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Despertar Os Leões Ayelet Gundar Goshen Full Chapter Free

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Despertar os leões Ayelet Gundar

Goshen
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Despertar os leões
tradução
Paulo Geiger
Parte 1
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10

Parte 2
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
Autora
Créditos
Para Ioav
E exatamente no momento em que atingiu aquele homem, pensou
consigo mesmo que aquela era a lua mais bela que vira em sua vida.
E logo depois de atingi-lo, ainda estava pensando na lua, e
continuou a pensar na lua, e então parou de pensar de uma só vez,
como uma vela que tivesse sido soprada. Ele ouve a porta do jipe se
abrir e sabe que foi ele mesmo quem a abriu, e é ele mesmo quem
está saindo do veículo agora. Mas essa constatação só está
vinculada a seu corpo muito tenuamente, como a sensação da
língua ao passar na gengiva após a anestesia: tudo está lá, mas
diferente. Seus pés pisam o cascalho do deserto, ele ouve kachchat,
kachchat a cada passo, e esse ruído é uma prova de que está
mesmo caminhando. E em algum lugar na extremidade do próximo
passo o espera o homem que ele atropelou, dali é impossível vê-lo
mas ele está lá, mais um passo e estará lá. O pé já está no ar, mas
ele retarda o movimento, tenta postergar o próximo passo, o final,
aquele depois do qual não haverá alternativa senão olhar para o
homem estendido à margem da estrada. Se ao menos fosse possível
congelar esse passo, mas isso é obviamente impossível, assim como
é impossível congelar o momento que o antecedeu, o momento
exato em que o jipe atingiu o homem, isto é, o instante preciso em
que o homem que dirigia o jipe atingiu o homem que caminhava. E
só o próximo passo revelará se esse homem, o pedestre, ainda é um
homem ou já é alguma outra coisa, uma palavra que só de pensar
nela o pé já se imobiliza no ar, no meio do passo, pois existe a
possibilidade de que o passo se complete e descubra que o pedestre
não é mais um pedestre, nem mesmo um homem, apenas a casca
de um homem, uma casca rachada, sem um homem lá. E se o
homem estendido não for mais um homem, ficará difícil imaginar o
que será do homem que ali está, de pé, tremendo, sem conseguir
completar um simples passo. O que será dele.
Parte 1
1

Havia poeira por toda parte. Uma camada branca, fina, como a
cobertura de um bolo de aniversário que ninguém quer. Ela se
acumulava nas folhas das palmeiras na praça principal, nas árvores
adultas que tinham sido trazidas de caminhão e fincadas no solo, já
que ninguém confiava que mudas jovens conseguissem vingar aqui.
Cobria os cartazes remanescentes das eleições municipais, que três
meses depois ainda estavam pendurados nas varandas das casas;
homens calvos e bigodudos debaixo da poeira olhando para o
público de potenciais eleitores. Parte deles ostentando um sorriso
autoritário e parte com um olhar severo, tudo de acordo com a
orientação do marqueteiro de plantão. Poeira nos cartazes de
propaganda; poeira nas paradas de ônibus; poeira nas buganvílias
ao longo da beirada das calçadas, que desmaiavam de sede; poeira
em toda parte.
Mesmo assim, parece que ninguém dava atenção a isso. Os
habitantes de Beer Sheva tinham se acostumado com a poeira como
se acostumaram com todo o resto — desemprego, crime, jardins
públicos semeados de garrafas quebradas. As pessoas da cidade
continuavam a despertar para sair às ruas cheias de poeira, iam para
seus trabalhos empoeirados, faziam sexo debaixo de um manto de
poeira e geravam filhos em cujos olhos a poeira se refletia. Às vezes
ficava pensando o que ele odiava mais — a poeira ou os habitantes
de Beer Sheva. Aparentemente, a poeira. Os habitantes de Beer
Sheva não ficavam grudados em seu jipe toda manhã. A poeira, sim.
Uma camada branca, fina, que borrava o vermelho vivo do jipe e o
fazia ficar de um rosa desbotado, uma paródia dele mesmo. Furioso,
Eitan estendeu um dedo sobre o para-brisa e apagou um pouco
daquela vergonha. A poeira continuou grudada em sua mão mesmo
depois de esfregá-la na calça, e ele sabia que teria de esperar até
lavá-la no hospital Soroka para se sentir realmente limpo de novo.
Que se foda esta cidade.
(Às vezes ouvia os próprios pensamentos e se assustava.
Lembrava então a si mesmo que não era racista. Que votava no
Merets.[1] Que estava casado com uma mulher que, antes de se
tornar Liat Green, chamava-se Liat Samucha.[2] Após contabilizar
tudo isso ficou mais tranquilo, e pôde continuar a odiar a cidade com
a consciência limpa.)
Quando entrou no carro tratou de manter o dedo maculado longe
de qualquer zona de contato, como se não fosse parte de seu corpo,
e sim uma amostra de tecido que em mais um instante apresentaria
ao professor Zakai para que pudessem examiná-la juntos, com
olhares ávidos — revele-nos quem você é! Mas o professor Zakai
estava agora a muitos quilômetros dali, despertando para uma
manhã livre de poeira nas ruas verdejantes de Raanana, acomodado
confortavelmente em sua Mercedes prateada, abrindo caminho para
o hospital em meio aos engarrafamentos da região central do país.
Enquanto atravessava as ruas de Beer Sheva, Eitan desejou ao
professor Zakai pelo menos uma hora e meia parado e suando no
entroncamento de Guea, com o ar-condicionado quebrado. Mas
sabia muito bem que o ar-condicionado de uma Mercedes não
enguiça, e que os engarrafamentos em Guea são apenas uma doce
lembrança daquilo que Eitan deixara para trás quando mudara: a
cidade grande. Um lugar para o qual todos querem ir. Era verdade
que em Beer Sheva não havia engarrafamentos, e ele tratava de
salientar aquilo em toda conversa com conhecidos seus da zona
central. Mas quando o fazia — com um sorriso sereno estampado no
rosto, o olhar transparente de um nobre homem do deserto —
pensava sempre que num cemitério tampouco havia
engarrafamentos, e assim mesmo não estabeleceria lá seu lugar de
moradia. As casas ao longo de Shderot Reger realmente lembravam
um cemitério. Uma fileira desbotada e uniforme de blocos de
alvenaria que um dia tinham sido brancos e hoje tendiam para o
cinza. Lápides gigantes em cujas janelas se viam de vez em quando
rostos cansados, empoeirados, de um ou outro fantasma.
No estacionamento do Soroka ele encontrou o dr. Zendorf, que
lhe abriu um sorriso largo e perguntou: “E como vai hoje o dr.
Green?”. Ele extraiu lá de dentro um sorriso desgastado e o espalhou
pelo rosto o melhor que pôde, respondendo: “Tudo bem”. Depois
entraram juntos no hospital, trocando o clima e a hora que a
natureza lhes impunha pelo desafio atrevido dos sistemas de
refrigeração e iluminação que lhes asseguravam uma manhã eterna
e uma primavera que não passaria jamais. Na entrada do
departamento, Eitan separou-se do dr. Zendorf para esfregar
longamente na pia o dedo empoeirado, até que uma jovem
enfermeira passou a seu lado e observou que ele tinha dedos de
pianista. É verdade, pensou, ele tinha dedos de pianista. As
mulheres sempre lhe diziam aquilo. Mas a única coisa em que ele
tocava eram neurônios lesionados e secionados, com os dedos
envoltos em luvas, para ver que melodia seria capaz de produzir com
eles, se é que seria.
Que instrumento musical estranho é o cérebro. Você nunca sabe
de verdade que som vai sair ao pressionar uma ou outra tecla. Claro,
é muito provável que, se excitar o lobo occipital com uma leve
corrente elétrica, o homem que está diante de você vai relatar que
está vendo cores, assim como a excitação de neurônios no lobo
temporal provocará — com grande probabilidade — a ilusão de sons
e de vozes. Mas que sons? Que imagens? Aqui tudo fica mais
complicado. Porque, apesar de a ciência gostar muito de leis
genéricas, constantes, as pessoas, assim se constata, gostam de ser
diferentes umas das outras. Com ultrajante aguerrimento elas
teimam em criar novos sintomas, que, mesmo não sendo mais do
que variações sobre um mesmo tema, estão longe demais uns dos
outros para que se possa reuni-los numa única definição abrangente.
Dois pacientes com lesão no córtex orbitofrontal nunca farão o favor
de sincronizar seus efeitos colaterais. Uma vai se comportar áspera e
estupidamente, a outra vai se tornar uma pessoa compulsoriamente
jovial. Uma fará observações de cunho sexual e de mau gosto, a
outra será atacada por uma necessidade incontrolável de pegar tudo
o que encontrar pelo caminho. É verdade que a explicação para os
estremecidos familiares será idêntica: por algum motivo (Acidente de
trânsito? Tumor maligno? Bala perdida?) foi atingido o córtex
orbitofrontal, que é o responsável pela regulação do
comportamento. Do ponto de vista neurocognitivo tudo está normal:
a memória funciona e as aptidões de cálculo continuam presentes.
Mas a pessoa que eles conheciam não existe mais. Quem virá em
seu lugar? Não está claro. Até aqui. Deste ponto em diante, há um
mundo inteiro de casualidade. A casualidade, essa putinha atrevida
como ela só, fica saltitando entre os leitos do departamento,
cuspindo nos aventais dos médicos, fazendo cosquinhas nos pontos
de exclamação da ciência até estes curvarem a cabeça e se
transformarem em pontos de interrogação.
“Como então será possível saber alguma coisa?”, ele gritou em
direção ao palco de madeira no salão de conferências. Quinze anos
tinham se passado, e Eitan ainda lembrava a fúria que se apossara
dele no momento em que compreendera, num meio-dia sonolento,
que a profissão para a qual estudava não dispunha de mais certezas
do que qualquer outra área de atividade. Uma aluna adormecida a
seu lado despertara assustada com seu grito e lançara um olhar
hostil a ele. O resto da turma ficara esperando a continuação da fala
do conferencista principal, que com certeza estaria incluída na
matéria da prova. O único que não se incomodara com a pergunta
fora o próprio professor Zakai, que lhe lançara um olhar divertido da
tribuna. “E como se chama o senhor?”
“Eitan. Eitan Green.”
“A única maneira de saber alguma coisa, Eitan, é seguir a trilha
da morte. A morte vai lhe ensinar tudo o que você precisa saber.
Tome, por exemplo, o caso de Henry Molaison, um epiléptico de
Connecticut. Em 1953, um neurocirurgião chamado Scoville mapeou
os focos da epilepsia nos dois lobos temporais, e Henry Molaison foi
submetido a uma cirurgia inovadora para retirada das regiões
responsáveis pela doença, entre elas o hipocampo. Sabe o que
aconteceu depois?”
“Ele morreu?”
“Sim e não. Henry Molaison não morreu, já que despertou da
cirurgia e continuou com sua vida. Mas em outro sentido Henry
Molaison morreu, sim, pois a partir do momento em que acordou da
cirurgia não foi capaz de criar uma lembrança nova sequer. Não
conseguia se apaixonar, guardar rancor ou se manter aberto a uma
ideia nova por mais de dois minutos: após esse tempo, o objeto do
amor, do rancor ou a ideia nova simplesmente eram apagados. Ele
tinha vinte e sete anos quando sofreu a cirurgia, e apesar de só ter
morrido com oitenta e dois, na verdade ficou eternamente nos vinte
e sete. Entenda, Eitan, só depois que retiraram o hipocampo
descobriram que ele na verdade é o responsável pela codificação da
memória no longo prazo. Temos de esperar que alguma coisa seja
destruída para compreender o que estava funcionando bem antes
disso. Este é essencialmente o método mais básico na pesquisa do
cérebro: não se pode simplesmente desmontar o cérebro das
pessoas e verificar o que acontece, é preciso esperar que o acaso
faça isso por você. E então, como um bando de comedores de
carniça, os cientistas se atiram sobre aquilo que sobrou depois que o
acaso fez sua parte e tentam chegar a isso pelo que você tanto
anseia: saber alguma coisa.”
Teria sido lá que fora lançada a isca, naquela sala de
conferências? O professor Zakai já saberia que aquele aluno
diligente, fascinado, ia segui-lo como um cão fiel aonde quer que ele
fosse? No momento em que vestiu o avental branco, Eitan zombou
de sua própria ingenuidade. Ele, que não acreditava em Deus, que
ainda menino se recusava a acreditar em toda história que tivesse
algo de sobrenatural, por mínimo que fosse, transformara o
conferencista num deus ambulante. E quando o cão fiel recusara-se
a se fingir de morto, ou de surdo, mudo e cego, o deus ambulante
despejara sobre ele toda a sua raiva, expulsara-o do paraíso tel-
avivense para aquela terra desértica, para o Soroka.
“Dr. Green?”
A jovem enfermeira postou-se a seu lado e lhe relatou as
ocorrências da noite. Ele a ouviu com uma atenção razoável e foi
preparar um café. Caminhando pelo corredor, lançava um rápido
olhar aos pacientes. Uma jovem sufocava num choro silencioso. Um
russo de meia-idade tentava fazer sudoku, mas sua mão tremia.
Quatro membros de uma família de beduínos mantinham os olhos
vidrados na televisão acima deles. Eitan enviesou o olhar para a tela
— um guepardo resoluto labutava para roer os últimos resíduos de
carne do que antes disso tinha sido uma raposa de cauda vermelha,
dizia o locutor. Estava ali a confirmação, o fato de que toda vida
estava destinada ao fim; o que era proibido lembrar nos corredores
do hospital podia ser dito sem restrição na tela da televisão. Se o dr.
Green caminhasse por aquela selva de concreto chamada Soroka
falando sobre a morte, os pacientes literalmente enlouqueceriam.
Choros, gritos, ataques aos membros da equipe médica. Inúmeras
vezes tinha ouvido pacientes emocionados chamá-los de “anjos de
branco”. E embora soubesse que não eram anjos que estavam
debaixo do avental branco, e sim pessoas de carne e osso, ele não
se atinha a coisas menores. Se as pessoas precisavam de anjos,
quem era ele para privá-las daquilo? E daí que a piedosa enfermeira
tenha escapado por um triz de um processo por negligência quando
despejara numa garganta ressecada um remédio que era destinado
a outra garganta ressecada? Anjos às vezes também se enganavam,
especialmente se já não dormiam havia vinte e três horas. E quando
parentes desolados e cheios de raiva se lançavam sobre um
residente atemorizado ou uma especialista assustada, Eitan sabia
que também se atacavam assim anjos de verdade, para lhes
arrancar as penas das asas, a fim de que não voassem pelo
esplendoroso reino dos céus no momento em que o parente amado
era enviado à escuridão do pó. E eis que todas aquelas almas que
não eram capazes de aguentar sequer uma espiada fortuita no rosto
da morte agora pairavam sobre ela tranquilamente, até mesmo com
simpatia, enquanto desferia seu terror na savana africana. Pois
agora não eram só os beduínos que olhavam para a tela — o homem
russo tinha posto de lado seu sudoku e esticava o pescoço, e até a
mulher sufocante olhava a cena através dos cílios ornados de
lágrimas. O guepardo mastigava vigorosamente os restos da carne
da raposa de cauda vermelha. O locutor mencionava a seca. Na falta
de chuvas, os animais da savana começarão a devorar suas próprias
crias. As pessoas que chegavam no departamento de neurocirurgia
assistiam eletrizadas à descrição rara, no relato do locutor, de um
leão africano devorando seus próprios rebentos, e Eitan Green soube
com toda a convicção que não era pela morfina que devia agradecer
aos deuses da ciência, mas por uma Toshiba de trinta e três
polegadas.
Quatro anos antes, uma paciente com alopecia o chamara de
cínico e cuspira em seu rosto. Ele ainda podia sentir a saliva a lhe
escorrer pela face. Era uma jovem não especialmente bonita. Mesmo
assim andava pelo departamento com certa altivez real, com
enfermos e enfermeiros abrindo-lhe caminho instintivamente. Um
dia, quando ele chegou a seu leito na visita matinal, ela o chamou
de cínico e cuspiu em seu rosto. Em vão Eitan tentou compreender o
que a levara àquilo. Nas visitas anteriores, as perguntas dele tinham
sido rotineiras e as respostas dela, breves. A paciente nunca tinha se
dirigido a ele no corredor. Por não encontrar uma razão, aquilo o
deixou deprimido. Involuntariamente, Eitan foi arrastado para
pensamentos mágicos sobre cegos que enxergavam bem, mulheres
calvas a quem a aproximação da morte dotava de uma visão de raio
X que penetrava corações e rins. Naquela noite, na cama de casal
cujos lençóis recendiam a sêmen, perguntou a Liat: “Sou um
cínico?”.
Ela riu, e ele se ofendeu.
“Tanto assim?”
“Não”, ela disse, e o beijou na ponta do nariz. “Não mais do que
os outros.”
Ele realmente não era cínico. Não mais do que os outros. O dr.
Eitan Green não se cansava de seus pacientes além — tampouco
aquém — da medida do razoável no departamento. No entanto, fora
enviado para o exílio, para além de um oceano de pó e areia,
expulso do colo de um hospital no centro do país para a deprimente
aridez de concreto do Soroka. “Idiota”, sussurrou para si mesmo
enquanto lutava para ressuscitar o gorgolejante ar-condicionado do
quarto. “Idiota e ingênuo.” Pois o que, senão idiotice, faria um gênio
da medicina entrar em antagonismo frontal com o diretor ao qual é
subordinado? O que, senão idiotice em sua forma mais refinada,
faria com que ele teimasse em estar com a razão mesmo quando o
responsável — padrinho desse gênio ainda nos tempos da
universidade — lhe dizia que tomasse cuidado? Quais tinham sido as
formas de idiotice que o gênio da medicina conseguira inventar
quando dera um soco na mesa, numa pálida imitação de
assertividade, e dissera: “Isso é suborno, Zakai, e vou acabar com
isso”? E quando procurou o diretor do hospital e lhe falou dos
envelopes com dinheiro e das “cirurgias de urgência” furando a fila
que se seguiram a eles, teria sido mesmo tolo o bastante para
acreditar na expressão de surpresa nos olhos dele?
O pior de tudo é que ele faria novamente. Tudo aquilo. Na
verdade quase repetira o que dissera quando descobria, duas
semanas depois, que a única ação do diretor do hospital fora
transferi-lo.
“Vou levar isso aos meios de comunicação”, ele dissera a Liat.
“Vou fazer uma bagunça tão grande que eles não conseguirão me
calar.”
“Claro”, ela dissera, “assim que terminarmos de pagar a escola de
Iheli, e o carro, e o apartamento.”
Ela dissera depois que a decisão era dele, que ia apoiá-lo
qualquer que fosse o caminho que tomasse. Mas ele lembrara como
o castanho dos olhos dela mudou de uma só vez de um tom de mel
para um de noz dura, lembrou como Liat se revirara na cama
durante toda aquela noite, debatendo-se em seus sonhos com
horrores cuja natureza Eitan adivinhava. Na manhã seguinte, ele
entrara na sala do diretor do hospital e concordara com a
transferência.
E três meses depois já estavam ali, na casa caiada de branco, em
Omer. Iheli e Itamar brincavam na grama. Liat estava em dúvida
quanto a onde pendurar os quadros. E ele olhava a garrafa de
uísque que seus colegas de departamento lhe haviam dado na
despedida sem saber se ria ou chorava.
No fim, levou a garrafa consigo para o hospital e a pôs na
estante, junto com os diplomas. Porque, assim como eles, ela
simbolizava alguma coisa. Uma etapa encerrada, um lição aprendida.
Se ocorria dispor de alguns minutos entre um paciente e outro,
pegava a garrafa e a contemplava com atenção, detendo-se
longamente no cartão com a dedicatória. Para Eitan, que tenha
sucesso. As palavras pareciam zombar dele. Conhecia muito bem a
caligrafia do dr. Zakai, pontinhos de braille que na época em que
estudava na universidade tinham feito estudantes chorar. “O senhor
pode explicar o que escreveu?” “Prefiro que a senhora aprenda a
ler.” “Mas isto não está claro.” “Ciência, meus senhores, não é algo
claro.” E todos resmungavam e escreviam, canalizavam sua raiva em
suas avaliações de fim de ano especialmente mordazes, que nunca
modificavam nada. No ano seguinte, o professor Zakai estava de
novo na sala de conferências, sua caligrafia no quadro, cocozinhos
de pombo indecifráveis. O único que se alegrava ao vê-lo era Eitan.
Lentamente, com entusiasmada perseverança, aprendeu a decifrar a
caligrafia de Zakai, mas a figura do professor continuou a ser para
ele um hermético enigma.
Para Eitan, que tenha sucesso. O cartão estava pendurado no
gargalo da garrafa de uísque num abraço eterno, que lhe provocava
náusea. Várias vezes pensou em rasgar a dedicatória e jogá-la no
lixo, talvez se livrar da garrafa toda. Mas sempre se detinha no
último momento, olhando para as palavras do professor Zakai com a
mesma concentração com que olhava, em sua juventude, para uma
equação complicada.

Tinha trabalhado demais naquela noite, ele sabia. Seus músculos


doíam. As xícaras de café não faziam efeito por mais de meia hora.
Com a mão escondia bocejos que ameaçavam engolir toda a sala de
espera. Às oito telefonou para dar boa-noite aos filhos, e estava tão
cansado e nervoso que chegou a ofender Iheli. O menino pediu que
imitasse o relincho de um cavalo e ele respondeu “agora não” num
tom que assustou a ambos. Depois Itamar encarregou-se de
conduzir a conversa, perguntou como tinha sido o trabalho e se ia
voltar tarde, e Eitan precisou lembrar a si mesmo de que esse
menino atencioso, conciliador, ainda não completara oito anos.
Enquanto Itamar falava, Eitan ouviu ao fundo as fungadas de Iheli,
que tentava chorar sem que seu irmão mais velho percebesse.
Quando a conversa terminou, Eitan estava ainda mais cansado do
que antes e sentia-se muito culpado.
Quase sempre se sentia culpado quando pensava em seus filhos.
Não importava o que fizesse, sempre sentia que era muito pouco,
muito menos do que deveria ser. Existia sempre a possibilidade de
que seria exatamente daquela conversa, no caso aquela em que se
recusara peremptoriamente a imitar o relincho de um cavalo, que
Iheli ia se lembrar anos depois. Pois era exatamente daquele tipo de
coisa que ele mesmo se lembrava de quando era pequeno — não de
todos os abraços que recebera, mas dos que lhe haviam sido
negados. Quando começara a chorar durante a visita ao laboratório
do pai na Universidade de Haifa e sua mãe simplesmente ficara lá,
com todos os visitantes, então lhe sussurrara que devia se
envergonhar. Até podia ser que ela o tivesse abraçado depois. E
então tirado da carteira um abraço de cinco shekels para que ele se
consolasse com um sorvete. Não importava. Daquilo Eitan não se
lembrava. Como não se lembrava de todas as vezes em que pulara
da árvore no quintal e a terra o recebera com boas-vindas, e sim
daquela única vez em que se estatelara e quebrara uma perna.
Como todos os pais, Eitan sabia que não havia alternativa. Que
estava condenado a decepcionar o filho. E como todos os pais
guardava a esperança oculta de que talvez não fosse o caso. Talvez
com eles aquilo não fosse acontecer. Talvez conseguisse dar a
Itamar e a Iheli exatamente o que era necessário. E, sim, crianças
choram às vezes, mas no caso deles só iam chorar quando o choro
realmente fosse necessário. Porque eles tinham saído da linha, e não
Eitan.
Ele caminhou pelos corredores do departamento, tostado pelas
chamas geladas da luz fluorescente, e tentou pensar no que estava
acontecendo agora em casa. Itamar está no quarto arrumando seus
dinossauros, do maior para o menor. Iheli com certeza já se
acalmou. O menino é como Liat, inflama-se rápido e esfria rápido
também. Não como Eitan, cuja raiva é como a chapa elétrica do
Shabat, que fica ligada durante dois dias. Sim. Iheli já está calmo.
Agora está sentado no sofá vendo pela milésima vez A marcha dos
pinguins. Eitan já sabia o filme de cor. As piadas do narrador, os
temas musicais, até a ordem dos créditos no fim. E conhecia o filme
tanto quanto conhecia Iheli: sabia quando ia rir, quando ia recitar
junto com o narrador uma frase bombástica da qual gostava,
quando ia olhar para a tela por trás de uma almofada. As cenas
cômicas o faziam rir toda vez, e as apavorantes o faziam ter medo
toda vez, o que era estranho, pois quantas vezes pode-se rir de uma
piada que já se conhece, e quantas vezes pode-se ficar com medo
da emboscada de uma foca se você já sabe que no fim o pinguim ia
conseguir ferrar com a foca e fugir? Mesmo assim, no momento em
que aparecia a foca, Iheli mergulhava atrás das almofadas e
acompanhava de longe a história do pinguim. Eitan o observava
enquanto ele olhava para o pinguim, pensando em quando
finalmente ia deixar de lado o filme, em quando as crianças param
de pedir o tempo todo aquilo que já conhecem e começam a exigir o
novo.
Por outro lado, como é bom e confortável saber, ainda no meio do
filme, como vai terminar. E como a perigosa tempestade no minuto
trinta e dois fica mais suportável quando se sabe que ela se aplaca
no minuto quarenta e três. Sem falar das focas, das gaivotas e de
todos os outros predadores malignos que arregalam os olhos para o
ovo que a rainha dos pinguins põe, e fracassam nas tentativas de
levá-lo, e quando a emboscada da foca dá errado, como Iheli sabia
que ia dar, ele aplaude, tira o rosto de trás da almofada e diz: Pai,
posso tomar chocolate?
Pode, claro que pode. No copo roxo, porque ele não aceita beber
em nenhum outro. Três colherinhas de chocolate em pó. Misturar
muito bem, para dissolver tudo. Lembrar a Iheli que se beber agora
não vai ter mais depois, porque não é saudável. Saber que daqui a
duas horas ele vai acordar e pedir mais. E que há uma boa
possibilidade de que consiga, porque Liat não aguenta o choro dele.
Perguntar a si mesmo como é que aguenta o choro. Se porque é um
educador tão eminente, um pai autoritário e coerente, ou por outro
motivo.
Por Itamar ele se apaixonou assim que nasceu. Por Iheli, levou
mais tempo. Eitan não falava a respeito. Não é o tipo de coisas que
se fala sobre crianças. Sobre mulheres, é permitido. Por exemplo:
estamos namorando já faz um mês, mas ainda não estou
apaixonado. Quando se trata de um filho, supõe-se que você o ame
imediatamente. Mesmo quando ainda não o conhece. Com Itamar
foi assim. Ainda antes de lhe dar um banho, antes mesmo de ver
seu rosto, ele já tinha um lugar em seu coração. Talvez porque nas
semanas que antecederam o parto tudo o que Eitan fez foi abrir
espaço. Abrir espaço nos armários para as roupas, nas gavetas para
os brinquedos, nas prateleiras para as fraldas. Quando Itamar
finalmente chegou, escorregou para aquele espaço no coração com
a maior naturalidade, acomodou-se nele e não saiu mais.
Ou, pelo menos, aconteceu assim com Eitan. Para Liat foi um
pouco mais difícil. Eles concordaram que era por causa das dores e
dos hormônios, e que se ela não parasse de chorar dentro de dez
dias, iam procurar um médico. Ela parou de chorar antes daquilo,
mas levou um tempo para começar a sorrir. E eles não falavam sobre
aquilo, pois não havia o que falar, mas os dois sabiam que Eitan
tinha gostado de Itamar imediatamente, e Liat duas semanas
depois. E que com Iheli fora o contrário. E sempre resta a dúvida se
o progenitor que começa a amar depois não está um pouco atrasado
ao alcançar o amor do outro numa corrida culpada e ofegante, e se
caminha agora ao lado ou ainda ficou para trás.

Seis horas depois, quando conseguiram afinal tratar dos feridos do


acidente na Aravá, Eitan despiu finalmente o avental. “Você parece
estar arrasado”, disse a jovem enfermeira, “quem sabe não deveria
dormir aqui?” Eitan estava cansado demais para se dar conta dos
significados ocultos que haveria ou não naquelas palavras. Ele
agradeceu educadamente, lavou o rosto e saiu para o ar noturno.
Logo ao primeiro passo sentiu o que dezenove horas de ar-
condicionado tinham conseguido fazê-lo esquecer: o calor do
deserto, opressivo e poeirento. O delicado zumbido nos corredores
do hospital — a agradável sinfonia do murmúrio de monitores e
sinais sonoros de elevadores — cedeu lugar de repente aos ruídos
da noite de Beer Sheva. Os grilos estavam suados demais para
cricrilar. Os gatos de rua, ressecados demais para miar. Só o
aparelho de rádio no apartamento no outro lado da rua berrava
teimosamente uma conhecida música pop.
No outro lado dos portões do hospital já se divisava o
estacionamento vazio, e Eitan ousou esperar que alguém tivesse
roubado o jipe. Liat ia ficar furiosa, é claro. Ia fazer suas ligações,
amaldiçoar os beduínos como só ela podia. Depois chegaria o
dinheiro do seguro e ela insistiria que comprassem um novo. Só que
daquela vez ele diria não, o mesmo “não” que não ousara dizer
quando ela teimara em mimá-lo na hora da mudança. Ela dissera
mimar, e não indenizar. Mas os dois sabiam que era a mesma coisa.
“Com eles vamos varar as dunas em torno de Beer Sheva”, Liat lhe
disse. “Você vai fazer um doutorado em direção off-road.” Soara
quase verdadeiro quando ela falara, e nos primeiros dias
empacotando as coisas ele ainda se consolava pensando em
vertentes agudas e íngremes declives. Mas, quando chegaram em
Beer Sheva, Liat mergulhou em seu novo trabalho, e passeios de jipe
nos sábados pareciam estar mais distante do que nunca. No início
ainda tentou sugerir a Sagui e a Nir que se juntassem a ele, mas
desde que deixara o hospital as conversas com os dois rareavam
cada vez mais, até que a própria ideia de se divertirem juntos
começou a parecer estranha. O jipe vermelho acostumou-se
depressa com sua transformação de lobo off-road num poodle
doméstico, e com exceção do leve ronco que emitia subitamente
quando arrancava, parecia em tudo com um carro suburbano
normal. A cada semana que passava Eitan o abominava mais. Agora
— quando o avistou atrás da guarita do guarda — conteve com
dificuldade o impulso de chutar o para-choque.
Quando abriu a porta Eitan surpreendeu-se ao descobrir que
estava totalmente desperto. Um último acúmulo de noradrenalina
desprendera-se de uma prateleira esquecida no cérebro e lhe
transmitira uma nova e inesperada onda de energia. A lua cheia
brilhava acima dele numa brancura promissora. Quando deu a
partida no jipe, o motor roncou com uma pergunta. Quem sabe esta
noite?
E de uma só vez ele girou o volante para a esquerda e não para a
direita, lançando-se na direção das colinas que ficavam ao sul da
cidade. Uma semana antes da mudança tinha lido na internet sobre
uma trilha para jipes especialmente desafiante, não muito longe do
kibutz Telalim. Àquela hora, com as estradas desertas, estaria lá em
vinte minutos. Ouviu o ronco prazeroso do motor quando o
velocímetro ultrapassou a marca de cento e vinte. Pela primeira vez
em longas semanas, Eitan surpreendeu-se sorrindo. E o sorriso
transformou-se em alegria pura quando descobriu, apenas dezoito
minutos depois, que a trilha junto ao kibutz Telalim fazia justiça à
fama. Uma lua imensa inundava a estrada de terra branca, e as
rodas do jipe o empurravam para a frente, para a profundez do
deserto. Após quatrocentos metros, elas se detiveram num ranger
de freios. Na estrada havia um enorme porco-espinho. Eitan estava
certo de que ele fugiria, mas o animal simplesmente continuou lá,
olhando para ele. Nem se deu ao trabalho de eriçar os espinhos. Ele
ia ter de contar aquilo para Itamar. Por um momento considerou
pegar o celular e tirar uma foto, mas sabia que aquilo só prejudicaria
a história. O porco-espinho à sua frente tinha menos de um metro
de comprimento, e o que ia descrever para Itamar teria pelo menos
um metro e meio. Aquele porco-espinho não eriçava os espinhos,
mas o outro ia atirar espinhos para todos os lados. O porco-espinho
real não emitia um som sequer, o da história ia dizer: “Perdão, você
pode me dizer que horas são?”.
Eitan riu consigo mesmo, imaginando o riso de Itamar. Talvez
depois repita a história a seus colegas de classe. Vai prender a
atenção deles por conta de um porco-espinho encantado. Mas Eitan
sabe que é preciso muito mais do que um porco-espinho falante
para romper a parede de vidro que existe entre seu filho e as outras
crianças. Ele nunca entendeu de onde Itamar arranjara aquela
introversão. Pois nem ele nem Liat tinham sido do tipo que ficava de
lado contemplando a vida. Verdade que em ambos havia certa
medida de afastamento, às vezes até mesmo de arrogância, mas
sempre faziam aquilo entre eles. Como dançando em uma festa e ao
mesmo tempo fazendo pouco dos outros pares. Ou rindo com outros
casais num jantar e depois, no caminho de volta para casa,
criticando-os. Com Itamar era diferente. O filho contemplava o
mundo de fora. E apesar de Liat dizer o tempo todo que não tinham
o que cavoucar, que aquilo era bom para ele, Eitan não estava certo
de que fosse por livre escolha. Não que Itamar fosse ignorado ou
boicotado. Ele tinha Nitai. Mas, na verdade, só Nitai. (O que é
perfeitamente normal, Liat vivia lhe repetindo, algumas crianças têm
muitas amizades e outras se dão melhor com uma ligação mais
íntima.) Aquilo não tranquilizava Eitan, que fazia de tudo para
agradar Nitai, sugerindo com naturalidade pedir uma pizza ou verem
um filme, tudo para deixá-lo contente. Enquanto isso, ele observava
atentamente os olhos do garoto — se queria de fato estar ali ou se
era uma concessão (porque outro colega não podia recebê-lo
naquele dia; porque a mãe queria vir se aconselhar com Eitan sobre
alguma questão médica). Aquilo deixava Liat louca. “Chega de pizza.
Itamar vai pensar que você está comprando suas amizades. São
mérito dele.”
Talvez ela tivesse razão. Talvez ele devesse relaxar. Não havia
quaisquer indícios de que Itamar estivesse sofrendo na escola.
Mesmo assim, ficava preocupado. Porque com ele próprio não tinha
desse jeito. Quando todos os garotos iam para a praça nas noites de
sexta-feira, Eitan estava lá. Não numa posição central, mas estava
lá. E seu filho, não. Embora isso não devesse fazer muita diferença
para ele, na verdade fazia. (E talvez não fosse a preocupação com
Itamar que o mobilizava, e sim o medo da decepção que pudesse
sentir em relação ao filho. Exatamente porque nas outras coisas
eram tão parecidos. Quase como irmãos siameses. Eitan pegava
aquela decepção e a isolava no lugar mais recôndito, trancando a
porta. Mas ainda havia a possibilidade de que ela de repente
respingasse nele, na frente de Itamar, sem que tivesse a intenção.)
Fora do jipe, o porco-espinho lhe virou as costas e continuou seu
caminho. Eitan o olhava de longe. Lento, insolente, os espinhos se
arrastando atrás. Ele o viu se confundir com as rochas escuras e
desaparecer. O caminho à sua frente estava de novo deserto,
convidativo. Sentiu de repente que aquela parada só deixava claro o
quanto estava ávido por movimento. Devia seguir em frente, mas
espere aí: uma boa corrida exige trilha sonora. Hesitou entre Janis
Joplin e Pink Floyd antes de decidir que nada era melhor que os
gritos atormentados de Joplin para uma jornada noturna como
aquela. A cantora realmente gritou, no volume máximo, e o motor
gritou também, e após um breve instante até mesmo Eitan se juntou
aos gritos. Gritava entusiasticamente na descida enlouquecida,
gritava desafiadoramente quando arrancava nas subidas, gritava
com desprendimento total na curva junto à colina. Depois se calou
(Janis Joplin continuava a gritar, eram inacreditáveis as cordas vocais
daquela mulher) e continuou a dirigir. Vez ou outra, quando a
cantora lhe parecia especialmente solitária, juntava-se a ela no
refrão. Havia anos não se divertia tanto sozinho, sem outros olhos
com os quais partilhar aquele espanto, sem alguém que ecoasse sua
alegria. Pelo retrovisor, enviesou um olhar à lua, imensa e
majestosa.
E exatamente no momento em que atropelou aquele homem,
pensou consigo mesmo que aquela era a lua mais bela que vira em
sua vida. E no primeiro momento depois de atingi-lo ainda estava
pensando na lua, e continuou a pensar na lua, e então parou de
pensar de uma só vez, como uma vela que tivesse sido soprada.
No primeiro momento tudo o que conseguiu pensar sobre si
mesmo foi no quanto precisava evacuar. Uma necessidade urgente,
absoluta, que só com muita dificuldade conseguiu segurar. Como se
todo o conteúdo de suas entranhas tivesse se soltado lá dentro,
caindo num só instante, e em mais um segundo tudo sairia sem
controle, sem uma pergunta sequer. E então, de uma vez só, o corpo
se desligou. O cérebro passou para o piloto automático. Já não
sentia necessidade de evacuar. Já não pensava se conseguiria
chegar à próxima respiração.

Era um eritreu. Ou um sudanês. Ou Deus sabe o quê. Um homem


de uns trinta anos, talvez quarenta, nunca conseguia determinar
com clareza qual era a idade daquelas pessoas. No fim do safári no
Quênia tinha dado uma gorjeta ao homem que dirigia o jipe. Sua
gratidão o sensibilizou e ele acrescentou algumas perguntas insossas
numa jovialidade na qual, naquele momento, acreditou. Perguntou:
como se chama, quantos filhos tem, qual é sua idade? Chamava-se
Hossu, tinha três filhos e a mesma idade que ele, embora parecesse
dez anos mais velho. Aquelas pessoas nasciam velhas e morriam
jovens, e no meio, o quê? Quando lhe perguntou a data exata de
seu aniversário, descobriu que tinham nascido com um dia de
diferença. Aquilo não tinha nenhum significado, mas mesmo assim…
Agora este homem, de quarenta anos, talvez trinta, está estendido
na estrada com a cabeça esmagada.
Janis Joplin insistia que se tomasse mais um pedaço do coração
dela, mas ele se ajoelhou e colou a cabeça nos lábios rachados do
eritreu. Um médico do Soroka tinha terminado seu trabalho às duas
da manhã depois de dezenove horas de plantão. Em vez de ir para
casa dormir resolvera testar o desempenho de seu jipe. No escuro.
Em alta velocidade. O que se ganha com uma coisa dessas? Eitan
olhou piedosamente para o buraco que se abrira na cabeça do
homem, mas o crânio não demonstrou qualquer intenção de se
consolidar milagrosamente. Na prova final do quinto ano, o professor
Zakai perguntara o que se fazia quando chegava um paciente com
uma abertura no crânio. Canetas tinham sido mordidas, sussurros
tinham sido trocados, e mesmo assim todos haviam fracassado. “O
problema de vocês é que vocês supõem que se pode fazer algo”,
disse Zakai quando as objeções tinham começado a se amontoar em
sua mesa. “Quando a calvária está esmigalhada e há uma ampla
lesão neurocirúrgica, a única coisa que se pode fazer é tomar um
café.” Mesmo assim Eitan mediu a pulsação, que estava rápida e
fraca, examinou o preenchimento capilar, que estava incrivelmente
lento, e depois confirmou com um rigor ridículo que as vias
respiratórias estavam livres. Com os diabos, ele não poderia ficar
simplesmente olhando o homem agonizar.
“Vinte minutos”, ecoou tranquilamente a voz de Zakai. “Nem um
minuto a mais. A menos que você tenha começado a acreditar em
milagres.” Eitan tornou a examinar a lesão na cabeça do eritreu. Era
preciso muito mais que um milagre para tornar a cobrir a matéria
acinzentada que se revelava por baixo dos cachos de cabelo:
neurônios nus, a descoberto, que brilhavam ao luar. Sangue saía
pelas orelhas do homem, claro e aquoso devido ao fluido
cefalorraquidiano, que já começara a escorrer do crânio partido.
Mesmo assim Eitan levantou-se, correu para o jipe e voltou com sua
maleta de primeiros socorros, já abrindo o pacote de ataduras,
quando de repente se deteve. De que adianta isso? Este homem vai
morrer.
E quando ela finalmente apareceu, a palavra explícita, ele sentiu
que de uma só vez todos os seus órgãos abdominais se cobriam de
gelo. Uma camada de geada branca espalhou-se do fígado ao
estômago, do estômago ao intestino. As circunvoluções do intestino
delgado estendem-se por seis a oito metros. Mais de três vezes a
estatura de um homem. Seu diâmetro é de cerca de três
centímetros, mas seu tamanho não é uniforme em todas as idades.
O intestino delgado divide-se em três partes, duodeno, jejuno e íleo.
Eitan extraiu da informação uma estranha serenidade, uma
serenidade branca e gelada. Deteve-se no intestino delgado.
Examinou-o. Sua área interna, por exemplo, é ampliada por
excrescências em forma de dedos chamadas vilosidades. Essa
estrutura multiplica a área interna do intestino delgado quinhentas
vezes, até cerca de duzentos e cinquenta metros quadrados.
Espantoso. Simplesmente espantoso. Agora reconhecia o valor de
seus estudos. Uma muralha fortificada de conhecimento que se
interpunha entre ele e aquela palavra tão imunda, “morrer”. Este
homem ia morrer.
Você tem de ligar para o Soroka, disse consigo mesmo, para que
enviem uma ambulância. Para que preparem a sala de cirurgia. Para
que convoquem o professor Tal.
Para que contatem a polícia.
Pois seria o que fariam. É o que sempre fazem quando chega o
relato de um acidente na estrada. O fato de o médico que está
cuidando da vítima ser também o motorista que a atropelou não faz
qualquer diferença. Eles vão contatar a polícia, a polícia virá e ele
explicará que estava escuro. Que não enxergou nada. Que não havia
motivo algum para imaginar que alguém estaria caminhando à beira
da estrada numa hora dessas. Liat vai ajudá-lo. Ele era casado com
uma investigadora graduada da polícia de Israel. Ela vai explicar a
eles, e eles vão entender. Terão de entender. Era verdade que estava
muito acima da velocidade permitida, e, sim, já não dormia havia
mais de vinte horas, mas a irresponsabilidade tinha sido do eritreu,
ele não tinha motivo algum para supor que houvesse alguém ali.
E o eritreu teria algum motivo para supor que você estivesse
aqui?
A voz de Liat soava fria e seca. Já a tinha ouvido falar assim, mas
sempre com outras pessoas. Com a faxineira que no fim confessou
ter roubado seus brincos de pérola, com o encarregado das obras
em sua casa que reconheceu ter superfaturado. Como gostava de
imaginá-la no trabalho, lançando um olhar distante e divertido à
pessoa que estava à sua frente sendo interrogada, uma leoa
preguiçosa que brinca um pouco com sua presa antes de se atirar
sobre ela. Só que agora Eitan a via diante dele, os olhos castanhos
pregados no homem estendido no chão. E depois erguendo-se para
ele.
Olhou novamente para o eritreu. Sangue escorria de sua cabeça e
manchava o colarinho de sua camisa. Com sorte, o juiz ficaria
satisfeito com alguns meses. Mas não poderia continuar operando.
Aquilo era certo. Ninguém aceitaria um médico condenado por ter
matado alguém. Nem a mídia, Iheli, Itamar, Liat, sua mãe ou os
conhecidos que encontraria por acaso na rua.
O eritreu continuou a sangrar, como se fizesse aquilo de
propósito.
De repente soube que tinha de sair dali. Agora. Aquele homem
ele já não conseguiria salvar. Tentaria pelo menos salvar a si mesmo.
A possibilidade pairava no ar noturno, simples e clara: entrar no
jipe e sair voando dali. Eitan olhou-a à distância, tenso,
acompanhando seus movimentos. E a possibilidade já dava um salto
para envolvê-lo, e o envolveu inteiro, um pânico gelado e urgente
que lhe gritava na orelha — para o jipe. Agora.
Mas no mesmo instante o eritreu abriu os olhos. Eitan ficou
paralisado. O ar ficou mais rarefeito e sua língua parecia uma lixa na
boca. A seus pés, junto aos sapatos com palmilha ortopédica que
comprara no free shop, jazia o eritreu com o crânio esmagado e os
olhos arregalados.
Não olhava para Eitan. Só estava ali estirado, os olhos no céu,
com tal concentração que Eitan não conseguiu evitar lançar um
olhar enviesado para cima, para o ponto a que se dirigiam. Talvez,
afinal, exista alguma coisa lá. Não havia nada. Apenas uma lua
maravilhosa, um céu brilhante de um azul profundo. Como se
alguém o tivesse retocado com Photoshop. Quando tornou a olhar
para o chão, os olhos do eritreu estavam fechados, a respiração,
tranquila. Já a respiração de Eitan estava ofegante e agitada, todo o
seu corpo tremia. Como poderia ir embora com os olhos do homem
ainda abertos, ainda podendo se abrir? Por outro lado, olhos abertos
não querem dizer nada, diz muito mais o líquido cefalorraquidiano,
que agora não se bastava em escorrer das orelhas e também saía
pelo nariz, e pela boca em forma de espuma. Os membros do eritreu
estavam rígidos e encolhidos, rigidez de decorticação. Mesmo se
quisesse, Eitan não dispunha de um resquício sequer de vida pela
qual lutar. De verdade.
E, de verdade, parecia que o eritreu estava conformado com sua
situação, com aquela famosa serenidade africana, pois de fato fazia
o favor de manter os olhos fechados e só respirava baixinho, com
uma careta não muito diferente de um sorriso no rosto. Eitan olhou
novamente para ele antes de se dirigir ao jipe. Agora já tinha certeza
de que o eritreu sorria para ele, seus olhos fechados sinalizando sua
aprovação.
2

Dormiu bem naquela noite. Mais do que bem, foi um sono excelente.
Profundo, estável, restaurador, que continuou mesmo após o nascer
do sol. Depois que as crianças levantaram da cama. Depois que Liat
gritou que se apressassem. Ele continuou a dormir quando Iheli
gritou por causa de um brinquedo que o desapontara. Também
dormia quando Itamar ligou a televisão em volume alto. Dormia
quando a porta da casa se fechou e ouviu-se o som do carro se
afastando, com todos os membros de sua família dentro dele.
Dormiu, dormiu e dormiu, depois dormiu mais, até que chegou o
momento em que de forma alguma conseguiria continuar dormindo
— então acordou.
A luz do meio-dia penetrava pelas persianas e dançava nas
paredes do quarto. Um passarinho pipilava lá fora. Uma aranha
pequena, valente, ousou desafiar a paixão de Liat por limpeza, e
obrava de forma enérgica no tecer de uma teia, num canto acima da
cama. Eitan olhou para a aranha longamente até a benéfica neblina
do sono se dissolver e abrir lugar a uma simples verdade: ontem à
noite ele atropelou um homem e seguiu seu caminho. Cada célula de
seu corpo despertou para a clara realidade, que seria impossível
mudar. Tinha atropelado um homem. Atropelou um homem e seguiu
seu caminho. Disse a si mesmo repetidas vezes as palavras,
tentando juntar consoantes e sílabas num significado claro,
compreensível. Mas enquanto as repetia elas se desmontavam em
sua cabeça, até perder todo o sentido de realidade. Agora
pronunciava a frase em voz alta, deixando os sons se formarem no
espaço do quarto. Atropelei um homem. Atropelei um homem e
continuei meu caminho. Por mais que repetisse a frase, primeiro
sussurrando e depois em voz alta, ela ainda não lhe parecia ser uma
coisa concreta, era até mesmo idiota, como se estivesse falando
sobre algo que lera no jornal ou sobre um programa de televisão
ruim. A aranha e o passarinho tampouco ajudaram — era de supor
que passarinhos não cantassem à janela de quem tivesse atropelado
um homem e seguido sua viagem, que a aranha não quisesse
estabelecer residência acima da cama de um homem desses. E
assim mesmo a aranha continuava sua labuta e o passarinho seu
cantar, e até mesmo o sol — em vez de privá-lo de seu esplendor —
continuou a atravessar as persianas e a desenhar na parede
manchas realmente impressionantes.
E de repente para Eitan era muito importante olhar muito bem
para elas. Manchas de luz numa parede branca. (Pois assim é: um
homem levanta-se de manhã e sai de casa sem saber de nada. Beija
sua mulher na ponta do nariz e diz a ela nos vemos à noite, e
realmente supõe que vão se encontrar à noite. Ao vendedor na
mercearia ele diz até breve, com toda a convicção. E tem toda a
certeza de que dentro de alguns dias vão realmente se reencontrar,
ele e o vendedor e os tomates. E que nada mudaria demais, a não
ser, talvez, o preço dos tomates. O beijo na ponta do nariz, o
apalpar relaxado dos tomates no caixote, as manchas de luz na
parede branca vistas do mesmo ângulo, na mesma hora, todos
devem sua existência à premissa de que o que havia é o que haverá.
De que hoje também, como ontem, como anteontem, a Terra
continuará a girar em seu eixo no mesmo movimento lento,
sonolento, que embala Eitan como se ele fosse um bebê. Se a Terra
começasse subitamente a girar em sentido contrário, Eitan
tropeçaria e cairia.)
Embora já estivesse completamente desperto, continuou deitado
na cama sem se mexer. Como ousaria pôr-se de pé depois de ter
atropelado um homem e seguido seu caminho? Com certeza a terra
ia se abrir sob seus pés.
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The Project Gutenberg eBook of Laakerinlehtiä ja
lipstikkuja: Eteläpohjalaisia murrejuttuja
This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States
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restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it
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United States, you will have to check the laws of the country where
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Title: Laakerinlehtiä ja lipstikkuja: Eteläpohjalaisia murrejuttuja

Author: Jaakko Ikola

Release date: June 5, 2022 [eBook #68244]

Language: Finnish

Original publication: Finland: K. J. Gummerus Oy, 1925

Credits: Tapio Riikonen

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK


LAAKERINLEHTIÄ JA LIPSTIKKUJA: ETELÄPOHJALAISIA
MURREJUTTUJA ***
LAAKERINLEHTIÄ JA LIPSTIKKAA

Eteläpohjalaisia murrejuttuja

Kirj.

VAASAN JAAKKOO [Jaakko O. Ikola]

Jyväskylässä, K J. Gummerus Osakeyhtiö, 1923.

SISÄLLYSLUETTELO.

Papinkisälli.
Hampurin pörssi.
Puupäri kuuli ääniä ylhäältä.
Laitalan Jussi.
Ilmapuntari.
Ku Isoo-Matti poksas.
Jaakoon puuronkeitto.
Suutari varaasti paakarin akan.
Housut putos tornihi.
Kissi piru.
Köpi Pöntikkää soorrethan.
Kans kansanerustaja.
Jupen joulu.
Savolaane ja pohjalaane.
Lahoonloukon moottori.
Pataljoona lähti.
Hra Tuntematoon.
Valtiopaatti v. 1920.
Kauppaneuvos osti ilveksennahaan.
Kansakoulun jatkoluakat.
Taavetin pottu.
Myi miähensä.
Huu puri.
Karjanäyttelyssä (runo).
PAPINKISÄLLI.

Oottako kuullu minkälaane tulemus täs hiljan tuli yhyrelle nuarelle


papinkisällille?

S’oli hiljan lukunsa päättäny ja saanu kisällin paikan yhren suuren


rintapitäjän pappilas, johna se viätti hiljaasta ja miätiskeleväästä
elämää pappilan vinttikamaris, niinku asiahan kuuluuki.
Ensimmääsiä papillisia tehtäviä opetteli suarittamhan ja kovasti löi
noukan punaaseksi ku papin vanhin tytär itte aina tuli käskemhän
syämhän ja pakkas jäämhän istuskelemhan ja juttelemhan »herra
apulaasen» kans, niinku se sanoo.

Ei tiänny poikaparka, mitä olis tualle veikiälle ja punaposkiselle


papin tyttärelle sanonu, ku se katteli silmästä silmhän ja pruukas
kysyä jotta:

— Kuinka te täälä voitta, eikö teirän tuu ikävä yksinännä täälä


istua kököttää ku vanha homehtunu äijä?

Koitti poika-parka sanua jotta:

— Tuata, tuata, onhan mulla täälä kirjat, tämä kirjojen kirjaki ja


sitte mä ajattelen —
— Tänä iltana on nuarisoseuralla ilooset tanssit, ettäkö lähre
sinne? — kysyy se papin flikka.

— Kuinka, minäkö tanssihin? — Mutta, hyvä neiti, sehän on


kauhiaa — — —

— Kyllähän se kauhiaa on, mutta jee ku s’oon lystiä! — Minä


pruukaan aina karaata illalla ku pappa kontti sänkyhy. Tänäkin iltana
lähren. Tulkaa joukkohon! — — —

Sen nuaren papinkisällin meni lämpööset väristykset kruppia


pitkin, silmis tuikahti ja se huakaasi jotta:

— Voi ku sais! — — —

— Miksei saa! — huurahti flikka, jok’oli aika hulivili ja villi, nii


papinflikka ku oliki. — Nakakkaa nurkkahan kirjat ja ne syvät
funteeraamiset, jost’ei tuu hullua viisahemmaksi ja lähtekää mun
kans tanssihi!

Ja samas se flikka jo rupes menemhän yksistänsä falssia


laattialla, lauloo, pyärii ja keikisteli, n’otta sitä nuarta papinkisälliä
aiva huikaasi ja pyärrytti.

Se näki ku Heroores Saloomen eresnänsä ja käsitti, jotta nyt hän


on joutunu viättelyksehe ja koetukselle.

Se tappeli urhoollisesti vastahan n’otta suuret hikihelmet


poskipäitä juaksi. — Ja se flikka riivattu liiteli ja liahuu, ku suloone
harhakuva sen silmis.

Yiimmee poika-parka rupes luulemhan näkevänsä näkyjä ja joutuu


suuren tuskan valtahan. Mutta se päätti taistella urhoollisesti
viättelystä vastahan ja karkoottaa tuan harhanäyn silmistänsä.

Esti se sanoo vakavalla ja juhlallisella äänellä sille haamulle jotta:

— Poistu! Apii male spiritus, pthy phto!

Ja sitte aukaasi silmänsä ja kattoo, mutta siinä se haamu vai


leijaali huanehes.

Silloo se nuari papinkisälli päätti jotta:

— Täs ei sanat auta. Täytyy käyrä käsin kiinni!

Ja niin se nousi vanhalta nahkasoffalta, sylki käsihinsä ja faarttas


haamun kimppuhu.

Kuuluu vai yks kiljahrus jotta:

— Voih!

Ja sillä nuarella papinkisällillä oli sylis ilmi elävä flikka, joka löi
käret kaulan ympäri ja puristi n’otta poikapark’ oli tukehtua.

Ja kyllä se poika peljästyy ja säikähti ja huurahti jotta:

— Tekö se olittaki, ja mä ku luulin näkyjä ja haamuja näkeväni!

Ja flikka ku nauroo ja kattoo sitä nuarta papinkisälliä silmihi ja


poikaa viämistä nii jotta se jo tuumas jotta:

— Otanko totisesti ja pussata truiskahutan —

Nii samas knoputettihin ovehe ja pruustinna aukaasi oven ja


sanoo jotta:
— Mitääh? — — — Kuulkaa hra pastori, kansliaha tuli yks
nuaripari, jonka pitääs vihkiä.

Se nuari herra pastori aiva haukkoo ilmaa ja se flikka juaksi


kakluunin taa piiloho.

Ja nii oli se nuari pastori sekaasinsa, jotta siitä paikasta lähti vähä
joutua vihkimhän sitä nuartaparia kansliaha.

Pöyrältä hairas kirjan kourahansa ja nii oli pökkööksis, jotta ku


liperin sitoo kaulahansa, nii ei muistanukkaa kääntää klipua
ethenpäin, ku se jäi niskaha.

Ja kanslias seisoo nuaripari yhtä sekaasina päästä ku herra


pastoriki, sillä nyt oli se juhlallinen hetki tuleva, ku heistä, kahresta
ihmisestä piti leivottaman samaa paria piaksut, jokka yhres kulkoo
myätä- ja vastamaat.

Oli siinä viälä sulhaasella toristajakki följys, jotta kaikki menöö


laillisesti.

Ja nii oli se papinkisälli siitä omasta asiastansa päästä pyärällä,


jottei hoksannu käskiä kontillensakkaa, ku seisahalta vaa rupes
vetelemhän.

Nimekki meni nii väärin jotta kysyy toristajalta jotta:

— Tahrokkos ottaa tämän Anna Kaisa Juhantyttären


aviovaimokses?

Eikä kuullukkaa, vaikka sulhaane koitti hynkiä vastahan, jotta:

— Ei ku mä, herra pastoori, mä sen tahtoosin — — —


Mutta se päästä pyärtyny papinkisälli ei kuullukkaa.

Se jatkoo vai jotta:

— Ja nyt mä kysyn sulta Anna Kaisa, jotta tahrokko ottaa tämän


———

— Joo herra pastori, kyllä mä — — —- sopotti flikka, jok’ei liioon


kuullu eikä nähny mitää, ku s’oli niin juhlallista.

— No s’oon sitte valmis! — sanoo pappi. — Kaks markkaa s’oon


taksa.

— Tuata tuata — rupes sulhaane paneskelhon. — Se taisi ny


mennä vähä mistihi, herra pastori. — Kattokaas, s’oon mä ku
meinasin tämän Anna Kaisan ottaa, mutta se taisi ny mennä tällä
Matille täs, joka tuli niinku toristajaksi.

— Tekkös sitte olittaki sulhaane? — hämmästyy se papinkisälli.

— Minähän se oon niinku sulhaane täs ja tämä Matti on niinku


toristajaksi tullu — — —

— Voi herranjee sentähre — rupes morsiaan voivoottelemhan. —


Mattiko mun ny viää jä ku me jo tämän — — —

— Tämähän on kamala erehrys — voihkii se nuari pastorikin.

— No tuata, jos se ny jo niin umpisolmuhu meni, nii kyllä tuata


mäkin voin vaikk’ ottaa tuan Anna Kaisan — rupes se toristaja-Matti
seliittämähän.

— Ei, ei missään nimessä! — sanoo pappi. — Orottakaa ny vähä,


mä katton, mitä kirkkolaki sanoo tällääsestä asiasta.
Ja pappiparka rupes sylkemhän sormenpäähän ja plaaraamhan
kirjoja, luki ja tuteeras hyvän aikaa, mutta ei löynny kansistakaa
sellaasta pykälää, jok’olis sanonu, mitä siin’olis tehtävä.

— Mutta jos lukis koko litanian väärinpäin, nii eikö se solmu sillä
aukees? — ehrootti sulhanen. — Jos sen ny tämän Anna Kaisan
uurestansa vihkis muhun, nii siiloonhan siitä tulis kahren miähen
akka.

— Ei. Ei se passaa. Mutta mä tiärän paremman konstin — sanoo


se papinkisälli. Kun mä kysyn uurestansa varmemmaksi vakuureksi
tältä Matilta, jotta, jos se tahtoo ottaa tämän Anna Kaisan, nii sen
pitää sanua jotta:

— Ei!

Ja sitte ku mä kysyn Anna Kaisalta, nii se kans sanoo, jotta ei.

Ja sitte mä kysyn viälä jotta:

— Onko se ny vissi? — Nii sanokaa te jotta:

— Joo-oh!

— Ja sitte vihiitähän oikian sulhaasen kans.

Ja nii tehtihin ja kovasti hyvää ja lujaa tuliki.


HAMPURIN PÖRSSIS.

Oottako kuullu jotta m’oon ollu Turuus niis suamalaasen yliopiston


avajaasjuhlis ja voiin kovasti hyvin?

Mä kestaalin mones paikas ja hyvin tulin toimhen, mutta Hampurin


Pörssis mun piti vähä rähistä. Ajatelkaa ny, jotta Turku on melkeen
aiva suamalaane kaupunki, mutta siälä Hampurin Pörssis ei vaa saa
suameksi syärä.

Ja kaikki suamalaasekki siälä Turuus puhuuvat heti ruattia, ku ne


tuloovat Hampurin Pörssihi, kun s’oon niin fiini paikka.

Ja mä kun en osaa ruattia välistä olleskaa!

Arvakkaas kuinka siinä käythin kun mä tulin sinne ja meinasin


syärä suameksi?

Siinä tuli mulle ja sille passariflikallen sellaane »fenskaamine»,


jotta muiren herraan jäi suu auki ja kaffeli pysthyn.

Ja kyllä n’olis mun nakannehet pihalle, jos olsivat tohtinhet,


vaikk’en sanonu niille pahaa sanaakaa.
Mä tulin ruakasalihi, täjäsin tämän saran kilon omaasuuteni
lavittallen ja soitin mahtavasti kellolla piikaa niinku muukki herrat.

Heti siihe lentiki sellaane piperööne jotta silmiä huikaasi.

— Vaskare foo loota vara? — se sanoo ja huiskutti häntäänsä.

— Häh?! — karjaasin mä. — Sanoks’sä mua heti lootaksi senkin


pynttyhäntä? En mä ny mikää lootikko silt’ oo, vaikk’ onki isoollaane
vatta — — —

Se rupes huitoomhan käsillä ja pärpötti jotaki jotta:

— Voi voi ja intti förstoo taala finska! Hilta, Hilta kom hiit, häär
fintuppi sitta — — —

Ja nii se meni kättä heittään ja klenkutellen kun oli tullukki.

Kun mä sitte kattoon ympärilleni, niin koko sali istuu suu auki,
lihanpalat kaffelin noukas ja vahtas mua ku tulisilla kekälehillä.

Silloo mun ei auttanu muu ku tolkata sen ruattin, jonka mä aina


tairan.
Mä sanoon jotta:

— Inte so faali, pistelkää liivihinnä vaa —

Ja aivan ne frääsäs.

Ykski äijä siinä mun viäresnäm sanoo jotta:

— Dumbum!

Ja mä tokaasin vastaha heti jotta:


— Pum pum!

Sitte siihe tuliki jo köökin pualelta toine flikka, ja se puhuu aiva


purkista suamia. Kysyy jotta:

— Mitäs sais herralle olla?

— Syärä mä meinaasin täällä — — —

— Jahah, täs olis — sanoo se flikka ja pisti mun etheni yhren


paperinpalan.

— Mikäs se täm’ on? — kysyn mä.

— Ruakalista. Sopii siitä kattella, mitä haluaa.

No m’otin sen paperin kätheni ja rupesin kattelemhan, mitä siin’on.


Ja vaikka mull’on koko lailla hyvät silmät ja latinalaasestaki präntistä
saan selvän, niin siitä min’en ymmärtäny muuta ku limunaatit ja
paperossit.

— Mitäs kiältä se täm’ oikee on? — kysyyn mä siltä flikalta.

— Tuos on ruotsia ja tuos on ranskaa — viisas se flikka.

— No, mihnäs täs on suamia, jotta mäki ymmärtääsin?

— Jaa — — — suamia ei siin’oo ollenkaa — sanoo se flikka.

— Hoo-oh, soo-oh, vai ei ollenkaa! — No kuinkas mä ny sitte


tiärän, mitä räättiä mä tilaan, kun ei tästä saa selvää? — Mitäs
sorttia se tuas on?
Se flikka rupes kattomhan sitä kans ja tavas ja tankkas ja lopuuksi
sanoo jotta:

— Kuulkaa herra, emmä taira liijoon ruattia lukia — — —

Silloon mun nousi jo karvat pystyhy. Mä nousin ittekki seisomhan


ja kysyyn kovalla äänellä niiltä muilta herroolta jotta:

— Onko täälä ketää, joka voii seliittää mullen, mitä sinsalloja täs
ruattalaases plakaatis oikeen on?

Mutta kukaa ei puhunu mitää.

— No onkos täälä sitte ketää sellaasta herraa, joka honaa, mitä


täs franskan kiälell’ on kirjootettuna?

Ei ollu ketää sellaastakaa.

— No mitä tuhannen juuttahia sitä sitte tällääsiä plakaattia


kirjootethan, jost’ei saa mitää selvää? — karjuun mä ja fläiskäsin sen
paperin siihen pöyräilen jotta sualakupit poukkooli.

— Mitäs täs ny tehrähän? — kysyyn lopuksi siltä köökkipiialta.

— En mä vaa tierä — huokaasi se.

Silloon mä sanoon jotta:

— Oli ny mit’oli. Mä otan tuasta franskalaasesta kirjootuksesta


tuan kaikiista tyyrihimmän räätin — — — tuan tuas, Piff a la pöff
sankt Töff — Tua se tänne, nii kattothan, mitä se on, jos sitä ilikees
syärä.
Piika otti paperin, pani sormen sen räätin päälle jottei vaan
sekaannu ja lähti menemhän köökkihi.

Mä sain orottaa kauan aikaa ennenku tuathin.

Mutta kyllä siinä sitte oliki tavaraa! Ku oikee sellaasella lihatiinun


kannella tuatihin kaikenkokoosia kippoja ja kappoja, pläkkitoosia,
fatia ja talterikkiä ja kolmet veittet ja kaffelit ja kolme eri suurta
lusikkaaki. Kaikki ne tällättihin siihen mun eteheni jotta koko pöyt’ oli
niin täynnä jottei kyynäspäät pöyrälle mahtunhet.

Mä kattelin hyvän aikaa, jotta mistä päästä mä oikee alkaasin. Ja


kyllä siin’oli monellaasta ruakaa. Yhreski talterikis oli ku jauhovelliä ja
vehriäästä silppua, kaikellaasia heraheiniä siihen oli pilputtu. Ja
yhres kupis oli niin piäniä punaasia naurihia jotta oikee mua nauratti,
jotta mistä tuallaasia ipanoot’ oli löyrettyki.

Yhres klasises sokurikoolis oli selvää kananruokaa, piäniä


perunan, rööperon ja muuretterin paloja ja kamalaa heraa kaarettu
päälle. Ja makkaranpaloja oli seittämää eri sorttia.

Niistä mä alootinkin.

Mä nypiin vähä joka sorttia. Otin sitte yhren purkin kätheni ja


kattoon, mitä siin’on.

Ja oikee kulkaa mun nousi hiukset pystyhy, ku siinä purkis oli


kärmehenpaloja!

Tuas kahren tuuman pituusiksi palooksi oli leikooltu kärmes!

Mua rupes äykyttämhän n’otta aivan meinas tulla pöyrälle takaasi


koko franskalaane räätti, ku samas tuloo piika ja tuaa pöythän
hopiaasella prikalla suuria simpukankuaria ja limaskaasia
näkinkenkiä.

Mä huurin jotta:

— Viäkää, viäkää takaasi tunkiolle tuallaaset nilviääset! En sunkaa


må ny kaikellaasia limaskoota rupia niälemhän! — Ja tämä kärmes
ja kaikki nämä pois! — — —

— Mikä kärmes? — siunas se piika.

— Nua kärmehen palat tuas!

— Sehän on ankerias! —

— Mikä ankerjas. Kärmes s’oon! — — —

— Ei se oo kärmes, kala se on, vaikka se on kärmhen näkööne! —


höpötti se piika.

— Viä, viä hyvä ihmine pois ja joutua kaikki tyynni — — —

Mä nakkasin rahat pöyrälle, hairasin hattuni ja törmäsin pihalle.

En saattanu syärä enää koko päivänä yhtää mitää ja samana


iltana mä reissasin pois koko Turuusta.

Oikee mua viäläki yäkyttää ja mahas kaiveloo jotta, jos mä siltäkin


satuun vahingos jonkin kärmhen palan nialaasemhan.
PUUPÄRI KUULI ÄÄNIÄ YLHÄÄLTÄ.

Oottako kuullu sitä juttua ku Puupäri kuuli ääniä ylhäältä?

Siit’on jo pitkä aika sitte, ku se tapahtuu ja Puupäriki on jo kuallu,


nii jotta taitaa mun passata kertua sen, kuinka se oikee oli ja kuinka
Puupäristä tuli raitis miäs ja jätti vähä äkkiää ryyppöön pois.

Se Puupäri kattokaas oli koloporttööri ja pakkas vähä liiaksi


ryyppäämhän sekaha. Mutta hyvä s’oli saarnaamhan, sen sanoo
kaikki, jokka sit’on kuullu.

S’oli reisuusti pitämäs sananseliitystä Peräkyläs yhres taloos,


johna emänt’oli tullu uskovaaseksi. Seurat kesti kovin myöhääsehe,
nii jotta emäntä tälläs Puupärille vähä haukkaamista ovikamarin
pöyrälle ku akat veisas. Isäntäki tuli siihe juttelemhan ja kysyy sitte
jotta:

— Olis mulla tuata tarjota ruakaryyppyki? —

— Eipä tua pahaa tekisi — oli Puupäri tuumannu, jota heti rupes
kovasti hiukaasemhan.
Isäntä aukaasi piirongin klaffin ja otti halstoopin potun ja
jaloottoman ryyppyklasin, kun siit’oli menny jalka poikki. Kaatoo esti
ittellensä, ryyppäs ja antoo sitte sen pikarin Puupärille käthen. Nuristi
tarkasti partahia myäri, jotta klasi oli aiva kukkurallansa eikä
Puupärin käsi yhtää vavahtanu eikä se nokkuakaa maaha
fläsähyttäny. Tarkasti kaati poskehensa joka nokan.

— Viäläkö? — kysyy isäntä.

— Jos tuata kaataasit ny viälä tuaho krööpööksehe asti — sanoo


Puupäri ja viisas kruusoosta klasin lairas.

Isäntä kaatoo.

Ja sinne jäivät Puupäri ja isäntä ovikamarihi kallistelhon ja kaathon


kumpiki krööpööksehensä.

Ku Puupäriä ei ruvennu kuulumhan takaasi tuphan, niin lähtivät


akakki kotiansa.

Siin’oli naapuritaloos junkkari poika, jok’oli vähä koulujaki käyny,


muttei siit’ollu mitää tullu muuta ku aikamoone koiranleuka ja kurin-
tekiä. Ja monta jutkua se kylälääsille oliki tehny.

Kuinkhan se sama junkkari ny saiki haravihinsa, jotta Puupäri oli


ruvennu krannin isännän kans ryyppäämhän ovikamaris, ja sill’ oli
heti koirankurit miäles. Ja misthän rumaane keksiikää heti sellaasen
klenkun ku se sitte teki sille Puupärille!

Se meni ja haki kaks muuta kylän poikaa, ja lähti niiren kans sille
mettätiälle, jota se tiäsi Puupärin tulovan kotia ku kerkiää. Se seliitti
sitte niille toisille vesseliille, kuinka sitä peljätethän, ku se tuloo. Sitte

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