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Renamo - Um Assunto para Historiadores4
Renamo - Um Assunto para Historiadores4
Renamo - Um Assunto para Historiadores4
Colóquio IESE
19-21 de Setembro de 2017
Michel Cahen
Casa de Velázquez (Madrid) e centro de investigação “Les Afriques
dans le monde” (CNRS-Sciences po Bordeaux)
A Renamo, um assunto
para historiadores e cientistas sociais *
*
Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Colóquio Internacional “José Capela e a história de
Moçambique: 45 anos depois de O vinho para o preto”, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 29-
30 mai 2017.
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em 1898. Beira, tal como Lourenço Marques, foi uma produção desta
viragem para o capitalismo colonial. Lourenço Marques era uma mera
aldeia colonial (Xilunguine) e não havia nem sequer uma aldeia na foz do
Rio Pungué quando a decisão de construir Beira foi tomada em 1887,
suplantando a velha Sofala. No entanto, mesmo se Lourenço Marques e
Beira são cidades da mesma geração histórica, as suas posições geopolítica
e geoeconômica foram foi muito diferentes. Mesmo o olhar dos brancos
sobre a sua colónia ia ser diferente entre os de Lourenço Marques e os da
Beira. Os brancos da Beira vieram de uma entidade política que, até 1942
não era a colónia de Moçambique, mas o Território de Manica e Sofala,
sob a vigência da Companhia de Moçambique. Tinham uma autonomia
colonial de facto. E sempre, os brancos da Beira lamentaram esta perda
de autonomia, como lembrou recentemente Egídio Guambe na sua tese
de doutoramento . Também aqui, a partir da nomeação do Bispo Manuel
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Egídio Guambe, « Réformer l’administration pour renégocier la centralité de l’État au Mozambique. Analyse
à partir du cas des municipalités de Quissico, Beira, Mueda et Ribáuè », tese de ciências políticas, Institut d’études
politiques-Université de Bordeaux, 10 de novembro de 2016.
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Não estou falando aqui da resistência a penetração colonial, dita resistência “primária”, mas da resistência à
dominação colonial já estabelecida, dita resistência “segundária”. Sobre os motins de Machanga e Mambone, estou
preparando um estudo aprofundado, mas já se pode ver: “Les "mutineries” de la Machanga et de Mambone (1953) :
conflits sociaux, activisme associatif et tension religieuse dans la partie orientale de la "zone vandau"”, Bordeaux,
Janveiro de 1991, CEAN-IEP, 55 p. mimeo; e “L’anticolonialisme identitaire : conscience ethnique et mobilisation
anti-portugaise au Mozambique (1930-1965)”, in Colette Dubois, Marc Michel & Pierre Soumille (eds),
Frontières plurielles, Frontières conflictuelles en Afrique subsaharienne, Paris, L’Harmattan, 2000, pp. 319-333,
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Estou também preparando novo estudo sobre Mueda, mas já se pode consultar “The Mueda Case and Maconde
Political Ethnicity. Some notes on a work in progress”, Africana Studia (Porto), n° 2, 1999: 29-46.
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Criei a expressão “Velho Moçambique” para designar as regiões e as formações sociais que constituíam o
centro de gravidade de Moçambique durante a primeira idade colonial e que, depois da viragem para o Sul decidida
durante transição para o capitalismo colonial, sobreviveram numa situação politicamente marginal mas também
mais e mais social e economicamente – marginalização que se agravou depois da independência. Fiquei muito
contente quando Sérgio Chichava apanhou esta expressão para o título da sua tese (veja nota a seguir).
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Sérgio Chichava, « Le "Vieux Mozambique" : l’identité politique de la Zambézie », tese de ciências políticas,
Institut d’études politiques-Université Montesquieu Bordeaux 4, 8 de Junho de 2007.
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Luís de Brito, “Instituições políticas e unidade nacional”, in L. de Brito et alii (eds), Desafios para
Moçambique 2016, Maputo, IESE, Marimbique, 2016, pp. 23-32.
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Ver em particular os trabalhos de René Pélissier, História de Moçambique, 2 vols, Lisboa, Editorial Estampa,
2000 (1a ed. francesa : 1988). É de lembrar que os prazos representavam, num dado território, a coroa portuguesa.
Se a instituição prazeira mudou muito ao longo dos séculos, os prazos nunca chegaram a constituir entidades
políticas africanas, mas mantiveram-se como um tipo de Estados secundários entre o Estado imperial português e
as chefaturas africanas, em representação da coroa.
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Publiquei recentemente um artigo sobre o assunto : « Un autre regard sur Eduardo Mondlane », Social
Sciences and Missions, 30, 2017 : 163-169.
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Não é de admirar que esta figura esteja hoje a ser usada pelo MDM que lhe considera herói... Até hoje, entre
os pouquíssimos estudos sobre Kamba Simango, o principal foi de Mário Pinto de Andrade, “Proto-nacionalismo
em Moçambique : um estudo de caso : Kamba Simango. 1890-1967”, Arquivo/Boletim do Arquivo Histórico de
Moçambique, 6, 1984: 127-148, mas o conceito de “proto-nacionalismo” é altamente questionável e teleológico,
como se o único “nacionalismo” possível era o definido à escala de todo o território colonial, que apareceu depois.
Vários estudos estão avançando sobre esta história (Lorenzo Macagno, Eric Morier-Genoud, Michel Cahen...).
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O manuscrito foi completado em 2003.
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Domingos do Rosário, « Les mairies des autres. Une analyse politique, socio-historique et culturelle des
trajectoires locales. Le cas d’Angoche, de l’Île de Moçambique et de Nacala Porto tese de ciências políticas, Institut
d’études politiques-Université Montesquieu Bordeaux 4, 3 de Abril de 2009.
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Vitor Igreja, “The Monkeys’ sworn oath : Cultures of engagement for reconcialition and healing in the
aftermath of the civila War in Mozambique”, tese de antropologia, Leiden, Universiteit Leiden, 2007. O mesmo
autor publicou muitos artigos que incidem, pelo menos parcialmente, sobre o mundo da Renamo, entre outros :
“Memories as Weapons: The Politics of Peace and Silence in Post-Civil War Mozambique”, Journal of Southern
African Studies, 34, 2008: 539-56 ; “Gamba Spirits, Gender Relations, and Healing in Post-Civil War Gorongosa,
Mozambique”, Journal of the Royal Anthropological Institute, 2008, 14: 350-367; “Os Recursos da Violência e
as Lutas pelo Poder Politico Moçambique”, in L. de Brito et alii (eds), Desafios para Moçambique 2015, Maputo,
IESE, Marimbique, 2015, pp. 29-50.
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Tudo isso junto fica, ao meu ver, ainda muito insuficiente para acabar
com uma situação onde o olhar sobre Moçambique fica
predominantemente um olhar a partir da esfera do mundo social do
Estado moderno, isto é o mundo social da Frelimo.
Isto quer dizer que precisamos, para Moçambique (e com certeza para
outros países africanos) de estudos subalternistas. É como se a origem
vergonhosa da Renamo, apoiada pela Rodésia e pela África do Sul do
apartheid, impedia a investigação de orientar-se mais sobre ela. Também
há dificuldades editoriais criadas pelo ambiente politico conturbado do
Moçambique de hoje. Por exemplo, há anos que o manuscrito de
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Alex Vines, Renamo: from terrorism to democracy in Mozambique?, Londres, University of York, 1996.
13
Carrie L. Manning, The Politics of Peace in Mozambique: Post-conflict Democratization, 1992-2000, Santa
Barbara, Praeger, 2002.
14
Carolyn Nordstrom, A Different Kind of War Story, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1997.
15
Margaret Hall & Tom Young, Confronting Leviathan: Mozambique Since Independence, Athens (Oh), Ohio
University Press, 1997.
16
Michel Cahen, Os outros. Um historiador em Moçambique, 1994, Basileia, P. Schlettwein Publishing
Foundation, 2003.
17
Fernando Florêncio, Ao Encontro dos Mambos. Autoridades Tradicionais VaNdau e Estado em Moçambique
Lisbon, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2005.
18
Stephen A. Emerson, The Battle for Mozambique: The Frelimo–Renamo Struggle, 1977–1992, West
Midlands, Helion & Co. Ltd, 2014.
19
Eric Morier-Genoud, Michel Cahen & Domingos do Rosário, The War Within. New Perspectives on the Civil
War in Mozambique, 1976-1992, Martlesham (R.-U.), James Currey, a sair em Agosto de 2018.
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Christian Geffray, A causa das armas: antropologia da guerra contemporânea em Moçambique, Porto,
Afrontamento, 1991; C. Geffray & Mogens Pederson, “Nampula en guerre”, Politique Africaine, 29, 1998: 28-40
[ed. port.: “Sobre a guerra na província de Nampula: elementos de análise e hipóteses sobre as determinações e
consequências socio-económicas locais”, Revista Internacional de Estudos Áfrican, 4-5, 1986: 303-318].
21
Otto Roesch, “Renamo and the Peasantry in Southern Mozambique: A View from Gaza Province’, Canadian
Journal of African Studies, 26/3, 1992: 462-84; ‘Reforma económica em Moçambique: notas sobre a estabilização,
a guerra e a formação das classes’, Arquivo: Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique 11 (1992), 5-35.
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Sobre o PRM, ver o capítulo de Sérgio Chichava, “The Anti-Frelimo Movements and the War in Zambezia”,
in E. Morier-Genoud, M. Cahen & D. do Rosário, The War Within..., op. cit., capítulo 1. Este capítulo é oriundo
da pesquisa doutoral de S. Chichava (veja notas 4 et 23).
23
Além do trabalho de S. Chichava, um grande progresso foi feito sobre os Naparamas, em Corinna Jentsch,
“Militias and the Dynamics of Civil War”, tese de ciências políticas, Yale University, New Haven, CT, 2014; ––
– “Spiritual Power and the Dynamics of War in the Provinces of Nampula and Zambezia in Mozambique”, in E.
Morier-Genoud, M. Cahen & D. do Rosário, The War Within..., op. cit. capítulo 3; e Domingos do Rosário, “War
to Enforce a Political project? Renamo in Nampula Province, 1983-1992”, ibid., capítulo 2.
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factual, deve-se parar com uma situação onde a pesquisa sobre a Renamo
fica mais ou menos tabú; deve tornar a ser um assunto objeto de discussão
aberta, o que é muito importante também para sarar feridas, para
estabelecer mais confiança entre os diferentes segmentos da sociedade
moçambicana, enfim, para criar qualquer coisa que podia ser uma
comunidade de cidadãos, até uma nação!
Descolonizar o saber é também, na investigação, acabar com os
desequilíbrios cognitivos criados pela colonização e mantidos pela
Frelimo. Isto é: descolonizar o saber também será “des-sulizá-lo”.