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PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL

EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL

Distribuição por prevenção ao Eminente Ministro Edson Fachin por conexão com a ADPF 989

O PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (PSOL), por seu Diretório


Nacional, inscrito no CNPJ/MF sob o nº 06.954.942/0001-95, com sede na SCS, Quadra
02, Bloco C, n. 252, Edifício Jamel Cecílio, 5º andar, Brasília/DF, por sua Presidenta Paula
Bermudes Moraes Coradi, brasileira, professora, divorciada, inscrita no RG 1.769.813
SSP/ES e com CPF 051.772.097-33, residente e domiciliada à Alameda Olga, 400, 74b, Barra
Funda, São Paulo/SP, e nos termos de seu Estatuto Social, com fundamento no art. 102 §1º,
e no art. 103, VIII, da Constituição Federal, e no art. 1º c/c art. 5º e ss, ambos da Lei nº
9.882/1999, por meio dos seus procuradores, com suporte técnico da ANIS –
INSTITUTO DE BIOÉTICA, de CRAVINAS – CLÍNICA DE DIREITOS
HUMANOS E DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DA UNIVERSIDADE
DE BRASÍLIA e do COLETIVO FEMINISTA SEXUALIDADE E SAÚDE vem
ajuizar

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

(COM PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR)


indicando como preceitos violados os princípios fundamentais da liberdade científica (art.
5º, IX) e do livre exercício da profissão (art. 5º, XIII, CF/88); do direito à saúde (arts. 6º,
caput) e do acesso igualitário aos serviços de saúde (art. 196, caput, CF/88); da dignidade da
pessoa humana, da cidadania, do direito à vida, à liberdade, igualdade e a não discriminação
(art. 3º, IV, art. 5º, caput, CF/88); da proibição de tortura e tratamento desumano ou
degradante (art. 5º, III, CF/88); bem como a da legalidade (art. 5º, II, CF/88), da separação
de poderes (art. 2º, caput, CF/88), do devido processo legislativo (art. 5º, LIV, CF/88), e da
impessoalidade da administração pública (art. 37, CF/88), para que seja declarada a
inconstitucionalidade da Resolução CFM n.º 2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina.

Endereço: SCS, Quadra 02, Bloco C, nº 252, Edifício Jamel Cecílio, 5º andar
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1. PRELIMINARES

1.1. DISTRIBUIÇÃO POR PREVENÇÃO

1. Preliminarmente, requer-se a distribuição por prevenção desta petição inicial à Ação


de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 989, ajuizada pela
Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(ABRASCO), Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), Associação da Rede
Unida e Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em 22/06/2022, que tem como
relator o eminente Ministro Edson Fachin, com fundamento no art. 59 do CPC, do
art. 69 do RISTF e do art. 6º da Resolução/STF 706.

2. A causa de pedir desta ação constitucional possui conexão com a causa de pedir da
supracitada ADPF, haja vista que ambas discutem questões relativas ao cenário de
violação massiva de direitos sexuais e reprodutivos, em especial o direito de acesso
ao aborto legal, decorrentes de ações e omissões do Estado. Vejamos.

3. A ADPF 989 busca o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional do


sistema de saúde pública quanto à realização do aborto legal. O pedido se dá
mediante apresentação de diversas evidências da indisponibilidade dos serviços,
de problemas de acesso à informação e da imposição de requisitos indevidos
para o acesso ao aborto legal. Requer, portanto, que o Estado brasileiro seja
obrigado a cumprir o direito ao aborto legal, e que seja reconhecida a
inconstitucionalidade de qualquer ato administrativo ou judicial que imponha
barreiras não previstas em lei para o aborto legal, como limite de tempo
gestacional ou qualquer outro obstáculo por mecanismos administrativos ou
burocráticos.

4. No caso aqui discutido, cuida-se de impugnação a ato administrativo exarado por


uma autarquia federal, o Conselho Federal de Medicina, que restringe, de maneira
absolutamente discricionária, a liberdade científica e o livre exercício
profissional de médicos e médicas, impactando diretamente o direito ao
aborto legal de meninas, mulheres e pessoas grávidas vítimas de estupro,
porque proíbe um cuidado de saúde crucial para o aborto.

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5. Estabelecida a conexão imprópria, na classificação de Marinoni1, ou seja, a ação ora


proposta e a ADPF 989, são causas distintas, mas que dependem da resolução de
questões idênticas, a distribuição por conexão é medida de racionalidade e
conformidade, inclusive para evitar que sejam proferidas decisões conflitantes ou
contraditórias.

6. Assim, requer-se a distribuição por prevenção ao relator da ADPF 989, Min. Edson
Fachin.

1.2 LEGITIMIDADE ATIVA DO PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (PSOL)

7. A legitimidade ativa do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) — enquanto partido


político com representação no Congresso Nacional — fundamenta-se no art. 2º, I,
da Lei 9.882/1999, que estabelece como legitimados para propor Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental todos aqueles já elencados no art. 103 da
Constituição Federal como legitimados para propor Ação Direta de
Inconstitucionalidade ou Ação Declaratória de Constitucionalidade.

8. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) com representação de quatorze


parlamentares no Congresso Nacional atualmente, cumpre com o requisito de
representação disposto no art. 103, VIII, da CF e está, portanto, legitimado à
propositura da presente ação. Tal requisito não exige determinado número de
parlamentares, bastando que o partido tenha um representante para estar legitimado.2

9. Em relação à matéria arguida, esta Suprema Corte já reconheceu partidos políticos


como legitimados universais, não sendo deles exigida a demonstração de pertinência
temática para o ajuizamento de ação em sede de controle abstrato. Assim, nos termos
do Ministro Celso de Mello, está garantida a possibilidade de “arguir perante o
Supremo Tribunal Federal, a inconstitucionalidade de atos normativos federais,

1 “A conexão pode ser própria ou imprópria. Há conexão própria quando há semelhança entre causas
ou ações; imprópria, quando existem duas ações ou causas diferentes, mas que dependem total ou
parcialmente da resolução de questões idênticas (...) Tanto a conexão própria quanto a imprópria
podem dar lugar à reunião dos processos (art. 55, §3º, CPC)”. (Novo Código de Processo Civil
Comentado. Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero. – São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 142).
2 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito

constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

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estaduais ou distritais, independentemente de seu conteúdo material, eis que não


incide sobre as agremiações partidárias a restrição jurisprudencial derivada do vínculo
de pertinência temática”.3

1.3 CABIMENTO DA ADPF ATO DO PODER PÚBLICO

10. Segundo a Constituição Federal de 1988, em seu art. 102, § 1º, é competência do
Supremo Tribunal Federal apreciar a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental. A ADPF é regulamentada pela Lei n.º 9.882, de 03.12.1999, cujo art.
1º define que a ação poderá ser proposta com objetivo de evitar ou reparar lesão a
preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Conforme complementa
o parágrafo único do referido artigo, a ADPF poderá ser proposta ainda “quando for
relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo
federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”.

11. Esta ação faz parte das ações que provocam o controle de constitucionalidade
abstrato e concentrado, existindo para suprir as necessidades desse controle, uma vez
que permite não apenas o questionamento de atos do Poder Público de conteúdo
normativo, como também dos demais atos estatais. Apesar disso, a ADPF não pode
ser apresentada contra qualquer ato que viole a Constituição, mas apenas contra
aqueles que contrariam preceitos fundamentais. A ação se submete, ainda, à regra da
subsidiariedade, a qual determina que a ação apenas pode ser interposta quando não
houver outro meio capaz de sanar a lesão ao preceito fundamental de modo eficaz.4
Tal regra é afastada quando se constata a inexistência de outra ação igualmente eficaz
para solucionar a controvérsia de maneira ampla e definitiva.5

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade


1.407. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, DF, 7 de março de 1996. Diário da Justiça, p. 86, Brasília,
DF, 24 nov. 2000. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14702386/medida-
cautelar-na-acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-1407-df>. Acesso em: 18 out. 2019.
4 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito

constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.


5 De acordo com o Ministro Gilmar Mendes, na ADPF 33/PA, apenas se considerará que há outro

meio se o meio alternativo for capaz de resolver a controvérsia de forma ampla, geral e imediata
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 33.
Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 07 de dez. de 2005. Diário de Justiça da União, 27 dez.
2006).

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12. Por isso, deve-se considerar três requisitos para o cabimento da ADPF: i. a existência
de um ato do Poder Público capaz de provocar a lesão a preceito fundamental; ii. a
demonstração de ameaça ou violação a preceitos fundamentais; e iii. o
cumprimento do pressuposto da subsidiariedade, ou seja, a demonstração de que
não há outro meio eficaz de sanar a violação alegada. Será demonstrada a seguir a
satisfação desta ação a cada um dos requisitos mencionados.
1.2.1 ATO DO PODER PÚBLICO

13. Entende-se por ato emanado do poder público, para efeito de avaliação de cabimento
de ADPF, aqueles produzidos por entes da administração pública, estadual ou
municipal que possuam natureza administrativa, judicial ou normativa e tenham
possivelmente violado preceito fundamental. Nesta ação, o ato do poder público do
qual resulta a lesão que se pretende reparar é a Resolução CFM n.º 2.378/2024 do
Conselho Federal de Medicina (CFM), autarquia federal, integrante da administração
pública indireta, portanto.

14. Sendo a resolução um ato regulamentar produzido por uma autarquia, pessoa jurídica
de direito público, que exerce atividade tipicamente pública, qual seja, a fiscalização
de exercício profissional (artigo 5º, XIII e artigo 21, XXIV), é inegável que pode ser
considerada uma espécie de ato do poder público.6 Resoluções são espécies de atos
administrativos que podem ser emanados no exercício do poder regulamentar,
podendo ter conteúdo individual ou, como na Resolução em questão, geral, atingindo
todas as pessoas que se encontram na mesma situação — no caso, todos os
profissionais médicos, além de meninas, mulheres e pessoas grávidas em razão de
estupro.7

15. Quanto ao caráter público dos atos do CFM, é de se destacar o disposto na Lei n.º
9.649/98, que trata da organização da Presidência da República e dos Ministérios,
segundo a qual conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, como o

6 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 539.224 - Ceará. Relator: Min. Luiz
Fux. 22/05/2012. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2187962. Acesso em 20
set. 2019.
7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30.ed. Rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:

Forense, 2017; NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Atlas, 2018.

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CFM, constituem serviço público (Art. 58, § 6º): “os conselhos de fiscalização de
profissões regulamentadas, por constituírem serviço público, gozam de imunidade
tributária total em relação aos seus bens, rendas e serviços”.

16. Sob o pretexto de “regulamentar o ato médico de assistolia fetal, para interrupção
da gravidez, nos casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro”, a referida
Resolução criou restrições ao marco constitucional e legal de proteção à liberdade
científica, e ao livre exercício da profissão, assim como violou o direito de acesso
igualitário aos serviços de saúde (arts. 6º, caput, e art. 196, caput, CF/88), o direito à
igualdade (art. 3º, IV, art. 5º, caput, CF/88), instituiu tortura, tratamento cruel e
degradante a meninas, mulheres e pessoas grávidas vítimas de estupro no Brasil e
violou os preceitos da legalidade e da impessoalidade da administração pública (Art.
37, CF/88).

17. Ao restringir as condições de fruição de direitos fundamentais não só de


meninas, mulheres e pessoas, como também de todos os profissionais da
medicina, a Resolução do CFM produz alteração normativa de caráter
primário, ainda que se trate de ato normativo de caráter secundário.

18. Esta Corte já compreendeu que é possível o controle constitucional de atos


normativos secundários de entidades públicas, cuja matéria ultrapasse os limites
constitucionais e produza inovação normativa primária, sem respaldo constitucional
e legal.8 Na ADPF n.º 532 MC/DF, a Ministra Cármen Lúcia suspendeu resolução
da Agência Nacional de Saúde, entendendo, justamente, que o ato produzia efeitos
primários — inovação legislativa — que limitavam o direito fundamental à saúde, em
contrariedade à reserva legal:

Este Supremo Tribunal Federal admite a apreciação excepcional, em


controle abstrato de constitucionalidade, da validade de atos de
entidades públicas que importam em regulamentação de matéria

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº


532. Relator: Min. Cármen Lúcia. Brasília, DF, 14 de julho de 2018. Diário de Justiça da União, 02
ago. 2018. Disponível em:
<http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314836950&ext=.pdf>. Acesso em: 25
fev. 2017. 18 de out. de 2019.

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cuja competência se pretende tenha sido exercida em exorbitância


aos limites constitucionais.

[...]

Como destacado pelo Autor, ao regulamentar os mecanismos financeiros


de regulação (franquia e coparticipação) no tema da saúde suplementar
brasileira, a Agência Nacional de Saúde teria instituído “severa restrição
a um direito constitucionalmente assegurado (direito à saúde) por
ato reservado à lei em sentido estrito”.

[...]

Por isso, normas editadas pelos órgãos e entidades administrativas


não podem inovar a ordem jurídica, ressalva feita à expressa
autorização constitucional e não com o objetivo de restringir
direitos fundamentais. A edição de norma administrativa que inaugura
situação de constrangimento a direito social fundamental, como é o caso
da saúde, não apenas pode vir a limitar esse direito, mas também instala
situação da insegurança e da confiança no direito e do direito, o que tem
contribuído para a instabilidade das relações sociais brasileiras e, mais
ainda, tem minado a confiança dos cidadãos nas instituições públicas.

19. De acordo com o precedente acima, o abuso do poder regulamentar é, sem dúvida,
uma questão constitucional, pois consiste em afronta direta ao que a Constituição
exige da atividade regular da administração – que observe os direitos fundamentais
previstos na Constituição, como o direito à saúde.

20. Conforme resumem Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco,
“especialmente no que diz respeito aos direitos individuais, não há como deixar de
reconhecer que a legalidade da restrição aos direitos de liberdade é uma condição de
sua constitucionalidade”.9 Isso significa que graves restrições a direitos
constitucionalmente previstos são reservadas a lei em sentido estrito, não
podendo ocorrer por meio de atos normativos secundários, como Resolução
emanada pelo Conselho Federal de Medicina. Poucos temas dizem tanto
respeito ao coração de proteção de direitos fundamentais quanto a proibição
de um cuidado essencial em saúde para pessoas e particularmente meninas
vítimas de estupro, objeto da resolução ora questionada.

9MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12.
ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017.

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1.2.2 PRECEITOS FUNDAMENTAIS VIOLADOS

21. Os dispositivos que esta ADPF visa impugnar (Resolução n.º 2.378/2014) violam
uma série de direitos fundamentais de meninas, mulheres e pessoas, assim como de
profissionais da medicina: direito à liberdade científica (art. 5º, IX) e ao livre exercício
da profissão (art. 5º, XIII, CF/88); direito à saúde e ao acesso universal e igualitário
aos serviços de saúde; princípios da dignidade da pessoa humana; da não-
discriminação; da igualdade; da liberdade; da proibição de tortura e tratamento cruel,
desumano e degradante (art. 1º, incisos I e II; art. 3º, inciso IV; art. 5º, caput e incisos
I, III; art. 6º, caput; art. 196).

22. Além disso, a Resolução viola os postulados constitucionais da legalidade (art. 5º, II,
CF/88), da separação de poderes (art. 2º, caput, CF/88), do devido processo
legislativo (art. 5º, LIV, CF/88) e da impessoalidade da administração pública (art.
37, CF/88), requerendo a declaração de inconstitucionalidade da Resolução CFM n.º
2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina.
1.2.3 SUBSIDIARIEDADE

23. A exigência de que a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental apenas seja


manejada quando “inexistir outro meio capaz de sanar a lesividade” decorre do art.
4º, §1 º, da Lei n.º 9.882/1999. Por essa razão, é também entendimento desta Corte
que esse requisito deve ser interpretado de maneira restritiva: para não caber a
impetração de ADPF, é necessário que outra possibilidade de ação tenha capacidade
de proporcionar resultados semelhantes e eficácia compatíveis aos obtidos com a
ADPF; do contrário, nos termos do Ministro Celso de Mello, “a indevida aplicação
do princípio da subsidiariedade poderia afetar a utilização dessa relevantíssima ação
de índole constitucional, o que representaria, em última análise, a inaceitável
frustração do sistema de proteção, instituído na Carta Política, de valores essenciais,
de preceitos fundamentais e de direitos básicos, com grave comprometimento da
própria efetividade da Constituição”.10

10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº


17. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, DF, 20 de setembro de 2001. Diário de Justiça da União,
28 set. 2001. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo243.htm>. Acesso em: 25
out. 2019.

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24. O sistema de controle difuso de constitucionalidade mostra-se incapaz de fazer cessar


ou prevenir as violações que o ato normativo ora questionado causa a preceitos
fundamentais de forma geral e definitiva, como a ADPF poderia. Dessa maneira, a
arguição da lesão apenas no controle difuso pode levar à permanência de
inconsistência interpretativa dos diversos tribunais, à insegurança jurídica e, ainda
mais grave, a permanência da violação dos preceitos fundamentais que aqui se visa
reparar e proteger.11

25. É importante pontuar que esta Corte manifestou, na ADPF n.º 388/DF, o
entendimento de que a mera existência de outras ações e recursos em vias ordinárias
não afasta o cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Isso porque a via difusa de controle de constitucionalidade possui um efeito limitado,
que pode não dar conta de solucionar a lesão a preceitos fundamentais.12

26. O requisito da Corte para admitir a propositura de Arguição de Descumprimento de


Preceito Fundamental não analisa, meramente, se há outra ação capaz de impugnar
a lesão arguida, mas se essa ação terá uma eficácia equivalente à da ADPF, o que não

11 A esse respeito, importa ver o voto do Ministro Gilmar Mendes na ADPF 33: “É que as ações
originárias e o próprio recurso extraordinário não parecem, as mais das vezes, capazes de resolver a
controvérsia constitucional de forma geral, definitiva e imediata. A necessidade de interposição de
uma pletora de recursos extraordinários idênticos poderá, em verdade, constituir-se em ameaça ao
livre funcionamento do STF e das próprias Cortes ordinárias [...]. A possibilidade de incongruências
hermenêuticas e confusões jurisprudenciais decorrentes de pronunciamentos de múltiplos órgãos
pode configurar uma ameaça a preceito fundamental (pelo menos, ao da segurança jurídica), o que
também está a recomendar uma leitura compreensiva da exigência aposta à lei da arguição, de modo
a admitir a propositura da ação especial toda vez que uma definição imediata da controvérsia mostrar-
se necessária para afastar aplicações erráticas, tumultuárias ou incongruentes, que comprometam
gravemente o princípio da segurança jurídica e a própria ideia de prestação judicial efetiva. Ademais,
a ausência de definição da controvérsia ou a própria decisão prolatada pelas instâncias judiciais poderá
ser a concretização da lesão a preceito fundamental. Em um sistema dotado de órgão de cúpula, que
tem a missão de guarda da Constituição, a multiplicidade ou a diversidade de soluções pode constituir-
se, por si só, em uma ameaça ao princípio constitucional da segurança jurídica e, por conseguinte, em
uma autêntica lesão a preceito fundamental” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 33. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 7 de
dezembro de 2005. Diário da Justiça, Brasília, DF, 16 dez. 2005. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=388700>. Acesso em: 23
out. 2019).
12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº

388. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 09 de março de 2016. Diário de Justiça da União,
01 ago. 2016. Disponível em:
<http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=309917678&ext=.pdf>. Acesso em: 23
out. 2019.

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há para o presente caso. Como entendeu o Tribunal na ADPF n.º 76, a interpretação
do requisito de subsidiariedade deve ser feita a partir de uma leitura cuidadosa e
comprometida com a proteção da ordem constitucional, que avalie se, de fato, outra
ação que não a ADPF poderá sustar uma lesão relevante a direitos fundamentais.
Para essa leitura, a condição de eficácia é sinônimo de amplitude, generalidade e
imediatidade.13

27. Por isso, é preciso avaliar a existência de outro meio eficaz para questionar a mesma
matéria no conjunto das ações diretas, quais sejam, Ação Direta de
Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade. Uma vez que a
resolução ora questionada, embora seja um ato normativo de natureza secundária,
possui efeitos abrangentes — para todas as meninas, mulheres e pessoas grávidas
vítimas de estupro e para todos os profissionais médicos — comprometendo os
direitos fundamentais garantidos pela ordem constitucional, não há que se falar em
controle por qualquer outra espécie de processo objetivo, resta configurado o
cabimento da presente ADPF. Uadi Lammêgo entende que “ato inconstitucional
com efeitos erga omnes” não pode ser objeto de controle difuso.14

28. A urgência de um pronunciamento geral, definitivo e vinculante sobre temas tratados


pela presente ADPF — o qual apenas esta Corte possui competência para proferir
— evidencia-se porque os efeitos da publicação da Resolução são imediatos nos
serviços de saúde que realizam interrupções da gestação acima das 22 semanas.

29. De acordo com reportagem veiculada na Folha de São Paulo15, a Federação Brasileira
das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) já foi comunicada de
ao menos quatro casos de mulheres e meninas estupradas com gestações acima de

13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 76.


Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 13 de fev. de 2006. Diário de Justiça da União, 20 fev.
2006. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2311745>. Acesso
em: 23 out. 2019.
14 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 11a. ed. São Paulo: Saraiva Educação,

2018.
15 COLLUCCI, Claudia. Veto a procedimento de aborto legal já afeta atendimentos a meninas

estupradas. Folha de S. Paulo. 05 abr, 2024. Disponível em:


https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/04/veto-a-procedimento-de-aborto-legal-
ja-afeta-atendimentos-a-meninas-
estupradas.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa

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22 semanas que já encontraram entraves de acesso aos serviços. Segundo a


reportagem, "os médicos não estão sabendo o que fazer porque se sentem
proibidos pelo CFM". A matéria relata o caso de uma menina de 12 anos,
grávida de 27 semanas, com decisão judicial favorável à interrupção da
gestação, que enfrenta dificuldades de acessar o serviço, dado receio da
equipe médica. Ao ser entrevistado, o médico Rosires Pereira, presidente da
comissão de violência sexual e interrupção da gestação prevista em lei da Febrasgo,
também relatou o caso de uma mulher de Curitiba, no Paraná, que foi
violentada e mantida prisioneira por seu ex-companheiro. Com a prisão do
homem, ela procurou o serviço de aborto legal com 24 semanas de gestação e
enfrenta dificuldades para acessar o procedimento.

30. A reportagem informa também que médicos de diversas regiões já estão buscando
amparo judicial para seguir realizando o procedimento segundo os protocolos
adequados à legislação. A necessidade de judicialização, para além de se
constituir como uma exigência desnecessária para acesso ao aborto legal, que
retarda ainda mais o cuidado e gera uma série de consequências à saúde física
e mental das pessoas vítimas de violência, afetará sobremaneira o sistema de
justiça brasileiro. O número de demandas judiciais que podem surgir, considerando
o cenário massivo de violência sexual que acomete meninas e mulheres no país,
especialmente as mais vulneráveis, podem gerar uma sobrecarga no Poder Judiciário,
que precisará lidar com centenas de processos com pedidos de antecipação de tutela
e liminares.

31. Haverá, portanto, uma sobrecarga para os judiciários locais decorrente da


judicialização do direito à saúde de meninas, mulheres e pessoas grávidas,
bem como dos direitos e deveres de profissionais da medicina. Nesse sentido,
um pronunciamento do STF também é fundamental para evitar gastos
desproporcionais com demandas judiciais decorrentes da afronta a preceitos
constitucionais provocada pela Resolução CFM n.º 2.378/2024. Estudo do
Conselho Nacional de Justiça sobre a judicialização da saúde no Brasil16, realizado

16CNJ. Judicialização da saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução. 2019.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2018/01/f74c66d46cfea933bf22005ca50ec915.pdf

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em 2019, apontou que o número de demandas judiciais relativas à saúde aumentou


130% entre 2008 e 2017, enquanto o número total de processos judiciais cresceu
50%. O relatório explica como a judicialização da saúde se tornou relevante não
apenas para o sistema de saúde, mas também para o próprio poder judiciário, que
precisa lidar com milhares de processos sobre temas recorrentes, e os quais quase
sempre contêm pedidos liminares.

32. Além das demandas individuais a serem ajuizadas, a Resolução atacada também deu
ensejo a Ação Civil Pública, no estado do Rio Grande do Sul, impetrada pelo
Ministério Público Federal (MPF) em litisconsórcio com a Sociedade Brasileira de
Bioética (SBB) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). As signatárias
sustentam as violações de direitos coletivos perpetradas pela Resolução e requerem,
liminarmente, a suspensão da eficácia do documento, e, no mérito, a declaração de
sua nulidade. Ainda, o MPF solicitou explicações ao CFM, para que, no prazo de 05
dias, informe a fundamentação técnica e legal utilizada para elaborar a resolução.

33. Como se vê, as flagrantes violações da Resolução tem sido alvo de uma série de ações.
Não é sustentável o Poder Judiciário precisar se debruçar sobre um número excessivo
de ações judiciais que decorrerão, portanto, da norma inconstitucional do Conselho
Federal de Medicina.

34. Apesar da importância de decisões e ações administrativas que visem o acesso à saúde
às meninas, mulheres e pessoas violentadas, essas não são instrumentos adequados
para dar conta da discussão constitucional que se pretende com a presente ação. Além
disso, decisões proferidas pelos tribunais de primeira e segunda instância não são
capazes de uniformizar o entendimento sobre a impossibilidade de limitação no
acesso a um procedimento de saúde garantido por lei.

35. É necessário, portanto, um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca da


conduta de conselhos profissionais de medicina de, usurpando o papel do legislador,
limitarem direitos constitucionais. Na ADPF n.º 489 MC/DF, esta Corte evidenciou
que, no marco do Estado constitucional, a Administração Pública passa a ter também
a função de conferir efetividade à Constituição, de modo que suas medidas devem
observar a lei e os direitos e garantias constitucionais. Assim, a administração não age
apenas observando a legalidade, mas num bloco de legalidade no qual se situa a

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Constituição. No julgado, o tribunal revogou portaria do Ministério do Trabalho que


restringiu o conceito de “redução à condição análoga a escravo”, pelo fato de que a
normativa vulnerava princípios basilares da Constituição. Diante da solução
satisfatória exigida pela controvérsia, a ADPF foi julgada cabível, pois meios
ordinários seriam insuficientes para reparar as lesões a preceitos fundamentais
inscritas na portaria. A Resolução do CFM, de maneira semelhante, viola princípios
basilares da Constituição, razão pela qual se sujeita ao controle da presente ADPF.17

36. Ademais, na RCL n.º 31.818/MC, a Ministra Cármen Lúcia entendeu que, quando a
declaração de inconstitucionalidade for o núcleo dos fundamentos da demanda, não
é cabível o controle incidental de constitucionalidade, sob pena de haver usurpação
da competência do Supremo Tribunal Federal.

37. É preciso, portanto, adequar o entendimento acerca do direito das meninas, mulheres
e todas as pessoas de realizarem a interrupção da gestação nos termos garantidos pela
legislação penal e constitucional, sem a imposição de barreiras advindas de uma
norma infralegal e discriminatória, em especial porque a resolução aqui questionada
afronta, diretamente, direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. O
núcleo da presente ação é, justamente, o reconhecimento da inconstitucionalidade da
Resolução CFM n.º 2.378/2024 do CFM por violação aos preceitos fundamentais da
liberdade científica e do livre exercício de profissão, além das limitações
inconstitucionais aos direitos de meninas e mulheres, garantindo na matéria
específica a estabilidade da ordem constitucional para proteger direitos fundamentais.

2. MÉRITO

2.1 VIOLAÇÃO AOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS DA LIBERDADE


CIENTÍFICA (ART. 5º, IV) E DO LIVRE EXERCÍCIO DA PROFISSÃO (ART. 5º, XIII,
CF/88)

17BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 489.


Relator: Min. Rosa Weber. Brasília, DF,23 de outubro de 2017. Diário da Justiça, Brasília, DF, 25 out.
2017. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF489liminar.pdf>. Acesso em:
23 out. 2019.

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38. A Resolução CFM n.º 2.378/2024, que proíbe o procedimento de assistolia fetal nos
casos de gestação decorrente de estupro acima de 22 semanas, viola os preceitos
constitucionais da liberdade científica e do livre exercício profissional.

39. O artigo 5º, IX da CF/88 garante a liberdade científica, uma disposição constitucional
essencial para que profissionais médicos usem a melhor ciência disponível para
cumprir com seu dever ético de proteger o direito à saúde de todas as pessoas.
Possibilita, inclusive, o progresso científico e o aperfeiçoamento médico em prol da
busca por soluções mais eficazes e menos invasivas no cuidado em saúde para todas
as pessoas.

40. A liberdade científica é considerada um direito universal e um bem comum, sendo


indispensável para as funções médicas serem desenvolvidas plenamente. Por meio
dela, profissionais médicos têm a prerrogativa e o dever de prestar os melhores
cuidados médicos para cada paciente, assim como o melhor tratamento ou prevenção
de uma intercorrência médica, seguindo preceitos éticos e as evidências disponíveis.

41. O Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3510, que
analisava a Lei de Biossegurança especificamente em relação aos estudos com células-
tronco, afirmou que “o termo ‘ciência’, enquanto atividade individual, faz parte do
catálogo dos direitos fundamentais da pessoa humana”, aos quais se garante maior
proteção, devendo o Estado não só respeitar a liberdade científica, mas atuar para
dar propulsão ao desenvolvimento da ciência, por um dever constitucional (ADI n.º
3510, p. 140). Não somente isso, mas a Corte destacou que a liberdade científica é
“signo de evolução ou de status civilizatório avançado e de consolidação do processo
democrático” (ADI n.º 3510, p. 319).18

42. O livre exercício da profissão, previsto no art. 5º, XIII, é também um direito
garantido constitucionalmente para proteger o indivíduo da coerção arbitrária por
parte do Estado no exercício de sua liberdade profissional, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer. Isto é, quaisquer limitações ao exercício

18BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3510. Relator: Min.
Carlos Ayres Britto. Brasília, DF, 29 de maio de 2008. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723

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profissional devem estar previstas em lei e, mesmo esta reserva legal não comporta
restrições arbitrárias.

43. Especificamente no campo médico, no cumprimento desses preceitos


constitucionais, profissionais médicos devem promover o tratamento equitativo de
todas as pessoas, sem permitir que julgamentos de natureza moral interfiram na
oferta do melhor da ciência, na promoção do bem-estar e na redução de riscos,
causados por doenças ou quaisquer outros agravos.

44. A Resolução CFM n.º 2.378/2024 institui uma restrição indevida aos preceitos
constitucionais mencionados porque a indução de assistolia fetal é um cuidado
médico crucial para a qualidade da atenção em aborto depois das 20 semanas,
tal como recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS)19 e a Federação
Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO).20
Nesse sentido, a FEBRASGO se posicionou contrariamente à Resolução do
Conselho Federal de Medicina, reiterando como esta estabelece restrições ilegais que
não encontram respaldo na atual legislação brasileira, ampliando iniquidades de
acesso à saúde e vulnerabilidades prévias de meninas, mulheres e pessoas. Por isso, a
Federação, que representa cerca de 15.000 (quinze mil) médicos ginecologistas e
obstetras brasileiros, pediu a iminente revogação da resolução.

19 World Health Organization [WHO]. Clinical practice handbook for safe abortion. Geneva: WHO;
2014; World Health Organization [WHO]. Clinical practice handbook for safe abortion. Geneva:
WHO; 2023.
20Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1845-nota-da-febrasgo-sobre-a-

resolucao-do-cfm-2378. Acesso em: 8.5.2024.

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45. A indução da assistolia fetal é um procedimento seguro e eficaz, 21 respaldado por


inúmeras evidências, já que tem sido alvo de estudos desde o início do século XX22 e
aprimorada desde ao menos os anos 1980, ou seja, há mais de 40 anos. Trata-se de
uma técnica clínica respaldada por evidências que indicam sua importância para
garantir condições adequadas para uma atenção de qualidade nos cuidados em
aborto, garantindo um tratamento mais seguro para meninas, mulheres e pessoas.

46. No Brasil, segundo a FEBRASGO, a “indução de assistolia fetal é


procedimento necessário e essencial para o adequado cuidado ao aborto”.23
Na impossibilidade de utilizar esse procedimento, as equipes existentes nos serviços
de saúde responsáveis pelo aborto legal têm relatado não ter condições de realizar
interrupções de gestações acima de 22 semanas. Na prática, isso implica, portanto,
que a resolução ora questionada está impedindo cuidados em saúde para
sobreviventes de violência sexual no Brasil. Evidência disso é que, segundo notícias
da Folha de S. Paulo, desde a publicação recente da Resolução (em 03 de abril), a
FEBRASGO já foi comunicada de pelo menos quatro casos de mulheres e meninas
estupradas, com gestações acima de 22 semanas, em que os médicos estão temerosos
em interromper a gravidez devido ao veto imposto pelo CFM.

21JACKSON, Rebecca A., et al. Digoxin to facilitate late second-trimester abortion: a randomized,
masked, placebo-controlled trial. Obstetrics & Gynecology, 2001, vol. 97, no 3, p. 471-476; TOCCE,
Kristina, et al. Feasibility, effectiveness and safety of transvaginal digoxin administration prior to
dilation and evacuation. Contraception, 2013, vol. 88, no 6, p. 706-711; COKE, G. A., et al. Maternal
cardiac arrest associated with attempted fetal injection of potassium chloride. International journal of
obstetric anesthesia, 2004, vol. 13, no 4, p. 287-290; PASQUINI, L.; PONTELLO, V.; KUMAR, S.
Intracardiac injection of potassium chloride as method for feticide: experience from a single UK
tertiary centre. BJOG: An International Journal of Obstetrics & Gynaecology, 2008, vol. 115, no 4,
p. 528-531; REEVES, Matthew F., et al. Transabdominal lidocaine to induce fetal demise: a cohort
study. BMJ sexual & reproductive health, 2022, vol. 48, no 4, p. 275-280; DIEDRICH, Justin; DREY,
Eleanor. Induction of fetal demise before abortion SFP Guideline 20101, Release date January 2010.
Contraception, 2010, vol. 81, no 6, p. 462-473; HERN, Warren M. Laminaria, induced fetal demise
and misoprostol in late abortion. International Journal of Gynecology & Obstetrics, 2001, vol. 75, no
3, p. 279-286; BHIDE, A., et al. Comparison of feticide carried out by cordocentesis versus cardiac
puncture. Ultrasound in Obstetrics and Gynecology: The Official Journal of the International Society
of Ultrasound in Obstetrics and Gynecology, 2002, vol. 20, no 3, p. 230-232; REEVES, Matthew F.,
et al. Transabdominal lidocaine to induce fetal demise: a cohort study. BMJ sexual & reproductive
health, 2022, vol. 48, no 4, p. 275-280.
22Los tiempos del aborto. Documento 2: Los tiempos del aborto. Asistolia: Por una mejor calidad en

la atención del aborto. Marzo 2024. Red Jurídica de CLACAI /Consorcio Latinoamericano contra el
aborto inseguro.
23Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1845-nota-da-febrasgo-sobre-a-

resolucao-do-cfm-2378. Acesso em: 8.5.2024.

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47. Além disso, a Resolução CFM n.º 2.378/2024 restringe o melhor uso da ciência de
forma discricionária apenas para os casos de aborto por estupro, instaurando uma
discriminação indevida em relação aos demais casos de aborto também autorizados
pelo direito brasileiro: as hipóteses de gravidez com risco à vida da pessoa que gesta
(art. 128, I, Código Penal) e anencefalia (ADPF 54). Ora, por que razão clínica,
técnica ou ética um procedimento seria limitado para alguns casos de aborto
previsto em lei e não para outros? O legislador não estabeleceu nenhuma diferença
entre os dois permissivos legais presentes no Código Penal, e tampouco o fez esta
Corte quando reconheceu o direito à interrupção da gestação em caso de anencefalia.

48. Do ponto de vista do cuidado em saúde, os tratamentos para aborto são


rigorosamente iguais, independentemente da hipótese legal que o autoriza, como
demonstram todos os guias e manuais internacionais que estabelecem as melhores
práticas em saúde reprodutiva.24 Ao proibir o uso do procedimento apenas para
os casos de gestação decorrente de estupro, o CFM de uma só vez deixa
evidente que a motivação para editar tal regulação não é clínica, nem técnica,
e estabelece que sobreviventes de violência sexual grávidas têm menos direito
de acesso ao progresso científico e às melhores técnicas em saúde disponíveis
para seu cuidado que outras pessoas. Além disso, gera o contrassenso de
submeter profissionais médicos comprometidos com o melhor cuidado às suas
pacientes ao risco de sanção disciplinar, caso insistam em oferecer o melhor
tratamento disponível, como deveriam.

49. Como se vê, a Resolução CFM n.º 2.378/2024 restringe indevidamente a liberdade
científica do profissional médico, ao atingir o núcleo mais essencial do que define a

24 World Health Organization [WHO]. Clinical practice handbook for safe abortion. Geneva: WHO;
2014; World Health Organization [WHO]. Clinical practice handbook for safe abortion. Geneva:
WHO; 2023; Silva LV, Cecatti JG, Pinto e Silva JL, Amaral E, Barini R. Feticide does not modify
duration of labor induction in cases of medical termination of pregnancy. Fetal Diagn Ther.
2008;23(3):192-7. doi: 10.1159/000116740; Diedrich J, Drey E; Society of Family Planning. Induction
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.

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profissão, que é precisamente eleger, segundo preceitos éticos e conforme as


melhores evidências em saúde, o cuidado mais adequado àquela paciente. Limitado
indevidamente sobre suas escolhas a respeito dos mais seguros e eficazes cuidados
ao aborto, o próprio exercício da profissão é duramente afetado, acarretando grave
violação ao também preceito constitucional do livre exercício profissional. Segundo
entendimento do Supremo Tribunal Federal, “a reserva legal estabelecida pelo
art. 5º, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da
liberdade profissional a ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial”25.

50. Sobre esse tema, o STF, na ADPF n.º 449, entendeu haver um “ônus de justificação
elevado” para restringir o livre exercício profissional: “a restrição deve encontrar
suporte em elementos empíricos que indiquem a sua necessidade e
adequação para o atingimento do objetivo constitucionalmente legítimo.
Consubstancia ônus do proponente da medida embasá-la com informações
— pesquisas de campo, estatísticas, levantamentos históricos, etc — que
justifiquem e demonstrem a sua eficácia” (ADPF 449, p. 16).26

51. Ou seja, a reserva legal prevista no art. 5º, XIII demanda que leis que disciplinam o
exercício das profissões devem atender a critérios de razoabilidade e
proporcionalidade, vedadas todas as restrições arbitrárias que interfiram
indevidamente no livre exercício profissional. Ora, para restrição do direito
fundamental de livre exercício profissional até mesmo a legislação precisa se
submeter a um ônus de justificação elevado; é evidente, portanto, que atos
administrativos formulados por uma autarquia federal não têm aptidão para restringi-
lo.

52. O Superior Tribunal de Justiça também já se pronunciou no sentido de que cabe ao


médico, quando da análise do caso específico de seu paciente, optar pelo melhor
procedimento, não podendo sofrer restrições arbitrárias de terceiros, por estar no

25 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 511961, Relator(a): Min. GILMAR
MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2009. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605643
26 BRASIL, Supremo Tribunal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 449. Relator:

Min. Luiz Fux, Brasília–DF, 08 de maio de 2019. Disponível em:


ehttps://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750684777

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exercício de sua liberdade profissional. Nesse sentido, o AgInt no REsp n.º


1.926.998/DF e o AgInt no REsp n.º 1.765.668/DF. Ainda mais grave é essa
restrição vir do próprio conselho profissional que deveria zelar pelo mais alto
grau de qualidade dos serviços ofertados pela classe que regula e que, pelo
contrário, irá ameaçar de perseguição e sanção justamente aqueles que
estiverem buscando cumprir com o seu dever.

53. Sendo a indução de assistolia fetal um cuidado importante para abortos acima de 22
semanas, uma técnica a ser realizada em casos de aborto permitidos pela legislação
brasileira, a liberdade científica e o livre exercício do direito de profissão garantem
aos profissionais médicos o direito e o dever de promover os cuidados segundo a
melhor técnica disponível. A prerrogativa de eleger o melhor cuidado em saúde é
indubitavelmente o núcleo mais essencial do exercício da profissão médica, de
forma que limitar ou proibir procedimentos médicos, via ato administrativo sem
respaldo científico, é uma violação dos preceitos constitucionais mencionados, a
serem preservados independentemente de orientação política, ideológica ou moral.

54. Assim, mesmo para regulamentar o exercício da profissão, o CFM não pode
prescindir de justificativas técnicas e clínicas, respaldadas por evidências
científicas e dados empíricos. Não é o caso da Resolução atacada, a qual não
apresenta nenhuma razão científica para a restrição arbitrária da técnica, tampouco
de outras normas exaradas pelo órgão recentemente.

55. Lamentavelmente, por motivos que se desconhece, o CFM com frequência prescinde
de justificativas éticas ou clínicas para emanar resoluções e pareceres sobre temas
sensíveis, sacrificando os princípios constitucionais da liberdade científica e do livre
exercício da profissão tal como apraz as concepções morais de seus membros.

56. Rememoram-se ao menos três oportunidades em que essa foi a postura adotada pelo
órgão. Primeiro, no Parecer n.º 4/2020, em que o órgão recomendava o uso da
hidroxicloroquina — um medicamento reconhecidamente ineficaz no tratamento do
coronavírus —, respaldado em uma defesa feroz da autonomia médica. À época,
mesmo contrário às evidências científicas, o Conselho afirmou que o tratamento do
paciente deveria basear-se na autonomia do médico e na valorização da relação
médico-paciente.

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57. Em segundo lugar, o CFM, em 2022, suspendeu uma resolução emitida


anteriormente pelo próprio órgão que visava restringir o uso de medicamentos à base
de canabidiol. A suspensão apenas ocorreu após duras críticas de especialistas e
pacientes à falta de fundamentação científica para sustentar a tentativa de restrição.27
Portanto, a Resolução CFM n.º 2.378/2024 não é o único caso em que o CFM se
posiciona em desacordo às evidências científicas, exarando, em vez disso, as posições
morais de seus membros.

58. Por fim, reitera-se que, uma vez que o procedimento de indução da assistolia fetal é
uma técnica importante para o melhor cuidado em aborto, e que o aborto é legal no
Brasil em caso de violência sexual, médicos e médicas têm a prerrogativa
constitucional de eleger a melhor, mais segura e mais eficaz técnica para
garantir um cuidado em saúde de qualidade, em respeito à liberdade
científica e o livre exercício da profissão, garantidos pela Constituição Federal em
seu artigo 5º, IX e XIII, respectivamente. A proibição da indução de assistolia fetal,
um procedimento seguro, eficaz e recomendado pela OMS, somente nos casos de
gravidez decorrente de estupro evidencia a ausência de justificativa clínica ou ética
para a medida, tendo em vista que, se houvesse qualquer base científica para a atuação
ilegal do CFM, tal restrição deveria ser aplicada a todos os casos em que o
procedimento é utilizado, incluindo todas as hipóteses de aborto legal e outros
procedimentos médicos. A discriminação somente reafirma o caráter arbitrário
da Resolução.
2.2 VIOLAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE E AO ACESSO IGUALITÁRIO AOS SERVIÇOS DE SAÚDE
(ART. 6º, CAPUT; E ART. 196, CF/88)

59. Além de violar os preceitos constitucionais da liberdade científica e do livre exercício


profissional, a Resolução CFM n.º 2.378/2024, ao proibir o procedimento de
indução da assistolia fetal nos casos de gestação decorrente de estupro, acima de 22
semanas, viola os preceitos constitucionais do direito à saúde (art. 6º, caput) e do dever
do Estado de promover o acesso igualitário aos serviços de saúde, sem preconceitos
de qualquer natureza (art. 196, caput).

27PUTINI, Júlia. Conselho Federal de Medicina suspende resolução que restringiu uso de canabidiol.
G1, 24/10/2022. Disponível em: ://g1.globo.com/saude/noticia/2022/10/24/conselho-federal-
de-medicina-suspende-resolucao-que-restringiu-uso-de-canabidiol-a-dois-tipos-de-epilepsia.ghtml

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60. A inconstitucionalidade do ato do CFM evidencia-se pela escolha arbitrária de


proibir o procedimento tão somente nos casos de estupro, mantida a sua
permissão nos casos de risco à vida e anencefalia. Do ponto de vista dos
preceitos constitucionais em questão, por óbvio, restringir o uso da técnica e, com
isso, inviabilizar o aborto legal para uma parcela das mulheres, meninas e
pessoas grávidas — normalmente aquelas em situação de maior
vulnerabilidade social e econômica — constitui discriminação injustificada
na oferta dos serviços de saúde. O motivo de permanecer autorizado nas demais
hipóteses de aborto legal é que, conforme exposto no tópico acima, trata-se de um
meio crucial proporcionado pela ciência para a garantia eficaz, legal e ética
da interrupção de gestações acima de 22 semanas em todos os casos.

61. Isso significa que não há nenhuma justificativa técnica para que se proíba a assistolia
fetal tão somente nos casos de estupro, mas sim um tratamento discriminatório no
acesso à saúde para mulheres, meninas e pessoas grávidas.

62. Não está incluída entre as atribuições do CFM a possibilidade de normatizar sobre
direitos de pacientes — nem poderia, sob pena de distorcer gravemente as bases de
nosso Estado democrático de Direito. O CFM, assim como outros conselhos
profissionais, tem natureza corporativa, o que fica evidente no fato de suas instâncias
deliberativas serem restritas aos profissionais da classe médica, e não preverem
nenhum mecanismo de participação pública ou transparência de seus processos
decisórios. É por isso que suas competências também se restringem ao processo
administrativo de registro, fiscalização e disciplinamento da profissão, não podendo
exceder essa restrita esfera.

63. Conforme a CF/88, o direito social à saúde deve ser garantido por meio do acesso
universal e igualitário aos serviços destinados à sua promoção. O acesso igualitário
e universal aos serviços de saúde depende do reconhecimento das necessidades
específicas de saúde de meninas, mulheres e pessoas, como, por exemplo, suas
demandas de saúde sexual e reprodutiva. Como determinado pela Organização
das Nações Unidas, a disponibilidade do serviço de aborto legal, sobretudo
nos casos de estupro e risco à vida ou à saúde, é condição de proteção dos
direitos humanos, pois forçar mulheres a levar adiante gestações em prejuízo

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de sua saúde física e psíquica constitui discriminação de gênero que pode ser
caracterizada como tortura, tratamento cruel, desumano e degradante28.

64. Compreendendo ser inexigível, em nome de estereótipos de gênero discriminatórios


que determinam a maternidade compulsória, forçar mulheres e meninas a levarem
adiante gestações fruto de estupro ou que causam risco de morte, o Código Penal
de 1940 autoriza o aborto nestes dois casos para proteger os direitos à saúde e à
vida, conforme exposto acima. Há, ainda, a autorização nos casos de anencefalia,
conforme interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n.º 54
aos dispositivos do Código Penal que tratam do aborto. Tais permissivos consistem
em garantias mínimas de proteção da dignidade sexual e do direito à vida de
meninas, mulheres e pessoas gestantes. Quaisquer restrições a esses dispositivos
constituem grave afronta aos direitos fundamentais previstos na CF/88.

65. Dando concretude ao direito constitucional à saúde, a Norma Técnica “Atenção


Humanizada ao Abortamento”, do Ministério da Saúde, afirma que em todos os
casos de aborto legal “a atenção à saúde da mulher deve ser garantida
prioritariamente”. Segundo o documento, o aborto seguro nas razões previstas em
lei constitui direito da mulher que deve ser respeitado e garantido pelos serviços de
saúde, sem preconceitos, estereótipos ou discriminações que possam negar ou
desumanizar o atendimento.29

28 Observação Geral n ̊ 36 sobre o Artigo 6 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,


relativo ao direito à vida (2017)
https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/HRBodies/CCPR/GCArticle6/GCArticle
6_SP.pdf

Recomendação Geral n˚ 35 do Comitê CEDAW (atualização da Recomendação Geral n˚ 19) (2017)


https://tbinternet.ohchr.org/Treaties/CEDAW/Shared%20Documents/1_Global/CEDAW_C_
GC_35_8267_E.pdf

Human Rights Committee Concluding observations on the third periodic report of Brazil (2023)
https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CCPR%
2FC%2FBRA%2FCO%2F3&Lang=en
29 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações

Programáticas Estratégicas. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica / Ministério da


Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Área Técnica de Saúde da Mulher. – 2. ed. – Brasília: Ministério
da Saúde, 2011. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento_norma_tecnica_
2ed.pdf

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66. Em respeito ao dever de ofertar de forma igualitária os cuidados em saúde, o


Ministério da Saúde determina que em todas as hipóteses previstas em lei os
diferentes métodos disponíveis sejam igualmente oferecidos
apropriadamente, considerando os princípios da autonomia e
30
autodeterminação da mulher. Ou seja, a oferta dos cuidados em aborto legal
deve pautar-se pela escolha da mulher e pelas melhores evidências científicas
disponíveis, não podendo ser limitada por circunstâncias relacionadas ao
gênero, como o fato de ter sido vítima de violência sexual.

67. Recentemente, o Ministério da Saúde, por meio da NOTA TÉCNICA CONJUNTA


n.º 37/2023-SAPS/SAES/MS e das INFORMAÇÕES n.º 00065/2023/CONJUR-
MS/CGU/AGU, juntadas à ADPF n.º 989, reiterou que nos casos previstos em lei
a legislação deve garantir o acesso das mulheres a cuidados médicos seguros e legais.
Desta vez, a pasta foi expressa quanto a esses cuidados não poderem estar
vinculados ao estágio da gravidez, bastando que sejam cumpridos os requisitos
legais — enquadrar-se em caso de estupro, risco à vida ou anencefalia:

Mas, ao contrário de algumas informações incorretas que circulam, não existe um


prazo gestacional fixo para a realização do aborto decorrente de estupro ou
qualquer outra circunstância legalmente prevista. A legislação visa garantir o
acesso das mulheres a cuidados médicos seguros e legais, independentemente do
estágio da gravidez, desde que cumpridos os requisitos legais específicos para cada
situação. Por tal razão, mais uma vez, critica-se o documento publicado em 2022,
que reforça um posicionamento que incentiva a adoção de barreiras
organizacionais no acesso ao aborto legal, especialmente nos casos de gravidez
com tempo gestacional superior a 22 semanas. Nos termos do destacado pela
SAPS/MS e SAES/MS, a Norma Técnica objeto de questionamento, ao impor
às vítimas de violência sexual que buscam os serviços de saúde com gravidez mais
avançadas (acima de 22 semanas) a obrigatoriedade manter a gravidez até o termo
para posterior doação, representa uma grave violação de direitos humanos, com
caracterização de tratamento desumano e degradante pelo Estado, já explicitado
em tratados internacionais da ONU.

68. A assistolia fetal é o meio necessário e essencial para garantir a interrupção da


gestação com tempo gestacional acima de 22 semanas, nas hipóteses previstas no
Código Penal brasileiro, fundamental para resguardar aspectos legais, éticos e

30BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica / Ministério da
Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Área Técnica de Saúde da Mulher. – 2. ed. – Brasília: Ministério
da Saúde, 2011. Disponível em:
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psíquicos relacionados ao aborto legal.31 Dessa forma, quando proíbe o uso da


assistolia nos casos de estupro, a Resolução CFM n.º 2.378/2024, na prática,
inviabiliza o exercício do direito ao aborto legal para vítimas de violência
sexual32, instituindo limite não previsto no Código Penal e não autorizado pela
Constituição federal brasileira, que assegura a oferta igualitária dos cuidados
de saúde.

69. Em guia publicado pela OMS, intitulado “Abortamento seguro: orientação técnica e
de políticas para sistemas de saúde”, considera-se que o tempo gestacional é
relevante apenas para a “escolha do método de abortamento mais
apropriado”33, de modo que limites de tempo gestacional não são baseados em
evidências e criam restrições quando o aborto legal pode ser fornecido por qualquer
método. A Organização associa a limitação conforme tempo gestacional para
o acesso ao aborto induzido a um aumento da mortalidade materna e a
desfechos negativos de saúde, sendo as mais afetadas as mulheres e meninas
vulneráveis: que moram em locais com acesso inexistente ou dificultado à
saúde; com deficiências cognitivas; adolescentes e jovens; de baixa
escolaridade e em vulnerabilidade econômica.34

70. Nesse sentido, pronunciou-se recentemente o Superior Tribunal de Justiça, ao


apreciar caso de uma menina vítima de estupro com mais de 24 semanas de gestação
no julgamento do HC nº 876.347/SP. Baseado nas informações técnico-científicas
disponíveis, o Tribunal entendeu que a tempo gestacional não é fundamento
idôneo para proibir o aborto legal e que argumentos morais “não podem

31 Segundo a FEBRASGO, a indução de assistolia fetal é um procedimento necessário e essencial.


Ver: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1845-nota-da-febrasgo-sobre-a-resolucao-do-
cfm-2378;
32 Segundo Nota de posicionamento contrária à Resolução CFM nº 2.378/2024 – Rede Médica pelo

Direito de Decidir: “As pessoas que necessitam de cuidados em aborto depois de 20 semanas e que
serão impedidas de acessar esse direito de saúde pela Resolução do CFM nº 2.378/2024 são,
principalmente, as crianças e mulheres mais jovens e vulneráveis”. Disponível em:
https://sxpolitics.org/ptbr/wp-content/uploads/sites/2/2024/04/NOTA-DE-
POSICIONAMENTO-CONTRARIA-A-RESOLUCAO-CFM-no-2.378_2024-ok.pdf
33 World Health Organization. Abortion care guideline. Geneva: World Health Organization; 2022.

Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/349316/9789240039483-


eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
34 World Health Organization. Abortion care guideline. Geneva: World Health Organization; 2022.

Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/349316/9789240039483-


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prevalecer ante o direito da vítima de estupro de decidir pela interrupção da


gravidez”. Definiu-se, ainda, como violência institucional a tentativa de impedir a
realização do aborto em casos de estupro. No mesmo julgado, a Corte destacou que
cumpre aos órgãos públicos cumprirem a lei — somente a qual pode impor
restrições a direitos fundamentais.

71. Diante da proteção constitucional ao direito à saúde, cabe ao Estado viabilizar o


acesso às hipóteses legais de aborto de forma igualitária e universal, sem
preconceitos de gênero, raça, etnia, região, escolaridade, entre outros.
Constitui discriminação limitar — como o faz a Resolução — tão somente o
acesso de mulheres, meninas e pessoas grávidas vítimas de estupro ao
procedimento de aborto legal. Trata-se de limitação que diz a essas mulheres que
seu direito à saúde é menos legítimo, privando-as de todas as garantias inerentes
ao dever do Estado, incluindo o acesso igualitário aos serviços de aborto legal.

72. Assim como nas hipóteses de risco à vida e anencefalia, há determinantes que
podem levar à interrupção da gestação em tempos gestacionais acima de 22
semanas nos casos de estupro. São diversos os fatores biológicos, sociais e
econômicos que podem fazer com que, nesses casos, a gestação não seja
identificada precocemente ou o acesso ao serviço apenas seja bem-sucedido
nessa etapa. Esse conjunto de fatores impõe a garantia do aborto
independentemente de tempo gestacional, inclusive como forma de reconhecimento
das vulnerabilidades preexistentes que levam à demora para acessar os serviços.

73. Casos recentes de meninas grávidas em decorrência de violência sexual que


ganharam repercussão na imprensa são ilustrativos dos inúmeros obstáculos
que impõem demora para acessar o procedimento: falta de informação sobre
o direito ao aborto legal, barreiras impostas pelos serviços de saúde, assédio por
parte de atores e organizações privadas que atuam para impedir o aborto legal,
divergência entre os responsáveis legais que leva à judicialização do aborto e
entraves postos pelo sistema de justiça e pelas justiças especializadas da
infância e juventude.35

35MOURA, Laura. Menina de 11 anos faz aborto legal após ser estuprada por padrasto no Piauí: ‘ela
queria sua vida de volta’, diz conselheira. G1, 05/05/2023. Disponível em:

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74. Dados atuais do Mapa Nacional da Violência mostram que um de cada oito autores
dos casos de estupro em mulheres são cônjuge ou namorado da vítima,36 ou seja, de
relação íntima e familiar com as mulheres. Não somente isso, mas familiares e
conhecidos são os autores de 68% dos casos de violência sexual contra crianças e
adolescentes,37 indicando um preocupante quadro de violência doméstica e
intrafamiliar.38

75. É factível pressupor que esses números sejam ainda maiores, dada a alta
subnotificação em crimes de natureza sexual, relacionada ao medo de retaliação por
parte do agressor, ao descrédito nas instituições de justiça e segurança pública, à
ausência de redes de apoio, à frequência com que as notificantes são desacreditadas
em suas narrativas, à vergonha e mesmo ao sentimento de culpa.39 A proximidade
com o agressor é um dos fatores de dificuldade para a denúncia de violência sexual
e, como consequência, para o acesso aos serviços de saúde. Esses aspectos se somam
à falta de acesso a canais de denúncia e a serviços de acolhimento e assistência social
e à dificuldade de acesso a serviços de saúde básica.

https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2023/05/05/menina-de-11-anos-faz-aborto-legal-apos-ser-
estuprada-por-padrasto-no-piaui-ela-queria-sua-vida-de-volta-diz-conselheira.ghtml; MORI, Leticia.
As falhas em rede de proteção à infância no caso da menina de 12 anos grávida pela 2ª vez. BBC
News, 14/02/2023. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce57yx0p70mo#:~:text=No%20in%C3%ADcio%20d
este%20m%C3%AAs%2C%20um,foi%20cometido%20por%20um%20tio; AUDI, Amanda. A saga
de uma vítima de violência para conseguir o aborto legal. Agência Pública, 07/03/2024. Disponível
em: https://apublica.org/2024/03/a-saga-de-uma-vitima-de-violencia-para-conseguir-o-aborto-
legal/. Sobre o caso da menina de Santa Catarina, vítima de violência sexual da qual resultou uma
gestação, que, ao pedir autorização judicial para realização do aborto, foi questionada pela juíza e
promotora do caso se “aguentaria ficar mais um pouquinho”, com o intuito de prorrogar a gestação,
ver: GUIMARÃES, Paula; LARA, Bruna de; DIAS, Tatiana. ‘Suportaria ficar mais um pouquinho?’.
The Intercept Brasil: 20 jun. 2022. Disponível em: https://theintercept.com/2022/06/20/video-
juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/.
36 Mapa Nacional da Violência de Gênero, disponível em:
https://www9qs.senado.leg.br/extensions/violencia-genero-mashup/index.html#/registros-
sus/dados-gerais; Cônjuges ou namorados são autores de 1 a cada 8 agressões sexuais no Brasil.
RealTime, 13/12/2023. Disponível em: https://realtime1.com.br/conjuges-ou-namorados-sao-
autores-de-1-a-cada-8-agressoes-sexuais-no-brasil/
37ROCHA, Lucas. Familiares e conhecidos são responsáveis por 68% dos casos de violência sexual

contra crianças no Brasil, diz Saúde. CNN Brasil, 19/05/2023. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/familiares-e-conhecidos-sao-responsaveis-por-68-dos-casos-
de-violencia-sexual-contra-criancas-no-brasil-diz-saude/
38 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública

2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-


2022.pdf?v=5.
39 Idem.

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76. Estes fatores também contribuem para a eventual demora na identificação e na


notificação da gravidez por parte das vítimas de violência sexual, em especial entre
crianças e adolescentes. Além da autorização do(s) responsável(is) legal(is) no caso
de pessoas com menos de 18 anos de idade, que muitas vezes pode afastar meninas
dos serviços de saúde e violar seus direitos, é frequente a cobrança indevida de
documentos como boletim de ocorrência ou autorização judicial para que se acesse
o direito ao aborto legal. Em estudo de 2016, identificou-se que documentos como
boletim de ocorrência, laudo pericial e alvará judicial foram indevidamente solicitados
por 14%, 8% e 8% dos serviços pesquisados, respectivamente.40

77. Ademais, diante do ínfimo número de serviços de saúde que realizam o


procedimento e de sua desigual distribuição no país, parte significativa das
mulheres, meninas e pessoas grávidas precisa se deslocar por grandes
distâncias até um hospital de referência, fortalecendo os obstáculos existentes
para o acesso ao procedimento. Um levantamento de 2019 diagnosticou esse
cenário ao concluir que a oferta de aborto legal está disponível em apenas 3,6%
dos municípios brasileiros, concentrados na Região Sudeste (40,5%), com mais de
100 mil habitantes (59,5%) e de IDH-M alto ou muito alto (77,5%).41 O levantamento
realizado pelo Mapa Aborto Legal também identificou maior concentração de
serviços no Sudeste e nas capitais. Na região Norte, por exemplo, há apenas três
serviços indicados pelo Ministério da Saúde no Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde (CNES), mas somente um deles alega seguir realizando
o procedimento (Instituto da Mulher Dona Lindu em Manaus).42

78. Diante do cenário exposto acima, há uma série de determinantes, desde a


identificação da gestação ou o efetivo acesso aos serviços de saúde, que levam ao
atraso na garantia do direito ao aborto legal e, assim, o limite de tempo gestacional

40 MADEIRO, Alberto Pereira; DINIZ, Debora. Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo
nacional. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 21, n. 2, p. 563-572, fev. 2016. FapUNIFESP (SciELO).
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015212.10352015.
41 JACOBS, Marina Gasino; BOING, Alexandra Crispim. O que os dados nacionais indicam sobre a

oferta e a realização de aborto previsto em lei no Brasil em 2019? Cadernos de Saúde Pública, [S.L.],
v. 37, n. 12, p. 1678-4464, 20 dez. 2021. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/0102-
311x00085321. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/csp/a/KBWbtPcQww6KYSSGhYJ9YxG/?lang=pt#.
42 Mapa Aborto Legal. Disponível em: https://mapaabortolegal.org/.

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será sempre um obstáculo a mais para a vítima de violência sexual. Dessa forma, a
limitação imposta pela Resolução CFM n.º 2.378/2024 afeta sobremaneira aquelas
que mais necessitam dos serviços de aborto legal e que enfrentam mais dificuldades
para acessá-los.

79. Assim, a tentativa de impor limite de tempo gestacional nos casos de estupro não vai
apenas de encontro à lei e às evidências que permitem a realização segura do
procedimento em qualquer tempo gestacional, como esbarra nas condicionantes
de saúde de mulheres, meninas e pessoas grávidas. Uma vez preenchidas uma
das causais previstas no Código Penal, não cabe ao Estado qualquer juízo
moral sobre a decisão da pessoa grávida de interromper a gravidez, mas tão
somente a oferta de todos os cuidados, meios, técnicas e procedimentos
proporcionados pelo avanço da ciência para a realização do aborto legal.

80. Além disso, tendo os serviços de saúde capacidade técnica e tratamento eficaz e
adequado diante de um contexto de emergência, a recusa a prestar o atendimento
ou a tomar medidas razoáveis para evitar um agravamento da condição de
saúde da paciente, quando isso é possível e necessário, configura o crime de
omissão de socorro (art. 135, CP).

81. O art. 33 do Código de Ética Médica veda ao médico “Deixar de atender paciente
que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência quando
não houver outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo”. Nessa linha,
o crime de omissão de socorro exige “deixar de prestar assistência, quando possível
fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida
ou ferida, ao desamparo, ou em grave e iminente perigo; ou não pedir nestes casos o
socorro da autoridade pública”.

82. Como o crime de omissão de socorro é um crime omissivo próprio, isso significa
dizer que ele se consuma com o ato omissivo de não fazer, não sendo necessário,
via de regra, um resultado naturalístico. Nesse sentido, sendo o procedimento de
assistolia necessário para aumentar a segurança, eficácia e conforto das
pacientes que precisam realizar o aborto legal, a recusa em realizá-lo adequadamente
configura-se em omissão de socorro, na medida em que o profissional deverá

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negligenciar essa responsabilidade conscientemente, colocando em risco a saúde e


vida da paciente.

83. Além de ser passível de responsabilização criminal (art. 135, CP), e ético-profissional
(art. 33 Resolução CFM nº 2.217/2019), a omissão de socorro ainda viola a política
de saúde prevista na Lei nº 8.080/1990, que estabelece, em seu art. 2º que “A saúde
é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições
indispensáveis ao seu pleno exercício”.

84. Dessa forma, a Resolução expõe os profissionais médicos ao crime de omissão de


socorro, limitando arbitrariamente um cuidado necessário e seguro. Em vez disso, o
Estado deve estabelecer parâmetros uniformes para a realização do aborto em
todos os casos previstos em lei. Não há no Código Penal — nem poderia haver,
sob pena de discriminação de gênero — qualquer restrição ao aborto legal que diga
respeito única e exclusivamente a mulheres, meninas e pessoas grávidas vítimas de
estupro. A garantia de acesso ao procedimento é vinculada única e
exclusivamente ao preenchimento de uma das três causais autorizadas pela
legislação federal e pela jurisprudência.

85. Conclui-se que a Resolução institui tratamento discriminatório no acesso à saúde


ao vedar o procedimento de indução da assistolia fetal para o aborto legal em
idades gestacionais avançadas tão somente para mulheres, meninas e pessoas
grávidas vítimas de estupro, inviabilizando na prática o aborto nesses casos e
contribuindo para agravar vulnerabilidades sociais e econômicas preexistentes.
Assim como nas hipóteses de risco à vida e anencefalia, todos os meios e
procedimentos necessários à proteção da saúde das mulheres, meninas e
pessoas vítimas de estupro devem estar amplamente disponíveis, sob pena de
violação grave do direito à saúde e de acesso universal e igualitário aos
serviços. A disponibilidade do serviço de aborto legal deve se pautar unicamente
pelos princípios da autonomia e da autodeterminação, protegidos pelas hipóteses
legais de aborto previstas no Código Penal.

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2.3 VIOLAÇÃO DA VEDAÇÃO DE TORTURA, TRATAMENTO DESUMANO E DEGRADANTE


(ART. 5º, III, CF/88), DO DIREITO À VIDA, IGUALDADE E NÃO DISCRIMINAÇÃO (ART. 3º,
IV, ART. 5º, CAPUT, CF/88)

86. Ao privar as vítimas de violência sexual do acesso ao melhor tratamento em saúde


para os casos já assegurados por lei, por vias de um procedimento reconhecido
internacionalmente como seguro e ético, a Resolução CFM n.º 2.378/2024 conduz a
um cenário de manutenção compulsória dessas gestações, violando frontalmente o
direito constitucional dessas vítimas de não serem submetidas à tortura ou a
tratamento cruéis e desumanos, previsto no art. 5º, incisos III e XLVII.

87. O procedimento de indução da assistolia fetal não é apenas o mais indicado, em


termos de saúde física, para casos de gestações com mais de 22 semanas, como
também mais seguro e emocionalmente mais apropriado, contribuindo para a
resolutividade de casos que, não raro, demoram a chegar nos serviços, como
comumente são os de violência sexual. Assim, a proibição do procedimento
submete meninas e mulheres à manutenção de uma gestação compulsória ou
à utilização de técnicas inseguras para o aborto, privando-as do acesso ao
procedimento e à assistência adequada por vias legais, submetendo-as a
riscos de saúde ou morte.

88. A prolongação de uma gestação indesejada, sobretudo em casos de violência sexual,


é considerada uma forma de tortura, sendo imprescindível o acolhimento ágil e o uso
das melhores evidências e técnicas em ciência e saúde em favor da resolução do caso
da paciente. Conforme a Organização das Nações Unidas, considera-se uma situação
que pode ser classificada com tortura e tratamento cruel, desumano e degradante,
uma vez que submete, por razões de gênero, a intenso sofrimento psíquico e
emocional, não exigido para qualquer outra pessoa.43

89. Da mesma forma, diversos mecanismos que monitoram o cumprimento de tratados


internacionais como o Comitê de Direitos Humanos (PIDCP), o Comitê para a

43 Esse entendimento se consolidou com o caso KL vs. Peru, apresentado por organizações feministas

internacionais ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas ao final de 2002. A demanda
reclamava reconhecimento de tratamento cruel, desumano ou degradante do Estado peruano contra
a adolescente K.L. por tê-la obrigado a seguir adiante com a gestação após diagnóstico de anencefalia
e o desenvolvimento de um quadro de depressão, mesmo que a lei do país permitisse a interrupção
em caso de ameaça à vida ou à saúde da mulher ou menina.

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Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e


o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), recomendam
eliminar barreiras que obstruam o acesso das mulheres à saúde sexual e reprodutiva,
em especial nos casos de violência sexual. De acordo com esses órgãos, a negação ou
o atraso na garantia do aborto seguro constitui violência de gênero, que, a depender
das circunstâncias, pode ser equipada à tortura ou ao tratamento cruel, desumano ou
degradante. Trata-se de uma das formas de violência enraizadas em papeis de gênero
que levam a desencorajar ou punir condutas que são consideradas incompatíveis com
o que se espera de uma mulher ou menina, contribuindo para naturalizar as violências
e suas consequências.44

90. Dessa maneira, estando diante da possibilidade de aborto previsto em lei, os


obstáculos burocráticos e indevidos estabelecidos por qualquer norma
infralegal são considerados tortura e maus tratos, crime imprescritível,
inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, previsto na Lei n.º 9.455/1997.
Ao limitar a proibição do procedimento de indução da assistolia fetal às vítimas de
violência sexual, a Resolução CFM n.º 2.378/2024 viola também os direitos
constitucionais à vida, a igualdade e a não discriminação, previstos nos art. 3º, IV,
art. 5º, caput da CF/88, criando distinções entre pessoas que têm igual direito ao
aborto legal e devem dispor da mesma atenção para a concretização desse direito,
conforme as particularidades de seus casos. Esse ato discriminatório incide em uma
população especialmente vulnerabilizada e que já enfrenta uma série de obstáculos
para o acesso ao direito, que vão desde a dificuldade no rompimento do ciclo da
violência à frequente suspeição de seus testemunhos por parte dos profissionais de
saúde.

91. Na região Norte do Brasil, a gravidez precoce atinge índices comparáveis a países
com as piores taxas do mundo, com quase 5 gestações a cada mil meninas de 10 a 14
anos — todas elegíveis para o aborto legal seja por serem vítimas de estupro, seja

44Comitê contra a Tortura, V. L. v. Suíça CAT/C/37/D/262/2005 (2007); Relatório do Relator


Especial sobre Tortura, de 5 de janeiro de 2016, A/HRC/31/57), parágrafo 8 e 15 de janeiro de 2008
A/HRC/7/3.

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pela hipótese de risco de vida associado à manutenção da gestação.45 Porém, ao


contrário daquelas que gestam fetos incompatíveis com a vida extrauterina e àquelas
a quem a gestação impõe riscos de vida, a Resolução CFM n.º 2.378/2024 se orienta
pela ideia discriminatória e injustificada de que as meninas e mulheres vítimas de
violação sexual poderiam e deveriam evitar o aborto, e, caso optem pelo
procedimento, devem buscar obrigatoriamente os serviços até a 22ª semana,
desconsiderando todo o cenário de violência e vulnerabilidades que permeia meninas,
por exemplo, que muitas vezes, pelos inúmeros fatores mencionados, sofrem
obstáculos que acarretam atraso na garantia do procedimento. Entende-se que, via
de regra, essas meninas e mulheres vivem a gestação resultante de estupro como uma
continuação da violência, sendo a sua manutenção forçada uma forma de
revitimização e de tortura.

92. É flagrante, portanto, que a Resolução impede que meninas e mulheres vítimas de
violência sexual tenham acesso a todos os serviços de saúde disponíveis, ofertados
em igualdade de condições, violando os direitos à autonomia, à liberdade, à igualdade
(Art. 5º, caput, CF/88), à saúde (Art. 6º, caput, CF/88), e a não discriminação (art.
3º, inciso IV, CF/88).
2.4 VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE (ART. 5º, II, CF/88) DA SEPARAÇÃO DE
PODERES (ART. 2, CAPUT), DO DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO (ART. 5º, LIV) E DA
IMPESSOALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ART. 37, CF/88)

93. Ao editar a Resolução CFM n.º 2.378/2024, o CFM também incorreu em violações
evidentes aos princípios da legalidade e da separação de poderes da República, bem
como ignorou o devido processo legislativo e o princípio da impessoalidade da
administração pública.

94. A CF/88 previu, por meio do inciso II do artigo 5º, que "ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Ao mesmo tempo,
definiu claramente ser o Poder Legislativo — cuja independência é inquestionável
(art. 2º, caput, CF/88) — o responsável pela edição de leis, segundo as matérias
definidas nos arts. 48 e 49 do texto constitucional. Ao fazê-lo, estabeleceu, de maneira

45FOLHA DE S. PAULO. Gravidez precoce no Norte do Brasil tem índice comparável ao da África
subsaariana. 2024. Gravidez precoce no Norte se compara à África Subsaariana - 28/03/2024 -
Equilíbrio e Saúde - Folha (uol.com.br)

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evidente, que o Poder Legislativo é o único dos poderes da República competente


para proibir condutas aos administrados, por meio da tipificação penal, ou autorizá-
las, por meio da exclusão de ilicitude.

95. Na redação do Código Penal de 1940 (CP), o Legislador estabeleceu, ao mesmo


tempo, a proibição da realização do aborto (art. 124, CP) e a permissão de realização
do procedimento nos casos específicos, já que instituiu uma causa especial de
exclusão de ilicitude, autorizando o aborto nessas situações:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

96. Ao fazê-lo, a legislação estabeleceu apenas a presença de duas condições: (i) a


realização do procedimento por médico e (ii) o consentimento da pessoa gestante.
Salvo essas condições, não há nenhuma outra limitação à prática da interrupção
voluntária da gravidez, conduta que, por ser permitida em lei, consiste em um direito
e, neste caso, um direito fundamental relativo à consecução dos direitos à vida, à
saúde e ao planejamento reprodutivo de meninas, mulheres e todas as pessoas.

97. E, tratando-se de um direito, a Constituição também estabelece ser dever da


Administração Pública — seja ela direta ou indireta — criar condições para seu pleno
exercício. Para tanto, é essencial a edição de normas administrativas que permitam a
organização de políticas públicas e ações governamentais, mas no estrito limite da lei.
Esse poder normativo da Administração Pública, cujo objetivo é dar cumprimento
aos mandamentos legais, inclui a possibilidade de regulamentação, por meio de
decretos, portarias, resoluções ou instruções.

98. Nesse contexto, o ordenamento jurídico brasileiro não admite, em nenhuma


hipótese, que o poder normativo da administração pública estabeleça limitações
adicionais àquelas que a lei impõe, sob pena de violação do Princípio da Legalidade.
Segundo Maria Sylvia de Pietro, "ato normativo não pode contrariar a lei, nem criar
direitos, impor obrigações, proibições, penalidades que nela não estejam previstos,
sob pena de ofensa ao princípio da legalidade". De maneira idêntica, Celso Antônio

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Bandeira de Mello, ao tratar do art. 5º, II, da CF/88, destaca que “o preceptivo não
diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige lei para que o
Poder Público possa impor obrigações aos administrados”.46

99. Cuida-se de uma limitação constitucional que decorre do Estado de Direito,


compreendido como ordem política segundo a qual o governo é exercido por leis, e
não por pessoas ou vontades pessoais. Não fosse ela, agentes públicos poderiam
emitir normas de forma discricionária, criando deveres e obrigações ilimitadamente,
segundo suas vontades próprias e sem atenção ao devido processo legislativo, de
modo que estaríamos sob o risco de viver sob a tirania de qualquer pessoa que
ocupasse cargo de alguma importância no Poder Executivo.

100. E, quando se fala na edição de resoluções, a limitação ao poder normativo da


administração pública é ainda mais ampla. Isso porque as resoluções são atos
subalternos da administração, editadas por autoridades de baixo escalão na ordem
jurídica — e, por isso, cujos poderes devem ser menores. Consoante Celso Antônio
Bandeira de Mello, "se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade
e atividades dos indivíduos que já não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão
fazê-lo instruções, portarias ou resoluções.”47
101. Pois bem. Conforme exposto no tópico 1.2.1 da presente ADPF, o CFM é uma
autarquia federal, de modo que integra a administração pública federal indireta (art.
1º da Lei 3.268/1957). Como tal, suas atribuições estão limitadas, dentro do que
prevê a lei, a “expedir normas para o desempenho ético da Medicina” (art. 33, XIII,
do Decreto 10.911/2021). A Resolução CFM n.º 2.378/2024, contudo, foge
diametralmente dos limites legais e demonstra que o CFM pretendeu, na verdade,
extrapolar os limites de sua atuação e vedar conduta plenamente autorizada no
ordenamento jurídico brasileiro. Senão vejamos.
102. Em que pese a menção a dispositivos convencionais e constitucionais, foi utilizando-
se de fundamentos morais (como se verá adiante) que o CFM vetou a realização do
procedimento de indução da assistolia fetal nos procedimentos de interrupção da
gravidez nos casos de gravidez resultante de violência sexual, em tempos gestacionais

46 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, p.
353.
47 Idem. p. 378.

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superiores a 22 semanas. Estabeleceu, portanto, uma restrição ao direito de aborto


previsto no Código Penal, consistente na impossibilidade de realização da assistolia
— um procedimento seguro e recomendado pela OMS — em gestações de tempo
gestacional específico (o que a lei, em si, jamais fez).

103. Ao fazê-lo, o CFM procurou, extrapolando todos os limites de sua atuação e


atendendo às vontades morais de seus membros, tipificar a conduta dos
médicos que procedam à realização de procedimento que observa evidências
científicas.

104. A esse respeito, a jurisprudência do direito internacional dos direitos humanos é


unânime. Os órgãos de tratados da Organização das Nações Unidas já
pontuaram que negar às mulheres o acesso ao aborto pode levar à violação de
seus direitos à saúde,48 à privacidade49 e mesmo ao direito de não sofrer
tratamento cruel, desumano ou degradante.50 O Comitê para a Eliminação de
Descriminação contra as Mulheres, por sua vez, nomeou a negativa de acesso ao
aborto uma “forma de violência baseada em gênero”, que afeta desproporcionalmente
grupos específicos de mulheres e meninas – racializadas, pobres, e vivendo em áreas
rurais.51

105. O ato do CFM objeto desta ADPF, portanto, estabelece limitações inconstitucionais
a direitos previstos em lei, tornando o dever estatal de promover o acesso a direitos
inatingíveis. Trata-se, portanto, de violação ao princípio da legalidade e à separação
dos poderes da República. Mas não é só. Ao editar a Resolução CFM n.º
2.378/2024, o CFM também deixa de observar o princípio da impessoalidade
da Administração Pública, uma vez que, para a redação do documento, deixa

48 Committee on the Elimination of Discrimination against Women, L.C. v. Peru,


CEDAW/C/50/D/22/2009, para. 8.15
49 Human Rights Committee, Whelan v. Ireland, CCPR/C/119/D/2425/2-14, para. 7.8; Mellet v.

Ireland, CCPR/C/116/D/2324/2013, para. 7.7; K.L. v. Peru, CCPR/C/85/D/1153/2003, para. 6.4;


V.D.A. v. Argentina, CCPR/C/101/D/1608/2007, para. 9.3.
50 Mellet v. Ireland, paras. 7.4-7.6; Whelan v. Ireland, para. 7.6; K.L. v. Peru, para. 6.3; V.D.A. v.

Argentina, para. 9.2


51 Committee on the Elimination of Discrimination against Women, General Recommendation 34

(2016) on the rights of rural women, para. 38; Committee on the Rights of the Child, General
Comment 20, para. 60.

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de se amparar pela melhor técnica científica e se pauta por questões de cunho


moral.

106. Conforme nota da FEBRASGO de 5.2.202452, "diretrizes internacionais de países onde o


acesso ao aborto seguro é garantido recomendam a realização da assistolia fetal antes do procedimento
de esvaziamento uterino nas gestações acima de 22 semanas". Destaca o documento que “a
realização da indução de assistolia fetal é procedimento necessário e essencial para o adequado cuidado
ao aborto (após as 22 semanas de gestação)”.

107. Nesse sentido, como já apontado no item 2.1 da presente petição, a assistolia fetal é
o procedimento seguro e eficaz recomendado para realização da interrupção da
gestação após 22 semanas53, sendo respaldado por inúmeras evidências científicas e
pela OMS. Trata-se de uma técnica clínica respaldada por evidências, sendo
indubitável sua importância para garantir condições adequadas para uma atenção de
qualidade nos cuidados em aborto, garantindo um tratamento mais seguro para
meninas, mulheres e pessoas grávidas em decorrência de uma violência sexual.

108. Consoante esse entendimento, também se posicionou a Sociedade Brasileira de


Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)54 ao afirmar que “esse procedimento
(assistolia) é parte reconhecida como melhores práticas dos cuidados em aborto, com segurança

52 Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1845-nota-da-febrasgo-sobre-a-


resolucao-do-cfm-2378.
53JACKSON, Rebecca A., et al. Digoxin to facilitate late second-trimester abortion: a randomized,

masked, placebo-controlled trial. Obstetrics & Gynecology, 2001, vol. 97, no 3, p. 471-476; TOCCE,
Kristina, et al. Feasibility, effectiveness and safety of transvaginal digoxin administration prior to
dilation and evacuation. Contraception, 2013, vol. 88, no 6, p. 706-711; COKE, G. A., et al. Maternal
cardiac arrest associated with attempted fetal injection of potassium chloride. International journal of
obstetric anesthesia, 2004, vol. 13, no 4, p. 287-290; PASQUINI, L.; PONTELLO, V.; KUMAR, S.
Intracardiac injection of potassium chloride as method for feticide: experience from a single UK
tertiary centre. BJOG: An International Journal of Obstetrics & Gynaecology, 2008, vol. 115, no 4,
p. 528-531; REEVES, Matthew F., et al. Transabdominal lidocaine to induce fetal demise: a cohort
study. BMJ sexual & reproductive health, 2022, vol. 48, no 4, p. 275-280; DIEDRICH, Justin; DREY,
Eleanor. Induction of fetal demise before abortion SFP Guideline 20101, Release date January 2010.
Contraception, 2010, vol. 81, no 6, p. 462-473; HERN, Warren M. Laminaria, induced fetal demise
and misoprostol in late abortion. International Journal of Gynecology & Obstetrics, 2001, vol. 75, no
3, p. 279-286; BHIDE, A., et al. Comparison of feticide carried out by cordocentesis versus cardiac
puncture. Ultrasound in Obstetrics and Gynecology: The Official Journal of the International Society
of Ultrasound in Obstetrics and Gynecology, 2002, vol. 20, no 3, p. 230-232; REEVES, Matthew F.,
et al. Transabdominal lidocaine to induce fetal demise: a cohort study. BMJ sexual & reproductive
health, 2022, vol. 48, no 4, p. 275-280.
54 Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/noticias/nota-oficial-pela-revogacao-da-resolucao-

cfm-no-2-378-2024/.

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estabelecida e recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Federação Brasileira de


Ginecologia e Obstétrica (Febrasgo) e Federação Internacional de Ginecologia e Obstétrica (FIGO)
, entre outras reconhecidas sociedades. (...) Como já reconhecido pelo Ministério da Saúde em
referência à indução da assistolia fetal, o Estado, assim como os profissionais de saúde, em particular
os médicos, têm dever e responsabilidade em realizar técnicas de acordo com os avanços científicos,
que garantam o bem-estar e a saúde das pessoas”.

109. Foi também esse o posicionamento da Rede Médica pelo Direito de Decidir, a qual
expôs que “na contramão das evidências científicas e diretrizes mais atuais da OMS, proibição
aos médicos da indução da assistolia fetal pelo CFM inviabiliza a prática desse direito reprodutivo
nos serviços de aborto legal”.

110. Temos, portanto, o seguinte cenário: (i) a lei garante o acesso ao aborto legal em
casos de gestações decorrentes de estupro sem qualquer limite de tempo gestacional,
o que inclui gravidezes acima de 22 semanas e (ii) o procedimento mais seguro e
eficaz, recomendado pela OMS e sustentado por orientações técnico-científicas, para
interrupção de gestações com 22 semanas ou mais é a realização da indução de
assistolia fetal.

111. No entanto, ignorando a previsão do direito ao aborto legal e as evidências científicas


que recomendam a realização de assistolia como método adequado e seguro para
realização do aborto em gravidezes com mais de 22 semanas, o CFM editou a
Resolução CFM n.º 2.378/2024, por meio da qual visa vedar a realização do
procedimento de assistolia no Brasil.

112. Com isso, a autarquia federal ignora que tal procedimento é um cuidado médico
crucial para a qualidade da atenção em aborto depois das 20 semanas, tal como
recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS)55 e a Federação Brasileira das
Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO)56. Ao contrário, o CFM
edita a norma pautando-se por preceitos meramente morais, os quais não podem,
conforme o princípio da impessoalidade, influenciar atos da Administração Pública.

55 World Health Organization [WHO]. Clinical practice handbook for safe abortion. Geneva: WHO;
2014; World Health Organization [WHO]. Clinical practice handbook for safe abortion. Geneva:
WHO; 2023.
56Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1845-nota-da-febrasgo-sobre-a-

resolucao-do-cfm-2378.

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113. O viés moral e não científico da Resolução resta ainda mais evidenciado pelo
impedimento do acesso à assistolia tão somente para casos de gestações decorrentes
de estupro. Caso o procedimento não fosse recomendado por evidências médico-
científicas, o que justificaria o seu impedimento tão somente para casos de violência
sexual? De certo, a escolha por estabelecer essa proibição é caráter político
ideológico, o que é vedado pela própria Constituição Federal.

114. E, infelizmente, como já pontuado no tópico 2.1 da presente petição, a Resolução n.º
2.378/2024 não é o único caso em que o CFM posiciona-se em desacordo às
evidências científicas, exarando, em vez disso, as posições morais de seus membros.
São exemplos dessa prática ilegal o Parecer n.º 4/2020, em que o órgão recomendava
o uso da hidroxicloroquina, e a edição de Resolução — posteriormente atualizada —
que visava restringir o uso de medicamentos à base de canabidiol.

115. Tamanha é a arbitrariedade e despotismo do órgão na edição da Resolução CFM n.º


2.378/2024 que, em entrevista concedida a reportagem realizada pela TV Brasil em
06/04/2024, o Conselheiro do CFM, Raphael Câmara, afirma que “em hipótese alguma
a resolução do Conselho Federal de Medicina é inconstitucional, tanto não é inconstitucional que em
2022 o manual que até por sinal eu fui autor, ele previa já isso, foi alvo de uma ADPF 989 no
Supremo Tribunal Federal, e o Supremo Tribunal Federal em nenhum momento deferiu a cautelar
para derrubá-la”57. O Conselheiro desconsidera, contudo, que o mencionado manual
continha diversas ilegalidades e informações em desconformidade com a legislação
brasileira e as melhores evidências em saúde, razão pela qual foi suspenso pelo
Ministério da Saúde. A fala do Conselheiro evidencia, sobretudo, a urgência de
manifestação desta Corte frente ao cenário massivo e arbitrário de violação de
direitos fundamentais descritos nesta petição. Nesse sentido, a Resolução CFM n.º
2.378/2024 fere de maneira frontal o princípio da impessoalidade.

116. Por fim, mas não menos importante, é devido compreender que a edição da
Resolução CFM n.º 2.378/2024 também viola o princípio do devido processo
legislativo e devido processo legal. Isso porque trata-se de uma resolução que limita
direitos fundamentais, editada por meio de um processo sem publicidade, sem prévio

57Repórter Brasil, 06/04/2024. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=95TYkGU8iig

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debate público e por representantes não eleitos pela população. Há evidente


desrespeito às instâncias de deliberação.

117. Ao determinar que “é vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal” o CFM
coloca profissionais médicos diante de uma insegurança jurídica sobre a legalidade de
realização da interrupção da gestação nos casos de violência sexual. Ademais, impede
o acesso de milhares de mulheres, meninas e pessoas grávidas acessem plenamente
seu direito à vida e à saúde, ao impedir a realização de um procedimento seguro e
necessário à manutenção de sua saúde reprodutiva.

118. Conforme relatado em reportagem da Folha de São Paulo já detalhada nesta petição,
a insegurança entre os profissionais, que se veem desamparados pelo próprio órgão
de classe,58 já tem impedido a realização de procedimentos em casos gravíssimos, haja
vista o receio de eventual criminalização. O resultado é que todas as pessoas que têm
buscado o sistema de saúde grávidas de uma violência sexual, enfrentam novas
barreiras para acessar o procedimento de interrupção da gestação.

119. Na prática, a bem da verdade, ao editar a Resolução discutida nesses autos, o CFM
impõe aos profissionais da saúde o receio de privação de sua liberdade profissional,
por meio da cassação de seu registro perante o Conselho de Medicina, tão somente
por realizar um procedimento necessário à garantia de um direito previsto no Código
Penal Brasileiro desde 1940.

120. O CFM, sem seguir quaisquer das normas decorrentes do devido processo legislativo,
limita direitos de profissionais da saúde e pessoas grávidas. Tal procedimento não
pode ser admitido por este E. Tribunal, sob pena de que seja autorizada a imposição
de restrições a direitos previstos na CF/88 em uma simples Sessão Plenária Ordinária
por maioria absoluta de conselheiros um órgão composto por representantes não
eleitos pela população em geral e que representam tão somente uma classe de
profissionais e não a pluralidade da população brasileira.

58 COLLUCCI, Claudia. Veto a procedimento de aborto legal já afeta atendimentos a meninas


estupradas. Folha de S. Paulo. 05 abr, 2024. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/04/veto-a-procedimento-de-aborto-legal-
ja-afeta-atendimentos-a-meninas-
estupradas.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa

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121. Não há dúvidas, portanto, do evidente desrespeito ao princípio do devido processo


legislativo, uma vez que um órgão, que tem competência tão somente para regular e
não restringir o acesso a direitos constitucionalmente previstos, coloca sob risco as
liberdades profissionais de médicos e médicas que trabalham em serviços de aborto
legal de todo o país e direitos fundamentais de milhares de mulheres, meninas e
pessoas gestantes.
3 CONCESSÃO DA MEDIDA CAUTELAR

122. Diante do cumprimento dos requisitos da probabilidade do direito (fumus boni iuris) e
do perigo da demora (periculum in mora), requer-se a concessão de medida cautelar,
por força do artigo 5º da Lei n. 9.882/99.

123. A probabilidade do direito está suficientemente demonstrada ao longo da petição


inicial, em face da violação aos preceitos fundamentais da liberdade científica e do
livre exercício profissional, que tem por consequência violações do direito à saúde e
da proteção contra tratamento cruel e degradante, ocasionados pela tentativa do
Conselho Federal de Medicina em normatizar, por meio da Resolução CFM n.º
2.378/2024 ora questionada, sobre temas para os quais é absolutamente
incompetente. Cumpre ressaltar que esta petição demonstrou a inconstitucionalidade
da resolução, especialmente por proibir, sem justificativa clínica, ética ou legal,
e pela via ilegítima, um procedimento crucial para a garantia do aborto em
gestações acima de 20 semanas, decorrentes de estupro no Brasil.

124. O perigo na demora consiste na proibição, pelo CFM, de procedimento seguro, eficaz
e necessário para a realização do aborto em gestações acima de 22 semanas para
vítimas de estupro no Brasil. Quanto maior o tempo gestacional, maior o risco de
complicações para saúde e a vida das meninas e mulheres na realização da interrupção
da gravidez resultante de estupro. Soma-se a isso que meninas e mulheres mais
vulnerabilizadas são as que mais sofrem com atrasos indevidos no acesso ao aborto
legal, levando-as a ultrapassar o marco de 22 semanas.

125. Ou seja, o perigo de demora se consubstancia no prejuízo imediato a todas as pessoas


vítimas de estupro com gestações acima de 22 semanas. Ressalta-se: essas pessoas
têm direito ao aborto legal, previsto no art. 128, II, do Código Penal, sem limite de
tempo gestacional e também a acessarem os melhores e mais atuais cuidados em

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saúde para terem seu direito garantido. Como já mencionado, com poucos dias da
publicação da Resolução, já foram noticiados ao menos quatro casos de
meninas e mulheres que enfrentam, nesse momento, barreiras para acessar o
procedimento legalmente — sem contar aqueles que não chegaram ao
conhecimento da imprensa.

126. Corrobora o perigo de demora as violações aos preceitos constitucionais da liberdade


científica e do livre exercício profissional, expondo os profissionais médicos a
situação precária e aos riscos de responsabilização cível, administrativa e até mesmo
criminal, em caso de omissão de socorro decorrente da negativa de atendimento.
Como mencionado, reportagem da Folha de S. Paulo já noticiou a insegurança entre
os profissionais, que se veem desamparados pelo próprio órgão de classe.59

127. Diante disso, postula-se a suspensão de eficácia da íntegra da Resolução CFM n.


2.378/2024, até julgamento de mérito, no intuito de evitar o desamparo de
profissionais médicos gerado pela violação de seus direitos constitucionais à liberdade
científica e ao livre exercício de profissão, assim como para garantir que as milhares
de meninas, mulheres e pessoas grávidas, em especial as mais vulneráveis às
disposições da resolução, sofram com limitações desprovidas de objetivo
constitucional legítimo, com a proibição de um cuidado essencial em saúde, impondo
a elas violações do direito à saúde e da proibição de tortura ou tratamento desumano
ou degradante.

4. PEDIDO

Ante todo exposto, requer-se:

a) A distribuição por prevenção desta presente Ação Direta de


Inconstitucionalidade à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
n.º 989/DF, tendo em vista ser prevento o Eminente Ministro Edson Fachin,

59 COLLUCCI, Claudia. Veto a procedimento de aborto legal já afeta atendimentos a meninas


estupradas. Folha de S. Paulo. 05 abr, 2024. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/04/veto-a-procedimento-de-aborto-legal-
ja-afeta-atendimentos-a-meninas-
estupradas.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa

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Relator da ADPF n.º 989, nos termos do que dispõe o art. 69 do Regimento
Interno do STF;
b) A admissão e o conhecimento desta Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental por esse Excelso Supremo Tribunal Federal;
c) A concessão de medida liminar monocraticamente pelo Ministro Relator,
inaudita altera pars e ad referendum do Plenário (art. 5, § 3º, da Lei 9.882/1999),
para suspender imediatamente a eficácia da integralidade da Resolução
CFM n. 2.378/2024;
d) A confirmação da medida cautelar pelo Plenário, após a oitiva dos órgãos e
autoridades previstos no art. 5º, §1º da Lei 9.882/1999 mantendo-se a
suspensão da eficácia da norma impugnada até o julgamento final da presente
ação;
e) A requisição de informações adicionais ao Ministério da Saúde, nos termos do
art. 6, §1º, da Lei 9.882/1999, sendo o órgão responsável pelo estabelecimento
de parâmetros das políticas públicas em saúde;
f) Alternativamente, e em não sendo concedida a liminar monocraticamente, a
concessão de medida cautelar após a audiência do Conselho Federal de
Medicina, que deverá pronunciar-se no prazo de dez dias e, caso o relator,
julgando indispensável, após a oitiva do Advogado-Geral da União e o
Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias (art. 5, §2º);
g) No mérito, a procedência da ADPF para declarar, integralmente, a
inconstitucionalidade da Resolução CFM n. 2.378/2024.

Nesses termos, pede-se deferimento.

Brasília/DF, 10 de abril de 2024.

Paula Coradi Luciana Krebs Genro


Presidente do PSOL OAB/RS 83.739

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OAB/RJ 90.503 OAB/DF 53.229

Debora Diniz Juliano Zaiden Benvindo


Coordenadora da clínica jurídica Cravinas/UnB Coordenador da clínica jurídica Cravinas/UnB

Gabriela Rondon Rossi Louzada Amanda Luize Nunes Santos


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Mariana Silvino Paris Marina Alves Coutinho


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Letícia Ueda Vella Bruna de Freitas do Amaral


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