o que também constitui um certo tipo
de perfil identificado neste estudo como “perfil militante”. Por “perfil mili-
tante” o estudo se refere a uma tipificação geral formada por perfis em redes
sociais dirigidos por: partidos políticos, organizações sociais políticas da so-
ciedade civil, perfis jornalísticos de vieses críticos e perfis de memes, ilustra-
ções e outros tipos de expressões de cunho militante voltados à pautas con-
sideradas “progressistas”, ou de esquerda. Em subitem à frente (1.1.2) estas
subdivisões de um tipo geral (“perfil militante”) são melhor desenvolvidas.
Diante do cenário de perfis sociais apresentados, é importante notar que,
no âmbito da “Selifie Politics”, memes podem ser entendidos como uma for-
ma de expressão política descentralizada. Indivíduos utilizam e adaptam
memes para transmitir suas posições sobre emergências sociais, destacan-
do como as preocupações contemporâneas são internalizadas e canaliza-
das em ações políticas por meio da cultura digital. Memes frequentemen-
te subvertem narrativas dominantes e introduzem novas perspectivas. A
“Selfie Politics”, como delineada por Moeller (2021), descreve a tendência
contemporânea de transformar posições políticas em formas de autopro-
moção e expressão nas redes sociais. Segundo Moeller (2021), vivemos uma
época de mercantilização dos indivíduos. O que inclui a transformação de
posicionamentos políticos, ou causas, em matéria de autopromoção. Não
se trataria apenas de narcisismo, inclusive, uma vez que as causas políticas
passam a integrar o repertório qualitativo de indivíduos que demonstram
seu engajamento através de imagens de cunho espetacular-individualista.
Estas imagens agregam-se a um conjunto de valores que, na econo-
mia da atenção das redes sociais (Bentes, 2021), integram o valor social,
mas também econômico, de um determinado indivíduo (com suas causas

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meticulosamente expressadas e monetizadas pelas plataformas virtuais).
Nesse contexto, as causas políticas muitas vezes são estilizadas para se en-
caixarem nas normas estéticas das plataformas digitais, visando obter visibi-
lidade e engajamento. Isso pode levar a uma superficialidade nas discussões
políticas, onde a autenticidade das causas e das identidades é comprometida
em prol da busca por reconhecimento social e visibilidade virtual. O “Selfie
Politics” nos chama a refletir sobre como a política está sendo redefinida em
termos de autopromoção e engajamento superficial, o que pode distorcer a
verdadeira natureza das lutas sociais e políticas.
Por outro lado, o segundo conceito, o de “desidentificação” como pro-
posto por teóricos como José Esteban Muñoz (1999), sugere uma estratégia
de resistência contra as identificações simplistas e normativas que são im-
postas a nós. A desidentificação envolve uma apropriação crítica das identi-
dades atribuídas, transformando-as em algo subversivo e ambíguo. Em vez
de aderir passivamente às categorias identitárias convencionais, indivíduos
que se desidentificam rejeitam a homogeneização e afirmam sua complexi-
dade e singularidade. Essa tática desafia os discursos de poder que buscam
enquadrar as identidades em categorias rígidas mercantilizadas e revela as
contradições e ambiguidades subjacentes às normas sociais.
A conexão entre “Selfie Politics” e “desidentificação” se torna clara quando
consideramos como as identidades políticas são forjadas e contestadas nas
redes sociais. As plataformas digitais muitas vezes reforçam as identidades
pré-estabelecidas e incentivam a adesão a categorias simplificadas. A uti-
lização de memes como uma lente para examinar as emergências contem-
porâneas proporciona uma compreensão vívida e acessível dessas questões
prementes. No cenário cultural atual, as fronteiras entre design, arte e ar-
quitetura extrapolam as práticas estéticas, transformando-se em expressões
culturais e políticas. Essa transformação encontra uma ressonância convin-
cente no âmbitos dos memes. Essa abordagem desafia as noções convencio-
nais de identidade e oferece uma visão mais fluida e inclusiva. Ela reconhece
que as pessoas podem carregar múltiplas identidades que não se limitam a
categorias predefinidas, e que essas identidades muitas vezes se sobrepõem
e interagem de maneiras diversas.
A proposta deste artigo é, então, apresentar uma análise semiótica peir-
ceana que discute um post, que se manifesta semioticamente como meme,
e suas interações nos comentários. O trabalho persegue, assim, os efeitos
de sentido que se desencadeiam a partir do post e como o signo funciona,
abrindo possibilidades tanto para a mercantilização da causa política repre-
sentada nas redes sociais, com foco na tendência chamada de “Selfie Politics”
ou “Política-Selfie”, quanto para a desidentificação. A partir das conclusões

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da investigação semiótica, o estudo pretende também considerar se o con-
ceito de desidentificação se associa (se anulando, ou criando ambivalências)
ao fenômeno da “Política-Selfie” que, como destacado, tende à superficiali-
dade e ao desvirtuamento do engajamento político efetivo.

1.1 Política-Selfie e desidentificação: o engajamento virtual dos


sujeitos
Com frequência, as plataformas digitais fortalecem identidades já estabe-
lecidas e encorajam a adesão a categorias simplificadas. Entretanto, even-
tualmente, é possível observar também a existência de manifestações nas
quais sujeitos minoritários se engajam a fim de sobreviver em ambientes
especialmente inóspitos, ao mesmo tempo em que trabalham para subver-
tê-los. Portanto, tanto como um arcabouço teórico quanto como uma prá-
tica performativa, a desidentificação se apresenta como uma ferramenta
especialmente importante para compreender outras camadas de significa-
dos e efeitos possíveis dos memes, ou posts de engajamento político que se
manifestam como tais.
A desidentificação é uma prática de performance caracterizada por con-
tornar os padrões de identidade hegemônicos e já naturalizados, utilizando-
-os para desenvolver abordagens de identificação alternativas. A desidentifi-
cação representa um método de enfrentamento das ideologias dominantes
no qual, ao vez de se integrar ou se opor rigidamente a elas, atua de maneira
simultaneamente consonante e contrária. Utilizar a imagem de um objeto
normalizado para infundir-lhe um novo significado e transmitir uma men-
sagem sobre valores individuais, identidade ou ética, constitui um método
estratégico para expressar e reagir às subjetividades confinadas a estrutu-
ras de poder. O exemplo visual a seguir (Figura 1) explicita a definição, ao
revelar um signo tradicional da cultura pop infundido com novos signifi-
cados que, neste caso, apontam para uma crítica ao modelo econômico do-
minante no Brasil atualmente.

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figura 1. Meme da página de Instagram Meme expropriados. Fonte: https://www.instagram.com/p/
CztaKUFKrje/?igshid=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D, Acesso em 21 de novembro de 2023

Conforme afirma Muñoz (1999, p. 31), desidentificação é sobre recicla-


gem e repensar o significado codificado. O processo de desidentificação em-
baralha e reconstrói a mensagem codificada de um texto cultural de uma
forma que expõe as maquinações universalizantes e excludentes da mensa-
gem codificada e recircuita seu funcionamento para explicar, incluir e ca-
pacitar identidades e identificações de minorias. Assim, a desidentificação é
um passo além de abrir o código da maioria; passa a usar esse código como
matéria-prima para representar uma política ou posicionalidade sem poder
que foi tornada impensável pela cultura dominante.
A análise semiótica desses fenômenos revela múltiplas camadas de signi-
ficado. O estudo parte da compreensão de que a imagem nas redes sociais é
um signo que transcende seu valor estético, representando e sendo afetado
por objetos do mundo real. A semiótica permite analisar o meme no pro-
cesso de construção de identidade para além do debate essencialista vs. an-
ti-essencialista, permite compreender a identidade “como um local de luta
onde disposições fixas se chocam com definições socialmente constituídas”
(Muñoz, 1999.p.6).
À maneira de Santaella et all (2011), trata-se aqui de olhar para um proces-
so de linguagem frente a frente e ir «desfolhando passo a passo suas camadas
de sentido e sua densidade de significações”. Nesse sentido observamos que,

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como camadas de sentido, um mesmo signo pode produzir efeitos aparen-
temente opostos como, por um lado, a diluição do propósito das respectivas
causas em um individualismo estético, central da Política-Selfie. Qualquer
que seja a causa política, é a posição do indivíduo (de sua arte, ou de sua pró-
pria imagem) que se destaca. Por outro lado, de acordo com Muñoz, (1999,
p.5) “A ficção da identidade é aquela que é acessada com relativa facilidade
pela maioria dos assuntos majoritários. Os sujeitos minoritários precisam
interagir com diferentes campos subculturais para ativar seus próprios sen-
tidos de si mesmos”
Portanto, a tendência descrita não se restringe ao indivíduo auto-midiati-
zado com seu próprio dispositivo de produção de imagens. E o conceito de
desidentificação pode contribuir para o desenvolvimento de entendimentos
mais dinâmicos e complexos das ‘identidades’ que se forjam nas semioses
das redes sociais, e em especial através dos memes. Dessa forma, o estudo
apresenta duas camadas contraditórias no objeto de análise: Política-Selfie
e desidentificação. A proposta é trabalhar, conforme afirma Muñoz, “pre-
cisamente no ponto em que os discursos de essencialismo e construtivismo
fazem curto-circuito” (Muñoz,1999, p. 6). A análise semiótica de uma ima-
gem de perfil militante no Instagram torna-se central para o estudo, uma vez
que a semiótica consegue apontar exatamente os objetos os quais os signos
representam, e os interpretantes possíveis.
Para comprovar que a imagem produz um certo tipo de interpretante
específico (consensual e aceito por uma comunidade), será necessário tam-
bém analisar o discurso dos internautas na caixa de comentários do post que
abriga a imagem, para se provar (ou rejeitar) a hipótese de que esse discur-
so se baseia nas semioses de secundidade, demonstrando apenas o reforço
de padrões de pensamento pré-estabelecidos, e validando o perfil social do
autor do post.

1.1.2 O perfil militante: posts e páginas de redes sociais


Em relação ao termo “perfil militante”, é necessário qualificar que tipos de
perfis podem ser enquadrados neste tipo geral. Analisando-se o ecossiste-
ma de perfis digitais alinhados a uma política progressista (ou de esquerda e
esquerda-liberal1), é possível notar que existem três tipos de perfis: 1. perfis
oficiais de partidos políticos, organizações da sociedade civil (ONGs, mo-
vimentos sociais, cooperativas, etc) e de personalidades políticas (com ou

1 Lista de blogs e portais alternativos de notícia e opinião política alinhados, genericamente,


à esquerda: https://clinicasdotestemunhosc.weebly.com/uploads/6/0/0/8/60089183/aula_
8-lista_de_blogs_e_portais.pdf.

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sem cargos efetivos); 2. perfis de caráter jornalístico e noticioso, que apos-
tam também em conteúdos opinativos e militantes; 3. perfis de conteúdos
supostamente espontâneos, tais como memes, videos-virais, ilustrações,
sátiras, etc.
Da primeira categoria, é possível afirmar que alguns partidos políticos
e movimentos sociais (casos, por exemplo, de PT e MST) utilizam recursos
privados, ou de fundo eleitoral, no caso dos partidos, para a manutenção de
uma gestão profissional permanente de redes sociais. Boa parte dos casos
identificados por este estudo possuem uma rotina de publicações constan-
te e forte padronização nas peças gráficas divulgadas. A segunda categoria
também recorre a financiamentos privados, e mantém a mesma lógica de
manutenção permanente de conteúdos, com padronização gráfica. É a par-
tir da terceira categoria, portanto, que se identificam características supos-
tamente orgânicas, destinadas a produzir nos espectadores a sensação de
espontaneidade e liberdade editorial. Embora isso possa ser ilusório, inte-
ressa, por ora, eleger a terceira categoria de perfil militante como mais ade-
quada à análise que se segue.
Dentre estes perfis supostamente espontâneos, há muitos que se apre-
sentam como vitrines de artistas gráficos e designers. São perfis de artistas
como Laerte Coutinho2 e Cristiano Serqueira3, dentre muitos outros, que
utilizam suas páginas nas redes sociais para divulgar seus trabalhos. Nota-se,
no entanto, que seus feeds acabam distanciando-se do objetivo de divulgar
o trabalho artístico, servindo como referências de uma espécie de “arte-vi-
ral”. Cristiano Siqueira, autor da ilustração que será estudada a seguir, pro-
duz ilustrações que atingem altas marcas de compartilhamentos, curtidas
e interações. A página do ilustrador no Instagram possui mais de 120 mil
seguidores, e milhares de curtidas em cada post. O artista foi responsável
por imagens que se notabilizaram pela viralização intensa, em períodos de
disputas políticas marcadas pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Cristiano também engajou-se fortemente na campanha eleitoral de 2022,
e hoje já produz peças (muito provavelmente pagas4) para o atual Governo
Federal, comandado por Luís Inácio Lula da Silva.
É um dos posts de Cristiano Siqueira que será estudado a seguir. Trata-se
de uma imagem produzida na esteira da chacina do Jacarezinho, ocorrida em

2 Home page oficial: https://laerte.art.br/


3 Portfolio oficial: https://crisvector.myportfolio.com/
4 Esta pesquisa não encontrou evidências de que tais peças sejam comercialmente enco-
mendadas pelo Governo Federal

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6 de maio de 2021. Na ocasião, uma operação da Polícia Civil resultou em 29
pessoas mortas. Nem todas, obviamente, associadas ao crime organizado. O
caso teve repercussão internacional, sendo a ação policial condenada por di-
versas organizações ligadas aos Direitos Humanos. Até hoje, trata-se da ação
policial mais letal da história da cidade do Rio de Janeiro. Imediatamente,
o caso passou a ter repercussão na internet, com as disputas polarizadas
que caracterizam a comunicação nas redes.O post estudado a seguir foi pu-
blicado apenas um dia após o acontecido, alcançando até a presente data5
, 25.096 curtidas, e 257 comentários.

figura 2. Ilustração Cris Vector. Fonte: Instagram @crisvector6

2. Análise semiótica
A análise será feita a partir do post referido anteriormente. Dele, foi retirada
a ilustração que o compõe (figura 3). O primeiro passo da análise é identifi-
car a imagem em questão como um signo, sob a ótica da semiótica peircea-
na. Para Peirce (CP, 2228), o signo é um representamen, que representa algo
para alguém (em alguma medida ou capacidade), e que cria em sua mente
outro signo, mais desenvolvido (um interpretante). Esta ordem apontada
na definição já apresenta a estrutura triádica do signo-objeto-interpretante.

5 Post: https://www.instagram.com/p/COkjVLDld2T/?igshid=YmMyMTA2M2Y=. Acesso


em 9 de março de 2023.
6 Link: https://www.instagram.com/p/COkjVLDld2T/?igshid=YmMyMTA2M2Y=. Acesso
em 9 de março de 2023.

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A partir desta tricotomia geral, Peirce encontra 10 classes de signos, e os
divide em relações de primeiridade (o signo em si), secundidade (o signo
em relação ao objeto) e terceiridade (o signo em relação ao interpretante).
A análise considera, portanto, as ordenações triádicas e as classes de
signos, para construir um percurso que parte das definições do signo nas
dimensões: 1. Qualitativa-icônica: possibilidades de sentidos; 2. Singular-
indicativa: indicações; 3. Convencional-simbólica: crítica e argumento. Para
embasar a análise proposta é necessário, antes, ressaltar o contexto que pos-
sibilitou a produção e difusão da imagem.

2.1 O post como signo


O post refere-se a dois elementos externos importantes: a ação policial na
favela do jacarezinho e a capa do single “Girl From Rio” da cantora Anitta,
lançado dias antes do ocorrido na favela do Jacarezinho. Enquanto o pri-
meiro elemento parece ser o principal objeto o qual o post pretende des-
tacar, é o segundo que se destaca, em função das propriedades estéticas da
imagem que suscitam a todo tempo a referência, como em uma espécie de
sátira política. O ilustrador utiliza as mesmas cores que se encontram na
capa do single, e segue um padrão realista de representação, traduzindo em
ilustração a montagem fotográfica da imagem original referida.

figura 3. Capa do single de “Girl From Rio”, de Anitta. Fonte: Wikipedia7

7 https://pt.wikipedia.org/wiki/Girl_from_Rio

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2.1.1 Qualisigno icônico: Possibilidades de sentido
O primeiro exercício a ser empreendido na análise do signo (figura 3) é o
de identificar suas qualidades constitutivas. Deve-se buscar um olhar ante-
rior a qualquer tipo de definição, para a apreensão das propriedades mais
elementares da imagem. O Qualisigno, para Peirce (1903), é o signo que é
uma qualidade. Em relação ao objeto, o Qualisigno compõe o Ícone, que é o
signo que representa seu objeto por semelhança. São as qualidades básicas,
portanto, que orientam a definição do Qualisigno para o posterior aponta-
mento dos objetos.
Nota-se, a partir disso, que a imagem é composta por um fundo vermelho
chapado. Há um objeto ilustrado centralizado na imagem (uma espécie de
veículo, com um grande painel e a parte dianteira), nas cores azul, verme-
lha, preta e amarelo mostarda. O objeto ilustrado apresenta ícones tipográ-
ficos, em fonte branca pontilizada, no alto e no painel. O painel do objeto
central possui 8 buracos. Na frente do objeto central, também ilustrado, há
um objeto menor azul, com manchas vermelhas que “respingam” na super-
fície do objeto central. Os dois objetos ilustrados dividem o primeiro plano
da imagem, ambos centralizados sob o fundo vermelho. Na parte inferior
da ilustração vê-se uma mancha preta.
Em relação aos objetos, nota-se que cada um dos qualisignos descritos
acima se comportam como ícones, representando algo por similaridade. O
objeto central assemelha-se a um ônibus, com uma sombra preta no chão.
O objeto menor, centralizado, representa uma cadeira. Os buracos no pai-
nel assemelham-se a marcas de tiros. O vermelho na cadeira assemelha-se
a manchas de sangue. Enquanto os elementos mais delineados da ilustração
representam objetos a princípio evidentes, há elementos de pura qualidade
na imagem, como o fundo vermelho chapado, que parece apenas apresen-
tar uma possibilidade muito ampla de leitura, não sendo um signo direta-
mente associado a um objeto específico. É importante lembrar que, por se
tratar de uma ilustração, em teoria há a predominância da iconicidade, já
que toda ilustração representa algo por semelhança, e este algo não é ne-
cessariamente um existente. Neste sentido, para que os qualisignos se cor-
porifiquem e representem algo objetivamente, eles deverão ser analisados,
no próximo item, na secundidade, como existentes.
Em relação aos interpretantes, prevalece na primeiridade uma abertura de
sentidos. Os signos remáticos, que partem de uma mera conexão qualitati-
va e aberta no Qualisigno Icônico Remático, representam uma abertura em
relação aos interpretantes que podem ser associados ao signo central ana-
lisado. Afastada de seu contexto específico de publicação e das referências
que orientam sua leitura, a ilustração é uma possibilidade, que pode induzir

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os intérpretes a diversas conclusões diferentes. Prevalece na primeiridade,
portanto, a potência de sentidos suscitada pelo traço realista da ilustração,
pelas cores e pela disposição dos objetos na imagem.

2.1.2 Sinsigno indicial: Indicações


O Sinsigno, para Peirce (1903) é o existente que é um signo. É uma coisa ou
evento existente, portanto, que atua como signo. O Sinsigno é formado por
qualisignos, que o compõem em sua corporificação. Neste caso, o existen-
te é a própria imagem: a ilustração, apresentada em um post de rede social.
Em relação ao objeto, este Sinsigno apresenta o Índice. O Índice representa
um objeto por ser efetivamente afetado por ele, e neste sentido, é integrado
pelos ícones citados no item anterior. O Índice não representa, no entanto,
seus objetos por semelhança, mas por ser afetado por eles. O que significa
dizer que os elementos indiciais da imagem servem apenas como indicati-
vos gerais de seus objetos, uma vez que eles podem se associar tanto à refe-
rência original (a capa do single da cantora Anitta) quanto à tragédia ocor-
rida no Jacarezinho.
Os existentes indiciais, portanto, são: o veículo ilustrado; as indicações
dos visores no painel (“Jacarezinho”, que se refere ao local e “25”, que se re-
fere à quantidade de vítimas identificadas até então8); a cadeira com sangue;
os buracos de bala. Todos estes índices são afetados pelo evento ocorrido
no Jacarezinho, enquanto a ilustração é, generalizadamente, um Índice afe-
tado por outro objeto existente (a capa do single). Este “duplo vínculo” ga-
rante ao signo uma ambiguidade, uma vez que ele se refere, indicialmente,
a dois objetos existentes. A resolução desta ambiguidade só se dará quan-
do da análise dos interpretantes. Em relação a estes, se predomina, na pri-
meiridade, a abertura de sentidos possibilitada pelos elementos qualitativos
(interpretantes remáticos), na secundidade as indicações são determinan-
tes em se apontar um existente real. O signo dicente será responsável por
afirmar algo em relação aos objetos referidos pelos sinsignos indiciais. Este
algo, entretanto, só poderá ser analisado no contexto da recepção do signo.
Isto é, na análise de como a imagem do post é interpretada em seu âmbito
afirmativo, pelos usuários de internet que estruturam seu contato com ele
através do Instagram.

2.1.3 Legisigno simbólico: Crítica e argumento


A imagem analisada apresenta uma série de signos convencionados. Tais
signos são os lesiginos, ou signos que são leis estabelecidas por convenção.

8 Até a data de publicação do post, 7 de maio de 2021.

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É o caso da ilustração central, que representa, por convencionalidade, um
ônibus, e do objeto menor, que representa, também por convenção, uma
cadeira. No signo em relação ao objeto, observa-se que o Símbolo repre-
senta seus objetos por virtude de leis e associações gerais, que vinculam sua
interpretação a outros signos já convencionados. No exemplo estudado, a
imagem de referência (figura 4) atua como Símbolo, e também o ônibus do
modelo Apache Vip IV, da auto viação Jurema, um elemento comum e fa-
cilmente identificável para os moradores da cidade do Rio de Janeiro9. Os
escritos no painel do ônibus também representam convencionalidades li-
gadas aos layouts de linhas de ônibus urbanas, e atuam como legisignos. O
signo geral (figura 3) é composto, portanto, de legisignos simbólicos, que
carregam associações com contextos externos.
A terceiridade também se manifesta na forma como estes legisignos e
símbolos se conectam a outras classes de signos para a construção de pos-
sibilidades e indicações (respectivamente em primeiridade e secundidade).
É o caso do Legisigno Simbólico Remático, que irá criar associações entre
os contextos para produzir uma abertura de sentidos apenas no interpre-
tante, e do Legisigno Simbólico Dicente, que irá indicar uma determinada
afirmação e fazer com que o signo se manifeste como uma proposição em
determinado contexto de recepção. Em relação aos interpretantes, para ad-
quirir terceiridade, é necessário que o signo seja decomposto e analisado
em um processo crítico e argumentativo, fato que não se verifica, como se
verá a seguir, na análise das caixas de comentários do post.
É importante também ressaltar que, independentemente da alusão que o
signo faz à capa do single de Anitta, é possível que intérpretes que não car-
reguem esta referência atenham-se exclusivamente à referência que o signo
traz à chacina do Jacarezinho. Destaca-se aí que são os sinsignos indiciais
que se apresentam como determinantes, uma vez que a ilustração refere-se
a seus objetos por indicação, apontando para os existentes que determinam
a leitura. A associação da figura 3 com a temática da violência urbana não
surge do contato «isolado», orientado pelas qualidades da imagem, mas em
uma relação de indicação (na secundidade, portanto). A terceiridade só é de-
terminante quando se conjuga aos dicentes no interpretante, para revelar os
legisignos simbólicos que produzem as associações com os contextos apre-
sentados (os eventos aos quais o signo se refere). Decodificados estes con-
textos, a imagem, disposta em um post específico no Instagram, condiciona

9 Curiosidades dos bastidores que revelam a locação e o aspecto simbólico do modelo es-
pecífico de ônibus: https://onibusetransporte.com/2021/04/27/cenario-de-foto-de-single-
-de-anitta-frente-de-apache-vip-iv-viraliza-na-internet/. Acesso em 13 de abril de 2023.

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sua leitura e transmite uma afirmação de tipo particular, que associa os con-
textos referidos icônica e indicialmente ao absurdo da violência urbana. Essa
temática central é, portanto, o dicente que foi indicado no item anterior. O
signo parece se revelar como uma espécie de mensagem de protesto, por se
referir (ainda que apenas a partir de associações convencionadas) à estupe-
fação diante de uma chacina policial. A seguir, a análise dos comentários
do post pretende reforçar a presente descoberta.

2.2 Comentários de rede social: reforço de ideias e signo dicente


Pretende-se aqui mostrar como os interpretantes apresentados pelos co-
mentadores reforçam a informação que o signo transmite. À primeira vis-
ta, é feita uma associação do signo com o horror da violência urbana e das
ações policiais. Temáticas como a do racismo e da arbitrariedade da “guer-
ra às drogas” também entram em pauta. Seja como for, o post parece ativar,
como descrito anteriormente, uma associação muito direta, que não de-
monstra nuances interpretativas por parte dos comentadores. Até a presente
data (março de 2023), registam-se 257 comentários, divididos em 3 tipos. O
tipo 1 é de “reforço”: trata-se de mensagens que validam a ilustração, com
emojis, elogios ao autor ou reforço ao absurdo que o signo supostamente
denuncia. O tipo 2 é “contraditório”: trata-se de comentários que zombam
da ideia de chacina, relativizando a violência perpetrada pela polícia. O tipo
3 é “aleatório”: trata-se de marcações de outros perfis, ou comentários to-
talmente descolados da temática exposta pelo post. O gráfico abaixo (figu-
ra 5) organiza as ocorrências: “reforço”- 216 ocorrências; “contraditório”- 4
ocorrências; “aleatório”- 37 ocorrências.

figura 4. Gráfico pizza de organização das ocorrências. Fonte: Os autores)

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Nota-se que a enorme maioria dos comentários serve como validação
de uma interpretação praticamente consensual: a de que o signo representa
uma mensagem que revela o absurdo da violência policial, como hipoteti-
zado. Neste sentido, mesmo os comentários do tipo “contraditório” validam
a interpretação, uma vez que reconhecem a violência policial, mas a defen-
dem. A ideia, portanto, de se tratar de uma imagem de protesto em relação
a uma situação absurda, violenta e desnecessária, se destaca nas interpreta-
ções observadas, por sua vez, a partir de outros signos. Percebe-se aqui um
ciclo de semioses de secundidade. O post transmite aos comentadores uma
mensagem específica, à qual se reage, em geral, de maneira redundante, com
outras mensagens: apoio ao artista, emojis que representam tristeza, estu-
pefação ou acerto do artista, etc. O caso dos emojis é interessante, pois re-
vela que símbolos icônicos podem atuar como índices dicentes, indicando
concordância com a mensagem transmitida pelo signo naquele contexto.
O dicisigno é, para Peirce (1904), uma espécie de proposição, que pode
ser verdadeira, falsa ou sem sentido. No percurso dos interpretantes anali-
sados, a própria separação dos comentários em três tipos revela alinhamen-
to às definições teóricas do signo dicente: os comentários funcionam como
“reforço” (verdadeiro), “contraditório” (falso) ou “aleatório” (sem sentido).
Parece haver, na leitura de uma imagem no contexto da rede social analisada,
apenas uma opção de interpretante (o dicente), que reduz as demais leituras
possíveis a três opções bastante delimitadas. Embora existam 4 comentá-
rios que fazem alusão ao single de Anitta, estes funcionam como reforços,
pois consideram a apropriação dos elementos estéticos do Símbolo (a capa
do single) como inteligente e apropriada. Estes comentários transparecem
a ideia de que o artista teria se utilizado de uma peça que representa a cida-
de do Rio de Janeiro para mostrar a “verdadeira” cidade, marcada não por
signos da cultura pop, mas por signos que representam a violência urbana.

2.2.1 As limitações e contradições do post militante


Eis porque o post militante pode reduzir a complexidade dos fenômenos ao
utilizar referências “fechadas”. O single de Anitta, que se utiliza de sampler
de “Garota de Ipanema”10, traz em sua capa elementos de um Rio de Janeiro
suburbano, com referência ao Piscinão de Ramos e às linhas de ônibus que
percorrem os bairros mais pobres da cidade. O título da música em inglês
ajuda a construir, juntamente com a letra da própria canção, a ideia de ex-

10 Até hoje, a segunda canção mais gravada do mundo. A obra, de Tom Jobim e Vinicius de
Morais, tornou-se um Símbolo brasileiro internacionalmente reconhecido. https://oglobo.glo-
bo.com/cultura/garota-de-ipanema-a-segunda-cancao-mais-tocada-da-historia-4340449.

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portação de um Rio de Janeiro bem mais “real”, e diferente daquele inge-
nuamente idealizado por Vinícius de Morais e Tom Jobim. Ainda que não
se reconheça na canção tal potência interpretativa, a imagem que compõe a
capa do single é acertada na missão de propor novos símbolos para a capital
fluminense, já demasiadamente representada pelas belezas que circundam as
áreas mais nobres da cidade, e pela violência que se associa às menos nobres.
A complexidade deste contexto é totalmente descartada pela ilustração ana-
lisada, que parece transformar símbolos que a capa do single tenta promover
como tradicionais (e quem sabe até turísticos) em representações de uma
violência, supostamente inata e inescapável ao subúrbio do Rio de Janeiro.
Além disso, nota-se que, ao se vincular por força das convenções ao even-
to na comunidade do Jacarezinho, a ilustração apresenta uma ambivalência
fundamental. A imagem se apropria das cores relativamente festivas e cla-
ras da capa do single. Não fossem alguns índices vinculativos fortes (como
as marcas de tiro e as manchas de sangue), seria possível para qualquer in-
térprete encarar a imagem até com uma certa sensação de leveza. Mesmo
o fundo vermelho, provavelmente escolhido para dar um “peso” à imagem,
associando-a ao sangue derramado na chacina, poderia abrir espaço para
outras sensações e interpretações, em função do impacto que a cor exerce
como Qualisigno. Os traços arredondados da ilustração também operam
como qualisignos que poderiam facilmente levar o intérprete a outras con-
clusões, de caráter positivo.
Nota-se que são os elementos vinculativos que permitem a quase unanimi-
dade de leitura observada nos comentários. Transformar os legisignos sim-
bólicos e qualisignos icônicos em dicentes vinculativos parece ser a grande
função da peça analisada, que enquanto post de protesto funciona tão bem
quanto uma frase de efeito: associa-se ao objeto desejado, mas de maneira
tão superficial que não é possível sequer propor uma leitura alternativa, ou
uma ação vinculada que transforme o contato com o signo em uma expe-
riência efetivamente política. A função da peça parece ser exclusivamente a
de reforçar a indignação diante da ação policial do Jacarezinho, excluindo
dos interpretantes qualquer tipo de juízo crítico que permita ao intérprete
adquirir conhecimento emancipatório sobre o evento ocorrido.
O signo se comporta, assim, como um conteúdo viral semelhante a um
meme, acessando ideias pré-determinadas aceitas por uma audiência orga-
nizada virtualmente. O que delimita as leituras são as semioses: o repertó-
rio de um determinado grupo de intérpretes, que se depara com o signo em
um contexto que não deixa espaço para ações de ordem política. O reforço,
que se configura em aceitação à mensagem, é obtido pelo menos através
de duas instâncias existentes na rede social analisada (Instagram): os likes

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(que chegam às dezenas de milhares) e os comentários de reforço (que re-
presentam, como demonstrado, mais de 80% das interações registradas no
post textualmente). O que define um post viral é justamente a capacidade
que ele apresenta de acumular interações. Embora essas métricas não sejam
publicamente divulgadas, imagina-se que um post performa melhor (isto é,
aparece mais vezes para mais usuários) quanto mais interações de reforço
ele consegue acumular em menos tempo.
Sob qualquer tipo de métrica, é possível admitir que o post estudado é
bastante aceito. Funciona, através das referências que faz, como um signo
que se vincula a eventos controversos e atuais. Publicado no calor da chaci-
na do Jacarezinho e do lançamento do single de Anitta, o post se beneficia
da imensa repercussão que os eventos tomaram, na “disputa” algorítmica
que caracteriza o acesso às mensagens em uma rede social. Outra evidên-
cia do vínculo são as hashtags utilizadas no texto do post11. Em tese, a busca
por determinadas palavras-chave reúne posts que se referem a um mesmo
tema ou evento. Apesar deste vínculo, curiosamente, o comentário que pa-
rece em destaque quando se acessa o post sem estar “logado” na plataforma
é um do tipo “contraditório”, e revela claramente a polarização produzida
por este tipo de conteúdo nas redes. O comentário, do usuário dosanjos87,
diz: “Traficante bom, é traficante no inferno. Tá com pena leva pra casa e
cria” (sic).
Como os comentários de tipo “contraditório” representam apenas 4 dos
257 do post, é curioso que seja exatamente este o comentário destacado
pela plataforma. Certamente, ele não se destaca dos demais por relevân-
cia em um contexto que, massivamente, endossa a mensagem transmiti-
da pela publicação. É cabível inferir que a plataforma, cujos critérios de
ordem de visualização não são claros, prioriza o contraditório ao apre-
sentar publicações para usuários não identificados com uma conta re-
gistrada. Daí a sensação de que a polarização política, muitas vezes re-
ferida por analistas como uma das crises da política nacional atual12
, pode ser de alguma maneira inflada, ou superficialmente destacada pelos
próprios algoritmos das redes. Todo este contexto contribui para a recepção
acrítica do post. As suas intenções políticas, de alguma maneira, perdem-
-se em meio a um processo viciado de produção e recepção de conteúdos.

11 Texto do post: "Chacina em Jacarezinho com 25 mortos. #brasil #riodejaneiro #chacina-


dojacarezinho #chacina #jacarezinho #crime #direitoshumanos #designativista"
12 É necessário combater o "clichê" da polarização, com dados concretos, como no arti-
go: https://www.cesop.unicamp.br/vw/1I8LyTqswNQ_MDA_32722_/6.%20Existe%20
Polarizacao%20no%20Brasil.pdf.

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No entanto, apesar do reforço produzir, por um lado, um esvaziamento
do debate e uma suposta inocuidade de ação política efetiva, há que se des-
tacar que as marcas de engajamento associadas ao post revelam um “coro”
convergente em relação à mensagem supostamente veiculada por ele. Isto é,
para a plataforma (o Instagram) o conteúdo de Cristiano Siqueira represen-
ta apenas uma mercadoria portadora de métricas de engajamento, que são
transformadas pela empresa em valor. Por outro lado, os leitores (usuários
da plataforma que se engajam com o post) apresentam em seu reforço uma
solidariedade em relação à chacina a qual a ilustração do designer alude.
Nesta contradição, é explícita uma ambivalência, que revela que o post mi-
litante, mesmo quando perde seu efeito combativo e de crítica efetiva, ainda
assim é capaz de engajar milhares de sujeitos sensibilizados por situações
políticas corriqueiras e revoltantes acontecidas no Brasil todos os anos. Seria
o caso, portanto, de uma espécie de desidentificação, revelada por ações di-
gitais perpetradas pelos usuários para manifestar descontentamento diante
de situações de opressão. Neste sentido, compreende-se como o conceito de
Muñoz (1999), ao menos idealmente, se manifesta no engrossar do coro de
um público que deseja manifestar sua indignação a partir do consumo e do
compartilhamento de conteúdos que possuam uma intenção crítica. Ainda
que a crítica não seja, exatamente, obtida pelo autor na imagem analisada.

3. Considerações Finais
Embora os critérios de rankeamento e priorização de conteúdos na platafor-
ma estudada sejam parcialmente desconhecidos, é possível observar alguns
efeitos práticos a partir da análise. A referência a temas de repercussão social
acentuada parece ser determinante para o sucesso de uma publicação. Mas
também a forma do conteúdo, com as propriedades semióticas e semioses
proporcionadas, é fundamental para obtenção de uma comunicação efeti-
va, com aderência por parte de uma audiência. Esta aderência, que se re-
vela em forma de concordância, faz parte da construção do perfil social do
autor do post viral. Cabe lembrar que a publicação faz parte do perfil de um
ilustrador e “designer ativista” (como ele próprio se denomina), que possui
um público coeso e numeroso dentro da plataforma estudada, o que pode
contribuir para que suas publicações sejam entregues com mais frequência
na lógica algorítmica do site.
Tudo isso se conecta com o conceito, ainda incipiente, de Política-Selfie.
A ideia-conceito não diz respeito exclusivamente ao retrato narcisista de
um indivíduo diante de um protesto político, mas à reverberação de te-
mas políticos a partir de uma espécie de espetacularização individual, que
parte de perfis reconhecidos e utiliza linguagens amplamente aceitas. Um

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elemento importante a se destacar, a esta altura, é como o artista anali-
sado utiliza a rede para alimentar, justamente, um perfil social, que exis-
te exclusivamente para aquela plataforma (no caso, o Instagram). Uma
observação dos trabalhos do artista revela que seu portfolio13 é bastante
diferente de seu feed na rede. Como ilustrador, Cristiano Siqueira é um
profissional consolidado, tendo trabalhado para grandes empresas como
Rolling Stone, Revista Playboy, ESPN, Nike, Gilette, entre muitas outras14
. Como perfil social, no Instagram, o mesmo profissional dispõe obras que
possuem um caráter eminentemente político, com ilustrações que se referem
quase que exclusivamente a temas relevantes da política nacional.
Percebe-se que há uma cisão entre o trabalho profissional, consolidado
em outras esferas, e o perfil social meticulosamente construído para alcan-
çar um certo tipo de engajamento na rede social. A percepção (ainda que
acidental ou incipiente) do artista de que os conteúdos que funcionam na
rede social são muito diferentes daqueles exibidos comercialmente em outros
contextos, é acertada, embora revele uma dissonância central. A constru-
ção de um perfil social específico para o Instagram, baseado em ilustrações
que se referem a temas controversos e de grande repercussão, transforma o
feed do artista em um produto ainda mais comercial do que as obras que o
mesmo produz para clientes fora das redes. Ressalta-se que este não é um
julgamento sobre a qualidade do trabalho do artista, mas antes uma refle-
xão sobre como a produção de valor a partir de perfis sociais em uma rede
social pode ser ainda mais comercial do que uma relação de troca comer-
cial tradicional.
As redes sociais produzem valor a partir dos dados inseridos pelos hábi-
tos de navegação dos usuários. A condição principal para esta valoração é a
presença (quanto mais constante melhor) do usuário dentro da plataforma.
É a ideia, já bastante trabalhada, do engajamento (Eyal, 2014) como estra-
tégia de monetização. Quanto mais dados relevantes os usuários inserem,
mais preciso é o processo de venda de anúncios. Neste contexto, perfis que
possuem grande número de seguidores e que mobilizam constantemente
este público em interações, provavelmente possuem um valor maior para a
rede social. Mesmo que o artista em questão (Cristiano Siqueira) não uti-
lize seu próprio perfil para monetizar os conteúdos de outras formas, seu
perfil é uma vitrine e um ponto de convergência de engajamento para mi-
lhares de usuários.

13 Obras apresentadas no endereço: https://crisvector.myportfolio.com/featured-1


14 Lista de clientes do profissional: https://crisvector.myportfolio.com/about

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Um dos objetivos centrais deste estudo é justamente mostrar como o con-
texto econômico que orienta a ação das plataformas das redes sociais pode
interferir no tipo de conteúdo produzido para elas. Ainda que o artista es-
tudado não produza racionalmente conteúdos para engajamento, as obras
que ele exibe no Instagram demonstram claramente um alinhamento com
o tipo de conteúdo que alcança marcas similares na mesma rede. As pro-
priedades semióticas da criação estudada revelam como o artista se vale de
eventos externos de grande repercussão para indicar objetos específicos e
atingir interpretantes consensuais, que ativam nos intérpretes ações de re-
forço e validação. É provável que o artista não perceba o quanto suas obras
são moldadas para se adequar aos ditames da plataforma, mas os efeitos
práticos desta adequação são metrificados pelos índices de engajamento de
seus posts. O que, de alguma maneira, faz com que o artista siga produzin-
do trabalhos nesta lógica de feedback, onde o engajamento obtido reforça o
“acerto” do artista em efetivar uma comunicação.
O círculo vicioso observado submete as criações na rede a um conjunto
de linguagens e recursos semióticos extremamente limitados, que são aces-
sados em detrimento de uma "abertura" de sentidos capaz de promover re-
flexão, debate e impacto político. O aspecto mais contraditório do processo
estudado é, portanto, o fato de que o conteúdo de uma militância virtual
pode representar, a um só tempo, esvaziamento de ação política efetiva e
desidentificação aditiva. Enquanto as plataformas e perfis se promovem a
partir de conteúdos polarizadores e de cunho político, os usuários se rela-
cionam com tais conteúdos de maneira ativa, expressando sua adesão po-
lítica de maneira absolutamente explícita. Enquanto adesão, as expressões
dos usuários (metrificadas pelas funcionalidades de design das plataformas)
demonstram ao menos o desejo de vinculação a um contexto crítico de em-
bate, resistência e ação política.

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e espetáculo em uma rede social. Rio De Janeiro: Editora UFRJ,
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Como referenciar

RIBEIRO, V.C.; ROCHA, Juliana. Militância e Design na era das


plataformas virtuais: uma análise semiótica da "memeficação" do
engajamento político. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp.
79-101, jan./2024. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/
index.php/arcosdesign.

———

DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.78884

———

A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


Commons Atribuição – Não Comercial – Compartilha Igual 3.0
Não Adaptada.

Recebido em 31/08/2023 | Aceito em 23/11/2023

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arcos design

Fazer coisas é contar histórias: mapeamento


sistemático sobre o conceito de narrativa na
dimensão do design e dos saberes artesanais

Luiza Gomes Duarte de Farias (ufma, Brasil)


luizaduartef@gmail.com

Raquel Gomes Noronha (ufma, Brasil)


raquel.noronha@ufma.br

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 102-122. ISSN: 1984-5596
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign v. 17, n. 1, Janeiro 2024

102
Fazer coisas é contar histórias: mapeamento
sistemático sobre o conceito de narrativa na
dimensão do design e dos saberes artesanais

Resumo: No cenário contemporâneo, discussões para o reconhecimento de


formas localizadas de fazer design surgem como um modo de valorizar os
saberes artesanais e suas relações com visões de mundo e formas de viver
orientadas à autonomia. Sendo assim, este artigo objetivou o mapeamento
teórico sobre o conceito e uso das narrativas em processos de design e de
saberes e fazeres artesanais, por meio de uma Revisão Sistemática de Lite-
ratura (RSL) e seus processos de análise descritiva e síntese crítica dos tra-
balhos acadêmicos coletados. Como resultados, produziu-se um relatório
que levou em conta a forma de incorporação do conceito de narrativa nas
pesquisas, sendo estes: interpretação, fabulação, registros sociohistóricos e
apresentação. Conclui-se que ainda há uma escassez de estudos que abor-
dam a construção de narrativas de modo situado e em correspondência com
as comunidades artesanais.
Palavras-chave: Narrativas, Design antropologia, Saberes e Fazeres Arte-
sanais, Contação de histórias.

Making things is telling stories: systematic mapping of


narratives in the dimension of design and craft knowledge

Abstract: In the contemporary scenario, discussions for the recognition of lo-


calized ways of doing design emerge as a way of valuing craft knowledge and
its relationships with worldviews and ways of living oriented towards auton-
omy. Therefore, this article aimed at the theoretical mapping of the concept
and use of narratives in design processes and in craft knowledge and practices,
through a Systematic Literature Review (SLR) and its processes of descriptive
analysis and critical synthesis of academic works collected. As a result, a report
was produced that took into account the form of incorporation of the concept
of narrative in research, namely: interpretation, storytelling, socio-historical
records and presentation. It is concluded that there is still a shortage of stud-
ies that address the construction of narratives in a situated way and in corre-
spondence with artisanal communities.
Keywords: Narratives, Design anthropology, Craftsmanship, Storytelling

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1 Introdução
Diante do cenário contemporâneo de crise, torna-se necessário a problema-
tização das práticas projetuais e suas abordagens insustentáveis consolida-
das pelos modos de produção capitalistas. Em meio à turbulência causada
pela intensificação de problemas ambientais, sociais, econômicos e culturais,
abordagens contemporâneas vêm refletindo sobre o fazer design como um
modo situado, incorporado e relacional de responder a contextos particu-
lares, por meio da negociação coletiva em torno do projeto de coisas tangí-
veis e intangíveis (Simonsen et al., 2014).
Neste sentido, valoriza-se o reconhecimento dos saberes e fazeres arte-
sanais tradicionais, assumindo a escolha de contar as histórias que foram
paulatinamente ignoradas e invisibilizadas pela modernidade. Isto repre-
senta uma mudança de eixo nos modos de se conceber a prática e pesquisa
em design, situando e engajando a prática de produção de conhecimento
em seu território (Escobar, 2016).
Ao articular processos coletivos de materialização de formas e constru-
ção de significados, o design pode contribuir na construção e contação das
histórias plasmadas no fazer artesanal, promovendo o reconhecimento de
saberes tácitos e a preservação de heranças histórico-culturais. Sendo assim,
este artigo objetiva o mapeamento teórico a respeito da relação entre de-
sign, práticas artesanais e construção de narrativas, através de uma Revisão
Sistemática de Literatura (Obregon, 2017), que visa o levantamento de da-
dos sobre uma certa temática com base em critérios rígidos para revisão de
obras acadêmicas.
Primeiramente, faz-se uma breve reflexão sobre o caráter ontológico das
práticas de design e sua relação com os saberes e fazeres artesanais. Em se-
guida, descreve-se o percurso metodológico, apresentando os critérios e ín-
dices de pesquisa de dados. Por fim, revelam-se os resultados, no que tan-
ge à descrição e síntese derivadas das categorias apresentadas, indicando as
lacunas no estado da arte e os possíveis alcances da investigação.

2 As narrativas que emergem do fazer


Processos, artefatos e sistemas de design são produzidos a partir de deter-
minadas perspectivas e visões de mundos e possuem a capacidade inver-
sa de produzir mundos, isto é, modos de vida que reproduzem formas de
ser, fazer, hábitos, conhecimentos e valores. Esse pensamento se orienta se-
gundo uma perspectiva ontológica do design, pois concebe que ao proje-
tar artefatos, tecnologias ou processos, também projetamos formas de ser
(Escobar, 2016). Na contemporaneidade, autores como Tony Fry (2020)
e Bruno Latour (2020) questionam os modos de produção capitalistas e

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globalizados, refletindo sobre o design como uma ferramenta de negação
de futuros e formas de vida.
Historicamente, a constituição do design como campo de saber acompa-
nhou o ímpeto pelo progresso e pela racionalidade dos processos tecno-in-
dustriais, pautados na separação entre o produtor de conhecimento e objeto
de seu saber (Kazazian, 2005). Na América Latina, tal narrativa foi opera-
cionalizada por meio da profissionalização e institucionalização do design
como um saber especializado que levaria à modernização de aspectos “sub-
desenvolvidos” e “atrasados” dos territórios (Escobar, 2014).
Neste contexto, o design moderno foi instrumentalizado como uma prá-
tica assentada em categorias ocidentalizadas, com a racionalização de seus
processos projetuais, a instituição de universalismos e a simplificação de ele-
mentos oriundos de um complexo tecido social e cultural (Escobar, 2014).
A partir do ponto de vista da subalternidade colonial, vários teóricos ini-
ciam um processo de retomada de epistemologias e práticas localizadas,
superando o caráter ocidental de formas de ser, saber e fazer cultuadas em
vários domínios de conhecimento. (Ballestrin, 2013).
O olhar volta-se, desse modo, para modos de fazer coisas que não se ca-
tegorizam dentro do cânone, mas que possuem, em suas performances prá-
ticas, traços e características que podem se enquadrar como formas loca-
lizadas de projetar. Esses “desenhos outros” ou designs com outros nomes,
como conceitua Gutiérrez-Borrero (2020), aludem à produção de coisas a
partir de uma ontologia pluriversal, que reconhece a existência de diferen-
tes formas de design e busca reconstruir mundos duradouros. Segundo o
autor, esse processo “circunscreve os ressurgimentos de sabedorias depre-
ciadas ou ignoradas como fontes de conhecimento válido no mundo mo-
derno capitalista” (p. 269, 2020).
O saber-fazer artesanal pode ser considerado como uma dessas formas
de desenhos outros, pois está particularmente ligado aos modos de conhe-
cimentos incorporados e locais, que são aprendidos através das relações prá-
ticas e da oralidade entre artesãos e aprendizes (Casciani e Vandi, 2022), o
que dificulta o processo de descrição e formalização e o leva a ser ignorado
(Spinuzzi, 2005).
Além disso, o fazer artesanal inclui a dimensão intangível e simbólica do
ato de produção de artefatos, ou seja, técnicas, conhecimentos, materiais e
modos de fazer que são heranças culturais de uma localidade e comunidade
(Gonçalves, 2013). Conforme Noronha e Abreu (2021), o artefato e o pro-
cesso artesanal tornam-se rastros tangíveis de histórias, que se externam e
se tornam explícitas por meio de sua contação: o modo em que os seus pra-
ticantes valoram e comunicam sobre suas tradições e sua ancestralidade.

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O aprofundamento sobre a dimensão ontológica das múltiplas formas de
designs nos oferece pistas para especular sobre as práticas e os produtos do
fazer como vestígios de narrativas incorporadas, isto é, produzidas por tem-
pos, sujeitos, lugares e relações específicas. Em meio a esse emaranhado, o
design se distingue como um modo de tangibilizar tais histórias em formas
condizentes com os modos de vida, os valores e os sistemas simbólicos das
comunidades artesanais.

3 Abordagem metodológica
Neste estudo, realizou uma revisão sistemática de literatura com o intuito
de localizar trabalhos de cunho teórico e estudos de caso acerca do concei-
to e uso de narrativa na intersecção entre design e artesanato. A RSL ofere-
ce uma perspectiva de mapeamento do estado da arte da área de pesquisa,
com base na aplicação de filtros de buscas em bases de dados reconhecidas
cientificamente (Obregon, 2017). Segundo Castro (2001), a revisão siste-
mática compreende uma verificação planejada, que inicia com a delinea-
ção de uma pergunta específica. A fim de respondê-la, utiliza-se métodos
sistemáticos de identificação, seleção e avaliação crítica de dados contidos
em estudos científicos.
O processo sistemático para produção da Revisão Sistemática de litera-
tura abrangeu as seguintes etapas: a) formulação da pergunta de pesquisa
e palavras-chaves; b) localização e seleção dos estudos em bases de dados
eletrônicas; c) avaliação crítica dos estudos com base nos critérios determi-
nados; d) coleta de dados nos estudos selecionados; e) análise, agrupamento
e apresentação dos dados; f) interpretação dos dados; e g) aprimoramento
e atualização da revisão (Castro, 2001).
A primeira etapa do processo de pesquisa sistemática consistiu na deli-
mitação da pergunta de pesquisa. Portanto, foi estabelecido o seguinte ques-
tionamento: como o design e o fazer artesanal se relacionam aos processos
de construção e contação de narrativas?
Em seguida, foi produzido um protocolo para coleta de dados, identifi-
cando os critérios e parâmetros para a pesquisa, como a escolha das bases
de dados, o tipo de documento, a área de concentração, os idiomas e o pe-
ríodo das publicações.

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figura 1. Protocolo de rsl (fonte: Produzida pela autora)

figura 2. Palavras-chave (fonte: Produzida pela autora)

As palavras-chave (Figura 2) selecionadas para a busca foram: design,


narrativa, história, contação de histórias, artesanato, artesanal e artesã/o.
Cabe ressaltar que os termos foram pesquisados nos três idiomas delimi-
tados e foram consideradas as especificidades referentes ao idioma, como
a existência de sinônimos e variações. Primeiramente, realizou-se a busca
e identificação de dados nas bases no idioma português, inglês e espanhol.
Na base da CAPES, os filtros de busca levaram em consideração a seleção

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dos termos em “Qualquer campo”, “Todos os tipos”, “Qualquer idioma” e
“Últimos 10 anos”. No total, foram identificados 200 artigos.
Já na base da Blucher Proceedings, não há como realizar a “busca avan-
çada” como nas demais plataformas, portanto, foram considerados apenas
a inserção dos termos de busca na barra de pesquisa disponibilizada no site.
Assim, verificou-se a existência de 133 artigos. Por fim, na base de dados
da Oasisbr, a pesquisa dos termos foi gerada com base na configuração dos
seguintes filtros de busca: o termo “design” no “título”, “artigo” como “tipo
de documento” e a definição do período entre “2013 e 2023”. Foram iden-
tificados 58 artigos, no total.
Com base nos artigos identificados, partiu-se para primeira seleção, consi-
derando os critérios de inclusão e exclusão estabelecidos no protocolo da RSL.
Ao fim, foram selecionados 67 artigos na Base CAPES, 16 artigos na Blucher
Proceedings e 12 artigos na Oasisbr. A somatória dos dados deu origem a
95 artigos, que foram analisados de forma mais criteriosa na etapa seguinte.

figura 3. Somatória dos artigos selecionados (fonte: Produzida pela autora)

A partir dos artigos selecionados, partiu-se à etapa de inclusão dos arti-


gos, com base na leitura cuidadosa e na avaliação dos artigos, considerando
os critérios protocolares. Os documentos foram analisados em sua totali-
dade, no entanto, priorizou-se o conteúdo do resumo, da introdução e das
considerações finais.

figura 4. Esquema de inclusão e exclusão dos dados (fonte: Produzida pela autora)

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figura 5. Identificação dos artigos selecionados (fonte: Produzida pela autora)

No esquema acima, especificam-se as informações relativas aos artigos


selecionados, que passaram por um processo de averiguação rigorosa no
que tange a forma como o conceito de narrativa se relaciona com as práti-
cas criativas do design e do fazer artesanal.

4. Resultados e Discussões
Nesta etapa, foi produzida a análise descritiva dos estudos colhidos, os quais
foram ordenados em agrupamentos de acordo com os seus objetivos, mé-
todos, abordagens e resultados. Cabe ressaltar que tais categorizações não
se excluem ou impõem limites epistemológicos, visto a possibilidade de um
estudo se associar a mais de uma das ênfases.

4.1. Interpretando narrativas


O primeiro agrupamento de dados considerou trabalhos que abordaram a
interpretação de narrativas, no que concerne às representações de símbolos,
signos, questões estéticas, discursivas e semânticas de artefatos e processos
artesanais. Vilchis-Esquivel (2019) discerne sobre o caráter retórico e sim-
bólico impresso no artesanato têxtil latino-americano, entendendo o têxtil
como um signo concreto com a capacidade de evocar algo ausente ou intan-
gível. A narrativa associada ao artesanato se distingue por sua capacidade de
construir relações entre a imagem e a materialidade têxtil de modo a pro-
duzir metáforas ligadas aos sentidos míticos e às narrativas sagradas sobre o
surgimento do mundo entre etnias indígenas latinoamericanas. As imagens

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têxteis são, desse modo, analisadas segundo elementos discursivos, como
a presença de metáforas, metonímias, prosopopéia, repetição e sinonímia.
De modo semelhante, Larrea-Solórzano (2019) reflete sobre a transcul-
turação estética e a permeabilidade cultural da produção artesanal do povo
Salasaca, no Equador. Por meio da interpretação dos elementos gráficos pre-
sentes nas tapeçarias nativas, pode-se perceber os processos de mudança que
atravessaram a província de Tungurahu e a atualização dos atributos simbó-
lico-culturais Salasaca através do processo de trocas com agentes externos.
As narrativas visuais impressas nas peças contam processos de apropriação,
ressignificação e rejeição ao processo de transculturação sofrido pelo povo.
No contexto brasileiro, autores como Santos et al. (2022) e Barbosa,
Cavalcanti e Noronha (2022) discutem sobre representações do imaginá-
rio popular e sua relação com o design e o artesanato, examinando como
os discursos e os significados da cultura local são adaptados no processo
de criação artesanal. A figuração desses imaginários no processo criativo
de designers e artesãos se apresenta nos estudos dos primeiros autores, que
examinam os usos e reflexos do repertório visual da região amazônica em
artefatos artesanais contemporâneos. Já Barbosa, Cavalcanti e Noronha
(2022) compreendem o design como uma ferramenta para a análise da nar-
rativa intrínseca ao objeto, tendo como foco as especificidades discursivas
e semióticas dos suvenires artesanais do Alto do Moura - PE. Aqui, as for-
mas antropomórficas e as cenas representadas nas peças contam memórias
e histórias comuns ao cotidiano da localidade, que possibilitam a conexão
social entre os produtores e os consumidores.
Alguns estudos também sinalizaram o potencial dos processos de parti-
cipação em torno do fazer artesanal, a fim de produzir discursos sobre pro-
cessos histórico-culturais e subjetivos, como o caso de Eliçabe (2020) e sua
investigação sobre a produção têxtil de mulheres migrantes no Sul global.
Na visão da autora, os artefatos têxteis examinados possuem a capacidade
de narrar a identidade das mulheres através da ligação entre a tangibiliza-
ção visual e das representações verbais. Sendo assim, faz-se a interpretação
comparativa da associação entre os elementos da linguagem visual presen-
te nas peças e as enunciações que emergem ao convidar as artesãs a relatar
os significados impressos na materialidade.

4.2. Narrativa como fabulação


Contar histórias requer um envolvimento ativo com a imaginação e criação
de tempos, pessoas e espaços, ideia encontrada no conceito de fabulação,
como a “a criação de ficções suficientemente vívidas e intensas para serem
capazes de intervir e remodelar a realidade” (McLean, 2017, p.10, tradução

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 102-122. 110
nossa). Nesta categoria, os estudos sinalizaram de maneiras diversas a po-
tência das narrativas como um dispositivo de especulação capaz de fabricar
situações para transformação social através de materialidades e processos
de design.
Rosner et al. (2018) investiga os processos generificados do artesanato
encobertos pela produção digital no design e na engenharia da computa-
ção, desafiando a diferenciação entre trabalho digital (cognitivo, masculi-
no, inovador) e o trabalho manual (feminino, corporal, desvalorizado). Este
processo de recuperação histórica se baseia no reconhecimento do traba-
lho oculto das mulheres que teceram à mão os dispositivos de memória dos
computadores da NASA, utilizados na Missão Apollo durante a Guerra Fria.
O caminho metodológico da pesquisa associa as práticas do design espe-
culativo e os recursos arquivísticos, por meio do processo de cocriação de
um quilt (tomado como um artefato de design historicamente informado).
Com o objetivo de reconstruir a história da memória do núcleo magnético,
os participantes da pesquisa são convidados a experenciar as técnicas em-
pregadas pelas mulheres na época. Assim, é possível revisitar práticas que
desapareceram, mas que possibilitam a reflexão e especulação sobre futuros
alternativos na prática e pesquisa em design.
Kuthy e Broadwater (2014) entendem as histórias como instrumentos
para tomada de decisão e construção da identidade. Para as autoras, uma
narrativa é uma reunião de saberes situadas capaz de estimular a agregação
coletiva e a habilidade de atenção e resposta do espectador.
Esta ideia é compartilhada por De Rosa, Tassinari e Vergani (2021), que
acionam processos de design especulativo e design participativo, através de
processos de visualização de futuros para o debate sobre questões urbanas e
o engajamento cidadão. Nesse sentido, investe-se na cocriação de um jogo
como um artefato capaz de desencadear diálogos coletivos sobre práticas
futuras e atuais, incentivando a narração coletiva entre os participantes.
A dimensão processual da pesquisa merece destaque, tendo em vista a
articulação entre as seguintes etapas: 1 - coleta das histórias dos cidadãos; 2
- construção do artefato narrativo, que traduziu para o nível abstrato e sim-
bólico as diversas histórias colhidas (por exemplo, pessoas, ações e lugares
tornaram-se personagens, eventos e cenas); e 3 - a experiência do jogo co-
letivo, que percorreu as atividades de construção do mundo comum (pro-
dução de uma visão da cidade compartilhada) e a cocriação de uma história
no contexto da cidade fictícia (abstração dos pontos de vistas em dimensões
temporais e espaciais específicas).
Uma outra face da prática fabulatória se encontra no modo em que auto-
res como Hofverberg (2020) e Jukes (2020) experimentam práticas de fazer

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coisas, através da especulação sobre as histórias que os materiais contam em
seus entrelaçamentos entre pessoas, coisas e lugares. Estes exercícios se ali-
nham com visões críticas da sustentabilidade, que questionam a centralidade
do humano, dando atenção à vida material das coisas e dos seres e buscan-
do modos alternativos de responder à insustentabilidade no Antropoceno.
A partir de um estudo exploratório, Hofverberg (2020) reflete sobre as
relações humano-materiais no processo de aprendizagem, observando os
efeitos do encontro com a materialidade na criação de coisas. Para tanto, a
autora se vale do conceito de conhecimento narrativo de Tim Ingold (2011),
como um processo de construção de significado que emerge de uma prática
de correspondência como um fazer específico e que depende de uma conti-
nuidade entre a prática passada, prática atual e o propósito/resultado espe-
rado, mas não prescritos. Sobretudo, a narração textual e gráfica do proces-
so criativo de reciclagem serve como um modo de refazer os fios históricos
dos materiais e possibilita a reflexão na prática sobre os emaranhados nos
quais os materiais e humanos vivem e aprendem juntos.
Ao narrar o processo de fazer de um remo, Jukes (2020) também espe-
cula sobre as histórias ecológicas dos materiais e dos corpos que interagem
com eles. Para o autor, preocupar-se com as histórias amplas e situadas das
quais os materiais fazem parte amplia o diálogo ético sobre os problemas
ambientais “indo além da materialidade direta da madeira para outras ques-
tões correlatas” (p.1747, tradução nossa). Considerar a agência narrativa dos
materiais requer um modo de contar que se aproxima da ficção e, nas pala-
vras do autor, as histórias não nascem individualmente, mas com os múl-
tiplos outros. Dialogando com Ursula K. Le Guin (1989) e seu conceito de
narrativas contínuas como “bolsas”, que colecionam histórias da vida e dos
fazeres cotidianos, a história sob o viés ecológico oferece uma alternativa
às histórias lineares dos heróis, isto é, as narrativas hegemônicas que conti-
nuam a ser contadas como perspectivas únicas nos diversos campos do saber.
O fazer do remo e a correspondência com a materialidade estimula o dis-
curso, pois histórias emergem continuamente do fazer. “De onde veio seu
pedaço de madeira? Qual era a vida dele antes de tomá-lo em sua posse?
Qual dos lugares de onde a árvore pode ter vindo?” (Jukes, 2020, p. 1758,
tradução nossa) são perguntas que percorrem a experiência e especulam
sobre a vida dos materiais e artefatos que habitam o mundo. Na dimensão
ontológica da prática de design, estas questões evocam alternativas possí-
veis sobre como nossas práticas podem contribuir na construção de mun-
dos mais regenerativos.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 102-122. 112
4.3. Narrativas como registros sociohistóricos
A reunião de artigos aqui analisados percorreu a ênfase nos processos so-
ciais, históricos e culturais das narrativas e seu papel em preservar a autono-
mia identitária de sujeitos e comunidades que exercem a atividade artesanal.
Mier y Terán e Barrera (2019) refletem sobre o caráter ontológico do de-
sign, examinando como as narrativas reproduzidas através das ferramentas
e objetos moldam noções de território, memória, história, linguagens e va-
lores. Os autores pensam junto aos materiais e artefatos artesanais - especi-
ficamente, o barro e as louças cerâmicas - e suas formas de plasmar modos
de vidas alternativos aos hegemônicos. A partir da ideia de autonomia e
pluriverso (Escobar, 2016), valoriza-se a autossuficiência e autodeterminação
de comunidades, que reproduzem saberes adequados à escala e em relação
com o ambiente, às necessidades reais, o corpo e o espírito. O estudo objeti-
va reconhecer a multiplicidade de designs, refletindo sobre o que a interde-
pendência inerente a estas práticas nos ensina sobre nossos modos de fazer.
De modo semelhante, MacDonald (2020) debate a partir de uma perspec-
tiva histórica, crítica e politizada das narrativas que emergem das práticas
e objetos de design, investigando as dinâmicas de poder, trabalho e gênero
intrínsecas às histórias das ferramentas utilizadas na construção de obje-
tos pelo povo indígena Tla'amin, do oeste do Canadá. Segundo a autora, as
histórias das ferramentas são pistas para entender como, ao longo dos sécu-
los, a comunidade defendeu “a agência em suas próprias histórias, fazendo
coisas em resposta às mudanças nas circunstâncias históricas e aos impac-
tos mutáveis do colonialismo” (p.6, tradução nossa). O foco no estudo das
ferramentas, como o fuso e o furador, desloca o foco dos objetos acabados
para reconhecer as histórias implícitas dos processos de feitura artesanal,
que evidencia os movimentos constantes de negociação e adaptação frente
às trocas com comunidades externas.
Com base nas narrativas de descendentes indígenas que resgatam estes
fazeres artesanais como formas de pertencimento, fazer coisas é fazer histó-
rias, não apenas construindo símbolos identitários, mas fornecendo oportu-
nidades de inserção socioeconômica em um novo tempo e de reinterpreta-
ção de experiências passadas. As materialidades que atravessam as práticas
artesanais constituem fontes históricas valiosas graças a sua capacidade em
narrar as especificidades sociais, culturais e ambientes de um certo modo
de viver, bem como as relações conflituosas entre os atores internos e ex-
ternos a certa localidade.
Em um contexto distinto, Arantes (2020) traz à tona a questão da tempo-
ralidade do artesanato e como esta se reflete nas narrativas sociais de gêne-
ro construídas pelas particularidades de certos fazeres. A autora esclarece

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como a relação entre materialidade, corpo e questões sociais estrutura uma
noção diferente de tempo, pois o fazer com os materiais está sempre em
correspondência às situações cotidianas comumente vivenciadas por mu-
lheres, como a dupla jornada de trabalho, os trabalhos domésticos e o cui-
dado com os filhos.

4.4. Apresentando narrativas


Além das ênfases interpretativas, fabulatórias e sociohistóricas, os estudos
selecionados revelaram a busca por novas formas de contação e divulga-
ção das histórias relacionadas aos saberes e fazeres artesanais. À vista dis-
so, Casciani e Vandi (2022) consideram o papel das tecnologias digitais na
preservação de heranças artesanais, em que o design pode atuar como um
decodificador criativo de significados implícitos, tanto por meio da docu-
mentação, codificação e arquivamento de saberes, quanto através da tradu-
ção em narrativas envolventes.
Song et al. (2020) identificam um novo gênero de narrativa, que combi-
na elementos da produção artesanal e elementos narrativos com o uso de
tecnologia de realidade mista. Unindo a feitura de artefatos tangíveis, como
origamis, às ferramentas digitais, é possível construir histórias que materia-
lizam personagens e cenários virtuais fictícios. Gestos e movimentos cor-
porais intrínsecos a conhecimentos artesanais podem ser preservados por
meio de sistemas digitais que permitem a coleta, reprodução e armazena-
mento das informações do processo artesanal. Este processo se desdobra
projetualmente nos trabalhos de Rosner e Ryokai (2008), por meio de um
sistema de armazenamento do processo artesanal do tricô, e de Bidasaria
(2019), que objetiva o registro gestual do processo de estamparia manual
de artesãos na Índia.
Um outro modo de tangibilização das narrativas embutidas no fazer ar-
tesanal consiste na construção de plataformas digitais para divulgação do
trabalho artesanal, como nos estudos de Farias, Dantas e Noronha (2020)
sobre o desenvolvimento de um acervo de materiais e processos do arte-
sanato local. Além disso, a qualidade do design em traduzir graficamente,
materialmente e processualmente aspectos iconográficos de um território
é identificada por Lima e Noronha (2018), que investigam o bordado em
ponto cruz de São João dos Patos – MA, Brasil. Ambas pesquisas entendem
o designer como um agente essencial na explicitação da história por trás de
artefatos artesanais, através de processos colaborativos de resgate e comu-
nicação de aspectos socioculturais ligados à identidade das comunidades.
Esta reflexão é também acionada por Apaza-Panca et al. (2021), que dis-
cute sobre como a contação de histórias pode favorecer a conexão emocional

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com o outro, gerando identificação e representação de futuros possíveis.
Focalizando as narrativas acerca de empreendimentos cerâmicos artesanais
de La Encantada, no Peru, a autora desenvolve formas de escrita de histó-
rias sobre o fazer artesanal, que traz para cena ambientes, personagens e
dinâmicas narratológicas, envolvendo os costumes e valores da comunida-
de artesanal.
Além de promover o registro de conhecimentos tradicionais, a iniciativa
valoriza a divulgação sobre os modos de fazer locais, sendo um forte incre-
mento na geração de valor aos produtos e no desenho de estratégias que vão
além da venda de artefatos físicos, como a oferta de oficinas, visitas guia-
das e ações relacionadas ao turismo de experiência. A lacuna do estudo, no
entanto, se encontra na falta de participação dos produtores na criação das
narrativas, que são criadas apenas com base em dados coletadas em entre-
vistas e questionários.

5 Por práticas de contação situadas e relacionais


O estado da arte a respeito da relação entre narrativas, design e fazeres ar-
tesanais demonstra uma ínfima presença de pesquisas que empregam mé-
todos participativos e engajados na construção de narrativas artesanais, ha-
vendo uma predominância de estudos interpretativos das narrativas visuais
(signos, discursos e imaginários) impressas em artefatos da cultura material.
Embora não se descarte a importância desta vertente, é necessário enten-
der as narrativas em seus agenciamentos ativos durante as experiências de
fazer, distanciando-se da ênfase descritiva e indo em direção a uma práti-
ca de correspondência. Esta percepção localiza o fazer projetual em tempo
real com as pessoas e coisas com as quais nos relacionamos, voltando-se ao
âmago das experiências para descobrir o que elas têm a nos ensinar e a nos
contar (Gatt e Ingold, 2013). Portanto, as linguagens e discursos mescla-
dos ao fazer das coisas podem ser melhor contadas através de processos de
construção de histórias que valorizem a colaboração ativa e contínua entre
os pesquisadores, interlocutores, materiais, coisas e ambientes.
Ademais, ressalta-se a emergência de práticas investigativas e projetuais
com o foco na fabulação e na especulação. Estas táticas trazem a experimen-
tação criativa como uma forma de acionar questões de preocupação cole-
tiva, com a materialização de formas de conhecimentos ignorados histori-
camente, como nos estudos de Rosner et al. (2018) ou a narração coletiva
de cenários futuros, como se observa na pesquisa de De Rosa, Tassinari e
Vergani (2021), que traduzem aspectos do mundo real em um mundo fictí-
cio através de um jogo de design. Investigações em torno das narrativas da
vida dos materiais, fundadas na descentralização humana e na necessidade

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de atenção para os múltiplos outros seres também emergem como uma das
provocações sobre a prática projetual (Hofverberg, 2020; Jukes, 2020).
Um outro aspecto relevante diz respeito à reconstrução das narrativas
impressas nos fazeres como uma forma de resgatar modos de vida margi-
nalizados, como no artigo de MacDonald (2020) e a ênfase dada às ferra-
mentas como narradoras de histórias de resistência indígena frente às incur-
sões coloniais no passado e no presente. Nesse sentido, os objetos artesanais
contam narrativas que oferecem caminhos distintos às visões de mundos e
sistemas de conhecimentos dominantes.
Finalmente, a revisão produzida pôde constatar uma diversidade de for-
matos através dos quais essas histórias podem se tornar tangíveis: sistemas
digitais de documentação e registro de processos artesanais; plataformas di-
gitais para contação de histórias situadas sobre processos artesanais; ações
de tradução iconográfica da identidade; construção de narrativas escritas
e visuais associadas aos produtos tangíveis; e sistemas e serviços de design
para encenação ou criação de experiências que tratem sobre os aspectos
simbólicos relacionados ao fazer. Além disso, pôde-se ampliar o repertório
sobre técnicas narrativas e sobre a dimensão metodológica da construção
de narrativas, tendo em vista o potencial de adequação às situações parti-
culares das pesquisas.

6 Considerações finais
Este estudo objetivou o mapeamento teórico sobre os modos de incorpora-
ção do conceito de narrativa na dimensão das práticas de design e dos sa-
beres e fazeres artesanais. As pesquisas apontadas revelam o predomínio de
estudos que se baseiam no caráter representativo e descritivo dos conceitos,
abordagens e métodos a respeito da categoria, o que oportuniza a produção
de processos de pesquisa que tragam as narrativas para o terreno da expe-
riência e da construção conjunta de conhecimentos entre os participantes,
as coisas, materiais e ambientes envolvidos.
O conjunto de resultados colhidos nos artigos foram agrupados segundo
as ênfases dadas às narrativas, sendo estas: a interpretação, a fabulação, o
resgate sociohistórico e a apresentação. A possibilidade de inserção dos es-
tudos em mais de um dos agrupamentos indica a natureza holística e com-
plexa da temática. Destaca-se também a possibilidade de associação entre
os resultados obtidos na revisão sistemática com os produtos de uma revi-
são assistemática em estudos futuros.
Em suma, o percurso de revisão culminou em um repertório amplo e
diversificado sobre a categoria da narrativa no campo epistemológico do
design e de outras ciências sociais que versam sobre a cultura material e

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saberes tradicionais, como antropologia, sociologia e história. Este mapa
teórico servirá no exercício de escolhas conceituais a serem empregadas nos
processos de pesquisa em andamento, que objetiva a cocriação e contação
de narrativas com comunidades artesanais à luz da do design participativo
e do designantropologia.

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Como referenciar

FARIAS, Luiza Gomes Duarte de; NORONHA, Raquel Gomes.


Fazer coisas é contar histórias: mapeamento sistemático sobre as
narrativas na dimensão do design e dos saberes artesanais. Arcos
Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp. 102-122, jan./2023. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign.

———

DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.78887

———

A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


Commons Atribuição – Não Comercial – Compartilha Igual 3.0
Não Adaptada.

Recebido em 31/08/2023 | Aceito em 12/09/2023

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 102-122. 122
arcos design

Projetando para emoções e relações: um


novo paradigma no design contemporâneo

Renata de Assunção Neves (puc-rio, Brasil)


renatanevesdesign@gmail.com

Vera Maria Damazio (puc-rio, Brasil)


vdamazio@puc-rio.br

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. ISSN: 1984-5596
v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign

123
Projetando para Emoções e Relações: Um Novo
Paradigma no Design Contemporâneo

Resumo: Este artigo examina a mudança no design de uma abordagem


centrada na estética e funcionalidade para uma mais focada nas relações.
Inicialmente, discute-se a transição paradigmática no campo do design. Em
seguida, o foco se volta para o Design Emocional, explorando como ele busca
criar experiências positivas e transformadoras, que impactem o bem-estar a
longo prazo. Por fim, o artigo aborda o Design Relacional, integrando esse
conceito ao Design Emocional e destacando a necessidade de abordagens
de design mais humanizadas e colaborativas. A discussão inclui críticas e
limitações, apontando para desafios como o equilíbrio entre as necessidades
dos stakeholders. Conclui-se que, embora haja desafios, a integração do de-
sign relacional com o emocional é fundamental para responder aos desafios
sociais complexos enfrentados pelo design contemporâneo, promovendo
soluções significativas e centradas no ser humano e nas comunidades.
Palavras-chave: Design Relacional; Design Emocional; Desafios Sociais
Complexos.

Designing for Emotions and Relationships: A


New Paradigm in Contemporary Design

Abstract: This article examines the shift in design from an approach focused
on aesthetics and functionality to one more centered on relationships. Initial-
ly, it discusses the paradigmatic transition in the field of design. Subsequently,
the focus shifts to Emotional Design, exploring how it aims to create positive
and transformative experiences that impact long-term well-being. Then, the
article addresses Relational Design, integrating this concept with Emotional
Design and highlighting the need for more humanized and collaborative design
approaches. The discussion includes critiques and limitations, pointing to chal-
lenges such as balancing the needs of stakeholders. It concludes that, despite
the challenges, the integration of relational and emotional design is essential
to address the complex social challenges faced by contemporary design, pro-
moting meaningful solutions centered on the human being and communities.
Keywords: Relational Design; Emotional Design; Complex Social Challenges

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 124
1. Introdução
Em uma fase marcada por rápidas mudanças tecnológicas e desafios sociais
complexos, o design vive sua transformação significativa. Longe de serem
apenas estéticos ou funcionais, os projetos contemporâneos estão cada vez
mais imersos em contextos sociais e emocionais. Cabe ao designer neste
momento, conectar saberes e pessoas, de modo a, coletivamente e colabo-
rativamente, desenvolver recursos para lidar com a complexidade desses
contextos. Como dito por Rafael Cardoso (2013) “a grande importância do
design reside, hoje, precisamente em sua capacidade de construir pontes e
forjar relações num mundo cada vez mais esfacelado pela especialização e
fragmentação de saberes” (p.234).
Este artigo visa explorar esta evolução paradigmática, destacando a mu-
dança do design de uma abordagem centrada em estética e funcionali-
dade para uma focada nas relações humanas e no impacto emocional.
Inicialmente, analisaremos como o design tem se adaptado às novas exi-
gências de um mundo em constante mudança, refletindo sobre o movimen-
to em direção a uma abordagem mais relacional e contextual, tendo como
interlocutores Andrew Blauvet (2008), Klaus Krippendorff (2006), Rafael
Cardoso (2013) e Jorge Frascara (2002).
Em seguida, aprofundaremos no conceito de Design Emocional, inves-
tigando como esta abordagem busca não apenas satisfazer as necessidades
imediatas, mas também criar experiências positivas e transformadoras que
promovam o bem-estar a longo prazo. A partir de uma contextualização
histórica, iremos refletir sobre como tem se desenvolvido uma ênfase no
design emocional, que é voltada ao bem-estar humano e social, para além
do prazer hedônico. Pesquisadores como Tonetto, Fokkinga e Desmet, con-
tribuem com a discussão, através da abordagem do design para o bem-estar
e do design positivo.
Traremos por fim, o Design Relacional, um conceito emergente que inter-
liga o design com a dinâmica das relações humanas. Aqui, destacaremos a
importância de integrar o Design Emocional ao Design Relacional, formando
uma prática de design mais holística, humana e colaborativa. Abordaremos
habilidades e ferramentas necessárias para desenvolver projetos com esse
foco, tendo como interlocutor Daniel Goleman (2019). Concluiremos com
exemplos de projetos que demonstram a importância de focar nos aspec-
tos emocionais e relacionais humanos ao projetar, principalmente quando
abordamos desafios sociais complexos.
Finalmente, argumentaremos que, apesar dos desafios, a integração do
design relacional e emocional é essencial para enfrentar os desafios sociais
do design contemporâneo, conduzindo a soluções que são significativamente

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 125
centradas no ser humano e na comunidade. Este artigo propõe lançar luz
sobre como o design, em sua essência, está evoluindo para além de sua for-
ma e função tradicionais, assumindo um papel crucial na facilitação de ex-
periências humanas mais ricas e profundas.

2. Mudanças no campo do design


Andrew Blauvelt é um curador, educador, escritor e designer influente, co-
nhecido por suas contribuições significativas na mudança do campo do
design. Através de seus escritos e projetos, Blauvelt influenciou a maneira
como designers e acadêmicos entendem e praticam o design, expandindo o
foco da disciplina para além dos aspectos estéticos e funcionais, para incluir
complexidades relacionais e contextuais. No seu texto “Towards Relational
Design” (2008), o escritor discute uma mudança de paradigma “que abran-
ge todas as disciplinas do design, desigual na sua evolução, mas que possui
um maior potencial transformador do que as tendências micro-históricas
dariam a entender” (Blauvet, 2008, s/n). Ele aponta que estamos na tercei-
ra grande fase da história do design, onde os projetos se tornam relacional-
mente baseados e contextualmente específicos.
Blauvelt (2008) categoriza a primeira fase como aquela iniciada no co-
meço do século XX, em que os designers se concentraram no desenvolvi-
mento de uma linguagem visual universal, e enfatizaram a simplificação e
o essencialismo. A segunda fase, a partir dos anos 1960, voltou-se para o
potencial de construção de significados pelo design, o valor simbólico, a di-
mensão semântica e o potencial narrativo. Em outras palavras, os designers
assumiram maior controle do conteúdo essencial do seu trabalho e, por isso,
também da sua forma. A terceira fase, emergindo em meados da década de
1990, enfoca a dimensão performativa do design, considerando os efeitos
nos usuários e a sua capacidade de facilitar as interações sociais, marcando
a transição para um design mais aberto e colaborativo. Influenciada pelas
tecnologias digitais, mas não limitada a estas, esta fase recebeu influência das
suas metáforas, como redes sociais, colaboração open source e interativida-
de. Partindo das experiências de forma e conteúdo das fases anteriores, ela
passa a incluir em suas práticas elementos performativos, pragmáticos, pro-
gramáticos, orientados a processos, abertos, experienciais e participativos.
No gráfico abaixo, três assentos icônicos exemplificam as fases evolutivas
do design em termos de produto. A poltrona Wassily, de Marcel Breuer, sim-
boliza a primeira fase e incorpora os ideais do Bauhaus de simplicidade, fun-
cionalidade e racionalidade. Sua estrutura em tubos de aço e estética minima-
lista ilustram a concentração na forma e na linguagem visual que define essa
fase. A cadeira Favela, criada pelos Irmãos Campana, representa a segunda

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 126
fase do design. Construída com pedaços de madeira reciclados, similares
aos encontrados nas favelas brasileiras, esta cadeira transcende a função e
estética, incorporando uma dimensão de significado cultural e social. Este
design reflete a importância do contexto cultural, simbolismo e narrativa,
elementos centrais da segunda fase. Finalmente, a cadeira Aeron, desenha-
da por Don Chadwick e Bill Stumpf, exemplifica a terceira fase. Conhecida
pela ergonomia e adaptabilidade ao usuário, esta cadeira vai além de forma
e significado, focando na experiência do usuário, no conforto e adaptabili-
dade. Ela enfatiza a interação e performance no uso cotidiano, refletindo a
abordagem pragmática que caracteriza a terceira fase do design (figura 1).

figura 1.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 127
Klaus Krippendorff é um renomado teórico, pesquisador e professor no
campo do design. Entre suas contribuições mais notáveis, Krippendorff de-
senvolveu a “Teoria Semântica do Design”, que explora a relação entre os
objetos de design e os significados que eles comunicam aos usuários. Esta
abordagem coloca ênfase na maneira como os usuários interpretam e inte-
ragem com os produtos de design, considerando o design não apenas como
uma questão de estética ou funcionalidade, mas também como um meio de
comunicação e expressão.
Em 2006, Krippendorff, explorou a complexidade e a natureza imaterial
do mundo contemporâneo e como o design responde a esses desafios. Ele
delineou uma “trajetória de artificialidade” no design, que vai desde o de-
sign de produtos materiais até a criação de discursos, abrangendo interfa-
ces, redes e sistemas multiusuários e projetos. Ele enfatiza que esta evolução
não representa etapas fixas, mas fases que expandem as fronteiras do design
para novos tipos de artefatos.
No gráfico da imagem 2, observamos essas mudanças de perspectiva.
Na fase dos produtos, itens como a poltrona Wassily e a Four Side Table de
Marcel Breuer, e as louças de Hans Roericht são exemplos da busca por uma
estética universalista e funcionalidade. A fase dos bens, serviços e identidades
muda o foco para a estética e simbolismo, com exemplos como o espreme-
dor de laranja de Philippe Starck e a cadeira de balanço de Oscar Niemeyer,
além da identidade corporativa ilustrada pela Apple.
Na fase da interface, a experiência do usuário vem à tona, exemplificada
pelo iMac da Apple que democratizou o uso do computador através de uma
interface intuitiva e pela Cadeira Aeron de Bill Stumpf e Don Chadwick, que
destacam a importância da reconfigurabilidade e adaptabilidade. A fase dos
sistemas e redes multiusuários concentra-se na criação de comunidades di-
gitais, com o Orkut e o Facebook servindo como exemplos, onde informa-
tividade, conectividade e acessibilidade são essenciais.
A fase de projetos enfatiza a viabilidade social, direcionalidade e com-
promisso, com o design participativo e o codesign emergindo como concei-
tos-chave para projetos colaborativos. Por fim, a fase do discurso baseia-se
em generatividade, rearticulabilidade e solidariedade, exemplificada pelo
aplicativo “Tem Açúcar?”, que promove conexões entre vizinhos e uma eco-
nomia colaborativa e sustentável, ressaltando a importância das relações
interpessoais.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 128
figura 2. Infográfico demonstrativo da trajetória da artificialidade de Krippendorff. Fonte: as autoras

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Com isso, observamos uma transição do design de uma orientação cen-
trada na tecnologia para uma abordagem focada no ser humano. De acor-
do com Krippendorff (2006), essa transição inclui: (a) a conversão do de-
sign de produtos convencionais em design de artefatos com funções sociais
diversificadas; (b) a transição de uma visão de design universal e cultural-
mente neutra para uma que enfatiza a linguagem na criação de contextos
específicos para diferentes comunidades; (c) a mudança das funções e usos
estabelecidos de produtos e tecnologias para uma abordagem que permite
aos usuários personalizá-los de acordo com suas necessidades e contextos;
(d) a transformação do papel dos designers de figuras solitárias para cola-
boradores ativos, envolvendo usuários e partes interessadas no processo de
design; e (e) a mudança do foco em objetos materiais para um maior enten-
dimento dos processos de criação e reconfiguração de ambientes artificiais.
As transformações significativas no campo do design, apontadas por
Andrew Blauvelt e Klaus Krippendorff, são intensificadas pelas atuais ino-
vações tecnológicas. Rafael Cardoso, em seu livro “Design para um mundo
complexo” (2013), explora essas transformações, examinando os impactos
da era digital na economia, política, sociedade e cultura. Em meio à comple-
xidade crescente e à interconexão dos sistemas, ele percebe o design como
um campo em expansão, crucial para a construção de relações em um mun-
do cada vez mais especializado. Essa perspectiva reforça as observações de
Blauvelt e Krippendorff sobre a transição do design para abordagens mais
focadas nas relações humanas e na comunidade. As mudanças tecnológicas
estão impulsionando transformações sociais que afetam diretamente os ob-
jetivos do design, exigindo dos designers novas habilidades e a aplicação de
ferramentas em contextos complexos.
Ao explorar as transformações no campo do design, identificamos uma
mudança significativa - de uma abordagem centrada na estética e funcio-
nalidade para uma mais orientada para as relações e contextos humanos.
Esta evolução, destacada pelas contribuições de pensadores como Blauvelt
e Krippendorff, abre caminho para um entendimento mais profundo e hu-
manizado do design. A próxima fase desta evolução se manifesta claramente
no emergente campo do Design Emocional, onde as emoções e experiências
humanas tornam-se centrais no processo criativo.

3. O design emocional
O Design Emocional, conforme descrito por Vera Damazio (2016), é uma
área interdisciplinar de pesquisa, focada no desenvolvimento de conheci-
mentos teóricos e práticos sobre a habilidade do design em evocar emoções
e criar experiências positivas intencionais. Esse campo enfatiza o impacto

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 130
do design nas respostas emocionais, comportamentos e atitudes. Desde a
década de 1980, o Design Emocional integra conceitos teóricos e metodo-
lógicos de diversas áreas, destacando a influência das emoções em aspectos
como julgamento, tomada de decisão, percepção, atenção e processamento
de informações. Damazio também ressalta que emoções são frequentemen-
te desencadeadas por uma variedade de estímulos, incluindo objetos reais
ou representações mentais, e sublinha a raridade de interações emocional-
mente neutras com o design.
Podemos identificar duas ênfases principais no Design Emocional. A pri-
meira abordagem, centrada em emoções positivas, direciona-se a produtos
e interfaces, visando estimular emoções positivas e experiências prazero-
sas. Esta abordagem integra conceitos das ciências cognitivas, marketing e
psicologia, focando na identificação de emoções nas interações homem-
-computador e homem-produto, no impacto da estética nas percepções e
respostas emocionais dos usuários, e no desenvolvimento de ferramentas
para avaliar a experiência do usuário. A segunda abordagem, voltada para
emoções adequadas, abrange o design em um espectro mais amplo, incluin-
do produtos, serviços, políticas públicas e dinâmicas sociais. Ela visa pro-
mover emoções específicas que induzam mudanças positivas no estilo de
vida e situações sociais, envolvendo conceitos de sociologia, antropologia
e estudos culturais para entender as necessidades emocionais dos usuários
e seus contextos culturais, propondo métodos e frameworks para o desen-
volvimento de intervenções de design que contribuam para estilos de vida
e realidades sociais mais saudáveis (Damazio, 2016).
A pesquisa de Stevens et al. (2019) levanta algumas divergências acerca
do que significa o Design Emocional. Segundo os autores, alguns pesquisa-
dores associam o campo apenas à primeira abordagem, alinhada ao bem-
-estar hedônico, focado na satisfação com a vida e nos aspectos afetivos. Por
outro lado, eles citam outras abordagens possíveis, como a abordagem das
capacidades, o design para o bem-estar e o design positivo, que focam nos
elementos fundamentais para uma vida boa, a partir da percepção do indi-
víduo como detentor de potencialidades. Estas abordagens são menos cen-
tradas em emoções passageiras e mais preocupadas com o impacto a longo
prazo na qualidade de vida. Tais abordagens alinham-se à segunda ênfase
do Design Emocional.
O campo do Design Emocional, inicialmente focado nas emoções posi-
tivas, recebeu contribuições significativas de vários pesquisadores. Patrick
Jordan (2002), Donald Norman (2008) e Pieter Desmet (2002) são figuras-
-chave na evolução desta área. Jordan foi pioneiro na exploração das di-
mensões imateriais do design, articulando o conceito de ‘Prazer do Produto’

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 131
e classificando o prazer derivado dos produtos em quatro categorias: fi-
siológico, social, psicológico e ideológico. Norman popularizou o Design
Emocional em 2004, destacando três níveis de design: visceral, comporta-
mental e reflexivo, com raízes na experiência do usuário (UX), introduzida
por ele em 1993. Sua obra enfatizou a minimização de emoções negativas
como frustração e raiva durante o uso de produtos. Pieter Desmet introdu-
ziu em 2002 um modelo fundamentado na “Appraisal Theory” para ajudar
os designers a entender a interação emocional dos usuários com o design.
Esta teoria cognitiva das emoções permite ao designer determinar qual
emoção deseja evocar no usuário e, em seguida, identificar os fatores que
contribuem para essa resposta emocional, visando integrar esses elementos
ao processo de design.
Posteriormente, em 2020, Fokkinga e colaboradores desenvolveram um
framework abrangente para avaliar os impactos psicológicos, sociais e com-
portamentais do design, decorrentes das interações humanas. Este modelo,
resultante da análise de 186 estudos de caso em workshops especializados,
estrutura-se em três níveis: experiências imediatas com o produto (abran-
gendo aspectos estéticos, significativos e emocionais), impactos a médio
e longo prazo em comportamentos, atitudes e conhecimentos dos usuá-
rios, e influências na qualidade de vida e na sociedade como um todo. Os
pesquisadores observaram que, no primeiro nível, os designers geralmen-
te trabalham com tipologias de emoções, comportamento, necessidades e
sentimentos. O segundo nível expande-se para abarcar emoções derivadas
de experiências ricas ou ferramentas, métodos e estratégias para promover
mudanças comportamentais. Contudo, ressaltaram uma lacuna significati-
va no terceiro nível, especialmente na avaliação de efeitos duradouros dos
projetos de design.
O Design Emocional, visando contribuir para sociedades mais saudáveis,
concentra-se principalmente nos níveis intermediário e avançado do fra-
mework de Fokkinga e colaboradores. Isso é exemplificado no design para
o bem-estar e no design positivo, que visam impactos sociais positivos e
sustentáveis, e serão abordados em seguida.

3.1 O design para o bem-estar


O termo “bem-estar” refere-se ao conceito apresentado por Damazio e
Tonetto (2022) como um fenômeno multidimensional que abrange aspec-
tos hedônicos e eudaimônicos. O bem-estar hedônico está relacionado à
satisfação com a vida e aos componentes afetivos, conhecido como bem-
-estar subjetivo. Por outro lado, o bem-estar eudaimônico envolve constru-
tos como autoaceitação, crescimento pessoal, propósito de vida, relações

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 132
positivas, domínio do ambiente e autonomia, sendo denominado bem-es-
tar psicológico.
Os designers podem adotar duas formas de intervenção ao projetar para
o bem-estar. Na primeira abordagem, investigam e projetam explicitamente
para evocar níveis mais elevados de bem-estar. Isso pode ser alcançado ao
incitar afeto positivo, inibir emoções negativas, melhorar a avaliação geral
da vida, estimular o sentido da vida e potencializar o uso das virtudes pes-
soais. Nessa abordagem experimental, variáveis independentes relacionadas
ao design são manipuladas, e seus efeitos no bem-estar são medidos. Essa
abordagem está associada a construtos como bem-estar psicológico ou sub-
jetivo, e está alinhada à psicologia positiva.
Na segunda abordagem, o foco não está diretamente no bem-estar em si,
mas sim em projetar para estimular preditores de bem-estar. Nesse caso, o
design concentra-se em características e experiências humanas que se acre-
dita melhorarem o bem-estar, como a resolução de conflitos internos e in-
fluências ambientais. Essa perspectiva requer uma expansão do escopo do
design, indo além de artefatos individuais para o design de um ecossistema
que proporcione uma experiência duradoura de bem-estar. Essa abordagem
está alinhada aos princípios do design relacional.
Dessa forma, o design para o bem-estar pode ser realizado tanto por
meio de uma intervenção direta, visando diretamente o bem-estar, quanto
por meio de uma intervenção indireta, projetando para estimular fatores
que se acredita estarem relacionados ao bem-estar. Ambas as abordagens
contribuem para a compreensão e a prática do design centrado nas pessoas
(Tonetto, 2019). Compreender como as emoções, sentimentos e humores
afetam o bem-estar e as relações mediadas pelo design é fundamental para
projetar de forma mais humana, assertiva e empática.

3.2 O design positivo


O design positivo, conforme definido por Desmet e Pohlmeyer (2013), en-
globa todas as formas de design, pesquisa e intenção que buscam promo-
ver o bem-estar subjetivo de indivíduos e comunidades. Essa abordagem
é fundamentada em três pilares: design para o prazer, design para o signi-
ficado pessoal e design para a virtude. O primeiro pilar busca proporcio-
nar afetos positivos e evitar os negativos no momento presente. O segundo
concentra-se em objetivos pessoais e no senso de significado derivado das
conquistas. Por fim, o último pilar enfoca os esforços para alcançar com-
portamentos virtuosos.
De acordo com Desmet e Pohlmeyer (2013), existem cinco característi-
cas-chave do design positivo. A primeira é a orientação por possibilidades,

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em vez de focar nos aspectos negativos. Em seguida, há o equilíbrio entre
o bem-estar hedônico e eudaimônico. O terceiro aspecto é o foco no ajuste
pessoal por meio de uma abordagem centrada na pessoa. Além disso, des-
taca-se o envolvimento ativo do usuário e a busca de impacto a longo prazo,
abordando questões pessoais e sociais mais amplas, como mudanças com-
portamentais e satisfação com a vida.
O Design Emocional, como vimos, representa uma resposta inovadora às
mudanças paradigmáticas no design, enfatizando a criação de experiências
positivas e transformadoras. Esta abordagem não apenas complementa as
tendências contemporâneas no design, mas também prepara o terreno para
uma prática ainda mais integrada e centrada no ser humano: o design rela-
cional. Este próximo tópico expandirá como o Design Emocional se entrelaça
com práticas relacionais, destacando a importância da empatia e da colabo-
ração na construção de soluções de design mais significativas e impactantes.

4. Conectanto o Design Relacional ao Design Emocional


No contexto colaborativo, os designers atuam como facilitadores, co-crian-
do com as partes interessadas, em vez de impor soluções. Tal abordagem
relacional reconhece a natureza social do ser humano e sublinha a impor-
tância de considerar as dimensões sociais e relacionais no design. Portanto,
os designers devem ir além do projeto para pessoas, considerando as impli-
cações sociais e comunitárias de seus trabalhos, enfocando uma compreen-
são abrangente de fatores individuais, subjetivos, contextuais e relacionais.
No editorial de 2009 da “International Journal of Design”, Desmet e
Hekkert discutem estratégias para integrar emoções no design, destacando
quatro abordagens principais: centrada no usuário, no designer, baseada
em pesquisa e em teoria. Propomos uma quinta abordagem, a relacional,
essencial no contexto que busque facilitar conexões profundas entre indi-
víduos mediados pelo ambiente. Esta abordagem tem o potencial de valo-
rizar a importância das emoções sociais e o uso do design como mediador
de experiências transformadoras.
A integração do Design Emocional ao Design Relacional abre caminho
para a cocriação de soluções transformadoras, aprofundando-se nas dinâ-
micas emocionais subjacentes. A consciência social e a promoção de rela-
ções autênticas, características do Design Relacional, complementam-se com
a exploração das emoções e sentimentos inerentes às interações humanas.
Esta transformação, impulsionada pela importância das conexões sociais,
da empatia e da percepção das nuances emocionais, evidencia a conver-
gência entre o design para o bem-estar e o design relacional. Ambos visam

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 134
melhorar a qualidade de vida, focando nas necessidades individuais e pro-
movendo relações significativas.
A habilidade do Design Emocional de facilitar emoções e sentimentos po-
sitivos, aliada à abordagem relacional de criar conexões interpessoais autên-
ticas, fornece um terreno fértil para o florescimento do bem-estar pessoal e
social. Assim, ao integrar práticas do Design Emocional, o Design Relacional
emerge como um catalisador para experiências humanas enriquecedoras,
centradas nas emoções, nos relacionamentos e no desenvolvimento huma-
no. Esta integração destaca a necessidade de ferramentas e habilidades que
nutram e potencializem a abordagem relacional, promovendo relações mais
profundas e significativas.

4.1 A consciência social


Na busca por um equilíbrio entre significado e prazer no design, é essen-
cial compreender profundamente as emoções e sua mediação pelo design,
por meio de uma consciência social. Esta compreensão engloba empatia,
abertura e autoconsciência, capacitando os designers a entenderem tanto a
si mesmos quanto aos outros. Como designers, devemos assumir o papel de
facilitadores de relações, reconhecendo que não se pode projetar relações,
mas sim habilitá-las, conforme Cipolla (2018) sugere. Promover momen-
tos de vulnerabilidade não só aumenta a abertura, mas também amplia a
consciência social e o apoio mútuo. Para isso, é fundamental desenvolver
habilidades de consciência social, incluindo empatia, sintonia, precisão em-
pática e cognição social.
A empatia, desempenhando um papel crucial no design relacional, com-
preende componentes cognitivos e emocionais poderosos. Ela envolve co-
nhecer, sentir e reagir com compaixão aos sentimentos do outro, como de-
lineado por Goleman (2019) e Hargreaves et al. (2018). A sintonia se foca
em ouvir e conectar-se genuinamente com o outro, enquanto a precisão em-
pática envolve compreender pensamentos e sentimentos alheios. Já a cog-
nição social refere-se ao entendimento do funcionamento do mundo social
e à interpretação dos sinais sociais.
Um exemplo de abordagem do design que leva em consideração esses
pontos é o Design Compassivo (Seshadri et al., 2019). Essa abordagem se
baseia na metodologia de Design Positivo (Desmet & Pohlmeyer, 2013) e está
especificamente preocupada em projetar para afetos positivos. Compaixão
é descrita como “um sentimento de preocupação que surge quando nos de-
paramos com o sofrimento de outro e nos sentimos motivados a aliviar esse
sofrimento” Lama, Tutu e Abrams (2016, p. 252). É uma palavra pró-ativa

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 135
que implica agência, ação e sugere a necessidade de “se envolver” e efetuar
mudanças.
Como abordagem de design, assume que o designer é um participante
ativo em estratégias para fazer uma diferença positiva na vida das pessoas.
Exige que o pesquisador de design seja empático e responsivo à pessoa para
quem está projetando, e informado sobre o contexto em que vivem e os de-
safios que enfrentam. O Design Compassivo foca em três componentes vi-
tais que são fundamentais para esse fim: estimular os sentidos, ser altamente
personalizado e ajudar a promover conexões entre as pessoas.
No design, a abordagem das emoções pode ser subjetiva e pessoal. As
respostas conscientes dos participantes nem sempre refletem suas verdadei-
ras emoções e experiências na interação com o ambiente e com os outros.
A experiência pessoal do pesquisador em situações análogas pode oferecer
insights mais profundos, levando a uma abordagem mais empática do pro-
jeto. Isso pode ser facilitado por métodos de pesquisa autoetnográficos. Por
exemplo, a pesquisa de Bochner (2019) sobre luto em diferentes culturas
ilustra como a experiência pessoal de perda pode aprofundar a compreen-
são desse sentimento. Observar as próprias emoções com estranhamento e
as emoções dos outros com familiaridade oferece uma abordagem valiosa
no design emocional, apesar de ser rara na prática.
Xue & Desmet (2019) defendem a adoção de uma perspectiva de primeira
pessoa na pesquisa de fenômenos subjetivos. Esta abordagem reflexiva per-
mite que o pesquisador utilize suas próprias experiências subjetivas como
dados valiosos. A introspecção do pesquisador é particularmente relevante
quando este faz parte do grupo-alvo estudado, facilitando o entendimento
das normas e experiências desse grupo

4.2 A facilidade social


Petermans & Cain (2019) esclarecem que as pessoas podem influenciar sua
felicidade ao focar na configuração de atividades intencionais. Segundo eles,
isso cria enormes oportunidades para o design. A criação de ambientes de
apoio social para pessoas enfrentando diversos desafios, facilitados pela
disseminação da web 2.0, exemplifica uma contribuição significativa para o
bem-estar social. Esses ambientes trazem propósito e motivação para seus
participantes, destacando o papel fundamental dos facilitadores sociais em
abordagens relacionais de design.
Facilitadores sociais, como define Daniel Goleman (2019), são habilida-
des que nos ajudam a criar conexões com os outros, construídas através de
sincronia, apresentação pessoal, influência e preocupação. No design, es-
tratégias de facilitação podem ser projetadas, de forma que facilitem o uso

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 136
dessas habilidades. Conforme Carla Cipolla (2018) podemos projetar faci-
litadores que atuam como mediadores nos processos pessoais e interpes-
soais. Seu modelo se baseia nas relações interpessoais e inclui mecanismos
para facilitar a confiança necessária.
Cipolla destaca que projetar facilitadores promove uma vulnerabilidade
intencional que aumenta a probabilidade de formar vínculos sociais for-
tes. A autora classificou os facilitadores em quatro categorias, em virtude
de seu mecanismo de efeito: (a) artefato facilitador, projetado para mediar
a colaboração e as relações interpessoais; (b) facilitador atitudinal, proje-
tado para facilitar a expressão de atitudes ou sentimentos pessoais para os
outros; (c) facilitador processual, projetado para promover relações inter-
pessoais por meio de uma sequência de etapas; e, (d) facilitador narrativo,
projetado para estimular as relações interpessoais por meio de uma inter-
pretação pessoal dos eventos, ou uma narrativa ficcional organizada e mon-
tada (Cipolla, 2018).
Adotar facilitadores relacionais, tanto em termos de consciência emo-
cional quanto de práticas que promovam conexões sociais, torna-se funda-
mental para criar soluções de design que se conectem profundamente com
as pessoas. O design relacional transforma a maneira como projetamos e
interagimos, estabelecendo uma base para um futuro onde conexões hu-
manas e experiências emocionais se tornam centrais no processo criativo.
Como exemplo, Van der Bijl-Brouwer (2022) enfatiza a importância de
estudos que examinem o papel do design na promoção de relacionamentos
positivos, especialmente em situações de transformação sistêmica. Um pro-
jeto educacional ilustra isso, onde o objetivo era otimizar o processo de ela-
boração de planos de ensino para professores. Diante de feedbacks negativos
na fase de prototipação, os designers optaram por organizar um workshop
colaborativo para os professores. Neste evento, os participantes comparti-
lharam suas experiências e práticas, o que resultou na co-criação de planos
de ensino mais eficazes. Esta experiência revelou que a integração do de-
sign relacional, focado em fortalecer as interações humanas, pode ser um
catalisador poderoso para a inovação e o desenvolvimento pessoal, impac-
tando positivamente tanto o bem-estar individual dos professores quanto a
dinâmica social da comunidade educativa.
Um estudo de Nielsen & Bjerck (2022) sobre pacientes submetidos a cirur-
gias demonstrou a importância das relações médico-paciente. Os pacientes
que mantinham relações de confiança com seus médicos relataram sentir-se
mais seguros e bem informados sobre seus procedimentos e recuperação.
Esta observação ressalta que, no design voltado à saúde, o foco nas relações
humanas pode ser mais impactante do que meramente classificar pacientes

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 137
em categorias ou personas. Este estudo sugere a adoção de uma visão mais
ampla, na qual os pacientes são considerados membros ativos de redes so-
ciais, e não apenas como entidades isoladas. Além disso, os autores propõem
a utilização de métodos autoetnográficos em design, argumentando que es-
tes podem oferecer insights mais profundos sobre as experiências humanas
e resiliência, sugerindo a necessidade de uma abordagem mais holística e
empática no design em contextos de saúde.
Finalmente, Yoon e Kim (2022) examinaram como a diversidade de emo-
ções positivas influencia o uso da tecnologia e o bem-estar dos usuários. Os
resultados mostram que uma abordagem de design que contempla uma va-
riedade de emoções positivas enriquece a experiência do usuário. Este es-
tudo sublinha a capacidade da tecnologia em servir como um veículo para
emoções positivas e atividades enriquecedoras. Os pesquisadores ressaltam
a importância do papel do designer em focar nas experiências e atividades
possibilitadas pela tecnologia, além de seus aspectos físicos. A pesquisa su-
gere que a emodiversidade positiva no design de produtos tecnológicos pode
ser uma ferramenta valiosa para a construção de relações sociais duradou-
ras e o fortalecimento do bem-estar a longo prazo.
Ao nos aprofundarmos no design relacional e na empatia, fica eviden-
te como esses conceitos enriquecem e expandem as abordagens do Design
Emocional. Esta integração reflete a evolução do design e destaca a necessi-
dade de práticas de design enraizadas na compreensão das relações humanas
e na empatia. A convergência destes campos surge como uma necessida-
de para enfrentar eficazmente as complexidades e desafios do design con-
temporâneo, iluminando um caminho promissor para o futuro do design.

5. Apontamentos finais
Este artigo traçou um caminho de mudança no campo do design, começan-
do com a transformação paradigmática do foco na estética e funcionalidade
para uma abordagem mais rica e contextual, passando pelo desenvolvimen-
to do Design Emocional e culminando na integração do Design Relacional.
Através desta jornada, fica claro que a prática do design está se movendo
em direção a uma compreensão mais profunda e humanizada, onde a em-
patia, a experiência emocional, e a colaboração não são apenas elementos
complementares, mas fundamentais.
A mudança no design, como demonstrado inicialmente, reflete uma mu-
dança de perspectiva, onde os designers são desafiados a ir além das solu-
ções tradicionais e a considerar as complexidades sociais e emocionais dos
seres humanos. Em seguida, ao explorar o Design Emocional, revelamos
como este campo se tornou essencial para criar experiências significativas

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 138
e transformadoras, reconhecendo a importância das emoções e sentimen-
tos na interação com o outro e com o artefato. Ao integrar estas ideias ao
design relacional, destacamos como esses conceitos se combinam para for-
mar uma abordagem mais holística e centrada nas relações humanas. Este
enfoque não só enriquece as experiências dos indivíduos, mas também pro-
move uma cocriação mais efetiva e genuína, estabelecendo um novo padrão
para o design futuro.
Buscamos neste estudo, discutir mudanças apontadas por diversos estu-
diosos da área, como Blauvelt (2008), Krippendorff (2006) e Fokkinga (2021).
Porém, compreendemos a necessidade de pesquisas práticas e de uma abor-
dagem a longo prazo de acompanhamento das mudanças sociais e do im-
pacto do design para esse processo. Assim, ressaltamos que a convergência
destes aspectos - O design centrado no humano, o Design Emocional, e o
Design Relacional - é mais do que uma tendência; é uma necessidade vital
para responder de forma adequada aos desafios e complexidades do mun-
do contemporâneo. O futuro do design, portanto, será marcado por uma
abordagem mais integrada e empática, onde a criação de soluções significa-
tivas e humanizadas será a pedra angular. Esta evolução não apenas melho-
ra a qualidade das soluções de design, mas também fortalece as conexões
humanas, transformando o design em uma ferramenta poderosa para um
impacto social positivo e duradouro.

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Como referenciar

ASSUNÇÃO NEVES, Renata. DAMAZIO, Vera M. M. Projetando


para emoções e relações: um novo paradigma no design
contemporâneo. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp. 123-142,
jan./2024. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.
php/arcosdesign.

———

DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.78580

———

A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


Commons Atribuição – Não Comercial – Compartilha Igual 3.0
Não Adaptada.

Recebido em 16/08/2023 | Aceito em 16/11/2023

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 123-142. 142
arcos design

Tomando um lado: formação crítica e


prática extensionista no Laboratório
de Design contra Opressões

William Bizotto dos Santos (utfpr, Brasil)


william.1998@alunos.utfpr.edu.br

Marco Mazzarotto (utfpr, Brasil)


marcomazzarotto@gmail.com

Frederick Marinus Constant van Amstel (utfpr, Brasil)


vanamstel@gmail.com

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. ISSN: 1984-5596 v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign

143
Tomando um lado: formação crítica e prática
extensionista no Laboratório de Design contra Opressões

Resumo: A noção de projeto como solução de problemas vela a sua dimen-


são existencial, que inclui seus interesses políticos, culturais e históricos. A
negação dessa dimensão na formação em design leva a uma práxis aparente-
mente neutra, porém, em sua essência, vinculada aos interesses dos grupos
sociais dominantes. Esta pesquisa apresenta a perspectiva dialético-existen-
cial sobre o projeto de Álvaro Vieira Pinto e Paulo Freire para fundamentar
a práxis extensionista do Laboratório de Design contra Opressões (LADO)
na UTFPR. A descrição desta práxis desvela caminhos para vivenciar a li-
berdade no campo de design como uma prática coletiva de comunicação e
diálogo entre universidade e movimentos sociais.
Palavras-chave: conscientização, design contra-hegemônico, design parti-
cipativo, projeto, extensão universitária.

Taking a side: critical formation and outreaching practice


in Laboratory of Design against Oppression (lado)

Abstract: Understanding project as a problem-solving activity may obscure


its existential dimension, which includes its political, cultural, and historical
interests. Denying this dimension in design education leads to a seemingly
neutral praxis, but in essence, linked to the interests of dominant social groups.
This research presents the dialectical-existential perspective on design projects
developed by Álvaro Vieira Pinto and Paulo Freire to support the extensionist
praxis of the Laboratory of Design against Oppression (LADO) at UTFPR. This
praxis´ description reveals paths to experience freedom in the field of design
as a collective practice of communication and dialogue between the university
and social movements.
Keywords: critical consciousness, counter-hegemonic design, participatory
design, project, extension courses.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. 144
1. Introdução
Nos últimos anos, surgiram novas vozes no debate sobre pensar e fazer de-
sign fora da hegemonia dos cânones modernistas. Essas vozes denunciam a
pretensa neutralidade do design moderno, desbancando o discurso de que
só há uma forma correta de projetar o mundo, a forma capitalista do Norte
Global. Importantes e diferentes justamente pela sua pluralidade, menciona-
mos algumas dessas vozes: design para o pluriverso (ESCOBAR, 2018), design
decolonial (TLOSTANOVA, 2017; ANSARI, 2019), design nas bordas (SILVA,
2022), pesquisa militante no design (SERPA, 2022) e estudos de opressão
no design (VAN AMSTEL, GONZATTO e NOEL, 2023). Além dessas, existem
muitas outras que podem ser referidas como “outros designs” (CARVALHO
et al, 2021) ou até mesmo práticas fora do campo institucionalizado do de-
sign, o “design com outros nomes” (GUTIÉRREZ BORRERO, 2022). Portanto,
se o Design hegemônico (SILVA, 2022; OKABAYASHI e DOS SANTOS; 2022) é
aquele que busca impor uma prática pautada apenas pelo modelo capitalista
desenvolvimentista Angloeuropeu, essas vozes contra-hegemônicas buscam
encontrar fissuras nesse modelo nas quais a diversidade de modos de ser e
de fazer do Sul Global possam também florescer.
Podemos identificar alguns pontos em comum levantados por essas vo-
zes, por exemplo, a proposição de um design crítico e político, que possa se
tornar aliado nas lutas de grupos oprimidos pela sua libertação. Nessa pro-
posta, o design deixa de ser uma teoria e/ou prática de uma classe de desig-
ners institucionalmente autorizados para isso e passa a ser considerado um
direito dos povos oprimidos na sua busca por autodeterminação. Design
já foi anunciado como um direito humano há muito tempo (BUCHANAN,
2001), porém, o que essas vozes querem hoje é que design não seja apenas
um meio para proteger a dignidade humana, mas sim aquilo mesmo que
deve ser protegido.
Isso implica em uma atitude diferente para designers. Em vez de atuarem
como solucionadores de problemas detentores do privilégio de projetar, de-
signers atuam como defensores do direito de uma comunidade de se auto-
-projetar (ESCOBAR, 2018). Mudar a Educação em Design atual é crucial para
explorar e fundamentar essa nova forma de atuação. Infelizmente, educado-
res em design que atuam em diversos mundos chegaram à conclusão de que
a Educação em Design carrega um viés colonial, Eurocêntrico e capitalista
(Noel et al, 2023). Devido a esses vieses, essas novas vozes, oriundas prin-
cipalmente do Sul Global, não chegam a entrar em diálogo com a maioria
dos estudantes de design, nem mesmo no próprio Sul Global.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. 145
Formar criticamente designers para que pensem e pratiquem o seu que
fazer1 de forma libertadora se mostra um grande desafio, principalmente
quando a educação, em sua ampla aplicação, se caracteriza por atitudes ban-
cárias que negam outras epistemologias, outras formas de conhecer o mundo
(FREIRE, 2021). Assim, surge a pergunta crucial desta pesquisa: como for-
mar profissionais de design que estejam preparados para defender o design
como um direito humano?
Longe de dar uma resposta final a esta pergunta, este artigo visa descrever
e analisar a formação crítica e prática extensionista proporcionada pelo pro-
jeto de extensão chamado Laboratório de Design contra Opressões (LADO)
na UTFPR, que visa desenvolver projetos de design em conjunto com movi-
mentos sociais. Este projeto está sendo desenvolvido a partir da perspecti-
va dialético-existencial sobre design e educação. Essa perspectiva permite
perceber o design enquanto um projeto existencial humano e, assim, reve-
lar suas implicações materiais e políticas.
Na primeira parte deste artigo, buscamos estabelecer algumas diretrizes
que mostrem o que fazer do designer não como algo neutro, mas sim como
atividade intrinsecamente humana e determinante histórica na produção de
existência, objeto de um direito humano fundamental. Para isso, lançamos
mão das categorias de projeto e consciência crítica concebidas por Álvaro
Vieira Pinto (2005; 2020; 2021) e expandidas por Paulo Freire (1980; 2014;
2021). Destacamos seu pensamento ontológico e epistemológico, assim como
conceitos de educação crítica, diálogo, autonomia e práxis. Logo após essa
exposição, serão apresentadas as experiências de formação crítica e prática
extensionista do laboratório mencionado.

2. Projeto e existência
Rememorando a história do design, vemos que ele nasce da divisão social do
trabalho surgida com a revolução industrial, que separou aquele que planeja
daquele que executa objetos. O objetivo era atingir a padronização necessá-
ria para que uma produção em série fosse possível (CARDOSO, 2008). Em sua
presente forma histórica, podemos definir o design hegemônico como uma
abordagem profissional para resolução de problemas de produção e con-
sumo por meio de projetos calcados em métodos pré-definidos (LÖBACH,
2012). Este modo de entender design reproduz ética e esteticamente uma
práxis de manutenção do status quo da classe dominante.

1 Mais que um puro fazer, o “que fazer” não dicotomiza ação e reflexão, integrando-os em
um fazer e pensar dialético (FREIRE, 2021).

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. 146
Esta visão de projeto é criticada por diversos autores. Silva e colegas, por
exemplo, consideram a solução de problemas uma visão reducionista do
design, pois “valores como cultura e contexto são mencionados em exem-
plos, mas não existe uma discussão sobre abrangência ou limites de ambos
dentro do processo de design” (SILVA; KIRA; MERKLE, 2016, p. 9). Os autores
chamam a atenção para a etimologia da palavra projeto, que significa jogar a
frente, impulsionar algo no espaço e no tempo. Por outro lado, Van Amstel,
Botter e Guimarães (2022) afirmam que todo projeto contém também um
trajeto, que nos informa em qual modo será produzido; qual a divisão so-
cial do trabalho será empregada para realizá-lo; quem irá pensar quais as
necessidades devemos priorizar; qual o impacto no meio-ambiente; etc. Ao
projetar idealmente uma nova condição de existência e realizá-la material-
mente, deixando como um trajeto para novos projetos, seres humanos es-
tão projetando também a si mesmos, visto que estão modificando objetiva-
mente as condições nas quais vivem, as forças e as relações produtivas com
a natureza (MARX, 2015; VIEIRA PINTO, 2020).
A historicidade do ser humano não se manifesta, entretanto, como uma
série de ações lineares direcionadas a um fim pré-definido. Cada ser humano
é um ser projetante autônomo e pode ou não se associar com outros seres
humanos para formar seres projetantes mais poderosos, tais como comu-
nidades, organizações e Estados, os chamados corpos projetuais coletivos
(ANGELON e VAN AMSTEL, 2021). Esses corpos coletivos não são homogê-
neos, pois os seus corpos individuais têm projetos conflitantes e trajetos de
vida completamente diferentes. Mesmo que os conflitos sejam resolvidos,
permanecerá a contradição entre o que fazer individual e o que fazer cole-
tivo. Essa contradição costuma arrastar outras contradições para o espaço
de projeto, gerando a necessidade da deliberação democrática entre os par-
ticipantes do projeto existencial coletivo.
Partindo desta perspectiva dialético-existencial do projeto, compreen-
demos a consciência do sujeito enquanto uma representação subjetiva de
um dado objetivo do mundo real, que dá origem à ação transformadora
do espaço social em que está inserida por meio do trabalho (FREIRE, 1980;
2021; VIEIRA PINTO, 2020). Esta historicidade, tanto do sujeito quanto do
objeto, trabalha o tempo não em sua matriz cronológica, mas sim existen-
cial (VAN AMSTEL e GONZATTO, 2022). O projeto se coloca à frente do ser
atual para abrir a possibilidade do vir-a-ser. Portanto, a consciência do ser
não é limitada ao momento atual da história humana, senão que se localiza
precisamente entre passado e futuro. As condições objetivas — e o próprio
ser — se modificam a cada passo do processo dialético de análise do obje-
to historicamente situado, sendo necessária uma nova atualização do olhar

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. 147
crítico dos sujeitos perante à realidade para capturar sua própria historici-
dade (FREIRE, 1980).
Segundo Álvaro Vieira (2020; 2021), a historicidade da consciên-
cia pode ser capturada de duas maneiras. A consciência ingênua se destaca
ao estar centrada em si mesma, não admitindo os processos de influência
que a realidade objetiva tem sobre ela. Ela se vê como atemporal e incriada.
Em contraposto, há a consciência crítica, que reflete a sua existência diale-
ticamente com a realidade, penetrando na essência fenomênica do objeto
(FREIRE, 1980). A conscientização descrita por Paulo Freire seria justamen-
te o processo de passagem da consciência ingênua para a crítica, ultrapas-
sando o mero ato falsamente intelectual de tomada de consciência que re-
cai sobre a ingenuidade. Em outras palavras, o ato crítico do conhecimento
consiste no exame racional do objeto, tornando consciente os seus funda-
mentos, condicionamentos e seus limites, ao passo que se faz a verificação
destes nos processos históricos reais (NETTO, 2009). A conscientização se
dá na criticidade da consciência, no desvelamento e no agir do ser na rela-
ção consciência-mundo (FREIRE, 1980).
O processo de apreensão do real por parte do sujeito nos revela a vocação
ontológica enquanto essa capacidade de ser mais (FREIRE, 1980), de sermos
seres livres que negam sua certeza acerca do objeto percebido, e que, ao ne-
garem-no, o assimilam criticamente, buscando versões mais potentes de seu
entendimento do objeto e do seu próprio ser consciente de si, de ser melhor
que seu eu de ontem e construir, a partir do hoje, seu amanhã. Porém, na
situação de opressão, o ser consciente, historicamente privilegiado, objeti-
fica e destrói o outro em seu processo de apreensão do mundo, transpor-
tando-o à uma categoria inferior, não humana, o ser menos. Neste sentido,
a opressão se configura e é efetivada quando se constitui em um ato proibi-
tivo do ser em sua apreensão do real, a negação do ser mais (FREIRE, 2021).
As relações sócio-históricas de opressão fazem com que tanto opressores
quanto oprimidos participem de um processo de desumanização que limi-
ta a consciência de seus projetos possíveis e trajetos já realizados. A história
de classes se vê repleta de exemplos que demonstram essa realidade desu-
manizadora. Do colonialismo ao imperialismo, passando pelo machismo,
racismo e LGBTQIAP+fobia, todos esses regimes de opressão negam a capa-
cidade dos indivíduos de serem livres para si.
O processo de conscientização descrito por Freire (1980) é um processo
de retomada dessa capacidade negada. O educando percebe a situação de
opressão, encontra o seu lugar nela, se posiciona politicamente e age com fins
a superar a sua opressão ou a opressão do outro. Se ver como oprimido é o
primeiro passo. Depois, o educando se entende também como opressor em

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uma relação diferente. Por exemplo, uma mesma pessoa pode ser oprimida
na relação de classe, caso seja trabalhadora assalariada, e opressora na rela-
ção de gênero, caso seja um homem (BOAL, 1979). O importante aqui não é
só se identificar com a opressão, mas também agir para liberta-se da mesma.
Esta é a essência do design enquanto um projeto da existência humana:
continuar sendo livre no contexto vindouro, ou seja, numa situação dife-
rente da que já se está. Neste sentido, o design exerce o papel de ponte para
a realização material da abstração cultivada nas mentes e buriladas nas mãos
das pessoas. A partir da conscientização das pessoas acerca de suas realida-
des como seres oprimidos — seja de classe, raça, gênero, etnia, etc. e suas
respectivas intersecções — pelas condições sócio-históricas e de suas capa-
cidades de transformação do mundo, as pessoas podem lidar com as con-
tradições desta realidade sem reducionismos, criando, assim, formas mais
complexas de ser e de viver. A transmissão cultural dessas formas de ser e de
viver coloca um desafio grandioso para a educação, principalmente, para a
educação de designers, pois o design costuma ser ensinado e praticado em
um escopo muito mais reduzido.

3.Existência e educação crítica


Como já apresentado, Vieira Pinto (2020) e Freire (1980; 2021) entendem
que nossa forma de perceber a realidade transita entre ser ingênua e crítica.
A primeira se considera independente e não condicionada pela realidade,
e portanto não precisa investigá-la. Já a consciência crítica reconhece que é
justamente condicionada por essa realidade, e portanto é necessário inves-
tigar como esses condicionamentos ocorrem e como podem ser transfor-
mados. Cabe à educação crítica promover meios de nos aproximar cada vez
mais da consciência crítica para possibilitar a percepção e transformação
das relações opressoras que nos condicionam.
Assumir design como projeto existencial implica em trilhar trajetos mui-
to diferentes dos já realizados pela Educação em Design. Analisando cri-
ticamente, por exemplo, a aplicação de métodos centrados em um usuário
na intenção de transformarmos o mundo num lugar melhor para ele sem
que haja a sua real participação no projeto Isso é equivalente a uma censu-
ra das capacidades criativas dos “usuários” como produtores de sua própria
existência (GONZATTO, 2018), visto a capacidade intrinsecamente humana
de projetar (VIEIRA PINTO, 2005), que não deveria ser privilégio apenas de
uma classe de designers profissionais.
Como mencionado, a teoria do design geralmente não considera essa di-
mensão existencial do design. Quando o faz, a contradição é ofuscada por
afirmações audaciosas como “todos são designers” (MANZINI, 2014).

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Na perspectiva dialético-existencial, todos são designers, mas alguns são
mais designers do que outros. A paráfrase da afirmação alegórica de George
Orwell (1945) de que “(na fazenda) todos os animais são iguais, mas alguns
animais são mais iguais do que outros” encapsula a contradição entre direi-
tos e privilégios que a teoria do design precisa encarar. Em uma sociedade
estruturada por classe, gênero, raça e outras formas de opressão, o direito de
projetar os meios de existência é negado em prol de um privilégio de pou-
cos. Grupos historicamente desprivilegiados são considerados incapazes de
projetar suas condições de existência, mesmo que o tenham feito por sécu-
los. O direito de projetar é negado em favor de uma noção paternalista de
uso, ou seja, de que os oprimidos são sempre os usuários do design e nunca
os seus protagonistas (GONZATTO, 2018).
Em tais circunstâncias históricas, é possível apelar aos direitos humanos
e incluir o design como um direito universal de todos os seres humanos: o
direito de projetar a si mesmo com base em seus próprios propósitos. Isso
não é uma premissa ética nova no design. O design participativo é uma
abordagem de projeto que, desde os anos 1970, combate este privilégio.
Inspirada nos escritos de Paulo Freire (RIBEIRO, 2018), dentre outros auto-
res, o design participativo se propõe a incluir todos aqueles que são afeta-
dos por um projeto (EHN, 1988).
Lançando mão da análise crítica sobre a educação como uma prática
bancária (FREIRE, 1980) — na qual o professor, detentor de todo o conheci-
mento, vai “depositando” nas cabeças de alunos o que o sistema educacional
julga ser necessário, deixando de lado o “saber de experiência feito” — cria-
-se uma hierarquia entre aquele que sabe, e aqueles que não sabem, e por
isso devem ser iluminados. O design participativo busca romper com esta
noção hierarquizante, exercendo a solidariedade para com aquelas pessoas
que têm sua criatividade tolhidas, visto que o processo de emancipação e
conscientização se faz na atividade dialógica, quando as pessoas se enten-
dem como detentoras de saber e que, através de sua inserção num processo
projetual feito com elas e não para elas, podem ter um papel importante na
resolução de problemas complexos.
Deste modo, “não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é li-
bertação de homens e não de ‘coisas’. Por isso, se não é autolibertação – nin-
guém se liberta sozinho –, também não é libertação de uns feita por outros”
(FREIRE, 2021, p. 74). Sendo assim, a educação libertadora em design não
pode ser feita apenas por designers, mas também por usuários, em comu-
nhão, inseridos em projetos participativos que visam a transformação de
suas realidades. Esta busca difere o design participativo das práticas cola-
borativas do design hegemônico que também envolvem usuários. Enquanto

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a primeira tem a formação de consciência crítica e a libertação das opres-
sões como propósito primordial, a última se aproveita de uma participação
domesticada e ingênua, que não questiona as relações de poder e continua
a criar produtos que reforçam os modos de existência entre opressores e
oprimidos.
No design participativo, os usuários participam dos jogos de projetar
propostos pelos designers e assim adquirem novas linguagens para trans-
formar sua realidade (EHN, 1988). Segundo Paulo Freire (2021), ao ler um
livro, jornal, histórias em quadrinhos, entre outros, não estamos apenas me-
canicamente lendo. A linguagem falada e, principalmente, a escrita nos é
ensinada como uma habilidade motora, e o fazemos como tal. É uma ativi-
dade cultural complexa que envolve posicionamentos políticos (VYGOTSKY,
1991). Freire (2021) pontua que “a leitura de mundo precede a leitura da
palavra”, o que significa que trata-se de um contato com o mundo que, me-
diatizado por este mesmo mundo, as pessoas possam se educar e projetar
as suas existências.
Essa visão expandida de educação nos abre a possibilidade de repensarmos
o ensino e a prática projetual do design, sobretudo nos exercícios participa-
tivos. Quando escrevemos sobre a necessidade de inserirmos o pensamento
de Paulo Freire nos processos educativos e de projeto de design não é sobre
exercer uma sloganização, citar suas frases e pensamentos para a ornamen-
tação da prática. Mas sim, sobre a inserção da práxis dentro do design, re-
fletir criticamente sobre o papel de “fazedoras do mundo” que cada pessoa
tem em busca de ser mais, em um processo de conscientização do sujeito
acerca de sua realidade objetiva e de como transformá-la.
Para evitarmos que nossa atuação seja pautada em um messianismo que
ilumina palavras àquelas e àqueles na escuridão, criando assim outra peri-
gosa contradição, devemos exercer a práxis. Para Freire (2021), a consciên-
cia e a esperança idealista por si só não dão cabo das mudanças necessárias
do mundo. A práxis deve ser entendida na relação dialética entre prática e
teoria que nos faz desvelar, conhecer e recriar o mundo a partir de suas con-
tradições (ENH, 1988). Portanto, na próxima seção iremos descrever ativi-
dades fundadoras da práxis de um laboratório de design contra opressões
orientada pela perspectiva dialético-existencial apresentada até aqui.

4.Experimentando formas de combater


a opressão através do design
Na UTFPR, desde 2021, o projeto de extensão LADO (Laboratório de Design
contra Opressões) produz um espaço que busca realizar experimentos de
fazer e pensar design contra a opressão. Partindo do princípio de que a

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opressão é uma contradição que os oprimidos precisam superar através de
muita luta, as atividades do LADO visam experimentar como o design pode
se posicionar coerentemente nesta luta em busca do ser mais. O próprio
nome do laboratório é uma alusão à ação política de tomar um lado des-
ta contradição. Conforme coloca o arcebispo e ativista político Desmond
Tutu, “se você fica neutro em uma situação de injustiça, você escolhe o lado
do opressor”. A participação nos experimentos do LADO é, por si só, uma
espécie de declaração de apoio aos oprimidos.
Os objetivos do LADO são: a (1) formação crítica em design, auxiliando
no desvelamento da sua dimensão opressiva, ao mesmo tempo em que po-
tencializa formas libertadoras de projetar; (2) a abertura horizontal para a
práxis do design, entendendo que todas as pessoas não só tem a capacidade,
como o direito de projetar seus mundos; e (3) resgatar, valorizar e/ou desin-
visibilizar outras formas de pensar e criar o mundo à nossa volta, principal-
mente a partir de pensadoras e pensadores latino-americanos e dos conhe-
cimentos e práticas dos movimentos sociais populares.
No que tange à sua organização interna, o LADO mantém suas atividades
por meio da autogestão (GONZATTO et al., 2021), que busca substituir hie-
rarquias pelo diálogo horizontal. A realização das ações ocorre por meio
de Grupos de Trabalho (GTs), que podem ser propostos por qualquer par-
ticipante e que se mantém abertos para quem quiser se engajar no corpo
coletivo. Os GTs não tem uma liderança autocrática, mas sim uma ou mais
pessoas que assumem o papel de “puxadoras” do grupo, incentivando a
participação, convocando encontros ou sendo mais ativa na proposição de
ações. As decisões e ações, porém, são sempre coletivas.
Para evitar que cada GT atue de maneira isolada há uma reunião sema-
nal de articulação, o bate-bumbo, denominada assim por alusão a um dos
principais instrumentos utilizado em rodas de Samba para marcar o ritmo
de fundo. Nesta reunião, que dura no máximo uma hora, os grupos contam
suas novidades e pedem ajuda dos demais GTs caso precisem. Na reunião,
também são criados, mesclados ou desfeitos os GTs existentes. Batendo o
bumbo, esse corpo projetual coletivo (ANGELON e VAN AMSTEL, 2021), for-
mado por diversos grupos independentes, se alinha e se realinha para se-
guir juntos nas diversas lutas contra a opressão.
O início do projeto de extensão se deu em 2021, em resposta a um ma-
nifesto escrito por estudantes de design sobre a necessidade de maior poli-
tização da sua própria formação (ANGELON e VAN AMSTEL, 2021). A Rede
Design & Opressão já havia acolhido alguns desses estudantes em suas ati-
vidades remotas de formação crítica em design (SERPA et al., 2022), porém,
os estudantes queriam desenvolver projetos de extensão junto à comunidade

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no entorno da universidade. O laboratório foi fundado, então, como uma
das unidades dessa coalizão insurgente de design (VAN AMSTEL et al., 2021).
Os primeiros experimentos do LADO foram realizados na modalida-
de remota devido à pandemia COVID-19, seguindo o modelo de apropria-
ção pedagógica do aplicativo Discord criado pela Rede Design & Opressão
(SERPA et al., 2022). Nesse primeiro momento, a contradição principal era
entre a educação bancária (FREIRE, 1980) predominante na educação remo-
ta emergencial da universidade e a educação libertadora da Rede Design &
Opressão, que dependia da autonomia do estudante que a educação ban-
cária desincentivava.
No ano de 2022, quando as atividades começaram a ser realizadas presen-
cialmente em um espaço dentro da universidade, novas contradições sur-
giram. Uma delas era como se constituíam as relações de poder no espaço
entre os participantes da atividade extensionista. Por exemplo, a Figura 1
apresenta a configuração espacial típica da reunião de bate-bumbo, que visa
reduzir a hierarquia no espaço social, mas que ainda se baseia na loquaci-
dade para distribuir o espaço de fala.

figura 1. Encontro semanal do bate-bumbo. (fonte: acervo do lado)

A formação crítica buscada pelo LADO precisa ocorrer, portanto, em pelo


menos dois níveis. Primeiro interno, de modo que nosso modelo de gestão,
nosso espaço físico e nossas práticas projetuais sejam coerentes com a edu-
cação libertadora e preparem os estudantes para agir com a comunidade,
em um segundo nível extensionista e externo, também de forma autônoma,

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dialógica e crítica. Ambos os níveis de formação, começando pelo primeiro,
são apresentados a seguir.

4.1 Experimentos projetuais e formação crítica dentro do lado


Vendo a necessidade de criar um lugar que refletisse melhor as diversas
culturas e modos de ser de seus participantes, foi criado um GT intitulado
Nosso LADO, responsável por articular dinâmicas e práticas projetuais que
buscassem modificar a materialidade do laboratório e, ao mesmo tempo,
analisá-la num processo de tomada de consciência dos alunos sobre seus
papéis dentro da universidade, tomando um lado enquanto tal e expandin-
do-o para fora (SANTOS, 2023). Apesar da existência de outros GTs, neste
texto destacamos o Nosso LADO por articular de maneira mais evidente a
perspectiva dialético-existencial de projeto de Vieira Pinto e Freire.
Na busca de um modo de projetar que fosse diferente daqueles comu-
mente praticados no design, nos inspiramos no Método Elos2 para gerarmos
um método de design participativo que, na medida do possível, abarcasse
os diversos corpos individuais que compõem esse corpo coletivo maior.
Tentando entender e acolher a liberdade criativa de cada participante, arti-
culamos nosso método em seis fases (Figura 2): a) olhar e ter afeto, na qual
observamos as características positivas e potencialidades que temos no es-
paço e nas pessoas; b) sonhar, para sabermos quais os sonhos individuais e
que depois se manifestaram na coletividade; c) experimentar e nos cuidar,
para testar produtos e serviços por meio de desenhos, mockups e protóti-
pos; d) construir e materializar as ideias; e) celebrar o esforço coletivo; f)
re-evolucionar, para refletirmos e analisarmos coletivamente sobre o pro-
cesso, já imaginando a continuação de novos ciclos. No caso do LADO, nos-
sa contribuição à Metodologia Elos foi justamente transformar essa última
etapa em um exercício de discussão e formação crítica.

2 O método Elos é um conjunto de diretrizes que guiam as práticas do Instituto Elos, sendo
elas: olhar, afeto, sonho, cuidado, milagre, celebração e re-evolução. O instituto tem como
objetivo, a partir do seu método, incentivar o desenvolvimento comunitário por meio do
protagonismo cidadão, capacitando-os para responder aos problemas locais (ALVES, 2018;
MARMENTINI e PINHEIRO, 2017).

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figura 2. O nosso método. (fonte: do autor)

O primeiro experimento de olhar e ter afeto buscava conhecer melhor


cada participante, suas potencialidades e criar uma rede de solidariedade.
Trata-se de um processo de conhecimento interpessoal que visa conhecer e
unir o grupo. O mesmo foi realizado a partir de uma dinâmica que quebra
padrões do design hegemônico, questionando a maneira genérica de objetifi-
car a subjetividade de usuários em métodos como Personas (COOPER, 1999).
“Personas não, pessoas” é um experimento em que cada pessoa, munida de
lápis e papel, descreve livremente — em sua forma e conteúdo — aspectos
de sua personalidade, coisas que gosta de fazer, no que acha ser boa, etc.
Em seguida, este papel é colado com fita no corpo da pessoa. Todos cami-
nham livremente para conversar entre si sobre tais aspectos (Figura 3). A
dinâmica não apenas conectou os participantes de maneira sensível, mas
também nos mostrou quais as potencialidades individuais que tínhamos
disponíveis para realizar um sonho coletivo. Não estávamos interessados
em olhar apenas para os problemas ou para o que faltava naquele contexto,
mas sim para o que já tínhamos de abundância e para as relações possíveis
que ali surgiriam.

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figura 3. Experimento “Personas não, pessoas”. (fonte: acervo do lado)

Em seguida, os integrantes expressaram seus sonhos para o espaço de for-


ma abstrata e/ou concreta (Figura 4). O sonhar poderia ser realizado com
qualquer linguagem desejada, seja desenho, escrita, etc. Neste experimento,
o processo de conscientização já começava a ficar mais evidente, visto que
vários desejos descritos tratavam de opressões sentidas diariamente, nem
sempre percebidas e discutidas publicamente. Pequenas partes de si já esta-
vam sendo compartilhadas para construir um corpo coletivo, uma coalizão
de design (ELEUTÉRIO e VAN AMSTEL, 2023; ANGELON e VAN AMSTEL, 2021).

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figura 4. Experimento de sonhos individuais dos participantes do lado. (fonte: acervo do lado)

Com o objetivo de tangibilizar e conectar metaforicamente esses sonhos,


foi realizado um experimento com o método de criatividade Lego Serious
Play3. Cada participante deveria, primeiramente, representar contradições
da realidade de forma caricata e conceitual que gostaria de transformar na-
quele espaço, abrindo caminho para aquelas pessoas que se sentiam inse-
guras com a linguagem falada ou escrita mostrarem suas ideias com uma

3 Baseado no conceito de “conhecimento das mãos”, o método visa facilitar através de blocos
de montar do tipo Lego o engajamento de todas as pessoas participantes em um projeto,
de forma a melhorar a comunicação, pensamento e construção de ideias (KRISTIANSEN e
RASMUSSEN, 2015).

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linguagem tridimensional metafórica. Depois de montar seus modelos in-
dividuais, os participantes do experimento montaram um modelo coletivo
que agregava todos os modelos individuais (Figura 5). Cada modelo apre-
sentado suscitava um diálogo rico em posicionamentos e reflexividade. A
visão geral dos posicionamentos permitiu (des)nortear os planos futuros
para o projeto Nosso LADO: a) buscar mais diversidade e alegria nos espa-
ços; b) evitar artefatos que excluam e dividam, e c) sempre ter a luta contra
as opressões como guia.

figura 5. Experimento com Lego Serious Play para criação do nosso sonho coletivo. (fonte: acervo do
lado)

Dando um passo a mais na direção da realização dos sonhos comparti-


lhados, passamos a desenhar coletivamente a planta baixa do espaço e os
artefatos que ali deveriam existir. Com o diálogo aberto, fomos perceben-
do as vontades que se sobrepunham, mas também as nuances e diferenças
de cada um. Cada um sentia o mundo ao seu redor de uma maneira que
poderia ou não ser sentida pelo próximo. Era crucial que as maneiras de
sentir o mundo fossem acolhidas, respeitadas e preservadas, muito embo-
ra pudessem também se transformar em novas sensações pelo contato com
os outros. Experimentar e nos cuidar, portanto, andavam de mãos dadas.
Muito lápis, caneta, papel Kraft foram necessários para transpor objeti-
vamente todos esses aspectos discutidos no plano das ideias. O resultado
foram diversos mockups e plantas baixas para o espaço do LADO (ex: Figura
6). Ideias como um mural artístico participativo, plantas, cores, um espaço

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para o café, biblioteca compartilhada de obras literárias e cadeiras customi-
zadas começaram a tomar forma e se destacar como prioritários.

figura 6. Experimento de desenho coletivo da planta baixa do espaço do lado. (fonte: acervo do lado)

A primeira realização de um sonho ocorreu com a reforma das cadeiras que


tínhamos disponíveis no ambiente do laboratório. Em paralelo a este experi-
mento, foi realizado outro experimento de criação coletiva de um mural em co-
memoração aos cem anos de Paulo Freire. Alguns dos resultados da etapa cons-
truir podem ser vistos na Figura 7, que mostra um espaço diferente das salas da
universidade que nos abriga, justamente porque foi criado a partir dos anseios
dos próprios estudantes e não por uma agenda de design vinda de além-mar.

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figura 7. Experimentos de customização de cadeiras e de mural artístico participativo desenvolvido
pelos participantes do lado. (fonte: acervo do lado)

Visando celebrar o progresso feito pelo grupo, realizamos uma “festa das
cadeiras”. Na oportunidade cada pessoa deu um nome para a cadeira na qual
estava sentada, refletindo a sua percepção estética daquele espaço. Em se-
guida, praticamos o Jogo de Xadrez do Teatro do Oprimido (BOAL, 2002).
Como mostra a figura 8, o jogo consistia em (des)organizar as cadeiras pelo
espaço de forma aleatória. Os participantes permaneceram sentados, com
exceção de dois, sobrando apenas um assento livre. Destes atores que per-
maneceram em pé, um caminhava lentamente buscando sentar-se onde es-
tava vago, enquanto o outro assumia o papel de mediador que gestualmente
direcionava aqueles sentados para a cadeira vazia, tentando evitar que o pri-
meiro se sentasse. Através dos direcionamentos gestuais, o mediador incor-
porava metaforicamente o papel do líder em um ambiente autogestionário,
que se revela aquele que puxa e incentiva a ação dos demais atores mas que,
sem a participação sincronizada do coletivo, não alcança feitos significativos.
Pensar a diferença entre líderes, mediadores e seguidores por meio deste
jogo de teatro articulou dialeticamente a prática e teoria da autogestão. Os

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participantes perceberam que a opressão nem sempre se manifesta de ma-
neira explícita, mas também na forma como um oprimido reage à opressão
isoladamente, por exemplo, tomando uma postura autocrática ou lenien-
te em relação aos outros. Nesse experimento com Teatro do Oprimido, fo-
ram ensaiadas diversas reações à opressão, algumas com maior sucesso do
que outras.

figura 8. Experimento de Jogo de Xadrez do Teatro do Oprimido. (fonte: acervo do lado)

Na fase de re-evolucionar, em que se fazem reflexões sobre o que já foi


feito, percebemos como a própria construção coletiva do espaço do LADO
já poderia ser considerada uma atividade de formação crítica, pois desve-
lou dimensões da opressão que ocorrem na própria constituição do espaço
universitário, assim como no menosprezo pela capacidade de projetar de
quem ainda não é um designer diplomado para isso. Em conversas com par-
ticipantes do projeto, frases como “aprendi a conviver, conversar, entrar em
acordo com as diferenças da galera” evidenciaram as aprendizagens sobre
Design Participativo (EHN, 1988). Essa oportunidade é rara na educação do
design pois, certas vezes, por não levar em conta as diferenças positivas de
corpos e ideias, os estudantes são levados a reproduzir um padrão de pro-
jeto colonial (ANGELON e VAN AMSTEL, 2021). Após essas conversas, foram

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feitas intervenções artísticas nos registros fotográficos dos arquivos do LADO
(Fig. 9), como forma de rememorar o processo vivido e refletir criticamente
sobre ele, afirmando graficamente o posicionamento dos participantes do
laboratório em relação à opressão, enfim, de que LADO eles estavam.

figura 9. Experimento de intervenção artística em fotos do lado. (fonte: acervo do lado).

Em paralelo ao GT Nosso LADO, foi criado o GT Pensamento Crítico


como parte da fase re-evolucionar. Os primeiros experimentos do GT foram

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atividades pedagógicas voltados para temáticas contra-hegemônicas, como
por exemplo a roda de conversa “Por um design que liberte” ou o clube de
leitura do livro Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (1980). Porém, essa
abordagem mostrou-se limitada para atrair novos participantes para o LADO,
principalmente por, de forma contraditória, ignorar os próprios preceitos
freireanos de uma educação que se desenvolva a partir do interesse dos edu-
candos. Para muitos designers em formação, principalmente no início do
curso, mesmo fazendo parte de diversos grupos oprimidos, a discussão so-
bre opressão e suas relações com o design não está entre suas prioridades,
fruto de uma consciência ainda ingênua. A partir da reflexão autocrítica,
o GT começou a adotar o princípio dos temas geradores de Freire (2021) e
pesquisar temas de interesse junto aos estudantes.
O tema mercado de trabalho foi abordado por meio de uma conversa so-
bre cooperativismo e outras formas não capitalistas de trabalho. Já o inte-
resse dos estudantes pela aprendizagem de softwares foi contemplado por
uma oficina de colagens digitais politizadas. A vontade de fazer ativismo
no design foi trabalhada na oficina de Lambe Lambe com temas ligados à
opressão. Como pode ser visto na Figura 10, essas ações conseguiram atrair
novos participantes. Os experimentos partiram de interesses que muitas ve-
zes ainda estavam na consciência ingênua dos estudantes, mas que puderam
ser abordados pelo processo de conscientização coletiva em níveis maiores
de criticidade gradualmente pela interação com colegas.

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figura 10. Oficina de Lambe Lambe e roda de conversa “Dá pra pagar boleto trabalhando para
movimentos sociais?”. (fonte: acervo do lado)

Essa primeira parte da apresentação das experiências do LADO focou em


apresentar as estratégias utilizadas para refletir e agir nas relações opresso-
ras dentro da própria universidade e da formação em design, que muitas
vezes ainda refletem a lógica bancária. Esses exercícios que valorizavam a
participação, diálogo e autonomia preparam melhor os estudantes para as
ações extensionistas com a comunidade externa, de modo a executá-las se-
guindo esses mesmos valores, como será apresentado a seguir.

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4.2 Práticas extensionistas e projetos
existenciais com a comunidade externa
A formação crítica que se configurava no LADO não estaria completa sem a
tentativa de transformar a realidade da comunidade no entorno da univer-
sidade através da participação em projetos existenciais. O que o LADO busca
— e ainda está aprendendo a desenvolver — é uma práxis de design em que
a formação crítica e a prática extensionista ocorram em diálogo constan-
te, tal como Freire (2014) preconiza. Nesse sentido, o design participativo
do GT Nosso LADO e a pedagogia crítica do GT Pensamento Crítico visam
apoiar a produção de espaços críticos em diálogo com comunidades opri-
midas e movimentos sociais.
A seguir, descrevemos sucintamente três experimentos desenvolvidos
pelo LADO com a comunidade no entorno da universidade. “Construindo
nosso Iguaçu” (Fig. 11), em aliança com o movimento Uniperifa e O Povo
pelo Povo, que busca melhorar a infraestrutura pública de um bairro pe-
riférico que sofre descaso por parte da Prefeitura de Curitiba. Este projeto
de urbanização em favelas realocou pessoas próximas ao centro da cidade
para as áreas periféricas, deixando as pessoas desconectadas da cidade e
com pouco senso de comunidade. O projeto existencial identificou diversas
questões de sustentabilidade que exigiam o aumento desse senso de comu-
nidade, como, por exemplo, fazer lobby para a coleta pública de lixo. Após a
realização de uma oficina de design participativo, decidimos nos concentrar
na renovação do centro comunitário como um sinal do poder de mobiliza-
ção. Estudantes de design se juntaram ao coletivo Uniperifa para renovar
o centro comunitário de Iguaçú, fazendo também coisas que normalmen-
te não são associadas ao trabalho de design, como limpeza e organização
do espaço. Os estudantes aprenderam que precisavam se identificar com os
oprimidos para projetar e criar coisas com os oprimidos, pelos oprimidos
e para os oprimidos. Subvertendo a lógica da Prefeitura, os moradores da
comunidade passaram de meros usuários de projetos existenciais alheios
para assumir o papel de designers de seus próprios projetos.

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figura 11. Projeto Construindo Nosso Iguaçu. (fonte: acervo do lado)

Em um contexto semelhante, o projeto ECOA busca avaliar as moradias


de emergência construídas com apoio da ONG TETO sob a perspectiva dos
moradores. Na Figura 12, podemos ver os voluntários e moradores con-
versando. Mais do que perguntas sobre as condições da moradia, se ques-
tiona o que significa para eles viverem nela e o que mudou desde que tra-
balharam em conjunto com a ONG. Essas pessoas geralmente migraram do
campo para a cidade e não conseguiram encontrar um lugar para morar,
assim ocuparam e construíram moradias precárias nos arredores da cidade
gerando inúmeros conflitos fundiários. Devido a esses conflitos, várias dé-
cadas são necessárias para que o governo e a sociedade acolham as favelas
na cidade e as forneçam infraestrutura adequada. Enquanto isso, eles im-
provisam seus projetos existenciais. Nesse sentido, tentamos avaliar o que
significa para eles a mudança em sua condição material e como podemos
apoiar seus projetos existenciais.

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figura 12. Projeto ecoa. (fonte: acervo do lado)

Por fim, o Projeto Identidade (Fig. 13), em aliança com associações co-
munitárias e organizações de economia solidária, tem como objetivo desen-
volver identidades visuais para empreendimentos baseados na solidariedade
ou pequenos empreendedores em comunidades oprimidas. Nesse proces-
so de design, o método foi decidido em comunhão com os envolvidos. Um
exemplo disso foi quando a comunidade decidiu não seguir a proposta do
designer de desenhar os logotipos de forma colaborativa, o processo par-
ticipativo mais óbvio. Em vez disso, optaram por trabalhar em conceitos e
significados (momentos abstratos e estratégicos do processo de design) que
foram materializados pelos estudantes de design posteriormente. Além dis-
so, oferecemos cursos e consultorias sobre softwares e fotografia, visando a
emancipação da comunidade na criação de seus próprios materiais gráficos.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. 167
figura 13. Projeto Identidade. (fonte: acervo do lado)

Os estudantes de design que participaram desses projetos existenciais par-


ticiparam também dos experimentos anteriores do LADO, incluindo aqueles
realizados pelos GTs Nosso LADO e Pensamento Crítico. A formação crítica
preparou os estudantes para uma prática extensionista ao qual eles não esta-
riam preparados pela educação formal em design oferecida naquele momen-
to. Por outro lado, o sucesso dos experimentos realizados pelo LADO acabou
influenciando a revisão do projeto pedagógico do Curso de Bacharelado em
Design da mesma instituição. Em vez de disciplinas extensionistas ofereci-
das isoladamente por professores para cumprir com as novas demandas de
extensão na graduação, o modelo de laboratórios geridos por estudantes e
professores se tornou referência para a prática extensionista, tendo o LADO
como um dos principais em atividade.

5.Considerações finais: Refletindo sobre a práxis do lado


O design, aprendido por meio de uma pedagogia crítica, pode se tornar
uma prática de liberdade, não de opressão, desde que os oprimidos sejam
os protagonistas do processo (SERPA et al, 2022). Na educação em Design,
há pelo menos duas relações opressivas muito evidentes que buscam ser su-
peradas pela práxis do LADO: a entre professores e estudantes de design e
a entre designers e usuários/comunidade externa. Neste caso, isso ocorreu

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. 168
através de um diálogo horizontal constante entre alunos e alunos, alunos e
professores, professores e membros da comunidade, alunos e membros da
comunidade, e membros da comunidade entre si. Nesses diálogos, anali-
samos e praticamos o design de maneira crítica, não existindo um método
rígido para guiar o desenvolvimento destes projetos existenciais, pois seria
contraditório com a premissa do design como um direito humano. Por ou-
tro lado, o praticamos como uma série de momentos que ditam nosso ethos,
respeitando a epistemologia da práxis. Os métodos mais adequados pare-
cem ser aqueles que colocam os oprimidos como protagonistas do projeto,
tal como o design participativo (EHN, 1988) e o Método Elos (ALVES, 2018),
que guiaram o GT Nosso LADO. Alguns pontos em comum que podemos
citar são: a) a aliança com movimentos sociais para desenvolvimento con-
junto desses projetos; b) a valorização das vozes de todos os participantes;
c) a presença em território fora das paredes da universidade; d) o papel do
design não como liderança, nem como mediação, mas sim como aliado so-
lidário que está pronto para ajudar como for necessário; e) a adoção de va-
lores como humildade, solidariedade, afeto e esperança; f) a valorização da
autonomia; g) a busca pela consciência crítica e pela superação de relações
de opressão a partir de nosso posicionamento político.
Admitir a inexorabilidade do design hegemônico implica em constan-
temente ressignificar e recriar o que entendemos como design. Conforme
Johan Redström (2017) ressaltou, todo design que emerge de um progra-
ma de pesquisa de design coerente é, ao mesmo tempo, uma definição de
design feita por meio desse próprio design. Isso não é apenas um exercício
linguístico. Redefinir o design permite aos designers acolher o “inédito viá-
vel” (FREIRE, 2021), abrindo portas para a ação transformadora, enquan-
to examina, simultaneamente, por meio da teoria, as contradições geradas
pelas ações dos designers.
Na construção participativa do espaço do laboratório, nos encontros
formativos e também no trabalho com movimentos sociais, os participan-
tes perceberam as opressões sentidas, mas que nem sempre são entendidas
claramente devido à consciência ingênua (VIEIRA PINTO, 2020). As práticas
realizadas dentro e fora do LADO denunciam estruturas injustas por meio da
inserção de análise crítica da realidade articulada pelos sujeitos ali presen-
tes. Esta denúncia é típica do processo de conscientização e emancipação
em um design participativo que acolhe as mais diversas pessoas e instiga a
geração da consciência crítica (SANTOS, 2002), visto que pretende possibili-
tar a desmistificação do mundo e a possibilidade de anúncio de um menos
desumanizante (FREIRE, 1980).

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. 169
Ao longo dos experimentos, percebeu-se como aqueles mais engajados
nas ideias e práticas foram além no processo de conscientização coletiva. A
vontade e a ação do ser com autonomia são indispensáveis para transfor-
mar em realidade a imagem subjetiva de um futuro a ser feito por meio de
projetos existenciais. Nesse sentido, é notável ver como alguns estudantes
participantes do LADO desenvolveram grande autonomia, conduzindo ações
de formação, como a oficina de Lambe Lambe, o clube do livro ou o desen-
volvimento do mural em homenagem a Paulo Freire. Entretanto, também
se mostra desafiador que essa autonomia ainda não esteja plenamente pre-
sente em muitos participantes do LADO, que têm dificuldade de se libertar
do papel de ouvinte passivo que a universidade na maioria das vezes lhes
confere (ANGELON e VAN AMSTEL, 2021).
Outro desafio que vem da epistemologia freireana é a práxis, conceito
caro ao LADO, mas que muitas vezes foi difícil de realizar, com momentos
do projeto muito focados em discussões críticas que pouco impactaram no
entorno, assim como momentos de muita ação onde a reflexão foi deixada
mais ao lado do LADO. O desenvolvimento da consciência crítica aliada à
transformação da realidade é um desafio constante.
No tocante à descrição aqui oferecida, nota-se a dificuldade de docu-
mentação, visto que a escrita centrada em “poucas mãos” não abarca essa
horizontalidade que buscamos no espaço do projeto existencial. Com o
argumento de uma neutralidade da forma, o campo específico da pesqui-
sa acadêmica é reducionista na representação das diferenças (ARCOVERDE
JUNIOR, 2021). Aqui fica o questionamento acerca dos limites de registro
no campo universitário: como documentar de forma a não propagar opres-
sões por meio da forma e da linguagem? Como criar registros de um proje-
to acadêmico que subverta os usos da linguagem, de maneira a reconhecer
a diversidade dos seres?
Com este trabalho, nos propusemos a pensar o design como projeto exis-
tencial e, portanto, um direito humano, lançando mão de dois pensadores
latino-americanos, Álvaro Vieira Pinto (2005; 2020; 2021) e Paulo Freire
(1980; 2021). A perspectiva dialético-existencial não é contra a profissiona-
lização do design; ela permite vislumbrar uma nova forma de atuação para
este profissional, como um catalisador do processo participativo de um de-
fensor do direito de se auto-projetar. Nessa perspectiva, todo ser humano
deve exercer seus direitos democráticos também no espaço do projeto, pro-
jetando assim suas existências através de um design participativo que insti-
gue a consciência crítica nas pessoas e as engaje na construção de um futu-
ro menos opressivo. Neste sentido, outros designs munidos de ferramentas
ontológicas e epistemológicas dos excertos Freireanos tem grande potencial

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. 170
para questionar “quem cria o mundo” e “quem tem o direito de projetar este
mundo”, bem como exercer esta práxis contra-hegemônica que é, ao nosso
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Como referenciar

dos SANTOS, William Bizotto; MAZZARATTO, Marco; van Amstel,


Frederick Marinus Constant. Tomando um LADO: formação crítica
e prática extensionista no Laboratório de Design contra Opressões.
Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp. 143-175, jan./2024.
Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/
arcosdesign.

———

DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.78425

———

A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


Commons Atribuição – Não Comercial – Compartilha Igual 3.0
Não Adaptada.

Recebido em 10/08/2023 | Aceito em 14/11/2023

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 143-175. 175
arcos design

Um livro é um livro; no entanto, se move

Amanda Monteiro Gonçalves (uemg, Brasil)


amandamontt@gmail.com

Sérgio Antônio Silva (uemg, Brasil)


sas.sergiosilva@gmail.com

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. ISSN: 1984-5596
v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign

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Um livro é um livro; no entanto, se move

Resumo: Determinar o conceito de livro com clareza é um desafio, visto


que o objeto foi muito modificado ao longo de sua existência, consideran-
do também os seus precedentes, como o rolo de pergaminho, e suas atuais
versões virtuais, os e-books, sem suporte exclusivo, tanto em relação a dis-
positivos, quanto ao próprio projeto gráfico. Aqui, levantamos uma provo-
cação acerca da essência de um livro, ou seja, aquilo que nos permite reco-
nhecê-lo como um livro. Levantamos o problema de uma definição circular
e nos aproximamos de sua definição com o apoio do paradoxo de Teseu e
da teoria dos problemas perversos (Wicked Problems) de Rittel e Webber.
Nosso objetivo é incentivar a reflexão sobre os objetos de nosso trabalho
como designers, editores e pesquisadores de livros e nos questionarmos se o
domínio de uma definição poderia impactar em nossos ofícios, em termos
de fluidez, precisão e criatividade.
Palavras-chave: Conceito, Filosofia do Design, Livro, Wicked Problems.

A book is a book; yet it moves

Abstract: Determining the concept of a book clearly is a challenge, since the


object has been greatly modified throughout its existence, also considering its
precedents, such as the parchment roll, and its current virtual versions; e-books,
without exclusive support, both in terms of devices and the graphic design itself.
Here, we raise a provocation about the essence of a book, that is, what allows
us to recognize it as a book. We raise the problem of a circular definition and
approach its definition with the support of Theseus' paradox and the theory of
Wicked Problems of Rittel and Webber. Our goal is to encourage reflection on
the objects of our work, as designers, editors and researchers of books, and to
question ourselves if mastering a definition could impact our crafts, in terms
of fluidity, precision and creativity.
Keywords: Book, Concept, Philosophy of Design, Wicked Problems.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 177
1. Introdução
Os livros que comumente acessamos em nosso imaginário, enquanto sig-
nos, se distanciam cada vez mais daqueles livros com os quais temos conta-
to cotidianamente. Aquele códice tradicional perdeu o protagonismo – ou,
ao menos, a exclusividade nas estantes. Com a expansão das editoras e fei-
ras gráficas independentes, em especial, nos deparamos com uma varieda-
de imensa em relação à produção gráfica, bem como ao projeto gráfico. Em
tamanhos, extensões, acabamentos, impressões. Livros sem uma palavra, li-
vros feitos para serem destruídos, livros interativos. Livros de doze páginas
ou duas mil, livros que cabem na palma da mão ou maiores que uma pes-
soa. Livros de folhas avulsas, sem cola, grampo ou costura. Livros em en-
velopes ou de capa dura. O que tornaria todos esses objetos livros, de fato?
Já faz tempo que não cabe ao livro ser apenas folhas preenchidas, uni-
das por cola ou costura. Seus antecessores já fugiam a esse acabamento: ro-
los de pergaminho, placas de argila. Depois da invenção da prensa de tipos
móveis, a reprodução permitiu variações nas categorias de impressos, como
um jornal, uma revista ou um livreto; são todos artefatos capazes de carre-
gar textos, mas algumas mudanças em sua estrutura ou funções os fazem
ter outros nomes. Não precisariam se chamar livro. Porém, pensando ao
longo do tempo, seria mais fácil ampliar a definição de livro para abranger
todos esses suportes ou apelar para um neologismo? Uma tábua de argila
feita há mais de quatro mil anos estaria mais próxima do que entendemos
como livro do que um fanzine?
Quando trabalhamos com conceitos, pensamos em palavras ou expres-
sões que têm um peso de significação consolidado. O objetivo deles é, afi-
nal, capturar uma essência com alguma estabilidade; é aquilo que nos per-
mite reconhecer uma coisa dessa maneira, percebendo suas leis e estrutura
interna (breitbach, 1988, p. 122). Ele não deve ser confundido com o ob-
jeto, mas é, na realidade, um signo dele, para dizer em termos peircianos;
algo que busca representá-lo em alguma capacidade. É um símbolo, uma
convenção social: a palavra que permite que os falantes de uma mesma lín-
gua identifiquem aquilo enquanto conversam. O signo bem estabelecido é
aquilo que, por exemplo, nos permite falar a mesma língua sem precisar re-
correr a extensos sistemas sígnicos para colocar os interlocutores no mesmo
patamar. Sem conhecer a palavra livro, precisaríamos dizer, por exemplo:
“objeto portátil que carrega uma extensão de conteúdo verbal e/ou visual”,
tornando a troca mais complexa.
Assim, propomos uma reflexão sobre o que compõe a suposta essência de
um conceito, ou de uma ideia, aplicada nesse objeto simultaneamente fami-
liar e peculiar que é o livro. Colocamos essa discussão como uma provocação

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 178
para nos localizarmos diante de convenções (como é dar nome a algo) e
os automatismos derivados delas (como é compreender, sem esforços, que
certos objetos detêm certos nomes). O livro é uma escolha assertiva, visto
que acompanha a história da humanidade; anda lado a lado com a história
da escrita e pode, assim, retratá-los: humanidade e registro. Ademais, com-
preender a essência desse objeto demonstra-se um desafio real. Existe uma
máxima bem difundida para a escrita, que é a de que, para quebrar as regras
com maestria, é preciso conhecê-las bem. Sem saber em que consiste um
livro, temos a mesma fluidez ao criar esse objeto, como designers, editores,
escritores, leitores? Ter certo domínio da definição de livro pode aperfeiçoar
processos e criações editoriais e nos permitir organizar nossos ofícios com
mais precisão e criatividade ao redor desse objeto? Questões relativas à ca-
pacidade da língua, de nos dar bases para estimar a materialidade que os
conceitos guardam, podem ser consideradas como wicked problems1? Essas
são algumas das indagações que levantamos para nos orientar de modo a
nos aproximar de uma solução adaptável, mas não fluida em demasia.

2. Um livro é um livro
Dentre as definições possíveis para o livro, citamos algumas. É um produ-
to portátil que consiste em páginas de conteúdo reunidas. Parte da relação
entre um substrato, que pode ser físico ou digital, e um conteúdo, que pode
consistir de palavras, códigos e imagens (schmidt; santos, 2020). Em re-
lação ao conteúdo, é a forma mais antiga de registrar conhecimentos, ideias
e crenças (haslam, 2007, p. 6). Para a Unesco, restringe-se a “uma publica-
ção impressa não-periódica com, no mínimo, 49 páginas envoltas por capas,
publicada em um país e disponibilizada ao público” (ribeiro, 2011, p. 98).
Segundo a lei nº 10.753, de 30 de outubro de 2003, artigo 2º, é “a publicação
de textos escritos em fichas ou folhas, não periódica, grampeada, colada ou
costurada, em volume cartonado, encadernado ou em brochura, em capas
avulsas, em qualquer formato e acabamento” (brasil, 2003). Também: é
um “símbolo histórico, entrecruzado por textos que possuem estabilidade
de informação”, e o conteúdo se estenda no tempo (araújo, 2008). Por isso
é apreciado; valorizamos a sua durabilidade por concebermos sua existência
como algo que faz perdurar a memória da humanidade (gomes; carvalho,
2022). Talvez, a descrição mais valiosa seja a que contempla sua importância

1 Wicked problems, ou “problemas perversos”, é um termo cunhado por Horst Rittel na dé-
cada de 1960 para designar problemas mal formulados do sistema social, em que as va-
riáveis para abordá-los são diversos e a informação se ramifica, dificultando a tomada de
decisões e impossibilitando uma solução definitiva (buchanan, 2022).

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 179
no desenvolvimento da humanidade, intelectual, cultural e econômico (has-
lam, 2007, p. 12). “Livros de papel já eram mídias móveis”, como disse Ana
Elisa Ribeiro (2011, p. 98).
Buscar descrições é evitar a armadilha da definição circular: um livro é
um livro! Ou: um livro é aquilo que seu criador nomeou como um livro.
Em um dicionário, a circularidade ocorre quando uma palavra é definida
por um sinônimo (costa; silva, 2018), e assim, não se agregam novas in-
formações ao fazê-lo, como ao recitar um silogismo2. Dessa maneira, não
se enquadra naquilo que investigamos: compreender no que consiste o livro
enquanto definição, a partir da premissa de que o conceito compõe e guia
a observação; logo, nossa interpretação do que é o livro interfere em nossa
relação com ele: seja construindo-o ou lendo-o.
Ribeiro e Milani (2009, p. 56-59) sintetizaram os propósitos do conceito
para o conhecimento, bem como seu esvaziamento, da seguinte maneira:

Conceitos e categorias podem constituir uma tessitura teórica que se


desenvolve com vários propósitos. O primeiro propósito é o de se cons-
truir redes de conhecimento referencial a partir do que se procura es-
tudar, interpretar, analisar. [...] O segundo propósito: a constituição dos
conceitos permite o desenvolvimento de categorias ditas analíticas que,
em princípio, conforme determinados valores da ciência moderna, po-
derão subsidiar a leitura, a interpretação, a crítica dos objetos seleciona-
dos para a pesquisa. No entanto, será sempre necessário conceder ma-
leabilidade aos conceitos e, consequentemente, às categorias de modo a
permitir-lhes um movimento compatível com os movimentos do corpo
do mundo. [...] O passo seguinte, trágico, resulta no descolamento do
próprio conceito em relação ao mundo. Desconsidera-se, assim, que o
conceito se constrói através do contato e das relações: entre os sujeitos
e o mundo; entre os conceitos e os corpos do mundo. Tal descolamento
implica o empobrecimento do conceito que, deste modo, se transforma
em um modelo radical-conservador que deseja a autonomia em relação
ao mundo: conceito esvaziado de mundo e de significado. Entretanto, o
maior empobrecimento é a explicitação da desconsideração teórica de
que um conceito social é a expressão das relações de constituição entre
os sujeitos e o mundo, entre o sujeito do conhecimento e o objeto do
conhecimento.

A dificuldade de se definir um conceito como “livro” pode não ter um


impacto claro em um primeiro momento, mas o exercício dessa reflexão
pode ser considerado e aplicado a outras ideias, para pensar nesse cálculo

2 Um silogismo bem conhecido é aquele expresso pela dedução “todo homem é mortal”.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 180
hipotético que determina o tanto de abrangência que um conceito deve ter
e o quanto de indeterminação precisa ou pode resguardar. Pensamos aqui
no conceito em três utilidades específicas: 1) um signo convencionado que
torna a comunicação uma possibilidade; 2) aquilo que nos permite conhe-
cer, interpretar e criticar algo e, por consequência, 3) participa de nossa re-
lação com a realidade, com a linguagem e com os fenômenos, interferindo
em nossa percepção sobre eles.
Se a característica fundamental de um livro é ser portátil3, o que excluiria,
portanto, as primeiras tábuas de argila com inscrições como “livros”, per se,
como tomamos projetos como o Guinness World Records, com categorias
de maior livro, ou mais pesado4? De que tipo de portabilidade se trata? As
tábuas de argila não seriam de transporte mais fácil do que os extravagantes
livros “recordistas”? Estaria, então, necessariamente relacionado ao papel,
negando possibilidades como o livro de tecido5? Seria definido pelo propó-
sito, o grande norteador: transmitir textos? Como ficariam, então, os livros
apenas ilustrados, com fotografias, colagens ou ilustrações?
Para abstrair as definições levantadas anteriormente, propomos um olhar
para o conceito como movente e referencial, mais relacionado a uma ideia
hieraclitiana, desenvolvida a seguir com o auxílio de uma história.

3. No entanto, ele se move


E pur si muove é a frase presumivelmente proferida por Galileu em um jul-
gamento onde era condenado por sua teoria heliocêntrica. Não há registros
de que isso tenha, de fato, ocorrido; no entanto, como um artifício simbó-
lico, ao não ceder à pressão de um tribunal para negar a verdade, a frase,
que se traduz como “no entanto, ela [a Terra] se move [ao redor do Sol]”
representa a persistência diante daquilo que é concreto. Apropriamo-nos
dela aqui a partir da seguinte hipótese: mesmo diante da pressão da lín-
gua, da escolha precisa de palavras e da aparente estaticidade do conjunto

3 Para o professor e pesquisador Aníbal Bragança (1944-2022), essa é a característica im-


prescindível em um livro. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/2547/quem-
-inventou-o-livro. Acesso em: 17 fev. 2023.
4 De acordo com o site oficial, as medidas do maior livro são 5 metros por 8.06 metros e
peso de aproximadamente 1500 quilos. Faria sentido determinar esse “recorde” se levan-
tarmos a portabilidade como necessidade primordial para um livro cumprir? Dados co-
letados em: https://www.guinnessworldrecords.com/world-records/largest-book. Acesso
em: 17 fev. 2023.
5 Livros de tecido (Reportagem TVU Uberlândia - 27/06/2014). Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=JttAbkx8ia4. Acesso em: 19 fev. 2023.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 181
significante-significado, não configura uma contradição (ou uma heresia,
para entrar nos termos da história) dizer que um conceito pode ser bem
definido (ou seja, não cair em uma tautologia “um livro é um livro”) e, ain-
da assim, se transformar: sofrer alguma mutação por se adequar e adaptar
ao contexto – inclusive, histórico.
Para complementar esse raciocínio, lançamos mão de uma história como
um apoio para a explicação: um paradoxo conhecido como O navio de Teseu.
Defendemo-lo como uma metáfora para se pensar definições que persistem,
ainda que com mudanças, ao longo dos anos. A seguir, o incorporamos a
partir da nota de rodapé de Vieira (2019, p. 13):

O paradoxo do Navio de Teseu foi publicado pela primeira vez no traba-


lho de Plutarco, filósofo grego seguidor de Platão. Ele descreveu como
Teseu (o rei fundador de Atenas) retornou de uma longa viagem pelo
mar. Ao longo de todo o percurso, todas as velhas e desgastadas placas
de madeira que formavam o navio foram sendo arrancadas e substituí-
das por placas de madeiras novas e fortes. As placas velhas de madeiras
eram jogadas ao mar. Quando Teseu e sua tripulação finalmente retor-
naram da viagem, cada placa de madeira do navio havia sido trocada e
descartada. Isso leva às seguintes perguntas: o navio em que eles retorna-
ram era o mesmo em que partiram, apesar de agora as placas de madeira
serem completamente diferentes? E se o navio ainda tiver uma placa de
madeira original em sua estrutura? E se houver duas placas de madeira
original em sua estrutura? Isso mudaria a resposta de alguém?

Mencionamos, no início deste artigo, como um termo captura uma es-


sência estável. Em um ponto de interpretação platônico, a essência é algo
consistente, onde reside a verdade, o real, grosseiramente falando. Como a
conceituação diz respeito à busca por capturar leis e estrutura interna (brei-
tbach, 1988, p. 122), o caráter perene parece óbvio. Na filosofia, conceitos
trazem o sentido de “representação de um objeto pelo pensamento”; é a “ação
de formular ideias por meio de palavras, definição, concepção, noção, ideia,
julgamento” (meyerewicz, 2011, p. 39). Existe algo que nos permite iden-
tificar um mesmo objeto e nos permite nomeá-lo dessa forma, mesmo que
em contextos ou tempos diferentes. Assim, aplicamos o paradoxo de Teseu.
O livro, tal qual conhecemos, existe em estrutura de códex desde muito
antes da invenção da prensa móvel por Gutenberg, em meados do século
XV. No que diz respeito a acabamentos e materiais, bem como no processo
de produção e diagramação, o artefato jamais deixou de mudar, figuran-
do em uma constante espiral de atualizações que se move em uma direção
(ou dimensão) temporal. É dizer: ele se encontra em um processo criativo

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 182
coletivo. A noção de processo criativo eterno, onde as semioses não se en-
cerram, faz parte da semiótica de Peirce e da crítica de processos6. O movi-
mento é a regra: a ciência está em constante aperfeiçoamento, projetos de
design podem sempre receber novas edições ou rebrandings, artefatos mu-
dam quando as condições sociais e econômicas o permitem – ou o obrigam.
É possível dizer que tudo muda, mas segue o mesmo?
Se pensarmos no artefato como o objeto que cumpre certo propósito em
um momento de determinada sociedade, mais do que o meio físico que pos-
sibilita que isso aconteça, o livro poderia, sim, mudar nesse deslocamento
temporal, e ainda conter em si a imaterialidade de sua função: carregar, da
maneira possível para aquele contexto, uma informação. O livro é o índi-
ce que permite a interação da leitura. As maneiras (de processo até os ma-
teriais escolhidos) se diversificam conforme a sociedade se modifica, sem
deixar de incorporar os antecessores. Em sua plasticidade, afinal, a língua
também é viva, passa a agrupar novas variações. A questão que permanece
é que, para dar conta de englobar todos esses momentos e variações em um
mesmo período, a definição se torna cada vez mais vaga, imprecisa. Definir,
no entanto, é delimitar, e uma nova contradição se acende. Nosso navio, ao
não abrir mão de nenhuma peça, sendo estas cobertas, envernizadas, guarda
para si todos os fragmentos. Mesmo aqueles dos quais ele precisa se livrar,
continuam residindo em sua história – e talvez, em algum porão. O navio
livresco são dois, são todos os derivados.
O livro diz respeito ao contato com o leitor. Um livro que jamais saiu da
gaveta do autor não seria um livro, de fato, pois este não contribuiria para o
desenvolvimento da humanidade, como mencionado por Haslam (2007, p.
12). Existe algo nas definições listadas que pode configurar um complemen-
to. Para complementar a precisão conceitual, podemos deslocar a questão
para outro centro; é isso que o pensamento em wicked problems nos pro-
porciona. Rittel e Webber (1973) já haviam colocado: redefine-se a sintaxe
“o que estes sistemas fazem?”, ao invés de “do que estes sistemas são feitos?”,
onde a própria elaboração do problema é um wicked problem, que se en-
cerra não por tê-lo resolvido, mas por considerar o ponto em que chegou
“suficientemente bom” (rittel; webber, 1973, p. 162).
Para chegar até o leitor, esse texto precisa tomar alguma forma, seja ela a
partir de um dispositivo como o leitor de e-books, seja o papel encaderna-
do. A portabilidade, no entanto, permanece ambígua. Móveis são portáteis,
no sentido de que podem ser deslocados de um ambiente a outro. Podem

6 Sobre processos de criação, inacabamento e mobilidade, ver Salles (2011).

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 183
pesar cinco ou quinhentos quilos; caso não estejam fundidos a um piso ou
parede, são, sim, portáteis; móveis, moventes. Há livros em diferentes níveis
de portabilidade. Para Gill (1988, p. 105), o design do livro deve ser guiado
pelas mãos e pelos olhos:

A book is a thing to be read — we all start with that — and we will assu-
me that the reader is a sensitive as well as a sensible person. Now, the first
thing to be noticed is that it is the act of reading & the circumstances of
that act which determine the size of the book and the kind of type used;
the reading, not what is read. A good type is suitable for any and every
book, and the size of a book is regulated not by what is in it but by the
fact that it is read held in the hand (e.g. a novel), or at a table (e.g. books
of history or reference with maps or other necessarily large illustrations),
or at a desk or lectern (e.g. a missal or a choir book), or kept in the po-
cket (e.g. a prayer book or a travellers’ dictionary)7.

O movimento do conceito não precisa se relacionar apenas a um marcador


temporal. A mudança se desloca a partir das influências sociais e culturais.
Em sua tese, Silva (2019, p. 207) responde à questão: “as inúmeras defini-
ções de design ao longo de sua curta história e a ampliação de seu campo
de atuação têm alguma relação com a equivalente expansão do universo ar-
tístico contemporâneo?” de forma afirmativa. O design aqui diz respeito a
escolhas formais e materiais em relação a esse suporte. A cada viés escolhi-
do para pensar no que agrupa e distingue livros, teremos, invariavelmente,
uma abertura semântica para o lado preterido. Se a definição for reescrita
para afirmar o livro como aquele caráter imaterial, independente da forma
que o carrega, ficará demasiadamente amplo o que confere a descrição física.
Móveis poderiam ser livros, roupas poderiam ser livros: desde que se ate-
nham ao tal propósito de carregar textos. E, no contrário, se o códex de pa-
pel fosse o foco, um caderno em branco poderia, sim, ser um livro. Quanto
mais se restringe, mais se deixa de fora; seja pelo conteúdo, pelo número de
páginas, pela forma. E qual seria o nome dado a esses outros?

7 Em tradução livre: Um livro é algo para ser lido – vamos começar por isso – e vamos as-
sumir que o leitor é tão sensato quanto é sensível. Agora, a primeira coisa que devemos
perceber é que é o ato da leitura e as circunstâncias daquele ato que determina o tamanho
do livro e o estilo tipográfico usado; a leitura, não o que é lido. Uma boa tipografia é ade-
quada para qualquer livro, e o tamanho do livro está de acordo não pelo que está nele, mas
sim, pelo fato de que é lido e segurado nas mãos (ex: um romance) ou na mesa (ex: livros
de história ou referência com mapas ou outras ilustrações grandes) ou em uma escrivani-
nha ou atril (ex: um missal ou livro de coro), ou mantido no bolso (ex: um livro de oração
ou um dicionário de viagem).

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 184
É inerente ao conceito se mover em alguma perspectiva. O que pode apa-
rentar contraditório não é algo inválido; contraditório e coerente não são
antagônicos. Por isso, é possível pensar em coisas que mudam, mas perma-
necem as mesmas, em algum grau ou perspectiva. Não diríamos “livro de
papel” por ser uma redundância, a princípio, mas o “livro de tecido” troca
algumas placas de madeira do navio, sem deixar de sê-lo; chama a atenção
para o material por ser algo fora do esperado, bem como dizer “livro digital”.
A referência do livro desde a invenção do códex de papel é o próprio códice.
Por mais que nem todos os livros sejam de papel, tê-lo como esse núcleo é
importante para que a vagueza, no geral, não nos engula em suas elabora-
ções cheias de incerteza. Mantilla (1999) denuncia a vagueza na linguagem
utilizada, de modo geral, por teóricos do pós-modernismo, e afirma que se
utilizam de uma escrita cheia de nuances, incertezas de modo que chega a
confundir o leitor, fazendo-o duvidar da própria capacidade intelectual. É
valioso preservar um pouco das essências de Platão para que a confusão da
linguagem não nos paralise. E voltamos, por fim, ao dito popular que afir-
ma ser importante conhecer as regras para saber como quebrá-las – e iden-
tificar onde é possível fazê-lo.

4. Considerações finais: a definição do


livro enquanto um wicked problem
Foram muitas as perguntas levantadas para investigar esse assunto, e muitas
delas seguirão sem respostas. Para o problema de se definir um livro, encon-
tramos um alinhamento com a descrição proposta por Rittel e Webber acer-
ca dos wicked problems. Não se formula definitivamente; não há um critério
para determinar que o problema foi resolvido; não cabe à solução uma res-
posta “verdadeiro ou falso”; e assim por diante. A estratégia escolhida aqui
foi a de utilizar um paradoxo para nos auxiliar a construir um raciocínio. O
livro tangencia com facilidade as quatro grande áreas do design (buchanan,
2022); oferece, portanto, muitas perspectivas para abordar o problema de
sua conceituação. Essa abordagem buscou atravessá-lo em sua totalidade.
O livro é um objeto primariamente visual; possui uma extensão de in-
formações que se expressa via certa materialidade. Essa mensagem se ma-
terializa em um sistema de escrita, imagem e elementos híbridos para que
o leitor possa ter efetivar algum contato. Para que ele se efetive, o sistema
de escrita pode ser o braile; e também conhecemos a variação do audioli-
vro. Mesmo primariamente visual, usamos vários sentidos para perceber o
objeto; muitas vezes, sem o uso da visão. São mudanças que tornam ativa
a possibilidade de acesso à informação. Para além do conteúdo textual de
um manuscrito, há uma carga de significação que se manipula por meio do

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 185
projeto gráfico e da proposta de produção gráfica. Assim, para cada momen-
to sociocultural, escolher criar um livro do modo mais convencional àquele
momento representa uma proposta; desviar, traz outros sentidos. Seja em
rolo, códice ou lâminas avulsas, o livro é regido por uma ordem interna que
não se oferece em um só momento. Por esse motivo, a informação é recor-
tada pela moldura da mancha gráfica: a parte que se apresenta ao leitor em
determinado momento, lida tabular e linearmente.
Defendemos que, sim, conhecer a fundo a definição de um artefato inter-
fere em sua confecção ao atravessar dimensões do objeto que, muitas vezes,
não tomamos consciência, e alcançá-las pode alavancar novas conexões na
criação. É, sim, possível que o conhecimento engesse alguns; isso diz res-
peito à interação de cada sujeito com a informação, em sua subjetividade.
Mas é inegável que reconhecer uma estabilidade, um limite próprio do ar-
tefato, funciona como um ponto de orientação. Criar irrestritamente é uma
pressão imensa. A partir de algumas margens organizadoras, transitamos
melhor no processo.
Chamamos a atenção para algumas regras gerais sobre os wicked pro-
blems, conforme traduzido em Buchanan (2022): o problema não ter uma
formulação definitiva, e estabelece uma solução de acordo com a questão,
que irá ressaltar determinada perspectiva ou viés; para responder a esse tipo
de elaboração, não há uma maneira de saber que se alcançou uma solução
definitiva, e sim uma suficientemente boa; além disso, solucionar aquela
formulação em determinado contexto e temporalidade não é atingir a tota-
lidade da questão. A discussão filosófica acerca de definições é incorporada
ao design de modo que possamos refletir sobre por que as coisas são como
são (silva, 2019, p. 208), o que nos permite também arejar nossa percepção
a respeito dos automatismos – na interpretação e na criação de um projeto.

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Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-188. 188
Como referenciar

GONÇALVES, Amanda Monteiro; SILVA, Sergio Antônio. Um livro


é um livro; no entanto, se move. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 17,
n. 1, pp. 176-189, jan./2024. Disponível em: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign.

———

DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.74701

———

A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


Commons Atribuição – Não Comercial – Compartilha Igual 3.0
Não Adaptada.

Recebido em 04/04/2023 | Aceito em 31/10/2023

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 176-189. 189
arcos design

Prospectando qualidades relacionais na


educação em Design através da quilt-terapia

Cayley Guimarães (utfpr, Brasil)


cayleyg@utfpr.edu.br

Frederick Marinus Constant Van Amstel (utfpr, Brasil)


vanamstel@utfpr.edu.br

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 190-211. ISSN: 1984-5596
v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign

190
Prospectando qualidades relacionais na educação
em Design através da quilt-terapia

Resumo: A pandemia COVID-19 alterou profundamente a saúde mental e


bem-estar dos estudantes de forma geral. No caso de estudantes de Design,
o isolamento impediu o desenvolvimento de habilidades relacionais, que
emergem nos pontos de uso e são fundamentais para o exercício pleno da
cidadania e da profissão. O retorno às aulas presenciais acrescentou outras
incertezas, inseguranças e medos, que agravaram problemas relacionados
à negação da possibilidade de ser entre outros seres, ou seja, de interser.
Este estudo explora a estética relacional da quilt-terapia como forma de re-
construção do interser entre estudantes de Design. A análise de uma colcha
de retalhos sobre a experiência de sobreviver a uma pandemia revela qua-
lidades relacionais historicamente negligenciada na Educação em Design,
tais como empatia, confiança e cuidado, todas relacionadas ao interser. A
apreciação de tais qualidades permite vislumbrar formas mais plurais de
educar e se educar em Design.
Palavras-chave: Educação em Design, Quilt-terapia, Design Prospectivo.

Emerging issues on literature about design policies

Abstract: The COVID-19 pandemic deeply altered the well-being and mental
health of humanity. People were forced to isolate, stay at home, to interactions
mediated by virtual environments. The return to in-person classes was trau-
matic, full of uncertainties and fears compound with stress, anxiety, decline
of well-being and, most importantly, negation of Being. This study explores
the relational aesthetics of quilt-therapy as a means for reconstruction of the
being among Design students. The making of a quilt of pieces that reflect the
experience of surviving the pandemic reveal qualities that are historically ne-
glected in Design Education, such as empathy, trust and care.
Keywords: Design Education, Quilt aesthetics, Design and Well-being.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 190-211. 191
1. Introdução
A pandemia COVID-19, os mecanismos criados para a sua mitigação e as
ações necessárias para sobrevivência à doença relacionada geraram impactos
globais cujos escopo e escala não encontram precedente na história huma-
na recente. Praticamente todos os sobreviventes da pandemia tiveram seu
bem-estar comprometido por problemas biológicos e mentais. Infelizmente,
muitos desses problemas continuam existindo alguns anos após o ponto
mais preocupante da pandemia (WANG, MARKERT e SASANGOHAR, 2021;
KHANNA e JONES, 2021; GILSBACH, HERPETZ-DAHLMANN e KONRAD, 2021;
KELLER et al., 2022; LI, 2023).
Segundo a secretaria da OMS (Organização Mundial de Saúde - World
Health Organization) (WHO, 2022), a saúde mental é um estado de bem-es-
tar que permite que as pessoas realizem seu potencial de ser em conjunto
com outros seres humanos, ou seja, um estado que permite lidar com es-
tresse, aprendizagem, trabalho e tomada de decisões. Esse tipo de bem-es-
tar não significa ausência de sofrimento mental, mas sim a capacidade de
lidar com o mesmo. A pandemia, por exemplo, é considerada como um so-
frimento que muitas pessoas não conseguiram ainda superar, enfim, é um
trauma coletivo (NEGRI et al., 2023).
Diversas pesquisas buscaram mitigar o impacto da pandemia na saúde
mental dos estudantes através de abordagens pontuais. Li (2023), por exem-
plo, faz uma revisão de uso de tecnologias digitais para melhoria de bem-es-
tar e saúde mental após a pandemia. Teleterapia, saúde móvel, intervenções
via web entre outras formas de tratamento são as mais citadas nesses estudos.
Em larga medida, esses estudos restringem o papel da comunidade aca-
dêmica ao de mero indicador do sistema de saúde (SHAPIRO, LEVINE e KAY,
2020) ou como um contexto para intervenções mediadas por tecnologias
(WANG, MARKERT e SASANGOHAR, 2021; VIARDOT, BREM e NYLUND, 2023).
Se por um lado as tecnologias auxiliam na conectividade e na realização de
atividades impedidas durante a pandemia, por outro lado, as tecnologias
também aumentaram a insegurança, stress e ansiedade (SARANGI et al., 2022).
Estudos como esse propõe soluções digitais individualizadas para proble-
mas de natureza social, que pertencem ao domínio da Saúde Coletiva e da
Educação, nem sempre considerados. A limitação principal de tais estudos
é avaliar a qualidade mediadora da tecnologia por uma perspectiva objeti-
ficante que exclui seu papel relacional entre o mundo material e o mundo
humano (MISA, 1992). A tecnologia é considerada na sua eficácia, eficiên-
cia, custo ou facilidade de uso, mas não em suas qualidades relacionais, isto
é, nas qualidades que se tornam evidentes apenas quando faz parte de um
mundo de seres que se relacionam.

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Em um cenário em que estudantes experimentam impaciência, relações
fragilizadas, aumento no comportamento agressivo, baixo rendimento no
processo de aprendizagem, aumento de faltas às aulas por motivos associados
à saúde mental, dentre outros, as qualidades relacionais precisam ser prio-
rizadas na avaliação de tecnologias educacionais. Segundo a Organização
Mundial de Saúde (WHO, 2022), a falta desse tipo de qualidade é detrimen-
tal para que o ser humano possa experienciar toda a sua potencialidade, o
ser mais que é historicamente negado pela opressão (Freire, 1972).
Até o presente momento, não há estudos específicos sobre como culti-
var qualidades relacionais na Educação em Design, porém, existem estu-
dos sobre como cultivar tais qualidades na prospecção de transições em
sistemas sociotécnicos (Van Amstel, Botter e Guimarães, 2022). Nessa toa-
da, o Design Prospectivo trata o ser humano como um ser dependente de
vários outros seres e, por isso mesmo, melhor definido como um interser.
Conforme Daniel Wahl (2020, p. 136) observa, “a palavra interser descreve
uma mudança de percepção de si e do outro que mora no centro de cocriar
culturas humanas regenerativas e uma presença sustentável dos humanos
na Terra”. O desafio primordial que se coloca para o Design Prospectivo é
desenvolver uma percepção e uma expressão estética do interser. Para isso,
o Design Prospectivo recorre ao conceito de qualidades relacionais desen-
volvido por Cipolla e Manzini (2009).
Um dos principais impactos da COVID-19 é a dificuldade de perceber as
qualidades relacionais cultivadas por interseres. A disseminação de informa-
ções falsas não é apenas um problema técnico, mas uma doença do interser
coletivo que é a sociedade conectada por tecnologias digitais: a infodemia
(PELANDA e VAN AMSTEL, 2021). A pandemia tornou visível uma série de
relações fundamentais para a existência do ser humano que estavam invisí-
veis nas infraestruturas automatizadas do cotidiano. Realizar um estudo so-
bre qualidades relacionais na Educação em Design no momento de retorno
às aulas é uma oportunidade para contribuir não só para este campo, mas
também para o Design Prospectivo e outras estéticas relacionais. Embora
hajam estudos que destaquem a necessidade de incrementar práticas rela-
cionais no campo do Design (ALMEIDA et al., 2019), não há estudos empíri-
cos que destaquem o papel das qualidades relacionais no interser do Design.
O presente estudo busca preencher essa lacuna a partir de experimentos
pedagógicos conduzidos pelo primeiro autor como parte da disciplina de
Semiótica do Curso de Bacharelado em Design, ofertada em uma univer-
sidade federal pública de uma grande capital do país em 2022. Os experi-
mentos começaram quando o primeiro autor percebeu múltiplas dificulda-
des para executar o planejamento pedagógico típico. A estudantada estava,

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de uma maneira geral, ansiosa, dispersa, desmotivada, estressada, irritada,
desafiadora. As atividades propostas não eram realizadas. Os atritos entre
seus colegas eram frequentes.
Em um primeiro momento, o primeiro autor alterou a sua prática peda-
gógica e adotou a quilt-terapia como abordagem para criar um ambiente
em que os estressores da pandemia fossem dissipados e ao mesmo tempo
trabalhar a percepção estética de qualidades relacionais. A proposta foi fei-
ta para as quatro (04) turmas, tendo sido aceita por três (03) delas. Na tur-
ma que não aceitou a proposta, outras atividades foram realizadas, cujo teor
fogem ao escopo deste relato.
Considerando a estética quilt, que é, pela sua natureza, colaborativa, ar-
tística e projetual (MENEGUCCI, MARTINS e MENEZES, 2016), foi levantada
a seguinte questão: que qualidades relacionais os estudantes estão sentin-
do falta e, ao mesmo tempo, estão precisando para realizar o seu interser?
A palavra quilt provém do latim culcita, uma espécie de coberta. O quilt
pode servir como lazer (cuja feitura é por puro prazer), como exercício e
também como um produto de valor comercial. Takiguchi et al. (2022) in-
dicam que a participação em atividades de lazer promovem o bem-estar e
a saúde mental. A feitura do quilt também é considerada terapêutica, pois
permite refletir sobre o feitio do próprio interser (MAINARDI, 1982; DICKIE,
2011a; DICKIE 2011b). Neste estudo, o processo de feitura durou três sema-
nas e culminou na costura coletiva das peças criadas por cada participante.
As peças continham representações de sentimentos, objetos, desejos, luga-
res etc., que proporcionassem uma ou várias qualidades relacionais. Este
artigo apresenta alguns conceitos teóricos, o processo de feitura dos quilts
e os depoimentos de alguns estudantes que foram questionados sobre os
possíveis efeitos terapêuticos da atividade. O objetivo é destacar o papel das
qualidades relacionais no projeto de ser em conjunto, o chamado interser.

2. Impacto da pandemia covid-19 sobre o Ensino Superior


Durante a pandemia, a comunidade acadêmica foi exposta a grandes des-
gastes frutos de medidas emergencias (KELLER et al., 2022; CHARLES et al.,
2013). ma das medidas de contenção da pandemia foi a suspensão das aulas
presenciais, que passaram a ser online, mediadas por tecnologias digitais.
Em seguida elas voltaram na modalidade remota, mediada por computador
— uma situação que aumentou a solidão, a ansiedade e a depressão. Medidas
de afastamento social criaram um afastamento de colegas e professoras, di-
minuição de interações sociais, falta de oportunidade de criação de laços,
entre outras formas de exercer as atividades cotidianas.

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Dentre os principais fatores estressores desse momento, podemos citar os
de estilo de vida (distanciamento social, convivência forçada etc.), os orga-
nizacionais (as aulas passaram a ser mediadas por computador), os finan-
ceiros (dificuldades de manter ou achar emprego), os sociais (falta de con-
tato pessoal presencial) e, claro, os ambientais (sair de casa representava um
risco de morte). Na pesquisa de Hamouche (2020), as principais fontes de
preocupação foram: a percepção de falta de segurança e risco de contágio,
a obesidade, o desconhecido, a quarentena e o confinamento, o estigma e a
exclusão social e as inseguranças financeiras.
Aksunger et al. (2023) apontam um aumento de prevalência de depressão
de mais de 25% em países de baixa renda — um número expressivo que não
encontra a devida atenção nos estudos científicos. Outros estudos, como o
de Dale et al. (2023) corroboram estes achados ao apontarem sintomas se-
veros negativos de bem-estar, depressão, ansiedade, insônia (MEAKLIM et
al., 2021), qualidade de sono e de vida. Brausch, Whitfield e Clapham
(2023) notaram um aumento nos casos de hospitalização, abuso de substân-
cias tóxicas e pensamentos suicidas durante a pandemia. Foti (2023) diz que
os transtornos causados pela pandemia equiparam-se aos Transtornos de
Estresse Pós-Traumático. Um dos fatores apontados em seu estudo é a falta
de apoio de colegas. Os jovens confidenciam mais com seus pares do que
com profissionais, porém, com a interrupção do contato, eles não tiveram
com quem compartilhar suas angústias(KUTCHER, WEI e CONIGLIO, 2016;
MüLLER, DELAHUNTY e MATZ, 2023).
As instituições agravaram os problemas (COLIZZI et al, 2023; FOSTER et
al, 2023). A imprensa tradicional não fez seu papel investigativo e de in-
formação, o que abriu espaço para a divulgação de mitos, mentiras e de-
sinformação por meio de redes sociais, a chamada infodemia (PELANDA e
VAN AMSTEL, 2021). Alguns governos minimizaram as mortes e as taxas
de transmissão; divulgaram mentiras em relação às vacinas. A ciência teve
problemas iniciais na determinação das formas de transmissão e infecção;
mas a ciência agiu de forma cooperativa e rápida na criação da vacina (VAN
AMSTEL, GUIMARÃES e BOTTER, 2021). Neste quadro, as medidas tomadas
eram incoerentes, incertas, o que aumentou a insegurança quanto à segu-
rança individual e coletiva. As interações eram feitas sempre com receio, e
as comunicações eram, via de regra, mediadas por sistemas computacionais.
O aumento de problemas de bem-estar e saúde mental foi uma decorrência
deste caos que instalou-se.
Embora múltiplas pessoas jovens tenham facilidade de manter interações
sociais online (POZZA et al., 2023), Nia e Jia (2023) dizem que as interações
pessoais (ou seja, presenciais, sem a mediação de sistemas) são cruciais para

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melhorar e manter o bem-estar, a saúde mental e física. Por exemplo, em
relação ao trabalho, Yao et al. (2023) reportam que o uso excessivo de tec-
nologia pós-pandemia pode ter aumentado a procrastinação.
A transição que ocorreu pós-pandemia, com a volta das aulas presen-
ciais não se deu sem os seus medos e problemas. Por exemplo, as pessoas
saíram da proteção de suas casas para ambientes em que estão expostas a
agressões, riscos, insultos, discriminação, ataques pelo fato de usar ou não
a máscara, entre outros.

3. Percebendo qualidades relacionais no Design


Van Amstel, Botter e Guimarães (2022) apresentam o Design Prospectivo
como uma abordagem que valoriza as qualidades que surgem das rela-
ções que constituem o interser. Entendida como uma estética relacional
(BOURRIAUD, 2021), muda-se o foco das qualidades intrínsecas do ser para
as qualidades relacionais do interser. Segundo Van Amstel (2019), para além
do conceito comumente difundido que associa estética a algum valor de be-
leza de um artefato, a estética não está restrita a um objeto (uma vez que a
beleza é por nós atribuída). Sendo assim, são possíveis múltiplas estéticas
na maneira como as coisas (artefatos, pessoas, atores etc.) relacionam-se.
“Quando a qualidade relevante muda da coisa para a relação entre coisas, te-
mos então uma estética relacional.” (VAN AMSTEL, 2019). Para o autor, em-
bora sejam mais difíceis de serem evidenciadas, as qualidades relacionais
são mais duradouras e valiosas do que as qualidades isoladas.
A estética relacional, ao problematizar para além do artefato, provê um
quadro teórico a partir do qual pode-se buscar novas ideias que permitam
mudanças em estilos de vida, em que valores, crenças e culturas são respei-
tadas. A partir das qualidades relacionais, pode-se reivindicar direitos e criar
políticas de Saúde Coletiva e Educação mais adequadas.
Neste estudo foi desenvolvida uma estética de quilt-terapia para promo-
ver as qualidades relacionais consideradas importantes para a reconstru-
ção do interser. Estas “qualidades-em-uso” caracterizam uma estética dinâ-
mica que se manifesta nas interações ao longo do tempo (EHN e LOWGREN,
1997). Desde as suas primeiras materializações, quando, por necessidade
e escassez, retalhos eram unidos em colcha-unidade para forrar materiais
isolantes contra o frio, tais como lãs, penas e outros, o Quilt tem estas ca-
racterísticas de união, de acolhimento, de calor humano. Ou seja, em um
segundo momento, o quilt tornou-se colcha-arte, privilegiando os padrões
de grupos semelhantes.
Atualmente, o quilt veste-se de significados outros além do colcha-qui-
lt. Presentes em múltiplas configurações sociais, temos que o colcha-quilt

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adquiriu significações condizentes com o propósito de sua criação, como o
quilt-comunidade, o quilt-acolhimento, o quilt-celebração, o quilt-história,
o quilt-união, dentre outras possibilidades (MAINARDI, 1982; TORSNEY e
ELSLEY, 1994; BLAIR e MICHEL, 2007; DICKIE, 2011a; DICKIE, 2011b; HOWELL
e PIERCE, 2011).
Podemos, então, falar da estética do quilt-terapia: sua natureza mesmo
de reunir “retalhos” por meio de ações de costura, remendos, busca formar
uma unidade. Este processo, colaborativo, proporciona o ambiente em que
qualidades relacionais emergem na expressão estética. Berkenbroc-Rosito
et al. (2021), por exemplo, utilizaram uma metodologia análoga à de con-
fecção de um quilt para formar professores, e construir a identidade de en-
sino da pessoa. Para as autoras, a feitura envolve o entendimento do inter-
ser — ao narrar a sua história, a pessoa reflete sobre si, seu lugar no mundo
e suas relações com este mundo. Já Patricia Polacco (1988) conta a história
de um quilt feito por uma família de imigrantes para ajudar a lembrar as
origens, e trazer para perto as pessoas lá deixadas. O quilt era o símbolo de
amor e fé para a família.
Em um outro estudo, Dickie (2011a, 2011b) elenca as diversas aprendiza-
gens que ocorrem na feitura de um quilt: aprender a técnica, as ferramentas,
a estética; aprender a reconhecer-se como membro da cultura que faz qui-
lt, que a pessoa é uma fazedora de quilt e aprender a participar. Na Saúde
Pública, Blair e Michel (2007) apresentam o Quilt Memorial da AIDS, que
marca a vida e morte de milhares de pessoas, além de representar centenas
de milhares de outras pessoas que não são nomeadas explicitamente, pro-
vendo assim espaços para múltiplas formas de rituais para lembrar os mortos.
Mainardi (1982) mostra a importância utilitária do quilt, e acrescenta a
este dimensões artísticas, políticas, pessoais, religiosas, abstratas etc. A au-
tora afirma que as mulheres tinham essa liberdade de criar nos quilts uma
vez que o trabalho não era mesmo considerado arte. No entanto, Blair e
Michel (2007) apontam que o quilt não se restringe à hierarquia mãe-filha
de transmissão, mas seguia sim uma abordagem de inclusão para além desta
hierarquia. Dickie (2011a, 2011b) elenca os benefícios terapêuticos da prá-
xis, do fazer, focando na feitura de quilts. Para a autora, a terapia refere-se
à maneira como a feitura dos quilts-terapia foi usada para lidar com situa-
ções difíceis ou para proporcionar sensações de bem estar.
Busca-se, portanto, na estética do quilt-terapia, a reconstrução do interser,
do propósito, da amizade, dos elementos que trazem valores de companhei-
rismo e afeto. Esta estética permite que o interser se reconheça livremente.
Para Witzling (2009), a estética quilt-terapia tem o potencial de transformar
fragmentos em unidades, em outras palavras, seres em interseres.

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4. Metodologia
A pesquisa teve caráter exploratório, usando de conceitos de Semiótica e
quilt-terapia para criar um ambiente seguro, acolhedor, que promovesse a
aproximação, a conversa e a criação de laços. Enquanto um experimento
pedagógico, a proposta de trabalhar com a estética quilt foi feita com a in-
tenção de promover reflexões pessoais e em grupo, discussões, conversas
motivacionais, compartilhamento de histórias, troca de informações, coo-
peração em atividade, seguindo de perto a proposta de Ni e Jia (2023).
Enquanto um experimento de design, esta é uma pesquisa através do de-
sign, ou seja, feita através do design (FRANKEL e RACINE, 2010). Nesse tipo
de pesquisa, o desenvolvimento do projeto é a forma epistemológica mes-
ma que produz conhecimentos que podem vir a ser generalizados a partir
da reflexão-na-ação (REDSTRÖM, 2017; KOSKINEN et al, 2011; SCHÖN, 2009).
Desta forma, a feitura dos quilts é o meio da pesquisa, valorizado pelo ca-
ráter prospectivo adotado neste trabalho. O resultado, que envolve a refle-
xão sobre todo o projeto, da ideia inicial ao produto final, foi identificar as
qualidades relacionais que possam ser cultivadas na Educação em Design.
Podemos esquematizar o processo adotado como a seguir:
I - Identificação dos fragmentos resultantes dos estressores da pandemia e
da volta às aulas na estudantada
II - Discussão geral de formas de reconstrução do interser
III - Discussão geral de como significar o bem-estar e a saúde mental
IV - Discussão da estética relacional do quilt-terapia
V - Discussão de como a estética relacional do quilt-terapia pode ressigni-
ficar o bem-estar e a saúde mental
VI - Produção das peças individuais
VII - Produção dos quilts
Os estudantes ficaram surpresos e empolgados em realizar uma atividade
artesanal dentro de uma disciplina de teoria. Esta empolgação cresceu na
medida em que os mesmos foram compreendendo o potencial terapêutico
do quilt. O fazer coletivo se tornou um momento de reflexão, crescimento,
acolhimento, lazer, suporte e apoio.
As peças criadas em grupo e que seriam posteriormente incorporadas ao
quilt-terapia do grupo eram signos do estado desejado, e/ou das ações que
poderiam levar ao estado desejado, das atividades que tornaram-se possí-
veis com a volta das aulas presenciais, do encontro com o outro, com o ou-
tro etc. A incorporação destas peças deu-se por meio da costura das mes-
mas em colchas de retalhos. O momento da celebração, do entendimento
do processo de reconstrução do interser, simbolizado pela estética da qui-
lt-terapia, foi uma forma de pensar pelo fazer.. O desenho produzido por

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um dos estudantes a partir do diálogo com o educador (Figura 1) sintetiza a
proposta estética: “Sejamos guarda-chuva, um misto de proteção, acolhida e
conforto, mas também disposição para ir lá enfrentar o que for necessário”.
O tema principal foi definido como “Bem-estar e Saúde Mental Pós-
Pandemia”. Cada grupo de estudantes escolheu um sub-tema: memórias,
sentimentos, atividades possíveis com o encontro presencial. Em sua maioria,
as peças foram otimistas, prospectando relações possíveis em um presente
alternativo. A partir dessas peças individuais, as turmas foram convidadas
a costurar quilts que tivessem aderência ao tema principal.
A participação era voluntária e os grupos adotaram a prática de autoges-
tão para se organizar. Os sub-temas variaram entre os problemas que en-
frentaram durante a pandemia; as qualidades de uso das tecnologias coti-
dianas; atividades que puderam fazer uma vez que as aulas voltaram a ser
presenciais, dentre outros.

figura 1. Síntese visual da proposta estética da quilt-terapia. Fonte: os autores.

O planejamento da costura dos quilts foi realizado de forma desestrutu-


rada, tal como o estado em que ainda nos encontrávamos: unidos, porém,
ainda procurando retomar as relações e interações cotidianas.

figura 2. Quilt-terapia desestruturado. Fonte: os autores.

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A estética quilt permite a costura alinhavada, solta, reproduzindo um pos-
sível estado de não-totalidade, usando peças que significam a reconstrução
do interser a partir das experiências fragmentadas que a vida proporciona.
O primeiro experimento coletivo foi um quilt memorial, que serviu como
um processo de aprendizagem (DICKIE, 2011b) sobre as ferramentas e lin-
guagens disponíveis para os demais quilts produzidos.
Após a criação do quilt memorial, os grupos trabalharam na confecção
dos quilts finais. Foram projetados 10 quilts no total, cada um contendo, em
média, 14 peças. O processo de montagem dos qui demandou capacidades
de articulação e negociação para escolher qual peça deveria estar mais pró-
xima da outra (Figura 3).

figura 3. Quilt-terapia montagem em grupo. Fonte: os autores.

5. Resultados alcançados
Cada peça tem a sua história semiótica, sobretudo porque elas eram repre-
sentações do interser que as produziu, e, portanto, carregavam consigo o
contexto, as interações, as condições de produção e as escolhas feitas embu-
tidas em signos. Cada peça podia ter sido produzida pelo estudante sozinho
ou com a ajuda de colegas. Ela podia ter sido levada para casa e feita com a
ajuda de familiares, quiçá retomando laços afetivos perdidos. A peça podia
ter sido motivo de discussão em grupo, cujo apoio tenha sido fundamental
na sua realização. Estas considerações estão aqui colocadas como um ponto
para lembrar do papel da participação, da colaboração, e do grau de refle-
xão que cada interser colocou na peça. Sendo assim, podemos considerar
que a peça também fala por si mesma.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 190-211. 200
As peças da Figura 4 funcionaram como um sistema de significações de
empatia e cuidado, enfim, o amor, seja ele fraterno ou romântico. As peças
comunicam um desejo de aproximação, de criação de laços; e falam do re-
torno do encontro com a natureza. Elas comunicam a vontade de re-plan-
tar o jardim para que as borboletas venham, como diz a vox populi. A liga-
ção da natureza com a saúde voltou a ganhar destaque durante a pandemia,
quando percebeu-se que o comportamento extrativista da sociedade foi
uma das causas da mesma.

figura 4. Quilt-terapia Retorno à natureza saudável. Fonte: os autores.

A estudantada elogiou a proposta como sendo uma “forma divertida” e


“terapêutica” de aprender a semiótica. Foi comentado que “nunca haviam
imaginado o uso do Design para projetos de bem-estar e saúde mental”. Em
seguida, os quilts foram apresentados e discutidos. A figura 5 apresenta um
dos quilt-terapia apresentado:

figura 5. Quilt-terapia - Cuidando dos afetos. Fonte: os autores.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 190-211. 201
As peças acima são um apanhado do total de peças produzidas. Buscou-se
representar a estética quilt-terapia e as múltiplas representações da estudan-
tada serviram para enriquecer o processo de reconstrução do interser. Na
próxima sessão, será apresentada uma análise dos quilts sobre as qualidades
relacionais sentidas e representadas durante e depois do processo de feitura.

6. Qualidades relacionais encontradas


Ao final dos trabalhos, a estudantada foi convidada, de maneira anônima e
consentida, a responder um questionário. Neste foram feitas perguntas com
respostas livres e múltipla escolha. O questionário ficou no ar por uma se-
mana e obteve 13 respostas. A seguir destacamos alguns trechos seleciona-
dos das respostas livres para a pergunta: “Como a feitura das peças ajudou
a melhorar o seu estado de descontração”. Estes trechos foram classificados,
para efeitos pedagógicos e terapêuticos em categorias para as pessoas que
venham a ler este manuscrito (Quadro 1).

Quadro 1. Respostas selecionadas do questionário pós-experimento

Trechos de respostas à pergunta sobre


Qualidade relacional que emergiu no texto
o estado de descontração

Conversa com colegas”, “trabalho em grupo”; “inte- ambiente pedagógico de projeto para laços
ração e apoio de colegas”; “união”; “descontração

"relaxamento”; “eliminou estresse”, “distração ambiente pedagógico de projeto acolhedor


de problemas”

"Diversão”, ”legal e divertido”; “aplicação de ambiente pedagógico de projeto descontraído


semiótica na criação artística e de bem-estar”

"foi transformador”; “estava mal e fiquei ambiente pedagógico de projeto para


bem”; “muito bom ir para as aulas fazer algo bem-estar e saúde mental
terapêutico”; “interação com amigos”

Fonte: Os autores

Podemos ver pelas respostas que o processo de design do quilt foi consi-
derado descontraído e divertido. O trabalho manual trouxe relaxamento e
distração dos problemas imediatos do cotidiano. O trabalho em grupo fa-
voreceu a criação e fortalecimento de laços de amizade em um ambiente
seguro e de apoio e união. Várias respostas referiam-se à qualidade trans-
formadora para o bem-estar e saúde mental. A aplicação de conceitos de
Semiótica ajudaram na representação de sentimentos e desejos para o bem-
-estar e a saúde mental. A seguir, apresentam-se respostas para a pergunta:

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“Como a feitura dos quilts ajudou a melhorar o seu estado de bem-estar e
saúde mental” (Quadro 2):

Quadro 2. Respostas selecionadas do questionário pós-experimento

Trechos de respostas às pergunta sobre


Qualidade relacional que emergiu no texto
bem-estar e saúde mental

"o processo de fazer o quilt uniu o grupo”; “reforcei ambiente pedagógico de projeto para laços
minha amizade com as pessoas que conhecia apenas
pelo computador”; “alegria”; “companheirismo”

"nunca havia imaginado o uso do design para ambiente pedagógico de projeto acolhedor
projetar algo para o bem-esta e a saúde mental”

"nunca havia costurado antes e fiquei muito feliz”; ambiente pedagógico de projeto descontraído
“costurar é divertido”; “arte sempre proporciona
bem-estar e satisfação”; “tranquilidade”

"esquecer os problemas”; “deu um quentinho no coração”; ambiente pedagógico de projeto para


“foi um alívio ter algo relaxante”; “diminuiu a depressão” bem-estar e saúde mental

Fonte: os autores.

Vimos que a quilt-terapia reforçou as qualidades de laços de amizade, tran-


quilidade, diversão e bem-estar. Interação e apoio de colegas, união, descon-
tração e ambiente seguro favoreceram os laços de amizade considerando o
bem-estar e a saúde mental. O processo foi considerado “transformador”, e
“terapêutico”. Múltiplas respostas apontam para um projeto de final de dis-
ciplina que elimina o estresse — em oposição aos trabalhos realizados em
outras disciplinas.
O projeto uniu o grupo, oportunizando o conhecimento presencial de
pessoas que somente eram conhecidas virtualmente. O quilt, considerado
como arte, trouxe satisfação e diversão, fazendo a pessoa respondente es-
quecer-se de problemas. Alívio, relaxamento, diminuição de estresse foram
apontados. Um dos estudantes relatou que “nunca havia imaginado o uso
do Design como terapia para bem-estar e saúde mental». Distração foi a
qualidade mais mencionada, seguida por conversas, troca de informações,
expressar sentimentos, redução do estresse e conhecer melhor as pessoas.
Observa-se que estas qualidades relacionais são propícias à criação de um
ambiente fomentador de combate a fatores estressores, o que pode levar a
uma melhoria no bem-estar e na saúde mental. A montagem do quilt pro-
porcionou conversas, seguido pela qualidade relacional de conhecer melhor
as pessoas. Em seguida temos confidências, distração, entretenimento e um
pouco mais atrás a redução do estresse. Essas diversas qualidades encontra-
das foram trianguladas com uma seleção assistemática de literatura em Saúde

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Pública, Psicologia e Educação. Com base nessa literatura, a diversidade
de qualidades foi reduzida para três qualidades principais, que conseguem
capturar de maneira mais universal a experiência concreta dos estudantes.
Empatia: É comum pensar em empatia como sendo a capacidade de en-
tender o outro, seus sentimentos e emoções, pelo referencial do outro. Reddy
(2023) expande este conceito para abranger o ser e o outro e denomina de
openness (“abertura”), valorizando tanto o entender como se fosse o outro,
quanto considerar a ação de ir ao encontro do outro. Desta maneira, Reddy
(2023) diz que as raízes da intersubjetividade são amplas na nossa maneira
de ser, ver e relacionar-se com o mundo. Ferguson e Wimmer (2023) com-
plementam que a habilidade de distinguir entre o interser e o outro ser é
importante para múltiplos processos cognitivos, e indicam o uso da imagi-
nação para a promoção da empatia.
Confiança: A psicologia define confiança como sendo a intenção de acei-
tar um certo grau de vulnerabilidade baseado na expectativa de intenções
e comportamentos do outro. Isto inclui uma aceitação do Ser e do outro
em suas capacidades de serem pessoas em que se possa depender, em cuja
competência pode-se confiar (LEGOOD et al., 2022, p. 1).
Cuidado: Cuidado é a ação de cuidar (preservar, guardar, conservar,
apoiar, tomar conta). O cuidado implica ajudar os outros, tentar promover
o seu bem-estar e evitar que sofram de algum mal. Foucault retoma os filó-
sofos clássicos para nos dizer que ao ser humano foi-lhe confiado o cuidado
de si também (FOUCAULT, 2006). Garcia (2004) amplia o conceito ao trazer
elementos de satisfação de necessidades vitais. Para o autor, o cuidado ético
pressupõe a interação e o contato moral entre seres. A ética do cuidado tem
por base o entendimento de que o mundo é uma rede de relações na qual es-
tamos imersos, com responsabilidade tanto para o Ser quanto para o outro.

7. Considerações
As consequências negativas para o bem-estar e a saúde mental dos estudan-
tes de Design foram devastadoras. Múltiplos fatores estressores, com ampla
variação de graus de impactos representam desafios que os estudos indicam
ainda vão perdurar por algum tempo. Diversas são as estratégias para mi-
tigar esse impacto.
Aqui constatou-se que a quilt-terapia ressignificou e visibilizou as qua-
lidades relacionais de empatia, de confiança e do cuidar, essenciais para a
reconstrução do interser. Este trabalho reverteu um quadro de estresse, es-
tranhamento, medo, inseguranças entre outros estressores que a estudan-
tada apresentava no retorno à aula presencial. Ao abordar diversos estres-
sores, o processo contribuiu com a formação de laços afetivos e de amizade,

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 190-211. 204
conversas distraídas, suporte de grupo, empatia, confiança e a qualidade
do cuidar.
A formação de designers por meio da estética relacional da quilt-terapia
trouxe uma nova dimensão ao Design Prospectivo enquanto uma aborda-
gem para a produção de conhecimentos sobre o interser, sobre o ser humano
em suas relações vitais. Considerando que o mundo atual apresenta carên-
cias de qualidades relacionais causadas por contradições em sistemas sócio-
-técnicos, pretendemos experimentar no futuro a quilt-terapia para elicitar
novos desejos, sonhos e futuros para a construção de um mundo melhor.
Podemos, pelo resultado, concluir por uma hipótese, a ser melhor inves-
tigada, de que projetos que cultivam qualidades relacionais possuem um
potencial de promoção do autoconhecimento, autocuidado e autogestão
no âmbito do interser, ou seja, no ser com os outros..

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Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 190-211. 210
Como referenciar

GUIMARÃES, Cayley. AMSTEL Frederick Marinus Constant Van.


Prospectando qualidades relacionais na educação em Design através
da quilt-terapia. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp. 190 -
211, jan./2024. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/
index.php/arcosdesign.

———

DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.77916

———

A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


Commons Atribuição – Não Comercial – Compartilha Igual 3.0
Não Adaptada.

Recebido em 20/07/2023 | Aceito em 30/11/2023

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 190-211. 211
arcos design

Como o design estratégico pode aumentar a


assertividade de uma empresa calçadista

Thomás Czrnhak (feevale, Brasil)


0285616@feevale.br

Juan Felipe Almada (feevale, Brasil)


juanfa@feevale.br

Cristiano Max Pereira Pinheiro (feevale, Brasil)


maxrs@feevale.br

Monique Dilkins (feevale, Brasil)


0195661@feevale.br

Arcos Design
Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 212-229. ISSN: 1984-5596 v. 17, n. 1, Janeiro 2024
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign

212
Como o design estratégico pode aumentar a
assertividade de uma empresa calçadista

Resumo: Diante de um cenário cada vez mais competitivo, as empresas


calçadistas estão identificando a necessidade de um novo posicionamento
estratégico. Nesse sentido, o design se apresenta como alternativa de ino-
vação, diferenciação e maior assertividade nos produtos deste mercado ex-
tremamente competitivo. O objetivo deste artigo é relatar o modo de como
o design estratégico pode aumentar a assertividade de uma empresa per-
tencente ao ramo calçadista. O olhar estratégico para analisar números e
coleções faz com que o produto tenha mais chance de aumentar o número
de vendas. Dentro da metodologia de estudo de caso, foram incrementadas
entrevistas com um gestor e um responsável do setor produtivo da empresa
estudada, Boamar. Durante a construção deste artigo, foi detectada a impor-
tância de algumas análises que podem ajudar a aumentar a assertividade de
uma coleção e assim garantir uma vantagem competitiva.
Palavras-chave: Design estratégico. Indústria calçadista. Desenvolvimento
de coleção.

How can strategic design increase the


effectiveness of a footwear firm

Abstract: Pop, the first magazine aimed at Brazilian youth, circulated between
1972 and 1979, dialoguing with behavioral transformations of the period driv-
en by the counterculture and the black, gay and feminist movements. I seek to
understand how the covers of Pop shaped models of youth that, a priori, ques-
tioned social conservatism, expanding references for the construction of youth
identities. In this perspective, I use research on Youth, Gender, Race, History,
Image and Design. The study of the media is relevant, as they construct rep-
resentations that seem to be reality itself, legitimizing and expanding, but also
interdicting ways of being in the world, which can reiterate and/or stress social
inequalities. The study indicated that Pop questioned traditional models of
behavior, although it produced, to a large extent, representations of juvenility
linked to privileged strata, whiteness and heteronormativity.
Keywords: Pop magazine; Youth; 1970s.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 212-229. 213
1. Introdução
Contando com crescimento de 15,7% de vagas de trabalho – condizente a
novos 7,2 mil cargos no intervalo de janeiro a junho de 2022 –, o setor cal-
çadista representou quase 30% da força trabalhista do estado do Rio Grande
do Sul (ABICALÇADOS, 2022).
A ascensão de um cenário de forte competição dentro do mercado manu-
fatureiro tem provocado a exigência de um novo posicionamento estratégico.
Neste contexto, o design estratégico representa uma alternativa para inova-
ção e diferenciação de produtos. Por meio da análise de resultados, vendas
e outras variáveis, pode-se buscar a possibilidade de melhorar a competiti-
vidade e assertividade do desenvolvimento projetual.
Define-se como assertividade da produção a tomada de decisão funda-
mentada e capaz de atender às necessidades dos consumidores. Isso en-
volve elementos como custo e experiência de uso, visando a satisfação de
stakeholders1, tendo como pano de fundo os objetivos do empreendimento
(CORREA et al., 2020).
A criatividade, insumo principal das indústrias criativas, (BENDASSOLI et
al., 2009), tem sido associada ao empreendedorismo na proposição de no-
vos produtos ou serviços e sua implementação (AMABILE, 1997). A criati-
vidade se transforma em fator produtivo. As ideias e processos podem ser
a base para a inovação desejada e requisitada no mercado.
Para Klopsch (2011), a estratégia competitiva consiste no agrupamento
de atividades empenhadas em oferecer uma combinação resultante em va-
lor. Sobre isso, Best (2012) teoriza o planejamento como o processo decisó-
rio de execução da produção.
A partir dos fundamentos supracitados, admite-se como questão nortea-
dora: de que modo o design estratégico pode auxiliar de modo assertivo nas
coleções de uma empresa calçadista?
Este manuscrito encontra-se dividido da seguinte maneira: na seção dois,
os métodos científicos são explicados. Sequencialmente, a seção três agru-
pa a fundamentação de design estratégico, casos e gestão do design. As en-
trevistas e análises do output estão localizadas na seção quatro. Por fim, os
comentários finais estão expostos na quinta seção.

2. Procedimentos metodológicos
Optou-se pela utilização de estudo de caso com a empresa investigada,
Boamar, que será abordada nos parágrafos seguintes. Este método, segundo

1 Termo guarda-chuva para entidades ou grupos de indivíduos que compartilham um in-


teresse em uma determinada organização, com ou sem fins lucrativos.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 212-229. 214
Yin (2015), é caracterizado como uma abordagem de investigação empírica
que se dedica à análise de um fenômeno em particular para compreender
de modo abrangente objeto de estudo.
Neste artigo, foram utilizadas: revisão quantitativa documental externa
(dados de comercialização e design estratégico de competidores do mercado)
e interna (dados de comercialização da empresa investigada) e entrevistas
qualitativas com dois funcionários de diferentes setores da marca. Foi ana-
lisado o histórico empresarial, para compreender o que já foi implementa-
do e quais meios poderiam ser incrementados.
A pesquisa foi instrumentada por duas rodadas de entrevistas: em um pri-
meiro momento, foi entrevistado um gestor da marca e, subsequentemen-
te, uma segunda entrevista foi aplicada com o responsável técnico do setor
produtivo. Conforme Minayo, Deslandes e Gomes (2011), entrevistas são
aparatos qualitativos a serem apropriados para coleta de dados em campo
sobre o assunto da investigação.
Os estudos qualitativos das entrevistas e as análises quantitativas de ven-
das e produtos da marca são opções de triangulação preconizadas por Yin
(2015) no estudo de caso. Bryman (2006) entende a triangulação como a
razão de combinar aparatos quantitativos e qualitativos, de forma a gerar
dados mais abrangentes na pesquisa.
O roteiro semi estruturado para entrevistas agrupou as seguintes pergun-
tas nas respectivas categorias conforme o Quadro 1. Como objeto de estu-
do, foi selecionada a empresa Boamar, atuante no ramo da matrizaria, cor-
respondente ao espaço de fabricação de matrizes de injeção. Todo calçado
injetado possui um molde de injeção, fabricado em alumínio ou aço. Esses
moldes concedem a forma para os calçados produzidos.
Para a compreensão das práticas empresariais e sua oferta, torna-se fun-
damental estudar os produtos e métodos do setor de P & D (pesquisa e de-
senvolvimento) pertencente ao empreendimento. Logo, foram investigados
os processos internos de inovação, as estratégias e o planejamento da cole-
ção e os produtos pertencentes.

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 212-229. 215
Quadro 1. Roteiro semi estruturado para entrevistas.

Categoria Pergunta

Design e produção Qual o grau de importância que você


atribuiu ao design dentro da empresa?

Como foi a experiência de abrir novas


marcas dentro da entidade?

Como você enxerga a área do design


ao decorrer do tempo na marca?

Para entender melhor o setor de


desenvolvimento, qual seria sua dica?

Qual é a maior dor identificada dentro do processo


de desenvolvimento de novos produtos, desde a
estratégia, criação, desenvolvimento e lançamento?

Comércio, estratégia e mercado Quais são os processos e ações para o lançamentos


de produtos e os setores envolvidos?

Qual é sua opinião em relação ao mix de coleção? Há


necessidade de mais lançamentos durante o ano?

Há algum tipo de análise de vendas para


identificar os modelos mais assertivos? Qual sua
opinião quanto a importância deste dado?

Com que frequência deve-se analisar um


estudo aprofundado de coleções?

Organização interna Como você entendeu o consumo durante a pandemia


em relação ao seu mercado de desenvolvimento?

Pode-se verificar a evolução quanto às análises feitas


do desenvolvimento de produto e os processos?

Há um propósito claro e um público definido?


Qual o maior objetivo da empresa?

Quais são as lacunas de mercado que


podem ser preenchidas pela empresa?

Qual é a lembrança do mercado da


empresa e suas marcas?

Se você tivesse o conhecimento atual, mas há


dez anos, o que faria diferente na marca?

A visão da empresa atualmente é focar na marca


Boamar ou abrir mais opções de mercado?

fonte: Os autores.

3. Literatura de design estratégico


A presente seção encontra-se dividida em dois tópicos relevantes para o ob-
jeto da pesquisa: design estratégico e gestão do design.

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3.1. Design estratégico
Mintzberg e Quinn (2001) definem estratégia como o conjunto de metas e
ações agrupadas em um plano integrador, que é executado por uma orga-
nização com base em suas estruturas. O plano é desempenhado e articula-
do de modo a engendrar uma estrutura sistêmica, harmoniosa e coerente,
conducente à consecução dos objetivos institucionais.
A estratégia pode orientar o posicionamento da marca em relação aos
preços de seus produtos no mercado. De acordo com Porter (1996), a en-
tidade deve focar em ser líder de custos (preços baixos) ou líder em valor
(entrega de qualidade superior, geralmente acompanhada de preços mais
elevados). Quando uma empresa tenta adotar ambas as abordagens, ela
tende a ficar presa no meio do caminho, sem implementar eficazmente ne-
nhuma estratégia.
Do ponto de vista do empreendedorismo, como argumentado por Amabile
(1997), a ideia precursora do novo está relacionada a: a) novos produtos ou
serviços; b) identificação de mercados; c) métodos de produção e entrega
de produtos e serviços; e d) formas de obtenção de recursos para produzir
ou entregar serviços. O designer estratégico pode executar todos esses itens,
com o objetivo de proporcionar à empresa uma vantagem competitiva em
relação à concorrência.
Martins (2011) conclui que a redefinição do papel do designer possibilita
que ele atue de forma consistente no aumento do desempenho competiti-
vo das empresas, desenvolvendo planos estratégicos. A inovação é um ele-
mento essencial para a competitividade, resultante da aplicação adequada
de criatividade e experiência técnica
A análise dos casos de aplicação do design estratégico no mesmo segmen-
to de mercado e na indústria pode fornecer insights relacionados ao posi-
cionamento, ao processo e ao desenvolvimento de coleções. As entidades
selecionadas para análise são Havaianas e Melissa, uma vez que pertencem
ao mesmo segmento produtivo, ainda que sob a limitação de possuírem um
tamanho empresarial aquém da estudada neste artigo.

3.1.1. Havaianas
A marca Havaianas é uma empresa de calçados amplamente reconhecida
por seus chinelos confortáveis. A empresa se destacou por ser pioneira na
criação desses produtos com baixo custo, inspirados nos chinelos do povo
Zori (FASHION NETWORK, 2022).
O recente reposicionamento da marca contribuiu para a estabilidade fi-
nanceira e a expansão internacional da empresa (MOURAD; SERRALVO, 2014).
Em 2022, Havaianas conquistou quase 45% do mercado de chinelos no Brasil,

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 212-229. 217
com os três pontos de venda mais comuns sendo supermercados (33,8%),
lojas especializadas (31,4%) e lojas de departamento (20,2%) (YUP, 2022).
Outras estratégias adotadas incluem a mudança do slogan de “as legíti-
mas” para “todo mundo usa”, destacando a adoção generalizada por dife-
rentes classes econômicas. Além disso, a empresa empregou atletas e cele-
bridades para fortalecer o valor do produto, o novo slogan e a criação de
vínculos emocionais.
Os resultados empíricos de Schünke et al. (2021) demonstram que alinhar
a produção com influenciadores ou pessoas de interesse para o público da
marca de moda pode resultar em efeitos positivos, como um aumento nas
vendas. Isso ocorre porque a comunicação desempenha um papel funda-
mental na cadeia de valor dos produtos de moda (CIETTA, 2017).
Visando diferenciação ante às concorrentes no mercado de chinelos, a
Havaianas trouxe a tradição em uma linha de calçados. Sendo um produto
de investimento com matrizes, o mix de produto foi incrementado paula-
tinamente, de três em três anos. Tais inovações eram comunicadas a cada
estação, com alterações em cores, estampas e detalhes, como pode ser con-
ferido na Figura 1.

figura 1. Produtos Havaianas. Fonte: Os autores.

Com efeito do sucesso comercial do novo posicionamento adotado, a


empresa alocou mais recursos à publicidade das linhas, elevando o chinelo
a objeto de desejo de consumo de modo mais abrangente.
Conforme Status Invest (2022), o grupo Alpargatas, que é o proprietário
da marca Havaianas, alcançou um recorde histórico de receita líquida, to-
talizando R$ 3.948.600,00 (três milhões, novecentos e quarenta e oito mil e
sessenta reais). Esse feito representou um aumento significativo de 25,6%,
impulsionado pelo crescimento de volumes em 12%. A representação grá-
fica dos ganhos pode ser visualizada na Figura 2, que está localizada abaixo.

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figura 2. Payout da Alpargatas. Fonte: Status Impact.

O EBITDA societário atingiu a métrica de R$ 750.000.000,00 (setecentos


e cinquenta milhões de reais) (+76,3%), contando com expansão de mar-
gem de 5,5%. A margem bruta cresceu +8,4%, majoritariamente por fato-
res como a contribuição do mercado internacional e o aumento de preço
alinhado com aumento de preço das matérias primas (+26% quando com-
parado com o ano de 2020.

3.1.2. Melissa
Tal como a Havaianas, a marca Melissa também realizou uma ação de re-
posicionamento estratégico, que envolveu a alteração do público-alvo e dos
preços dos produtos. A decisão de aumentar os preços dos produtos resul-
tou em uma queda nas vendas, mas, no entanto, a margem EBITDA mos-
trou-se elevada.
O planejamento incluiu a transformação do calçado de plástico, que re-
quer investimento em matrizes e moldes, em um objeto de desejo. Isso foi
alcançado por meio da participação em desfiles, a criação de um espaço
conceitual em São Paulo e a oferta limitada de pares, promovendo o apelo
colecionável das peças.
Tais ações aumentaram o valor percebido do produto, respaldando a vi-
são de Mozota (2011) de que a estratégia de gerar maior valor, mesmo com
um volume de vendas menor, pode ser bem-sucedida quando há uma di-
ferenciação consistente e relevante, apoiada pela gestão do design. O repo-
sicionamento de marca vai além da inovação de produtos, afetando o fun-
cionamento da marca e a cultura interna.
A rentabilidade da empresa no início da pandemia da COVID-19 pode ser
conferida na Figura 3.

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figura 3. Rentabilidade da marca Melissa no período 2020-2021. Fonte: suno.

O gráfico indica que a entidade sofreu uma considerável redução de lu-


cratividade. A incerteza do consumidor em um ano pandêmico pode ter
contribuído para o declínio. Contudo, no final deste ano, a marca registrou
um crescimento constante. Ainda que algumas baixas sejam perceptíveis,
pode-se justificá-las pela imposição de custos do início de coleção de pro-
dutos. Esses podem ser alocados para o desenvolvimento de matrizes para
fabricação da linha.

3.2. Gestão do design


A gestão do design envolve as funções, princípios e práticas do design que
podem auxiliar as organizações a criar novos valores e garantir uma van-
tagem competitiva
Segundo Dubois, Kulpa e Souza (2019), o sucesso na estratégia de negó-
cios mencionada deriva de três processos interligados: a) planejamento, que
se refere às atividades de apoio à produção; b) execução, onde as atividades
planejadas anteriormente são realizadas para otimizar o fluxo de produção
e a utilização eficaz dos recursos investidos; e c) controle, cuja função prin-
cipal é monitorar e garantir que as atividades estejam alinhadas com o pla-
nejamento original.
O planejamento pode incluir metas que servem como base para diag-
nósticos e buscam atingir o desempenho desejado da organização. Nesse
contexto, quatro formatos de controle no processo podem ser identificados,
com metas de desempenho adaptadas e apropriadas: planejamento anual,
rentabilidade, eficiência e estratégico (MARTINS, 2002).
Para uma gestão eficaz, a monitorização constante do desempenho é
essencial, abrangendo desde a análise de resultados e estratégias até o re-
conhecimento de consumidores e stakeholders como um todo. O designer

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estratégico pode ser um ativo importante, uma vez que, munido de infor-
mações e dados, pode desenvolver uma abordagem mais precisa, estudando
e compreendendo o comportamento de consumo do público-alvo.
A gestão empresarial envolve o processo de tomada de decisões alinhado
aos objetivos organizacionais de forma eficiente (MAXIMIANO, 1996). Isso
torna o planejamento um processo de extrema importância para a saúde
financeira e o funcionamento eficaz da empresa.

4. Análise da produção e insights


Esta seção encontra-se bifurcada nas seguintes partes: entrevistas com ges-
tores e análises do desenvolvimento de produtos e suas vendas. Conclui-se
com insights gerados a partir dessas análises.

4.1. Entrevistas qualitativas


De maneira instrumental e visando gerar triangulação de fontes, como
preconizado por Yin (2015) para o estudo de caso, foram realizadas duas
entrevistas. O conteúdo serviu de forma a complementar os fundamentos
propostos na seção três, de modo a contribuir com a pergunta de pesquisa.
Inicialmente, foi entrevistado um dos administradores da empresa, do-
ravante chamado de “gestor”, seguido por um dos responsáveis pelo setor
produtivo da empresa, doravante denominado de “supervisor”. As rodadas
de entrevistas buscaram compreender a gestão e estratégia interna ao setor
de desenvolvimento da empresa. O quadro das perguntas encontra-se lo-
calizado na seção dois deste manuscrito.
Como supracitado, o designer pode trazer, de maneira estratégica, infor-
mações mercadológicas e de planejamento da coleção assertiva, participan-
do de margens, embalagens e detalhes que podem passar despercebidos sem
a sua presença participativa do desenvolvimento.
O gestor acredita que o caminho a ser seguido no desenvolvimento de
produtos é atrelado a duas propriedades principais: criativa e analítica. A
análise de processo é recorrente dentro do setor de desenvolvimento, onde,
como sobredito por Castello (2016), estudar o mercado e seu ritmo (ditado
pelo seu público) é uma ação fundamental.
O trabalho industrial requer um conjunto de elementos para seu melhor
funcionamento, desde o entendimento do seu público, produtos que con-
some, disponibilidade monetária e suas necessidades. Isso se estende até o
diálogo e entendimento do lojista na comunicação com o consumidor final.
O relato obtido por meio da entrevista com o supervisor enaltece a impor-
tância de determinar e conhecer um público específico: quando um produto
não é destinado a um público particular, o produto tende ao fracasso comercial.

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Ainda, o supervisor alertou que “quando se dá início ao processo de uma
nova coleção, o que está como padrão? Caixa, transporte, mas e se pergun-
tarmos quanto tempo isso não é revisado dentro da empresa?”. Por meio da
entrevista, foi possível compreender a necessidade de se estudar novamente
todos os processos, dada a quantidade de inovação que o setor do desenvol-
vimento cria, e outros processos são esquecidos de maneira sincronizada.
O gestor da empresa acredita que haja uma necessidade de equilíbrio
entre custos – mediante investimentos nas características do produto – e
o investimento estrutural administrativo. Segundo ele, é necessário que se
compreendam “os processos da empresa dentro do setor de desenvolvimento,
para conseguir uma estratégia para aumentar a lucratividade da empresa”.
Referindo-se ao papel que o designer desempenha e sua importância com-
petitiva, o gestor conclui que: “o design tem como função relevante dentro da
empresa, tanto para fazer diferenciação de produtos perante aos concorrentes,
quanto para diferenciação de margens e eficiência produtiva”.
Enquanto isso, considerando a eficiência, é de opinião do supervisor
que “quando o produto tem como função ser um produto de combate, de pre-
ço acessível, não se pode desenvolver um produto que não vai chegar no va-
lor adequado”.
Dado o fato que a matriz assume um orçamento mínimo de R$ 140.000,00
(cento e quarenta mil reais), o produto requer que suas especificações este-
jam alinhadas com o público, pois sem essa conexão planejada, não há um
preço alinhado nem eficiência produtiva, aumentando o valor no ponto de
venda final.
Conforme relatos de ambos, a empresa não cogita a criação de outras
marcas para acrescer seu mix de produtos, por uma experiência sem sucesso
no passado. O sistema de indumentária na forma fast fashion faz com que
os produtos sejam renovados semestralmente, por um lead time diminuto,
elevando o orçamento em matrizes. As indumentárias resultaram em pior
desempenho comercial do que os calçados atuais. A decisão dos gestores foi
de encerrar a atividade da marca, e dedicar os investimentos em produtos
novos e atemporais para o ramo calçadista.

4.2. Análise da oferta de produtos


A entidade Molde Boamar conta com um mix variado de calçados. Mesmo
que atue em coleções próprias no formato B2C2, a empresa atende também

2 Business-to-consumer, corresponde ao formato de comercialização da empresa direta-


mente ao consumidor.

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a modalidade B2B3, assumindo o processo de desenvolvimento de grandes
empresas calçadistas regionais, como Lança Perfume, Carmim, Loeffler,
Handal, etc.
A coleção principal própria do segmento B2C compreende 35 modelos
injetados – sem contar os modelos que seguem vendendo no mercado ex-
terno, o que elevaria a contagem para 80 produtos. Ainda, a especialidade
da marca é o calçado do tipo injetado, ao passo que a entidade fornece as
próprias matrizes. A Figura 4 representa esta configuração, situando mo-
delos por preço de varejo.

figura 4. Pirâmide de preço Boamar. Fonte Os autores.

O mix de produtos engloba modelos diversificados, desde clogs4 até chi-


nelos, contando com custo de matriz e grade de numeração. A pirâmide de
preços possui um intervalo de R$ 59,90 a R$ 169,90, com a maioria se en-
quadrando na faixa de R$ 99,90, contudo – como será explorado na próxi-
ma subseção – os produtos que mais vendem estão em outras faixas.

4.3. Análise de vendas


A análise do volume de vendas permite o entendimento do público e do
mercado. Os dados referentes ao intervalo de janeiro de 2020 até outubro
de 2022 podem ser conferidos na Figura 5.

3 Business-to-business, em contraste ao B2C supracitado, representa a comercialização de


empresa para empresa.
4 Sapato feminino com sola elevada, em madeira, e fechamento na parte superior.

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figura 5. Volume de vendas. Fonte: Os autores.

A imagem ilustra a predominância de venda dos produtos “Nellie” e “Lilly”


na coleção. Juntos, totalizam mais de um milhão de pares. Dos cinco produ-
tos mais vendidos, três se enquadram como clogs e dois são chinelos. Sob a
mesma análise de vendas, constata-se que a região geográfica com o maior
número de comercialização dos produtos é a região sudeste.

4.4. Desenvolvimento Boamar


Foi identificado e constatado que no ano de 2023 a empresa possui os se-
guintes parâmetros para criação de novos produtos: análise de produto,
análise da coleção, pesquisa de mercado (concorrentes e similares), moo-
dboard e layout.
A análise de público envolve segmentar e selecionar quais públicos pos-
suem mais afinidade com a marca, assim permitindo a concentração e o in-
vestimento de recursos na conquista de potenciais clientes.
Sequencialmente, a análise da coleção é condizente à análise dos produ-
tos que estavam faltando na coleção, tendo em vista as necessidades e de-
mandas do público estudado.
A terceira etapa, pesquisa de mercado, concorrentes e similares, refere-se
a investigação do que está sendo ofertado no mercado, coletando dados so-
bre texturas, materiais e cores, sob objetivo de não situar a coleção em uma
fase diferente no momento do seu lançamento, ainda que carregando um
grau de originalidade para diferenciação frente aos concorrentes.
Elaborar um moodboard de coleção é a penúltima fase, enquanto o layout
gerado a partir deste é a fase final. O painel semântico deve refletir as inspi-
rações e informações essenciais que agregam valor à coleção. Com os dados,

Arcos Design. Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, Janeiro 2024, pp. 212-229. 224
a atmosfera, cores e demais referências visuais registradas no moodboard,
elabora-se o layout de um novo produto, gerando alternativas e esboços de
peças da coleção que será ofertada no mercado.

4.5. Insights
Por meio da análise das informações mencionadas, é possível identificar
os elementos essenciais para uma análise aprofundada da coleção, visando
enriquecer o conjunto de dados e facilitar o processo de tomada de decisão.
Os discursos dos entrevistados contribuíram de modo a elencar as análi-
ses processuais, o público mirado, a utilização de margem para futuros in-
vestimentos na marca. Por meio do que foi comunicado aos pesquisadores,
o designer estratégico pode atuar na produção, nas estratégias de mercado
e comércio e em aspectos de organização empresarial.
Combinando as análises documentais internas com os relatos do gestor
e supervisor, pôde-se concluir elementos dos quais o designer estratégico
pode agir. Tais elementos são: a) relatórios de vendas (por número e região
geográfica); b) cores mais vendidas; c) estampas mais vendidas; d) escolha
de embalagens adequadas; e) identificação de logos; f) avaliação das espes-
suras dos produtos; e g) análise da margem de lucro dos produtos.
Mediante os elementos supracitados juntamente com outros dados dispo-
níveis, é possível criar uma coleção mais enxuta em termos de quantidade
de produtos, mas altamente eficaz. Isso pode levar a um desempenho eco-
nômico superior para a empresa, aumentando a lucratividade e reduzindo
o esforço no processo de desenvolvimento.

5. Considerações finais
Este trabalho versa que por meio da análise de resultados, vendas e variá-
veis como a análise de público, podem melhorar a competitividade e asser-
tividade do desenvolvimento do design. O designer estratégico pode atuar
em tais áreas, assumindo a responsabilidade de conceber as fases do proje-
to, reduzindo ineficiências no processo produtivo e auxiliando no desem-
penho comercial.
Além de identificar as necessidades dos consumidores, o designer pode
usufruir de pesquisas de mercado para prever e perceber os desejos e as
demandas, e, por meio do design estratégico, alterar positivamente as per-
cepções de valor.
Os relatos da empresa Boamar permitiu uma visão organizada dos ele-
mentos e etapas que embasam e constituem a construção de uma coleção de
calçados assertiva e conectada a um planejamento estratégico, o que pode

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garantir um eficiente desempenho econômico e trilhar na direção de van-
tagem competitiva.

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Como referenciar

ALMADA, Juan Felipe; PINHEIRO, Cristiano Max Pereira;


DILKINS, Monique; CZRNHAK, Thomás. Como o design
estratégico pode aumentar a assertividade de uma empresa calçadista.
Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, pp. 212-229, jan./2024.
Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/
arcosdesign.

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DOI: https://www.doi.org/10.12957/arcosdesign.2024.76854

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A revista Arcos Design está licenciada sob uma licença Creative


Commons Atribuição – Não Comercial – Compartilha Igual 3.0
Não Adaptada.

Recebido em 07/06/2023 | Aceito em 14/11/2023

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