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Vale de Almeida, Miguel. O Projecto Crioulo
Vale de Almeida, Miguel. O Projecto Crioulo
Vale de Almeida, Miguel. O Projecto Crioulo
O Projecto Crioulo
Cabo Verde, colonialismo e crioulidade
Publicado em “Outros Destinos” (2004)
1
Este texto, inédito, é de certo modo uma adenda à pesquisa sobre política da identidade e questões de
pós-colonialismo publicada em Vale de Almeida (2000). Foi escrito no âmbito do projecto Contextos
Coloniais e Pós-coloniais da Globalização: Interacção e Discurso no Mundo Lusófono (Sécs. XVI a
XXI), coordenado por Jill Dias, financiado pela FCT. Uma versão inglesa, versando aspectos mais
abrangentes do colonialismo português, está no prelo em Charles Stewart, org., Creolization and
Diaspora: Historical, Ethnographic and Theoretical Approachs. A elaboração deste texto contou com a
ajuda inestimável de João Vasconcelos.
população cabo-verdiana tem 35% de origem europeia (portuguesa) e 65% de origem
oeste-africana» (1957:64).
Paralelamente à investigação seroantropológica, cujos conteúdos técnicos não
são relevantes para o argumento do presente texto, Almerindo Lessa promove duas
reuniões de mesa redonda para discussão do «Homem [sic] Cabo-Verdiano». O texto
apresenta a transcrição dos trabalhos, que tiveram lugar a 21 e 24 de Julho de 1956 no
Grémio do Mindelo. A primeira reunião é substancialmente ocupada por uma palestra
de Lessa, seguida de discussão pelos participantes. A segunda dá mais a palavra aos
segundos, num registo especulativo e impressionista sobre as características culturais
cabo-verdianas. Na primeira, Lessa aborda a questão racial, no sentido de lançar a
pergunta sobre se «a bioquímica pode explicar a História e a Cultura». A questão dos
mestiços é um dos tópicos importantes, sobretudo no que diz respeito à indagação da
sua qualificação como «degenerativos, superantes ou de adaptação».
A segunda reunião desenrola-se a partir duma agenda de questões definidas por
Lessa no sentido de obter respostas por parte dos intelectuais locais: Existe uma
civilização cabo-verdiana? Existe mesmo uma arte regional? O que está na origem da
indolência (sic) cabo-verdiana? Qual o valor da língua crioula? Os problemas da cultura
da terra têm origem no fatalismo, na falta de meios materiais ou na impreparação
técnica? E, por fim, existe um complexo de inferioridade respeitante às «doenças de
negro»? Prestarei particular atenção aos tópicos que têm constituído – antes e depois
destas conferências – focos da atenção dos “construtores de identidade” em Cabo Verde
(quer entre as elites locais, quer entre os colonizadores), a saber, a especificidade cabo-
verdiana e/ou a sua “portugalidade”, sendo que a questão da língua surge como a
dobradiça principal (facto, aliás, comum às definições de identidade nacional com base
em critérios etno-linguísticos).
Os participantes na mesa redonda eram representantes masculinos das elites
letradas locais ou de origem metropolitana e imperial, residentes no arquipélago (neste
último caso, especifico a sua origem na listagem): Aníbal Lopes da Silva, médico; Júlio
Monteiro, advogado e administrador do concelho; António Miranda, médico; H. Santa
Rita Vieira, médico; Baltasar Lopes, advogado, reitor do Liceu; Raul Ribeiro,
comerciante, director do Notícias de Cabo Verde; Henrique Teixeira de Sousa, médico;
Manuel Serra, advogado; António Gonçalves, professor do Liceu; Augusto Miranda,
advogado; Jonas Wahnon, industrial; Joaquim Nonato Ramos, comerciante e presidente
da Associação Comercial; José Resende, major, comandante militar interino,
metropolitano; Guilherme Chantre, professor do Liceu; João Morais, médico, director
do hospital; Júlio Oliveira, Presidente da Câmara Municipal; José dos Santos,
comerciante, metropolitano; Daniel Tavares, médico; Manuel Meira, médico-chefe da
missão do Instituto de Medicina Tropical, metropolitano; Olímpio Nobre Martins,
médico; João Lopes, comerciante; Manuel Pélico, oficial do exército, metropolitano;
José Mascarenhas, secretário da Fazenda; Mário Leão, médico, de Goa; Manuel Lopes
da Silva, Jr., advogado; Adriano Duarte Silva, advogado, deputado por Cabo Verde;
Manuel Camões, médico, metropolitano; Francisco Mascarenhas, funcionário
aduaneiro; e Emílio Santiago, industrial, metropolitano.
A primeira reunião
A prelecção inicial de Lessa pode ser vista como uma aula dada pelo
pesquisador visitante às elites locais, de modo a explicar o relevo do seu trabalho no
terreno. Dois problemas são por ele reconhecidos: definir a “Antropossociologia” e
poder proceder a uma análise da sociedade cabo-verdiana, o que o leva a «...provocar e
ouvir a sua aristocracia» (1957:72).
Quais são as suas preocupações em relação ao primeiro assunto? Em primeiro
lugar, dar validação matemática aos princípios da genética aplicada à classificação em
«raças e povos». Os métodos biosserológicos permitiriam «estabelecer a especificidade
bioquímica dos indivíduos e o seu apartamento em raças», embora apenas dez grupos de
caracteres constituam aqueles que «pela generalização... são suficientes para estabelecer
por um jogo de percentagens a diferenciação das raças» (1957:75). Colocando como
alternativas na classificação das “raças” o cálculo das percentagens de fenótipos ou o
cálculo das percentagens de genótipos, Lessa diz reconhecer que «não é possível mais
falar de raças brancas e negras; não vamos já continuar na ingenuidade de falar numa
raça portuguesa ou numa raça francesa. A única coisa que hoje nos é permitida dizer é
que existem três grandes agrupamentos humanos: os negróides, os caucasóides e os
mongolóides, cada um deles perfeitamente definido pela percentagem maior ou menor
de certas constituições bioquímicas» (1957:78). A sua frustração assenta não na
impossibilidade de encontrar diferenciações raciais (que para ele são claras) mas em não
«podermos ir mais longe... [até às] estruturas psicobiológicas» (1957:79).
Situando-se para cá de uma raciologia que hoje qualificaríamos de racista, Lessa
encontrava-se, todavia, longe ainda da nossa contemporânea visão da “raça” como
construção social. A sua posição é intersticial e de transição, como o próprio período da
história do colonialismo português em que foi formulada.
A outra preocupação na prelecção de Lessa é por ele mesmo explicitada: « [qual
é] a posição dos mestiços e das raças consideradas “inferiores” no plano geral da
Antropobiologia?» (1957:80). Afirmando-se como não preconceituoso, e reconhecendo,
a partir de Gilberto Freire, que o cruzamento foi «...uma necessidade histórica, sem a
qual uma nação demograficamente tão pequena como a nossa (...) não poderia obter
uma fixação ecológica» (1957:80), Lessa diz que «...a criação do mestiço favorece o
património genético do homem e deve ser considerada um método positivo na dinâmica
das populações» (1957:80). Ele coloca fora de discussão que a mestiçagem amplifica a
variabilidade das “raças”, mas identifica a valorização de tal amplificação como sendo
um objecto de controvérsia, como já havia ficado patente em «homens de ciência» como
Eusébio Tamagnini e Mendes Correia, ou em «homens de letras» como Fialho de
Almeida ou Hipólito Raposo (ou, ainda, as discussões, no Brasil, entre Oliveira Viana e
Austregésilo).
O problema que Lessa partilha com os outros participantes na mesa redonda é o
do «aspecto psicossomático da transplantação do europeu para as regiões tropicais»
(1957: 81), confessando não se possuir «nem elementos, nem prática, nem perspectiva
para estudar um tipo novo de homem que nos surja» (p. 82). Esta dificuldade é
exemplificada com recurso a um registo de literatura de viagens, mais especificamente
uma crónica que Lessa teria escrito anos atrás durante uma viagem de navio à Índia. A
crónica começa por referir o seu encontro, a bordo, com o escritor Paul Bowles, que
seguia na companhia de um tal Ahmed el Yacoubi que «tem vinte anos e é o que no
Chiado se chamaria um selvagem» (p. 82), alguém que «não possui nenhum dos
elementos que fazem a magnificência da civilização. Mas sente-se que todo ele é um
contínuo esforço de pensar e ficaria para morrer se eu lhe dissesse que é um ignorante:
porque sabe tudo» (p. 83). Lessa diz que viu «fotografias de quadros seus que me fazem
lembrar os desenhos das cavernas australianas como o Picasso da segunda fase e que
numa exposição organizada por Paul Bowles na Galeria Gallimard, de Tânger, se
venderam todos» (p. 83). O autor prossegue confessando como gostaria de ter feito o
mesmo que Paul Bowles: acompanhar Ahmed de Paris ao Paquistão de modo a poder
observar as suas reacções a meios tão diversos. Esta deambulação condu-lo ao registo
confessional com que termina a prelecção e abre a discussão:
As referências a Paul Bowles, Picasso e Freire situam Lessa num quadro marcadamente
modernista, no qual o tropo da mestiçagem é central para a definição das condições
sociais e culturais que dariam azo a uma desejada sociedade global de misturas. Esta
perspectiva modernista tem, todavia, uma componente aparentemente contraditória: a
definição separatista das componentes que contribuem para a mistura. Esta classificação
da especificidade e da diferença (“racial”, “cultural”, linguística, geográfica...) é a
marca central da antropologia modernista, cujos motivos serviram de inspiração para as
definições de identidades nacionais na Europa e de perturbação para as definições de
identidades nacionais no mundo pós-colonial.
Antes de analisarmos a discussão da mesa, talvez seja o momento de perceber
um pouco melhor quem era Lessa nesse universo colonial dos anos cinquenta
influenciado já pelo ideário de Gilberto Freire. Segundo a nota biográfica em Castelo
(1999), Almerindo Lessa (1908-1995) era licenciado em medicina pela Universidade do
Porto. Em 1957 obteve o doutoramento em medicina pela mesma universidade e
também em Ciências Bioantropológicas pela Universidade de Toulouse. Foi professor
de Ecologia Humana na Universidade de Évora, e de Antropologia Tropical, Medicina
Social e Higiene Tradicional nas Universidades Técnica e Clássica de Lisboa. Fundou e
foi reitor da Universidade de Macau e vice-reitor e fundador da Universidade
Internacional de Lisboa. Segundo Castelo, conheceu pessoalmente Gilberto Freire e
correspondeu-se com ele. Lessa é um dos autores referidos por Freire, como alguém que
«vem desenvolvendo o conceito de civilização luso-tropical (...). Referindo
explicitamente as «suas mais recentes pesquisas de sero-antropologista» Lessa é
elogiado por concluir «haver um mestiço luso-tropical eugénico e saudável» (Freire, O
Luso e o Trópico, p. 2, in Castelo 1999:101). Também na sua análise dos trabalhos
publicados na colecção Estudos de Ciências Políticas e Sociais, dirigida por Adriano
Moreira, Castelo refere um trabalho de Lessa como parte dos trabalhos com referências
explícitas a Freire.
O trabalho aqui em análise data de 1957, com base em pesquisa realizada em
1956. O período imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial foi marcado por um
crescendo de pressões internacionais no sentido da descolonização. Em 1955, em
Bandung, na Indonésia, realizou-se a conferência inaugural do que viria a ser designado
como “terceiro mundismo” e, depois, movimento dos não-alinhados. Em 1956
começam os processos de independência em África. Entretanto, em 1951, dera-se a
revisão constitucional em Portugal, abolindo o Acto Colonial e definindo o país como
nação pluricontinental composta por províncias europeias e províncias ultramarinas. No
mesmo ano Gilberto Freire visita Cabo Verde, numa das etapas do seu périplo pelo
império a convite do ministro Sarmento Rodrigues. Da passagem por Cabo Verde e da
análise publicada em Um Brasileiro em Terras Portuguesas e em Aventura e Rotina
resultaria um dos debates mais importantes sobre a identidade cabo-verdiana entre as
suas elites, de que Baltasar Lopes, presente na mesa redonda de Lessa, foi o
protagonista (ver adiante).
A Lei Orgânica do Ultramar Português, de 1953, aprovada quando Sarmento
Rodrigues era ministro, substituiu a carta orgânica de 1933 e com ela a tónica da
política colonial passa a ser posta na ideia de assimilação. Em 1954, o Estatuto dos
Indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, define aqueles como
«indivíduos de raça negra, ou seus descendentes, que, tendo nascido e vivido
habitualmente na Guiné, em Angola ou Moçambique, ainda não possuem a educação e
os hábitos pessoais e sociais considerados necessários para a aplicação integral do
direito público e privado dos cidadãos portugueses» (Estatuto..., p. 4, in Castelo,
1999:60). Desta classificação – e, portanto, da política assimilacionista – ficam isentos
os cabo-verdianos, classificados como portugueses desde o Liberalismo; as elites locais
jogarão mesmo importante papel intermediador nas estruturas administrativas em outras
colónias portuguesas. O indigenato só viria a terminar com a legislação de 1961, o
mesmo ano em que começou a guerra em Angola. Adriano Moreira, por assim dizer,
oficializa as abordagens luso-tropicalistas, num processo que nunca deixou de ser
polémico – e que redundaria no seu afastamento em 19622.
Nos debates que perpassaram simultaneamente a definição da identidade
nacional portuguesa e a justificação para o colonialismo, a questão da mestiçagem jogou
um papel fundamental. Lessa, na esteira quer da Missão Seroantropológica a Cabo
Verde, quer da Missão de Antropologia Tropical a Macau (em 1960) é quem, na opinião
de Castelo, mais se aproxima das ideias de Freire. Para o português, haveria uma
ignorância relativamente ao grau de pureza da raiz branca que participou na criação do
mestiço. Isto é, o homem metropolitano seria, ele mesmo, um mestiço de origem
(Castelo, 1999: 120). Tomemos por assente, então, este facto: Lessa é um bom
adaptador do esquema Freiriano e considera a mestiçagem uma experiência histórica
eugénica colocando-se, assim, claramente em contraposição à antropologia anti-
miscigenadora do período antecedente (mas também contemporâneo, no caso do
segundo), protagonizado por Tamagnini e Mendes Correia.
É justamente pegando em Mendes Correia que se dá a primeira intervenção na
mesa redonda. Júlio Monteiro chama a atenção de Lessa: «...quando disse que não havia
um estudo sério sobre a qualificação do mestiço como elemento biológico (...) eu li um
trabalho do Prof. Mendes Correia, apresentado ao Congresso de Antropologia do Porto,
no qual ele fazia um estudo psicossomático da população de Cabo Verde, em confronto
com a população portuguesa da metrópole. Esse confronto foi-nos desfavorável. O Dr.
(sic) Mendes Correia lidou, ao que parece, com números restritos, alguns cabo-
verdianos que tinham ido à exposição do Porto» (1957: 86-7). Lessa responde dizendo
que os trabalhos feitos durante a Exposição Colonial do Porto têm um valor científico
restrito e Júlio Monteiro retoma a palavra, desta feita para invocar Tamagnini: «... eu li
a tese do Prof. Tamagnini... [ele] entende que a Biologia não repele a mestiçagem ...
simplesmente condena a mestiçagem por razões de ordem política...» (1957: 87).
Já em 1902 Tamagnini havia dito, a propósito de outro contexto de crioulização
(São Tomé) que era mau o resultado do cruzamento entre «raças colonizadoras e
colonizadas», definindo, por exemplo, a língua crioula como «uma degenerescência do
português continental» (1902:13). Anos depois, no I Congresso Nacional de
Antropologia Colonial (Porto, 1934, um ano depois da promulgação do Acto Colonial),
2
Para uma melhor compreensão dos processos até aqui referidos, alguma bibliografia fundamental:
Alexandre (2000), Pereira (1986), Bastos (1998), respectivamente sobre o colonialismo português, a
antropologia colonial portuguesa e as viagens de Giberto Freire. Para estes tópicos, como para este artigo
em geral, muitos aspectos sugem mais desenvolvidos no meu trabalho de 2000, Um Mar da Cor da Terra.
o antropólogo de Coimbra afirma que «quando dois povos, ou duas raças, atingem
níveis culturais diferentes e organizam sistemas sociais completamente diversos, as
consequências da mestiçagem são necessariamente desastrosas» (1934: 26 in Santos,
1996: 137). No mesmo Congresso, Mendes Correia considera a miscigenação uma
prática reprovável, com base num estudo somatológico e psicoténico de 16 cabo-
verdianos e 6 macaenses vindos à Exposição Colonial do Porto de 1934. É nesse âmbito
que Mendes Correia elabora a frase que usei para intitular um capítulo de um livro meu
(Vale de Almeida, 2000), quando diz que «o mulato é saudade de si mesmo... Como o
desprezo do hermafrodita vai gritando ao conflito dos dois sexos ... o mestiço é assim
um ser imprevisto no plano do mundo, uma experiência infeliz dos portugueses...»
(Mendes Correia, 1940: 122 in Castelo, 1999: 112)3.
Concordando com Lessa quanto à inexistência de “raças” superiores, o
participante da mesa Aníbal Lopes da Silva, pergunta, todavia, se «será possível, pelos
métodos biológicos de que dispõe, determinar a percentagem de sangue negro e de
sangue branco na constituição do cabo-verdiano?» (1957:89). Esta pergunta é
justificada do seguinte modo: «...porque estou convencido de que, apesar de na nossa
população não haver predomínio de sangue europeu, o povo cabo-verdiano é um povo
absolutamente integrado na civilização Ocidental...» (1957:89). Esta questão traz de
imediato à baila o nome de A. Chevalier, cujo texto de 1935 é alvo de reacções
negativas. Lessa gostaria que alguém lhe respondesse e cita-o: «O português julga ter
marcado o Negro cabo-verdiano e o mestiço com uma impressão profunda... Tudo isso
não passa de uma aparência. O negro cabo-verdiano continua o negro bon enfant que
conhecemos em África. Só se transformou à superfície. Mais: o branco e o quase-branco
que vivem à sua volta é que foram, muitas vezes, ao encontro dos seus costumes...»
(Chevalier, 1935, citado, sem referência à página, por Lessa, 1957: 92).
Posta de lado esta questão – pois todos os presentes concordam com a sua
refutação – Lessa responde a Lopes da Silva com uma afirmativa: «É possível e esse
estudo será feito4» (1957: 94). O que esta questão sugere é o problema determinista de
diferentes percentagens de “sangue” influenciarem mais ou menos os «comportamentos
dos indivíduos perante as perspectivas da vida» (Lopes da Silva, p. 94). A isso Lessa
reage dizendo que sim, mas que há um problema técnico ainda não superado na
observação por causa da dominância de alguns genes e das mutações. É Baltasar Lopes
quem tira a ilação disto: «Exige, portanto, uma observação muito maior, que a
juventude do mestiço não permite» (1957:95). Não é, pois, ainda, no plano
epistemológico e político que se dá a refutação do determinismo, mas sim no plano
metodológico e técnico.
Baltasar Lopes, todavia, preocupa-se com a definição do “mestiço”: como é que
Lessa, ao classificar os grupos em observação como negros, brancos e mestiços, isolou
estes últimos? A resposta de Lessa não poderia ser mais cândida: «[negros e brancos
eram os óbvios]... todos os outros eram considerados mestiços» (1957: 95). A discussão
prossegue num tom desorganizado, mas demonstrativo da agenda de curiosidades dos
presentes, como por exemplo a possibilidade de se saber quais as tribos (sic) de África
com influência em Cabo Verde, ou a possibilidade de estabelecer homologias entre os
estudos da mestiçagem no Brasil e em Cabo Verde. Mas a primeira reunião termina com
a invocação da antropologia cultural americana – quer directamente, quer através da
3
Sobre Tamagnini, ler Santos (1996), no prelo como livro em 2003, nas Edições do ICS.
4
Para exemplificar o que pretende, Lopes da Silva refere-se aos Judeus, e Lessa confirma o pressuposto
(ou o preconceito), dizendo que tem que ser um caso biológico, pois «basta olhar para um judeu para o
identificar fisicamente» (1957: 94). Este tipo de afirmação marca, a meu ver, a tal situação de charneira
ou “dobradiça”: pós-raciologia racista mas pré-construcionismo social.
influência Boasiana no Brasil – como particularmente adequada para pensar,
simultaneamente, na formação mestiça cabo-verdiana, para negar o racismo e
estabelecer a distinção “raça”-cultura, e para incorporar esses contributos na história
cultural portuguesa colonial como sua concretização. É assim que a reunião termina
com uma curiosa intervenção. Nela, diz Teixeira de Sousa, médico cabo-verdiano:
Nesta intervenção, por um médico cabo-verdiano que se identifica como português, está
contida a tensão fundamental dos processos de crioulização e dos projectos de
crioulidade: a violência e a desigualdade extremas como formadoras de sociedades que
se retratam como cadinhos de uma nova humanidade, através da apropriação de
conceitos antropológicos gerais aplicados a Histórias particulares tidas por excepcionais
por parte de elites vivendo um conflito identitário marcado pela tensão política colonial.
Sobre isso falarei mais adiante.
A segunda reunião
«...eu não vejo oportunidade nem razão para se falar numa civilização cabo-
verdiana ... por um ponto de vista que é meu e de muita gente: porque não temos
uma civilização específica, teremos traços regionais. Nós estamos mais
aproximados do tipo português de cultura do que talvez suponhamos (...) Teremos
caracteres regionais, como acontece com o minhoto, com qualquer provinciano da
metrópole (...) O Sr. Dr. Almerindo, como aliás Gilberto Freire, o Archibald
Lyall, o Santana, o Chevalier, ter-se-ão impressionado ... pelo aspecto exterior.
Notam uma população na sua maioria de aspecto negróide, ... paisagens que não
estão de acordo com o que cá se faz, com o que se traz de fora. Por outro lado, o
baixo teor de vida: indivíduos mal trajados, mal alimentados, com uma deficiente
assistência médica. Isso, é claro, desnorteia e dá uma impressão falsa do nível a
que esta população chegou...» (1957: 113-114).
5
A referência é ao “Atlântico Negro” de Gilroy (1995).
sinais disso mesmo; pelo que, conclusivamente, a mestiçagem não teria originado em
Cabo Verde uma «terceira cultura, caracteristicamente cabo-verdiana» (s.d.: 251, in
Silvestre, 2002: 87).
Em 1956, o mesmo ano da mesa redonda, Baltasar Lopes publicava o texto Cabo
verde visto por Gilberto Freire, com base em apontamentos lidos ao microfone da
Rádio Barlavento, como consta do subtítulo. Nele, Lopes enuncia toda a apropriação
das ideias de Freire e a expectativa da sua visita às ilhas e corroboração do modelo
interpretativo da Claridade. Diz Silvestre:
«Significativo desejo, este pelo qual o crioulo anseia pelo antropólogo que de si
faça o nativo que a crioulização de vários modos problematiza, na medida em que
o afasta de uma origem situável e definível como tal (como nativa). De facto,
nestas palavras Baltasar dá voz ao cronótopo e à mitologia da mais clássica
antropologia modernista, aquela que vive do desdobramento de toda uma série de
estratégias de localização e enraizamento». (Silvestre, 2002: 89)
Este é também o tema de preocupação das mesas redondas dirigidas por Lessa. Como o
será na voz de informantes membros das elites cabo-verdianas, quando questionados, já
no ano 2000, por Fernando Barbosa Rodrigues: ao desejo de que alguém produza
pesquisas que localizem e definam raízes para os vários apports que contribuíram para a
crioulização, ajudando assim a definir um nativismo especificamente cabo-verdiano6.
Baltasar Lopes responderia a Freire reafirmando-o, e enfatizando a separação entre
“raça” e cultura (Lopes, 1956: 16), acusando assim Freire de ter feito uma confusão
entre as duas, apesar dos ensinamentos de Boas de que se reivindicava herdeiro. Lopes
acusa este lapso de ser mais próprio de turistas que de antropólogos (acusando assim,
também, a superficialidade da visita de dez dias de Freire). Lopes reconhece a diluição
da África em Cabo Verde, o que era, aliás, uma parte fundamental do ideário da
Claridade, e pergunta-se: «Pela cabeça de quem, medianamente informado das coisas
de Cabo Verde, é que passa que o cabo-verdiano é mais africano do que português?
(1956: 14).
Fiquemo-nos por aqui, por enquanto, para regressarmos à mesa redonda e
deixando uma análise da Claridade – e das contestações dela – para mais tarde.
Interessa-nos reter que estamos, na mesa redonda de 1957, perante um Baltasar Lopes
que já reagiu às observações de Freire sobre Cabo Verde. Imediatamente na sequência
da intervenção inicial de Lopes na mesa redonda, Júlio Monteiro complementa as suas
observações:
6
Fernando Barbosa Rodrigues (2002) conduziu, sob minha orientação, um conjunto de entrevistas a
membros das elites cabo-verdianas, sobre o estatuto da língua crioula e a questão correlata da relativa
“africanidade” ou “portugalidade” da formação cultural cabo-verdiana. Com posicionamentos político-
culturais muito distintos, os entrevistados demonstraram, todavia, um grande desejo, por assim dizer
“modernista”, de produção de conhecimento antropológico sobre as “verdadeiras” origens dos cabo-
verdianos...
aquilo que Gilberto Freire chamou a ascensão do mulato, aquilo que [Almerindo
Lessa] chama aristocratização ... o mestiço havia de tender para aquele que maior
influência social tinha e tendeu para o europeu (...) O paradigma da nossa
evolução foi a própria metrópole...» (1957: 115-116).
«Tentei fazer um inquérito... mas um pequeno inquérito para uso pessoal, para que
eu não fosse informar tão mal de Cabo Verde como outros têm feito... todos
procuraram afincadamente responder pela negativa à maior parte das perguntas...
A maior divergência foi, sem dúvida, a respeito da existência de uma civilização
cabo-verdiana ... residiu sobretudo no diferente conteúdo que cada um pôs dentro
da palavra civilização ... eu concluo ... que existe pelo menos uma tentativa de
civilização regional, que falta talvez compreender no seu sentido final: civilização
no sentido Ocidental, no sentido Africano ou porventura no sentido que hoje
damos à nossa civilização: euro-africana...» (1957: 149)8
Esta narrativa tem autores: são eles, em primeiro lugar, o Gilberto Freire
lusotropicalista; em segundo lugar, o aparato de saberes coloniais, da medicina à
antropologia, passando pela sua zona intermédia de sobreposição, a antropologia física;
em terceiro lugar, o aparato de saberes em torno da definição da nacionalidade
portuguesa; em quarto lugar, os intelectuais orgânicos de Cabo Verde. Trata-se não de
um Atlântico Negro no sentido de Gilroy, mas de um Atlântico cinzento, em que
interesses e visões do mundo de elites se encontram. Esta narrativa tem um tempo: trata-
se da época da redefinição do colonialismo português e da definição crescente das
especificidades locais das colónias no sentido da autodeterminação; trata-se ainda do
tempo do começo das descolonizações e do cânone modernista na antropologia, através
quer do relativismo inerente às definições de unidades culturais e etnolinguísticas
localizadas, quer em relação à distinção entre “raça” e cultura.
O que Lessa e os seus interlocutores fazem é, desde logo, garantir a clivagem em
relação ao modelo raciológico anterior, personificado por Tamagnini e Mendes Correia
e pela política imperial anti-miscigenadora. Num segundo movimento conceptual,
aceitam a existência e o valor heurístico de “Raça”, mas limitam a sua aplicação aos três
tipos, e recusam liminarmente a confusão entre “raça” e nação. Isto deixa-os com o
problema da cultura (glosada quer como psicobiologia quer como civilização). No
contexto do colonialismo, a questão está em definir os limites da especificidade e o
âmbito da inclusão. Daí a importância da noção de civilização regional: diferente, mas
pertencendo ao mesmo todo em que Portugal é a fonte inspiradora.
A preocupação com a definição das diferentes origens africanas ou europeias no
“sangue” é mais do que mero resquício de um pensamento raciológico ou de
justaposição entre população e cultura. Trata-se de um recurso metafórico para poder
falar da importância da cultura e que se resumiria na ideia de Lopes de que apesar de o
aspecto exterior poder até ser predominantemente africano, a cultura mestiça é
especialmente portuguesa. É assim que o mestiço se confunde com o crioulo. Isto é,
com o filho da terra, portador de uma expressão linguística própria e híbrida, mas
enraizada no português. Este mestiço crioulo é o jovem resultado de uma experiência
histórica portuguesa, metaforizada na experiência românica nos trópicos ao nível
linguístico. Lessa e os interlocutores não podem ser liminarmente acusados de elidirem
os processos de sexualidade e género, classe e estatuto, mercadorização e escravatura
que estão na génese do processo da crioulização e que se reproduziram mesmo depois
da abolição da escravatura ou de sucessivas modificações no sistema colonial. Isto
porque o seu foco de interesse é no produto cultural do processo de encontro,
independentemente dos juízos de valor sobre as etapas que a ele conduziram. Mas é
nessa elisão que radicam muitos dos malentendidos do elogio e expectativas da
crioulização.
«… if one uses creative analogies, one ought to go back to the field where the
analogy was taken from to investigate its internal logic, or as he puts it: "the
moment I begin to work out the analogy, I am brought up against the rigid
formulations which have been devised in the field from which I borrow the
analogy."» (Bateson, 1972: 75 in Eriksen, 1999)
9
Sobre a antropologia brasileira que está na base do trabalho de Gilberto Freire, bem como das
comparações etnológicas sobre a Afro-América, ver Vale de Almeida (2000) e, sobretudo, Corrêa (1998).
O projecto tinha já a sua base no Memorandum for the study of acculturation de
1936, redigido por Redfield, Linton e Herskovits, definindo “aculturação” como
«incluindo todos os fenómenos que resultam do contacto em primeira-mão entre grupos
ou indivíduos com culturas diferentes», distinguindo-se assim de culture change, de que
não seria mais do que um aspecto, e de “assimilação”, que seria por vezes uma das fases
da aculturação, e ainda de “difusão”, a qual, embora ocorra em todas os casos de
aculturação, seria apenas um dos seus aspectos. Os resultados possíveis da aculturação
seriam a “aceitação”, a “adaptação” ou a “reacção”.
A necessidade de juntar perspectivas sociais e perspectivas culturais ficou
exemplificada no influente trabalho de Mintz e Price (1992 [1976]). No respeitante à
questão de sobrevivências culturais versus criação cultural, argumentaram que «Uma
herança cultural africana, largamente partilhada pelas pessoas importadas para uma
nova colónia, deverá ser definida em termos menos concretos [i.e., áreas culturais
específicas em África], focando mais os valores e menos as formas socioculturais, e
mesmo tentando identificar princípios “gramaticais” inconscientes que possam subjazer
e moldar as respostas comportamentais» (1992: 9-10, tradução livre). Referem-se,
segundo Yelvington, a «pressupostos básicos acerca das relações sociais» e «a
pressupostos básicos e expectativas sobre o modo como o mundo funciona
fenomenologicamente» (Mintz e Price, 1992: 10 in Yelvington, 2001, tradução livre).
Para Mintz e Price, as origens específicas das populações afro-americanas não
eram relevantes, pois os escravos chegavam em massa, mais como “multidões” do que
como grupos. Aquilo que partilhavam à partida era a sua escravatura. Tudo o resto tinha
que ser criado por eles. Na outra ponta da escala temporal, a influência do trabalho de
Mintz e Price leva Yelvington a constatar o seguinte sobre a questão da crioulização:
«The Mintz and Price creolization model … has inspired linguists and
linguistically oriented anthropologists … into investigations of creoles (…) Mintz
(1971) warned as early as a 1968 conference on pidgins and creoles (…) that the
characteristic shape of a language cannot be seen outside of its sociological
context and the processes of historical change. Still, investigations are often
couched in terms of locating “Africanisms” (Mufwene, 1993). The continuity
versus creativity debate is alive here too. This body of work has also imbibed all
of the controversies associated with the study of pidgins and creoles generally,
e.g. differentiating between pidgins and creoles themselves, monogenesis versus
polygenesis debates, (African) substrata versus (European) superstrata versus
universalist hypotheses of creole genesis (the latter of which includes Bickerton’s
controversial “bioprogram hypothesis”, and the applicability of pidginization-
creolization-decreolization creole continuum models), and the New or the Old
World as the site of creole genesis.» (Yelvington, 2001: 235-6)
Os créolistes francófonos
10
Ver sobretudo Peau Noire, Masques Blancs, um brilhante ensaio de auto-análise do ser negro em
contexto de hegemonia branca e europeia.
Chamoiseau, porém, tem uma atitude mais politizada, pois encara a Martinica
como colónia da França e vê a língua francesa como a corporização da dominação
colonial, propondo em alternativa o uso exclusivo do crioulo. Estas atitudes têm como
fantasma a figura do também martinicano Aimé Césaire, o poeta e político associado ao
movimento literário da Négritude, um pan-africanismo que pretendia restabelecer os
laços com o passado africano da maioria da população, propondo o reconhecimento dos
martinicanos como africanos transplantados. Procedendo a uma crítica contextualizada
dos Créolistes, Richard e Sally Price (1997) dizem que à época do surgimento dos
Créolistes, já há duas décadas que perspectivas semelhantes vinham sendo discutidas
nas Caraíbas anglófonas. E mesmo no universo de referências francófonas, já Bastide
(1978) havia enfatizado a ideia de interpenetração de civilizações para explicar o Afro-
Brasil. Os Creólistes, criticando simultaneamente o africanismo da Négritude e o
modelo de adaptação ao novo mundo da Antillanité de Glissant, procuraram, segundo a
crítica dos Prices, construir uma nova identidade, esquecendo assim a ideia de Glissant
de constante transformação e propugnando uma visão monolítica das culturas de origem
dos imigrantes. A própria plantação é retratada como gentil, por comparação com a
plantação inglesa, espanhola ou holandesa (num processo excepcionalista em tudo
semelhante a perspectivas lusotropicalistas sobre o colonialismo português...) e não
conferem o estatuto crioulo aos imigrantes mais recentes, oriundos da Ásia.
«In claiming that “as creoles” they are “closer, anthropologically speaking”, to the
people of the Seychelles, Mauritius, or Reunion than, for example, to Puerto
Ricans or Cubans (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1993 [1989]: 32-33), they
neglect to recognize the fundamentally Creole and Caribbean nature of Puerto
Rican and Cuban cultures. Moreover, their claim to “anthropological closeness”
masks what might be more directly attributed to the workings of empire». (Price e
Price, 1997: 11)
Para Gabriel Fernandes (2002), a elite letrada local procura assumir-se como
mediadora das relações entre os naturais da terra e o poder colonial. Isto fez-se, ao
longo da história de Cabo Verde, através de um deslocamento da marcação de fronteira
interior entre “filhos da terra” desapossados e “brancos da terra” proprietários, para o
exterior, contrapondo “brancos da terra” e “brancos metropolitanos”, “cabo-verdianos”
(civilizados) e “africanos” (indígenas), colonizador e colonizado. Três momentos
cruciais podem ser identificados nesse processo. O primeiro corresponde ao período
entre a conferência de Berlim (1884-85) e o regime da Primeira República (1910-26).
Assume então importância na criação de elites letradas o seminário de S. Nicolau,
fundado em 1869, permitindo o aumento do engajamento de cabo-verdianos na
administração da colónia da Guiné. No plano intelectual, assumem destaque os
chamados Nativistas, cuja cidadania portuguesa não os impede de terem outros focos de
lealdade, como a África, por um lado, ou a mátria de Cabo Verde, ou mesmo de cada
uma das ilhas de origem.
O segundo período é marcado pela ruptura do Estado Novo (1930-33),
prolongando-se até 1960 sob a influência da Claridade. Nele dá-se o acentuar da
marcação de diferenças entre Cabo Verde e a África, e uma crescente participação dos
locais na “civilização dos nativos” de África. Os “Claridosos” centram-se na
consubstanciação da mestiçagem, como expressão da lusitanidade cultural do cabo-
verdiano, e de Cabo Verde como caso de regionalismo português (Fernandes, 2002:16).
No terceiro período, sobreposto ao segundo a partir do fim da Segunda Guerra
Mundial, assiste-se a uma intervenção colonial institucional mais forte, com a criação
do Boletim de Cabo Verde, a solicitação da intervenção da elite letrada local, e o envio
de especialistas, como o referido Almerindo Lessa. Segundo Fernandes, o poder
colonial havia deixado aos intelectuais locais o ónus de provar serem merecedores de
tratamento diferenciado, para, agora, passar a apropriar-se das suas elaborações para que
eles se distanciassem de tendências independentistas. A bifurcação torna-se, então,
marcada: por um lado a Claridade, por outro os jovens da Casa dos Estudantes do
Império, a chamada “Geração de 50”, legatários da Négritude, proponentes da
“reafricanização dos espíritos” e futuros membros do PAIGC.
Mestiçagem e crioulização – bem como o precipitado linguístico do crioulo –
têm uma história de relações sociais, estrutura social e economia política que Fernandes
resume com competência. Desde logo, o perfil dos primeiros povoadores: homens
brancos, solteiros ou casados, engajados nos negócios com a costa da Guiné, obrigados
a produzir nas ilhas as mercadorias para o comércio, junto com escravos cada vez mais
destinados para a agropecuária e não para o comércio da escravatura. Esta situação,
marcadamente diferente das economias de plantação caribenhas, estabelece cedo uma
rivalidade entre a coroa portuguesa e os colonos, ao mesmo tempo que propicia a
ascensão de forros e de não brancos como “línguas” (intérpretes) e eclesiásticos. É
assim que Fernandes afirma que o peso da etnia foi minimizando com esse aumento de
forros e com a debilitação moral e económica do senhor branco devida à pauperização
agrícola e aos ataques de corsários. O resultado terá sido um duplo movimento de
crioulização e branqueamento, no decurso do qual a “raça” se des-substancializa,
convertendo-se em indicador de status e poder (Fernandes, 2002:34).
Na ausência de uma economia de plantação, os escravos eram ladinizados, quer
para serem destinados à exportação, quer para os serviços domésticos. Dá-se o duplo
assenhoramento, do trabalho escravo e da própria escrava, e um crescente
reconhecimento dos filhos bastardos (2002: 36). A categoria dos “filhos da terra” passa
a definir os filhos cuja legitimidade e reconhecimento sociais se encontravam atrelados
ao seu pretenso vínculo orgânico à terra-mãe (2002: 42), num processo de libertação da
condição de negros, apropriando bens materiais ou simbólicos do pai, no que Fernandes
qualifica de «branqueamento socioeconómico». A reinterpretação da “raça” favorece a
criação de uma nova hegemonia, a dos “brancos da terra” (2002: 44). Tanto a educação,
quanto a emigração ou a acumulação originária levam à ascensão dos filhos da terra
aquando do regresso dos brancos ao reino que, todavia, levam consigo o grosso da
riqueza. Fernandes parece querer reforçar a importância do capital simbólico como
principal capital desta nova categoria social.
É nesse sentido que é pertinente a comparação com a América Latina. Ao
contrário dela, em Cabo Verde os mestiços não ocuparam os espaços intersticiais, pois
essa mediação coube aos “brancos da terra” e, mais tarde, às elites letradas locais (2002:
47). Os muitos mestiços não surgiram socialmente jogando o papel de superadores dos
extremos, mas sim como actores em permanente luta pela eliminação dos seus defeitos
de nascença, isto é, numa busca de branqueamento e não de crioulização, promovendo
activamente a cultura portuguesa e não a mestiça ou negra (2002: 48-9). Em suma,
Fernandes defende a pouca consistência política e fraca dimensão heurística da
mestiçagem em Cabo Verde (2002: 51): «Foi querendo tornar-se branco que o filho da
terra se auto-descobriu mestiço» (2002:51):
«Essa mudança de mecanismos legitimatórios marca a descontinuidade
procedimental e política dos filhos bastardos para os filhos da terra. De facto,
enquanto os primeiros, ancorados nos laços de consanguinidade, requeriam
reconhecimento legal do seu vínculo com o pai branco, os segundos, ancorados
nos laços da cultura, vão exigir reconhecimento do seu vínculo com a nação.
Porém, a despeito dessa sua ruptura estratégica e de propósitos, ambos chegaram a
eleger, em algum momento, uma espécie de malformação congénita a ser
extirpada, e que tipificaria a contraparte negra subestimada: a herança materna,
para os filhos bastardos, e a herança cultural africana, para pelo menos parte dos
intelectuais filhos da terra». (Fernandes, 2002: 62)
12
Ver a este propósito a tese de doutoramento de Luís Batalha (2003) e a forma como estabelece a
continuidade entre esta elite imperial e as diferenciações sociais entre a actual comunidade cabo-verdiana
em Portugal.
13
É importante notar o regionalismo dentro do regionalismo aqui implícito: os Claridosos eram sobretudo
de Barlavento e muito contribuíram para a definição de uma divisão entre este Cabo Verde “europeu” e o
outro, “africano”, corporizado na figura social do badiu de Santiago.
A partir daí a tendência foi no sentido de entrincheiramento na ideia de cabo-
verdianidade, acentuada ainda mais no período posterior à instauração do
pluripartidarismo em 1991, e a crescente dependência económica de Portugal. Deu-se,
assim, uma parcial reabilitação da identidade legitimadora em vigor no período colonial
e um questionamento e reinterpretação dos componentes da identidade de resistência.
No plano político isso saldou-se no derrube das figuras do africanismo e na recuperação
das que faziam lembrar o modelo identitário lusitano-mestiço.
É Amílcar Cabral quem diz que a poesia cabo-verdiana (e, por extensão, a
literatura), se divide em dois tempos: o antes e o depois da revista Claridade (cf.
http://www.unb.br/il/liv/public/amilcar.htm). A produção anterior é caracterizada como
desligada do ambiente geográfico e social do arquipélago, com ligação a uma cultura
clássica ministrada no seminário de S. Nicolau. Cabral, indagando sobre como se deu a
transformação, afirma que em períodos posteriores a cultura continuou a ser apanágio
das elites, mas que foi entre elas que a transformação se deu, graças à fundação do
Liceu, com acesso a mais gente e deslocando-se do isolamento de S. Nicolau para a
cidade portuária do Mindelo. O contacto fundamental terá sido com as literaturas
metropolitana e brasileira.
O movimento da Claridade foi lançado por Baltasar Lopes da Silva, Jorge
Barbosa e Manuel Lopes em 1936 no Mindelo (Batalha, 2002). Estes autores
enfatizavam a vida local do arquipélago, especialmente a vida dos pobres. Tiveram forte
influência brasileira (Amado, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e
Manuel Bandeira, bem como dos académicos Gilberto Freire e Artur Ramos) e o
movimento é feito em diálogo com a Négritude de Césaire e Senghor (iniciado em
1935), mas num curioso jogo de palavras: «Para eles era uma questão de negritude, mas
para nós era uma questão de claridade. Era um movimento de finca pé na tchon»
(entrevista de Batalha a Manuel Lopes, Lisboa, 1999 in Batalha 2001: 117, tradução
livre). Batalha diz que «enquanto os intelectuais afro-caribenhos lutavam pelo
reconhecimento da sua negritude enquanto súbditos coloniais, os cabo-verdianos
lutavam pela sua branquitude portuguesa enquanto súbditos portugueses» (2002: 117).
Em 1947 Baltasar Lopes da Silva publica Chiquinho, novela centrada na
personagem de um pobre faminto com sonhos de escapar à pobreza das ilhas. Temas
semelhantes – seca, fome, pobreza e imigração – surgem também em Chuva Brava
(1956) e Flagelados do Vento Leste (1960) de Manuel Lopes. A Claridade preocupava-
se com a terra e o ambiente, com a cultura popular folk, a história e a língua crioula,
com alguma crítica social e política. Brookshaw (1996) refere como nos anos cinquenta
e sessenta a Claridade foi atacada por novos grupos de intelectuais – pelo seu
escapismo e pela sua visão eurocêntrica e recusa em aceitar a contribuição africana quer
para o crioulo quer para a cultura popular. Tal foi feito, sobretudo, através da revista
Certeza, inspirada pelo marxismo, pelo neo-realismo português e pelo crítico português
Manuel Ferreira. Também nessas duas décadas outras revistas surgiram, procurando
reconciliar a ideia de uma essência cabo-verdiana particular com novas prioridades
sociais e políticas que reflectissem as mudanças em África – de que é exemplo Onésimo
Silveira, autor do controverso Consciencialização na Literatura Cabo-verdiana (1963)
(Brookshaw 1996).
Segundo Brookshaw (1996), o único problema dos Claridosos não foi a
desilusão com Gilberto Freire, ou a contestação dos mais politizados e africanistas. A
situação especial de Cabo Verde fora confirmada em 1953 com a sua não inclusão numa
antologia de poesia negra em Português. A explicação dada por Francisco José Tenreiro,
um expoente da Négritude em português, confirma-o: «One might be surprised by the
absence of Cape Verdean poets: the reason for this is that, in our opinion, poetry from
these Creole islands, with few exceptions, does not transmit the sentiment of negritude,
which is the raison d’être of black poetry» (Tenreiro e Pinto de Andrade, 1982: 82 in
Brookshaw, 1996: 208). Já em 1954, Manuel Duarte publicava na Vértice o artigo
“Caboverdianidade e Africanidade” em que referia a tendência dos Cabo-verdianos para
se segregarem de outros africanos em Lisboa por suposto complexo de inferioridade.
Duarte dizia que isso se ultrapassaria com o uso do crioulo. Já Consciencialização na
Literatura Cabo-verdiana (1963) de Onésimo Silveira é um claro negar do elitismo da
Claridade. Citando o Orphée Noir de Sartre, Silveira diz: «The young people of our
generation consider Cape Verde to be an example of African regionalism. This
inversion of the terms of the problem stems from the influence of the African
Renaissance, which is revitalising all areas of activity and every aspect of the
spirituality of the black or mestizo» (1963:22 in Brookshaw, 1996:20814)
A partir de uma abordagem de Gilberto Freire, Baltasar Lopes e Manuel
Ferreira, Osvaldo Silvestre (2002) produz uma brilhante análise do objecto “Crioulo”
entre 1936 (quando surge a Claridade) e 1967, ano de publicação de A Aventura
Crioula, de Manuel Ferreira. Questionando o que explicaria a aceitação das ideias de
Freire pelos claridosos, os meios de tradução que fizeram uma teoria da miscigenação
funcionar como teoria emancipatória, e a razão da não recusa após a cooptação colonial
do luso-tropicalismo, a pergunta de Silvestre é assim resumida: como pôde uma teoria
da emancipação funcionar ao mesmo tempo como teoria da colonização? Em Uma
Experiência Românica nos Trópicos (Claridade, nº 4) Baltasar Lopes usa as ideias de
Arthur Ramos (na verdade, as ideias de Herskovits) sobre a aceitação, adaptação ou
reacção. Cabo Verde é retratado como melhor exemplo das ideias de Freire do que o
Brasil. Isto implica, porém, que a cultura Africana estaria mais perdida em Cabo Verde,
uma vez que a aceitação teria ido mais longe. De modo a proverem uma teoria
emancipatória, as ideias de Freire são hipercorrigidas, de modo a adaptarem-se ao caso
cabo-verdiano, onde a miscigenação teria sido levada mais longe, especialmente na
língua. Silvestre observa que
Considerando esta ambivalência como estrutural, ela torna inviáveis «as estratégias de
demarcação da identidade cabo-verdiana que atribuem à Claridade a função de um
nítido separador de águas entre um antes colonial e um depois “pós-colonial”»
(Silvestre, 2002: 74):
14
O facto de estes autores, lusófonos, estarem citados em inglês, fez-me optar por não retroverter as
passagens, sob pena de incorrer em erros.
A concepção de cultura implícita na Claridade faz com que a etnografia jogue
um papel central, pelo interesse na cultura nacional do povo e na língua, conduzindo à
«junção fatal do conceito de nacionalidade com o conceito de cultura» (Gilroy, 1993:2,
in Silvestre, 2002:78), gesto tipicamente moderno. Silvestre nota nesta relação com uma
tradição ocidental e moderna a provável influência do papel jogado pelos cabo-
verdianos no sistema colonial português. E chama a atenção para o facto de nas décadas
de trinta e quarenta a celebração da identidade cabo-verdiana como miscigenação ter um
conteúdo político não desprezável, já que as concepções de Freire não agradavam ainda
ao aparelho colonial dirigido pelo ministro Armindo Monteiro (2002:80).
Para Silvestre, os textos mais importantes que em ou sobre Cabo Verde se
escreveram após Lopes foram Do funco ao sobrado ou o mundo que o mulato criou de
Gabriel Mariano (1959), Consciencialização na literatura caboverdiana de Onésimo
Silveira (1963) e A aventura crioula de Manuel Ferreira (1967). A caracterização
“africanista” de Freire é ecoada em Onésimo Silveira, para quem Cabo Verde é «um
caso de regionalismo africano» (Silveira, 1963:22) ou, antes, no negritudismo, por
exemplo, de Manuel Duarte em 1954, no texto Caboverdianidade e Africanidade. O
Atlântico Negro de Freire é, para Silvestre, nostálgico dos tempos coloniais. Não é esse
o caso da Claridade, onde há forte consciência dos problemas geográficos e sociais, do
sofrimento sentido. O Atlântico Negro da Claridade ecoa o do angolano Mário António,
propugnador da visão de um Atlântico Crioulo, ou, na sua expressão, de um arquipélago
de «ilhas crioulas», nas quais, após uma prévia e necessária distinção entre “raça” e
cultura, se teria originado uma cultura crioula, de matriz lusotropical. Só que a
etnicidade «...coloca um travão à heurística transnacional do Atlântico Negro,
moderando-o e decidindo-o pelo locus em detrimento da diáspora...» (Silvestre,
2002:93). O conflito entre etnicidade e nação é constante em Cabo Verde, e Silvestre vê
como primeira tentativa de “solução” a separação da Guiné, matando assim a utopia
geopolítica de Amílcar Cabral.
No processo cabo-verdiano de identificação nacional pelas elites letradas, a
crioulidade torna-se no sinónimo da etnicidade e da nacionalidade, territorialmente
ancoradas. A historicidade – quer o processo escravocrata, quer o colonialismo, quer as
experiências nacionalistas ou socializantes do pós-independência – não são esquecidas
ou sublimadas. Elas estão presentes nos debates sobre a africanidade ou europeidade das
ilhas. A mestiçagem, interpretada num sentido ou noutro, valorizada ou não em
consonância com teorias produzidas alhures para outros efeitos, é o mote central. O seu
produto cultural por excelência é a língua crioula. É esta que confere especificidade.
Mas esta tem uma história e uma sociologia concreta, do seu aviltamento como “língua
de pretos” por oposição ao português; pelo facto de ou ser a língua dos mais pobres ou,
no caso das elites, ser a língua de casa – marcada por metáforas de género (maternal) ou
espaço (doméstica), ou interacção (informal).
Em Cabo Verde, embora as duas línguas sejam oficiais, até há pouco existia uma
demarcação entre o português como língua oficial e o crioulo como língua nacional.
Como diz Juliana Braz Dias (2002), a utilização das duas línguas está permeada por
questões de autoridade e resistência, identidade e distância social. Na sua análise recorre
ao conceito de “ideologias da língua” ou de demarcação dos interesses de um grupo
sociocultural específico; as ideologias da língua são múltiplas, segundo divisões sociais
significativas; os membros da sociedade detêm diferentes graus de consciência sobre as
ideologias; e elas são mediadoras entre as estruturas sociais e os tipos de fala.
É sabida a correspondência entre o projecto moderno do estado-nação e a
definição de uma língua, sobretudo língua escrita padronizada, como suporte do sistema
burocrático. A burocracia em Cabo Verde expande-se com o português e esbarra no
crioulo em termos identitários, criando-se assim um factor de desigualdade. Dias
identifica um conjunto de oposições: entre, por um lado, a língua oficial, internacional,
formal, escrita, estatal, burocrática, culturalmente dominante, elitista e modernidade; e,
por outro, a língua materna, nacional, informal, oral, nacional, de resistência cultural, de
massas e tradicional15. Cuidadosamente, aponta que a delimitação dos dois campos é
parte da ideologia da língua, pois há uma variação geográfica do crioulo, e na realidade
a dicotomia confronta-se com um continuum. A subalternidade do crioulo gera a
diglossia e a solução, para muitos pensadores e políticos locais, seria o bilinguismo.
15
A estratificação social linguística está patente no admirável exemplo dado por João Vasconcelos, em
comunicação oral, sobre o facto de os espíritos nas sessões de Racionalismo Cristão, em Cabo Verde,
falarem sempre em Português, sobretudo quanto mais alto for o seu estatuto.
important differences as to the degree of mixing. The concept has been criticized
for essentialising cultures (as if the merging traditions were "pure" at the outset,
cf. Friedman, 1994). Although this critique may sometimes be relevant, the
concept nevertheless helps making sense of a great number of contemporary
cultural processes, characterised by movement, change and fuzzy boundaries».
(Eriksen, 1999)
Será? A essencialização crioulista nas Caraíbas, como vimos, aponta para aí? Ou,
noutro oceano, a transformação da categoria “crioulo” de específica em geral e nacional,
na Maurícia estudada por Eriksen, apontará para aí? A história de cabo Verde, em que o
constructo colonial é reinterpretado pelos proto-nacionalistas, redundando em
especificidade nacional – também ela aponta nessa direcção? Para Hannerz (1997), por
outro lado,
Como vimos, este tipo de interesse não é destituído de História. O debate americano
sobre a “aculturação” foi um objecto de estudo entre os anos trinta e cinquenta. Nesse
contexto, o Brasil, e sobretudo a Bahia, foi um dos terrenos favorecidos pelos teóricos
da aculturação, entre os quais o próprio Herskovits. Os anos setenta, com a
predominância das teorias da modernização, da dependência e dos sistemas-mundo, não
foram uma década com ambiente favorável ao estudo das variações culturais. Mas a
última década redescobriu a globalização e a transnacionalidade. Redescobriu, pois ela
estava presente na preocupação quer dos americanos estudando crioulização, quer de
antropólogos de inclinação histórica e materialista – e contemporâneos daqueles – como
Eric Wolf. Na sequência de Appadurai (1996), as sociedades contemporâneas
caracterizam-se por fluxos de capital, trabalho, mercadorias, informação e imagens
numa economia cultural global. Estes fluxos atravessam fronteiras – e Barth já havia
definido em 1960 as fronteiras como algo através do qual os contactos e interacções têm
lugar, uma vez que não contêm isolados naturais. Para Hannerz, esta ideia é diferente da
dos teóricos da aculturação, que viam os sistemas culturais como autónomos. Assim, em
vez de aculturação, a atenção contemporânea vira-se para a mistura. Da compaixão com
a mistura, passámos para a celebração da mistura (Hannerz, 1997), algo que, todavia,
aconteceu mais cedo no Brasil, pelo que Freire até poderia ser visto como um teórico
do hibridismo avant la letre.
Em vez de “hibridismo” – o termo favorecido pela teoria pós-colonial – Hannerz
prefere assumidamente “crioulização”. Reconhecendo a sua origem em contextos
concretos (as plantações do novo mundo), ele apropria-se do uso expandido do termo na
sociolinguística. Assim, a abordagem crioulista aplicar-se-ia a processos de confluência
cultural num continuum de diversidade, escalonado ao longo de uma estrutura de
relações de centro-periferia que se podem mesmo estender transnacionalmente, e que se
caracteriza por desigualdade de poder, prestígio e recursos materiais (Hannerz, 1997). A
diferença a ter em conta é que todos fomos nalgum tempo crioulizados e os processos
prestar-se-ão a um maior ou menor nível de auto-consciência consoante os terrenos.
Contrapondo-se a Hannerz, Mintz prefere o uso restrito e localizado da expressão como
referência às Caraíbas, caso contrário a expressão significaria o mesmo que
modernização. Noutro lado do espectro, Friedman acha que o argumento crioulista é
simplesmente «essencialismo confuso» (Friedman, 1994: 208ff).
O desafio está precisamente em evitar estes dois problemas. Mais do que
modernização, a perspectiva sobre a crioulização contemporânea é de cariz pós-
moderno. Quanto ao essencialismo, ele poderá ser verdade se o conceito de cultura for
estanque ou, empiricamente, se a crioulidade se tiver transformado num discurso de
especificidade nacional ou étnica. Se autores como Fanon, Naipaul ou Saïd analisaram
os problemas da nova ordem cultural, os antropólogos produziram pouca etnografia
sobre como as pessoas no terceiro mundo vêem as suas sociedades no passado, presente
e futuro (Hannerz, 1987: 547). Aparte as teorias do pluralismo nascidas da análise da
aculturação nas Caraíbas, Hannerz encontra pouca atenção prestada à produção de
conceitos que ajudem a perceber os processos contemporâneos de crioulização. Uma
excepção seria o trabalho de Drummond (1980), com base na linguística. Para o autor
não existem culturas distintas na Guiana, mas sim uma cultura crioulizante e
intersistémica, sendo que no espectro de formas culturais presentes, quase sempre de
origens díspares, existe uma economia política da cultura, uma vez que o poder social e
os recursos materiais correspondem ao espectro de formas culturais (Hannerz, 1987:
552).
Algumas diferenças são fundamentais. Primeiro, a diferença entre especificidade
socio-histórica e generalidade (por exemplo, entre as Caraíbas e outros contextos);
segundo, as características de economia política da situação do Novo Mundo,
especialmente escravatura e plantação, por oposição a interculturalidade, ou
inbetweeness no contexto colonial ou ainda pura e simples mistura a la world music;
terceiro, pela diferença entre contextos sociais onde haja auto-identificação da
crioulidade e outros onde tal não exista. O referido trabalho de Drummond começa
assim:
«…an anthropology which incorporates the concept of Creole continuum does not
merely increase its descriptive adequacy for a small set of societies; it poses
questions about the very nature of culture. If variation and change are fundamental
aspects of cultural systems, as they appear to be of linguistic systems, then we
must consider the possibility that ethnographic studies of small, post-colonial,
ethnically fragmented societies such as Guyana illustrate Creole processes found
in societies everywhere. What were presumed to be marginal, atypical societies
requiring a separate, pluralist theory become central to discussions of general
theory. The concept, “cultural system” or “culture”, will have to be redefined so
that a particular human population (“society”) is no longer thought to possess an
ideational component (“culture”) characterized by uniform rules and invariant
relationships. (Drummond, 1980: 370)
Embora baseada num modelo linguístico (justificável pela época do seu trabalho, na
sequência das teorias estruturalistas), a abordagem de Drummond é útil na medida em
que é consonante com uma visão não essencialista de “cultura”, bem como com noções
de “socialidade” e “processo”; não afasta a economia política e os aspectos materiais da
História de um contexto local, permite o movimento do local para o global, do
específico para o geral; atravessa agendas disciplinares, identitárias e localizadas, como
o “pós-colonialismo”, e não usa expressões como “híbrido” e “mistura” de forma pouco
sólida e muito impressionista.
A focagem na emergência de formas culturais crioulizadas é particularmente
apropriada para a análise dos encontros coloniais. Caplan (1995) argumenta que a
atribuição da etiqueta “crioulo” por antropólogos e teóricos pós-coloniais a misturas
culturais deve deixar espaço para os discursos locais que podem revelar auto-
identificações alternativas e até contraditórias. Ecoando a observação de Fanon
(1970:48) de que acontecem coisas fora do controlo do colonialismo, Bhabha (1994)
prestou atenção às ambiguidades culturais inerentes aos encontros coloniais e às
complexidades das fronteiras culturais e políticas entre colonizador e colonizado
(Caplan, 1995:743). Também o trabalho de Stoler (1989) acentua a impossibilidade de
ver colonizadores e colonizados como categorias universais e indiferenciadas,
impedindo assim o erro de partir do pressuposto de uma homogeneidade das elites
coloniais ou de tratar europeus e colonizadores como sinónimos. Se, tal como Bhabha
diz, «o hibridismo é o sinal da produtividade do poder colonial» (1994: 112),
Drummond foi dos primeiros a sugerir que as sociedades poliétnicas, como as das
Caraíbas podem ser mais bem compreendidas sem noções de fixidez cultural ou
insularidade – em suma, uma noção de crioulização (Caplan, 1995: 744).
A metáfora crioula tem sido acusada de não reconhecer a desigualdade nas
culturas ditas crioulizadas (Trouillot, 1992: 28) e de inferir a existência, prévia à
crioulização, de culturas puras (Friedman, 1994). Caplan defende que a crioulização
deve implicar a negação da sua construção como categoria, conceptualizando-a mais
como um fenómeno natural, na sequência de Glissant (1989: 140-1). Qualquer conjunto
de expressões culturais é crioulizado, no sentido de ser parte de um continuum.
Aplicando isto aos Anglo-Indianos do seu estudo, uma imagem deste tipo revela: o
encontro histórico de correntes sociais e culturais separadas e desiguais; a porosidade de
práticas culturais dentro e entre linhas que dividem grupos; e a relação entre asserções
específicas de identidade e esses campos crioulizados, bem como entre elas e os
alinhamentos de poder coloniais e contemporâneos (Caplan, 1995: 745):
Conclusão