Despertar Os Leões Ayelet Gundar Goshen Full Chapter Free
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Despertar Os Leões Ayelet Gundar Goshen Full Chapter Free
Goshen
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Ayelet Gundar-Goshen
Despertar os leões
tradução
Paulo Geiger
Parte 1
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Parte 2
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
Autora
Créditos
Para Ioav
E exatamente no momento em que atingiu aquele homem, pensou
consigo mesmo que aquela era a lua mais bela que vira em sua vida.
E logo depois de atingi-lo, ainda estava pensando na lua, e
continuou a pensar na lua, e então parou de pensar de uma só vez,
como uma vela que tivesse sido soprada. Ele ouve a porta do jipe se
abrir e sabe que foi ele mesmo quem a abriu, e é ele mesmo quem
está saindo do veículo agora. Mas essa constatação só está
vinculada a seu corpo muito tenuamente, como a sensação da
língua ao passar na gengiva após a anestesia: tudo está lá, mas
diferente. Seus pés pisam o cascalho do deserto, ele ouve kachchat,
kachchat a cada passo, e esse ruído é uma prova de que está
mesmo caminhando. E em algum lugar na extremidade do próximo
passo o espera o homem que ele atropelou, dali é impossível vê-lo
mas ele está lá, mais um passo e estará lá. O pé já está no ar, mas
ele retarda o movimento, tenta postergar o próximo passo, o final,
aquele depois do qual não haverá alternativa senão olhar para o
homem estendido à margem da estrada. Se ao menos fosse possível
congelar esse passo, mas isso é obviamente impossível, assim como
é impossível congelar o momento que o antecedeu, o momento
exato em que o jipe atingiu o homem, isto é, o instante preciso em
que o homem que dirigia o jipe atingiu o homem que caminhava. E
só o próximo passo revelará se esse homem, o pedestre, ainda é um
homem ou já é alguma outra coisa, uma palavra que só de pensar
nela o pé já se imobiliza no ar, no meio do passo, pois existe a
possibilidade de que o passo se complete e descubra que o pedestre
não é mais um pedestre, nem mesmo um homem, apenas a casca
de um homem, uma casca rachada, sem um homem lá. E se o
homem estendido não for mais um homem, ficará difícil imaginar o
que será do homem que ali está, de pé, tremendo, sem conseguir
completar um simples passo. O que será dele.
Parte 1
1
Havia poeira por toda parte. Uma camada branca, fina, como a
cobertura de um bolo de aniversário que ninguém quer. Ela se
acumulava nas folhas das palmeiras na praça principal, nas árvores
adultas que tinham sido trazidas de caminhão e fincadas no solo, já
que ninguém confiava que mudas jovens conseguissem vingar aqui.
Cobria os cartazes remanescentes das eleições municipais, que três
meses depois ainda estavam pendurados nas varandas das casas;
homens calvos e bigodudos debaixo da poeira olhando para o
público de potenciais eleitores. Parte deles ostentando um sorriso
autoritário e parte com um olhar severo, tudo de acordo com a
orientação do marqueteiro de plantão. Poeira nos cartazes de
propaganda; poeira nas paradas de ônibus; poeira nas buganvílias
ao longo da beirada das calçadas, que desmaiavam de sede; poeira
em toda parte.
Mesmo assim, parece que ninguém dava atenção a isso. Os
habitantes de Beer Sheva tinham se acostumado com a poeira como
se acostumaram com todo o resto — desemprego, crime, jardins
públicos semeados de garrafas quebradas. As pessoas da cidade
continuavam a despertar para sair às ruas cheias de poeira, iam para
seus trabalhos empoeirados, faziam sexo debaixo de um manto de
poeira e geravam filhos em cujos olhos a poeira se refletia. Às vezes
ficava pensando o que ele odiava mais — a poeira ou os habitantes
de Beer Sheva. Aparentemente, a poeira. Os habitantes de Beer
Sheva não ficavam grudados em seu jipe toda manhã. A poeira, sim.
Uma camada branca, fina, que borrava o vermelho vivo do jipe e o
fazia ficar de um rosa desbotado, uma paródia dele mesmo. Furioso,
Eitan estendeu um dedo sobre o para-brisa e apagou um pouco
daquela vergonha. A poeira continuou grudada em sua mão mesmo
depois de esfregá-la na calça, e ele sabia que teria de esperar até
lavá-la no hospital Soroka para se sentir realmente limpo de novo.
Que se foda esta cidade.
(Às vezes ouvia os próprios pensamentos e se assustava.
Lembrava então a si mesmo que não era racista. Que votava no
Merets.[1] Que estava casado com uma mulher que, antes de se
tornar Liat Green, chamava-se Liat Samucha.[2] Após contabilizar
tudo isso ficou mais tranquilo, e pôde continuar a odiar a cidade com
a consciência limpa.)
Quando entrou no carro tratou de manter o dedo maculado longe
de qualquer zona de contato, como se não fosse parte de seu corpo,
e sim uma amostra de tecido que em mais um instante apresentaria
ao professor Zakai para que pudessem examiná-la juntos, com
olhares ávidos — revele-nos quem você é! Mas o professor Zakai
estava agora a muitos quilômetros dali, despertando para uma
manhã livre de poeira nas ruas verdejantes de Raanana, acomodado
confortavelmente em sua Mercedes prateada, abrindo caminho para
o hospital em meio aos engarrafamentos da região central do país.
Enquanto atravessava as ruas de Beer Sheva, Eitan desejou ao
professor Zakai pelo menos uma hora e meia parado e suando no
entroncamento de Guea, com o ar-condicionado quebrado. Mas
sabia muito bem que o ar-condicionado de uma Mercedes não
enguiça, e que os engarrafamentos em Guea são apenas uma doce
lembrança daquilo que Eitan deixara para trás quando mudara: a
cidade grande. Um lugar para o qual todos querem ir. Era verdade
que em Beer Sheva não havia engarrafamentos, e ele tratava de
salientar aquilo em toda conversa com conhecidos seus da zona
central. Mas quando o fazia — com um sorriso sereno estampado no
rosto, o olhar transparente de um nobre homem do deserto —
pensava sempre que num cemitério tampouco havia
engarrafamentos, e assim mesmo não estabeleceria lá seu lugar de
moradia. As casas ao longo de Shderot Reger realmente lembravam
um cemitério. Uma fileira desbotada e uniforme de blocos de
alvenaria que um dia tinham sido brancos e hoje tendiam para o
cinza. Lápides gigantes em cujas janelas se viam de vez em quando
rostos cansados, empoeirados, de um ou outro fantasma.
No estacionamento do Soroka ele encontrou o dr. Zendorf, que
lhe abriu um sorriso largo e perguntou: “E como vai hoje o dr.
Green?”. Ele extraiu lá de dentro um sorriso desgastado e o espalhou
pelo rosto o melhor que pôde, respondendo: “Tudo bem”. Depois
entraram juntos no hospital, trocando o clima e a hora que a
natureza lhes impunha pelo desafio atrevido dos sistemas de
refrigeração e iluminação que lhes asseguravam uma manhã eterna
e uma primavera que não passaria jamais. Na entrada do
departamento, Eitan separou-se do dr. Zendorf para esfregar
longamente na pia o dedo empoeirado, até que uma jovem
enfermeira passou a seu lado e observou que ele tinha dedos de
pianista. É verdade, pensou, ele tinha dedos de pianista. As
mulheres sempre lhe diziam aquilo. Mas a única coisa em que ele
tocava eram neurônios lesionados e secionados, com os dedos
envoltos em luvas, para ver que melodia seria capaz de produzir com
eles, se é que seria.
Que instrumento musical estranho é o cérebro. Você nunca sabe
de verdade que som vai sair ao pressionar uma ou outra tecla. Claro,
é muito provável que, se excitar o lobo occipital com uma leve
corrente elétrica, o homem que está diante de você vai relatar que
está vendo cores, assim como a excitação de neurônios no lobo
temporal provocará — com grande probabilidade — a ilusão de sons
e de vozes. Mas que sons? Que imagens? Aqui tudo fica mais
complicado. Porque, apesar de a ciência gostar muito de leis
genéricas, constantes, as pessoas, assim se constata, gostam de ser
diferentes umas das outras. Com ultrajante aguerrimento elas
teimam em criar novos sintomas, que, mesmo não sendo mais do
que variações sobre um mesmo tema, estão longe demais uns dos
outros para que se possa reuni-los numa única definição abrangente.
Dois pacientes com lesão no córtex orbitofrontal nunca farão o favor
de sincronizar seus efeitos colaterais. Uma vai se comportar áspera e
estupidamente, a outra vai se tornar uma pessoa compulsoriamente
jovial. Uma fará observações de cunho sexual e de mau gosto, a
outra será atacada por uma necessidade incontrolável de pegar tudo
o que encontrar pelo caminho. É verdade que a explicação para os
estremecidos familiares será idêntica: por algum motivo (Acidente de
trânsito? Tumor maligno? Bala perdida?) foi atingido o córtex
orbitofrontal, que é o responsável pela regulação do
comportamento. Do ponto de vista neurocognitivo tudo está normal:
a memória funciona e as aptidões de cálculo continuam presentes.
Mas a pessoa que eles conheciam não existe mais. Quem virá em
seu lugar? Não está claro. Até aqui. Deste ponto em diante, há um
mundo inteiro de casualidade. A casualidade, essa putinha atrevida
como ela só, fica saltitando entre os leitos do departamento,
cuspindo nos aventais dos médicos, fazendo cosquinhas nos pontos
de exclamação da ciência até estes curvarem a cabeça e se
transformarem em pontos de interrogação.
“Como então será possível saber alguma coisa?”, ele gritou em
direção ao palco de madeira no salão de conferências. Quinze anos
tinham se passado, e Eitan ainda lembrava a fúria que se apossara
dele no momento em que compreendera, num meio-dia sonolento,
que a profissão para a qual estudava não dispunha de mais certezas
do que qualquer outra área de atividade. Uma aluna adormecida a
seu lado despertara assustada com seu grito e lançara um olhar
hostil a ele. O resto da turma ficara esperando a continuação da fala
do conferencista principal, que com certeza estaria incluída na
matéria da prova. O único que não se incomodara com a pergunta
fora o próprio professor Zakai, que lhe lançara um olhar divertido da
tribuna. “E como se chama o senhor?”
“Eitan. Eitan Green.”
“A única maneira de saber alguma coisa, Eitan, é seguir a trilha
da morte. A morte vai lhe ensinar tudo o que você precisa saber.
Tome, por exemplo, o caso de Henry Molaison, um epiléptico de
Connecticut. Em 1953, um neurocirurgião chamado Scoville mapeou
os focos da epilepsia nos dois lobos temporais, e Henry Molaison foi
submetido a uma cirurgia inovadora para retirada das regiões
responsáveis pela doença, entre elas o hipocampo. Sabe o que
aconteceu depois?”
“Ele morreu?”
“Sim e não. Henry Molaison não morreu, já que despertou da
cirurgia e continuou com sua vida. Mas em outro sentido Henry
Molaison morreu, sim, pois a partir do momento em que acordou da
cirurgia não foi capaz de criar uma lembrança nova sequer. Não
conseguia se apaixonar, guardar rancor ou se manter aberto a uma
ideia nova por mais de dois minutos: após esse tempo, o objeto do
amor, do rancor ou a ideia nova simplesmente eram apagados. Ele
tinha vinte e sete anos quando sofreu a cirurgia, e apesar de só ter
morrido com oitenta e dois, na verdade ficou eternamente nos vinte
e sete. Entenda, Eitan, só depois que retiraram o hipocampo
descobriram que ele na verdade é o responsável pela codificação da
memória no longo prazo. Temos de esperar que alguma coisa seja
destruída para compreender o que estava funcionando bem antes
disso. Este é essencialmente o método mais básico na pesquisa do
cérebro: não se pode simplesmente desmontar o cérebro das
pessoas e verificar o que acontece, é preciso esperar que o acaso
faça isso por você. E então, como um bando de comedores de
carniça, os cientistas se atiram sobre aquilo que sobrou depois que o
acaso fez sua parte e tentam chegar a isso pelo que você tanto
anseia: saber alguma coisa.”
Teria sido lá que fora lançada a isca, naquela sala de
conferências? O professor Zakai já saberia que aquele aluno
diligente, fascinado, ia segui-lo como um cão fiel aonde quer que ele
fosse? No momento em que vestiu o avental branco, Eitan zombou
de sua própria ingenuidade. Ele, que não acreditava em Deus, que
ainda menino se recusava a acreditar em toda história que tivesse
algo de sobrenatural, por mínimo que fosse, transformara o
conferencista num deus ambulante. E quando o cão fiel recusara-se
a se fingir de morto, ou de surdo, mudo e cego, o deus ambulante
despejara sobre ele toda a sua raiva, expulsara-o do paraíso tel-
avivense para aquela terra desértica, para o Soroka.
“Dr. Green?”
A jovem enfermeira postou-se a seu lado e lhe relatou as
ocorrências da noite. Ele a ouviu com uma atenção razoável e foi
preparar um café. Caminhando pelo corredor, lançava um rápido
olhar aos pacientes. Uma jovem sufocava num choro silencioso. Um
russo de meia-idade tentava fazer sudoku, mas sua mão tremia.
Quatro membros de uma família de beduínos mantinham os olhos
vidrados na televisão acima deles. Eitan enviesou o olhar para a tela
— um guepardo resoluto labutava para roer os últimos resíduos de
carne do que antes disso tinha sido uma raposa de cauda vermelha,
dizia o locutor. Estava ali a confirmação, o fato de que toda vida
estava destinada ao fim; o que era proibido lembrar nos corredores
do hospital podia ser dito sem restrição na tela da televisão. Se o dr.
Green caminhasse por aquela selva de concreto chamada Soroka
falando sobre a morte, os pacientes literalmente enlouqueceriam.
Choros, gritos, ataques aos membros da equipe médica. Inúmeras
vezes tinha ouvido pacientes emocionados chamá-los de “anjos de
branco”. E embora soubesse que não eram anjos que estavam
debaixo do avental branco, e sim pessoas de carne e osso, ele não
se atinha a coisas menores. Se as pessoas precisavam de anjos,
quem era ele para privá-las daquilo? E daí que a piedosa enfermeira
tenha escapado por um triz de um processo por negligência quando
despejara numa garganta ressecada um remédio que era destinado
a outra garganta ressecada? Anjos às vezes também se enganavam,
especialmente se já não dormiam havia vinte e três horas. E quando
parentes desolados e cheios de raiva se lançavam sobre um
residente atemorizado ou uma especialista assustada, Eitan sabia
que também se atacavam assim anjos de verdade, para lhes
arrancar as penas das asas, a fim de que não voassem pelo
esplendoroso reino dos céus no momento em que o parente amado
era enviado à escuridão do pó. E eis que todas aquelas almas que
não eram capazes de aguentar sequer uma espiada fortuita no rosto
da morte agora pairavam sobre ela tranquilamente, até mesmo com
simpatia, enquanto desferia seu terror na savana africana. Pois
agora não eram só os beduínos que olhavam para a tela — o homem
russo tinha posto de lado seu sudoku e esticava o pescoço, e até a
mulher sufocante olhava a cena através dos cílios ornados de
lágrimas. O guepardo mastigava vigorosamente os restos da carne
da raposa de cauda vermelha. O locutor mencionava a seca. Na falta
de chuvas, os animais da savana começarão a devorar suas próprias
crias. As pessoas que chegavam no departamento de neurocirurgia
assistiam eletrizadas à descrição rara, no relato do locutor, de um
leão africano devorando seus próprios rebentos, e Eitan Green soube
com toda a convicção que não era pela morfina que devia agradecer
aos deuses da ciência, mas por uma Toshiba de trinta e três
polegadas.
Quatro anos antes, uma paciente com alopecia o chamara de
cínico e cuspira em seu rosto. Ele ainda podia sentir a saliva a lhe
escorrer pela face. Era uma jovem não especialmente bonita. Mesmo
assim andava pelo departamento com certa altivez real, com
enfermos e enfermeiros abrindo-lhe caminho instintivamente. Um
dia, quando ele chegou a seu leito na visita matinal, ela o chamou
de cínico e cuspiu em seu rosto. Em vão Eitan tentou compreender o
que a levara àquilo. Nas visitas anteriores, as perguntas dele tinham
sido rotineiras e as respostas dela, breves. A paciente nunca tinha se
dirigido a ele no corredor. Por não encontrar uma razão, aquilo o
deixou deprimido. Involuntariamente, Eitan foi arrastado para
pensamentos mágicos sobre cegos que enxergavam bem, mulheres
calvas a quem a aproximação da morte dotava de uma visão de raio
X que penetrava corações e rins. Naquela noite, na cama de casal
cujos lençóis recendiam a sêmen, perguntou a Liat: “Sou um
cínico?”.
Ela riu, e ele se ofendeu.
“Tanto assim?”
“Não”, ela disse, e o beijou na ponta do nariz. “Não mais do que
os outros.”
Ele realmente não era cínico. Não mais do que os outros. O dr.
Eitan Green não se cansava de seus pacientes além — tampouco
aquém — da medida do razoável no departamento. No entanto, fora
enviado para o exílio, para além de um oceano de pó e areia,
expulso do colo de um hospital no centro do país para a deprimente
aridez de concreto do Soroka. “Idiota”, sussurrou para si mesmo
enquanto lutava para ressuscitar o gorgolejante ar-condicionado do
quarto. “Idiota e ingênuo.” Pois o que, senão idiotice, faria um gênio
da medicina entrar em antagonismo frontal com o diretor ao qual é
subordinado? O que, senão idiotice em sua forma mais refinada,
faria com que ele teimasse em estar com a razão mesmo quando o
responsável — padrinho desse gênio ainda nos tempos da
universidade — lhe dizia que tomasse cuidado? Quais tinham sido as
formas de idiotice que o gênio da medicina conseguira inventar
quando dera um soco na mesa, numa pálida imitação de
assertividade, e dissera: “Isso é suborno, Zakai, e vou acabar com
isso”? E quando procurou o diretor do hospital e lhe falou dos
envelopes com dinheiro e das “cirurgias de urgência” furando a fila
que se seguiram a eles, teria sido mesmo tolo o bastante para
acreditar na expressão de surpresa nos olhos dele?
O pior de tudo é que ele faria novamente. Tudo aquilo. Na
verdade quase repetira o que dissera quando descobria, duas
semanas depois, que a única ação do diretor do hospital fora
transferi-lo.
“Vou levar isso aos meios de comunicação”, ele dissera a Liat.
“Vou fazer uma bagunça tão grande que eles não conseguirão me
calar.”
“Claro”, ela dissera, “assim que terminarmos de pagar a escola de
Iheli, e o carro, e o apartamento.”
Ela dissera depois que a decisão era dele, que ia apoiá-lo
qualquer que fosse o caminho que tomasse. Mas ele lembrara como
o castanho dos olhos dela mudou de uma só vez de um tom de mel
para um de noz dura, lembrou como Liat se revirara na cama
durante toda aquela noite, debatendo-se em seus sonhos com
horrores cuja natureza Eitan adivinhava. Na manhã seguinte, ele
entrara na sala do diretor do hospital e concordara com a
transferência.
E três meses depois já estavam ali, na casa caiada de branco, em
Omer. Iheli e Itamar brincavam na grama. Liat estava em dúvida
quanto a onde pendurar os quadros. E ele olhava a garrafa de
uísque que seus colegas de departamento lhe haviam dado na
despedida sem saber se ria ou chorava.
No fim, levou a garrafa consigo para o hospital e a pôs na
estante, junto com os diplomas. Porque, assim como eles, ela
simbolizava alguma coisa. Uma etapa encerrada, um lição aprendida.
Se ocorria dispor de alguns minutos entre um paciente e outro,
pegava a garrafa e a contemplava com atenção, detendo-se
longamente no cartão com a dedicatória. Para Eitan, que tenha
sucesso. As palavras pareciam zombar dele. Conhecia muito bem a
caligrafia do dr. Zakai, pontinhos de braille que na época em que
estudava na universidade tinham feito estudantes chorar. “O senhor
pode explicar o que escreveu?” “Prefiro que a senhora aprenda a
ler.” “Mas isto não está claro.” “Ciência, meus senhores, não é algo
claro.” E todos resmungavam e escreviam, canalizavam sua raiva em
suas avaliações de fim de ano especialmente mordazes, que nunca
modificavam nada. No ano seguinte, o professor Zakai estava de
novo na sala de conferências, sua caligrafia no quadro, cocozinhos
de pombo indecifráveis. O único que se alegrava ao vê-lo era Eitan.
Lentamente, com entusiasmada perseverança, aprendeu a decifrar a
caligrafia de Zakai, mas a figura do professor continuou a ser para
ele um hermético enigma.
Para Eitan, que tenha sucesso. O cartão estava pendurado no
gargalo da garrafa de uísque num abraço eterno, que lhe provocava
náusea. Várias vezes pensou em rasgar a dedicatória e jogá-la no
lixo, talvez se livrar da garrafa toda. Mas sempre se detinha no
último momento, olhando para as palavras do professor Zakai com a
mesma concentração com que olhava, em sua juventude, para uma
equação complicada.
Dormiu bem naquela noite. Mais do que bem, foi um sono excelente.
Profundo, estável, restaurador, que continuou mesmo após o nascer
do sol. Depois que as crianças levantaram da cama. Depois que Liat
gritou que se apressassem. Ele continuou a dormir quando Iheli
gritou por causa de um brinquedo que o desapontara. Também
dormia quando Itamar ligou a televisão em volume alto. Dormia
quando a porta da casa se fechou e ouviu-se o som do carro se
afastando, com todos os membros de sua família dentro dele.
Dormiu, dormiu e dormiu, depois dormiu mais, até que chegou o
momento em que de forma alguma conseguiria continuar dormindo
— então acordou.
A luz do meio-dia penetrava pelas persianas e dançava nas
paredes do quarto. Um passarinho pipilava lá fora. Uma aranha
pequena, valente, ousou desafiar a paixão de Liat por limpeza, e
obrava de forma enérgica no tecer de uma teia, num canto acima da
cama. Eitan olhou para a aranha longamente até a benéfica neblina
do sono se dissolver e abrir lugar a uma simples verdade: ontem à
noite ele atropelou um homem e seguiu seu caminho. Cada célula de
seu corpo despertou para a clara realidade, que seria impossível
mudar. Tinha atropelado um homem. Atropelou um homem e seguiu
seu caminho. Disse a si mesmo repetidas vezes as palavras,
tentando juntar consoantes e sílabas num significado claro,
compreensível. Mas enquanto as repetia elas se desmontavam em
sua cabeça, até perder todo o sentido de realidade. Agora
pronunciava a frase em voz alta, deixando os sons se formarem no
espaço do quarto. Atropelei um homem. Atropelei um homem e
continuei meu caminho. Por mais que repetisse a frase, primeiro
sussurrando e depois em voz alta, ela ainda não lhe parecia ser uma
coisa concreta, era até mesmo idiota, como se estivesse falando
sobre algo que lera no jornal ou sobre um programa de televisão
ruim. A aranha e o passarinho tampouco ajudaram — era de supor
que passarinhos não cantassem à janela de quem tivesse atropelado
um homem e seguido sua viagem, que a aranha não quisesse
estabelecer residência acima da cama de um homem desses. E
assim mesmo a aranha continuava sua labuta e o passarinho seu
cantar, e até mesmo o sol — em vez de privá-lo de seu esplendor —
continuou a atravessar as persianas e a desenhar na parede
manchas realmente impressionantes.
E de repente para Eitan era muito importante olhar muito bem
para elas. Manchas de luz numa parede branca. (Pois assim é: um
homem levanta-se de manhã e sai de casa sem saber de nada. Beija
sua mulher na ponta do nariz e diz a ela nos vemos à noite, e
realmente supõe que vão se encontrar à noite. Ao vendedor na
mercearia ele diz até breve, com toda a convicção. E tem toda a
certeza de que dentro de alguns dias vão realmente se reencontrar,
ele e o vendedor e os tomates. E que nada mudaria demais, a não
ser, talvez, o preço dos tomates. O beijo na ponta do nariz, o
apalpar relaxado dos tomates no caixote, as manchas de luz na
parede branca vistas do mesmo ângulo, na mesma hora, todos
devem sua existência à premissa de que o que havia é o que haverá.
De que hoje também, como ontem, como anteontem, a Terra
continuará a girar em seu eixo no mesmo movimento lento,
sonolento, que embala Eitan como se ele fosse um bebê. Se a Terra
começasse subitamente a girar em sentido contrário, Eitan
tropeçaria e cairia.)
Embora já estivesse completamente desperto, continuou deitado
na cama sem se mexer. Como ousaria pôr-se de pé depois de ter
atropelado um homem e seguido seu caminho? Com certeza a terra
ia se abrir sob seus pés.
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lipstikkuja: Eteläpohjalaisia murrejuttuja
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Language: Finnish
Eteläpohjalaisia murrejuttuja
Kirj.
SISÄLLYSLUETTELO.
Papinkisälli.
Hampurin pörssi.
Puupäri kuuli ääniä ylhäältä.
Laitalan Jussi.
Ilmapuntari.
Ku Isoo-Matti poksas.
Jaakoon puuronkeitto.
Suutari varaasti paakarin akan.
Housut putos tornihi.
Kissi piru.
Köpi Pöntikkää soorrethan.
Kans kansanerustaja.
Jupen joulu.
Savolaane ja pohjalaane.
Lahoonloukon moottori.
Pataljoona lähti.
Hra Tuntematoon.
Valtiopaatti v. 1920.
Kauppaneuvos osti ilveksennahaan.
Kansakoulun jatkoluakat.
Taavetin pottu.
Myi miähensä.
Huu puri.
Karjanäyttelyssä (runo).
PAPINKISÄLLI.
— Voi ku sais! — — —
— Voih!
Ja sillä nuarella papinkisällillä oli sylis ilmi elävä flikka, joka löi
käret kaulan ympäri ja puristi n’otta poikapark’ oli tukehtua.
Ja nii oli se nuari pastori sekaasinsa, jotta siitä paikasta lähti vähä
joutua vihkimhän sitä nuartaparia kansliaha.
— Mutta jos lukis koko litanian väärinpäin, nii eikö se solmu sillä
aukees? — ehrootti sulhanen. — Jos sen ny tämän Anna Kaisan
uurestansa vihkis muhun, nii siiloonhan siitä tulis kahren miähen
akka.
— Ei!
— Joo-oh!
— Voi voi ja intti förstoo taala finska! Hilta, Hilta kom hiit, häär
fintuppi sitta — — —
Kun mä sitte kattoon ympärilleni, niin koko sali istuu suu auki,
lihanpalat kaffelin noukas ja vahtas mua ku tulisilla kekälehillä.
Ja aivan ne frääsäs.
— Dumbum!
— Onko täälä ketää, joka voii seliittää mullen, mitä sinsalloja täs
ruattalaases plakaatis oikeen on?
Niistä mä alootinkin.
Mä huurin jotta:
— Sehän on ankerias! —
— Eipä tua pahaa tekisi — oli Puupäri tuumannu, jota heti rupes
kovasti hiukaasemhan.
Isäntä aukaasi piirongin klaffin ja otti halstoopin potun ja
jaloottoman ryyppyklasin, kun siit’oli menny jalka poikki. Kaatoo esti
ittellensä, ryyppäs ja antoo sitte sen pikarin Puupärille käthen. Nuristi
tarkasti partahia myäri, jotta klasi oli aiva kukkurallansa eikä
Puupärin käsi yhtää vavahtanu eikä se nokkuakaa maaha
fläsähyttäny. Tarkasti kaati poskehensa joka nokan.
Isäntä kaatoo.
Se meni ja haki kaks muuta kylän poikaa, ja lähti niiren kans sille
mettätiälle, jota se tiäsi Puupärin tulovan kotia ku kerkiää. Se seliitti
sitte niille toisille vesseliille, kuinka sitä peljätethän, ku se tuloo. Sitte