LEUDJANE MICHELLE VIEGAS DINIZ PORTO - 30jul2018
LEUDJANE MICHELLE VIEGAS DINIZ PORTO - 30jul2018
LEUDJANE MICHELLE VIEGAS DINIZ PORTO - 30jul2018
TERESINA
2018
LEUDJANE MICHELLE VIEGAS DINIZ PORTO
TERESINA
2018
LEUDJANE MICHELLE VIEGAS DINIZ PORTO
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Francis Musa Boakari (Orientador)
Universidade Federal do Piauí
__________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Iraneide Soares da Silva (Examinadora Titular Externo)
Universidade Estadual do Piauí
__________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Raimunda Nonata da Silva Machado (Examinador Titular Externo)
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
_________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Shara Jane Holanda Costa Adad (Examinadora Titular Interna)
Universidade Federal do Piauí
_________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Antônia Edna Brito (Examinadora Titular Interna)
Universidade Federal do Piauí
_________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Claudia Maria Lima da Costa (Examinador Externo Suplente)
Universidade Estadual do Piauí
_________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria da Glória Carvalho Moura (Examinadora Interna Suplente)
Universidade Federal do Piauí
RESUMO
The Federal Institutes of Education, Science and Technology, created by the Law 11.892 /
2008, propose the Professional Education beyond the patterns that until then had been carried
out, presenting, in its guidelines, the necessity of thinking this area of teaching in the the
perspective of education for diversity, and the approach of race relations is inserted in this
context. However, this proposal tries to be effective in this reality permeated by racism,
suffered especially by Afro-descendants. Critically analyzing this reality, the following
questions emerged: how does professional education, which has a strong tradition in valuing
education that aims to meet the needs of the capitalist labor market, relate to the proposal of
education for race relations? How do institutional documents take this approach? These
inquiries have led to the general objective of understanding how the Federal Institute of
Education of Maranhão (IFMA) deals with the demands of education for race relations
considering what legal and institutional documents pertain to Vocational and Technological
Education; and to the specific objectives: to characterize how institutional documents
dialogue with the proposal of education for racial relations in Brazil, according to the
prescriptions in legal documents; to ascertain the relations between what the research
participants say about the demands of education for Brazilian racial relations and their racial
belonging; to analyze practices related to education for Brazilian race relations reported by
IFMA professionals who participated in the study. The thesis directing this research is that the
coloniality existent in our bodies and in our minds makes the approach of race relations
establish, at most, borderline relations representing the possibility to question coloniality in
the attempt to face racism. Among the studies that base the analysis of this research, the
following stand out: Bhabha (2013), Munanga (1999), Cunha (2000a), Mignolo (2005,2008),
Fanon (2005, 2008), Foucault (1982), Guimarães 2009), Boakari (2010), Quijano (2010),
Santos (2010), Boakari e Silva (2011), Hall (2011), Certeau (2014), Silva (2014), Mbembe
(2005). The sources of information for conducting the research were institutional documents
and interviews with teachers and managers of IFMA. This study reveals possibilities of
questioning frontiers of racial relations in Professional Technological Education, as well as
exposes the force of racism in the daily practice of institutional making as an aspect that is
part of the racialization of the power relations resulting from colonization and reinvented with
coloniality.
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................... 12
1.1 Minhas histórias, nossas histórias...................................................................... 12
1.2 A pesquisa – Relações raciais na Educação Profissional e Tecnológica......... 21
2 RELAÇÕES RACIAIS NA SOCIEDADE BRASILEIRA: que máscaras 25
usamos?..................................................................................................................
2.1 Quem somos nós?................................................................................................. 25
2.2 Racismo: desafio histórico.................................................................................. 30
2.3 Colonialidade, Brasil, suas histórias e suas possibilidades.............................. 39
3 A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TECNOLÓGICA E AS SUAS 51
METAMORFOSES NA SOCIEDADE BRASILEIRA: breves comentários...
3.1 A educação colonizada: os eleitos da nação....................................................... 51
3.2 A educação profissional no século XX............................................................... 61
4 PERCORRENDO O CAMINHO METODOLÓGICO DA PESQUISA........ 77
4.1 Abordagem............................................................................................................ 77
4.2 Instituição.............................................................................................................. 80
4.3 Participantes da investigação.............................................................................. 81
4.4 Fontes das informações........................................................................................ 85
4.5 Documentos oficiais.............................................................................................. 85
4.6 As entrevistas........................................................................................................ 87
4.7 Procedimentos para análise de dados 89
4.7.1 Organização e análise das documentações............................................................. 89
4.7.2 Transcrição e organização para a análise das entrevistas....................................... 89
5 A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES RACIAIS NO CONTEXTO DO 91
IFMA.....................................................................................................................
5.1 Desafios e possibilidades institucionais.............................................................. 97
5.2 Questões afrodescendentes e vivências profissionais 117
5.2.1 Somos morenos? O que o racismo tem a ver com isso? 118
6 PRÁTICAS EDUCATIVAS E EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES 137
RACIAIS...............................................................................................................
6.1 O NEABI, uma fronteira institucional?............................................................. 156
7 CONCLUSÕES COMO CONSIDERAÇÕES EM DESENVOLVIMENTO 167
REFERÊNCIAS................................................................................................... 174
APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E 185
ESCLARECIDO (TCLE)
APÊNDICE B – ENTREVISTAS COM DOCENTES/GESTORES 188
APÊNDICE C – ROTEIRO PARA LEITURA E ANÁLISE DE 189
DOCUMENTOS OFICIAIS
12
1 INTRODUÇÃO
A roda gira, mas nem sempre é fácil estar em uma roda quando a diferença causa
estranhamento. Às vezes, o diferente é também você, mas se olhar no espelho nem sempre é
fácil para um/a afrodescendente. Em nossa sociedade, as características, sobretudo
fenotípicas, são logo apresentadas negativamente e, como diz Fanon (2008, p. 83), “[...] o
complexo do colonizado [...]” se entranha em nossa carne e penetra muitos corações de uma
maneira tão “pretensiosamente” inocente que, por vezes, nem nos damos conta do momento
em que nosso corpo e nossa alma percebem, negativamente, a diferença presente em nós.
Os/as diferentes que somos.
Esta tese, que agora apresentamos, insere-se na Linha de Pesquisa “Formação docente
e prática educativa”, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da
Universidade Federal do Piauí (UFPI), é parte de minha trajetória como mulher
afrodescendente, maranhense, de São Luís, não só porque, mediante tantos temas, eu,
historiadora/educadora, resolvi, em diferentes contextos, estudar afrodescendentes e, hoje,
continuo com o desafio de escrever uma tese que problematiza a questão do tratamento das
relações raciais na Educação Profissional e Tecnológica (EPT). Pode parecer natural a escolha
da temática, uma afrodescendente pesquisar sobre afrodescendentes, mas esta não é uma
questão de natureza e, sim, de cultura, para onde as minhas possibilidades e vivências me
levaram. Assim, entendo com Foucault (1992, p. 150), que “[...] escrever é pois ‘mostrar-se',
dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”.
Acredito que todo/a afrodescendente sabe o difícil caminho de entender os diferentes
meandros do racismo. Nem todos se preocupam em entender essa questão, pois torná-la
invisível é, para muitos/as afrodescendentes também uma forma de existência; esse
desvelamento, quando realizado, tem seus momentos de prazer, mas também de dor.
Sentir-se e se assumir publicamente afrodescendente não é nascer afrodescendente e se
sentir assim. Foi, e está sendo, para mim, uma difícil, libertadora e feliz possibilidade. É
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assim que, de alguma forma, esta tese dialoga com a história da roda em minha vida: com a
história de uma criança que não queria entrar na roda e que se tornou uma mulher que se
permite aprender e conhecer junto a rodas de afrodescendentes, como a nossa Roda Griô -
Núcleo de Estudos de Gênero, Educação e Afrodescêndência, Ligada ao Programa de Pós
Graduação em Educação (PPGEd) da Universidade Federal do Piauí.
Sei, pelas lembranças de minha mãe, Goretti, muitos acontecimentos de minha vida
que a minha memória não consegue acessar. Os motivos dessa inacessibilidade eu não sei,
mas penso que, como em alguns casos, pode ser devido a minha pouca idade. Conta minha
mãe, uma griô descendente de cordelista da baixada maranhense, que quando eu tinha por
volta dos três anos de idade, momento em que comecei a frequentar escola, a primeira
reclamação da professora foi pelo fato de ela perceber que, nas brincadeiras de roda, eu me
negava a ficar ao lado e segurar a mão de crianças de pele escura como eu. Conta mamãe que
a professora, Silvânia, se preocupou muito com isso. Cabe destacar que essa era uma escola
da periferia de São Luís, nos anos 1980, situada na Liberdade, bairro que foi povoado no pós-
abolição, majoritariamente, por afrodescendentes da ilha e muitos outros vindos do interior do
Maranhão.
O caso anteriormente narrado preocupou muito minha genitora e esta disse que, ao
chegar a casa, conversou muito comigo, perguntou por que me negava a segurar nas mãos de
determinadas colegas e outras não, e eu, segundo ela, não respondia de jeito algum,
perguntava, então, se tínhamos brigado ou alguma outra coisa que justificasse minha repulsa,
e eu continuava a não responder e, diante do meu silêncio, disse que eu era negra, como
também era ela, meu pai, minhas avós, meus avôs, meus tios, minhas tias , meus primos e
muitas amigas de minha escola. Mediante a colocação de minha mãe, eu teria rompido o
silêncio para dizer que “negros não, nem eu, nem ela, nem meu pai, nem ninguém da família”.
Segundo mamãe, foi uma difícil conversa, marcada por choro e birra. Nem sei como entendia
o que era ser negra, mas minha mãe disse que, depois de muita conversa em nossa casa, a
professora relatou que, nas outras aulas, eu passei a segurar as mãos das colegas, permitindo-
me entrar na roda e brincar tranquilamente.
Várias outras histórias poderiam ser contadas envolvendo minha vida pessoal e
situações que perpassam as relações raciais, porém, neste momento, quero evidenciar uma
história que está diretamente envolvida com nosso problema de pesquisa que envolve as
relações raciais na Educação Profissional e Tecnológica.
Em 1998, passei no meu primeiro vestibular: Licenciatura em Construção Civil, no
então CEFET. Para falar a verdade, eu não tinha a mínima noção do que consistia esse curso,
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inclusive, tinha ficado sabendo há pouco tempo que no CEFET tinha curso superior; fiz o
vestibular porque alguns amigos meus fizeram; coloquei Construção Civil porque achei
bonito e me lembrei do meu pai, que trabalhava nessa área. Meu foco eram os cursos de
História e Direito, mas passei em Construção Civil e decidi cursar. Aquela aprovação, mesmo
que com um interesse desinteressado, era fruto de muitas horas de estudo: sim, estudava das 7
às 18 horas, quase que religiosamente, envolvendo, inclusive, o sábado e parte do domingo,
então, não quis perder a oportunidade, pois universidade naquele tempo ainda era artigo de
luxo e eu, filha da famosa classe média, não podia desperdiçar; sendo assim, fiz minha
matrícula e tentei a sorte.
Para mim, aquilo era, no mínimo, travessia temporária, mas, aos poucos, fui criando
respeito e certa raiva daquele lugar. Ele, até então, representava pouco para mim, apenas uma
aprovação, que me rendeu muitos parabéns e até festa, mas, para a minha avó, eu era aluna da
Escola Técnica e ela falava isso de um modo tão pomposo e feliz que comecei a achar
importante; para o meu tio Clemente, aquilo era mais lindo ainda, ele conseguia e consegue
chorar e escrever belas crônicas lembrando aquele seu tempo de Escola Técnica; esse amor
me comovia. Essa mesma Escola Técnica foi o local onde meu pai estudou no início dos anos
de 1970, um jovem da periferia de São Luís, que tinha nos estudos uma das poucas
possibilidades de não ser mais um invisível e de não entrar para as estatísticas de miséria da
nossa “bela ilha”.
Meu pai, apesar de odiar falar de pobreza, um dia me confidenciou, com certa tristeza
no olhar, que só tinha lanchado uma vez na cantina paga da escola. Isso aconteceu quando um
professor fez uma prova e disse que se algum aluno tirasse nota 10, ele pagaria um lanche
qualquer escolhido pelo aluno. Sei que uma nota 10 é importante, mas o que meu pai queria
mesmo, e ficou muito feliz, foi a possibilidade de lanchar naquele lugar de prestígio nunca
possível para ele. Aquilo foi tão forte, que me disse que todo dia eu teria dinheiro para lanchar
naquela lanchonete e ele cumpriu à risca a promessa. Porém, sem dizer a ele, quase não
frequentava aquele espaço, achava péssimo o lanche. É, eu pude ter opção.
Então, quando cheguei naquele lugar, não conseguia olhar para ele com o olhar de
minhas experiências pessoais: as memórias familiares adentravam a minha pele e eu via tudo
aquilo de modo respeitoso e rancoroso, mas ao vivenciar aquela instituição outros sentimentos
foram se agregando e lá vivi um dos piores racismos/sexismos nossos de todos os dias,
praticado por um professor doutor em Física. Eu nem sabia o que era professor mestre ou
doutor naquele tempo, mas que o referido docente fazia questão de falar isso, com toda
pompa, não apenas para se referir a um esforço acadêmico ou pra nos mostrar o mestrado e o
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doutorado como uma possibilidade: ele usava aquilo para dizer que era melhor que todas/os
nós, por ser detentor de títulos.
Eu, uma das poucas mulheres na sala de aula (se não me falha a memória, de uns 35
alunos/as havia 7 mulheres e, dentre elas, 2 afrodescendentes), era motivo de chacota
cotidiana do professor. Ele dava vários exemplos da Física e me colocava nos casos citados,
mas resumindo, eu sempre era a “puta” da história. Naquele tempo, eu, que era tão
envergonhada, não sonhava em ter as leituras que tenho hoje sobre diversidade, homofobia,
racismo e machismo; lembro que foi bem difícil reagir, mas consegui, só lembrava minhas
muitas horas de estudo para estar ali naquela cadeira e aquele professor a toda aula me dizer,
de uma forma ou de outra, que aquele não era meu lugar. De tantas crueldades que disse, ele
falou que eu não tinha cara de quem estudava; mas, sim, que eu tinha cara dessas mulheres
que queriam viver no luxo e que precisavam de um homem como ele, bem de vida, doutor,
para patrocinar meus luxos.
Essa história foi muito forte, é forte até hoje, é muito machista e racista e também de
sutileza que, depois de minha reação, que foi na proporção do dito, levantei, fui até o docente
e disse que ele iria aprender a respeitar uma mulher e, se precisasse, faria isso com minhas
próprias mãos. Poucos colegas compartilharam a minha dor, alguns achavam que ele tinha me
feito um elogio ao dizer que patrocinaria uma mulher como eu, outros conseguiam ver uma
dose de machismo, mas o racismo é tão sofisticado, é tão fácil de sentir e tão difícil de
afirmar/comprovar, que, talvez, naqueles tempos, nem eu conseguia fazer essa associação.
A educação escolar foi um elemento de disseminação da colonialidade do saber e do
poder. O caso vivido por mim, e há pouco narrado, demonstra que educadores/as, ainda hoje,
conseguem ser tão coloniais ao dizer que o local de uma mulher afrodescendente não é em
uma universidade e, sim, em locais indicados pela colonização e reforçados pela colonialidade
do poder: em lugares subalternos.
Hoje, fazer parte de rodas de afrodescendentes, como a Roda Griô, não é só mais uma
das obrigações do doutorado ou um interesse associado à minha prática docente; é o lugar que
sempre quis estar, é um lugar onde meu corpo se encontra com minha alma, onde compartilho
medos, saberes, possibilidades, táticas e estratégias, nos dizeres de Certeau (2014). Sair da
história de uma criança que não queria segurar nas mãos de outras crianças afrodescendentes
e se tornar uma pessoa que assim se percebe, estuda e procura ficar junto aos seus, não foi
fácil; muitas outras histórias estão no meio do caminho.
Sentir-se preconceituoso/a não é nascer preconceituoso/a; tornamo-nos
preconceituosos/as. Isso, muitas vezes, cola na gente, se torna a pessoa, arranca, encarna de
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uma forma que nem se percebe que não se nasce assim, fazendo com que não se questione
essa forma de sentir, agir, viver.
Como diz o poema “No meio do caminho”, de Andrade (2002), “[...] tinha uma pedra
no meio do caminho”: o preconceito racial é uma pedra/rocha, e chutar essa pedra, causar
fissuras nessa rocha, é necessário. Esta tese é, para além de tudo, um diálogo com a
possibilidade da educação para as relações raciais que valorizem as diferenças, entendendo
que o saber/fazer acadêmico/escolar só faz sentido se dialogar com nossas histórias de vida,
com as nossas inquietações, para nos fazer viver melhor. Afinal, para que serve mesmo a
ciência?
Pensar o/a afrodescendente na sociedade brasileira vem sendo uma temática recorrente
em meus estudos acadêmicos. Lembro que, desde o início da graduação, cada vez que tinha
oportunidade de escolher um tema para aprofundamento de pesquisa/escrita, lá estava eu a me
ater a essa temática. Assim, com o meu trabalho monográfico, não poderia ser diferente:
investiguei a criminalidade escrava como forma de resistência e poder na sociedade
oitocentista maranhense (DINIZ, 2005).
Autos de pergunta, inquéritos policiais, jornais, obras literárias e memorialistas eram
minhas fontes de pesquisa; vasculhar arquivos era, para mim, extremamente prazeroso e
emocionante, principalmente ler os autos de perguntas a africanos/as e a afrodescendentes
escravizados/as da capital maranhense. Com esses autos de perguntas, os crimes tomavam,
para mim, outra dimensão: eu conseguia ver essas ações para além do rompimento com os
códigos normativos, pois os crimes, de alguma forma, eram invenção de si, também formas de
possibilitar que gostos e vontades fossem oportunizados, criados e inventados, de acordo com
as possibilidades do momento.
Ler aquelas histórias era como ler parte de minha história. Apesar de o período
escravocrata ser aparentemente tão distante, uma pessoa afrodescendente é, ainda hoje
injustamente acusada de um crime tendo como principal motivo da desconfiança inicial a cor
de sua pele; assim, vejo como mais de um século que nos separa pode ter tantas relações.
Estigma e preconceito andam juntos na história do racismo e conseguem remodelar-se
inventando e se atualizando em diferentes contextos históricos; ou seja, o passado se
configura no presente, porém, de outro modo.
Aos poucos, no percurso da pesquisa monográfica, fui seduzida também pela leitura
dos romances. Percebi várias representações que lia naqueles autos/inquéritos, jornais
narrados com as sedutoras tintas de Aluísio Azevedo e costurados pelos sentidos que este
autor dava à escravização, tendo em vista sua preocupação com o futuro civilizacional de uma
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nação mestiça. Ali conseguia juntar os rastros presentes nos arquivos com a imaginação
pretensiosamente realista/naturalista de Azevedo no seu romance “O mulato”.
Quando estava organizando o projeto de mestrado, fiquei na dúvida entre continuar
pesquisando a escravização via criminalidade, ou enveredar pelo caminho da literatura e das
representações da escravização. Na verdade, quem me ajudou a definir qual caminho seguir
foi o professor de História, Josenildo Pereira, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
que, com sua calma, inteligência, gentileza e generosidade, cedeu parte de uma manhã na
Biblioteca Pública do Estado do Maranhão, onde pesquisávamos, para conversar comigo
sobre as minhas vontades como pesquisadora e as possibilidades de aceitação dos projetos que
tinha em mente, para as universidades às quais estava pleiteando o mestrado.
Tentei mestrado em duas universidades, no Mestrado em História do Brasil, na UFPI e
no Mestrado em História Social da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). O professor
Josenildo leu comigo os editais dos Programas de Pós-Graduação, bem como ajudou a pensar
nos/as professores/as que tinham probabilidade de me aceitar como orientanda. Chegamos ao
entendimento, naquele ano de 2006, que, por não haver nenhum docente que trabalhasse
diretamente com a temática afrodescendente, que era mais viável o projeto que trabalhava na
interface entre escravidão e literatura, além do meu apreço, tinha mais possibilidade de ser
aceito, porque, nos dois programas, havia professores/as com pesquisa na área da História e
Literatura e não tinha nenhum que, pelo menos, na leitura do currículo Lattes, trabalhasse na
interface entre História/escravização/afrodescendência.
De acordo com o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil: 2009-2010
(PAIXÃO, 2010), no que se refere ao acesso de pretos/as e pardos/as (negros/as) à educação
superior (pós-graduação), ainda em 2008, a população total residente no Brasil vinculada a
algum programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) foi de 325.907 pessoas. Desse
montante, 258.738 eram brancos/as e compunham 79,4% do total dos/as alunos/as cursando
mestrado ou doutorado no Brasil. Já os/as pretos/as e pardos/as vinculados/as a algum
programa de pós-graduação eram 65.045, representando apenas 20,0% do total dos/as
estudantes de mestrado e doutorado matriculados/as no país (PAIXÃO, 2010).
Lembro que o professor Josenildo, afrodescendente que pesquisa afrodescendentes,
falava-me de aspectos da pesquisa acadêmica que só muito depois voltei a pensar, eu estava
tão envolvida com o que eu queria fazer, era tão desconectada com os interesses
institucionais, que nem ligava para o contexto que envolve as dificuldades de ter um projeto
de mestrado/doutorado aprovado tendo como centralidade essa temática. Lembro que ele me
dizia que nós, afrodescendentes, precisávamos ser estratégicos para existirmos nos Programas
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de Pós-Graduação. Ele estava certo, fui aprovada nos dois programas e minha orientadora do
mestrado, Luciene Lehmkuuhl, confidenciou-me que só pode me aceitar por causa da
interface da escravização com a literatura e que sobre escravização de afrodescendentes
estava aprendendo comigo.
Foi um grande desafio essa empreitada: pesquisar tendo o romance como principal
fonte de pesquisa me desterritorializou pois precisei reforçar leituras ligadas à Nova História
Cultural. Antes, o foco era a História Social, então, precisei fazer disciplinas relacionadas à
teoria literária, que possuíam linguagem nova para mim. Foi difícil, mas foi um encantamento
permeado pela relação entre história, literatura, ficção, realidade, invenção, o que pensa o
autor, o não controle da invenção e da recepção de uma obra literária, dentre outros conceitos.
No mestrado, pesquisei sobre representações da escravidão na obra literária O mulato
(1881), do maranhense Aluísio Azevedo, objetivando entender como a escravidão era
representada por intelectuais que entendiam a literatura como missão e que pretendiam, por
meio do texto literário, contribuir com propostas de saídas para pensar a ideia de civilização
possível em uma sociedade caracterizada pela mistura racial. Nesse romance, Azevedo não
ficou preso às amarras deterministas das teorias raciais de cunho positivista que condenavam
ao fracasso nações miscigenadas como o Brasil. Na narrativa de O mulato, quanto menos
pigmentado fosse o mestiço, melhores condições teriam, pois, negando/apagando suas raízes
afrodescendentes e segundo o perfil eurodescendente, os mestiços, como o personagem
Raimundo, tinha condições de contribuir positivamente para a formação da nação (DINIZ,
2008).
Naquele período, ainda não pensava a questão ligada aos termos “negro”,
“afrodescendente”, “escravidão”, “escravização”. Hoje, sei que o modo de dizer e nomear está
associado às relações de poder em nossa sociedade; eles não são inocentes, dizem para além
do dito, carregam simbologias e estereótipos, como diz Fanon (2008): falar é suportar uma
cultura e também assumir o peso da civilização. No meu caso em particular, “sair” do século
XIX foi fundamental para essa percepção. Durante muito tempo, esse foi o meu “chão” como
pesquisadora, minhas leituras, principalmente aquelas que tinham mais aprofundamento
teórico, pertenciam a esse contexto.
Estudar afrodescendentes no século XIX e nos dias atuais tem as suas muitas
aproximações, mas também tem distanciamentos, e a necessidade de pensar/problematizar
esses desdobramentos, hodiernamente, foi tomando conta de mim na medida em que a
atuação docente exigia outras leituras e outras formas de olhar. A partir desse momento,
percebi que precisava ampliar o meu “chão”, não só para dar uma aula melhor, coordenar
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núcleo de estudos e realizar outras atividades do fazer profissional, mas, inclusive, para me
entender melhor.
Uso o termo afrodescendente neste trabalho como uma escolha política. Voltarei, em
outro momento, a essa defesa, porém, vale destacar a luta, sobretudo, dos movimentos de
afrodescendentes na tentativa da ressignificação positiva referente ao segmento da população
de origem africana.
A temática proposta sobre a “A afrodescendência e a Educação Profissional
Tecnológica em tempos de educação para as relações raciais” faz parte de uma possibilidade
de continuar problematizando as realidades cotidianas brasileiras focando nas/os
afrodescendentes e está intimamente relacionada à minha atuação profissional.
Tive uma trajetória acadêmica majoritariamente restrita aos muros das universidades.
Fiz os 4/5 anos de graduação praticamente sem buscar uma relação com a prática docente,
exceto por alguns meses em que trabalhei em um programa da Universidade Estadual do
Maranhão (UEMA), chamado “Vestibular da Cidadania” – um cursinho preparatório para o
vestibular destinado à comunidade – e os estágios obrigatórios. Desse modo, os meus anos de
graduação, entre os anos de 2000 e 2005, foram densamente vividos pelos afazeres do
cotidiano acadêmico dos cursos de História e Serviço Social, permeados pelas pesquisas nos
diversos arquivos públicos da cidade de São Luís.
Da graduação, emendei o mestrado, sendo que os seis meses entre a graduação e o
mestrado passei também destinando minhas manhãs e tardes à pesquisa nos arquivos públicos
para fundamentar o projeto de pesquisa. No mestrado, não recebi bolsa de nenhuma
instituição de fomento, mas pude vivê-lo intensamente devido ao “paitrocínio” que sempre
tive. A prática docente ia ficando para momentos eventuais, pois sempre nas férias dava aula
pelo Programa de Qualificação Docente (PQD) da UEMA. Esse programa era formado por
cursos de licenciatura, como o curso de História, e tinha suas aulas ministradas durante as
férias acadêmicas, por ser voltado para professores sem a devida titulação.
Depois do mestrado, tinha o título de mestra em uma mão e o desemprego em outra, e
foi aí que comecei a estudar para concursos. Em pouco tempo, obtive aprovação para
professora do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) - Campus
Caxias e para professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) - Campus Grajaú.
Por motivos extremamente pessoais, optei pela carreira no Instituto Federal e, a partir daí,
passei a vivenciar intensamente o cotidiano acadêmico. Como foi difícil: a linguagem era
outra, as necessidades cotidianas de sala de aula exigiam de mim muitas coisas diferentes das
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exigências da pesquisa – foi preciso inventar um jeito de ser professora que até hoje muda de
formas.
O preconceito racial não era apenas uma vivência minha, como mulher
afrodescendente, ou algo presente em fontes de arquivos ou representações literárias: era
também uma dificuldade encontrada nas práticas como professora, que se misturava a tantos
outros preconceitos e a tantas outras identidades. Essa realidade foi e é desafiadora, pois eu
percebia minha fragilidade teórica e de vivência para pensar dando sentido às questões na
atualidade. Sair do século XIX não foi fácil em vários sentidos.
Assim, a escolha pela contemporaneidade tem muito a ver com as minhas inquietações
na prática docente e como coordenadora, por quatro anos, do Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros e Índiodescendentes (NEABI) - Caxias. As motivações que encaminharam a
escolha dessa temática estão pautadas na opção de, como mulher, afrodescendente,
historiadora e professora contribuir, no meu fazer profissional, para a educação escolar que
respeite, valorize e reconheça as nossas diferenças.
Para pensar a questão racial não basta “boa vontade”. É preciso ter um misto de
conhecimento e sensibilidade. Pensar, aqui entendido como propõe Bondía (2002), é dar
sentido ao que somos e ao que nos acontece, perpassa pela necessidade de gerar experiência
como possibilidade de algo que nos aconteça e não apenas que se passa; ser tocado/a é ser
atravessado/a, provocando mudança. Exige outra postura, necessita que olhemos mais devagar
para poder sentir.
Sobre a aproximação entre pesquisador/a e objeto pesquisado, concordo com Munanga
(1999, p. 16), quando aponta que:
Apesar de ainda serem minoria no mundo acadêmico, cada vez mais as questões
pertinentes às relações raciais vêm ganhando espaço nas análises e pesquisas educacionais.
Isso se deve às profundas transformações que estão acontecendo na sociedade brasileira e que
exigem posicionamentos mais críticos que incluam a imensa gama de diversidades existentes
com mais objetividade.
21
A questão central acima especificada, bem como nossos objetivos, conduz à seguinte
questão norteadora: como a educação profissional, que tem forte tradição na valorização da
educação voltada para atender as necessidades do mercado de trabalho capitalista, relaciona-
se com a proposta da educação para as relações raciais? De que modo os documentos
institucionais fazem essa abordagem?
Nossa tese é de que a colonialidade presente em nossos corpos e em nossas mentes faz
com que a abordagem das relações raciais estejam, quando muito, no entrelugar do qual falou
Bhabha (2013), na fronteira em que representa uma possibilidade de pelo menos questionar a
colonialidade. Como diz Luz (2013, p. 96-97), é preciso ser cupim, ou seja, “[...] penetrar nos
interstícios das instituições que se alimentam das relações de prolongação colonial no Brasil,
e, lentamente, ir desestabilizando, esvaziando, tornando oca a estrutura de valores [...].”
Assim, esta pesquisa se justifica pela proposta de contribuir para pensar as possibilidades, as
estratégias, os entraves e os desafios educacionais no âmbito das relações raciais na Educação
Profissional Tecnológica (ETP), tema ainda tão necessário mediante a realidade brasileira e a
força do racismo.
Acreditamos que problematizar as relações raciais, tendo a Educação Profissional
como contexto, possibilita-nos pensar facetas da educação brasileira e seu contraditório
discurso de educação para todas/os. Quem são esses/as “todas/os”? Quais os motivos em
destinar diferentes modelos educacionais dependendo das condições socioeconômicas? A
EPT é destinada a todas/os? Qual a relação entre o público que, historicamente,
majoritariamente, compôs a Educação Técnica Profissionalizante e os racismos brasileiros?
Quais narrativas culturais permeiam experiências valorizadas nessa instituição? Respeitar as
diversidades se baseando em quais referências culturais, valores socioculturais, discursos?
Concordamos com Silva (2014), quando aponta que as relações de poder e
desigualdade que perpassam a educação escolar e o currículo não podem ficar restritas à
classe social, uma vez que, em termos de representação racial, o currículo, evidentemente,
conserva as marcas de sua herança cultural, e essas cicatrizes seriam parte da economia de
afetos e desejos tecidos por sentimentos “irracionais” e que desumanizaram afrodescendentes.
Como termômetro dessas desigualdades na educação, podemos citar os dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), indicadores de que, em relação à taxa
de frequência líquida à escola, também existem diferenças entre os grupos de
afrodescendentes e os dos chamados brancos, principalmente na medida em que sobe o nível
da escolaridade pesquisada. Assim, no ensino fundamental, quase não existem diferenças
entre os grupos raciais, sendo 92,4% a taxa de frequência líquida no caso da população
23
Nosso país se formou tendo por base o trabalho africano, principalmente de sujeitos
criminosamente escravizados. Para tal empreendimento, homens e mulheres foram
arrancadas/os e trazidas/os de forma desumana, usando-se como justificativa para essa
atrocidade ora um discurso religioso que colocava a escravização de afrodescendentes como
um castigo divino, ora um discurso “dito” científico, que afirmava a existência de raças
humanas, de modo que esses indivíduos seriam um grupo inferior, bárbaro e fadado ao
fracasso e o eurodescendente seria uma raça civilizada que deveria guiar as demais de forma a
não atrapalharem os rumos da civilização.
Essa ideia de civilidade, pensada sob o escárnio das contribuições das/os
afrodescendentes na sociedade brasileira, não foi feita sem contestação e luta na perspectiva
de um olhar de inclusão e respeito. Acreditar que essa batalha por uma valorização da
identidade é coisa só atual é negar uma longa história de subterfúgios, desde a captura bárbara
na África até as muitas lutas ao longo da trajetória de construção sociedade brasileira.
A resistência desses povos se fez presente ao longo de nossa história. É difícil falar da
ação de afrodescendentes na busca por combater preconceitos e discriminações sociais
advindos de uma maneira racista de pensar e agir que estruturou nossa sociedade, pensando as
ações de afrodescendentes como um bloco homogêneo e harmônico. Diferentes formas de
26
[...] a cultura articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou controla a razão
do mais forte. Ela se desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de
violências, a quem fornece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e
compromissos mais ou menos temporários. As táticas do consumo, engenhosidades
do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar, então, em uma politização das
práticas cotidianas. (CERTEAU, 2014, p. 45).
Pensamos o termo “afrodescendente” como uma tática, não autorizada, que nos dá a
possibilidade de problematizar e contextualizar as realidades das diásporas africanas, criando
aprendizagens e possibilitando um estar no discurso dentro de termos escolhidos por nós e
que reforçam, positivamente, nossas realidades de ontem e de hoje. Se a forma como
28
nomeamos tem historicidade, também podemos criar nossas curvas, nossos caminhos, nossos
nomes, nossas histórias.
Assim, tal palavra nos possibilita problematizar os enunciados que tomaram
significado dentro de estruturas coloniais de nomear, uma possibilidade de abrir discussão
sobre a história única criada de ser “negro/a” no Brasil, um percurso marcado pela negação da
ascendência, pela coisificação de nossa humanidade, pela passividade de nossa trajetória.
Termos como “preto” e “negro”, apesar da tentativa de ressignificação positiva, sobretudo
pelos movimentos sociais, ainda carregam carga negativa, pois, em uma sociedade de base
racista como a nossa, são frequentemente acionados no vocabulário coloquial de forma
pejorativa. A base discriminatória, presente também em nossa linguagem, demonstra outra
distinção criada com a colonização, que é o poder de nomear (COELHO; BOAKARI, 2013).
Para Fanon (2008, p. 83), a colonização fez emergir o que chamou de “complexo do
colonizado”, no qual a/o afrodescendente não apresenta os atributos para se enquadrar na
lógica colonial. Dessa forma, assumiria “máscaras brancas”, negando seu corpo, suas raízes
ancestrais, adaptando-se a uma estrutura de pensamento que lhe possibilite ser inteligível e
invisível.
O que é se tornar invisível? É não ser percebido? Como não ser percebido quando se é
diferente? Negando a diferença? Como negar uma diferença expressa não só no modo de
pensar, nas raízes culturais, mas também na pele? É possível? O que fazer nessa
impossibilidade? Fanon (2008, p. 44) nos mostra que as máscaras estão aí para isso. Agora, o
problema evidenciado pelo autor é que essas criam complexos que precisam ser desvelados.
Nesse sentido, sua pretensão/objetivo “[...] é ajudar o negro a se libertar do arsenal de
complexos germinados no seio da situação colonial.”
Para tal empreitada, Fanon (2008) tenta “desmascarar o negro”, para que ele,
entendendo seus complexos, possa se libertar daquilo que faz com que não veja a si próprio.
Nesse sentido, o autor afirma que assumir a linguagem e se esforçar para ter a organização de
pensamento à moda europeia é, dentro desse reforço de inferioridade, tanto uma alternativa
para tornar possível a sobrevivência dentro dessa lógica quanto uma possibilidade de assumir
a inferioridade de sua ancestralidade.
E por que atingir esses símbolos de civilização invisibiliza o negro? Por que esses
mesmos elementos da sociedade europeia que invisibilizam o negro tornam o branco visível?
O problema apresentado pelo autor é que o chamado “branco” é antes de ser, enquanto que o
rotulado negativamente de negro, mesmo sendo, nunca é. Isso se dá porque o primeiro,
mesmo não sendo, tem o reforço de que seus iguais foram ou são, de modo que o segundo,
29
mesmo sendo, tem nas marcas de sua pele a lembrança da diferença que sua ancestralidade
carrega – daí Fanon (2008, p. 46) dizer que “[...] provavelmente aqui está a origem dos
esforços dos negros contemporâneos em provar ao mundo branco, custe o que custar, a
existência de uma civilização negra”.
O que significa defender/mostrar a existência da civilização africana? Significa,
primeiramente, romper com a ideia de que existe uma civilização no singular: não havendo
isso, não haveria um padrão único a seguir; mostrar que viemos de algum lugar e que esse não
é qualquer lugar, mas é um local cheio de riqueza e de inteligência. Pensar nesses termos seria
uma possibilidade de tomar posse do nosso poder e da nossa ancestralidade como algo
positivo, seria romper e negar a lógica colonial que permanece em tempos de descolonização.
É necessário conhecer de outro modo, para além da história única que distorce e
simplifica formas de estar no mundo, saberes, culturas. Os africanos desumanamente trazidos
para o Brasil, com a escravização, vieram de diferentes regiões que atualmente são países
como Angola, República do Congo, Moçambique, Benin, Gana, Serra Leoa, Nigéria, dentre
outros. O próprio termo “africanos” diz pouco, simplifica diferenças, mas, pelo menos,
valoriza as ancestralidades. A negação de seus nomes de origem, com as nomeações de
“escravos”, “negros”, “pretos” e “mestiços”, teve a raça como significante de discriminações.
O poder de nomear representou e ainda representa uma das facetas do colonialismo e
de sua tentativa de inferiorização e de desumanização de afrodescendentes, negando que esses
sujeitos que para cá vieram tinham seus próprios nomes, suas histórias, suas memórias, suas
culturas e seus saberes. Como aponta Carneiro (2005, p. 99),
Sendo assim, o objeto dessa concepção seria, para Bhabha (2013, p. 124), “[...]
apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem
racial, de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução”,
produzindo uma realidade social em que tal sujeito é apreensível, visível e previsível, mesmo
sendo o outro o diferente.
Entendemos que a relação da cor da pele com termos como “preto” e “negro” foram
criados dentro dessa lógica do discurso colonial, o qual, segundo Bhabha (2013) faz parte do
jogo da ambivalência que desumaniza e tenta transformar o estereótipo marcado por fobia e
fetiche em verdade, sendo apenas uma simplificação que nega o jogo da diferença.
relações raciais, no que mandam as Leis n.º 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e n.º 11.650/2008
(BRASIL, 2008), tenta ser efetivada diante de um regime de poder/saber que se sustenta de
um prolongamento colonial que inferiorizou afrodescendentes e tentou eliminar suas histórias,
seus conhecimentos e seus saberes.
Entende-se o colonialismo como dominação de uma nação em relação à outra por
meio da imposição territorial, militar, política, econômica, cultural, enquanto a colonialidade
é tida como regime de poder que impõe padrões políticos, econômicos, morais e
epistemológicos. Esta é filha daquele, mas ela conseguiu ir muito além dos domínios
territoriais e do período que conhecemos como colonial. Colonizados não foram só os povos
da América, da África e da Ásia – esses foram partícipes da colonização moderna. Então, se o
colonialismo e a colonialidade se fundem em algum momento, esta apresenta bifurcações para
além da geopolítica colonial e moderna.
A modernidade e o capitalismo seriam construções da Europa e a partir de lá tomaram
corpo e vida, expandindo-se pelo mundo. Mignolo (2005) entende que essa interpretação que
associou esses dois conceitos, tendo um ponto de partida restrito a acontecimentos e ao
território europeu, teria colaborado para tornar invisível a colonialidade do poder, abafando,
assim, as influências e as significações da América nesse contexto.
Esse momento na construção do imaginário colonial, que será mais tarde retomado e
transformado pela Inglaterra e pela França no projeto da missão civilizadora, não
aparece na história do capitalismo contada por Arrighi (1994). Na reconstrução de
Arrighi, a história do capitalismo é vista ‘dentro’ (na Europa), ou de dentro para fora
(da Europa para as Colônias) e, por isso, a colonialidade do poder é invisível. A
consequência é que o capitalismo, como a modernidade, aparece como um
fenômeno europeu e não planetário, do qual todo o mundo é partícipe, mas com
distintas posições de poder. Isto é, a colonialidade do poder é o eixo que organizou e
continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza. (MIGNOLO,
2005, p. 36).
A naturalização das diferenças foi uma estratégia para construir essa história única
traçada pelo eurocentrismo e também um instrumento da colonialidade. Como diz Adichie
(2009), “É assim que se cria uma única história: mostre um povo como coisa, como somente
coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão”.
Tal concepção se fortalece dessa tentativa de imposição de uma história única, em que
povos são pensados fora da sua humanidade e da sua sabedoria, transformando diferenças
culturais em naturais na tentativa de evitar questionamentos e contestações, pois os europeus
seriam naturalmente superiores, escolhidos por um deus que é o único verdadeiro. Logo, estes
são evoluídos e, sempre na perspectiva positiva dos dualismos criados, eram os civilizados,
científicos, racionais e modernos, enquanto que os colonizados seriam tradicionais,
irracionais, demoníacos e míticos, por serem naturalmente inferiores.
36
Nesse contexto, a raça aparece como uma categoria mental da modernidade, sendo
estabelecida juntamente à identidade racial como instrumento de classificação social da
população, pois os colonizadores codificaram como cor traços fenotípicos dos colonizados e
associaram esses aspectos à inferioridade desses povos. Tal noção de raça construída na
modernidade não teria história conhecida antes da América e possibilitou, nesse contexto,
identidades sociais historicamente novas, como índio, negro, mestiço, europeu (QUIJANO,
2005).
Irei argumentar que a identidade em política é crucial para a opção descolonial, uma
vez que, sem a construção de teorias políticas e a organização de ações
fundamentadas em identidades que foram alocadas (por exemplo, não haviam índios
nos continentes americanos até a chegada dos espanhóis; e não havia negros até o
começo do comércio massivo de escravos no Atlântico) por discursos imperiais [...]
pode não ser possível desnaturalizar a construção racial e imperial da identidade no
mundo moderno em uma economia capitalista. As identidades construídas pelos
discursos europeus modernos eram raciais (isto é, a matriz racial colonial) e
patriarcais. (MIGNOLO, 2008, p. 289).
A população trabalhadora com menos acesso aos bens sociais tem sido o público-alvo
da educação profissional no Brasil, assim como em todas as antigas colônias modernas.
Quando se fala em grupos menos favorecidos socialmente, estamos falando majoritariamente
da população afrodescendente e de trabalhos que ficaram destinadas a esse segmento. A
colonialidade mostra toda a sua força!
A seguir, teremos por foco as relações raciais na sociedade brasileira, o modo como
foram tecidos e tramados nossos racismos, bem como as possibilidades questionadoras e
atuantes no sentido de desmistificar tais discriminações aspectos da descolonialidade.
pois não se regula pela lei, não se assume publicamente. (SCHWARCZ, 2012, p.
32).
A racialização das relações de poder mostra que, se, por um lado, não existem raças
humanas, não apresentando relação entre nosso fenótipo, intelectualidade e diferencial
biológico, por outro ângulo, as sociedades coloniais se gestaram usando práticas racistas para
justificar relações de poder e tecer suas representações sociais. Desse modo, pensar a
diversidade racial brasileira não significa celebrar a mestiçagem. Não somos um todo
harmônico, mas somos fruto de relações extremamente desiguais, sendo o racismo, ainda
fortemente presente, uma faceta das distinções sociais criadas desde a colonização e que ainda
funcionam como mecanismo para desqualificar grande parcela da população do país.
A necessidade de questionar/subverter as bases coloniais, de desvelar nossos racismos
e de possibilitar a educação para a diversidade que contemple nossas diferenças, urge na
educação brasileira. Na contramão dessa possibilidade, existe todo um arcabouço
epistemológico eurocêntrico que desqualifica esses estudos e questiona a necessidade dessa
abordagem no âmbito universitário e na atuação docente em geral.
Questionando esse modo de pensar a ciência, Gauthier (2012) enfatiza que devemos
pluralizar a noção do científico, questionar e ampliar conceitos e que isso não significaria
negar a cultura europeia, mas enfatiza que algumas estratégias ajudariam a problematizar essa
universalização: entre os exemplos apontados pelo autor está a qualificação das ciências
ocidentais como “eurodescendentes”. Assim, esse saber assumiria o particularismo que
significa no âmbito do conhecimento, bem como os saberes chamados “afrodescendentes” e
“indígenas”: considerados também ciência, os saberes “eurodescendentes” não poderiam ser
vistos como universais.
Guimarães (2009) aponta o uso do conceito de “raça” nos trabalhos sobre relações
raciais na atualidade como algo inquietante, tendo em vista a constatação científica de que não
existem subdivisões na espécie humana. Porém, afirma que essa constatação teria contribuído
para a construção da nacionalidade, uma vez que a abordagem racializada da ciência, herdeira
do século XIX, representava uma dificuldade para os “construtores” da nação. Essa
desracialização fortalecia a ideia de que éramos uma democracia racial. Então, não existindo
raça, importava apenas a classe social. Em contrapartida, o autor destaca que, sendo a nossa
miscigenação “pigmentocrática”, escondida no uso da classe, como principal distintivo social,
44
estava o caráter racialista das distinções de cor. Desse modo, o antirracialismo se entranhava
na ideia de democracia racial cumprindo uma função obscurecedora e manipuladora que
passou a incomodar, sobretudo, uma parcela da população afrodescendente que não queria ser
benevolamente embranquecida por essa terminologia cromática.
Como aponta Hall (2003, p. 69), raça é uma construção política e social. “É uma
categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de
exploração e exclusão – ou seja, o racismo.” Então, se não existem raças do ponto de vista
biológico, não podemos negar que a nossa formação social foi marcada por relações raciais
nada harmônicas, desconstruindo, então, o mito da democracia racial.
Nesse contexto, a/o afrodescendente foi estigmatizada/o não só quando da sociedade
escravista. No pós-abolição, a ideologia do branqueamento como norte civilizacional teve um
rebatimento avassalador perante a autoestima dessa população. Nessa perspectiva, Munanga
(1999, p. 110) destaca a importância dos movimentos desses sujeitos na contemporaneidade,
para os quais a construção da identidade dos excluídos supõe “[...] o resgate de sua cultura, do
seu passado histórico negado e falsificado, da consciência de sua participação positiva na
construção do Brasil, da sua cor da pele inferiorizada, ou seja, a reparação de sua negritude.”
A identidade das/os afrodescendentes não pode ser entendida de forma homogênea,
em que, uma vez posicionados como tal, todas/os entendam e sintam a sua imagem da mesma
forma. Concordamos com Hall (2011, p. 108) quando ele defende a concepção de que
[...] as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia,
cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem
cruzar ou ser antagônicos. As Identidades estão sujeitas a uma historicização radical,
estando constantemente em processo de mudança e transformação.
situações de autoritarismo e ditadura, os grupos que lutam pelo direito à diferença se unem,
construindo discursos que parecem uniformizar uma identidade, essa pode ser uma estratégia
de luta, mas não uma realidade viável em uma sociedade democrática.
Para Gomes (2010, p. 508), tais intelectuais seriam “[...] sujeitos capazes de interpretar
e pressionar a entrada para o campo do conhecimento científico de formas de saber e conhecer
produzidas em um universo sociopolítico-cultural que tem a sua história enraizada em um
contexto de violência, opressão e luta.” Exemplificando essa realidade multifacetada da
identidade negra no contexto acadêmico/universitário, o autor aponta diferentes formas de
atuação desses indivíduos, possibilitando um olhar plural para o seu sentimento de
pertencimento e o seu campo de atuação.
Diante da realidade acima exposta, exemplificamos mostrando que, se nos anos 1980 e
1990 existia, de modo majoritário, uma pequena gama de afrodescendentes que adentravam
ao mundo universitário, tendo uma trajetória fortemente ligada a um engajamento nos
movimentos sociais, esse número, na atualidade, vem crescendo, mas muitos desses
intelectuais optam por questionar as relações raciais apenas no âmbito universitário, não se
vinculando diretamente aos movimentos sociais, existindo, portanto, diferentes maneiras de
ser intelectual afrodescendente, como é o caso de outros intelectuais de outros grupos. Assim,
apontamos para o desafio do diálogo entre sujeitos de um mesmo segmento que ocupam
diferentes lugares na universidade e na sociedade, de modo que essa característica representa
um caráter desafiador, inovador e diatópico (GOMES, 2010).
Vemos essa percepção dessas múltiplas identificações como uma possibilidade de
demonstrar nossa humanidade e nossa diferente inserção nas lutas sociais e no rebatimento
daquilo que afeta nosso cotidiano. Aquilo que nos atravessa cria potência de agir,
impulsionando-nos a mudar, lutar, questionar, e não pode ser entendido como
necessariamente igual só porque somos afrodescendentes. Nossa diferença é nossa riqueza, e
demonstrar diferentes modos de ser afrodescendente pode ser também lido como uma
conquista da luta democrática pelo direito à diferença.
Corroborando o pensamento de Gomes (2010), Hall (2011) e Silva, T. (2011) abordam
as relações de poder que atravessam a identidade e a diferença como processos de produção
social. Este último destaca a diferença de três estratégias pedagógicas em seu trato com a
diversidade. A primeira seria a “liberal”: que estimularia a boa vontade, tendo em vista que a
natureza humana tem uma variedade cultural em sua formação e que todas/os merecem
respeito, além de que a prática pedagógica se voltaria para possibilitar o contato com o
diferente. Segundo o autor, o problema dessa abordagem seria que, ao valorizar a natureza
46
humana, ela deixa de lado as relações de poder e o processo pelo qual acorrem as
diferenciações. A segunda estratégia é chamada de “terapêutica”, por atribuir a rejeição da
diferença a distúrbios psicológicos. Como estratégia pedagógica, a/o aluna/o deveria ser
corrigida/o por meio de atividades que possibilitassem um repensar das suas atitudes. Na
terceira proposta, que é a abordagem defendida pelo autor (SILVA, 2011) como apropriada
perante a sua defesa teórica, consistiria em pensar a identidade dentro do currículo como uma
questão política, procurando captar a produção das identidades e das diferenças dentro do
fazer das diferentes instituições. Assim, a prática pedagógica, mais do que reconhecer e
celebrar, deve proporcionar questionamentos, possibilitando subversão das construções
identitárias existentes.
A prática pedagógica entendida como práticas sociais, organizadas para concretizar
expectativas educacionais, tendo como objetivo a realização de processos pedagógicos
(FRANCO, 2016), deveria deixar nítidas as relações de poder presentes na sociedade,
promovendo uma postura questionadora de posicionamentos tidos como naturais e
verdadeiros. Entendemos poder em concordância com Foucault (1982, p. 183), que diz:
Desse modo, tal concepção tem que ser algo reconhecido tanto por quem diz a ela pertencer
como pelo reconhecimento externo a esse sentimento de pertença.
Essa demarcação das diferenças faz parte de um momento de luta pelo reconhecimento
delas, em que as chamadas “minorias sociais” vêm saindo dos seus guetos em um
autorreconhecimento e lutando pelo reconhecimento social, o que pode ser observado nas
políticas públicas contemporâneas. Segundo Oliveira (2006, p. 35),
Para Magnoli (2009), o multiculturalismo teria levado para outro plano um problema
que a ciência teria resolvido. Assim, uma vez que esta comprovou a inexistência de raças, a
sociedade deveria não pensar mais de forma racializada e, uma vez democrática, não deveria
mais criar barreiras que nos fizessem agir como sujeitos racializados. Dessa forma, o teórico
defende que o multiculturalismo jogou para o plano da cultura questões que antes eram
biologizadas, como a ideia de raças humanas. Não havendo raças humanas, o autor afirma
que, em sociedades democráticas, as políticas de “preferências raciais” seriam uma afronta ao
estado democrático de direito.
Um ponto importante a ser destacado nessa crítica ao multiculturalismo é o sentido
vazio do termo quando usado sem a devida explicação do seu significado. Nessa perspectiva,
Hall (2003) aponta o fato de a expressão ser usada hoje universalmente, sem, portanto, ser
acompanhada do devido esclarecimento sobre o seu sentido. Desse modo, o referido autor
diferencia, inicialmente, multicultural de multiculturalismo: o primeiro seria um vocábulo
qualificativo, enquanto que o segundo faz referência às estratégias e às políticas usadas para
administrar questões presentes nas sociedades que são assim caracterizadas. Assim, haveria
“multiculturalismos”. Como exemplos, o teórico destaca o conservador, o liberal, o pluralista,
o comercial, o corporativo e o crítico ou revolucionário, modos administrativos para
realidades de múltiplas culturas coexistentes.
Concordamos com o historiador Le Goff (1990) quando ele diz que a mentalidade é
aquilo que muda mais lentamente. Essa afirmativa pode ser facilmente observada quando
refletimos sobre as raízes racistas ainda presentes na mentalidade nacional como resultado de
seu passado colonial escravocrata. Desse modo, entendemos que o posicionamento de
Magnoli (2009) faz querer que, como um passe de mágica, após a descoberta de que não
existem raças humanas, não se problematizem mais as relações raciais, esquecendo-se de
levar em consideração o fato de que, se não existem raças no sentido biológico, existem
relações raciais nada harmônicas e difíceis de serem apagadas nas mentalidades e nas práticas
sociais.
A existência desses vínculos tecidos pelos racismos da colonialidade nos leva a inferir
que a igualdade de oportunidades defendida pela população afrodescendente, e não aquela em
termos de sermos semelhantes, é ainda uma luta a ser alcançada, e no meu entendimento, não
dá para pensar teoricamente, por mais louvável que seja, sem levar em consideração o
contexto real vivido pelos homens e pelas mulheres no seu cotidiano.
Dados em relação à população afrodescendente no Brasil podem ser vistos como um
termômetro dessa exclusão. As informações do Ministério da Educação sobre analfabetismo
mostram que, apesar de algumas melhorias, a relação de desproporcionalidade entre
escolaridade e raça/cor ainda é acentuada. Segundo o PNAD (2016), entre os autodeclarados e
erroneamente chamados brancos o total de analfabetos é 4,2%, já para os que se autodeclaram
pretos e pardos o índice vai para 9,9 %, mais que o dobro dos primeiros citados. Quanto mais
o nível de educação vai se complexificando, maior é a diferença. Entre a população com 25
anos ou mais, apenas 8,8% dos autodeclarados pretos e pardos apresentam curso superior
completo, enquanto que, para os brancos, esse percentual vai para 22,2%, mostrando que
ainda temos um longo caminho a percorrer.
Esses dados são ainda mais afunilados quando o assunto é o número de professores/as
negras/os dentro das instituições federais brasileiras, como informa Linhares (2010) em sua
tese sobre políticas públicas e inclusão social na América Latina o autor constata que, na
Universidade de Brasília (UNB), dos 1.400 docentes, apenas 14 são afrodescendentes, ou seja,
apenas 1% do total. Entre as seis principais universidades do Brasil (Universidade de São
Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade de
Brasília (UNB)), esses dados são ainda menores: apenas 0,6 % das/os educadores/as são
afrodescendentes.
50
Tudo tem suas histórias, não é diferente com a educação. Pensar ações educativas no
Brasil perpassa pelo entendimento de um tecido de diferenças e de desigualdades que
caracterizam a sociedade brasileira. Se a política educacional “[...] diz respeito às decisões
que o poder público, isto é, o Estado, toma em relação à educação” (SAVIANI, 2008, p. 7),
pensá-la no contexto do nosso país no que se refere à educação para as relações raciais, que
tem as relações sociais como alicerce, ajuda-nos a perceber outras facetas das desigualdades
em nossa nação.
Muitas/os brasileiras/os costumam se orgulhar de ser uma “democracia racial”, em que
todas/os seriam tratadas/os com igualdade: sua cor não representaria distintivo social. O Brasil
seria o “país do milagre”. Quase quatro séculos de escravização de africanas/os e
afrodescendentes, com proibição de pertencerem aos sistemas de ensino formal do país
(Decreto n.º 1.331, de 17 de fevereiro de 1854), proibição de aquisição de terras (Lei n.º 601,
de 18 de setembro de 1850), proibição de exercer, com liberdade, suas religiões (Constituição
de 1824, Artigo 5º), tantas e tantas proibições nem sempre obedecidas, conseguiram ainda
fazer de nós brasileiras/os uma “democracia racial”, em que pertencimento racial e cor da pele
não comprometem o acesso às oportunidades sociais, em que todas/os sabem o seu lugar e,
assim, conseguem viver em harmonia, ordem e progresso. Puro milagre ou grande mentira
nacional? Discurso de uma história única? A quem ela serve? Quem nos contou ela? Outras
histórias podem e devem ser contadas? Outras já estão sendo contadas.
Em uma sociedade de base escravocrata como a nossa, a diferença entre o trabalho
manual e o intelectual representava também um distintivo social. Na colônia, afazeres práticos
52
negação da humanidade, inclusive por parte da Igreja Católica, era a percepção de que esses
sujeitos não tinham alma, pois seriam descendentes de Cam, filho amaldiçoado por Noé,
destinado a ser servo de seus irmãos. Essa construção mirabolante justificava a dita
inferioridade também como um castigo divino: note-se que a conversão ao catolicismo era
uma das estratégias da colonização, mas isso não interferiu na escravização de pessoas
Quanto aos povos indígenas, eles também passaram por tal processo de escravização,
aspecto pouco enfatizado pela historiografia, conforme traz Monteiro (2000, p. 105):
existente no império, o que, por meio dos dados obtidos, pode dar uma noção da situação do
público letrado. No que tange ao Maranhão, por exemplo, de uma população de 359.040
habitantes, 284.101 eram livres e 74.939 eram escravos; quanto à amostra potencialmente
leitora, 44.375 homens e 24.196 mulheres sabiam ler (SENRA, 2012).
O censo apontava os limites da leitura para a população, constituída em grande parte
por escravizadas/os, os quais eram proibidas/os legalmente de matrícula, bem como de
frequentar as escolas estatais; e por mulheres que eram educadas para cuidar do marido e dos
filhos e, quando muito, deveriam aprender a ler e a escrever e a executar as chamadas prendas
domésticas. Mesmo entre os homens brasileiros eurodescendentes, aos quais eram reservadas
as vagas nas faculdades, nem sempre se podia continuar os estudos, sendo provavelmente o
público alfabetizado reduzido a uma parcela muito pequena do contingente populacional.
Observamos que a possibilidade de frequentar a escola era rara, mesmo entre a
população eurodescendente, livre e masculina, público a que essa educação escolar era
destinada, bem como sinaliza os reflexos da sociedade patriarcal, machista e escravocrata que
caracterizou a colônia. Nesse escasso sistema de ensino estava proibida a presença de grande
parcela da população, incluindo africanas/os e afrodescendentes escravizadas/os.
Cabe destacar que não ter acesso a isso não significa não ter a educação como um todo
– essa é uma forma de acesso ao conhecimento acumulado e não é sinônimo de educação, que
tem um significado mais amplo. Para dar um exemplo, apesar de todas as dificuldades
encontradas pelos afrodescendentes durante os séculos de escravização formal, segundo Reis
(2012), um fato que muito impressionou os eurodescendentes durante o levante dos Malês na
Bahia, em 1835, foi a presença da circulação, pelas ruas de Salvador, de escritos árabes entre
as/os africanas/os escravizadas/os. A escrita não era só europeia como atestam os
depoimentos de escravizados apresentados por Reis no artigo: muitos aprenderam o Árabe em
escolas corânicas na África e, chegando ao Brasil, difundiam a língua e a religião islâmica
pelas ruas da Bahia.
Podemos citar também como exemplo da luta das/os afrodescendentes para que,
mesmo em condições adversas, conseguissem aprender a ler e a escrever, o exemplo da
maranhense Adelina Charuteira. Ela recebeu a alcunha de “Charuteira”, porque vendia
charutos nas ruas de São Luís; mesmo escravizada, sabia ler e escrever e usava a “liberdade”
de movimento de seu ofício e as informações que obtinha nos diferentes espaços que
frequentava como vendedora para transmitir informações e planos dos escravocratas para a
associação abolicionista Clube dos Mortos, que, dentre as suas ações, promovia fugas e
escondia escravizados. (ALBERTI; PEREIRA, 2007).
56
Os romances dessa época, século XIX, também dão indícios de como o domínio da
leitura e da escrita era considerado saber que deveria ficar restrito às elites, por meio, por
exemplo, da construção dos personagens de cada segmento social, dos quais eram esperadas
práticas específicas. Nesse contexto se insere, por exemplo, Gustavo, do romance O mulato
(1881), de Aluísio Azevedo. Nessa obra, o autor aborda o modo como os donos das casas
comerciais maranhenses aceitavam, muito a contragosto, a leitura entre os caixeiros,
chegando até a relacionar essa prática a um defeito. Esse era o caso do citado sujeito, que aos
olhos do patrão era um rapaz de grandes qualidades, mas apresentava uma grande imperfeição
moral, “[...] que era um grande biltre, um peralta que estava sempre procurando do que ler!”
(AZEVEDO, 1881, p. 36-37).
Segundo Lajolo e Zilberman (2002), essa realidade teria criado uma mentalidade
nacional na qual a prática da leitura era vista de forma mitificada – muitos achavam que ler
era coisa de doutores ou dos “santos” padres. Nesse contexto, consolidava-se ainda mais uma
divisão preconceituosa no que tange ao pensar as diversas formas de trabalho. O ofício
intelectual seria coisa da elite masculina eurodescendente, enquanto o manual, altamente
desvalorizado, seria atribuição de africanas/os, indígenas e afrodescendentes.
Nessa perspectiva, Cunha (2000a) aponta que o colégio e a residência dos jesuítas
foram também os primeiros núcleos de formação para o trabalho, por meio das oficinas de
construção de obras, ferraria, carpintaria, olaria, dentre outras, sendo a prática desses fazeres
destinada a escravizadas/os e pessoas livres pobres – de preferência, crianças e adolescentes.
É importante destacar que até a prática de ofícios passava pela diferenciação entre
aqueles voltados para homens livres e aqueles voltados aos escravizados. O modo do trabalho
executado servia também para direcionar cada um dentro da classe social pertencente. Desse
modo, Marçal e Oliveira (2012, p. 90) afirmam:
A prioridade das instituições escolares era a educação das elites, enquanto que o
ensino profissionalizante, de aprendizado de ofícios, representava também uma estratégia para
tornar os escravizados mais rentáveis aos senhores: assim, era prática frequente que estes
mandassem as pessoas por eles escravizadas aprenderem algum ofício. Em São Luís, por
exemplo, os senhores que quisessem ensinar o trabalho de ferreiro aos seus escravizados
poderiam procurar José Ferreiro, na Praça do Portinho, pois ele recebia discípulos para
ensinar esse fazer. (DINIZ, 2005).
No Império, com o país independente, não observamos mudanças significativas no
montante dos investimentos educacionais, nem mudança de seu público-alvo, como aponta
Saviani (2008, p. 9). O autor coloca que, “[...] durante os 49 anos correspondentes ao Segundo
Império, entre 1840 e 1888, a média anual dos recursos financeiros investidos em educação
foi de 1,80% do orçamento do governo imperial, destinando-se para a educação primária e
secundária a média de 0,47%.” Esse dado demonstra que mesmo o pouco capital para o setor
tinha o foco concentrado nas recentes faculdades de Direito e de Medicina criadas no período,
que voltavam seu atendimento aos filhos das elites, que antes precisavam necessariamente
estudar em universidades europeias.
Esses acadêmicos de Direito e de Medicina seriam “os eleitos da nação”, que, não por
mero acaso, sairiam do seio das elites rurais dominantes. De acordo com Schwarcz (1993),
essas faculdades se transformariam em pouco tempo em sede desse grupo. Não era só uma
questão de formar bacharéis para o mercado de trabalho em áreas de atuação específica: das
fileiras dessas faculdades sairiam grande parte dos políticos brasileiros, como deputados,
governadores, senadores e ministros que governariam a nação e que representariam,
sobretudo, os interesses das elites às quais se filiavam. Além do mais, estaria nas mãos desses
futuros profissionais a responsabilidade de fundar uma nova imagem do país independente.
Antes de serem mestres em erudição inquestionável, o que se pretendia era formar uma elite
independente e desvinculada da antiga metrópole portuguesa – daí o prestígio e a forte carga
simbólica desses bacharéis com seus saberes da metrópole.
A educação escolar fortalecia/fazia parte das dicotomias sociais que marcavam a
presença de diferentes mundos e de distintas possibilidades sociais, o que tornava o mundo da
academia não comunicável com o âmbito do trabalho, como traz Santos (2013) ao falar como
a hegemonia da universidade não pode ser pensada fora da relação entre educação e trabalho.
Essa tentativa inicial de criação de uma companhia de artífice não teria vingado, tendo
vida fugaz devido à incipiente industrialização, com carência de maquinário e de mão de obra
especializada e com uma economia predominantemente ainda agroexportadora. Outro
momento que se destaca é entre os anos de 1840 e 1865, em que foram criadas, pelo Império,
10 casas de educandos artífices, uma em cada capital da província. De acordo com Cunha
(2000a, p. 113), essas entidades foram “[...] autorizadas por leis das assembleias provinciais
legislativas; sua clientela era constituída, predominantemente, de órfãos e expostos, o que as
fazia serem vistas mais como ‘obras de caridades’ do que como ‘obras de instrução pública’.”
Os objetivos dessas iniciativas voltadas para o ensino de ofícios estavam associados à
ideia de que ajudariam à camada menos favorecida a imprimir motivação para o trabalho,
evitariam o desenvolvimento de ideias e ações contrárias à ordem pública e contribuiriam para
a formação de trabalhadores motivados e ordeiros como mão de obra qualificada para as
fábricas, bem como possibilitariam que esses recebessem melhores salários (CUNHA, 2005).
Cabe evidenciar, nesse contexto, o Decreto n.º 1.331 (BRASIL, 1854), que dá indício
dos desprivilegiados do sistema educacional, em que aspectos que envolvem a questão racial
estavam em voga direcionando acessos e exclusões. Isso é tão verdadeiro que, por meio dessa
determinação, era proibida a presença de escravizados matriculados ou apenas frequentando
escolas públicas. Ou seja, a educação não era para todos, de modo que, dentre os privilegiados
para o ensino público, africanos e afrodescendentes escravizados não estavam contemplados,
mas, sim, expressamente proibidos. Quanto aos afrodescendentes livres, nascidos cativos ou
não, o que significaria ter esse pertencimento racial em uma sociedade em que a escravização
de pessoas estava diretamente ligada à sua ancestralidade e à cor da pele?
O ensino profissional, como iniciava estatal, nascia com um cunho assistencialista,
destinado a uma determinada parcela da população, a menos favorecida economicamente,
como uma estratégia para manter o controle social em uma sociedade carregada de
desigualdades e com grandes possibilidades de conflitos em um momento de reorganização
social e da produção, tendo em vista o processo abolicionista e o posterior rearranjo para um
mercado baseado na força de trabalho livre.
Essas propostas de profissionalização no pós-abolição foram úteis ao poder instituído
no processo de transição do trabalho escravo para o livre, pois ajudaram as elites a encontrar
alternativas sem perder o controle, pois a libertação dos escravizados trouxe novos desafios.
Segundo Marçal e Oliveira (2012, p. 91), um desses obstáculos foi
60
A criação dessas instituições, que contou nesse momento inicial com a determinação
da construção de 19 escolas espalhadas pelos diferentes estados da federação, foi iniciativa do
governo do então presidente Nilo Peçanha. Eram entidades destinadas a promover a
profissionalização gratuita, com o objetivo de, segundo o decreto n.º 7566, de 23 de setembro
de 1909, “formar cidadãos úteis à nação”.
Cabe destacar um ponto importante apontado por Cunha (2005): o caráter de barganha
e de troca de favores entre o Governo Federal e os governos estaduais com a criação dessas
escolas. Mais que suprir uma força de trabalho para a nascente industrialização, elas
constituíram um meio de troca política entre as oligarquias, tendo em vista que, uma vez
mantidas pelo poder público nacional os gastos com salários e verbas destinadas à
manutenção dessas organizações representavam um aporte econômico para as administrações
estaduais, além de toda a distribuição de cargos públicos e de vagas destinadas aos alunos ser
também utilizada como peça para barganha eleitoral.
Essa perspectiva de educação como privilégio de poucos, deixando bem delimitado
para esses “poucos” qual deveriam ser os espaços ocupados pelas elites e os destinados às
camadas populares, está totalmente interligada às heranças de uma sociedade que por tantos
séculos se constituiu tendo por base a mentalidade escravocrata e racista. Assim, em nosso
país republicano, quando falamos de classes desfavorecidas, estamos nos referindo
62
Observamos, então, que existiam estratégias de luta por aspectos que os trabalhadores
entendiam importantes de serem alcançados para além dos ditames governamentais, tanto que
é enfatizada a presença do movimento operário, sendo ela importante no entendimento de que
a classe trabalhadora lutou pelos direitos alcançados, de modo que as conquistas advindas das
leis trabalhistas não foram um benefício estatal, mas fruto de lutas sociais e apropriações
governamentais.
No sentido de entender o jogo de interesses que envolvia a relação de Vargas com a
classe trabalhadora, é importante perceber que as ações para fortalecer a ideologia do
trabalhismo, para serem eficientes, não poderiam se limitar aos setores políticos e
econômicos. No âmbito cultural também foram criadas estratégias. Nesse sentido, a música
popular tanto foi usada como meio para conquistar a camada popular como também sofreu
forte repressão quando não se deixava enquadrar nos interesses governamentais.
Como afirma Novaes (2001), os ideólogos e propagandistas do Estado Novo (1937-
1946) sabiam o que faziam, e a escolha do samba como canal para aproximação e conquista
das camadas populares não foi por acaso. Tal ritmo estava intimamente ligado ao gosto
popular, por falar do povo, das suas dificuldades, das suas necessidades, das suas expectativas
e dos seus sonhos. Porém, estava muito relacionado à figura do malandro e à relação que
essas classes tinham com as suas expectativas de vida, o que também se configurava, por
meio das letras dos sambas, em denúncias sociais, aspecto que precisava ser “polido” pelo
crivo da censura.
pelo exame da censura: as canções mais apreciadas pela política governamental e que
geralmente ganhavam os concursos promovidos pelo Estado eram aquelas que se
enquadravam na ideologia do trabalhismo, valorizando o trabalho, a família e as belezas
naturais da nação, desprestigiando, de certa forma, a malandragem, a boemia, o linguajar do
morro, temas muito cantados pelos sambistas cariocas. Como exemplo, podemos citar trechos
do que foi considerado o primeiro samba-exaltação, Aquarela do Brasil, composto em 1939
por Ary Barroso:
O “cadinho das raças” aparecia como uma versão otimista do mito das três raças
mais evidente aqui do que em qualquer outro lugar. “Todo brasileiro, mesmo o alvo,
de cabelo, traz na alma, quando não na alma, no corpo, a sombra, ou pelo menos a
65
como uma resposta do capitalismo, mas, sim, da má gestão dos negócios públicos, o que
resultaria em uma elite despreparada, de forma que o papel dessa perspectiva que surgia seria
preparar a elite econômica para uma diversificada atuação social. Em outro viés de análise
estavam os que defendiam um liberalismo igualitarista, dentre os quais se destacou Anísio
Teixeira, para quem a escola era um microcosmo da sociedade que deveria orientar para a
democracia, a cooperação e a igualdade. Para os defensores dessa perspectiva igualitária,
deveria ser mudado o caráter da educação profissional. Nesse sentido, Cunha (2005, p. 229)
aponta que, para esse segmento, seria necessário “[...] evitar que ela continuasse sendo um
instrumento para encarnação do dogma feudal da predestinação, ou seja, para a perpetuação
da divisão da sociedade em classes. Toda educação precoce (para criança e adolescente)
deveria, portanto, ser eliminada”.
No sentido de combater o ensino de um modo compartimentado que perpetua a
divisão da sociedade em classes, a crítica destacava a presença de sistemas educacionais
brasileiros antagônicos, excludentes e que feriam a democracia. O acesso ao nível secundário
seria um ponto importante nessa diferenciação, de forma que a sua unificação evitaria a
clássica separação entre trabalhadores manuais e intelectuais, tendo em vista que o modo que
vinha sendo feito e dividido reforçava estruturas coloniais e não democráticas.
Durante o Estado Novo (1937-1946), foram criadas as Leis Orgânicas do Ensino,
também conhecidas como Reforma de Capanema, a qual tentou organizar o então chamado
Ensino Profissional em três áreas da economia:
Tabela 1 – Diplomados com 10 anos e mais na população brasileira segundo a cor, em 1950
Cursos realizados
Cor
Elementar Médio Superior
Chamados brancos 4.523.535 928.905 152.934
84,10% 94,22% 96,87%
Chamados mulatos * 551.410 41.410 3.568
10,25% 4,20% 2,26%
Chamados negros* 228.890 6.794 448
4,26% 0,69% 0,28%
Chamados amarelos* 74.652 8.744 924
1,39% 0,89,00% 0,59,00%
5.378.487 985.853 157.874
TOTAL
100,00% 100,00% 100,00%
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (apud SCHWARCZ, 2012).
*Para fins de consistência, tais segmentos compõem a população reconhecidamente afrodescendente.
Esse debate sobre o acesso à educação vinha sendo feito em um momento em que a
industrialização se intensificava no Brasil, o que tomou maior proporção, sobretudo, em
decorrência da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da “substituição de importação”,
aumentando o número de indústrias nacionais e trazendo juntamente a essa realidade a
necessidade de trabalhadores qualificados para atender a tal demanda que se avolumava.
Nesse contexto, Caires e Oliveira (2016) destacam a existência de três diferentes
frentes de ações por parte do governo brasileiro direcionadas à educação profissional. A
primeira seria a criação, em 1942, do Serviço Nacional de Aprendizagem dos Industriais
(SENAI) e, em 1946, do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC).
O SENAI e o SENAC foram instituições criadas com a participação dos industriais e
organizadas pela Confederação Nacional do Comércio para atender às demandas de
qualificação para o trabalho nos diferentes níveis de profissionalização, tendo por intuito
capacitar, de forma rápida, um grande número de operários para os setores de produção, de
modo a formar aprendizes para a indústria e o comércio em articulação com a iniciativa
privada. (BATISTA, 2015).
A segunda frente foi a reforma do ensino, denominada de Capanema e conhecida
como Leis Orgânicas, a qual criou cursos técnicos e possibilitou a Educação Profissional
atrelada ao Ensino Médio. No entanto, essa legislação limitava a possibilidade do acesso ao
nível superior aos que finalizavam o ensino básico: aqueles que concluíssem a
68
Observamos, então, que as diretrizes para tal abordagem nesse período, iam de
encontro à “ideologia do trabalhismo”, na qual o Estado procurou, por meio de ações
desenvolvimentistas, como favorecer a entrada de multinacionais, aplicar um projeto
econômico, tanto quanto possível, ao sabor dos interesses das elites dominantes. Logo,
preparar para o mercado de trabalho também significava, nesse contexto, disciplinar para o
mercado, sufocando conflitos e lutas sociais e tornando, sempre que possível, o trabalhador
dócil e colaborador, fazendo-o “vestir a camisa da empresa”. Tudo isso mesclava,
perigosamente, a ideia de patriotismo e de luta pelo bem comum da nação, mascarando todo
um jogo de poder em que governo e burguesia se afinavam.
No sentido de perceber os meandros dessa valorização do trabalho, Gomes (1988)
aponta que
Cabe novamente destacar que as camadas populares não eram meros objetos ou
joguetes ao bel prazer das elites. Esse foi um momento em que se destacou a luta do
movimento operário pelos direitos dos trabalhadores – tanto que vários direitos trabalhistas
adquiridos durante o período do governo de Vargas, como, por exemplo, jornada de oito
69
Um exemplo de iniciativa de luta relacionada à questão racial no país nesse período foi
a criação da Frente Negra Brasileira (FNB), em 1931, que buscava a inserção do
afrodescendente na sociedade brasileira por meio do acesso à educação e ao mercado de
trabalho, tendo, segundo Pereira, A. (2013, p. 31), “[...] como principais características a
busca pela inclusão do negro na sociedade, com caráter ‘assimilacionista’, sem a busca de
transformação da ordem social; outra característica era a existência de um nacionalismo
declarado”.
A FNB, quando surgiu, contou na liderança com sujeitos como Arlindo Viega dos
Santos e colaboradores como José Correa Leite, Isaltino Veiga dos Santos, Gervásio de
Moraes e Jayme de Aguiar, dentre outros atuantes no Centro Cívico Palmares. Teve a
possibilidade de expressar seus objetivos e suas ações em jornais como “O clarim d’
alvorada” e “A voz da raça”. Teve vários departamentos: instrução e cultura, musical, de artes
e ofícios, de imprensa, médico, esportivo, jurídico social, doutrinário e de comissão de moços,
havendo entre os ofícios oferecidos aos filiados a presença de consultório dentário, salão de
barbeiro e cabeleireiro. A iniciativa realizou festivais, concursos, cursos de alfabetização
visando ao desenvolvimento do que chamava de “gente negra” (GOMES, 2005).
Tal Frente teve milhares de pessoas entre seus membros, com filiados em quase todos
os estados da federação. Incorporou o discurso assimilacionista pró-mestiçagem, entendendo
a realidade de preconceito e discriminação vivida por afrodescendentes como consequência da
escravização. Isso teria gerado um despreparo moral e educacional, negando, portanto, a ideia
de democracia racial brasileira. Por outro lado, a FNB se distanciava de elementos da cultura
desses povos. Seu objetivo não era apenas denunciar o racismo, mas aproximar seus filiados
de expectativas mais amplas, como cidadania e participação social (GOMES, 2005).
70
Para Cunha (2000b), tal legislação foi decisiva no sentido de transformar os cursos
básicos e industriais, os quais apresentavam, até então, um conteúdo voltado para a
profissionalização, sendo quase que exclusivamente técnicos, e passaram, com as
necessidades exigidas por tal norma, a apresentar um conteúdo cada vez mais geral, que
deveria incluir as disciplinas do ginásio.
Em 1959, o então presidente Juscelino Kubitschek reformou o chamado Ensino
Industrial, sendo um aspecto principal dessa regulamentação a descentralização das Escolas
Técnicas Federais. Desse modo, as Escolas Industriais da Rede Federal do Ministério da
Educação não mais formariam um sistema (ou uma rede), pois passariam a gozar de
autonomia didática, financeira, administrativa e técnica, com personalidade jurídica própria.
Porém, o Governo não perdeu totalmente seu controle sobre elas, pois era competência da
Diretoria do Ensino Industrial a distribuição dos fundos necessários ao funcionamento delas,
além de deter a prerrogativa de instituir as diretrizes gerais dos currículos e preparar o
material pedagógico (RODRIGUES, 2002).
71
Foi nesse contexto que se iniciou, em 1959, o processo de transformação das então
Escolas Industriais e Técnicas em Escolas Técnicas Federais. Segundo a Lei n.º 3.552, de 16
de fevereiro de 1959 ( BRASIL, 1959), seria objetivo dessas instituições proporcionar base de
cultura geral e iniciação técnica que possibilitasse ao educando se integrar à comunidade e
participar dos trabalhos produtivos ou prosseguir nos estudos, bem como preparar o jovem
para o exercício de atividade especializada de nível médio (BRASIL, 1959).
O Governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) avançou no tocante à articulação do
então Ensino Profissional como estratégia de desenvolvimento, a qual associava a
modernização ao progresso técnico, contribuindo para certa valorização da profissionalização
sem romper com a simbologia de essa ser uma modalidade destinada às camadas populares
(BRASIL, 2012).
Em 1961, foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), n.º 4024/1961. Em relação ao então chamado ensino técnico, o Capítulo III
estabelece as seguintes normas:
Art.47. O ensino técnico de grau médio abrange os seguintes cursos:
a) industrial;
b) agrícola;
c) comercial.
Parágrafo único. Os cursos técnicos de nível médio não especificados nesta lei serão
regulamentados nos diferentes sistemas de ensino.
Art. 48. Para fins de validade nacional, os diplomas dos cursos técnicos de grau
médio serão registrados no Ministério da Educação e Cultura.
Art. 49. Os cursos industrial, agrícola e comercial serão ministrados em dois ciclos:
o ginasial, com a duração de quatro anos, e o colegial, no mínimo de três anos.
§ 1º As duas últimas séries do 1° ciclo incluirão, além das disciplinas específicas de
ensino técnico, quatro do curso ginasial secundário, sendo uma optativa.
§ 2º O 2° ciclo incluirá além das disciplinas específicas do ensino técnico, cinco do
curso colegial secundário, sendo uma optativa.
§ 3º As disciplinas optativas serão de livre escolha do estabelecimento.
§ 4º Nas escolas técnicas e industriais, poderá haver, entre o primeiro e o segundo
ciclos, um curso pré-técnico de um ano, onde serão ministradas as cinco disciplinas
de curso colegial secundário.
§ 5º No caso de instituição do curso pré-técnico, previsto no parágrafo anterior, no
segundo ciclo industrial poderão ser ministradas apenas as disciplinas específicas do
ensino técnico.
Art. 50. Os estabelecimentos de ensino industrial poderão, além dos cursos referidos
no artigo anterior, manter cursos de aprendizagem, básicos ou técnicos, bem como
cursos de artesanato e de mestria, vetado.
Parágrafo único. Será permitido, em estabelecimentos isolados, o funcionamento dos
cursos referidos neste artigo.
Art. 51. As emprêsas industriais e comerciais são obrigadas a ministrar, em
cooperação, aprendizagem de ofícios e técnicas de trabalho aos menores seus
empregados, dentro das normas estabelecidas pelos diferentes sistemas de ensino.
§ 1º Os cursos de aprendizagem industrial e comercial terão de uma a três séries
anuais de estudos.
§ 2º Os portadores de carta de ofício ou certificado de conclusão de curso de
aprendizagem poderão matricular-se, mediante exame de habilitação, nos ginásios
72
forma de empréstimos, bem como pelo avanço da entrada do capital estrangeiro, com
destaque para a indústria automobilística. Os pontos vulneráveis do dito “milagre” foram,
acima de tudo, a excessiva dependência ao sistema financeiro e ao comércio internacional.
Essa política econômica também facilitou a concentração de renda nas mãos de poucos, com
um regime de aumento do salário abaixo da inflação. Outro ponto negativo diz respeito ao
retardamento dos programas sociais e à falta de uma preocupação ecológica, tendo em vista
que os grandes projetos desse período desconsideravam as questões ecológicas e das
populações locais (FAUSTO, 2006).
Ao longo do período da Ditadura Militar, observamos um forte endurecimento do
regime. A censura, principalmente após o AI5, tornava-se cada vez mais cotidiana, pagando
as vozes contrárias ao regime com punições das mais diversas, desde vigilância cotidiana até
torturas, ocasionando exílios ou a perda da própria vida. No âmbito cultural, percebemos o
fortalecimento dos meios de comunicação em massa, como foi o caso da indústria televisiva,
com destaque para a Rede Globo, que recebeu apoio governamental por favorecer, de certo
modo, o regime ditatorial.
Porém, não entendemos que com o AI5 a oposição estava liquidada. Mesmo com toda
a repressão, a resistência ao regime se fez presente, sim, por meio do movimento estudantil,
do teatro engajado, da música, da guerrilha, dentre outras formas. Todas essas manifestações
demonstravam engajamento crítico à situação vigente, tornando-se redutos da resistência ao
governo.
No âmbito da educação profissional, a Lei n.º 5.692/1971 produziu um grande impacto
no ensino, por equiparar o nível secundário e os cursos técnicos, tornando compulsória a
formação técnico-profissional no segundo grau (BRASIL, 1971). Seguem abaixo trechos da
legislação:
Art. 5º As disciplinas, áreas de estudo e atividades que resultem das matérias fixadas
na forma do artigo anterior, com as disposições necessárias ao seu relacionamento,
ordenação e sequência, constituirão para cada grau o currículo pleno do
estabelecimento.
§ 1º Observadas as normas de cada sistema de ensino, o currículo pleno terá uma
parte de educação geral e outra de formação especial, sendo organizado de modo
que:
a) no ensino de primeiro grau, a parte de educação geral seja exclusiva nas séries
iniciais e predominantes nas finais;
b) no ensino de segundo grau, predomine a parte de formação especial.
§ 2º A parte de formação especial de currículo:
a) terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, no ensino de
1º grau, e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau;
b) será fixada, quando se destina a iniciação e habilitação profissional, em
consonância com as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista
de levantamentos periodicamente renovados.
74
processo teria representado “[...] um desvalor dessas instituições pela manutenção de sua
situação apartada da universidade (sem adjetivos), quer dizer, uma forma pela qual se
processa a reprodução ampliada da dualidade da educação brasileira”.
Antes de ser criado o Sistema Nacional de Educação Tecnológica em 1987, foi criado
também o Centro Federal de Educação Tecnológica do Maranhão (CEFET-MA) e, em 1993,
o CEFET-BA. Só em 1994, foi promulgada uma lei que criou essa rede, de forma que, a partir
de então, todas as Escolas Técnicas seriam transformadas em CEFET, podendo também ser
incorporadas às Escolas Agrotécnicas. A década de 1990 foi marcada pelo projeto de Lei n.º
1.603/1996 (BRASIL, 1996), que, ao seguir as orientações do Banco Mundial para a
Educação Profissional, com foco em propor mudanças, como estabelecer flexibilidade
curricular e separar a parte profissional da acadêmica, teve por objetivo favorecer os
interesses do mercado de trabalho, possibilitando a articulação entre as empresas e a educação
profissional – tudo isso articulado com a globalização capitalista e as suas propostas de livre
mercado que desembocava na tendência de descomprometer o Estado com o financiamento da
rede federal de educação (BRASIL, 2012).
Em relação aos CEFETs, as autoras Caires e Oliveira (2016, p. 121) apontam que
ocorreu um direcionamento “[...] para o atendimento ostensivo às demandas do mercado de
trabalho, negligenciando a formação do cidadão crítico, ético e comprometido com as
questões sociais”. Esses aspectos levantados se relacionam com as características do modelo
de educação defendido durante o período da Ditadura Militar no Brasil, explicando também
esse direcionamento técnico e pouco crítico da Educação Profissional nesse contexto.
Essa trajetória reforça a presença, ainda hoje, de certa elitização das universidades, as
quais se configurariam em um espaço voltado para uma elite econômica/intelectual
eurodescendente. Por outro lado, temos a noção de que a Educação Profissional Tecnológica
seria uma alternativa para as camadas populares, formadas historicamente e
significativamente por afrodescendentes, de modo que, ao terem acesso ao ensino, pudessem
também garantir uma vaga no mercado de trabalho. Lembramos aqui que os trabalhos
socialmente entendidos como típicos das classes populares já se encontravam dentro de uma
proposta de educação que pouco valorizava o questionamento delas em relação ao lugar
socialmente esperado para essa parcela da população. Apesar de todo o debate em torno dessa
perspectiva educativa durante o século XX, em que se tentou questionar, limitar ou terminar
com a dualidade no ensino, observa-se que, adentrando no século XXI, apesar dos avanços,
essa é uma questão que ainda se faz presente.
76
Uma leitura possível poderia perpassar a interpretação de que a EPT foi marcada por
uma trajetória de ter as camadas populares como público-alvo, por fazer parte de políticas
públicas que entendiam que a educação dessas classes representava fundamentalmente a
extensão melhorada de nossas senzalas. Tal perspectiva de ensino seria um modo de inserir,
de forma mais rápida, tal segmento no mercado de trabalho, ajudando fundamentalmente a
industrialização a ser possível, bem como, ao possibilitar a essa população uma fronteira
social, sem perder o controle das oportunidades proporcionadas, conseguindo não só
mecanismos de controle, mas também de ascensão social dentro dos limites da colonialidade.
Nesta seção, apresentamos algumas características gerais da EPT, desde o seu
embrião, ainda na colônia, sob a égide da sociedade escravocrata, passando pelas mudanças
que foi sofrendo ao longo do século XX. No próximo tópico, trabalharemos a Educação
Profissional para as relações raciais no contexto do Instituto Federal de Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão-IFMA, abordando as mudanças advindas nesse
contexto com a criação, em 2008, dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.
1937 Liceus Industriais Escolas que começaram a ministrar ensino industrial em nível ginasial.
1942 Escolas Industriais e Ofereciam formação profissional em nível equivalente ao secundário.
técnicas (EITs)
1959 Escolas Técnicas Autarquias com autonomia didática e de gestão.
Federais (ETFs)
4.1 Abordagem
início do século XX. Vozes dissonantes ao fazer historiográfico dessa corrente teórica não
aparecem exclusivamente a partir do movimento dos Annales. Só a título de exemplo,
podemos destacar Jacob Burckhardt, que, em 1860, escreveu o livro “A cultura do
Renascimento na Itália”. Nessa obra, ele rompe com a história política analisada pelo viés
cultural, sendo um dos percussores da História cultural. Porém, foi principalmente na década
de 1930, após o surgimento, em 1929, da revista dos Annales, liderada por Marc Bloch e
Lucien Febvre, que tomou força a crítica ao fazer historiográfico da escola metódica
(BURKE, 1997).
Bloch e Febvre lideraram a primeira geração do referido movimento e, apesar das suas
diferenças, eles se configuraram não só como fundadores, mas como referenciais para os
demais nomes ligados a esse movimento. A interdisciplinaridade, uma nova concepção de
história, de tempo histórico e de alargamento das possibilidades de fontes, foram elementos
que fizeram parte da centralidade das discussões e das propostas. Assim, de acordo com
Febvre (1989, p. 249), para escrever, os historiadores poderiam se utilizar de “[...] tudo o que,
pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a
presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.”
A nova história cultural está entrelaçada pelas conquistas, pelas preocupações, pelas
inquietações e pelas críticas geradas pelo e ao movimento dos Annales. A História cultural
nos apresenta novas possibilidades de interpretação, que, longe de buscar uma finalidade
única ou de se apegar a um viés de análise como determinante, entende tal ciência no reduto
das sensibilidades, partindo da observação de que a realidade é social e culturalmente
construída, como traz Hunt (1992, p. 9): “As relações econômicas e sociais não são anteriores
às culturais, nem as determinam; elas próprias são campos de prática cultural.”
A História Cultural volta, então, suas “lentes” para interesses variados e múltiplos, no
intuito de conseguir desvendar as teias de significados que as sociedades produzem acerca de
si e do outro. De acordo com Chartier, “[...] a história cultural, tal como a entendemos, tem
por principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler.” (1990, p. 160).
Contrária à ideia de uma História total, com ênfase na coletividade, a Nova História
Cultural, influenciada por autores como Michel Foucault, volta seu olhar à ruptura, ao
singular. Para esse novo viés, foi fundamental também sua aproximação com disciplinas
como a Antropologia e a crítica literária, resultando daí deslocamentos das estruturas para as
redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as
estratégias singulares (CHARTIER, 1994).
79
Educação Profissional Tecnológica e as suas relações com as questões raciais, entendendo que
estas são realidades culturalmente construídas e contextualizadas que se movem juntamente a
táticas e estratégias de seus participantes, permeadas de relações de poder que possibilitam
“entrelugares” marcados por questionamentos e possibilidades inovadoras.
Entendemos a investigação em concordância com Ferreira (2004, p. 28), para quem a
ciência deve se transformar em sabedoria de vida, na qual “[...] a meta voltada para a melhoria
da situação humana concreta fosse o critério fundamental da validade da pesquisa” – daí a
necessidade também de um questionamento epistêmico da ciência eurocêntrica, que construiu
uma ideia de conhecimento e método dispersando saberes e formas outras de conhecer que
não as suas. Esse literal enquadramento científico também faz parte da colonialidade do poder
(QUIJANO, 2010) e está intimamente relacionado à dificuldade de valorização acadêmica dos
estudos que têm a afrodescendência como foco.
A abordagem que será utilizada nesta pesquisa é a qualitativa, por possibilitar uma
interação dinâmica, reformulando-se constantemente. Toda discussão sobre avanços na
historiografia se fundamenta nessa perspectiva. O viés qualitativo é visto como uma relação
com a realidade na qual ocorrem processos de produção de sentido, em que pesquisador e
participantes estão envolvidos. Assim, em vez de buscar validade e fidedignidade, deve-se
enfatizar a especificidade da situação de investigação, isto é, a descrição detalhada e rigorosa
do contexto de sua realização, do caminho percorrido pelo/a investigador/a e do modo como
as suas características, os seus interesses e os seus valores incidem sobre o delineamento do
estudo e sobre as suas interpretações (FERREIRA, 2004). O que faz sentido é primordial
nessas relações.
A utilização da citada abordagem se deu pelo entendimento de que ela é a mais
condizente com a pesquisa a ser realizada, tendo em vista que não acreditamos na
quantificação de subjetividades, assim como entendemos que as relações raciais que
perpassam as noções de raça e etnia são, como diz Silva (2014), uma questão de
conhecimento, poder e identidade, elementos humanos que vão bem além da quantificação e
voltam para aspectos de práticas e interpretações.
4.2 Instituição
no Liceu Industrial de São Luís; em 1942, na Escola Técnica Federal de São Luís; e, em 1965,
na Escola Técnica Federal do Maranhão. Em 1989, esta foi transformada em Centro Federal
de Educação Tecnológica (CEFET-MA) e, em 2008, em Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA), acontecendo a integração do CEFET-MA às
Escolas Agrotécnicas Federais de Codó, São Luís e São Raimundo das Mangabeiras.
A missão institucional do IFMA é promover educação profissional, científica e
tecnológica comprometida com a formação cidadã para o desenvolvimento sustentável.
Sua visão é ser uma instituição de excelência em ensino, pesquisa e extensão, de referência
nacional e internacional, indutora do desenvolvimento do estado do Maranhão. O Instituto
tem como valores a ética, a inclusão social, a cooperação, a gestão democrática e participativa
e a inovação (IFMA, 2018).
Atualmente, a entidade possui 29 campi, sendo eles: Açailândia, Alcântara, Araioses,
Bacabal, Barra do Corda, Barreirinhas, Buriticupu, Caxias, Codó, Coelho Neto, Grajaú,
Imperatriz, Itapecuru Mirim, Pedreiras, Pinheiro, Presidente Dutra, Santa Inês, São João dos
Patos, São José de Ribamar, São Luís - Centro Histórico, São Luís - Maracanã, São Luís-
Monte Castelo, São Raimundo das Mangabeiras, Timon, Viana, Zé Doca, Carolina, Porto
Franco, Rosário. Tem três Centros de Referência Educacional (em fase de implantação), um
Centro de Referência Tecnológica (Certec) e um Centro de Pesquisas Avançadas em Ciências
Ambientais. O IFMA oferece cursos de níveis básico, técnico, graduação e pós-graduação.
(IFMA, 2018).
A opção por esse contexto se justifica por ser uma instituição que oferece Educação
Profissional e Tecnológica no estado do Maranhão, que é um dos que apresentam um dos
menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, perdendo apenas para
Alagoas, e, que é formado, majoritariamente, por afrodescendentes (negros e pardos).
Segundo o PNAD (2012), a distribuição da população maranhense por cor/raça é de: 68,1%
parda, 21,1% branca, 10,3% negra, 0,4% indígena e 0,1% amarela, aspectos que, para nós, são
importantes para problematizarmos a afrodescendência e a educação profissional tecnológica
em tempos de educação para as relações raciais, bem como por ser uma realidade que nos é
próxima, sendo eu afrodescendente, maranhense e docente do IFMA.
seleção dos participantes foi, dentre os que aceitaram espontaneamente, serem professores/as
efetivas/os tendo, no mínimo, 10 anos de trabalho na instituição. A definição desse fator se
deu para que, assim, pudéssemos melhor visualizar nosso problema de pesquisa, tendo em
vista que, com esse tempo de serviço, os profissionais vivenciaram distintas diretrizes
curriculares, podendo nos informar, com conhecimento também de suas vivências, suas
percepções em relação às mudanças propostas pela institucionalização dessas entidades
federais e suas possíveis tentativas/dificuldades de colocar em prática a educação também
voltada para as relações raciais.
A partir dos critérios especificados para a seleção dos sujeitos convidados, fizemos
contato, inicialmente, com 13 docentes que aceitaram participar das entrevistas, mas dois não
puderam efetivar participação devido à aprovação em Programa de Pós-Graduação em outro
estado, para onde tiveram de se direcionar. Tivemos, assim, a participação de 11
educadores/as na coleta de dados por meio das entrevistas, sendo eles informados previamente
da proposta da investigação e, ao assinarem o termo de consentimento livre e esclarecido,
elucidados de que não teriam seus nomes identificados. Alguns/mas enfatizaram não ver
problema com tal divulgação, dando-nos liberdade para utilizar ou não suas respectivas
identificações.
Para preservá-las, decidimos utilizar codinomes e, para isso, selecionamos nomes de
afrodescendentes de sucesso em áreas afins às das/os entrevistadas/os, ficando, então, os
seguintes codinomes para os professores/as que aceitaram participar da entrevista: André
Rebouças, Chimamanda Adichie, José do Patrocínio, Teodoro Sampaio, Maria Firmina, Luís
Gama, David Blackwell, Antonieta de Barros, Henrique Cunha júnior, Richard Appiah Akoto
e Sueli Carneiro.
83
A pesquisa envolveu docentes que atualmente atuam nos campi: São Luís - Maracanã,
São Luís-Monte Castelo e Caxias. Escolhemos, principalmente, os localizados na capital
maranhense, porque eram os que já existiam antes da expansão de 2008, de forma que, então,
tínhamos mais probabilidade de encontrar, disponíveis a participar do estudo, profissionais
com mais de 10 anos de serviço, o que foi um dos critérios da investigação. No campus de
Caxias, apesar de as/os educadores/as serem majoritariamente concursados depois da criação
do IFMA, selecionamos alguns/mas deles, tendo em vista ser esse o meu local de atuação o
que facilitou o contato com alguns servidores que já trabalhavam na rede anteriormente à
criação dos institutos federais e que foram removidos quando da criação do dessa cidade.
Dentre os que aceitaram participar, estão quatro mulheres e sete homens. Cinco
ocupam ou já ocuparam cargos de gestão, por exemplo, na Reitoria, na Pró-Reitoria, na
Diretoria Sistêmica e na Diretoria Geral de Campus; outras/os seis têm suas atividades
84
relacionadas à prática docente. Em relação à titulação, três são doutores, três são
doutorandas/os, quatro são mestres/as e uma é especialista. As áreas de formação das/os
entrevistadas/os são: Engenharia, Filosofia, Letras, Química, Pedagogia, Ciências Sociais,
Matemática, História e Informática.
As entrevistas foram realizadas em diferentes espaços, de modo que procuramos dar
prioridade aos locais onde as/os entrevistadas/os escolhessem por se sentirem mais à vontade.
Dos 11 participantes da pesquisa, cinco escolheram o espaço institucional, quatro optaram
pelos seus espaços familiares e dois preferiram ir até a minha casa para a realização das
entrevistas, alegando dificuldade de concentração tanto no ambiente de trabalho quanto no
familiar.
As conversas duraram entre 27 minutos e uma hora e 20 minutos, sendo gravadas em
áudio, com anuência dos sujeitos, de modo a ampliar o poder de registro e de captação de
elementos de comunicação, como pausas para reflexões, dúvidas ou entonação da voz, além
de aprimorar a compreensão da narrativa e preservar o conteúdo original.
Destacamos, também, o cuidado em selecionar pessoas que tivessem vivenciado
experiências profissionais em diferentes campi da instituição. Cabe destacar que, até 2008,
quando da criação dos institutos federais, a rede contava com os campi Monte Castelo,
Maracanã, Codó e São Raimundo das Mangabeiras, mas, após esse período, aconteceu uma
grande expansão pelo interior do Maranhão, conforme destaquei anteriormente. Dentre os
espaços em que as/os entrevistadas/os tiveram experiências profissionais, podemos destacar:
Monte Castelo, Maracanã, Barreirinhas, Codó, Caxias, São Raimundo das Mangabeiras,
Buriticupu, Timon e Barra do Corda. Entendemos que essa diversidade de vivências ajuda a
perceber a temática em distintas realidades. Dentre os indivíduos, apenas quatro trabalharam
sempre no mesmo local.
Na atualidade, essa vivência multicampi é muito frequente entre os/as servidores/as do
IFMA. Quando da expansão do Instituto (2008), muitos deles/as, dos campi que existiam até
então, foram convidadas/os para cargos de gestão nos novos espaços. A rotatividade entre
as/os servidores/as novas/os é intensa, tendo em vista, também, o fato de muitos serem
oriundos, principalmente, mas não só, de capitais como São Luís e Teresina.
A pesquisa viabilizou a interação entre pesquisadora e pesquisadas/os, propiciando,
juntamente à documentação institucional e ao referencial teórico que fundamenta este estudo,
o desvelamento dos objetivos propostos.
85
A pesquisa, para mim, é algo excitante: como uma boa história de amor, possibilita
encontro, desencontro, acelera o batimento cardíaco, gera novas descobertas. É sempre
criação, invenção, possui potência. A cada contato, existe a descoberta de novas
documentações e a aproximação com as/os entrevistadas/os – por meio das conversas
realizadas, vários sentimentos se encontram, gerando em nós uma teia de possibilidades e
muitos desafios.
Na busca por responder esses dilemas e essas indagações, o objetivo geral proposto
para este estudo é: compreender como o IFMA lida com as exigências da educação para as
relações raciais considerando o que regem os documentos oficiais referentes à Educação
Profissional e Tecnológica hoje. Para isso, foi realizada, inicialmente, uma pesquisa em
caráter bibliográfico, envolvendo estudos sobre a situação das/os afrodescendentes no Brasil,
identidade, raça, poder, educação profissional tecnológica, epistemologias, prática educativa,
dentre outros aspectos. Tal levantamento consiste na busca por referenciais relevantes sobre a
temática investigada, o que apresenta essencialmente a função de discorrer informações sobre
o problema do estudo na busca pelo aprofundamento das ideias, objetivando responder
questionamentos e discutir problemáticas que subsidiarão a análise dos dados advindos da
pesquisa de campo.
As fontes utilizadas para acessar às informações da pesquisa foram também
documentos institucionais tanto a um nível mais geral, que regem os institutos federais como
um todo, como outros específicos do foco da pesquisa sobre o IFMA. Foram utilizadas, ao
mesmo tempo, as entrevistas com docentes e gestoras/es da instituição. As documentações
institucionais e até as atas do NEABI nos ajudavam a entender o que a entidade pretendia com
sua nova institucionalização. As atas de reuniões do NEABI/IFMA e as entrevistas nos
colocavam diante do cotidiano da unidade de ensino, das suas possibilidades e dos seus
desafios no tocante ao tratamento da exigência da inclusão da temática das relações raciais
nas suas atividades curriculares.
4.6 As entrevistas
A oralidade tem na memória sua base constituidora. Assim, concordamos com Portelli
(1993), quando ele diz que a História Oral tende a representar a realidade não como um
tabuleiro de lados iguais, mas como um mosaico, no qual cada pessoa tem um grande número
de histórias em potencial. Assim, os historiadores orais que possuem a arte de ouvir partem do
entendimento de que praticamente todas os sujeitos com quem conversamos enriquecem a
nossa experiência.
A História Oral depende da memória “viva”. A reação negativa que durante muito
tempo se teve no âmbito da pesquisa acadêmica quanto à oralidade está também associada à
relação entre eurocentrismo e tal aspecto que ligava a tradição oral à ausência de cultura e
valorizava o documento escrito como registro da verdade e portador de credibilidade, porque
é fruto da tradição letrada “à moda” europeia, na qual o saber científico não necessariamente é
ligado ao cotidiano.
Concordamos com Portelli (1997), que destaca que, apesar das muitas diferenças entre
os pesquisadores que trabalham com a História Oral, é fundamental “[...] a responsabilidade
não só de obedecer às normas confiáveis, quando coligem informações, como também de
respeitá-las, quando chegam a conclusões e interpretações – correspondam ou não a seus
desejos e expectativas”.
Para a efetivação desta investigação, foram realizadas entrevistas com docentes
gestores/as que deram subsídios para a análise das peculiaridades, das possibilidades e dos
entraves das experiências profissionais relacionadas à temática das relações raciais no IFMA.
Essas conversas foram do tipo semiestruturado, em que organizamos um roteiro de
questões que deveriam perpassar os diálogos. Porém, esses questionamentos eram para termos
88
uma dimensão dos aspectos que deveriam envolver as entrevistas, sendo elas realizadas em
um contexto muito semelhante ao de uma conversa informal.
Esses momentos apresentaram um ritmo bem distinto uns dos outros. Percebemos que
as/os entrevistadas/os que tinham afinidade teórica e/ou de vivência profissional/pessoal com
a temática, demonstravam um ritmo mais fluido, de modo que foram desnecessários, em
alguns casos, questionamentos pontuais. Ao narrarem suas vivências pessoas e profissionais,
íamos tendo acesso de modo dinâmico às perguntas que perpassavam nosso problema de
pesquisa e nossos objetivos.
Entre os entrevistadas/os que não tinham vivência profissional e/ou pessoal com a
temática, observamos a dificuldade em focar no assunto das relações raciais, de modo que,
geralmente, direcionavam a entrevista para questões que envolviam outros aspectos da
Educação Profissional e Tecnológica, como fatores específicos de suas áreas de atuação,
dificuldades cotidianas dessa modalidade de ensino e questões que envolviam a gestão para
além da abordagem central da pesquisa. Nesses casos, os questionamentos elaborados foram
mais utilizados na tentativa de direcionar a conversa para a problemática central investigada.
Em alguns momentos, precisamos, também, reelaborar as perguntas, objetivando não romper
de modo brusco com o ritmo do diálogo que estávamos tendo e com os aspectos que os
entrevistados achavam importantes de narrar para além do foco do estudo. Interrogações
adicionais também foram realizadas para elucidar conteúdos que não ficaram “claros”,
ajudando a acessar as informações necessárias à problemática proposta.
Um caso vivido em uma das entrevistas foi interessante. Lembro-me de ter saído triste,
achando que, mesmo com todas as tentativas e reformulações, não consegui tocar a conversa
para o interesse do trabalho, e pensei inclusive em eliminá-la. Depois, analisando melhor,
durante a transcrição e a escrita do texto da tese, focando na questão norteadora e na narrativa
que estávamos organizando para apresentar os dados coletados, percebemos a importância
daquele diálogo, pois o entrevistado levantava aspectos institucionais que, no momento da
entrevista, não pareciam tão importantes, mas que, no momento de escrever e problematizar a
EPT, trouxeram aspectos importantes.
A importância desse olhar sensível ao que é relevante também para a/o outra/o narrar é
evidenciado por Portelli (1997), com o qual concordamos quando ele diz que, “[...] se
ouvirmos e mantivermos flexível nossa pauta de trabalho, a fim de incluir não só aquilo que
acreditamos querer ouvir, mas também o que a outra pessoa considera importante dizer,
nossas descobertas sempre vão superar nossas expectativas”. Desse modo, o que acessamos e
tratamos foi apanhado de realidades complexas e subjetividades diversas. O importante foi e
89
continua sendo as tentativas de conseguir aproximações com as realidades das relações raciais
na EPT.
Para a análise das entrevistas, o primeiro momento foi o serviço de transcrição das
conversas, que tiveram como aporte metodológico a História Oral. Tentamos seguir algumas
indicações apresentadas por Matos e Senna (2011, p. 104):
Lei n.º 11.892/2008 2008 Institui a rede federal e cria os Institutos Federais
Instrumento de natureza
filosófica, política e teórico- Apresenta uma abordagem
metodológica que norteará a teórica em relação ao referido
Projeto Pedagógico
2016 prática pedagógica da assunto no contexto educacional
Institucional (PPI)
instituição, articulando as em que está inserida a
dimensões de ensino, pesquisa e instituição.
extensão.
Aprova a institucionalização do
NEABI enquanto núcleo Apresenta uma proposta de
temático, para a execução de atuação direta com o citado
Resolução n.º
2010 práticas pedagógicas no tema, com ênfase nas relações
008/2010
desenvolvimento de pesquisa, raciais, contemplando as Leis n.º
ensino e extensão voltados para 10.639/2003 e n.º 11.645/2008.
o estudo da diversidade.
Fonte: Dados da pesquisa realizada pela autora nos documentos institucionais citados, 2018.
A citação chama a atenção para a atuação dos atores inseridos na realidade dessas
instituições como ação que poderá proporcionar a mudança almejada com a criação delas,
mas, nessa relação, entre a modificação preterida e as iniciativas necessárias para a sua
realização existe todo um processo a se concretizar, envolvendo as transformações almejadas
com a institucionalização dos IFs e os desafios dos ranços institucionais que marcam essa
modalidade de ensino, como sua forte ligação com as necessidades do mercado de trabalho
como um fator impulsionador das práticas da entidade.
Com a criação dos Institutos Federais, observamos nas documentações uma tentativa
de desvincular a EPT dos interesses do mercado como fator determinante, quando se
evidencia que o foco da rede federal não deve ser nas necessidades da demanda
mercadológica mas, sim, na qualidade social, com possibilidade de fortalecer processos de
inserção cidadã de brasileiros se evidenciando como agentes de um desenvolvimento local,
fazendo valer uma concepção de educação tecnológica em sintonia com os valores universais
do homem como pessoa, sujeito social. (BRASIL, 2008b, p. 5).
Apesar de destacar uma relação com o mercado, a documentação desenvolve uma
proposta de trabalho como princípio educativo, tirando os interesses do capitalismo do foco
das preocupações educacionais, evidenciando que ela, “[...] sem ignorar o cenário da
produção, tendo o trabalho como seu elemento constituinte, propõe uma educação em que o
domínio intelectual da tecnologia, a partir da cultura, se afirma.” (BRASIL, 2008c, p. 34).
Nessa perspectiva, o ensino para o trabalho formaria o ser humano em sua totalidade,
potencializando a sua capacidade de conhecimento, de maneira a ter a sua realidade e a
95
Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que não existe uma única e nem uma
cultura pura ou estanque, mas que as diferentes culturas possam estar imbricadas,
atravessadas, umas perpassando as outras, de forma a se estabelecer uma relação
intercultural entre os diferentes, a construir um espaço em que as divergências sejam
aproximadas. [...] entende-se que ciência consiste em trabalho sistemático e criativo,
abrangendo o conhecimento do ser humano e(m) sociedade, da natureza e da cultura.
A ciência deve ser vista a partir de sua dimensão ética e social, articulando-se à
utilidade e aplicabilidade das pesquisas que são realizadas. (PPI, 2016, p. 8-9).
Na sétima série fiz a prova e na oitava série fiz concomitante. Estudava escola
normal e escola técnica. Finalizando aí, eu fui para a escola, mas o objetivo da
escola técnica naquela época era preparar os alunos para trabalhar – não falávamos
em vestibular. Meu sonho era trabalhar, estava motivado naquela coisa de conseguir
um emprego, ganhar dinheiro e fui... Tanto que a Vale do Rio Doce absorvia muita
98
mão de obra nossa, e eu fui motivado para isso, né? (ANDRÉ, 2016. FRAGMENTO
DA ENTREVISTA).
Fazer um curso profissionalizante, daqueles que você pode fazer para se especializar
em alguma área e começar a trabalhar o quanto antes, aparece como uma saída viável, tendo
em vista vir o ator de família de baixa renda, de forma que seu pai, que vinha de uma
realidade mais humilde que a sua, pensava que o filho seguindo os seus passos já estaria de
bom tamanho. Assim como o genitor, Lázaro veio do interior, foi morar na casa de parentes e,
aos olhos do seu pai, que conseguiu ter “alguma dignidade” por ter maior possibilidade de
empregabilidade dentro da sua realidade social sendo um técnico, pensava que um bom
destino para o filho seria seguir o exemplo.
Essa história lembra muito quando eu passei no vestibular para Licenciatura em
Construção Civil no CEFET. Não tinha o mínimo conhecimento sobre o curso, como eu não
tinha inclinação para nenhum dos oferecidos na época – isso no ano de 1998. Os oferecidos
naquele período eram, além do já citado, Licenciatura em Eletricidade e Licenciatura em
Mecânica e Tecnólogo. Eu resolvi fazer Construção Civil porque achei “bonito”: lembrava
Engenharia Civil e tinha alguma afinidade com o trabalho do meu pai, que era formado pela
antiga Escola Técnica Federal do Maranhão e que conseguiu passar em um “bom” concurso
99
para nível médio como topógrafo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA/MA), o que lhe dava algum status na família e no bairro da Liberdade em que fora
criado.
Mesmo com alguns parentes trabalhando na área da educação por meio dos cursos
superiores que existiam – minha tia Waldelina era pedagoga, meu tio Waldenar era químico e
meu tio Olegario era matemático –, meu pai, Walteneres, que também é historiador, mas
nunca exerceu o ofício, como técnico do INCRA, ganhava melhor e ainda ajudava em muitos
momentos esses irmãos. Lembro-me das memórias dos amigos do meu pai, como o Dilson,
que dizia que, quando meu pai passou no concurso, ele era considerado bem de vida, pagava
lanches e entrada ao estádio de futebol. Sempre lembro muito do meu pai chegando ao bairro,
mesmo não residindo mais lá, onde muitos colegas vinham lhe pedir para pagar “pinga”,
sendo que aquele dinheiro da cachaça parecia quase uma obrigação a ser paga. E eu, quando
pequena, por levar uma bola e uma rede de vôlei e por meu pai chegar lá de carro – um fusca
branco bem antigo –, era considerada “bem de vida” por meus/minhas amigos/as daquela
região.
Enfim, o curso técnico do meu pai, que passava quase despercebido entre os meus
amigos/as das escolas religiosas elitizadas que eu frequentava, como o Colégio Santa Tereza,
naquela realidade periférica parecia grande coisa. Percebi que eu, ao passar em Licenciatura
em Construção Civil, deixei meu pai feliz. Lembro-me de ele ter falado uma vez que agora eu
poderia ajudar melhor ele nos “bicos” que ele arrumava. Antes, meu trabalho nessas ocasiões,
ou seja, nas plantas de terrenos que meu pai fazia fora do serviço e que sempre rendiam bons
passeios e outros mimos, era fazer a leitura das áreas e das suas coordenadas, bem como
apagar com “gilete” alguns erros cometidos para facilitar o andamento do trabalho. Naqueles
anos, meu pai ainda fazia isso à mão, sentado em uma cadeira alta com uma mesa ampla que
tinha uma grande régua centralizada. Eu achava aquilo lindo, uma obra de arte, mas não tinha
a mínima aptidão.
Depois que passei no vestibular, mesmo sem ter mudado em nada o fato de ter
pouquíssima coordenação motora e quase nenhum jeito para desenho, fui promovida como
ajudante do meu pai. Agora eu era estudante de curso superior na área. Além de ganhar
melhor pelo meu serviço, passei também a cobrir de caneta Nankim algumas plantas que ele
desenhava manualmente. Lembro-me de ele falar que, se eu seguisse a profissão, poderíamos
ganhar bem mais com esses e outros trabalhos. Confesso que gostei do ganhar mais dinheiro,
mas, enfim, o amor pela área de humanas falou mais alto e não segui o exemplo do meu pai.
100
Assim como Lázaro, fugi do CEFET, mas, no meu caso, acabei voltando. Mas essa outra
história é esta história atual.
Essa relação da influência da família no direcionamento à educação profissional,
sobretudo daquelas famílias em que tal perspectiva de ensino possibilitou alguma ascensão
social, aparece como uma alternativa sempre presente também nas histórias de vida dos
docentes, dos ex-alunos da instituição, como é destacado no relato abaixo.
Quando foi no 3º ano, tinha um rapaz na minha sala que veio do interior – São
Matheus-MA. Ele morava próximo à minha casa no centro, pegávamos ônibus
juntos e tal. Mas, ao contrário dele, não tive a orientação em minha família, porque
minha orientação era estudar na escola técnica para que eu pudesse trabalhar, e todos
que se davam bem na família tinha passado pela escola, era motivado para isso, não
tive muita chance de escolha, foi essa, e eu trilhei por esse caminho. (ANDRÉ,
2016. FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
Nesse contexto, a educação profissional, nem sempre como uma escolha, mas quase
como uma imposição do contexto social, limitava os/as adolescentes/jovens àquilo que era
possível dentro de um ambiente de privações econômicas e poucas possibilidades de emprego
Na fala de ex-alunos que entre os entrevistados são professores/as na faixa etária entre
40 e 60 anos de idade, aparece, permeando a memória deles, o direcionamento para a
profissionalização como saída possível e esperada – tanto que a descoberta do vestibular é
frequentemente algo que acontece por acaso, não como também uma possibilidade, tendo em
vista essa modalidade de ensino potencializar essa oportunidade. Observamos isso em alguns
relatos das histórias de vida desses/as docentes, ao enfatizarem o modo como tiveram acesso
ao pensamento de ter a educação superior também como uma possibilidade:
[...] Como o curso de Eletromecânica era de quatro anos, quando chegou no terceiro
ano ele fez o vestibular da UEMA – acontecia no meio e final do ano, duas vezes.
No meio do terceiro ano, ele fez vestibular da UEMA e um belo dia ele apareceu na
sala – estudávamos à tarde –, apareceu com a cabeça raspada. Quando olhei aquilo,
achei legal, fantástico. Os colegas cercaram ele, fomos conversar, porque ele falava
que estava estudando e ia fazer vestibular, e não ligávamos. Um outro grande susto
com este meu colega foi a primeira vez que fui na casa dele, porque a casa era muito
humilde, mas na sala tinha uma televisão, muita rede armada – que era ele e irmãos
–, uma estante, televisão e redes. Numa varanda, sala de jantar, tinha uma mesa
grande de madeira com muitos livros sobre a mesa – ele se dedicava muito para
estudar. Aí, eu vi o que eu tinha naquela época, minha família tinha uma condição
melhor do que a dele, mas eu não estava focado como ele estava, veio do interior
para isso. A partir daí, minha cabeça mudou um pouquinho [...] (ANDRÉ, 2016.
FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
[...] Sempre fui aluno da escola técnica e, como aluno da escola técnica, eu nunca
tinha ouvido falar de universidade. Para mim, minha história profissional é um
pouco conturbada, porque eu pensei que estudando na Escola Técnica terminaria o
curso e eu ia ser técnico, e a vida terminava ali, eu ia trabalhar. Mas eu me
101
deparei com algo muito difícil. Eu gosto sempre de desafios, procurei uns amigos
meus para conversar. Uns dias, eles estavam desaparecidos. Quando fui ver, estavam
estudando para o vestibular, e aquilo me deixou um pouco perdido. Fui pra casa e
tal. Aquilo era janeiro, fiz vestibular em outubro e tive a felicidade de fazer o
primeiro vestibular e passar [...] (DAVID, 2016. FRAGMENTO DA
ENTREVISTA).
nem à nossa ida tradicional ao centro da cidade para lanchar aquele caldo de cana no final da
Rua Grande1. Minha mãe precisava produzir e, muitas das vezes, no domingo à tarde e
quando enfim descansava conversando na porta da rua, corrigia provas. Minha mãe era
considerada funcionária padrão e toda a sua dedicação ajudou a empresa a crescer, mas, isso,
à custa de muitas ausências familiares e de outras histórias tão íntimas que não cabem nestas
linhas.
Desarticulado de outras necessidades do ser humano, esse tipo de trabalho não aparece
como uma das modalidades possíveis relacionada a um contexto histórico e social específico,
mas faz querer acreditar que emprego só pode ser entendido nos moldes de venda da força de
trabalho capitalista, assumindo uma característica universal, natural tendo sua necessidade e
sua legitimidade garantidas para além de qualquer questionamento.
Se assim fosse tão natural e inquestionável, não precisaria mudar a letra do samba
“Bonde de São Januário”, de Wilson Batista, que na década de 1940 foi censurado pelo
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) por dizer assim: “Quem trabalha é quem tem
razão, eu digo e não tenho medo de errar. Quem trabalha... O Bonde de São Januário leva
mais um otário, sou eu que vou trabalhar”. A censura resolveu o problema substituindo o
“otário” por “operário”, ficando o samba pronto para glorificar a nobreza do ofício, a sua
naturalidade, fortalecendo o coro do trabalhismo varguista. (PARANHOS, 2007).
O trabalho não é algo natural, nem sempre foi realizado da mesma forma e com as
mesmas finalidades. Ele e seus diversos significados se relacionam com o contexto histórico,
social e cultural em que estão inseridos.
Assim, corroboramos o entendimento de que o serviço não é natural, e, sim, uma
forma de ação consciente do ser humano humana na natureza com o objetivo de produzir a
própria vida humana, sendo compreendido exatamente como aquilo que nos humaniza,
diferenciando-nos da natureza (MARÇAL e OLIVEIRA, 2012).
Será se a educação para o trabalho, nos moldes da cartilha do mercado capitalista, é
apenas coisa do passado que a gente estuda para contar como foi, e não como é? Terá algo
desse passado no presente? De que modo essas diretrizes institucionais dialogam com o fazer
cotidiano do/a docente/gestor/a? Viver a Educação Profissional e Tecnológica é mais
complexo que a propor, envolve um contexto institucional, o que ele é, o que gostariam que
ele fosse, o diálogo disso com a diversidade que envolve essa modalidade de ensino – e ainda
1
O outrora Caminho Grande, Rua Oswaldo Cruz, ou mais comumente descrita como Rua Grande é uma rua de
comércio de São Luís e tem a fama de ser um dos maiores centros comerciais a céu aberto do Brasil, fazendo
parte do Centro Histórico dessa capital. Disponível em: <http://saoluisemcena.blogspot.com.br>. Acesso em:
30. abr. 2018.
103
[...] eu não digo nem do CEFET, há um peso muito grande da Escola Técnica, né?
Então, os professores mais antigos, eles têm um apego, digamos assim, muito grande
com a Escola Técnica, tanto é que, quando a maioria deles falam, eles falam da
escola, eles não falam do CEFET, pouquíssimos professores, como eu sou do
campus de Monte Castelo, né? Que é o campus mais antigo, poucos professores, eles
têm essa referência ou mencionam o CEFET, eles geralmente falam da Escola, e há
uma particularidade, a maior parte deles, eu acho que uns... Isso vem mudando agora
depois da expansão, mas eu acho que 90% dos professores estudaram lá, né? Na
Escola Técnica. Então, isso faz com que eles tenham uma relação muito maior.
(SUELI, 2016. FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
profissional, faz fluir, entre os entrevistados que estão há mais tempo nesse ambiente, um
discurso saudosista e crítico aos tempos atuais:
Minha história de vida está muito ligada à minha vida profissional. Desde muito
cedo, 13 anos, quando eu entrei na escola técnica, dediquei minha vida inteiramente
à instituição [...]. Naquela época, uma criança de 13 anos quando eu entrei
confrontava convivências com adultos, que a escola era muito adulta. Eu tinha medo
de andar nos corredores, tinha as hierarquias, tinha aquela história que hoje nem se
vê mais do bairrismo. [...] O grande segredo entre Escola Técnica e CEFET
começava pela seleção, mais fácil trabalhar com um aluno preparado do que com um
aluno despreparado. Não estou dizendo que está errado nosso seletivo, ele tem um
papel social muito grande. Na minha época, só entrava aqueles que tinham grandes
notas. A maioria dos professores quando ia trabalhar com esses grandes alunos, o
início de sucesso da escola era muito maior [...]. Toda essa experiência minha está
me ajudando muito, fazendo a diferença. Hoje consigo entender como a instituição
deve funcionar. Então, uma série de coisa que para mim é importante, eu entendo
quando o professor reclama, pais reclamam, eu consigo conversar com os diretores
gerais. É muito complicado essa convivência com os diretores. (ANDRÉ, 2016.
FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em
permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações (NORA,
1993, p. 9).
105
A lembrança não é sinônimo de passado, não o guarda “como ele realmente foi”. Ele
ficou em si. Tais recordações envolvem olhares que reinventam o antigo de modo a se
relacionar com o contexto vivido, sendo sempre atual e uma forma de manter o elo vivenciado
no presente, e são mundos imaginados.
Nesse sentido que Nora (1993) ajuda a ser pensado, entendemos que essas memórias
dos tempos de Escola Técnica fazem também parte do jogo das relações de poder, que
envolvem todo um rearranjo com as mudanças ideológicas institucionais, reorganizações que
convivem com um aumento expressivo do número de servidores, com novos campi em outras
cidades do estado, inclusive dentro da própria ilha de São Luís, envolvendo também disputas
por cargos, questões geracionais com profissionais que chegam sem relação afetiva e política
com a entidade e que são, muitas das vezes, mais novos, mas com qualificação acadêmica
correspondente ou superior à de antigos servidores.
Nessa constante mudança, é preciso reinventar as formas de viver, encontrar
distintivos, relacionar-se, de forma que a reconstrução da “memória coletiva”
(HALBWACHS, 2003) da instituição cumpre também esse papel e deixa transparecer as teias
emaranhadas que evolvem a aplicabilidade de uma diretriz curricular, pautada no
reconhecimento das diversidades e com foco na cidadania de afrodescendentes, e não apenas
ou prioritariamente nas necessidades do mercado.
A relação da EPT com as carências mercadológicas é um aspecto que se destaca nas
entrevistas na formulação de relações entre o passado e o presente da entidade e demonstra
um ponto nodal para a nova proposta dessa Educação voltada para a cidadania, para os
arranjos locais, abordando a atenção às exigências do mercado como apenas uma das
preocupações da instituição, mas não como o seu direcionamento principal hoje.
A EPT e as suas estreitas relações com as necessidades capitalistas aparecem ao longo
dos depoimentos como algo que assumiu e ainda hoje assume a centralidade no
direcionamento do IF.
Um exemplo, tu pega os alunos do campus Monte Castelo, que é campus que tem
mais estrutura, mais consolidado – porém, existem problemas –, tudo lá funciona.
Esses campus que estão nascendo, engatinhando ainda para ter um mínimo. Muito
comum irmos aos novos campus e vermos a necessidade de equipamentos,
laboratórios. Os alunos do Monte Castelo têm válvula de escape quando se formam,
e não é porque estão na capital, não, porque eles são preparados para o mercado, são
mais fáceis de se empregarem. Uma vez fui participar de uma formação em
Buriticupu, e lá eram 240 técnicos em Secretariado Escolar, um curso que não é
sazonal – naquela formatura, 240; no outro ano, 240. O que vão fazer essas turmas
todas? Quando tu pensa que está ajudando eles, tirou da rua e tal, beleza. Mas
quando tu olha a instituição, com o perfil que privilegia a inserção no mundo do
trabalho, bem aí tu compromete. (ANDRÉ, 2016. FRAGMENTO DA
ENTREVISTA).
Eu fui ser assistente da diretoria de ensino superior, tu sabe, porque tu foi minha
aluna e sabe que faço as coisas de maneira familiar, faço com competência,
seriedade, tento fazer o melhor. Eu peguei e mandei os horários do ensino superior
para o setor competente para fazer a distribuição da sala de aula. O diretor assinou, e
eu fiz como assistente e encaminhei. Logo que documento chegou ao setor
competente, eu fui chamada. Eu pensei que tinha esquecendo-se de algo no
documento que tinha mandado, esqueceu alguma turma, sala. Causou-me
estranhamento a forma como a pessoa do setor falou comigo. Ela disse, foi você que
me mandou o documento, olha, é o seguinte, isso aqui é só no final, depois que
distribuímos as salas do ensino técnico, o que sobra é do ensino superior, fiquei
chocada, como você constrói um ensino superior como sobra. (ANTONIETA, 2016.
FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
Nas entrevistas realizadas, sobretudo com professores ligados à referida área, essa
relação de valorização de determinados campos do saber, em detrimentos de outros, aparece
como um distintivo institucional daqueles que poderiam nomear os seus fazeres e direcionar
também as práticas que entendiam não corresponder ao seu metiê.
[...] eu ainda percebo assim uma supervalorização do Ensino Técnico, das Ciências
Exatas em detrimento das Ciências Humanas, né? Então, às vezes, a gente vai pra
algumas semanas pedagógicas e alguns professores diziam “‘nam’, mas isso é coisa
do pessoal de humanas, isso é coisa de artes”, sempre colocando essa relação aí,
digamos assim, desigual, entre o papel que as Ciências Humanas realmente
compreendem dentro da instituição. (SUELI, 2016. FRAGMENTO DA
ENTREVISTA).
[...] mas não foi isso que eu encontrei lá na instituição: era formar técnicos, bom
técnico em mecânica, bom técnico em eletrônica, para atender às ALUMAR e
109
ALCOA, às VALES da vida que estavam aí. Então assim, o Instituto que eu
encontrei era um Instituto que não tinha a preocupação, né? Consistente, com
relação à humanização daqueles seus formandos, a profissionalização dos formados,
que, em tese, seriam pessoas em formação moralmente forte, com atitudes humanas
forte e com conteúdos acadêmicos humanitários fortes, mas não era a lógica
pedagógica da instituição, não era isso. [...] Continua sendo o tom, o que pesa são as
mudanças de paradigmas que estão colocados aí nesta lógica, da educação
profissional através da rede, que, aí, bate com muita força a questão do olhar do
elemento cultura, cultural na questão, e de interagir com os arranjos locais, valorizar
as diversidades. Isso tá previsto, inclusive, mas há uma unidade muito forte, na
carga da formação profissional, que ainda é para formar o trabalhador para
responder a um mercado, então, mas isso é muito grande, dos formadores das
humanas, esse confronto, esse enfrentamento. Então, eu vejo que ainda tem, e,
assim, precisa ser trabalhado para ser desconstruído. E, assim, digo sem hesitar,
porque eu tenho consciência que não é um privilégio do Instituto Federal do
Maranhão, é uma realidade que está na instituição, nas instituições, de modo geral.
(LUIS, 2016. FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
A questão aqui, neste momento da tese, é entender as relações que envolvem o diálogo
dos novos direcionamentos institucionais com o cotidiano da entidade. Essas relações
dependem muito do lugar, da área do saber, da intensidade da relação com a instituição, do
cargo nela ocupado, das relações sociais mantidas fora desse ambiente, do gênero, do
pertencimento racial, dentre outros aspectos.
Percebemos que passado e presente dialogam. Em muitos momentos, borram-se as
suas fronteiras, de modo que não sabemos onde termina um nem onde começa o outro – como
no caso das mudanças de nomes institucionais e dos significados das formas de nomear que
conseguem ultrapassar o tempo e as determinações oficiais, significando mesmo sem ser. Às
vezes, um está no outro de modo bem visível, mas, de outra maneira, como a relação da EPT
com o mercado de trabalho capitalista, outras vezes é preciso tentar visualizar pela lupa de
cada um o significado das áreas e as distintas maneiras de se visualizar e de se sentir na
instituição.
110
As legislações que mudam o perfil da entidade só fazem sentido na prática, a qual vai
criando modos de ser que nem sempre correspondem à letra da lei. Essas discussões que
envolvem as disputas internas entre as áreas técnicas e os campos ligados às humanidades, o
debate sobre o foco institucional nos cursos técnicos ou no nível superior e a necessidade de
um ensino crítico para a cidadania na EPT fazem parte também das problematizações sobre a
elitização, ou não, da educação brasileira.
O tema da elitização desse sistema, no sentido de ampliar a participação de diferentes
segmentos sociais da sociedade, fez parte de uma ampla discussão dos movimentos sociais,
sobretudo na década de 1980. O processo de redemocratização do Brasil nos finais dessa
década e a promulgação de uma constituição cidadã pelo menos nas letras da lei, o que pouco
vem se materializando em nossas vivências cotidianas, acenaram para a possibilidade de um
repensar as nossas bases racistas, abrindo margem constitucional para políticas públicas que
tivessem foco na melhoria de vida e na igualdade de condições das camadas populares,
levando em consideração suas diferenças constitutivas.
Nesse sentido, Jaccoud (2008) relata, a partir dos anos de 1980, três gerações de
iniciativas de enfrentamento à questão racial. A primeira se dá ainda nessa década, durante o
processo de redemocratização do país, com a luta dos movimentos sociais pelo
reconhecimento da igualdade de afrodescendentes. Surgem órgãos de assessoria e conselhos
em várias localidades do país, visando efetivar a participação dessa população. A criação da
Fundação Cultural Palmares, em 1988, representa um marco de conquista desse embate.
A segunda fase de iniciativas, em fins da década de 1980, foi marcada pela conquista
da criminalização do racismo como crime inafiançável e imprescritível. A Lei Caó (BRASIL,
1989) passou a penalizar, com prisão e multa, as violações relacionadas aos preconceitos de
raça, cor, sexo ou de estado, pois, até então, eram enquadradas legalmente apenas como
injúria racial no caso das discriminações raciais. A terceira etapa se inicia em meados dos
anos de 1990 e se caracteriza pelo combate à discriminação racial por meio de políticas
públicas que destacavam o racismo institucional e a necessidade de iniciativas como
estratégia de ação no enfrentamento a esse tema. Esses atos ganham volume em 2003, com a
111
Entendemos que esse conceito afirma um compromisso com o todo social e com a
proposta de uma igualdade na diversidade e se afina, pelo menos no plano teórico, com os
objetivos do que Jaccoud (2008) chamou de terceira geração de políticas públicas de iniciativa
de enfrentamento à questão racial, envolvendo o pensamento das questões sociais por meio de
ações no sentido de lutar contra o racismo institucional, entendido como toda prática
organizacional que distribui benefícios e recursos de forma desigual entre distintos grupos em
virtude de sua cor, sua cultura, sua origem racial ou étnica.
Em “Concepção e diretrizes”, o documento faz uma passagem pelos diferentes
momentos vividos pela EPT em nosso país, evidenciando desde a sua criação em 1909 à
presença de um conjunto de Escolas de Aprendizes de Artífices e às suas mudanças ao longo
dos séculos XX e XXI, transformando-se em Escolas Industriais, Técnicas, Escolas Técnicas
Federais, Centros Federais de Educação Tecnológica e Institutos Federais.
Nesse contexto, é abordada a relação entre o momento histórico e as mudanças então
empreendidas, destacando-se, posteriormente, que a proposta dos recém-criados IFs propõe
uma perspectiva de inversão da lógica até então existente.
[...] se o fator econômico até então era o espectro primordial que movia seu fazer
pedagógico, o foco a partir de agora desloca-se para a qualidade social [...]. Assume,
112
Uma vez que o referido documento aponta que a criação dos IFs está afinada com as
propostas de políticas públicas do Governo Federal, isso nos leva a entender que o termo
“inclusão” pode estar sendo pensado e trabalhado com base nessa sincronia, que entende o
racismo como uma problemática também de responsabilidade estatal. Porém, em “Concepção
e diretrizes”, não se apresenta um detalhamento do entendimento e do alcance de
compromissos com a proposta inclusiva.
Na documentação específica do IFMA, a referida palavra aparece em consonância
com a as diretrizes dos dessas entidades (BRASIL, 2008c). Nesse sentido, o PDI (BRASIL,
2014) apresenta como um dos seus objetivos “[...] intensificar as ações de fomento à inclusão
e respeito à diversidade”, enquanto que o Regimento Geral destaca a necessidade de “[...]
incentivar a oferta de cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) na área de inclusão e
diversidade” (BRASIL, 2014, p. 23).
Das determinações institucionais do referido Instituto, percebemos que o que tenta
apresentar certo detalhamento do entendimento de inclusão é o Projeto Político-Pedagógico
(PPI), ao destacar que “[...] nesse cenário impõe-se a discussão sobre uma educação inclusiva,
admitida como cultura coletiva. Essa postura permite ao sujeito a possibilidade de assumir
suas identidades e de respeitar as possibilidades do outro” (BRASIL, 2016, p. 13).
113
Desse modo, a palavra “inclusão” seria mais eficiente para mascarar desigualdades, o
que facilitaria que ações no âmbito das políticas públicas, tirando o foco do problema
estrutural das desigualdades, direcionassem-se para algumas demandas sociais incorporadas
aos interesses e às possibilidades dentro dos limites governamentais. Isso permitiria algumas
concessões, mas sem promover alterações de base nessas problemáticas – seria como se tais
disparidades fizessem parte da natureza e, nesse contexto, nós só pudéssemos minimizar sua
ação.
A respeito dessa realidade, Burity (2006, p. 49) aponta:
limites daquele que enuncia e das relações de poder que envolvem o contexto de cada
inclusão.
Esse termo dialoga com “diversidade”, na perspectiva de terem amplas e distintas
possibilidades de significados, abrindo o leque para múltiplos usos, o que pode fazer parte de
um contexto de esvaziamentos de sentido. O que é diversidade? Essa é uma pergunta difícil
de ser respondida, pelos distintos significados que podem estar sendo vinculados e das
relações e dos interesses que envolvem os que proferem o tratado vocábulo.
Como aponta Silva (2014), destacar as diversidades das formas culturais na
contemporaneidade se tornou lugar comum e envolve interesses diversos, que vão da
manutenção das hierarquias sociais às reinvindicações dos movimentos sociais; em outros
momentos, com as necessidades do mercado de consumo e as suas produções culturais.
Assim, além de distintos sentidos para o termo, faz-se necessário perceber as relações de
poder que perpassam essas formulações.
Entender esses diferentes significados dialoga com o modo como diversidade e
diferença relacionam seus sentidos. Abramowicz, Rodrigues e Cruz (2011) destacam três
vertentes de relações. A primeira trata as diferenças e/ou as diversidades como contradições
que podem ser apaziguadas, de modo que a tolerância seria uma das muitas outras formas de
apaziguamento, harmonização, sem esgarçar o tecido social, sendo sintetizadas pelo
multiculturalismo. A segunda perspectiva, denominada liberal ou neoliberal, usa a diferença
ou a diversidade como estratégia de ampliação das fronteiras do capital, pela maneira com que
comercializa formas de vida, a partir de uma maquinaria de produção de subjetividades. Por
fim, a perspectiva que enfatiza as diferenças como produtoras delas mesmas, as quais não
podem se apaziguar, já que não se trata de contradições.
A quem serve um discurso harmonioso em nosso contexto? O que é a nossa harmonia?
Temos alguma? Pensando com os estudos de colonialidade, vemos que o nosso equilíbrio é
colonizado e, assim sendo, à medida que questionamos, propomos outras formas de ser, de
viver, de amar e de se relacionar com o sagrado, dentro outras, que questionem essa
colonialidade causando fissuras nessa harmonia. Então, se você é homem, branco, cristão
heterossexual, fica mais fácil ser harmônico, porque você já é antes de ser, quando você sabe
que o outro, o diferente, nunca é você.
Quando viver na diversidade é tolerar, festejar, respeitar, o outro é sempre o exótico,
um objeto de veneração e ao mesmo tempo de cuidado/controle. Ele pode ser um totem de
veneração, em alguns momentos específicos: desde que não altere o cotidiano nem mude a
lógica da colonialidade, é perfeitamente aceitável. E quando se questiona esse sentido?
115
relações que a instituição consegue estabelecer com a sociedade e com as questões sociais nas
quais está inserida tal entidade. Não é apenas uma questão de saber quais são os perfis, as
diretrizes e os documentos que norteiam a sua proposta de criação, apesar de sua importância,
mas, sim, fundamentalmente, o que será possível fazer com isso e as significações para as
pessoas que fazem essa instituição no seu cotidiano.
Neste tópico, vimos que documentos institucionais dialogam com a proposta de uma
educação para as diversidades na qual se insere a perspectiva do ensino para as relações
raciais, mas observamos que essa abordagem está inserida em um contexto ainda muito
marcado pela tradição da Educação Profissional nos moldes tecnicistas, com dificuldade de
diálogo entre as diferentes áreas do saber e associada às necessidades do mercado de trabalho
para além de formação humana e cidadã.
Na próxima parte, objetivamos perceber o que os entrevistados/as da pesquisa pensam
a respeito da educação para as relações raciais e como manifestam o seu pertencimento racial
no tratamento dessa temática.
Certo dia, no ano de 2000, em uma aula de Filosofia do meu primeiro período do curso
de História na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), surgiu um debate sobre como
cada um/a se sentia racialmente falando. Não era a aula em si, mas o professor já estava em
sala. Antes de começar o conteúdo, ficamos debatendo sobre essa questão. Nessa conversa, eu
afirmei que me considerava negra, mas me lembro de que pensei bastante antes de fazer essa
afirmação. Um colega de nome Frederico, um dos muitos que abandonaram tal graduação
para cursar Direito, mal deixou terminar a afirmação e foi dizendo: “Negra não, morena!”,
justificando isso com o discurso de que eu fruto de uma mistura racial, que a cor da minha
119
pela era bonita por causa da mistura e que isso de dizer que é negro/a não tinha nada a ver
com a minha personalidade. Era um discurso extremista. Por aí seguiu falando, em um tom de
quem estava me elogiando e de que me olhar como negra seria uma ofensa à minha beleza e
às minhas múltiplas ancestralidades.
Nessa conversa, em que eu tentava com muitas dúvidas me definir racialmente e meu
colega tentava facilmente me definir em meu lugar, veio o professor de Filosofia e disse, com
um tom firme e um jeito de intelectual, sempre muito observador e fundamentado, que
Frederico apresentava elementos mais coerentes que os meus e começou a explicar os motivos
da coerência do colega. Hoje, não me lembro de ao certo dos meandros da explicação do
docente, mas recordo que em mim ficou uma inquietação muito grande. Naquele momento, eu
gostei da exaltação feita pelo colega de minha beleza mestiça, mas pensei: não sou eu que
escolho o que eu sou? Ao mesmo tempo, imaginei: mas se ele me vê assim, como eu não sou
assim? E, por aquele tempo, a afirmação do educador pesou bastante. Fui para casa com a
sensação de que era bom ser definida como morena: tinha lá seus privilégios – ainda mais o
professor de Filosofia dizendo que eu era morena. Então, como é que eu podia ser outra
coisa?
Cabe destacar que não estamos usando o nome verdadeiro de pessoas citadas ou que
foram entrevistadas. No lugar deles, utilizamos denominações de afrodescendentes de
destaque na área ou em áreas afins às de atuação profissional dos participantes da
investigação.
Henrique, um dos nossos últimos participantes, ocupou vários cargos no Instituto,
dentre os quais o de reitor. É maranhense, da região dos Lençóis, vem de família humilde –
característica que, inclusive, é comum a todos/as os/as entrevistados/as – e narra uma história
marcada por dificuldades, em que a família encontrou na educação uma possibilidade de estar
no mundo de outro modo. Manteve um discurso de afastamento em relação ao seu
pertencimento racial, não demonstrando como se identificava. Destacou que foi a primeira
vez que tratou desse assunto academicamente falando, lembrando que nem quando aluno
essas questões eram apontadas em sala de aula, e estranhou o convite: achava que tinha
muitos outros colegas que podiam contribuir melhor – inclusive citou o nome de alguns e se
esforçou para mostrar a importância de que eu fizesse esses contatos.
Quando tocamos diretamente nos debates raciais, ele destacou a importância deles na
escola e falou das cotas, mas frisou que no ensino superior não: só pelo mérito. Não percebe
como trabalhar essas questões dentro da Engenharia e da Química, suas áreas de atuação
profissional, e foi desenvolvendo um discurso que evoluía para a necessidade de harmonizar
120
Brasil, e o IHGB era a voz da ciência na área das humanidades e, assim, traria as “verdades”
que só o conhecimento científico poderia confirmar nesse momento.
A tese vencedora foi a do cientista alemão Carl von Martius, que, para construir sua
História do Brasil, usou a metáfora de um imponente rio que representava a herança
portuguesa e que, com suas águas límpidas e brancas, ia absorvendo outros dois menores que
apresentavam águas turvas e não límpidas – eram eles o da herança indígena e o, ainda menor,
da herança africana. Esses rios, apesar de distintos, não desarmonizavam. Com o contato, a
diferença ia se apagando, e eles se harmonizavam à medida que os menores iam jorrando suas
águas no maior, o qual, de águas límpidas, por apresentar correnteza mais intensa, enquanto
absorvia os outros dois, embranquecia as águas, prevalecendo na mistura final o rio que
representava a herança portuguesa, por ser mais forte e significativo que os demais.
(SCHWARCZ, 2012).
Essa argumentação apresentou uma representação mestiça do Brasil, mas uma
mestiçagem direcionada ao branqueamento. Miscigenação não é sinônimo de igualdade, tanto
é que, nessa construção os rios não apresentam mesma imponência, nem seguem juntos até o
final, no processo de mistura, aquele tido como mais forte engloba os demais, de forma que as
características dos menores vão sumindo e dando espaço às particularidades do representado
com maiores volume, beleza e imponência, ou seja, aquele que representava a herança
eurodescendente.
Essa representação dialoga com as teorias raciais da época, apesar de não ter um
consenso, em fins do século XIX, sobre uma possibilidade civilizacional ao Brasil por causa
de sua mistura racial. As teorias sobre o tema tinham em comum pensar o afrodescendente em
uma perspectiva de inferioridade em relação a outras ancestralidades. Assim, por exemplo,
positivistas como Auguste Comte apresentavam uma postura mais conciliatória, enfatizando
as “qualidades” presentes entre as diferentes raças, enquanto que darwinistas sociais como
Haeckel e Spencer focavam na ideia de seleção natural, em que sobreviveriam os mais fortes,
estando os mais fracos aptos para desaparecer nessa competição. Nessas discussões, mesmo
na vertente mais otimista, a miscigenação, para autores como Sílvio Romero, com predomínio
gradual dos eurodescendentes, seria uma saída possível para que países mestiços como o
Brasil se adequassem aos moldes civilizacionais da época (DINIZ, 2008).
Ao ler sobre essas perspectivas, podemos pensar: mas isso não é coisa de livro de
academia, a que só alguns poucos universitários tinham acesso? Será que essas ideias
chegavam e ainda chegam ao nosso cotidiano? Uma forma de propagar essas teorias raciais
ou de pelo menos acompanhar o desenvolvimento de suas abordagens, mas de outro modo,
122
[...] um tipo acabado de brasileiro se não fosse os grandes olhos azues, que puxara
do pae. Cabellos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulata, mas fina;
dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estrutura alta e elegante;
pescoço largo, nariz direto e fronte espaçosa. A parte mais característica da sua
phisionamia eram os olhos – grandes, ramalhudos, cheios de sombras azues;
pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e húmido; as
sobrancelhas, muito desenhadas no rosto como a nanquim, faziam sobresahir a
frescura da epiderme, que no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e
transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz. (AZEVEDO, 1881, p. 47-48).
[...] eu quero crer que, desde meus primeiros momentos como professor, eu já fazia
a então falada, ou então mal falada, interdisciplinaridade, porque eu nunca deixo o
contexto na Matemática, eu levo sempre o contexto para minha vida real, para o que
eu era, para o que eu sou, para o que eu devo ser, para o que eu quero ser,
atualmente, nessa coisa de ideias de preconceitos, de minorias e tal [...]
(TEODORO, 2016. FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
Ele entende que aborda a questão racial em sala de aula não por trabalhar algum
conteúdo específico, mas pelo modo como tenta ensinar respeito e limite aos seus alunos
incluindo a abordagem das relações raciais no sentido de que todos são iguais e não se fala
mais nisso. Racialmente, identificou-se logo como “negro”, mas, quando falava sobre o que
chamava de “negros/as”, nunca usava o “nós”, era sempre “eles/as”, destacando que ser um
negro menos pigmentado tinha lá seus privilégios:
[...] olha aqui, não me importa se preto, branco, amarelo. Minha cor é um pouco
amarronzada, um pouco esbranquiçada, mas sou negro, me sinto negro por dentro,
porque sou filho de negro. A minha cor é que me dá um pouco de destaque e alguns
dizem que não sou negro, mas aqui não quero nada dessa coisa. (TEODORO, 2016.
FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
É nosso entendimento que no início da República, foi acionado para isso o controle
da quantidade dos que teriam acesso à escola pública. Posteriormente é o controle do
acesso ao ensino de qualidade que será o instrumento. O sucateamento do ensino
público coincide com a afirmação social de uma classe média branca que pode
passar a pagar pela qualidade da educação que receberá. É também um momento e
um processo de demarcação dessa classe média branca em relação às classes
populares notadamente negras. (CARNEIRO, 2005, p.114).
[...] o Brasil é um país 100% afrodescendente. A minha história, ela não foi contada
para mim: me contaram uma história que depois descobri que não era essa história.
Para alguns, ficou muito estranha sabendo que minha pele é branca, mas eu sou
afrodescendente. Era passado, de primeiro, que quem é preto é preto por causa da
pele. Quando você começa a estudar isso, você entende que eu tenho minha pele
clara, mas sou afrodescendente [...]. É a história do povo brasileiro que nunca foi
contada, precisa ser contada e precisa ser assumida, porque foi contada de forma
camuflada. Ela agora precisa ser contada na sua realidade e ser assumida. (MARIA,
2016. FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
Que benefícios hoje eu posso tirar dessa situação que ninguém pode chamar o outro
de negro? Às vezes, as pessoas dizem: “não, ele é moreno!” Eu, por exemplo,
quando a pessoa se refere a alguém “não, aquela pessoa também, que é moreno”, eu
digo: “não, é negro”. Não tenha vergonha de dizer “é negro”. Não é pecado ser
negro, não é feio ser negro, mas as pessoas ainda têm receio – termo complexo.
(MARIA, 2016. FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
126
Sou filha de um operário. Meu pai era muito envolvido com questões sociais. Ele era
dono da escola Portela do Samba, muito envolvido na luta social, não admitia
injustiça, era semialfabetizado, mas era uma pessoa muito justa e tinha um
temperamento muito forte. E, assim, meu pai, por ser envolvido nas questões
sociais, não tinha muito espaço nos lugares, ele era operário de fábrica e trabalhou
em várias fábricas aqui de São Luís do Maranhão. Pelo posicionamento dele,
acabava saindo, reclamava, queria justiça. Eu tenho muito de meu pai. Ele era
engraxate, sapateiro de profissão, e, quando a gente não tinha nada para comer, ele
ia engraxar sapatos. Saímos de Augustino Torres no João Paulo e fomos morar em
Sacavem. Cheguei lá no Sacavem com três anos de idade. Meu pai sempre
alertando: “olha, nós somos pobres”. Meu pai era menos pigmentado. Embora com
pigmentação da pele clara, ele dizia: “nós somos pretos, e todo preto que se presta
tem que ter vergonha na cara” [...] (CHIMAMANDA, 2016. FRAGMENTO DA
ENTREVISTA).
A sua relação com os movimentos sociais, que enfatiza ao longo de toda a sua fala,
vem de família. Seu pai fazia parte desse contexto como operário, sendo ativista nas questões
sociais que permeavam seu contexto profissional, havendo, além disso, a presença de uma
vivência ligada a uma valorização da cultura de matriz africana. Trabalhar os assuntos raciais
no âmbito profissional parece ser um entrelaçamento entre a sua trajetória familiar, a
participação nos movimentos sociais e as escolhas profissionais.
A relação entre dificuldade financeira e cor da pele permeia os relatos da entrevistada,
que narra essa ligação pontuando elementos de sua história de vida e das trajetórias que
envolveram seus ancestrais africanos/as e afrodescendentes. A participante destaca a sua
dificuldade para saber a história de seus familiares, e, depois de muita pesquisa familiar, narra
a trajetória de seus ancestrais africanos que para cá vieram, fazendo relação com as
dificuldades vividas por eles:
128
[...] minha avó contava isso pra gente. Então, aquilo ficou muito gravado em minha
mente. Eu tinha 8 anos, aquilo ficou muito marcado. Minha avó era filha do
Português, quando minha bisavó veio de África – veio não: trouxeram amarrada.
Aliás, trouxeram ela, pegaram quatro: minha bisa mais três irmãos, que os pais de
minha bisa eram dono de algo lá, não sei se era fábrica, era algo de fazer tecelagem
– ela dizia o nome lá. Com aquela história do tráfico, eles foram enganados, chegou
Navio lá. Aí, vamos olhar. Quando chegaram à Bahia, os três irmãos da minha bisa
ficaram lá e minha bisa desceu para o Maranhão – olha a questão da diáspora. A
minha bia desce pro Maranhão com 14 anos. Quando chegou aqui, valia um réis. Aí,
veio esse fulano do lado de Grajaú e compra minha bisavó, só que ele estupra ela
bem no meio do caminho. Ela já chega grávida lá na fazenda, porque houve o
estupro. Aí, a barriga dela começa a crescer, e a branca já sabia, né? Ficou na dela
pra ver como era a menina. E realmente minha avó era branca, cabelos dela bem
ondulados, não era uma pessoa pigmentada assim como eu. Hoje estou lutando com
unhas e dentes para terminar esse doutorado na Ilha da Madeira porque minha bisa
dizia para minha avó que o navio ancorava na Ilha da Madeira e que ela chorava
muito querendo sair sem poder [...] (CHIMAMANDA, 2016. FRAGMENTO
ENTREVISTA)
[...] casei com uma mulher negra, assumida, engajada, consciente do seu
pertencimento. Quando conheci minha esposa, ela me levou a ter consciência da
minha responsabilidade social [...]. Avancei na consciência cívica e cidadã, mas
também avancei na consciência étnica. Avancei na consciência étnica, avancei na
percepção de que eu tenho essa tríplice etnia: eu sou branco, sou negro e sou índio,
mas eu optei politicamente para balançar a causa negra, decisão política minha a
ponto de não me colocar no IBGE como pardo [...]. Então, é uma opção. E, aí, com
essa consciência, eu passei a me voltar mais para o movimento negro, para as lutas
dos movimentos negros. Aí, me engajei partidariamente em um partido que tinha a
questão étnica, a questão do negro como uma das prioridades. (LUÍS, 2016.
FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
Esse grupo de intelectuais negros que hoje produz conhecimento sobre as relações
raciais na universidade possui trajetórias e filiações diversas. Possuem origens
socioeconômicas diferentes, embora a maioria seja oriunda de experiências de
pobreza, fazem escolhas políticas, partidárias diversas, porém têm algo em comum o
movimento negro pode ser considerado o seu principal lugar de aprendizagem
embora não seja necessariamente o seu espaço originário de atuação política.
Essa característica apontada pelo autor, de ter o movimento negro como principal
lugar de aprendizagem, pôde ser sentida também nesta pesquisa. Dos 11 entrevistados/as, três
docentes trabalham diretamente com a temática racial na instituição. Duas têm seus trabalhos
de graduação/pós-graduação relacionados com essa questão. Dois atuam nos núcleos de
estudos institucionais, e um tem atividade gestora focada nas relações raciais. Esses/as
docentes apresentaram em comum, em suas trajetórias, uma aproximação com o movimento
negro como lugar de aprendizagens e de atuação política.
130
É bom apontar que Gomes (2010) destaca também que esse perfil vem se
diversificando na atualidade e que aos poucos vem se constituindo uma presença de
intelectual afrodescendente cuja trajetória não se vincula diretamente ao movimento negro.
Percebo que, entre os/as participantes que abordam de modo mais direto essas questões no
ambiente institucional, essa aproximação com o movimento negro se fez mais presente devido
à seleção dos entrevistados ter privilegiado profissionais com mais de 10 anos de atuação no
Instituto Federal. Não fiz entrevistas com servidores/as mais recentes na instituição, os quais
poderiam apresentar um perfil mais acadêmico.
Eu sou uma professora recente na entidade, tenho oito anos de atuação nela, sendo
que, desses, quase quatro são de afastamento para este processo de doutoramento. Por minha
vivência nesse espaço, nunca fiz pesquisa direta sobre isso. Aponto também para o que
Gomes (2010) destacou sobre a diversificação do perfil do intelectual negro nas instituições.
Posso citar meu caso como exemplo. Estudo as questões raciais desde a graduação. No
mestrado e no doutorado continuei e continuo a trabalhar essa temática. Tenho uma trajetória
de aprendizados sobre o assunto muito ligado ao âmbito da academia, com atuação nessa luta
dentro do ambiente escolar. Sempre li muito sobre o movimento negro, mas não tive
atuação/participação nesse âmbito dos movimentos sociais. Aprendi com tal iniciativa pelo
que li e pela vivência de outras pessoas que participavam dela e socializavam seus
aprendizados.
O termo “negro” remete, inicialmente, aos significados escolhidos pelos colonizadores
para nomear de forma reducionista e universalizante afrodescendentes. Sobre a força desse
termo, Mbembe (2017, p.19) infere:
A positivação da tratada expressão foi e ainda é uma luta dos movimentos negros. No
livro “O mundo negro”, Pereira (2013) foca na trajetória dessas iniciativas brasileiras e, para
desenvolver essa história, realiza entrevistas com vários/as de seus militantes. Nesse trabalho,
a positivação do termo aparece como uma luta muito associada também à valorização da
ancestralidade africana e das características que remetem a essa herança, em que assumir uma
“negritude” significaria reconhecer conhecimentos, saberes e belezas roubadas/negadas –
logo, criar novos sentidos para “negro” foi também uma estratégia de luta.
Essa ressignificação positiva não exclui as complicações advindas dos sentidos
coloniais que ainda reverberam em nosso cotidiano, demonstrando a força inventiva do
racismo. Alguns/mas entrevistados/as destacaram questões que envolvem os múltiplos
significados que os termos “negro” ou “preto” podem gerar. Ao contar a história da
multirracialidade que compõe a sua família, o professor e pró-reitor André destaca a presença
de filhos de diferentes fenótipos. Ele afirma: “Acho que em casa mesmo começamos a sentir
essas coisas. Chamamos o branco de ‘branquinho, vem cá’; outro de negão: ‘vem cá, negão’
[risos]. Ela chama ‘meu pretinho’ para ele, mas é jeito carinhoso, para ele”.
Termos como esses assumem significado a depender inclusive do tom da voz e da
intimidade daquele que profere. Nesse mesmo sentido, o professor Teodoro, falando também
de suas relações de amizade, relata:
[...] eu costumo dizer o seguinte: eu tenho meus amigos, meus melhores amigos de
cor, eu chamo ou de “neguin” ou de “negão”, e nenhum deles nunca me pediu para
cortar isso – até talvez porque o tom de voz de chamar “negrinho”, “negrão”, ou
“negão”, “neguinho”, não é tão ofensivo, quando de repente você tá num momento
de raiva e dizer: “negro sujo”, não sei, eu acho que dentro da gente vai sempre ter
algo como isso, algum resquício nosso de raiva de querer ofender, e para ofender vai
sair por aí com esse gatilho [...] (TEODORO, 2016. FRAGMENTO DA
ENTREVISTA).
da raça, sendo o racismo em ação, ou seja, por meio dessa prática se evidencia o racista que
por vezes lutava ou não para aparecer. (GUIMARÃES, 2012).
Dos 11 participantes, nenhum deixou de enfatizar situações em que presenciaram
preconceito e/ou discriminação racial, mas, quando o assunto foi a existência deles na
instituição, apenas três (Chimamanda, Luís e Sueli) afirmaram prontamente ter vivido e/ou
presenciado casos. Alguns, mesmo afirmando não presenciar ou vivenciar isso na instituição
de imediato, depois, no desenvolver da conversa, acabavam relatando ocasiões.
Após narrar casos de discriminação racial observados no interior de suas relações
familiares, o professor e diretor de campus José, ao ser questionado sobre a presença de
preconceito racial na entidade, respondeu prontamente que “na instituição não”, mas logo
depois foi mudando a ênfase da afirmação inicial:
Na instituição não, nunca presenciei, nem percebi. Piadas sim, mas a gente sempre
fala que a questão da piada seja uma brincadeira que acaba sendo sério, tanto com
negro como com homossexuais, que acho que é maior. A gente percebe a piada, mas
não lembro de nenhum caso específico. Se isso acontecer, é uma questão
complicada. Na instituição, isso tem que ser levado até o fim em termos de processo
administrativo, explicações, de se pedir desculpas, enfim. (JOSÉ, 2016.
FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
As questões raciais atravessam a escola, a qual não é um espaço neutro, até porque
existe uma cultura racista em que essa instituição é parte de um processo de maiores
amplitude e abrangência. Essas piadas e esses xingamentos são maneiras de negar o racismo
como ato sistêmico. A linguagem de tal discriminação, que é colonizada, tem seus
mecanismos de tornar pouco visíveis pontos questionadores de sua presença criando
estratégias de ocultação e disfarces que são internalizados em muitos de nós como algo nem
sempre consciente. Porém, tais atitudes não deixam de ser parte integrante de nossos racismos
(CUNHA JUNIOR, 2008).
Essa tendência de minimizar situações marcadas por tal preconceito é apresentada
inclusive quando os entrevistados narram casos bem explícitos de racismo institucional, como
o que segue no relato do professor André:
O docente André, mesmo destacando que ações como as acima citadas ofendem,
questionando o fato de serem realizadas por pessoas que têm acesso à informação, faz, ainda
assim, questão de reforçar, em seu discurso, que esse caso citado não se trata de racismo, ao
afirmar: “apesar de todos os diretores não discriminarem ele”. Nesse sentido, mesmo
relatando um caso institucional ligado à estética afrodescendente do seu colega de trabalho, a
ação é minimizada como uma brincadeira, uma piada.
A questão da aparência surge na pesquisa como motivo de frequentes
questionamentos, demonstrando ser o corpo do afrodescendente um corpo vigiado, em que as
pessoas se sentem no direito e com o poder de questionar e/ou polemizar o modo como cada
um de nós resolve estar no mundo.
A professora Antonieta, mesmo destacando que existe preconceito racial na entidade,
fez questão de evidenciar que ela, pessoalmente, nunca sofreu isso. Mesmo assim, relatou dois
casos em que teve as suas escolhas estéticas questionadas dentro do ambiente. Primeiramente,
134
destaca a crítica feita na instituição por uma colega de trabalho ao modo como usava seu
cabelo, tendo isso um rebatimento no modo como suas ações eram entendidas:
Eu usava o cabelo bem lisinho. Ela, na semana de cultura negra, se reportou a mim e
disse: “a Cristina estudou no CEUMA, ela se fingia de branca e pegou no meu
cabelo”. Quer dizer, é uma violência que a pessoa que está ali está dizendo que não é
preconceituosa, ela está colocando em evidência que só consegui sobreviver no
CEUMA porque as pessoas não me encaravam como negra. Não, eu era negra e
ainda era perturbadora. Eu dizia: “não, minha irmã, não é bem assim, não”. Passa
uma garota aí, depois passa outra garota, ela olha e diz assim: “que garota bonita”.
Se passa uma negra, diz: “que negra linda”. Por que tem que fazer referência como
negra linda? É uma garota como a outra também. São coisas assim que pregamos no
discurso, porque o preconceito está sempre presente. (ANTONIETA, 2016.
FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
Tem, sim. Na instituição eu nunca sofri, apenas comentários – pega em meu cabelo
e diz: “ah! Mas é mole teu cabelo”, coisas assim. Uma professora perguntando “que
cachos são esses? De onde tu tiraste esses cachos?” São comentários assim. Agora
dentro da instituição, se teve algum preconceito em relação à minha pessoa, nunca
tiveram coragem de dizer francamente para mim. São bobagens assim. “Cabelo
agora é mole, resolveu ficar de cachos”. São coisas que até acho graça.
Observamos nesse relato os meandros do racismo brasileiro. As pessoas sabem que ele
existe, mas não conseguem associar os casos pessoais vivenciados como exemplos de
preconceito racial e discriminação institucional, ficando sempre essas ações no âmbito de
comentários, brincadeiras, bobagens. Nesse sentido, negação e silêncio vão se fortalecendo
como estratégias que escamoteiam práticas discriminatórias e continuam a vigiar o corpo
afrodescendente.
Fanon (2008, p. 107) afirma: “De um homem exige-se uma conduta de homem; de
mim uma conduta de homem negro [...], desde que era impossível livrar-me de um complexo
inato, decidi me afirmar como negro. Uma vez que o outro hesitava em me reconhecer, só
havia uma solução: fazer-me conhecer”.
Problematizando essas questões, Bhabha (2013, p.130) explicita:
O exemplo de estranhamento citado pela professora Maria fala com intensidade sobre
esse assunto:
Eu passei por uma estranheza, numa festa dessas do Instituto, quando fui à moda
antiga. Eu sou da moda antiga, eu sou muito recatada, e estava perto de uma pessoa
e falei: “tu tá percebendo que aqui no Instituto tem muita gente diferente?”. E
quando eu cheguei estava de sandália alta, salto fino. E cheguei na festa, vi gente de
camisa folgada rasteirinha, comecei a olhar. “Gente essa aqui é a nossa foto do
instituto” disse para a pessoa. A pessoa disse assim: “são teus colegas, e não meus”.
Eu quero mostrar que eu acabei me sentindo fora do contexto, e a pessoa disse “são
teus colegas, e não meus”. Quando percebeu que ali estavam os colares, o cabelão, a
calça folgada, chinelo, se assumindo fisicamente, culturalmente, e a pessoa disse
“são teus colegas, não meus”, e isso tem uns três anos. (MARIA, 2016.
FRAGMENTO DA ENTREVISTA).
Será que se fosse outro tema, as repostas viriam em maior quantidade? Acredito que
sim, pois chega a passar pelo campo do racismo institucional. É uma forma de
discriminação indireta. Será que a maioria das escolas não contribuiu com a
pesquisa por receio institucional de divulgar dados internos? Porque será que nem a
escola técnica do Ceará, com quem tenho dialogado cotidianamente sobre o tema
respondeu à pesquisa? Porque será? Estas são questões que me assolam e para as
quais certamente não terei resposta. (SILVA, 2011, p. 148-149).
Uma das formas de limitar a elitização das escolas são as quotas sociais e étnicas,
assim como as articulações estabelecidas com escolas públicas de educação básica.
As experiências de democratização do acesso já em curso devem ser disseminadas e
(ou) incentivadas, de formas a fazer com que todas as unidades de ensino avancem
na adoção de políticas democratizadoras do acesso.
139
Apesar de o debate sobre a necessidade das cotas raciais como parte de outros tipos de
cotas já ser presente, essa proposta ainda não fazia parte da institucionalização do Governo
Federal, só vindo a se concretizar no ano de 2012, com a Lei nº 12.888/2012. A proposta de
cotas raciais não é mencionada no documento sobre a concepção e as diretrizes dos Institutos
Federais, porém, percebemos que essa não era uma discussão ausente na rede federal, tendo
em vista que o CEFET do Paraná já adotava esse sistema em 2008.
Outro estudo que podemos destacar, abordando a afrodescendência no contexto dos
Institutos Federais, é a tese de doutorado de Sueli Borges Pereira (2013), intitulada “O
currículo como percurso de reconhecimento da identidade negra: políticas e práticas
curriculares no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA):
Campus Monte Castelo”. Esse estudo já se apresenta de modo mais específico ao contexto de
um campus do IFMA, o Monte Castelo, localizado na cidade de São Luís, sendo também o
mais antigo da Instituição no estado do Maranhão.
A tese de Sueli Pereira é de 2013 e foi elaborada no contexto da nova configuração da
rede em Institutos Federais. Essa pesquisa contou com análise documental, entrevistas com
docentes e gestores/as e com observações realizadas pela pesquisadora no campus específico
do estudo. Teve por objetivo analisar as políticas e as práticas curriculares do IFMA - Campus
Monte Castelo, do ponto de vista da questão da identidade e do reconhecimento étnico-racial
(PEREIRA, S., 2013). Nesse contexto, a autora aponta a seguinte questão de pesquisa:
pessoas com necessidades especiais, uma vez que, para essa discussão, é reservada a carga
horária de 90 horas, enquanto para o debate sobre as relações raciais a carga horária é de 45
horas, o que, segundo a autora, não seria tempo suficiente para as discussões necessárias sobre
a questão racial.
Com as constatações frutos dessa pesquisa, Pereira, S. (2013) defende a posição de
que o IFMA - Campus Monte Castelo não incorporou a política e a prática curricular
suficientemente efetiva, crítica, consistente, coerente e satisfatória a ponto de autorizá-lo
como instituição de referência para a cidade de São Luís e para o estado do Maranhão.
A pesquisa nos faz pensar até que ponto essa cultura organizacional necessitará, não só
construir “possibilidades inclusivas”, como propõem os documentos institucionais, mas
também criar estratégias para construir tais possibilidades, tendo por base a cultura
institucional, que também é nacional, de desvalorização de temáticas inclusivas como a
afrodescendência.
A pesquisa de Pereira, S. (2013) faz várias inferências que também fazemos nesta tese,
porém, no nosso caso, a finalidade não é compreender se o IFMA é ou não uma referência no
estado do Maranhão, mas, por meio das documentações institucionais e das práticas de
docentes e gestores/as perceber as possibilidades questionadoras da afrodescendência no
contexto do IFMA bem como perceber os tentáculos da colonialidade no fazer institucional.
Pensar a prática educativa é problematizar um emaranhado de motivações e de
interesses que envolvem o fazer educacional. Este jamais é neutro; é, sim, permeado pelas
relações de poder e de saber que perpassam as ações dos/as envolvidos/as. Desse modo, é uma
ação intencional e faz parte do cotidiano das sociedades, independentemente do modo como
cada uma delas sistematiza ou não essa ação. É conjunto complexo, repleto de variações
comportamentais, diferenças de atitudes e concepções variadas. Desse modo, consideramos
importante entendê-la, em termos plurais, como práticas educativas.
Assim, as práticas educativas têm a amplitude de compreender todas as mais variadas
formas que possibilitam os processos educacionais. Envolvem a prática pedagógica e a prática
docente, porém, não se restringe aos muros das escolas, sendo de amplitude mais abrangente
que a educação formal, envolve diferentes espaços, como a família, os locais de encontro das
diversas religiosidades, o Estado, dentre outros. Deve ser pensada sempre como algo em
construção/processo, partícipe de determinados contextos históricos e culturais, ora
reforçando concepções conservadoras de educação, ora também tentando dialogar e romper
com tais direcionamentos.
141
Franco (2012) destaca que práticas educativas são ações que ocorrem para a
concretização de processos educativos. Já práticas pedagógicas são sociais, organizadas para
concretizar expectativas educacionais, tendo como objetivo a realização de processos
pedagógicos. Nesse sentido, a educação como prática tem abrangência mais ampla,
influenciando a vida das pessoas de modo difuso e imprevisível, e a Pedagogia se configura
como um conjunto de práticas sociais que fornecem direcionamento, organizando-se de modo
intencional para atender expectativas educacionais. Desse modo, a prática docente só será
prática pedagógica quando inserida em uma ação intencional e planejada, no contexto escolar,
detentora de criticidade e responsabilidade social.
Nessa direção, Souza (2009) aponta que Pedagogia é reflexão e teoria da educação,
não apenas uma ciência da prática, pois elabora teoria na medida em que formula concepção
de formação humana. Já educação reflete a atividade humana existente em todas as
sociedades, em toda atividade cultural na qual se dá o processo de ensino e de aprendizagem,
escolarizado ou não escolarizado; ela manifesta sempre as divergências, os interesses e os
conflitos presentes em determinada sociedade, que acontece em meio a seus antagonismos
culturais.
Charlot (2013) chama atenção para o triplo processo que perpassa a educação. Esta
seria composta por humanização, socialização e subjetivação/singularização, as quais
pertencem a dimensões indissociáveis. A educação evidencia que as relações entre as
gerações não são apenas uma questão de transmissão biológica, mas, sim, e
142
fundamentalmente, uma herança cultural, um movimento pelo qual uma geração recebe,
amplia e transmite criações culturais de gerações antecedentes.
Entendendo educação como fruto de heranças culturais distintas e não hierarquizáveis,
Brandão (1986, p. 4) infere:
A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as
pessoas criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que
é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por
um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como
armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do
trabalho, dos direitos e dos símbolos. A educação é, como outras, uma fração do
modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções
de sua cultura, em sua sociedade.
Não podemos deixar de apontar que existem várias concepções de educação, tanto ao
longo do tempo como em uma mesma temporalidade. Como enfatiza Brandão (1986, p. 9),
“[...] não há uma única forma nem um modelo único de educação; a escola não é o único local
onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é sua única prática e o
professor profissional não é seu único praticante”.
Assim, quando falamos de prática educativa, estamos englobando diferentes saberes,
envolvendo saberes do mundo acadêmico, sistematizados e com direcionamento teórico,
como no caso da prática pedagógica. Mas isso envolve também saberes outros, com
dinâmicas e intenções distintas dos acima especificados, como, por exemplo, os saberes
outros – africanos, afrodescendentes, indígenas, das mulheres, os saberes populares.
Educar não foi privilégio de nenhum povo, em todas as sociedades existem
mecanismos de compartilhar conhecimentos, o que diferencia é a concepção de educação, os
modos usados para se realizar as práticas educativas. Nesse contexto de pensar as práticas
educativas, a colonialidade também sabe estender os seus tentáculos, e, sutilmente,
desqualifica ou cria uma escala de valores para o ato de educar e ensinar, influenciados pelo
pensamento moderno e suas abordagens eurocêntricas de que a Grécia é o berço de tudo.
Uma forma é entender que todo povo tem educação, porém, na visão eurocêntrica da
colonialidade do poder/saber, o ensino teria começado com os gregos, porque esse ou aquele
filósofo propôs uma maneira de educar dita racional, porque desenvolveu um método de
realizar essa ação. Corroborando esse entendimento, que não questiona as explicações e as
narrativas centradas em valores europeus, Bandeira e Ibiapina (2014, p. 110) afirmam que
toda sociedade educa, porém, “[...] o ensino não nasceu colado à humanidade, começou com
os gregos, quando questionaram a natureza, a sociedade, os hábitos, a maneira de governar e
143
de educar. Foi nesse contexto que sofistas, Sócrates e Platão, propuseram uma maneira de
educar”.
Sim, entendemos que os gregos propuseram literalmente, “uma” maneira de ensinar e
educar e concordamos que, como colonizados por eurodescendentes, o nosso modo de educar,
sobretudo o da educação formal, desenvolvida em uma sociedade capitalista como a
brasileira, está muito interligado com essa forma de conhecimento e suas heranças, porém,
entendemos também que, por exemplo, a tradição oral africana da qual nos fala Bâ (1980),
bem mais antiga que esses filósofos gregos acima citados, já ensinavam por meio dos griôs e
dos tradicionalistas. Então, é possível dizer onde começou o ensino? Pensamos que seja
possível dizer sim, onde começou “uma” forma específica de ensinar. Compreendemos que
essa percepção é fundamental para o reconhecimento de saberes que podem ajudar a
descolonizar potencializando nossos saberes africanos e afrodescendentes e deixar bem
evidente que incorporar conteúdos ao currículo sem repensar as bases de nosso modo pensar
educação é uma estratégia da colonialidade que pouco ajuda a, no mínimo, questionar a
parcialidade de nossas “verdades”.
A prática educativa é aqui entendida em sua complexidade, sendo um fenômeno social
universal, uma atividade humana existente em todas as sociedades; logo, é produto do
encontro com o diferente que mistura culturas, sentimentos e visões de mundo permeadas por
relações de poder e significados de saber que envolvem as sociedades em diferentes
contextos. Sendo assim, a prática educativa é sempre uma construção que envolve
responsabilidade social e se volta para as questões da ética com o princípio humano de se
colocar no lugar do outro.
Dentre os autores que nos ajudam a pensar/problematizar as práticas educativas no
IFMA, destacamos Michel de Certeau, em seus estudos sobre cotidiano, com elaboração de
conceitos como o de “tática” e o de “estratégia”. Certeau (2014, p. 45) chama de estratégia
“[...] o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um
sujeito de querer e poder é isolável do ambiente”. Já tática seria “[...] um cálculo que não pode
contar com um próprio, nem, portanto, com uma fronteira que distingue o outro como
totalidade visível [...]”; seria, então, a arte do fraco que não tem por lugar senão o outro,
dependente e individual para fazer frente ao poder das instituições com as suas “estratégias”.
Nesse contexto, a prática educativa passa a ser analisada como uma ação permeada de
estratégias e táticas: estratégias em que as instituições, de diferentes formas, dentro das
relações de poder, elaboram todo um arcabouço teórico que tentam delimitar/circunscrever
ações, porém, todas essas estratégias não são facilmente mensuráveis ou possibilitam uma
144
prática educativa sempre previsível, tendo em vista que os sujeitos que a operacionalizam
apresentam as suas táticas para fazer do seu modo específico ou simplesmente não fazer.
Essa relação entre estratégias e táticas é sempre permeada pela possibilidade inventiva
dos seus praticantes. Como diz Certeau (2014, p. 38), “[...] o cotidiano se inventa com mil
maneiras de caça não autorizada”. Assim, as práticas, como, por exemplo, a educativa, seriam
maneiras de fazer, permeadas de táticas e de estratégias de seus participantes. Daí, serem
sempre plurais.
Esses esclarecimentos oferecidos por Certeau (2014) nos levam a ver, na educação
formal, por exemplo, que, para além do que mandam os currículos, as diretrizes e as
legislações, as táticas para fazer presente ou ausente o debate sobre as relações raciais
dependem muito da sensibilização, das vivências outras e do conhecimento docente. Essa é
uma questão em que as imposições legais têm lá a sua importância, mas o fazer cotidiano da
sala de aula pode direcionar para a educação não racista de alguns professores que, mesmo
antes das legislações inclusivas, lutavam como passarinhos tentando apagar um incêndio e,
mesmo assim, conseguiam fazer diferença. Ao mesmo tempo, podem ser também criadas
táticas para não serem trabalhadas essas questões no sentido de desmistificar preconceitos. O
que fazer, então? Eis a questão.
A prática educativa é plural e relacionada a campos de força e poder. Seria uma prática
plural porque ligada a modos de existir plurais; envolve multiplicidade de modos de ser e de
pensar. Nessa diversidade, os saberes docentes precisam interagir com as culturas existentes.
Na perspectiva de pensar a cultura no plural, cultura seria algo que nos constitui e a
educação seria algo também constituído pela cultura. As noções de cultura simbolizam que
nem sempre os diferentes saberes e povos foram vistos como detentores de cultura,
sinalizando que na medida em que a noção de cultura se amplia, aumenta também a
necessidade não só de incorporar, de valorizar, mas de, fundamentalmente, reconhecer os
diferentes saberes.
Em análise contemporânea, o termo cultura não faria sentido no singular, nem seria
passível de hierarquização, aprisionada às estruturas ou estanque. As culturas teriam um
componente ativo e construído nas relações sociais. Como assume Geertz (1989), a cultura
seria uma teia, e sua análise, uma ciência interpretativa que não tem como foco encontrar leis,
mas, sim, significados.
Problematizando questões culturais e as suas interfaces com a educação, Candau
(2011) destaca como, no âmbito das instituições educativas, a cultura escolar dominante,
construída a partir da matriz político-social e epistemológica da modernidade, ainda prioriza o
145
pessoas não se limitariam a meros receptores dos conteúdos programáticos, já que assumem a
criticidade no processo educativo.
O discurso sobre a diferença, no campo pedagógico brasileiro, parte de tendências que
apresentaram contribuições que se centraram, fundamentalmente, nos aspectos individuais e
psicoafetivos, apresentando possibilidades limitadas por praticamente ignorar as dimensões
sócio-histórica e cultural. Com relação a esses aspectos, já citados, aos poucos, percebemos a
discussão que enfatiza mais aspectos sociais e culturais, o que contribui para entender a
questão da diferença não como um problema individual, de quem está fora dos padrões
construídos como certo em nossa sociedade eurocêntrica e racista, mas como aspectos que
perpassam relações de poder que desrespeitaram e inferiorizaram culturas, construindo uma
sociedade, como diria Fanon (2008), em “Pele negra e máscaras brancas”.
A perspectiva intercultural entende a cultura em contínuo processo de construção,
desestabilização e reconstrução, sendo as relações culturais atravessadas por relações de poder
marcadas por preconceitos e discriminações a determinados grupos socioculturais. Daí, a
necessidade de diálogo entre diferentes saberes, descartando qualquer tentativa de
hierarquizá-los, valorizando o diálogo entre os diferentes saberes e conhecimentos, assumindo
os conflitos que emergem desse debate e embate (CANDAU, 2011).
Na direção da perspectiva intercultural, a pedagogia interétnica, segundo Boakari
(1999), visa a utilização de estratégias que proporcionem a adoção de práticas e atitudes que
valorizem a diversidade, respeitando as diferenças étnicas dos grupos, dando a devida
importância a suas diferentes contribuições. Essa proposta poderia contribuir para construir
uma realidade social que reconheça as diferenças como valores dignos de respeito, o que
ajudaria a necessidade de repensar os currículos escolares.
Cruz (1987) destaca a pedagogia interétnica como um sistema pedagógico que
objetiva estudar o modo como o etnocentrismo e o racismo foram transmitidos nas diferentes
práticas educativas e, a partir de uma análise crítica, propor medidas educativas para combatê-
los e reconhecer os valores dos seres humanos como membros desse ou daquele grupo étnico.
Não podemos esquecer que a adoção de práticas educativas que valorizem nossas
diferenças ainda é um grande desafio e encontra muitas resistências. Elas necessitam, para
além de boa vontade, de muito conhecimento, disposição física e espiritual para entender que
problematizar nossos racismos e lutar pela educação em que não estejam presentes, é uma
questão não só de conteúdo, mas de mudança de perspectiva de vida, do modo de se olhar e
de olhar o outro.
147
Quando demarcamos nosso território, aprendemos a viver bem com todo mundo,
isso aí, eu aprendi, tenho raízes nos quilombos, minha mãe vem de terra de
quilombo, e, isso aí, eu fui vendo, esses princípios de solidariedade, meu pai vem
disso também, e eu fui descobrindo que a minha história de vida precisa ser
respeitada, primeiramente por mim, e de forma que, hoje, já nessa minha fase da
vida, eu continuo com esse mesmo pensamento, de estar na luta, em nossa defesa,
demarcando espaço, agora de cabeça erguida e respeitando o espaço dos outros,
porque não é fácil negro ocupar o seu espaço, negro e pobre para ocupar o seu
espaço precisa estudar, se entender no seu mundo e garantir o espaço dele.
(CHIMAMANDA, 2016. FRAGMENTO ENTREVISTA).
Eu sou a mais velha de uma família que considero bem estruturada, pai e mãe
presente que serviram dizendo o que tem de ser feito, que, às vezes, ele próprio não
faça, foram modelos daqueles que eles diziam para a gente, eu tenho esse porto
seguro, minha família é um porto seguro para mim. Às vezes, brinco na sala de aula,
que o meu pai diz que a única coisa que o pobre tem é o nome, e valores como
149
honestidade, seriedade, competência. Quando eu comecei a dar aula, não dava com a
ficha em mão, porque eu tremia muito, tinha medo de perder o domínio da sala, do
aluno imaginar que eu estava tremendo porque não sabia. Eu estudava e fazia um
roteiro na minha cabeça, com o máximo que podia, e desenvolvia aquele roteiro na
sala de aula. Um belo dia, eu percebi que não estava nervosa, e aí, comecei a ficar
nervosa, eu fiquei nervosa de uma forma bem esquizofrênica. Eu parei e percebi que
não estava tremendo, e fiquei perguntando coisas para mim: tu não está mais
levando a sério tua profissão? Tu não está levando com seriedade? Aí, voltei a
tremer [risos]. Porque eu vi que eu precisava dessa seriedade. (ANTONIETA, 2016.
FRAGMENTO ENTREVISTA).
A atuação nos movimentos sociais se relaciona com o modo como o professor Luís
destaca a necessidade de um engajamento social em sua atuação profissional. Fazer essa
“ponte” entre o seu engajamento nas atividades sociais e o entendimento do sentido do
trabalho que então executa como docente/gestor, parece algo que direciona a sua prática
educativa. De alguma forma, apesar das definições teóricas de prática educativa, cada
educador apresenta também o seu entendimento e suas influências ao educar e sua prática está
150
interligada às situações e aos espaços que geraram experiência em suas vidas. Experiência
como aquilo que toca, atravessa e faz mover.
A prática educativa realizada na educação formal, como no caso do IFMA, envolve
saberes específicos de cada área de atuação profissional, porém, o ato de educar, no nosso
entendimento, envolve muito além da transmissão de saberes específicos. Concordamos com
a compreensão de Freire (1987, p. 16):
Entendendo com Freire (1987) que educar é também formar, fica evidente que o
conhecimento específico docente é parte de um complexo mais amplo que envolve a sua
atuação como educador/a. Como educar, formar, sem dialogar com questões que envolvem o
cotidiano docente para além de qualquer conteúdo específico? Como educar sem reconhecer
as diferenças? A compartimentação do saber, que, para efeitos didáticos faz algum sentido,
pode ser um grande limite quando se pensa a atuação docente no cotidiano escolar nos limites
de uma área específica do saber, até porque o conhecimento circula e precisa de “pontes” para
fazer sentido.
A abordagem das relações raciais no contexto educacional parte da necessidade do/a
educador/a ter o entendimento de que sua prática deve ir muito além de um conteúdo
específico de cada área do saber, inclusive, em fazer um esforço intelectual para compreender
que, ao compartimentar saberes, perde-se, muitas vezes, as “pontes” que ligam e dão
significado ao conhecimento como algo transversal e que deve fazer no cotidiano.
Em nossa pesquisa, quando perguntamos sobre a importância, ou não, da abordagem
das relações raciais no contexto do IFMA, e o modo como a abordagem das relações raciais
dialogam com a prática docente dos/as entrevistados/as, é interessante perceber que nenhum
entrevistado deixou de pontuar que essa abordagem era importante ser problematizada na
instituição. As justificativas foram as mais variadas, vejamos alguns exemplos:
Com certeza, aumentou o leque do nosso egresso, o mundo está diferente, se eu não
trabalhar isso, que preparação é que estou dando? Até para os alunos entenderem
que existe essa questão da discriminação, entenderem as diferenças. (ANDRÉ, 2016.
FRAGMENTO ENTREVISTA).
A relevância é contribuir para que esses jovens, esses estudantes, essas juventudes
tenham a possibilidade de descobrir seu sentimento de pertença. Para isso, é uma
151
Eu acho importante, o Brasil tem um déficit com a história do negro, o Brasil tem
um déficit com toda a história da grande maioria, mas com o negro é mais e quando
você, dentro do Instituto Federal, foge disso, aí, para falar somente de tecnologia, é
como se você não estivesse trabalhando com seres humanos (DAVID, 2016.
FRAGMENTO ENTREVISTA).
Eu acho fundamental, primeiro, porque a gente ainda tem um país que o racismo é
marcante, né? Que as desigualdades são gritantes, que os resquícios da escravidão
estão é… extremamente presente. (SUELI, 2016. FRAGMENTO ENTREVISTA).
É muito importante você fazer essa abordagem, porque essa questão racial, ela
reflete a população brasileira, ela reflete muito um desequilíbrio, porque nós temos
muitos alunos que eles são [...] eles têm a questão racial e é muito importante estar
trabalhando isso dentro da educação profissional, e, principalmente, que... muitos
alunos, muitos deles ainda entram na escola, mas muitos deles não entram no
mercado de trabalho. (RICHARD, 2016. FRAGMENTO ENTREVISTA).
Então, eu, sinceramente, e eu não consigo perceber pra além das ações individuais,
que você tem professores que pesquisam essa temática, que discutem, que têm essa
preocupação, que fazem essas atividades, mas não como uma pauta que tá no
planejamento da instituição, né? Que realmente seja o foco dela. (SUELI, 2016.
FRAGMENTO ENTREVISTA).
iniciativa, de coisas produzidas, ela acaba sendo posições da boa vontade de servidores,
militantes que chegam com conteúdo, embasamento/engajamento, chegam com vontade de
contribuir”.
Na mesma direção desses relatos, a professora Maria infere:
Eu vejo ainda atividades, assim, ótimas, interessantes, mas não assumida pelo gestor
e não assumidas pela comunidade, mas um determinado grupo de professores, que já
se assumiu, que entendeu que o Instituto é afrodescendente, então, enquanto a gestão
não compreender isso, fica bastante complicado. (MARIA, 2016. FRAGMENTO
ENTREVISTA).
Tendo em vista que a instituição não é apenas e fundamentalmente formada por seus
gestores, mas por todos/as os que a compõem, como seu corpo docente, discente e dos/as
demais servidores/as, o que essas entrevistas nos evidenciam é que a relevância da questão
racial para a instituição é assumida, e que a abordagem das questões raciais está presente na
prática educativa da instituição, talvez não como uma prioridade institucional e com o
reconhecimento que a abordagem necessita. Então, questionamo-nos: quais possíveis entraves
para que essa abordagem faça parte da instituição para além dos “guetos” ali formados?
A pesquisa nos apontou que o reconhecimento da necessidade desse debate no
ambiente institucional pode ser o primeiro passo, mas não significa que, apenas esse
reconhecimento proporcione uma prática educativa que dialogue/combata/problematize,
efetivamente, os racismos no cotidiano da atuação docente. A abordagem da afrodescendência
em sala de aula é ainda vista como uma problemática quase exclusiva de docentes das
humanidades, sobretudo os das áreas exatas e técnicas. É com esse entendimento que o
professor Henrique fala sobre a abordagem das relações raciais:
Eu acho que todas as áreas não, certo? Eu acho que é voltado mais para algumas…
algumas áreas. Eu não vejo, não vejo… isso poderia ser tanto discutido de forma
pedagogicamente é… no planejamento, no plano, tá? Mas eu não sei onde localizar
isso numa disciplina da Matemática, tá? [...] aí, é uma questão a ser estudada, ser
discutida, levantada ...É! É… porque dentro da… de algumas disciplinas, é fácil, é
muito fácil tá discutindo esse tema, aí, eu dar… vamos dizer que eu vou tá
ensinando uma equação linear, aí, como é que eu vou abordar equação linear, tratar
das questões raciais? Aonde é que eu vou colocar… aonde é que estaria isso dentro
de uma disciplina de Matemática? Ou isto aqui seria uma questão discutida voltada
para as disciplinas sociais, deveria ficar bem claro dentro das diretrizes curriculares,
isso seria uma responsabilidade. Eu acho que já é uma conquista e tanto em todos os
níveis e o tema ser abordado, eu acho que atinge… atinge a todos… (HENRIQUE,
2016. FRAGMENTO ENTREVISTA).
contexto da pesquisa, motivo que é reforçado pela escassa presença do corpo pedagógico da
instituição potencializando essa abordagem. Como abordar uma questão que não se conhece?
Não conhecer significa não existir?
Um exemplo de como as questões raciais podem ser abordadas em diferentes áreas do
saber é encontrado em autores com Cunha Junior (2010). Nesse estudo, sobre as tecnologias
africanas na formação brasileira, o autor, que é engenheiro elétrico e sociólogo, destaca a
importância da presença de africanos a afrodescendentes para o desenvolvimento científico
em diferentes áreas, como agricultura, farmacologia, mineração, tecnologias têxteis,
matemática, construção civil, dentre outras, evidenciando que a dificuldade em estabelecer
diálogos interdisciplinares envolvendo a questão racial e diferentes áreas do conhecimento é
decorrente não da inexistência de relações, mas, para ele, advém do âmbito racista da
colonização e da continuidade racista e desinformada sobre a África e os africanos que vieram
para terras brasileiras.
Então, ser sensível à abordagem das relações raciais pode ser um primeiro passo, mas,
para fazer o diálogo entre essa abordagem e diferentes áreas do saber, requer também esforço
acadêmico de pesquisa, leituras outras, busca por formação continuada, dentre outros.
Nas entrevistas, de certa forma, os professores que assumem não abordar a temática da
afrodescendência em sala de aula, que foram cinco dos entrevistados/as, devido ao
entendimento de essa abordagem ser incompatível com sua área de atuação, apresentam suas
táticas para justificar os motivos de seu pouco envolvimento com a questão e um dos aspectos
que aparece na pesquisa é que já se sentem contemplados com a abordagem da questão racial
realizada na instituição:
[...] eu tenho colegas que trabalham muito essa questão através da arte e de outras
disciplina, a questão hoje da diversidade, da história do negro, eu acho que é
presente, sim, tenho olhado que algumas colegas minhas de trabalho têm trabalhado
e difundido bem essa questão da história do negro, essa questão da diversidade, sou
testemunha dessa questão, isso porque, no IFMA, está muito presente no cotidiano
dos professores [...] Eu vejo de uma forma muito positiva o trabalho feito por meus
colegas que trabalham na área, acho que eles são muito eficientes, são atuantes, são
grandes professores. Acho que os professores do Instituto Federal, como você, são
atuantes, estão debatendo o que precisa ser debatido, mas estão lá nos pátios, nas
suas salas, no teatro, é uma coisa viva no Instituto Federal, eu não tenho nada a dizer
negativo em relação a isso. Acho que a coisa está sendo reconhecida e acho que tem
pessoas que são preocupadíssimas nessa questão. Eu não vejo nada de negativo que
eu possa influenciar sobre isso, muito pelo contrário, eu vejo profissionais dentro da
Escola Técnica na área de língua, humanas. Lá existem negros, amarelos, brancos,
contribuindo com a formação, então, não tenho nada a dizer de negativo. Eu tenho
grandes colegas que trabalham a questão social e fazem com que esse debate das
diferenças sociais se torne muito mais ativo e atenuam bastante esse problema.
(DAVID, 2016. FRAGMENTO ENTREVISTA).
154
O que eu vejo que não é muito trabalhado, são os profissionais de cada área, cada
pessoa poderia trabalhar mais, deixar de ser conteudista e trabalhar mais essas
relações humanas, as relações dentro da formação humana, dentro do Instituto. Os
limites disso é a formação docente, as limitações da graduação em si, porque isso
tem que ser uma política dentro da formação para que se possa fazer isso [...]
(RICHARD, 2016. FRAGMENTO ENTREVISTA).
A abordagem das relações raciais em sala de aula sempre contribui para questionar o
racismo? Todo tratamento é bem-vindo, ou só alguns tipos? Esses questionamentos envolvem
o seguinte caso vivenciado na instituição e relatado pela professora Sueli:
de 2008 (BRASIL, 2008), bem como a presença de concepções e diretrizes que direcionam,
nos documentos institucionais, para a necessidade da educação para as relações raciais,
podem ser lidas como uma estratégia, nos dizeres de Certeau (2014). No entanto, temos que
lembrar que a prática educativa envolve, fundamentalmente, as táticas de seus praticantes,
práticas que são sempre inventivas, permeadas de intenções e interesses que funcionam dentro
de relações de poder, sempre encontrando possibilidades de fazer do seu modo. É só
compreendendo essa relação entre as estratégias e as táticas, ou seja, o que os sujeitos que
participam do fazer institucional “fabricam” com essas legislações e diretrizes, que vamos
entendendo os desafios e as possibilidades institucionais.
Neste tópico, analisamos práticas de docente e gestores/as do IFMA, evidenciando
como pensam e/ou abordam as relações raciais. No tópico a seguir, continuaremos
problematizando práticas docentes, tendo como foco o Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e
Índiodescendente (NEABI/IFMA), um espaço institucionalmente criado para viabilizar a
abordagem das relações raciais no contexto institucional.
[...] em 2009 já... já havia tido uma discussão antes, houve uma discussão antes de
2008, no Monte Castelo, com relação a questão da... não da questão do NEABI, mas
da questão dos conteúdos da história da África, então, houve um seminário, em
2008, isso é uma questão de justiça, pioneirismo para se criar essa discussão da
forma que está, não diria da forma, mas o passo inicial da discussão não foi comigo,
eu cheguei e já encontrei uma história, um processo. Igualmente, em 2009 ou 2010,
em Santa Inês, houve uma discussão já então no campus de lá, uma discussão em
relação a isso, mas não avançou para criar uma estrutura para pensar a
implementação da lei a partir dos currículos, era uma discussão pontual,
160
Penso que o NEABI ajudou muito nos processos do pensamento racista, lógico que
nesse contexto aí, vamos ver outras formas em relação aos preconceitos. Mudou, no
momento em que houve essa vontade, essa determinação de alguns professores e
servidores contribuir com a implementação da alteração dos artigos da LDB, a partir
daí, minimizou algumas coisas em relação ao preconceito, mudou. Hoje, o colega,
para discriminar o outro ele, sabe que tem de engolir o racismo dele.
(CHIMAMANDA, 2016. FRAGMENTO ENTREVISTA).
Foi requerido para cada Campus do IFMA que já tem o NEABI local organizado o
repasse do nome dos coordenadores com seus contatos e portarias de
implementação, constatou-se que a organização do NEABI local é uma realidade
nos Campus Buriticupu, Imperatriz e Maracanã. (Reunião Buriticupu, 13/12/ 2010).
Pela recorrência com que a questão das portarias é discutida nas reuniões do
NEABI/IFMA, em que citamos apenas alguns momentos, faz-nos entender que existiam
entraves para a efetivação institucional dos participantes do Núcleo, a dúvida quanto às
responsabilidades em relação à emissão de portarias, já com dois anos de implantação do
NEABI Central, aparece como algo que demonstra a dificuldade para estabelecer
responsabilidades quanto às questões que legalizavam institucionalmente essas participações,
bem como quando da efetivação das atividades pedagógicas de seus participantes do interior
da instituição, tendo em vista a necessidade de aspectos burocráticos, como no caso das
portarias, para alcançar progressões e promoções funcionais.
A emissão de portarias é algo burocrático, não querendo dizer que, com sua ausência,
a questão não esteja sendo debatida na instituição, inclusive, nem todos/as servidores/as da
instituição que abordam, no cotidiano da sua prática educativa, a questão racial ,no sentido de
desmistificar preconceitos em favor da educação não racista, estão fazendo parte desse núcleo
de estudos, ele é apenas uma das possibilidades.
Entendemos, porém, que, para além do aspecto burocrático, existe, nesses debates em
torno da emissão das portarias, algo do campo simbólico de reconhecimento institucional para
um tipo de atividade que está sendo realizada na instituição, que, apesar de extremamente
necessária, em cumprimento das leis, tendo em vista nossos racismos, que afetam diretamente
a efetivação da educação democrática, tem uma trajetória de pouca valorização, inclusive no
âmbito das instituições escolares.
Outro aspecto evidenciado na pesquisa, dialoga com os limites e as possibilidades da
participação da comunidade acadêmica (docentes, discentes, técnicos administrativos,
gestores/as) em atividades ligadas às questões raciais. A pesquisa demonstra a dificuldade em
conceber as atividades do NEABI como ligadas à prática pedagógica da instituição, muitas
vezes, aparece como algo apartado da instituição. Um exemplo disso foi o caso relatado, a
seguir, pela professora Chimamanda:
[...] estávamos na área de vivência, quando os meninos saíram e, no outro dia, eles
nos procuraram. Eles saíram porque um determinado professor disse: ei, vamos lá
para baixo assistir a nossa aula dos brancos e deixa esses pretos aí, batendo tambor,
fazendo as bagunças deles. Outros casos são os jovens que dizem que na hora dos
encontros, das palestras, das questões étnico-racial, o determinado professor diz
assim: olha aqui, ninguém é para sair, porque esse NEABI aí, não vai aprovar vocês.
Quando os jovens saem e vão para as reuniões do NEABI, quando chegam, estão
com faltas e mesmo mandando a relação para o setor pedagógico dizendo que foram
163
para o encontro, não aceitam, as faltas continuam lá, aí, gera um desgaste para quê?
Você encaminhou, aí, para a coordenação pedagógica e eles receberam que os
alunos estavam no evento. (CHIMAMANDA, 2016. FRAGMENTO
ENTREVISTA).
Foi destacado também que o NEABI não é um sindicato, nem um partido político e
nem um grupo de eventos. É um Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e
Índiodescendente que está constituído no Artigo 3º da Resolução n°1/2004, do
Conselho Nacional de Educação-CNE. (Reunião, São Luís, 11/04/2015).
Esse descrédito acerca das atividades pode ser compreendido como uma tática racista
no interior das instituições, que se manifesta de diferentes modos, assim como na inferência
sobre os usos dos corpos dos/as alunos/as. Nessa direção, a professora Sueli relata um caso
vivenciado por sua aluna: “Nós tivemos um problema, assim, um problema entre aspas, que
uma dessas alunas, inclusive que eu relato, ela começou a usar o turbante e uma pedagoga
pediu pra ela tirar o turbante, né? E isso gerou uma polêmica [...]” (SUELI, 2016.
FRAGMENTO ENTREVISTA).
O relato expõe um ato de violência simbólica quando é solicitada a retirada do
turbante da aluna. Os turbantes, algumas vezes utilizados apenas como adereços estéticos,
possuem significado religioso para religiões de matriz africana e islamismo, sendo também
símbolo da luta de movimentos afrodescendentes pela valorização de aspectos que positivem
a identidade afrodescendente. Então, a sua repreensão de uso no espaço escolar dialoga
negativamente com uma tentativa de reconhecimento da identidade afrodescendente
(CAPUTO, 2012).
Os aspectos que envolvem religiões de matriz africana são pontos de difícil diálogo na
sociedade e, por consequência, na escola. Enquanto o discurso é de que precisamos eliminar o
racismo, porque todos/as somos iguais, apesar das práticas racistas, poucas pessoas
confirmam seus preconceitos, mas quando o assunto trata dos aspectos que dificilmente
dialogam com esse discurso de “viva a diversidade”, e é preciso olhar e reconhecer o outro na
sua diferença, fica mais “difícil” não se identificar e assumir-se racista. Tanto nas atas, quanto
nos relatos dos/as docentes entrevistados/as, as polêmicas que aparecem com maior
164
[...] o racismo não pode ser considerado simplesmente como uma questão
individual. O racismo é parte de uma estrutura mais ampla de estruturas
institucionais e discursivas que não podem simplesmente ser reduzidas a atitudes
individuais. Tratar o racismo como uma questão individual leva a uma pedagogia e a
um currículo centrados numa simples ‘terapêutica’ de atitudes individuais
consideradas erradas. O foco seria o ‘racista’ e não o ‘racismo’. Um currículo crítico
deveria ao contrário, centrar-se na discussão das causas institucionais, históricas e
discursivas do racismo. (SILVA, 2014, p. 102-103).
epistemológicos tornando-se, como diz Bhabha (2013), fronteiras de outras vozes, de outros
discursos possíveis. Percebemos que esses questionamentos teóricos nos permitem pensar não
só nos centros, mas também nas margens, nas margens de caminhos cruzados, de fronteiras
possíveis e de identificações múltiplas, inclusive profissionais. Questionamentos constantes
fazem parte desse processo.
Pensar na fronteira é pensar com o outro. Nesse sentido, Bhabha (2013, p. 20) destaca
o “entrelugar”. Esse seria composto por “[...] momentos ou processos que são produzidos na
articulação das diferenças culturais [...]” e que forneceriam “[...] terreno para a elaboração de
estratégias de subjetivação-singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade
e postos inovadores de colaboração e contestação”.
O NEABI/IFMA foi criado como espaço para viabilizar trabalhos de ensino, pesquisa
e extensão do IFMA no campo da diversidade étnico-racial em consonância com as Leis
10.639/03 e 11.645/08. Percebemos, pela pesquisa, que o NEABI/IFMA vem trabalhando no
sentido de cumprir seus objetivos, porém, essa efetivação necessita do trabalho institucional
conjunto, não podendo ficar restrito aos participantes do Núcleo, pois envolve aspectos que
vão além das possibilidades daqueles que o compõem, como o cumprimento das legislações
federais que são para todos/as os/as docentes da instituição, motivação pessoal, conhecimento
de leituras e/ou vivências sobre as questões étnico-raciais, questões orçamentárias para
viabilizar projetos necessários, dentre outras, bem como perpassa, também e principalmente,
por questões para além dos “portões” institucionais, pois, o racismo, como destaca Quijano
(2010), é um pilar estrutural da construção das sociedades modernas.
Entendemos as ações de núcleos de estudos, como o NEABI/IFMA, como potência
para ser um “entrelugar” institucional, pois apresentam proposta que questiona o
eurocentrismo e os racismos formulados no contexto de colonialidade, buscam outras
histórias, sobretudo que valorizem culturas que estavam nas margens desse processo de
educação eurocentrado, dialoga com identidades múltiplas que atravessam a questão racial
como a religiosa, a geracional, de gênero, por exemplo, demonstrando que é possível educar
de outro modo. Porém, tentam fazer tudo isso nos limites de uma instituição em que a
problemática do racismo passa por ela, atravessa, e vai muito além do racismo institucional
que é parte de relações raciais que ainda deformam ao tentar formar pessoas, sendo um
desafio já aceito por muitos/as de nós pensar a educação tendo por base a humanidade comum
que temos, valorizando as nossas diferenças.
167
O tempo é relativo: pouco tempo, muito tempo, tempo ideal, tempo real, tempo do
corpo, tempo da mente, tempo. A composição de um trabalho acadêmico tem tempo de iniciar
e tempo de “aparar as arestas” e ver o que foi possível fazer, tendo em vista o fio e os rastros
que cada um desenha, que sempre são de acordo com as possibilidades que incluem a vida
acadêmica, porém, o tempo não para quando escrevemos uma tese, outras histórias, nem
sempre possíveis de serem relatadas nos textos acadêmicos, fazem parte diretamente do modo
como conseguimos entender e sistematizar a pesquisa. O meu contexto de mulher
afrodescendente, ludovicense, professora de História da Educação Profissional e Tecnológica,
esposa e que se tornou mãe ao mesmo tempo em que dava vida a esta pesquisa, dialogou
intensamente com este estudo.
Entendemos que a tese, para ter vida, precisa ir se reconfigurando com nossos novos
saberes, vivências pessoais, profissionais e com as inventividades daqueles que irão ler este
texto a partir de suas histórias, conhecimentos e interesses. Assim, “concluir” é um termo
muito forte para seres tão inacabados e em constante mudança como nós, o que temos, nessas
linhas que seguem, são considerações proporcionadas pela pesquisa neste momento e que
servem, fundamentalmente, para continuarmos problematizando as relações raciais e, quem
sabe, inspirar outros/as pesquisadores/as a perceber outras tantas facetas sobre as relações
raciais que podem aparecer neste texto e que precisam de aprofundamento.
Neste estudo, abordamos as relações raciais entendendo que a racialização das
relações de poder fincadas, com a colonização moderna, transformou a ancestralidade africana
e a cor da pele fenotipicamente pigmentada como significante de inferioridade e
subserviência, aspectos reinventados continuamente com a colonialidade do poder e do saber,
que se fortaleceu da tentativa de imposição de uma história única, em que os
168
oferecidas pela trajetória de vida, das ações e dos posicionamentos profissionais, elas estão
imbricadas, conversam, dialogam, questionam-se mutuamente.
Consideramos que a nossa história afrodescendente, roubada dos currículos
escolares/universitários e, consequentemente, das práticas docentes de grande parte dos/as
profissionais da educação foi uma estratégia da colonialidade do saber para invisibilizar
saberes e perpetuar diferenças, tendo a cor da pele como significante. Essa nossa história
roubada fez e faz muita falta para que os/as docentes e os/as gestores/as tenham algum
direcionamento de como, do porquê e da importância de abordar as relações raciais. Esse
desconhecimento leva ao entendimento, observado na pesquisa, de que a questão racial é
temática de responsabilidade dos/as professores/as das humanidades e não uma questão
transversal, conforme preconizam, também, os parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
(BRASIL, 1997), que deve, pode e que é legalmente exigido que esteja no currículo escolar
como um todo.
Percebemos que entre os/as entrevistados/as, as trajetórias pessoais, ligadas aos
aprendizados de família e à atuação em movimentos sociais, foram mais contundentes para
que fossem abordadas, em suas práticas profissionais, a questão racial do que as
oportunidades vivenciadas nos espaços escolares/universitários dos docentes participantes da
pesquisa. Observamos, também, que a simples identificação como afrodescendente não está
diretamente relacionada a práticas profissionais questionadoras das relações raciais.
Na pesquisa, identificamos que uma das maneiras de o racismo institucional se fazer
presente, escamoteando seu aspecto criminoso, é por meio das ditas “brincadeiras”, “piadas”,
“apelidos” racistas. Nos relatos de docentes e gestores, esse aspecto aparece com intensidade.
Geralmente, esses casos vêm à tona como um questionamento aos distintos modos de ser
afrodescendente, uma forma de vigiar, tendo por base linhas abissais do que é belo e do
comportamento esperado quando um/a afrodescendente está em espaços sociais onde somos
minoria. Então, a dita “brincadeira” racista aparece como uma manifestação cotidiana do
racismo institucional.
Inferimos que a abordagem das relações raciais no contexto institucional passa pela
incorporação efetiva de conteúdos específicos sobre a África e os/as afrodescendentes, bem
como pela maior representatividade de nós, afrodescendentes, nos espaços institucionais,
porém, essa é uma questão que vai muito além disso, envolve, minimamente, ações que
questionem a colonialidade e seu modo racista de estruturação e sistematização dos diferentes
conhecimentos produzidos pela humanidade, a fim de que, assim, com esse olhar para além
do eurocentrismo, possamos, pelo menos, causar fissuras que possibilitem espaços
171
questionadores com potência de criar relações outras. Desse modo, questionamo-nos: como
diferentes espaços – familiares, de movimentos sociais, religiosos, educacionais, dentre outros
– podem dialogar no sentido de desestabilizar a colonialidade e oportunizar relações humanas
que não tenham as diferenças como motivo de inferiorização entre seres humanos?
Para analisar as práticas relatadas no tocante à educação para as relações raciais por
profissionais do IFMA, partimos do seguinte questionamento: quais tipos de práticas são
construídos para problematizar a questão racial? Observamos que as práticas profissionais que
problematizam a questão racial envolvem aspectos múltiplos das vivências do/a educador/a,
como os diferentes espaços de sociabilidade que fazem parte do cotidiano desses/as docentes,
necessitando que o/a educador/a consiga dialogar para além dos saberes específicos de sua
área de atuação e busquem constante atualização profissional.
A abordagem das relações raciais no contexto institucional foi vista como algo
importante pelos/as participantes da pesquisa, nenhum/a deles/as enfatizou que essa temática
não seja de importante problematização no contexto da Educação Profissional e Tecnológica,
e, para isso, lançaram mão de diferentes aspectos para justificar essa necessidade, porém,
observamos que achar importante não corresponde à presença de ações educativas voltadas
para problematizar as questões raciais por parte da maioria desses docentes. Então, ser
sensível à abordagem das relações raciais é o primeiro passo, mas não garante a efetividade da
temática no contexto institucional.
A abordagem da questão racial aparece como uma necessidade institucional, tanto que
está presente nos documentos institucionais que tentam direcionar a prática pedagógica da
instituição, bem como os participantes da pesquisa apresentaram diferentes motivações para a
necessidade dessa abordagem, porém, a efetivação da educação para as relações raciais
aparece como um “problema” do outro e não uma questão nossa.
Dentre os diferentes aspectos que a pesquisa apontou para as dificuldades de abordar
as relações raciais em sala, destacamos o entendimento de alguns/as docentes de que a
questão racial é incompatível com suas áreas de formação, e que se preocupar com tal
temática atrapalha o andamento dos conteúdos específicos, com destaque desse entendimento
para professores que trabalham disciplinas relacionadas às áreas técnicas. De que modo
podemos vencer essas barreiras de formação, tendo em vista que a educação é um processo
mais amplo que as especificidades entre as áreas do saber?
Foi evidenciado, também, que alguns/mas professores/as ligados às humanidades já
apresentam trabalho relacionado às questões raciais, o que faz com que professores/as de
172
outras áreas se sintam contemplados e satisfeitos com a atuação dos colegas que realizam tal
abordagem, logo, entendem desnecessárias as suas contribuições.
Os/as professores/as que destacaram realizar a abordagem das relações raciais em sala
de aula, evidenciaram, constantemente, o caráter de excepcionalidade com que tal questão é
trabalhada na instituição, afirmam que, quando a fazem, é a partir de demanda pessoal, por se
sentirem afetados/as com os preconceitos advindos da sociedade racista e por entenderem que
a educação tem importante papel, no sentido de contribuir para que a sociedade se torne não
racista, e não como uma necessidade presente na política institucional.
O NEABI/IFMA aparece, nesse contexto, como uma fronteira institucional, pois, para
a realização de suas ações, enfrenta o racismo institucional e, mesmo sendo um núcleo
institucionalizado, encontra dificuldade de fazer com que os profissionais da instituição
entendam essas ações como parte das práticas pedagógicas da instituição e não como uma
ação da vontade individual de um “gueto” institucional. Porém, ao propor ações que
contribuem para desmistificar racismos, demonstrando os tentáculos da colonialidade no fazer
cotidiano da instituição, proporciona espaços questionadores e com potência de problematizar
as relações raciais na Educação Profissional e Tecnológica.
A partir dessas constatações, confirmamos a seguinte tese deste estudo: de que a
colonialidade presente em nossos corpos e mentes faz com que a abordagem das relações
raciais esteja na fronteira, sendo realizada nos limites de uma sociedade eminentemente
racista, porém apresenta possibilidades de, ao evidenciar/descortinar esses racismos,
questionar a colonialidade que tem na educação formal ainda uma grande aliada.
Aprendemos, com este estudo, a importância de continuar problematizando diferentes
espaços onde os racismos se fazem presentes. O recorte desta tese na Educação Profissional e
Tecnológica nos faz ver algumas especificidades, como a estreita relação entre o
direcionamento do público-alvo para as diferentes modalidades de ensino e os racismos
brasileiros, porém, evidencia que o enfrentamento ao racismo se faz presente em múltiplos
espaços, inclusive no interior da prática profissional de servidores/as da Educação
Profissional Tecnológica. A importância deste estudo reside em possibilitar questionamentos
aos racismos brasileiros e, ao questionar, por meio de pesquisas, contribuir para o
conhecimento científico para além da colonialidade.
É preciso desestabilizar a colonialidade, deixando ver o modo preconceituoso com que
foram tecidas a nossa forma de ver o mundo; é preciso evidenciar que as contribuições da
humanidade não podem ser vistas sob as lentes de uma história única, pois existem meandros
que só se pode ver quando se respeita as especificidades das vivências e dos saberes
173
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APÊNDICES
185
DESCRIÇÃO DA PESQUISA
O projeto de pesquisa intitulado “COM A PALAVRA A\O MESTRA\E: O ENSINO
PROFISSIOANAL TECNOLÓGICO E A AFRODESCENDÊNCIA EM TEMPOS DE EDUCAÇÃO
PARA AS DIVERSIDADES” Tem por objetivo Compreender como o Instituto Federal do Maranhão-
Ifma lida, na atualidade, com a necessidade de um trabalho interdisciplinar voltado também para
ensino e pesquisa com foco nas diversidades/ afrodescendência. Você participará de entrevistas
semiestruturadas que serão registradas, via áudio, para posterior estudo.
Você tem total liberdade para, desistir de continuar na pesquisa a qualquer momento no
decorrer da pesquisa ou depois. Caso você sinta algum constrangimento em responder alguma
pergunta poderá optar por não responder. A sua participação será totalmente voluntária e uma
desistência sua não lhe causará nenhum prejuízo.
Em qualquer etapa do estudo, você terá acesso aos profissionais responsáveis pela pesquisa
para esclarecimento de eventuais dúvidas. O orientador é o Prof. Dr. Francis Mussa Boakari, que pode
ser encontrado no endereço: Centro de Ciências da Educação – CCE, Programa de Pós-Graduação em
Educação – PPGED - Sala 02, Campus Universitário Ministro Petrônio Portella - Bairro Ininga -
186
Maranhão, ______de_____________2016.
____________________________________
Nome
CPF nº
_________________________________________________
Assinatura:
RG nº __________
_________________________________________________
Assinatura:
RG nº __________
Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido deste
sujeito de pesquisa ou representante legal para a participação neste estudo.
_________________________________________________
Assinatura do pesquisador responsável
188
3. Na sua avaliação, o que modifica na Educação Profissional com a criação dos Institutos
Federais (em relação ao que era antes como CEFET)?
5. Para você, qual a importância, ou não, da abordagem das relações raciais no contexto do
Ifma? A temática das relações raciais / afrodescendência está presente em sua prática
docente/e ou gestora? De que modo?
11. Eu gostaria que você fizesse uma pequena reflexão sobre esta entrevista, o tema da
pesquisa, as questões propostas, etc. e fizesse uma fala de encerramento.
189
Data:
Horário: