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A Fome Como Uma Questão Social
A Fome Como Uma Questão Social
A Fome Como Uma Questão Social
Resumo
O objetivo do texto é traçar um breve histórico da política de combate à fome no
Brasil, destacando os referenciais-chave nessa trajetória: segurança alimentar
e nutricional, soberania alimentar, direito humano à alimentação adequada e
alimentação saudável. Uma abordagem que ajuda a compreender as políticas
públicas é a análise cognitiva que leva em consideração as representações, os
referenciais e a trajetória histórica e social na sua análise. Na construção da
política pública brasileira de combate à fome, esses conceitos servem de
referência para as representações e ações dos atores envolvidos na construção
dessa política pública no Brasil atualmente. As ações do Estado em relação à
fome passaram de intervenções esporádicas e imediatas, como no caso das
secas no século XIX, para intervenções contínuas e estruturais no século XX, até
chegar a estratégicas e sistêmicas neste milênio. Isso por meio da Lei Orgânica
∗
Graduado em Sociologia (1998) e Relações Internacionais (1999), Mestre em
Sociologia (2002) pela Universidade de Brasília – UnB, Assistente do Programa da
FAO no Brasil (2002-2006) e Consultor da mesma organização em 2009. Atualmente é
Doutorando do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro –
CPDAUFRRJ, Pesquisador do Centro de Referência em Segurança Alimentar e
Nutricional – CERESAN/ UFRRJ e Especialista em Programas Educacionais do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação do Ministério da Educação – FNDE/ MEC.
Contato: renatocn@ufrrj.br.
Abstract
The paper is a brief history of the politics of hunger in Brazil, highlighting the
key references along the way: food security and nutrition, food sovereignty, hu-
man right to adequate food and healthy food. One approach that helps to un-
derstand the public policy is the cognitive analysis that takes into account the
representations, references and historical background and social analysis. In
the construction of Brazilian public policy to fight against hunger these five
concepts serve as a reference to representations and actions of the actors in-
volved in this public policy today. The state actions related to hunger rose from
sporadic interventions and immediate, such as droughts in the nineteenth cen-
tury, to continuous and structures assistances in the twentieth century, until to
arrive at strategic and systemic at this millennium trough the Organic Law for
Food Security and Nutrition, the constitution of the System and the National
Policy for Food Security and Nutrition.
Introdução
1 Mais que uma corrente homogênea, formam um conjunto de pesquisas e estudos que
apareceram nos anos 1980 e 1990 (BOUSSAGUET; JACQUOT; RAVINET, 2006, p. 78).
Autores como Pierre Muller, Bruno Jobert, Yves Surel, Paul Sabatier e
James Mahoney2 contribuem para a discussão sobre políticas públicas,
um campo do saber em ascensão no Brasil3. Ajudam a entender as polí-
ticas públicas a partir de um olhar sociológico, em que o conhecimento,
as ideias, as representações e as crenças sociais, além do contexto histó-
rico, político e social, fazem parte da análise.
No amplo campo de estudo das políticas públicas a variável ou “dimen-
são intelectual”, como as representações sociais, o conceito de referencial
e a trajetória histórica, é possível de análise, como observam Bruno Pa-
lier e Yves Surel (2005). Tais elementos são possíveis de serem defini-
dos, compreendidos como fenômenos sociais, em que constam atores es-
pecíficos, campos de atuação determinados, institucionalidade própria,
conflitos de interesse.
Como afirma Muller, “cada política pública é antes de mais nada uma
tentativa de agir sobre um domínio da sociedade”. Essa ação sobre a
sociedade passa pela definição de objetivos – diminuir despesas sociais,
limitar a poluição dos automóveis ou erradicar a fome como é o caso do
texto – que vão ser definidos a partir de uma representação do
problema, de suas consequências e de suas possíveis soluções. Nessa
perspectiva as políticas públicas são mais do que simples processos de
decisão nos quais participa um certo número de atores. Elas constituem
“o espaço em que uma sociedade dada constrói sua relação com o mundo,
ou seja, com ela mesma” (MULLER, 2003, p. 59).
A análise cognitiva das políticas públicas busca compreender o “Estado
em Ação”, preocupando-se com as respostas do aparato estatal às de-
mandas colocadas pela sociedade, cada vez mais amplas e complexas.
Essa abordagem francesa rejeita o princípio de um Estado puramente
racional, que imprime sua racionalidade à sociedade de forma unívoca,
onipresente, sem levar em consideração a complexidade de outras dinâ-
políticas públicas seu conceito de Path Dependence é bastante utilizado por ela
(BOUSSAGUET; JACQUOT; RAVINET, 2006, p. 318).
3 Prova disso são os novos cursos de pós-graduação que se abrem recentemente, como
Antecedentes
4De 1909 até 1959 foi, praticamente, a única agência governamental federal responsá-
vel pelo socorro às populações flageladas pelas secas que assolam a região.
5O governo de Venceslau Brás (1914 a 1918) resolve criar o comissariado para regular o
mercado de gêneros alimentícios, conturbado devido à I Guerra Mundial. O órgão tinha
7 Publicado no livro Alimentação e Raça em 1935, o inquérito foi construído por uma
metodologia que empregou cerca de quinhentos questionários sobre habitação, alimenta-
ção e vestuário com famílias operárias de três bairros da capital pernambucana: Santo
Amaro, Encruzilhada e Torre. O estudo também se encontra em Documentário do Nor-
deste (1968).
Com Josué de Castro temos o atual conceito de fome, não apenas visto
como fenômeno puramente médico ou biológico, mas também social,
histórico e político. Além disso, devido a uma postura mais crítica de
Josué de Castro que assume nos anos 1940, o conceito de fome também
recebe um novo contorno: o caráter subversivo. O conceito passa a ter
também um caráter crítico, como resultado direto do processo do
desenvolvimento do sistema capitalista. A fome como consequência do
subdesenvolvimento e ao mesmo tempo o seu motor.
Com essa postura mais arrojada, em contraste com seus primeiros
escritos, Josué de Castro chega a afirmar que a fome não é mais do que
a mais trágica expressão do desenvolvimento dos países mais ricos que
se sustentam na exploração dos países mais pobres, provocando-lhes
não só a fome quantitativa, aguda ou manifesta, mas também a fome
qualitativa ou oculta.
A fome aguda – também denominada de total, global ou quantitativa –
seria, então, aquela menos comum e mais fácil de ser observada.
Refere-se à verdadeira inanição que em língua inglesa chama-se de
starvation, fenômeno, em geral, limitado a áreas de extrema miséria e
a contingências excepcionais.
Já o outro tipo de fome, denominada fome crônica − também conhecida
como parcial, qualitativa ou latente −, refere-se a um fenômeno muito
mais frequente e mais grave, segundo o escritor, pois a falta
permanente de determinados elementos nutritivos, nos regimes
alimentares habituais dos povos subdesenvolvidos e até de uma
pequena parcela dos desenvolvidos, provoca a morte lenta de vários
grupos humanos no planeta, apesar de comerem todos os dias.
Esse tipo de fome é mais perverso que a fome global, determinada pela
incapacidade da alimentação diária fornecer um total calórico
correspondente ao gasto energético realizado pelo trabalho do
organismo, porque age sorrateiramente, sem que as pessoas percebam
seu malefício. Ela é caracterizada pela ausência ou presença em
quantidades exageradas de certas substâncias alimentares, tais como
os sais minerais, as vitaminas, as proteínas e as gorduras. Ela é
proveniente de uma má-alimentação − monotonia ou desequilíbrio
alimentar − representando o aspecto qualitativo da questão. E é
justamente neste aspecto das fomes parciais, em sua infinita
variedade, que Castro se detém tanto em Geografia da Fome.
Nordeste para depois ser implantada no restante do Brasil. O mesmo ocorreu com a
implantação do Fome Zero cinquenta anos depois. É a ação pública no campo da alimen-
tação mais antiga do País (NASCIMENTO, 2009).
16 Criado pelo Partido dos Trabalhadores e outros de esquerda que perderam a eleição
de 1989.
19 Foram estudos coordenados pela socióloga Anna Maria Peliano, lançados em 1993.
20A realização em 1992 da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento ocorrida no Rio de Janeiro (ECO-92) tem uma influência direta nesse
processo.
Considerações finais
25 Esses eram os principais programas que países africanos, asiáticos e americanos che-
gavam ao Brasil para missões via FAO entre 2003 e 2006, quando trabalhava na repre-
sentação da organização no Brasil.
26 O referencial global é entendido como representação que uma dada sociedade faz de
sua relação com o mundo em um momento dado, percepções em torno das quais vão se
ordenar e se hierarquizar as diferentes representações setoriais (MULLER, 2003, p. 65).
O referencial global, juntamente com os referenciais do setor e a relação que se estabele-
ce entre o global e o setorial, é que define o referencial de uma política pública. É nessa
relação entre global e setorial que se forma uma política pública, segundo Muller (2003).
Referências
NASCIMENTO, Renato Carvalheira do. A fome como uma questão social nas
políticas públicas brasileiras. Revista IDeAS – Interfaces em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro – RJ, v. 3, n. 2, p. 197-225, jul./dez.
2009.